3
Filosofia
UERJ
4
Filosofia
UERJ
1
Filosofia
UERJ
1
Filosofia
UERJ
5
Filosofia
UMG
41
Filosofia
UNIMONTES
5
Filosofia
UNOPAR
16
Filosofia
CEDERJ
62
Filosofia
UMG
1
Filosofia
UMG
Texto de pré-visualização
Onde aterrara Como se orientar politicamente no Antropoceno TRADUÇÃO Marcela Vieira POSFÁCIO E REVISÃO TÉCNICA Alyne Costa Bruno Latour BAZAR DO TEMPO 1 Este ensaio tem por objetivo aproveitar a ocasião da eleição de Donald Trump em 8 de novembro de 2016 para aproximar três fenômenos que os comentaristas políticos já identificaram ainda que nem sempre notem a relação entre os três deixando por isso de perceber a imensa energia política que poderia ser extraída dessa aproximação No início dos anos 1990 logo após a vitória contra o comunismo simbolizada pela queda do muro de Berlim no exato momento em que alguns pensaram que a história havia concluído seu curso2 uma outra história se iniciava subrepticiamente Ela se caracteriza antes de mais nada por aquilo que chamamos de desregulamentação e que confere um sentido cada vez mais pejorativo à palavra globalização Mas ela marca também o início de forma simultânea em todo o mundo de uma violenta explosão das desigualdades Por fim e isso não é destacado com frequência é nessa época que se inicia a sistemática operação para a negação da existência da mutação3 climática Clima aqui é tomado no sentido ge 2 Francis Fukuyama The End of History and the Last Man Nova York Free Press 1992 3 No primeiro capítulo do livro Face à Gaia Diante de Gaia Bruno Latour justifica sua preferência pela expressão mutação climática argumentando que tratar a situação actual como uma crise como na expressão crise ecológica seria uma tentativa de nos convencermos de que o problema vai passar de que a crise em breve será coisa do passado Quem dera fosse apenas uma crise Segundo os especialistas 9 Onde aterrara ral das relações dos humanos com suas condições materiais de existência Este ensaio propõe abordar esses três fenômenos como sintomas de uma mesma situação histórica tudo ocorre como se uma parte importante das classes dirigentes que hoje de modo um tanto vago chamamos de elites tivesse chegado à conclusão de que não há mais lugar suficiente na terra4 para elas e para o resto de seus habitantes Em consequência decidiram que era inútil fingir que a história continuaria conduzindo a um horizonte comum em que todos os homens poderiam prosperar igualmente Desde os anos 1980 as classes dirigentes não pretendem mais liderar mas se refugiar fora do mundo Dessa fuga da qual Donald Trump é apenas um símbolo entre outros somos nós que sofremos todas a consequências A ausência de um mundo common a compartilhar está nos enlouquecendo A hipótese é que não entenderemos nada dos posicionamentos políticos dos últimos cinquenta anos se não reservamos um lugar central à questão do clima e à sua denegação Sem a consciência de que entramos em um Novo Regime Climatica5 não podemos compreender nem a explosão das desigualdades nem a amplitude das desregulamentações nem a crítica da globalização e nem sobretudo o desejo desesperado de regressar às velhas proteções do Estado nacional o que se costuma chamar um tanto erroneamente de ascensão do populismo Para resistir a essa perda de orientação comum será preciso aterrara6 em algum lugar Daí a importância de saber como se orientar e para isso traçar uma espécie de mapa das posições ditadas por essa nova paisagem na qual são redefinidos não apenas os afetos da vida pública mas também as suas bases As reflexões que se seguem escritas em estilo propositalmente brusco buscam explorar a possibilidade de canalizar certas emoções políticas na direção de novos objetos O autor não sendo nenhuma autoridade em ciências políticas só pode oferecer aos leitores a oportunidade de refutar essa hipótese e procurar outras melhores 2 Temos que agradecer aos apoiadores de Donald Trump por nos terem ajudado a esclarecer essas questões quando o pressionaram a anunciar em 1o de junho de 2017 que os Estados Unidos sairiam do acordo de Paris sobre o clima Trump conseguiu fazer o que nem a militância de milhões de ecologistas nem os alertas de milhões de cientistas nem a 6 Optouse por traduzir o original Atterrir pousar aterrissar por aterrar reforçando a própria presença da Terra no vocábulo lembrando ainda no sentido da aterrissagem a escolha de Tom Jobim por aterrar em seu clássico Samba do avião Desse modo quando a referência for o verbo usaremos aterrar mas quando se tratar do substantivo empregaremos aterrissagem por ser de uso mais corrente que a opção aterragem NE10 Bruno Latour 11 Onde aterrara Até pouco tempo atrás a questão da aterrissagem não se colocava aos povos que haviam decidido modernizar o planeta Ela só se impunha e de modo muito doloroso àqueles que quatro séculos atrás sofreram o impacto das grandes descobertas dos impérios da modernização do desenvolvimento e finalmente da globalização Eles sim sabem perfeitamente o que quer dizer estar privado de sua terra Mais que isso eles sabem muito bem o que significa ser expulso de sua terra Com o tempo não tiveram outra escolha a não ser se tornarem especialistas na tarefa de sobreviver à conquista à exterminação ao roubo de seu solo A grande novidade para os povos modernizadores de outrora é que a questão de aterrarr agora se dirige a eles tanto quanto aos outros Talvez de modo menos sangrento menos brutal menos nítido mas também para eles se trata de um ataque extremamente violento para retirar o território daqueles que até então possuíam um solo ainda que não raro tal solo tenha sido tomado de outros povos por meio de guerras de conquista Temos aí um sentido imprevisto para o termo póscolonial como se houvesse uma semelhança familiar entre dois sentimentos de perda Vocês perderam seu território Nós o tomamos de vocês Pois saibam que agora nós é que estamos em vias de perder o nosso E então estranhamente no lugar de um senso de fraternidade que soaria indecente surge uma espécie de novo vínculo que desloca o conflito clássico Como vocês fizeram para resistir e sobreviver Também seria legal aprender isso com vocês A resposta imediata a essas perguntas irônica é dita em voz baixa Welcome to the club Em outras palavras a impressão de vertigem quase de pânico que atravessa toda a política contemporânea devese ao fato de que o solo desaba sob os pés de todo mundo ao mesmo tempo como se nos sentíssemos atacados por todos os lados em nossos hábitos e bens Você já reparou que não são as mesmas emoções despertadas quando se é instado a defender a natureza você boceja de tédio ou a defender seu território você imediatamente se sente mobilizado Se a natureza se transformou em território não faz mais sentido falar em crise ecológica em problemas de meio ambiente em questão de biosfera a ser recuperada salva protegida O desafio é muito mais vital mais existencial e também uma única e mesma metamorfose a própria noção de solo está mudando O solo tão sonhado da globalização está desaparecendo É essa a novidade daquilo que um tanto timidamente chamamos de crise migratória Se a angústia é tão profunda é porque cada um de nós começa a sentir o solo ruindo sob os pés Descobrimos mais ou menos confusamente que estamos todos migrando rumo a territórios a serem redescobertos e reocupados E isso devido a um quarto acontecimento histórico o mais importante e o menos falado de todos o dia 12 de dezembro de 2015 em Paris no momento em que o acordo sobre o clima foi firmado ao fim da conferência conhecida como COP21 O que interessa para dimensionar o verdadeiro impacto deste episódio não é aquilo que os representantes dos países decidiram tampouco que esse acordo seja ou não aplicado os negacionistas farão de tudo para eviscerálo O importante é que nesse dia todos os países signatários ao mesmo tempo em que aplaudiam o sucesso do improvável acordo davamse conta horrorizados de que se todos avançassem conforme as previsões de seus respectivos planos de modernização não existiria planeta compatível com suas expectativas de desenvolvimento Iriam precisar de vários planetas e eles só têm um Ora se não há planeta terra solo território onde alojar o Globo da globalização em direção ao qual todos os países se dirigiam então ninguém mais possui como se costuma dizer uma terra para chamar de sua Cada um de nós se encontra então diante da seguinte questão Devemos continuar alimentando grandes sonhos de evasão ou começamos a buscar um território que seja habitável para nós e nossos filhos Ou bem negamos a existência do problema ou então tentamos aterrar A partir de agora é isso que nos divide muito mais do que saber se somos de direita ou de esquerda E isso vale tanto para os antigos habitantes dos países ricos quanto para seus futuros habitantes Os primeiros porque sabem que não existe planeta compatível com a globalização e que precisarão mudar radicalmente seus modos de vida os segundos porque tiveram que deixar seu antigo solo devastado e aprender eles também a mudar por completo seus modos de vida Em outras palavras a crise migratória se generalizou Aos migrantes vindos de fora que cruzam as fronteiras correndo o risco de enormes tragédias para deixar seus países juntamse a partir de agora os migrantes de dentro que ainda que permaneçam no mesmo lugar vivem o drama de se verem abandonados por seus países O que torna a crise migratória tão difícil de entender é que ela é o sintoma em maior ou menor grau de aflição de uma provação comum a todos a de se descobrir privados de terra Pois é essa provação que explica a relativa indiferença diante da urgência da situação e também o fato de sermos todos climatoquietistas já que esperamos que tudo acabe se resolvendo no final sem nada fazermos para isso É impossível não nos preocuparmos com os efeitos que têm sobre nosso estado mental as notícias que ouvimos todos os dias acerca do estado do planeta Como não nos sentirmos internamente devastados pela ansiedade de não sabermos responder a isso É essa inquietude ao mesmo tempo pessoal e coletiva que mostra a importância da eleição de Trump episódio que em outras circunstâncias só seria concebível no roteiro de uma série de televisão bastante medíocre Os Estados Unidos tinham duas opções ao perceber a dimensão da mutação e a imensidão de sua responsabilidade poderiam enfim tornarse realistas e conduzir o mundo livre para fora do abismo ou poderiam mergulhar na negação Aqueles que se escondem atrás de Trump decidiram iludir a América por mais alguns anos e retardar sua aterrissagem empurrando os outros países para o abismo talvez definitivamente até então possuíam um solo ainda que não raro tal solo tenha sido tomado de outros povos por meio de guerras de conquista Temos aí um sentido imprevisto para o termo póscolonial como se houvesse uma semelhança familiar entre dois sentimentos de perda Vocês perderam seu território Nós o tomamos de vocês Pois saibam que agora nós é que estamos em vias de perder o nosso E então estranhamente no lugar de um senso de fraternidade que soaria indecente surge uma espécie de novo vínculo que desloca o conflito clássico Como vocês fizeram para resistir e sobreviver Também seria legal aprender isso com vocês A expressão aprender a viver nas ruínas vem do importantíssimo livro de Anna Lowenhaupt Tsing The Mushroom at the End of the World On the Possibility of Life in Capitalist Ruins Princeton Princeton University Press 2015 Esse argumento foi retomado e desenvolvido com base em outros exemplos em Anna Lowenhaupt Tsing Nils Bubandt Elaine Ganet Heather Anne Swanson dir Arts of Living on a Damaged Planet Ghosts and Monsters of the Anthropocene Minneapolis University of Minnesota Press 2017 sem mais garantia alguma deslocandonos permanentemente perdendo toda identidade todo conforto Quem consegue viver assim Ninguém é verdade Nem um pássaro nem uma célula nem um imigrante nem um capitalista Mesmo Diógenes tem direito a um barril um nômade à sua barraca um refugiado a seu asilo Nem por um segundo acredite naqueles que defendem a exploração da imensidão dos mares 16 assumindo riscos abandonando todas as proteções e que seguem apontando para o horizonte infinito da modernização para todos Esses bons samaritanos só correrão riscos se o seu próprio conforto estiver garantido Em vez de ouvir o que falam da boca para fora perceba o que eles trazem nas costas você verá reluzir o paraquedas dourado cuidadosamente dobrado que os protege contra todos os perigos da existência O direito mais elementar é o de sentirse seguro e protegido sobretudo num momento em que as antigas proteções estão desaparecendo És esse o sentido da história que deve ser descoberto de que modo reconstituir as bordas os invólucros as proteções como encontrar uma base sólida considerando ao mesmo tempo o fim da globalização a amplitude das migrações e os limites impostos à soberania dos Estados a partir de agora confrontados com as mudanças climáticas 16 A expressão le grand large significa mar aberto Possivelmente Latour a utiliza tendo como referência a tradução para o francês da peça Vida de Galileu de Bertold Brecht na qual o protagonista compara a descoberta do universo infinito que sua ciência inaugurara com a exploração dos mares permitida pelas grandes navegações Cf La vie de Galilée trad Éloi Recoing Paris LArche éditeur 1990 Para dar mais centralidade ao aspecto da amplitude que a expressão carrega optamos por traduzila por imensidão dos mares NRT 20 Bruno Latour muito mais compreensível pois muito mais direto Quando o tapete é tirado debaixo dos seus pés você entende num segundo que terá de se preocupar com o assoalho O que está sendo tirado de nós diz respeito a nossos vínculos nosso modo de vida é uma questão de solo da propriedade que desaba sob nossos passos e essa preocupação atinge todos da mesma forma tanto os antigos colonizadores quanto os antigos colonizados Na verdade não ela apavora muito mais os antigos colonizadores menos habituados a essa situação que os antigos colonizados A única certeza é que todos estão diante de uma carência universal de espaço a compartilhar e de terra habitável Mas de onde vem tanto pânico Do mesmo profundo sentimento de injustiça experimentado por aqueles que se viram privados de suas terras à época das conquistas depois durante a colonização e por fim durante a era do desenvolvimento uma força vinda de fora o despoja de seu território e você não pode detêla Se é isto a globalização então compreendemos retrospectivamente por que resistir sempre foi a única solução por que os colonizados sempre tiveram razão em se defender Esse é o novo modo de perceber a condição humana universal uma universalidade completamente perversa a wicked universality é verdade mas a única da qual dispomos uma vez que a precedente a da globalização parece desaparecer do horizonte A nova universalidade consiste em sentir que o solo está em vias de ceder Isto já não deveria bastar para entrarmos num acordo e prevenirmos as futuras guerras pela apropriação do espaço Provavelmente não mas nossa única saída está em descobrirmos juntos qual território é habitável e com quem podemos compartilhálo A alternativa seria fingirmos que nada está acontecendo e protegendonos atrás de uma muralha prolongarmos o sonho do American way of life do qual sabemos que muito em breve nove ou dez bilhões de humanos não poderão mais usufruir Migrações explosão de desigualdades e Novo Regime Climático tratase da mesma ameaça E por mais que a maior parte de nossos concidadãos subestime ou mesmo negue o que está acontecendo com a terra eles compreendem perfeitamente que a questão dos imigrantes ameaça seus sonhos de uma identidade garantida Até o momento tendo sido bem mobilizados e orientados pelos partidos ditos populistas eles compreenderam a mutação ecológica em apenas uma de suas dimensões ela obriga pessoas que não são consideradas bemvindas a cruzarem as fronteiras e por isso a resposta Ergamos fronteiras intransponíveis e impeçamos a invasão Mas é a outra dimensão dessa mesma mutação que eles ainda não compreenderam muito bem o Novo Regime Climático vem há tempos varrendo todas as fronteiras e nos expondo aos quatro ventos sem que haja meio de construirmos muros contra os invasores Se queremos defender o território a que pertencemos precisamos identificar também essas migrações sem forma e sem nação que chamamos de clima erosão poluição esgotamento de recursos destruição dos habitats Mesmo bloqueando as fronteiras aos refugiados humanos nunca será possível impedir a passagem desses outros Então quer dizer que mais ninguém está em sua própria casa Exatamente Nem a soberania dos Estados nem o bloqueio das fronteiras podem mais se fazer passar por política Mas se tudo está aberto precisaremos então viver do lado de fora sem nenhuma proteção à mercê de todos os ventos misturados a toda a gente brigando por qualquer motivo 18 Bruno Latour 19 Onde aterrar Donna Haraway17 também há a palavra mundo seria realmente uma pena se privar delas Há cinquenta anos o que chamamos de globalização corresponde de fato a dois fenômenos opostos que são sistematicamente confundidos Passar de um ponto de vista local a um ponto de vista global ou mundial deveria significar uma multiplicação dos pontos de vista o registro de um número maior de variedades a consideração de um maior número de seres de culturas de fenômenos de organismos e de pessoas No entanto hoje parece que globalizar significa exatamente o contrário de tal multiplicação O termo designa a ideia de que uma única visão completamente provinciana proposta por apenas algumas pessoas representando um número ínfimo de interesses limitada a alguns instrumentos de medida a certos padrões e formulários impôsse a todos e se espalhou por toda parte Não surpreende que ninguém mais saiba se devemos abraçar a globalização ou se devemos ao contrário lutar contra ela Se por globalizar entendemos a tarefa de multiplicar os pontos de vista para complexificar toda visão provinciana ou fechada adicionando novas variantes esse é um combate que merece ser travado mas se ao contrário tratase de reduzir o número de alternativas para a existência e os caminhos do mundo para o valor dos bens e os sentidos de Globo é preciso resistir com todas as forças a tal simplificação No fim das contas parece que quanto mais se globaliza mais se tem a impressão de possuir uma visão limitada Cada um de nós pode até aceitar deixar para trás seu pequeno pedaço de chão mas de forma alguma para que outra visão limitada proveniente de um lote de terra apenas mais distante se imponha Distingamos então a seguir a globalizaçãomais da globalizaçãomenos O que torna complicado qualquer projeto de aterrar em algum lugar é que a ideia de uma globalização inevitável suscita por tabela a invenção do reacionário Há muito tempo os defensores da globalizaçãomenos acusam aqueles que resistem a seu avanço de arcaicos atrasados de pensarem unicamente em seu pequeno terroir e de quererem se proteger contra todos os riscos enclausurandose em seus minúsculos lares Ah O gosto pela imensidão dos mares próprio àqueles que encontram abrigo em qualquer lugar para onde suas milhas permitem voar Foi para fazer aquele povo reticente se mover que os globalizadores colocaram sob eles a grande alavanca da modernização Por isso há dois séculos a flecha do tempo tornou possível distinguir de um lado os que vão na dianteira os modernizadores os progressistas e do outro os que ficam para trás A mensagem contida no grito de guerra Modernizemse é só uma toda resistência à globalização será imediatamente julgada como ilegítima Não há nada a ser negociado com os que querem continuar atrás Aqueles que se encontram do lado oposto do irreversível front de modernização serão desqualificados de antemão18 Eles não são apenas vencidos são também irracionais Vae victis 18 A ideia de front de modernização e o modo como ela reparte as emoções políticas foi desenvolvida anteriormente em Bruno Latour Nous navons jamais été modernes Essai danthropologie symétrique Paris La Découverte 1991 Em português Jamais Fomos Modernos Ensaio de Antropologia Simétrica Tradução de Carlos Irineu da Costa Rio de Janeiro Editora 34 1994 22 Bruno Latour 23 Onde aterrar É a defesa desse tipo de modernização que acaba definindo por contraste a preferência pelo local o apego ao solo a insistência num pertencimento às tradições a atenção à terra Tudo isso não mais como um conjunto de sentimentos legítimos mas como a expressão de uma nostalgia por posições arcaicas e obscurantistas A exortação à globalização é tão ambígua que sua dubiedade contamina o que podemos esperar do local É por isso que desde o início da modernização todo vínculo a qualquer tipo de solo tem sido considerado um sinal de retrocesso Contudo assim como existem dois modos completamente diferentes de abordar a globalização de registrar as variações do Globo existem pelos menos dois modos igualmente opostos de definir a ligação com o local É por desconhecerem essa diferença que as elites que tanto se beneficiaram das globalizações tanto a mais quanto a menos têm tanta dificuldade de entender o que aflige aqueles que querem ser amparados protegidos assegurados tranquilizados por sua província por sua tradição por seu solo ou identidade Tais elites então acusam essas pessoas de terem se rendido ao canto da sereia do populismo Recusar a modernização talvez seja um reflexo do medo uma falta de ambição uma preguiça nata sim mas como bem disse Karl Polanyi a sociedade sempre tem razão em se defender contra ataques¹⁹ Recusar a modernização é também resistir corajosamente recusando trocar sua província por outra Wall Street Pequin ou Bruxelas ainda mais estreita e sobretudo infinitamente distante por consequência muito mais indiferente aos interesses locais ¹⁹ Karl Polanyi The Great Transformation The Political and Economic Origins of Our Time Boston Beacon Press 1957 1944 24 Bruno Latour Será que é possível fazer os que seguem entusiasmados com a globalizaçãomenos entenderem que é normal que é justo que é indispensável querer conservar manter garantir o pertencimento a uma terra a um lugar a um solo a uma comunidade a um espaço a um meio a um modo de vida a uma profissão a uma habilidade Reconhecer esse pertencimento é justamente o que nos mantém capazes de registrar mais diferenças mais pontos de vista e sobretudo de não reduzir sua quantidade Sim os reaças se enganam a respeito das globalizações mas os progressistas também se enganam sobre o que mantém os reaças presos a seus usos e costumes Consequentemente devemos distinguir o localmenos do localmais assim como devemos distinguir a globalizaçãomenos da globalizaçãomais No fim das contas a única coisa que interessa não é saber se a pessoa é contra ou a favor da globalização contra ou a favor do local mas sim entender se ela consegue registrar manter respeitar o maior número de possibilidades de pertencimento ao mundo Alguém poderia dizer que isso tudo é papo furado para criar divisões artificiais que mal disfarçam uma certa ideologia do sangue e do solo Blut und Boden Fazer tal objeção contudo seria ignorar o imenso acontecimento cuja ocorrência ameaça o grande projeto da modernização ele se tornou definitivamente impossível pois não existe Terra com capacidade para abarcar seu ideal de progresso de emancipação e de desenvolvimento Como consequência disso todos os pertencimentos estão sofrendo metamorfose quer eles digam respeito ao globo ao mundo às províncias aos terroirs ao mercado mundial aos solos ou às tradições É preciso se confrontar com o que é ao pé da letra um problema de dimensão de escala e de habitação o planeta é 25 Onde aterrar estreito e limitado demais para o globo da globalização No entanto ele é grande demais infinitamente grande ativo demais complexo demais para permanecer dentro das fronteiras estreitas e limitadas de uma localidade qualquer Estamos todos duplamente consternados pelo grande demais e pelo pequeno demais E assim ninguém tem a resposta para a pergunta como encontrar um solo habitável Nem os defensores da globalização tanto a mais quanto a menos nem os defensores do local tanto o mais quanto o menos Nós não sabemos para onde ir nem como viver nem com quem coabitar Como encontrar um lugar Como nos orientar 5 Algo de fato extraordinário deve ter se passado para que o ideal da globalização tenha mudado tão rapidamente de sinal Para detectar o que aconteceu convém desenvolver a hipótese de ciência política ou mais precisamente de ficção política anunciada na introdução Suponhamos que desde os anos 1980 cada vez mais pessoas ativistas cientistas artistas economistas intelectuais partidos políticos perceberam que as relações até então estáveis que a Terra mantinha com os humanos estavam sob ameaça²⁰ Apesar das dificuldades essa vanguarda conseguiu acumular evidências de que tal estabilidade não iria durar e que a própria Terra acabaria revidando ²⁰ A esse respeito ver entre outros Spencer Weart The Discovery of Global Warming Cambridge Harvard University Press 2003 À época todos sabiam que a questão dos limites se apresentaria mais cedo ou mais tarde mas a decisão tomada ao menos entre os modernos foi a de ignorar solenemente o problema motivados por uma forma muito estranha de desinibição²¹ Desse modo poderiam muito bem seguir saqueando o solo usando e abusando dele sem dar ouvidos aos profetas do infortúnio já que o próprio solo permanecia relativamente quieto Porém aos poucos eis que sob o solo da propriedade privada do monopólio das terras da exploração dos territórios um outro solo uma outra terra um outro território começou a se agitar a tremer a se comover Uma espécie de terremoto se preferir com o seguinte recado àqueles pioneiros Prestem atenção nada será como antes vocês pagarão caro pelo retorno da Terra pela reviravolta dos poderes que até agora eram dóceis E é aqui que entra em cena a hipótese de ficção política essa ameaça esse aviso teria sido muito bem compreendido por certas elites elites menos esclarecidas talvez contudo donas de muitos recursos e grandes interesses e acima de tudo extremamente empenhadas na proteção de sua imensa fortuna e na manutenção de seu bemestar Devemos supor que essas elites entenderam perfeitamente bem o recado mas tal evidência que se tornara cada vez mais incontestável com o passar dos anos não as fez concluir que caberia a elas pagar e caro pela reviravolta da Terra sobre si mesma Elas seriam assim esclarecidas o suficiente para captar o recado mas não para compartilhálo publicamente Ao invés disso tais elites parecem ter chegado a partir do aviso a duas conclusões que levaram à eleição do Ubu Rei para a Casa Branca Em primeiro lugar sim essa reviravol 26 Bruno Latour ta vai custar bem caro mas quem vai arcar com esse prejuízo são os outros não nós e em segundo lugar ainda que a verdade do Novo Regime Climático seja cada vez menos discutível vamos negála até o fim São essas duas decisões que permitem relacionar 1 aquilo que desde os anos 1980 chamamos de desregulação ou desmantelamento do Estadoprovidência 2 aquilo que é conhecido desde os anos 2000 como negacionismo climático²² e sobretudo 3 a extensão vertiginosa das desigualdades que testemunhamos há quarenta anos²³ Se essa hipótese estiver correta tudo isso faz parte de um mesmo fenômeno as elites se convenceram tão bem de que não haveria vida futura para todos que decidiram se livrar o mais rápido possível de todos os fardos da solidariedade isso explica a desregulação Decidiram que seria preciso construir uma espécie de fortaleza dourada para os poucos que poderiam se safar do que decorre a explosão das desigualdades E resolveram que para dissimular o egoísmo sórdido de tal fuga para fora do mundo comum seria preciso rejeitar absolutamente a ameaça que motivou essa fuga desesperada o que explica a negação da mutação climática Aqui vale lembrar da metáfora clichê de Titanic as classes dominantes percebem que o naufrágio é inevitável apropriampse dos botes salvavidas e pedem que a orquestra toque durante um bom tempo canções de ninar para que possam aproveitar a noite escura e dar o fora antes que a inclinação excessiva do navio chame a atenção das outras classes²⁴ Há um episódio elucidativo que por seu turno nada tem de metafórico no início dos anos 1990 a companhia ExxonMobil com pleno conhecimento de causa ela já havia até publicado excelentes artigos científicos sobre os perigos da mudança climática decide investir pesadamente na extração frenética de petróleo e ao mesmo tempo na campanha igualmente frenética para negar a existência da ameaça²⁵ Essas pessoas a quem daqui para frente chamaremos de elites obscurantistas compreenderam que para sobreviverem confortavelmente não precisavam mais fingir compartilhar a terra com o resto do mundo nem mesmo como um sonho a perseguir Essa hipótese permitiria explicar como a globalizaçãomais se tornou a globalizaçãomenos Enquanto até os anos 1990 ainda se podia associar o horizonte da modernização a noções de progresso emancipação riqueza conforto até mesmo de luxo e principalmente de ra ²² Naomi Oresks e Erik M Conway Merchants of Doubt How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming Nova York Bloomsbury Press 2010 ²³ A datação é claramente muito vaga mas não contradiz os dados de Thomas Piketty em Capital in the TwentyFirst Century trans Arthur Goldhammer Cambridge MA Harvard University Press 2014 2013 nem a meticulosa abordagem de Dominique Pestre sobre o modo como a ciência econômica absorveu e eufemizou a ecologia Ver principalmente Dominique Pestre La mise en économie de lenvironment comme règle 19702010 Entre théologie économique pragmatisme e hegemonia política Écologie et Politique 52 2016 As reações ao relatório do Clube de Roma de 1972 podem servir de referência nessa questão da cronologia Ver a tese de Élodie VieilleBlanchard Les Limites à la croissance dans un monde global Modélisations prospectives réfutations Tese de doutorado EHESS Paris 2011 24 Para um surpreendente retrato psicológico do proprietário de Titanic sobrevivente do naufrágio ler Frances Wilson How to Survive the Titanic The Sinking of J Bruce Ismay Nova York Harper 2012 25 Dois artigos por David Kaiser e Lee WasserMan The Rockfeller Family fund takes on Exxon Mobil New York Review of Books 8 e 22 dez 2016 Geoffrey Supran e Naomi Oreskes Assessing Exxon Mobils climate change communications 19772014 Environnemental Research Letters 12 2017 28 Bruno Latour 29 Onde aterrar cionalidade ao menos para os que dele se beneficiavam a fúria da desregulação a explosão das desigualdades e o abandono das solidariedades associaramno gradativamente à noção de uma decisão arbitrária surgida do nada para beneficiar apenas alguns O melhor dos mundos passou a ser o pior Do alto do convés as classes inferiores agora alertas veem os botes se afastarem cada vez mais A orquestra continua tocando Plus près de toi mon Dieu mas a música não consegue abafar os gritos de raiva E é mesmo de raiva que devemos falar se quisermos compreender a reação de desconfiança e de incompreensão diante de tamanho abandono e traição Se desde os anos 1980 ou 1990 as elites percebendo que a festa tinha acabado viram que era preciso construir o mais rápido possível comunidades muradas26 para não ter de partilhar mais nada com as massas e sobretudo com as massas de cor que logo avançariam por todo o planeta uma vez que seriam expulsas de suas próprias casas é de se imaginar que os deixados para trás tenham igualmente percebido que se a globalização estava a deus dará então eles também precisariam de muros de proteção A reação de uns provoca a reação de outros ambos reagindo a uma outra reação muito mais radical a da Terra que parou de amortecer os golpes e começou a revidar de maneira cada vez mais violenta Essa sobreposição parece irracional apenas se nos esquecermos de que se trata de uma mesma e única reação em 26 Evan Osnos Doomsday Prep for the SuperRich The New Yorker 30 jan 2017 httpswwwnewyorkercommagazine20170130doomsday prepforthesuperrich Para uma ilustração impressionante da construção desse mundo offshore ver os Paradise Papers publicados pelo International Consortium for Investigative Journalism em 2017 https wwwicijorginvestigationsparadisepapers Acesso em 1 jun 2020 cadeia motivada pela reação da Terra às nossas investidas Fomos nós que começamos nós o antigo Ocidente e mais precisamente a Europa Não há nada mais a fazer senão aprender a viver com as consequências daquilo que desencadeamos Não podemos compreender o crescimento vertiginoso das desigualdades a onda de populismo e nem a crise migratória se não entendermos que estas são três respostas em larga medida compreensíveis ainda que não sejam eficazes à reação colossal de um solo àquilo que a globalização o fez sofrer Uma vez diante da ameaça a decisão parece ter sido não enfrentála mas fugir Alguns buscaram abrigo no exílio dourado do 1 Os superricos devem ser protegidos em primeiro lugar outros esconderamse atrás de fronteiras seguras Por piedade garantanos ao menos uma identidade estável por fim outros os mais miseráveis tomaram o caminho do exílio No fim das contas todos são de um modo ou de outro os abandonados pela globalização menos que começa a perder seu poder de atração 6 Segundo a hipótese levantada aqui as elites obscurantistas teriam levado a ameaça a sério Elas teriam entendido que sua dominância estava ameaçada e decidido desmantelar a ideologia de um planeta comum a todos Teriam também compreendido que um abandono como esse não poderia de modo algum ser explicitado por isso seria preciso obliterar secretamente todo o conhecimento científico sobre a ameaça Tudo isso ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos 30 Bruno Latour 31 Onde aterrarr A hipótese parece inverossímil a ideia de denegação se assemelha demais a uma interpretação psicanalítica ou a uma teoria da conspiração27 Contudo ela se torna mais plausível se fizermos a suposição bastante razoável de que as pessoas rapidamente desconfiam quando se esconde alguma coisa delas e se preparam para agir em resposta a isso Ainda que não haja um flagrante da traição os efeitos da desconfiança são bem visíveis No momento o mais evidente deles é o delírio epistemológico que se apoderou da cena pública desde a eleição de Trump A negação não é uma situação confortável Negar é mentir friamente e depois esquecer que mentiu mas constantemente lembrandose da mentira apesar de tudo É extenuante Podemos nos perguntar o que tal confusão provoca às pessoas que caem nessa armadilha Isso as deixa loucas Tratemos primeiro desse povo que os comentaristas políticos autorizados parecem estar descobrindo de repente Os jornalistas abraçaram a ideia de que o povão se tornou partidário dos acontecimentos alternativos a ponto de esquecer qualquer forma de racionalidade Passaram então a acusar essa boa gente de se comprazera com suas visões estreitas seus medos sua congênita desconfiança em relação às elites sua deplorável indiferença pela própria ideia de verdade e principalmente com sua paixão pela identidade pelo folclore pelo arcaísmo e pelas 27 O problema das teorias da conspiração como bem observou Luc Boltanski é que elas às vezes são o que há de mais real Luc Boltanski Énigmes et Complots Une enquête à propos denquêtes Paris Gallimard 2012 Um livro bem convincente sobre isso é o de Nancy Maclean Democracy in Chains The Deep History of the Radical Rights Stealth Plan for America Londres Penguin Randon House 2017 fronteiras sem esquecer de sua condenável indiferença pelos fatos Disso decorre o sucesso da expressão realidade alternativa No entanto acreditar nisso é esquecer que esse povo foi friamente traído por aqueles que abandonaram a ideia de levar a cabo a modernização do planeta com todo mundo já que estes souberam antes de qualquer um que aquele mundo era impossível precisamente por falta de planeta vasto o suficiente para estender a todos seus sonhos de crescimento Antes de acusar o povo de não mais acreditar em nada nem ninguém é preciso considerar o efeito dessa imensa traição de confiança ele foi abandonado num descampado Nenhum conhecimento comprovado como bem sabemos sustentase sozinho Os fatos só ganham corpo quando para sustentálos existe uma cultura comum instituições nas quais se pode confiar uma vida pública relativamente decente uma imprensa confiável na medida do possível28 E no entanto se esperava das pessoas a quem nunca fora anunciado abertamente ainda que elas pudessem pressentilo que todos os esforços de modernização empreendidos ao longo de dois séculos corriam o risco de serem abandonados que viam todos os ideais de solidariedade serem jogados ao mar por aqueles que as lideravam se esperava dessas pessoas que tivessem nos fatos científicos a mesma confiança de um Louis Pasteur ou de uma Marie Curie Mas o desastre epistemológico é igualmente grande entre os responsáveis por essa tremenda traição 28 Dominique Pestre Introduction aux Science Studies Paris La Découverte 2006 para uma apresentação para um resumo pedagógico Bruno Latour Cogitamus Six lettres sur les humanités scientifiques Paris La Découverte 2010 32 Bruno Latour 33 Onde aterrar Para se convencer disso basta acompanhar diariamente o caos que reina na Casa Branca desde a chegada de Trump Como respeitar os fatos mais estabelecidos quando se deve negar a magnitude da ameaça e travar ainda que sem anunciar uma guerra mundial contra todos os outros É como conviver com um elefante na sala como diz a expressão popular ou com o rinoceronte de Ionesco Nada pode ser mais desconfortável Esses imensos animais roncam evacuam rugem te esmagam e impedem de concatenar qualquer pensamento O Salão Oval se tornou um verdadeiro zoológico O fato é que a negação intoxica tanto os que colocam em prática esse descaso quanto aqueles supostamente enganados por ela examinaremos a trapaça particular do trumpismo mais à frente A única diferença e ela é enorme é que os superricos dos quais Trump é apenas um atravessador adicionam à sua fuga um outro crime imperdoável a negação compulsiva das ciências do clima Isso faz com que as demais pessoas tenham que se virar em meio a um nevoeiro de desinformação sem que ninguém nunca lhes diga em momento algum que a modernização foi encerrada e que uma mudança de regime se tornou inevitável Se é verdade que as pessoas comuns já tendiam a desconfiar de tudo elas foram levadas graças aos bilhões de dólares investidos na desinformação a desconfiar de um fato muitíssimo sólido a mutação do clima29 A questão é que para enfrentar esse problema a tempo seria preciso confiar desde logo cedo na solidez desse fato de modo a pressionar os políticos a agir antes que fosse tarde demais No momento em que ainda era possível encontrar uma saída de segurança os céticos do clima se colocaram na frente dela para barrar o acesso do público Quando chegar a hora do julgamento é desse crime que eles terão de ser acusados30 As pessoas não se dão conta propriamente de que a questão do negacionismo climático organiza toda a política do tempo presente31 É portanto uma abordagem superficial chamar o problema de uma política da pósverdade como fazem os jornalistas Eles não enfatizam o motivo por que alguns decidiram continuar fazendo política abandonando voluntariamente o vínculo com a verdade que os aterrorizava não sem razão Tampouco discutem o porquê de as pessoas comuns terem resolvido aqui também não sem razão não acreditar em mais nada Depois de todos os sapos que tentaram fazêlas engolir dá para entender que desconfiem de tudo e que não queiram ouvir mais nada A reação da imprensa ao negacionismo prova que a situação infelizmente não é melhor entre aqueles que se vangloriam por se acharem os espíritos racionais que se indignam com a indiferença aos fatos demonstrada pelo Ubu Rei ou que denunciam a estupidez das massas ignorantes Aqueles que o fazem continuam acreditando que os fatos se sustentam sozinhos sem precisar de um mundo compartilhado de instituições e de uma vida pública e que bastaria simplesmente reunir as pessoas comuns numa boa sala de aula como 29 James Hoggan Climate CoverUp The Crusade to Deny Global Warming Vancouver Greystone Books 2009 30 Ver o curto e desconcertante livro de Erik M Conway e Naomi Oreskes The Collapse of Western Civilization A View from the Future Nova York Columbia University Press 2014 31 O que não quer dizer que os comentaristas estejam conscientes disso Em um livromanifesto publicado em doze línguas que reúne o que os intelectuais têm a dizer sobre a grande regressão entendase a surpresa que eles sentem diante do aumento do populismo apenas um capítulo o meu aborda essa questão Heinrich Geiselberger org The Great Regression London Polity 2017 34 Bruno Latour 35 Onde aterrar antes com quadro negro e lições a estudar para que a razão enfim triunfasse Mas esses tipos racionais também estão presos nas armadilhas da desinformação Não entendem que de nada serve se indignar porque as pessoas acreditam em fatos alternativos quando eles próprios vivem de verdade em um mundo alternativo um mundo no qual a mutação climática existe o que não acontece no mundo de seus oponentes A questão portanto não é saber como corrigir as falhas do pensamento mas sim como partilhar a mesma cultura enfrentar os mesmos desafios e vislumbrar um panorama que possamos explorar conjuntamente A primeira atitude demonstra o vício habitual da epistemologia que consiste em atribuir a supostos déficits intelectuais algo que é meramente um déficit de prática comum 7 Se a chave para compreender a situação atual não se encontra na falta de inteligência é preciso procurála na forma dos territórios nos quais essa inteligência se manifesta Ora é justamente aí que reside o problema existem hoje vários territórios incompatíveis uns com os outros Para simplificar suponhamos que até agora cada um dos que aceitavam se curvar ao projeto da modernização podia encontrar seu lugar nele graças a um vetor que grosso modo ia do local em direção ao global Era em direção ao Globo com um G maiúsculo que tudo caminhava aquele Globo que projetava o horizonte ao mesmo tempo científico econômico moral o Globo da globalizaçãomais Tratavase de um marco ao mesmo tempo espacial a cartografia e temporal a flecha do tempo lançada em direção ao futuro Esse Globo que arrebatu gerações por ser sinônimo de riqueza de emancipação de conhecimento e de acesso a uma vida confortável trazia com ele uma certa definição universal do humano A imensidão dos mares finalmente Enfim deixar o lar O universo infinito afinal Raros foram os que não ouviram esse chamado Podemos imaginar o entusiasmo que isso causou entre os que puderam se beneficiar ainda que não nos surpreenda o horror que a globalização suscitou junto àqueles que ela foi destruindo pelo caminho O que era preciso abandonar para se modernizar era o Local Também com maiúscula para não ser confundido com algum habitat primordial específico com alguma terra ancestral algum solo de onde autóctones tenham surgido Não há nada de aborígene nada de nativo nada de primitivo nesse terroir reinventado depois que a modernização extinguiu as antigas pertenças É um Local por contraste Um antiGlobal Uma vez identificados esses dois polos é possível traçar um front de modernização pioneiro Ele se caracterizava pela injunção a modernizar demandandonos estar preparados para todos os sacrifícios deixar nossa província natal abandonar nossas tradições e mudar nossos hábitos caso quiséssemos avançar participar do movimento geral de desenvolvimento e enfim desfrutar do mundo Decerto estávamos divididos entre duas ordens contraditórias avançar rumo ao ideal de progresso ou recuar em direção às certezas antigas mas essa hesitação esse impasse no fim das contas nos vinha a calhar Assim como os parisienses sabem se orientar no curso do Rio Sena acompanhando a sequência dos números pares e ímpares de suas ruas nós sabíamos nos situar no curso da história 1 VISUALIZANDO O CORPO TEORIAS OCIDENTAIS E SUJEITOS AFRICANOS Oyèrónkẹ Oyěwùmí OYĚWÙMÍ Oyèrónkẹ Visualizing the Body Western Theories and African Subjects in COETZEE Peter H ROUX Abraham PJ eds The African Philosophy Reader New York Routledge 2002 p 391415 Tradução para uso didático de wanderson flor do nascimento A ideia de que a biologia é destino ou melhor o destino é a biologia tem sido um marco do pensamento ocidental por séculos1 Seja na questão de quem é quem na pólis2 de Aristóteles ou quem é pobre nos Estados Unidos do final do século XX a noção de que diferença e hierarquia na sociedade são biologicamente determinadas continua a gozar de credibilidade mesmo entre cientistas sociais que pretendem explicar a sociedade humana em outros termos que não os genéticos No Ocidente as explicações biológicas parecem ser especialmente privilegiadas em relação a outras formas de explicar diferenças de gênero raça ou classe A diferença é expressa como degeneração Ao traçar a genealogia da ideia de degeneração no pensamento europeu J Edward Chamberlain e Sander Gilman notaram a maneira como ela era usada para definir certos tipos de diferença no século XIX em particular Inicialmente a degeneração reuniu duas noções de diferença uma científica um desvio de um tipo original e a outra moral um desvio de uma norma de comportamento Mas eram essencialmente a mesma noção de uma degradação um desvio do tipo original3 Consequentemente quem está em posições de poder acha imperativo estabelecer sua biologia como superior como uma maneira de afirmar seu privilégio e domínio sobre 1 Comparar com o uso feito por Thomas Laqueur Destino é anatomia que é o título do capítulo 2 de seu Making Sex Body and Gender from the Greeks to Freud Cambridge Mass Harvard University Press 1990 2 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 p 37 3 J Edward Chamberlain Sander Gilman Degeneration The Darker Side of Progress Nova York Columbia University Press 1985 p 292 2 os Outros Quem é diferente é visto como geneticamente inferior e isso por sua vez é usado para explicar sua posição social desfavorecida A noção de sociedade que emerge dessa concepção é que a sociedade é constituída por corpos e como corpos corpos masculinos corpos femininos corpos judaicos corpos arianos corpos negros corpos brancos corpos ricos corpos pobres Uso a palavra corpo de duas maneiras primeiro como uma metonímia para a biologia e segundo para chamar a atenção para a fisicalidade que parece estar presente na cultura ocidental Refirome tanto ao corpo físico como às metáforas do corpo Ao corpo é dada uma lógica própria Acreditase que ao olhar para ele pode se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas Como Naomi Scheman aponta em sua discussão sobre o corpo político na Europa prémoderna As maneiras pelas quais as pessoas conheciam seus lugares no mundo estavam relacionadas com seus corpos e as histórias desses corpos e quando violavam as prescrições para esses lugares seus corpos eram punidos muitas vezes de forma espetacularizada O lugar de alguém no corpo político era tão natural quanto a localização dos órgãos em um corpo e a desordem política era tão antinatural quanto a mudança e o deslocamento desses órgãos4 De modo semelhante Elizabeth Grosz observa o que ela chama de profundidade do corpo nas sociedades ocidentais modernas Nossas formas corporais ocidentais são consideradas expressões de um interior e não inscrições em uma superfície plana Ao construir uma alma ou psique por si mesma o corpo civilizado forma fluxos libidinais sensações experiências e intensifica as necessidades os desejos O corpo se torna um texto um sistema de signos a serem decifrados lidos e interpretados A lei social é encarnada corporalizada correlativamente os corpos são textualizados lidos por outros como expressão do interior psíquico de um sujeito Um depósito de inscrições e mensagens entre as fronteiras externas e internas do corpo gera ou constrói os movimentos do corpo como comportamento que então tem significados e funções interpessoais e socialmente identificáveis dentro de um sistema social5 4 Naomi Scheman Engenderings Constructions of Knowledge Authority and Privilege Nova York Routledge 1993 p 186 5 Elizabeth Grosz Bodies and Knowledges Feminism and the Crisis of Reason in Linda Alcoff Elizabeth Potter eds Feminist Epistemologies Nova York Routledge 1994 p 198 grifos meus 3 Consequentemente uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada o corpo está sempre em vista e à vista Como tal invoca um olhar um olhar de diferença um olhar de diferenciação o mais historicamente constante é o olhar generificado Há um sentido em que expressões como o corpo social ou o corpo político não são apenas metáforas mas podem ser lidas literalmente Não surpreende portanto que quando o corpo político precisou ser purificado na Alemanha nazista certos tipos de corpos precisaram ser eliminados6 A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão7 A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao ver O olhar é um convite para diferenciar Diferentes abordagens para compreender a realidade então sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades Em relação à sociedade iorubá que é o foco deste livro o corpo aparece com uma presença exacerbada na conceituação ocidental da sociedade O termo cosmovisão que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade capta o privilégio ocidental do visual É eurocêntrico usálo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos O termo cosmopercepção8 é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais Neste estudo portanto cosmovisão só será aplicada para descrever o sentido cultural ocidental e cosmopercepção será usada ao descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou até mesmo uma combinação de sentidos Isso dificilmente representa a visão recebida da história e do pensamento social ocidentais Muito pelo contrário até recentemente a história das sociedades 6 Scheman Engenderings 7 Consultar por exemplo o seguinte para relatos da importância da visão no pensamento ocidental Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova York Harper and Row 1966 Donald Lowe History of Bourgeois Perception Chicago University of Chicago Press 1982 8 Traduzo aqui a expressão worldsense por cosmopercepção por entender que a palavra sense indica tanto os sentidos físicos quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensamento A palavra percepção pode indicar tanto um aspecto cognitivo quanto sensorial E o uso da palavra cosmopercepção também busca seguir uma diferenciação proposta por Oyěwùmí com a palavra worldview que é usualmente traduzida para o português como cosmovisão e não como visão do mundo N da T 4 ocidentais tem sido apresentada como uma documentação do pensamento racional em que as ideias são enquadradas como agentes da história Se os corpos aparecem eles são articulados como o lado degradado da natureza humana O foco preferido tem estado na mente elevada acima das fraquezas da carne No início do discurso ocidental surgiu uma oposição binária entre corpo e mente O tão falado dualismo cartesiano era apenas uma afirmação de uma tradição9 na qual o corpo era visto como uma armadilha da qual qualquer pessoa racional deveria escapar Ironicamente mesmo quando o corpo permaneceu no centro das categorias e discursos sociopolíticos muitas das pessoas que pensaram sobre isso negaram sua existência para certas categorias de pessoas mais notavelmente elas mesmas A ausência do corpo tem sido uma précondição do pensamento racional Mulheres povos primitivos judeus africanos pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de diferente em épocas históricas variadas foram consideradas como corporalizadas dominadas portanto pelo instinto e pelo afeto estando a razão longe delas Elas são o Outro e o Outro é um corpo10 Ao apontar a centralidade do corpo na construção da diferença na cultura ocidental não se nega necessariamente que tenha havido certas tradições no Ocidente que tentaram explicar as diferenças segundo critérios diversos em relação à presença ou ausência de certos órgãos a posse de um pênis o tamanho do cérebro a forma do crânio ou a cor da pele A tradição marxista é especialmente notável a esse respeito na medida em que enfatizava as relações sociais como uma explicação para a desigualdade de classes Contudo a crítica ao androcentrismo marxista por numerosas escritoras feministas sugere que esse paradigma também está implicado na somatocentralidade ocidental11 Da mesma forma o surgimento de disciplinas como a sociologia e a 9 Comparar com a discussão de Nancy ScheperHughes e Margaret Lock em The Mindful Body A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology Medical Anthropology Quarterly ns 1 Março de 1987 p 741 10 O trabalho de Sander Gilman é particularmente elucidativo sobre as concepções de diferença e alteridade Conferir Difference and Pathology Stereotypes of Sexuality Race and Madness Ithaca N Y Cornell University Press 1985 On Blackness without Blacks Essays on the Image of the Black in Germany Boston G K Hall 1982 The Case of Sigmund Freud Medicine and Identity Baltimore John Hopkins University Press 1993 Jewish Self Hatred AntiSemitism and the Hidden Language of the Jews Baltimore John Hopkins University Press 1986 11 Consultar por exemplo Linda Nicholson Feminism and Marx in Feminism as Critique On The Politics of Gender editado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell Minneapolis University of Minnesota 5 antropologia que pretendem explicar a sociedade com base nas interações humanas parece sugerir o ostracismo do determinismo biológico no pensamento social Entretanto em um exame mais detalhado descobrese que dificilmente o corpo fora banido do pensamento social sem mencionar seu papel na constituição do status social Isso pode ser ilustrado na sociologia Em uma monografia sobre o corpo e a sociedade Bryan Turner lamenta o que ele percebe como a ausência do corpo nas investigações sociológicas Ele atribui esse fenômeno dos corpos ausentes12 ao fato de que a sociologia emergiu como uma disciplina que tomou o significado social da interação humana como seu principal objeto de investigação afirmando que o significado das ações sociais nunca pode ser reduzido à biologia ou à fisiologia ibid É possível concordar com Turner sobre a necessidade de separar a sociologia da eugenia e da frenologia No entanto dizer que os corpos estão ausentes das teorias sociológicas é desconsiderar o fato de que os grupos sociais que são objeto da disciplina são essencialmente entendidos como enraizados na biologia São categorias baseadas em percepções da presença da diferença física de vários tipos de corpo Nos EUA contemporâneos enquanto quem exerce a sociologia lida com as chamadas categorias sociais como subclasse suburbanos trabalhadores fazendeiros eleitores cidadãos e criminosos para mencionar algumas categorias que são entendidas historicamente e no ethos cultural como representações de específicos tipos de corpos não há como fugir da biologia Se o reino social é determinado pelos tipos de corpos que o ocupam então até que ponto existe um campo social dado que ele é concebido para ser biologicamente determinado Por exemplo ninguém que ouve a expressão executivos corporativos supõe que sejam mulheres e nas décadas de 1980 e 1990 ninguém associaria espontaneamente os brancos aos termos subclasse ou gangues de fato se alguém construísse uma associação entre os termos seus significados teriam que ser mudados Consequentemente qualquer pessoa que exerça Press 1986 Michele Barret Womens Oppression Today Londres New Left Books 1980 Heidi Hartmann The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism Towards a More Progressive Union in Women and Revolution A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism editado por Lydia Sargent Boston South End Press 1981 12 Bryan Turner Sociology and the Body in The Body and Society Explorations in Social Theory Oxford Blackwell 1984 p 31 6 a sociologia e estude essas categorias não pode escapar de uma subjacente insidiosidade biológica Essa onipresença de explicações biologicamente deterministas nas ciências sociais pode ser demonstrada com a categoria de criminoso ou delinquente na sociedade estadunidense contemporânea Troy Duster em um excelente estudo sobre o ressurgimento do determinismo biológico evidente nos círculos intelectuais desdenha da ânsia de muitas pessoas que realizam pesquisas em associar a criminalidade à herança genética ele prossegue argumentando que outras interpretações da criminalidade são possíveis A interpretação econômica predominante explica as taxas de criminalidade em termos de acesso a emprego e desemprego Uma interpretação cultural tenta mostrar diferentes os ajustes culturais entre a polícia e aqueles apreendidos por crimes Uma interpretação política vê a atividade criminal como interpretação política ou pré revolucionária Uma interpretação do conflito vê isso como um conflito de interesses por recursos escassos13 Nitidamente em face disso todas essas explicações da criminalidade são não biologicistas no entanto enquanto a população ou o grupo social que elas tentam explicar neste caso os criminosos negros eou pobres é vista como representando um agrupamento genético as suposições subjacentes sobre a predisposição genética dessa população ou grupo estruturarão as explicações apresentadas se são baseadas no corpo ou não Isso está ligado ao fato de que em função da história do racismo a questão de pesquisa subjacente mesmo que não seja declarada não é o motivo pelo qual certos indivíduos cometem crimes efetivamente na verdade é por que os negros têm tal propensão A definição do que é atividade criminosa está muito ligada a quem negro branco rico pobre está envolvido na atividade ibid Da mesma forma a polícia como um grupo é assumida como branca Similarmente quando são feitos estudos sobre liderança na sociedade estadunidense quem pesquisa descobre que a maioria das pessoas em cargos de liderança são machos brancos não importa que tipo de interpretação dão para este resultado suas declarações serão lidas como explicações para a predisposição desse grupo para a liderança 13 Troy Duster Backdoor to Eugenics Nova York Routledge 1990 7 Não questiono aqui a integridade de quem pesquisa meu propósito não é rotular qualquer grupo dedicado à pesquisa como intencionalmente racista Pelo contrário desde o movimento pelos direitos civis a pesquisa científicosocial tem sido usada para formular políticas que reduzam ou que procurem acabar com a discriminação contra grupos subordinados O que deve ser ressaltado no entanto é como a produção e disseminação de conhecimento nos Estados Unidos estão inevitavelmente embutidas no que Michael Omi e Howard Winant chamam de senso comum cotidiano da raça uma maneira de compreender explicar e agir no mundo14 A raça é então um princípio organizador fundamental na sociedade estadunidense É institucionalizada e funciona independentemente da ação de atores individuais No Ocidente as identidades sociais são todas interpretadas através do prisma da hereditariedade15 para tomar emprestada a expressão de Duster O determinismo biológico é um filtro através do qual todo o conhecimento sobre a sociedade funciona Como mencionado no prefácio refirome a esse tipo de pensamento como raciocínio corporal16 é uma interpretação biológica do mundo social O ponto novamente é que enquanto atores sociais como gestores criminosos enfermeiros e pobres sejam apresentados como grupos e não como indivíduos e desde que tais agrupamentos sejam concebidos como geneticamente constituídos então não há como escapar do determinismo biológico Neste contexto a questão da diferença de gênero é particularmente interessante no que diz respeito à história e à constituição da diferença na prática e no pensamento social europeus A longa história da corporificação de categorias sociais é sugerida pelo mito fabricado por Sócrates para convencer cidadãos de diferentes 14 Michael Omi e Howard Winant Racial Formation in the United States from the 1960s to the 1980s Nova York Routledge 1986 Comparar também com a discussão sobre a difusão da raça acima de outras variáveis como a classe na análise do motim de Los Angeles de 1992 Segundo Cedric Robinson A mídia de massa e as declarações oficiais subsumiram a genealogia das revoltas de Rodney King nas narrativas antidemocráticas de raça que dominam a cultura estadunidense A inquietação urbana o crime e a pobreza são economias discursivas que exprimem a raça e apagam a classe Race Capitalism and the AntiDemocracy artigo apresentado no Interdisciplinary Humanities Center University of California Santa Barbara Inverno de 1994 15 Duster Backdoor salienta que a noção amplamente difundida de que tanto as doenças como o dinheiro correm dentro das famílias 16 Comparar com o conceito de raciocínio racial de Cornel West em Race Matters Nova York Vantage 1993 8 classes a aceitarem qualquer status que lhes fosse imposto Sócrates explicou o mito a Gláucon nos seguintes termos Cidadãos diremos a eles em nossa história vocês são irmãos mas Deus os moldou de maneira diferente Alguns de vocês têm o poder de comando e na composição destes misturaram ouro portanto também têm a maior honra outros ele fez de prata para ser auxiliares outros novamente que devem ser lavradores e artesãos Ele compôs de bronze e ferro e as espécies geralmente serão preservadas nas crianças Um Oráculo diz que quando um homem de bronze ou ferro proteger o Estado ele será destruído Tal é a história existe alguma possibilidade de fazer nossos cidadãos acreditarem nela17 Gláucon responde Não na geração atual não há como realizar isso mas seus filhos podem ser levados a acreditar na história e os filhos de seus filhos e a posteridade depois deles18 Gláucon estava enganado sobre a aceitação do mito só poder ser alcançada na geração seguinte o mito daqueles nascidos para governar já estava em operação mães irmãs e filhas mulheres já foram excluídas da consideração em qualquer desses grupamentos Em um contexto em que as pessoas eram classificadas de acordo com a associação com certos metais as mulheres eram por assim dizer feitas de madeira e portanto nem sequer eram consideradas Stephen Gould um historiador da ciência chama de profecia à observação de Gláucon uma vez que a história mostra que a narrativa de Sócrates foi promulgada e aceita pelas gerações subsequentes ibid A questão no entanto é que mesmo nos tempos de Gláucon era mais do que uma profecia já era uma prática social excluir mulheres das classes de governantes Paradoxalmente no pensamento europeu apesar do fato de que a sociedade era vista como habitada por corpos apenas as mulheres eram percebidas como corporificadas os homens não tinham corpos eram mentes caminhantes Duas categorias sociais que emanaram dessa construção foram o homem da razão o pensador e a mulher do corpo e elas foram construídas de maneira oposicional A ideia de que o homem de razão frequentemente tinha a mulher do corpo em sua mente nitidamente não era bem recebida Como sugere a História da Sexualidade de 17 Platão A República III 415 ac N da T 18 Platão A República III 415 d Citado em Stephen Gould The Mismeasure of Man Nova York Norton 1981 p 19 9 Michel Foucault no entanto o homem de ideias frequentemente tinha a mulher e outros corpos em sua mente19 Nos últimos tempos graças em parte à pesquisa feminista o corpo está começando a receber a atenção que merece como local e como material para a explicação da história e do pensamento europeus20 A contribuição característica do discurso feminista para nossa compreensão das sociedades ocidentais é que ele explicita a natureza generificada e portanto corporificada e androcêntrica de todas as instituições e discursos ocidentais As lentes feministas desnudam o homem de ideias para todos verem Mesmo os discursos como os da ciência considerados objetivos foram mostrados como masculinamente tendenciosos21 A extensão em que o corpo está implicado na construção de categorias e epistemologias sociopolíticas não pode ser exagerada Como observado anteriormente Dorothy Smith escreveu que nas sociedades ocidentais o corpo de um homem confere credibilidade a seus enunciados enquanto o corpo de uma mulher o afasta dos dela22 Escrevendo sobre a construção da masculinidade R W Connell observa que o corpo é inescapável nessa construção e que uma fisicalidade gritante fundamenta as categorias 19 Uma antologia recente questiona a auto representação dominante dos judeus como o Povo do Livro e no processo tenta documentar uma imagem relativamente menos comum dos judeus como o Povo do Corpo O editor do volume faz um comentário interessante sobre O pensador judeu e seu livro Ele comenta que o livro do pensador evoca a sabedoria e a busca pelo conhecimento Dessa forma a imagem do judeu que é sempre masculino debruçada sobre um livro é sempre enganosa Ele parece estar elevado na busca espiritual Mas se pudéssemos espiar por cima dos ombros e ver o que seu texto diz ele poderia de fato estar lendo sobre assuntos tão eróticos como que posição adotar durante a relação sexual O que está acontecendo na cabeça do pensador ou mais interessantemente em seu lombo Howard ElbergSchwartz Povo do Corpo introdução a People of the Body Jews and Judaism from an Embodied Perspective Albany State University of New York Press 1992 A natureza somatocêntrica dos discursos europeus sugere que a expressão Povo do Corpo pode ter um alcance mais amplo 20 A atenção ao corpo também não foi um mar de rosas no feminismo Consultar Elizabeth Grosz Volatile Bodies Toward a Corporeal Feminism Bloomington Indiana University Press 1994 21 Virginia Woolf resumiu sucintamente a posição feminista A ciência parece não ser assexuada ela é um homem também um pai infectado citado em Hillary Rose Hand Brain and Heart A Feminist Epistemology for the Natural Sciences Signs 9 n1 1983 7390 Consultar também Sandra Harding The Science Question in Feminism Ithaca NY Cornell University Press 1986 Sandra Harding ed The Racial Economy of Science Bloomington Indiana University Press 1993 Donna J Haraway Primate Visions Gender Race and Nature in the World of Modern Science Nova York Routledge 1989 e Margaret Wertheim Pythagoras Trousers God Physics and the Gender Wars Nova York Random House 1995 22 Dorothy E Smith The Everyday World as Problematic A Feminist Sociology Boston Northeastern University Press 1987 p 30 10 de gênero na cosmovisão ocidental Em nossa cultura ocidental pelo menos a sensação física de masculinidade e feminilidade é central para a interpretação cultural do gênero O gênero masculino é entre outras coisas uma certa sensação na pele certas formas e tensões musculares certas posturas e modos de se movimentar certas possibilidades no sexo23 Desde as pessoas da antiguidade até as da modernidade o gênero tem sido uma categoria fundamental sobre a qual as categorias sociais foram erguidas Assim o gênero foi ontologicamente conceituado A categoria cidadão que tem sido a pedra angular de grande parte da teoria política ocidental era masculina apesar das muito aclamadas tradições democráticas ocidentais24 Elucidando a categorização dos sexos feita por Aristóteles Elizabeth Spelman escreve Uma mulher é uma fêmea que é livre um homem é um macho que é um cidadão25 As mulheres foram excluídas da categoria de cidadãos porque a posse do pênis Ibid era uma das qualificações para a cidadania Lorna Schiebinger observa em um estudo sobre as origens da ciência moderna e a exclusão das mulheres das instituições científicas europeias que as diferenças entre os dois sexos eram reflexos de um conjunto de princípios dualistas que penetravam o cosmos e os corpos de homens e mulheres26 Diferenças e hierarquias portanto estão consagradas nos corpos e os corpos consagram as diferenças e a hierarquia Assim dualismos como naturezacultura públicoprivado e visívelinvisível são variações sobre o tema dos corpos masculinosfemininos hierarquicamente ordenados diferencialmente colocados em relação ao poder e espacialmente distanciados um do outro27 No transcurso da história ocidental as justificativas para a elaboração das categorias homem e mulher não permaneceram as mesmas Pelo contrário elas 23 R W Connell Masculinities Londres Polity Press 1995 p 53 24 Susan Okin Women in Western Political Thought Princeton NJ Princeton University Press 1979 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 25 Citado em Laqueur Making Sex p 54 26 Lorna Schiebinger The Mind Has No Sex Women in the Origins of Modern Science Cambridge Mass Harvard University Press 1989 p 162 27 Para a descrição de alguns desses dualismos consultar Hélène Cixous em New French Feminisms An Anthology editado por Elaine Marks e Isabelle de Courtivron Amherst Mass University of Massachusetts Press 1980 11 foram dinâmicas Embora as fronteiras estejam se deslocando e o conteúdo de cada categoria possa mudar as duas categorias permaneceram hierárquicas e em oposição binária Para Stephen Gould a justificativa para classificar os grupos pelo valor inato variou com os fluxos da história ocidental Platão fiouse na dialética a igreja sobre o dogma Nos últimos dois séculos as alegações científicas tornaramse o principal agente de validação do mito de Platão28 A constante nessa narrativa ocidental é a centralidade do corpo dois corpos à mostra dois sexos duas categorias persistentemente vistas uma em relação à outra Essa narrativa trata da elaboração inabalável do corpo como o local e causa de diferenças e hierarquias na sociedade No Ocidente desde que a questão seja a diferença e a hierarquia social o corpo é constantemente colocado posicionado exposto e reexposto como sua causa A sociedade então é vista como um reflexo preciso do legado genético aqueles com uma biologia superior são inevitavelmente aqueles em posições sociais superiores Nenhuma diferença é elaborada sem corpos posicionados hierarquicamente Em seu livro Making Sex Thomas Laqueur traz uma história ricamente contextualizada da construção do sexo desde a Grécia clássica até o período contemporâneo observando as mudanças nos símbolos e as transformações nos significados O ponto no entanto é a centralidade e a persistência do corpo na construção de categorias sociais Em vista dessa história a afirmação de Freud de que a anatomia é destino não foi original ou excepcional ela foi apenas mais explícita que as de muitos de seus predecessores A ordem social e a biologia naturais ou construídas A ideia de que o gênero é socialmente construído de que as diferenças entre machos e fêmeas devem estar localizadas em práticas sociais e não em fatos biológicos foi uma compreensão importante que emergiu no início da pesquisa feminista da segunda onda Essa descoberta foi compreensivelmente considerada radical em uma cultura em que a diferença particularmente a diferença de gênero foi sempre articulada como natural e portanto biologicamente determinada O gênero como construção social tornouse o pilar de muitos discursos feministas A noção foi 28 Gould Mismeasure of Man p 20 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA MODALIDADE EAD Disciplina FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EAD08035 Coordenadorao LILIAN DO VALLE AVALIAÇÃO A DISTÂNCIA 2 20242 1 Faça um breve resumo do Texto 3 assinalando as ideias centrais MÍNIMO DE 10 LINHAS 20 PONTOS 2 A partir da sua experiência no espaço escolar seja como alune ou trabalhando na educação apresente um caso que ilustre a ideia central identificada no Texto 3 É fundamental para a resposta relacionar o caso apresentado com o texto em questão 30 PONTOS 3 Apresente aqui em tópicos quais são os assuntos discutidos no Texto 4 20 PONTOS 4 A partir da sua resposta na Questão 3 escolha um dos tópicos que você achou mais importante e apresente uma análise sobre como essa discussão pode contribuir para a sua formação no curso de Pedagogia e para a sua visão e questionamentos sobre a sua realidade e a do nosso país Apresente ao final um exemplo para ilustrar sua resposta 30 PONTOS Mas atenção A avaliação examinará o desenvolvimento e aprofundamento do texto aqui cobrado bem como a apresentação e explicações das ideias centrais assinaladas na resposta Respostas curtas sem justificativas não serão bem avaliadas As respostas não deverão ser enviadas por anexo mas sim através do espaço disponível na atividade Leia o aviso sobre cópias e plágio disponível na nossa página inicial atentandose ao uso correto de citações na elaboração da resposta caso ache necessário citar o texto ou fontes externas 1 Faça um breve resumo do Texto 3 assinalando as ideias centrais O texto de Oyèrónkép Oyëwùmí intitulado Visualizando o Corpo Teorias Ocidentais e Sujeitos Africanos aborda criticamente a forma como o corpo é entendido e usado como uma base para diferenças e hierarquias sociais no pensamento ocidental Oyëwùmí explora como na tradição ocidental o corpo é visto tanto como um símbolo físico quanto como uma metáfora social onde características físicas como gênero e raça são interpretadas como indicadores de posição social e valor A autora analisa a noção de degeneração na Europa do século XIX destacando como certos grupos por serem vistos como biologicamente inferiores eram socialmente marginalizados Ela também aponta a centralidade da visão como o principal sentido no Ocidente o que contribui para a distinção de corpos por características visíveis como cor de pele e estrutura física Além disso Oyëwùmí critica o dualismo ocidental entre corpo e mente que historicamente situou homens como seres racionais e mulheres como seres corporificados destacando a marginalização das mulheres e outros grupos sob essa lógica Ela sugere que o conceito de cosmopercepção poderia melhor representar culturas que valorizam uma variedade de sentidos na construção da realidade como a cultura iorubá Por fim o texto questiona o determinismo biológico e ressalta a importância da visão feminista na desconstrução das categorias de gênero demonstrando que essas são socialmente construídas e não biologicamente definidas Oyëwùmí nos convida a refletir sobre o papel do corpo na construção de identidades e a considerar abordagens não ocidentais para o entendimento da sociedade 2 A partir da sua experiência no espaço escolar seja como alune ou trabalhando na educação apresente um caso que ilustre a ideia central identificada no Texto 3 É fundamental para a resposta relacionar o caso apresentado com o texto em questão Um caso que ilustra a ideia central do texto de Oyèrónkép Oyëwùmí aconteceu durante minha experiência como estudante em uma escola pública Lembrome de uma colega que por ser uma jovem indígena enfrentava uma série de estereótipos e preconceitos por parte de alunos e até mesmo de alguns professores Sua aparência com características físicas que claramente refletiam sua origem indígena era frequentemente alvo de comentários que subestimavam suas capacidades intelectuais e seu potencial acadêmico Essa situação reflete o conceito discutido por Oyěwùmí sobre como no Ocidente o corpo é frequentemente usado como um ponto de diferenciação social e de exclusão A ideia de que certas características físicas correspondem a uma predisposição para certos papéis sociais ou para limitações intelectuais é uma prática que está embutida nas atitudes e suposições culturais Na escola essa colega era constantemente vista como uma pessoa menos capaz sendo estigmatizada por traços que segundo a lógica discriminatória a distinguia dos demais colegas não só por questões físicas mas pelo que o corpo dela simbolizava no imaginário social Por exemplo quando ela tinha bons resultados em disciplinas como matemática e ciências alguns colegas reagiam com surpresa e até certo desdém como se sua aparência fosse incompatível com o sucesso nessas áreas Esse comportamento revela um pensamento enraizado que liga a inteligência e o desempenho acadêmico a estereótipos raciais e físicos algo que Oyěwùmí explora ao abordar o conceito de raciocínio corporal Além disso alguns professores tinham baixas expectativas em relação ao seu desempenho acadêmico Embora nunca dissessem isso explicitamente suas ações revelavam um preconceito sutil a jovem era raramente encorajada a participar de competições acadêmicas ou a se destacar em projetos escolares Isso exemplifica a maneira como o sistema educacional assim como outras estruturas sociais ocidentais mencionadas por Oyěwùmí tende a subestimar ou ignorar as capacidades dos alunos cujas aparências se afastam do que é considerado o padrão Para abordar essa situação a escola eventualmente promoveu atividades de conscientização sobre as culturas indígenas e o respeito à diversidade Esse processo foi um passo importante para ajudar os estudantes a entenderem que aparência e etnia não determinam habilidades ou potencial e que o ambiente escolar deve valorizar todos os indivíduos de maneira justa e igualitária Esse caso exemplifica a necessidade de que o sistema educacional desafie e reveja constantemente esses preconceitos visuais e corporificados para que a sociedade possa avançar em direção a uma visão menos biologicamente determinista e mais inclusiva como sugerido no texto de Oyěwùmí 3 Apresente aqui em tópicos quais são os assuntos discutidos no Texto 4 O autor aborda temas centrais ligados ao Antropoceno e à crise ecológica propondo uma reflexão profunda sobre como a humanidade deve se reposicionar politicamente diante das mudanças climáticas e das transformações globais como I A Crise Climática e a Negação Científica Latour argumenta que para muitas elites a negação das mudanças climáticas serve como uma estratégia deliberada para manter seu status e confundir as classes populares sobre a gravidade dos problemas ambientais A ideia é que ao negar a ciência essas elites podem continuar usufruindo de recursos finitos enquanto criam comunidades muradas para si um conceito que se reflete na criação de bolhas de segurança que isolam essas elites do restante da sociedade II Mudança de Paradigma Do Global ao Terrestre O autor propõe a transição do pensamento global para o terrestre Ele sugere que a ciência e a política se distanciaram da realidade terrestre focando no global e deixando de lado os saberes locais e a conexão com a Terra Latour questiona a visão de Sirius uma perspectiva exógena e distanciada da realidade que ele considera insuficiente para lidar com as crises ambientais Ele propõe uma reorientação para o atrator terrestre onde as ciências e políticas sejam mais integradas e conectadas com as necessidades do planeta III O Acordo de Paris e a Nova Percepção de Limites Latour descreve o impacto psicológico do Acordo de Paris de 2015 sobre os signatários que perceberam que a continuação de seus planos de desenvolvimento como previsto exigiria recursos de múltiplos planetas Isso levou à constatação de que é necessário repensar os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade pois o planeta não comporta o atual modelo globalizado de consumo e expansão IV A Crise Migratória e a Perda de Terra A obra trata da crise migratória como uma manifestação visível da crise do Antropoceno na qual milhões de pessoas estão em busca de territórios habitáveis devido a guerras desastres naturais e o colapso ambiental Latour argumenta que todos somos de certa forma migrantes no novo contexto planetário à medida que enfrentamos a falta de solo um lugar seguro e estável para viver Esse fenômeno atinge tanto os migrantes externos quanto os migrantes internos aqueles que mesmo permanecendo no mesmo lugar veem sua segurança e seus modos de vida ameaçados V Reconfiguração Política para o Antropoceno Latour defende que a questão principal que nos divide hoje não é mais a oposição entre esquerda e direita mas sim entre aqueles que aceitam a realidade das mudanças climáticas e buscam uma forma de aterrar ou seja de encontrar um novo solo comum e sustentável e aqueles que preferem continuar ignorando esses problemas Ele enfatiza a necessidade de um novo modelo de ação política baseado em um entendimento coletivo da Terra como um espaço comum e interdependente onde todas as partes humanas e nãohumanas compartilham um destino coletivo 4 A partir da sua resposta na Questão 3 escolha um dos tópicos que você achou mais importante e apresente uma análise sobre como essa discussão pode contribuir para a sua formação no curso de Pedagogia e para a sua visão e questionamentos sobre a sua realidade e a do nosso país Apresente ao final um exemplo para ilustrar sua resposta Entre os tópicos discutidos por Bruno Latour o que mais ressoa para a minha formação no curso de Pedagogia é a ideia de Reconfiguração Política para o Antropoceno Essa perspectiva questiona profundamente como entendemos a educação em tempos de crise ambiental e mudança climática Latour sugere que o verdadeiro divisor de águas atualmente não é entre esquerda e direita mas sim entre aqueles que aceitam a realidade ambiental e aqueles que preferem ignorála No contexto da educação isso traz à tona a necessidade de um ensino mais conectado com a realidade ecológica e com a formação de cidadãos que compreendam seu papel e responsabilidade no mundo Ao adotar essa reconfiguração a formação pedagógica pode explorar um currículo que vá além dos conceitos tradicionais incluindo discussões sobre sustentabilidade ética ambiental e a importância de uma cidadania global responsável Esse tipo de abordagem é fundamental no Brasil onde os efeitos das mudanças climáticas já afetam inúmeras comunidades principalmente as mais vulneráveis O educador pode ser um agente de conscientização preparando os alunos para enfrentar esses desafios e tomar decisões que considerem o impacto ecológico de suas ações Latour também nos faz questionar como a educação deve se alinhar a essa nova realidade No Brasil onde os recursos naturais e a biodiversidade são fundamentais é imprescindível que o ensino se aproxime das questões ambientais e do cuidado com a casa comum Como futuro pedagogo esse tópico me incentiva a refletir sobre práticas pedagógicas que promovam uma visão mais holística e crítica capaz de despertar nos alunos uma compreensão profunda sobre a interdependência entre sociedade e natureza Exemplo Em um projeto escolar por exemplo os alunos poderiam desenvolver atividades de educação ambiental no próprio bairro identificando problemas como poluição falta de áreas verdes e descarte inadequado de lixo A partir dessas observações poderiam elaborar e propor ações sustentáveis como a criação de hortas comunitárias ou campanhas de conscientização para reciclagem Essas atividades concretas incentivam o engajamento dos alunos em questões locais enquanto promovem uma educação voltada para o aterrar que Latour propõe enraizandoos na realidade de sua comunidade e em seu papel de agentes transformadores
3
Filosofia
UERJ
4
Filosofia
UERJ
1
Filosofia
UERJ
1
Filosofia
UERJ
5
Filosofia
UMG
41
Filosofia
UNIMONTES
5
Filosofia
UNOPAR
16
Filosofia
CEDERJ
62
Filosofia
UMG
1
Filosofia
UMG
Texto de pré-visualização
Onde aterrara Como se orientar politicamente no Antropoceno TRADUÇÃO Marcela Vieira POSFÁCIO E REVISÃO TÉCNICA Alyne Costa Bruno Latour BAZAR DO TEMPO 1 Este ensaio tem por objetivo aproveitar a ocasião da eleição de Donald Trump em 8 de novembro de 2016 para aproximar três fenômenos que os comentaristas políticos já identificaram ainda que nem sempre notem a relação entre os três deixando por isso de perceber a imensa energia política que poderia ser extraída dessa aproximação No início dos anos 1990 logo após a vitória contra o comunismo simbolizada pela queda do muro de Berlim no exato momento em que alguns pensaram que a história havia concluído seu curso2 uma outra história se iniciava subrepticiamente Ela se caracteriza antes de mais nada por aquilo que chamamos de desregulamentação e que confere um sentido cada vez mais pejorativo à palavra globalização Mas ela marca também o início de forma simultânea em todo o mundo de uma violenta explosão das desigualdades Por fim e isso não é destacado com frequência é nessa época que se inicia a sistemática operação para a negação da existência da mutação3 climática Clima aqui é tomado no sentido ge 2 Francis Fukuyama The End of History and the Last Man Nova York Free Press 1992 3 No primeiro capítulo do livro Face à Gaia Diante de Gaia Bruno Latour justifica sua preferência pela expressão mutação climática argumentando que tratar a situação actual como uma crise como na expressão crise ecológica seria uma tentativa de nos convencermos de que o problema vai passar de que a crise em breve será coisa do passado Quem dera fosse apenas uma crise Segundo os especialistas 9 Onde aterrara ral das relações dos humanos com suas condições materiais de existência Este ensaio propõe abordar esses três fenômenos como sintomas de uma mesma situação histórica tudo ocorre como se uma parte importante das classes dirigentes que hoje de modo um tanto vago chamamos de elites tivesse chegado à conclusão de que não há mais lugar suficiente na terra4 para elas e para o resto de seus habitantes Em consequência decidiram que era inútil fingir que a história continuaria conduzindo a um horizonte comum em que todos os homens poderiam prosperar igualmente Desde os anos 1980 as classes dirigentes não pretendem mais liderar mas se refugiar fora do mundo Dessa fuga da qual Donald Trump é apenas um símbolo entre outros somos nós que sofremos todas a consequências A ausência de um mundo common a compartilhar está nos enlouquecendo A hipótese é que não entenderemos nada dos posicionamentos políticos dos últimos cinquenta anos se não reservamos um lugar central à questão do clima e à sua denegação Sem a consciência de que entramos em um Novo Regime Climatica5 não podemos compreender nem a explosão das desigualdades nem a amplitude das desregulamentações nem a crítica da globalização e nem sobretudo o desejo desesperado de regressar às velhas proteções do Estado nacional o que se costuma chamar um tanto erroneamente de ascensão do populismo Para resistir a essa perda de orientação comum será preciso aterrara6 em algum lugar Daí a importância de saber como se orientar e para isso traçar uma espécie de mapa das posições ditadas por essa nova paisagem na qual são redefinidos não apenas os afetos da vida pública mas também as suas bases As reflexões que se seguem escritas em estilo propositalmente brusco buscam explorar a possibilidade de canalizar certas emoções políticas na direção de novos objetos O autor não sendo nenhuma autoridade em ciências políticas só pode oferecer aos leitores a oportunidade de refutar essa hipótese e procurar outras melhores 2 Temos que agradecer aos apoiadores de Donald Trump por nos terem ajudado a esclarecer essas questões quando o pressionaram a anunciar em 1o de junho de 2017 que os Estados Unidos sairiam do acordo de Paris sobre o clima Trump conseguiu fazer o que nem a militância de milhões de ecologistas nem os alertas de milhões de cientistas nem a 6 Optouse por traduzir o original Atterrir pousar aterrissar por aterrar reforçando a própria presença da Terra no vocábulo lembrando ainda no sentido da aterrissagem a escolha de Tom Jobim por aterrar em seu clássico Samba do avião Desse modo quando a referência for o verbo usaremos aterrar mas quando se tratar do substantivo empregaremos aterrissagem por ser de uso mais corrente que a opção aterragem NE10 Bruno Latour 11 Onde aterrara Até pouco tempo atrás a questão da aterrissagem não se colocava aos povos que haviam decidido modernizar o planeta Ela só se impunha e de modo muito doloroso àqueles que quatro séculos atrás sofreram o impacto das grandes descobertas dos impérios da modernização do desenvolvimento e finalmente da globalização Eles sim sabem perfeitamente o que quer dizer estar privado de sua terra Mais que isso eles sabem muito bem o que significa ser expulso de sua terra Com o tempo não tiveram outra escolha a não ser se tornarem especialistas na tarefa de sobreviver à conquista à exterminação ao roubo de seu solo A grande novidade para os povos modernizadores de outrora é que a questão de aterrarr agora se dirige a eles tanto quanto aos outros Talvez de modo menos sangrento menos brutal menos nítido mas também para eles se trata de um ataque extremamente violento para retirar o território daqueles que até então possuíam um solo ainda que não raro tal solo tenha sido tomado de outros povos por meio de guerras de conquista Temos aí um sentido imprevisto para o termo póscolonial como se houvesse uma semelhança familiar entre dois sentimentos de perda Vocês perderam seu território Nós o tomamos de vocês Pois saibam que agora nós é que estamos em vias de perder o nosso E então estranhamente no lugar de um senso de fraternidade que soaria indecente surge uma espécie de novo vínculo que desloca o conflito clássico Como vocês fizeram para resistir e sobreviver Também seria legal aprender isso com vocês A resposta imediata a essas perguntas irônica é dita em voz baixa Welcome to the club Em outras palavras a impressão de vertigem quase de pânico que atravessa toda a política contemporânea devese ao fato de que o solo desaba sob os pés de todo mundo ao mesmo tempo como se nos sentíssemos atacados por todos os lados em nossos hábitos e bens Você já reparou que não são as mesmas emoções despertadas quando se é instado a defender a natureza você boceja de tédio ou a defender seu território você imediatamente se sente mobilizado Se a natureza se transformou em território não faz mais sentido falar em crise ecológica em problemas de meio ambiente em questão de biosfera a ser recuperada salva protegida O desafio é muito mais vital mais existencial e também uma única e mesma metamorfose a própria noção de solo está mudando O solo tão sonhado da globalização está desaparecendo É essa a novidade daquilo que um tanto timidamente chamamos de crise migratória Se a angústia é tão profunda é porque cada um de nós começa a sentir o solo ruindo sob os pés Descobrimos mais ou menos confusamente que estamos todos migrando rumo a territórios a serem redescobertos e reocupados E isso devido a um quarto acontecimento histórico o mais importante e o menos falado de todos o dia 12 de dezembro de 2015 em Paris no momento em que o acordo sobre o clima foi firmado ao fim da conferência conhecida como COP21 O que interessa para dimensionar o verdadeiro impacto deste episódio não é aquilo que os representantes dos países decidiram tampouco que esse acordo seja ou não aplicado os negacionistas farão de tudo para eviscerálo O importante é que nesse dia todos os países signatários ao mesmo tempo em que aplaudiam o sucesso do improvável acordo davamse conta horrorizados de que se todos avançassem conforme as previsões de seus respectivos planos de modernização não existiria planeta compatível com suas expectativas de desenvolvimento Iriam precisar de vários planetas e eles só têm um Ora se não há planeta terra solo território onde alojar o Globo da globalização em direção ao qual todos os países se dirigiam então ninguém mais possui como se costuma dizer uma terra para chamar de sua Cada um de nós se encontra então diante da seguinte questão Devemos continuar alimentando grandes sonhos de evasão ou começamos a buscar um território que seja habitável para nós e nossos filhos Ou bem negamos a existência do problema ou então tentamos aterrar A partir de agora é isso que nos divide muito mais do que saber se somos de direita ou de esquerda E isso vale tanto para os antigos habitantes dos países ricos quanto para seus futuros habitantes Os primeiros porque sabem que não existe planeta compatível com a globalização e que precisarão mudar radicalmente seus modos de vida os segundos porque tiveram que deixar seu antigo solo devastado e aprender eles também a mudar por completo seus modos de vida Em outras palavras a crise migratória se generalizou Aos migrantes vindos de fora que cruzam as fronteiras correndo o risco de enormes tragédias para deixar seus países juntamse a partir de agora os migrantes de dentro que ainda que permaneçam no mesmo lugar vivem o drama de se verem abandonados por seus países O que torna a crise migratória tão difícil de entender é que ela é o sintoma em maior ou menor grau de aflição de uma provação comum a todos a de se descobrir privados de terra Pois é essa provação que explica a relativa indiferença diante da urgência da situação e também o fato de sermos todos climatoquietistas já que esperamos que tudo acabe se resolvendo no final sem nada fazermos para isso É impossível não nos preocuparmos com os efeitos que têm sobre nosso estado mental as notícias que ouvimos todos os dias acerca do estado do planeta Como não nos sentirmos internamente devastados pela ansiedade de não sabermos responder a isso É essa inquietude ao mesmo tempo pessoal e coletiva que mostra a importância da eleição de Trump episódio que em outras circunstâncias só seria concebível no roteiro de uma série de televisão bastante medíocre Os Estados Unidos tinham duas opções ao perceber a dimensão da mutação e a imensidão de sua responsabilidade poderiam enfim tornarse realistas e conduzir o mundo livre para fora do abismo ou poderiam mergulhar na negação Aqueles que se escondem atrás de Trump decidiram iludir a América por mais alguns anos e retardar sua aterrissagem empurrando os outros países para o abismo talvez definitivamente até então possuíam um solo ainda que não raro tal solo tenha sido tomado de outros povos por meio de guerras de conquista Temos aí um sentido imprevisto para o termo póscolonial como se houvesse uma semelhança familiar entre dois sentimentos de perda Vocês perderam seu território Nós o tomamos de vocês Pois saibam que agora nós é que estamos em vias de perder o nosso E então estranhamente no lugar de um senso de fraternidade que soaria indecente surge uma espécie de novo vínculo que desloca o conflito clássico Como vocês fizeram para resistir e sobreviver Também seria legal aprender isso com vocês A expressão aprender a viver nas ruínas vem do importantíssimo livro de Anna Lowenhaupt Tsing The Mushroom at the End of the World On the Possibility of Life in Capitalist Ruins Princeton Princeton University Press 2015 Esse argumento foi retomado e desenvolvido com base em outros exemplos em Anna Lowenhaupt Tsing Nils Bubandt Elaine Ganet Heather Anne Swanson dir Arts of Living on a Damaged Planet Ghosts and Monsters of the Anthropocene Minneapolis University of Minnesota Press 2017 sem mais garantia alguma deslocandonos permanentemente perdendo toda identidade todo conforto Quem consegue viver assim Ninguém é verdade Nem um pássaro nem uma célula nem um imigrante nem um capitalista Mesmo Diógenes tem direito a um barril um nômade à sua barraca um refugiado a seu asilo Nem por um segundo acredite naqueles que defendem a exploração da imensidão dos mares 16 assumindo riscos abandonando todas as proteções e que seguem apontando para o horizonte infinito da modernização para todos Esses bons samaritanos só correrão riscos se o seu próprio conforto estiver garantido Em vez de ouvir o que falam da boca para fora perceba o que eles trazem nas costas você verá reluzir o paraquedas dourado cuidadosamente dobrado que os protege contra todos os perigos da existência O direito mais elementar é o de sentirse seguro e protegido sobretudo num momento em que as antigas proteções estão desaparecendo És esse o sentido da história que deve ser descoberto de que modo reconstituir as bordas os invólucros as proteções como encontrar uma base sólida considerando ao mesmo tempo o fim da globalização a amplitude das migrações e os limites impostos à soberania dos Estados a partir de agora confrontados com as mudanças climáticas 16 A expressão le grand large significa mar aberto Possivelmente Latour a utiliza tendo como referência a tradução para o francês da peça Vida de Galileu de Bertold Brecht na qual o protagonista compara a descoberta do universo infinito que sua ciência inaugurara com a exploração dos mares permitida pelas grandes navegações Cf La vie de Galilée trad Éloi Recoing Paris LArche éditeur 1990 Para dar mais centralidade ao aspecto da amplitude que a expressão carrega optamos por traduzila por imensidão dos mares NRT 20 Bruno Latour muito mais compreensível pois muito mais direto Quando o tapete é tirado debaixo dos seus pés você entende num segundo que terá de se preocupar com o assoalho O que está sendo tirado de nós diz respeito a nossos vínculos nosso modo de vida é uma questão de solo da propriedade que desaba sob nossos passos e essa preocupação atinge todos da mesma forma tanto os antigos colonizadores quanto os antigos colonizados Na verdade não ela apavora muito mais os antigos colonizadores menos habituados a essa situação que os antigos colonizados A única certeza é que todos estão diante de uma carência universal de espaço a compartilhar e de terra habitável Mas de onde vem tanto pânico Do mesmo profundo sentimento de injustiça experimentado por aqueles que se viram privados de suas terras à época das conquistas depois durante a colonização e por fim durante a era do desenvolvimento uma força vinda de fora o despoja de seu território e você não pode detêla Se é isto a globalização então compreendemos retrospectivamente por que resistir sempre foi a única solução por que os colonizados sempre tiveram razão em se defender Esse é o novo modo de perceber a condição humana universal uma universalidade completamente perversa a wicked universality é verdade mas a única da qual dispomos uma vez que a precedente a da globalização parece desaparecer do horizonte A nova universalidade consiste em sentir que o solo está em vias de ceder Isto já não deveria bastar para entrarmos num acordo e prevenirmos as futuras guerras pela apropriação do espaço Provavelmente não mas nossa única saída está em descobrirmos juntos qual território é habitável e com quem podemos compartilhálo A alternativa seria fingirmos que nada está acontecendo e protegendonos atrás de uma muralha prolongarmos o sonho do American way of life do qual sabemos que muito em breve nove ou dez bilhões de humanos não poderão mais usufruir Migrações explosão de desigualdades e Novo Regime Climático tratase da mesma ameaça E por mais que a maior parte de nossos concidadãos subestime ou mesmo negue o que está acontecendo com a terra eles compreendem perfeitamente que a questão dos imigrantes ameaça seus sonhos de uma identidade garantida Até o momento tendo sido bem mobilizados e orientados pelos partidos ditos populistas eles compreenderam a mutação ecológica em apenas uma de suas dimensões ela obriga pessoas que não são consideradas bemvindas a cruzarem as fronteiras e por isso a resposta Ergamos fronteiras intransponíveis e impeçamos a invasão Mas é a outra dimensão dessa mesma mutação que eles ainda não compreenderam muito bem o Novo Regime Climático vem há tempos varrendo todas as fronteiras e nos expondo aos quatro ventos sem que haja meio de construirmos muros contra os invasores Se queremos defender o território a que pertencemos precisamos identificar também essas migrações sem forma e sem nação que chamamos de clima erosão poluição esgotamento de recursos destruição dos habitats Mesmo bloqueando as fronteiras aos refugiados humanos nunca será possível impedir a passagem desses outros Então quer dizer que mais ninguém está em sua própria casa Exatamente Nem a soberania dos Estados nem o bloqueio das fronteiras podem mais se fazer passar por política Mas se tudo está aberto precisaremos então viver do lado de fora sem nenhuma proteção à mercê de todos os ventos misturados a toda a gente brigando por qualquer motivo 18 Bruno Latour 19 Onde aterrar Donna Haraway17 também há a palavra mundo seria realmente uma pena se privar delas Há cinquenta anos o que chamamos de globalização corresponde de fato a dois fenômenos opostos que são sistematicamente confundidos Passar de um ponto de vista local a um ponto de vista global ou mundial deveria significar uma multiplicação dos pontos de vista o registro de um número maior de variedades a consideração de um maior número de seres de culturas de fenômenos de organismos e de pessoas No entanto hoje parece que globalizar significa exatamente o contrário de tal multiplicação O termo designa a ideia de que uma única visão completamente provinciana proposta por apenas algumas pessoas representando um número ínfimo de interesses limitada a alguns instrumentos de medida a certos padrões e formulários impôsse a todos e se espalhou por toda parte Não surpreende que ninguém mais saiba se devemos abraçar a globalização ou se devemos ao contrário lutar contra ela Se por globalizar entendemos a tarefa de multiplicar os pontos de vista para complexificar toda visão provinciana ou fechada adicionando novas variantes esse é um combate que merece ser travado mas se ao contrário tratase de reduzir o número de alternativas para a existência e os caminhos do mundo para o valor dos bens e os sentidos de Globo é preciso resistir com todas as forças a tal simplificação No fim das contas parece que quanto mais se globaliza mais se tem a impressão de possuir uma visão limitada Cada um de nós pode até aceitar deixar para trás seu pequeno pedaço de chão mas de forma alguma para que outra visão limitada proveniente de um lote de terra apenas mais distante se imponha Distingamos então a seguir a globalizaçãomais da globalizaçãomenos O que torna complicado qualquer projeto de aterrar em algum lugar é que a ideia de uma globalização inevitável suscita por tabela a invenção do reacionário Há muito tempo os defensores da globalizaçãomenos acusam aqueles que resistem a seu avanço de arcaicos atrasados de pensarem unicamente em seu pequeno terroir e de quererem se proteger contra todos os riscos enclausurandose em seus minúsculos lares Ah O gosto pela imensidão dos mares próprio àqueles que encontram abrigo em qualquer lugar para onde suas milhas permitem voar Foi para fazer aquele povo reticente se mover que os globalizadores colocaram sob eles a grande alavanca da modernização Por isso há dois séculos a flecha do tempo tornou possível distinguir de um lado os que vão na dianteira os modernizadores os progressistas e do outro os que ficam para trás A mensagem contida no grito de guerra Modernizemse é só uma toda resistência à globalização será imediatamente julgada como ilegítima Não há nada a ser negociado com os que querem continuar atrás Aqueles que se encontram do lado oposto do irreversível front de modernização serão desqualificados de antemão18 Eles não são apenas vencidos são também irracionais Vae victis 18 A ideia de front de modernização e o modo como ela reparte as emoções políticas foi desenvolvida anteriormente em Bruno Latour Nous navons jamais été modernes Essai danthropologie symétrique Paris La Découverte 1991 Em português Jamais Fomos Modernos Ensaio de Antropologia Simétrica Tradução de Carlos Irineu da Costa Rio de Janeiro Editora 34 1994 22 Bruno Latour 23 Onde aterrar É a defesa desse tipo de modernização que acaba definindo por contraste a preferência pelo local o apego ao solo a insistência num pertencimento às tradições a atenção à terra Tudo isso não mais como um conjunto de sentimentos legítimos mas como a expressão de uma nostalgia por posições arcaicas e obscurantistas A exortação à globalização é tão ambígua que sua dubiedade contamina o que podemos esperar do local É por isso que desde o início da modernização todo vínculo a qualquer tipo de solo tem sido considerado um sinal de retrocesso Contudo assim como existem dois modos completamente diferentes de abordar a globalização de registrar as variações do Globo existem pelos menos dois modos igualmente opostos de definir a ligação com o local É por desconhecerem essa diferença que as elites que tanto se beneficiaram das globalizações tanto a mais quanto a menos têm tanta dificuldade de entender o que aflige aqueles que querem ser amparados protegidos assegurados tranquilizados por sua província por sua tradição por seu solo ou identidade Tais elites então acusam essas pessoas de terem se rendido ao canto da sereia do populismo Recusar a modernização talvez seja um reflexo do medo uma falta de ambição uma preguiça nata sim mas como bem disse Karl Polanyi a sociedade sempre tem razão em se defender contra ataques¹⁹ Recusar a modernização é também resistir corajosamente recusando trocar sua província por outra Wall Street Pequin ou Bruxelas ainda mais estreita e sobretudo infinitamente distante por consequência muito mais indiferente aos interesses locais ¹⁹ Karl Polanyi The Great Transformation The Political and Economic Origins of Our Time Boston Beacon Press 1957 1944 24 Bruno Latour Será que é possível fazer os que seguem entusiasmados com a globalizaçãomenos entenderem que é normal que é justo que é indispensável querer conservar manter garantir o pertencimento a uma terra a um lugar a um solo a uma comunidade a um espaço a um meio a um modo de vida a uma profissão a uma habilidade Reconhecer esse pertencimento é justamente o que nos mantém capazes de registrar mais diferenças mais pontos de vista e sobretudo de não reduzir sua quantidade Sim os reaças se enganam a respeito das globalizações mas os progressistas também se enganam sobre o que mantém os reaças presos a seus usos e costumes Consequentemente devemos distinguir o localmenos do localmais assim como devemos distinguir a globalizaçãomenos da globalizaçãomais No fim das contas a única coisa que interessa não é saber se a pessoa é contra ou a favor da globalização contra ou a favor do local mas sim entender se ela consegue registrar manter respeitar o maior número de possibilidades de pertencimento ao mundo Alguém poderia dizer que isso tudo é papo furado para criar divisões artificiais que mal disfarçam uma certa ideologia do sangue e do solo Blut und Boden Fazer tal objeção contudo seria ignorar o imenso acontecimento cuja ocorrência ameaça o grande projeto da modernização ele se tornou definitivamente impossível pois não existe Terra com capacidade para abarcar seu ideal de progresso de emancipação e de desenvolvimento Como consequência disso todos os pertencimentos estão sofrendo metamorfose quer eles digam respeito ao globo ao mundo às províncias aos terroirs ao mercado mundial aos solos ou às tradições É preciso se confrontar com o que é ao pé da letra um problema de dimensão de escala e de habitação o planeta é 25 Onde aterrar estreito e limitado demais para o globo da globalização No entanto ele é grande demais infinitamente grande ativo demais complexo demais para permanecer dentro das fronteiras estreitas e limitadas de uma localidade qualquer Estamos todos duplamente consternados pelo grande demais e pelo pequeno demais E assim ninguém tem a resposta para a pergunta como encontrar um solo habitável Nem os defensores da globalização tanto a mais quanto a menos nem os defensores do local tanto o mais quanto o menos Nós não sabemos para onde ir nem como viver nem com quem coabitar Como encontrar um lugar Como nos orientar 5 Algo de fato extraordinário deve ter se passado para que o ideal da globalização tenha mudado tão rapidamente de sinal Para detectar o que aconteceu convém desenvolver a hipótese de ciência política ou mais precisamente de ficção política anunciada na introdução Suponhamos que desde os anos 1980 cada vez mais pessoas ativistas cientistas artistas economistas intelectuais partidos políticos perceberam que as relações até então estáveis que a Terra mantinha com os humanos estavam sob ameaça²⁰ Apesar das dificuldades essa vanguarda conseguiu acumular evidências de que tal estabilidade não iria durar e que a própria Terra acabaria revidando ²⁰ A esse respeito ver entre outros Spencer Weart The Discovery of Global Warming Cambridge Harvard University Press 2003 À época todos sabiam que a questão dos limites se apresentaria mais cedo ou mais tarde mas a decisão tomada ao menos entre os modernos foi a de ignorar solenemente o problema motivados por uma forma muito estranha de desinibição²¹ Desse modo poderiam muito bem seguir saqueando o solo usando e abusando dele sem dar ouvidos aos profetas do infortúnio já que o próprio solo permanecia relativamente quieto Porém aos poucos eis que sob o solo da propriedade privada do monopólio das terras da exploração dos territórios um outro solo uma outra terra um outro território começou a se agitar a tremer a se comover Uma espécie de terremoto se preferir com o seguinte recado àqueles pioneiros Prestem atenção nada será como antes vocês pagarão caro pelo retorno da Terra pela reviravolta dos poderes que até agora eram dóceis E é aqui que entra em cena a hipótese de ficção política essa ameaça esse aviso teria sido muito bem compreendido por certas elites elites menos esclarecidas talvez contudo donas de muitos recursos e grandes interesses e acima de tudo extremamente empenhadas na proteção de sua imensa fortuna e na manutenção de seu bemestar Devemos supor que essas elites entenderam perfeitamente bem o recado mas tal evidência que se tornara cada vez mais incontestável com o passar dos anos não as fez concluir que caberia a elas pagar e caro pela reviravolta da Terra sobre si mesma Elas seriam assim esclarecidas o suficiente para captar o recado mas não para compartilhálo publicamente Ao invés disso tais elites parecem ter chegado a partir do aviso a duas conclusões que levaram à eleição do Ubu Rei para a Casa Branca Em primeiro lugar sim essa reviravol 26 Bruno Latour ta vai custar bem caro mas quem vai arcar com esse prejuízo são os outros não nós e em segundo lugar ainda que a verdade do Novo Regime Climático seja cada vez menos discutível vamos negála até o fim São essas duas decisões que permitem relacionar 1 aquilo que desde os anos 1980 chamamos de desregulação ou desmantelamento do Estadoprovidência 2 aquilo que é conhecido desde os anos 2000 como negacionismo climático²² e sobretudo 3 a extensão vertiginosa das desigualdades que testemunhamos há quarenta anos²³ Se essa hipótese estiver correta tudo isso faz parte de um mesmo fenômeno as elites se convenceram tão bem de que não haveria vida futura para todos que decidiram se livrar o mais rápido possível de todos os fardos da solidariedade isso explica a desregulação Decidiram que seria preciso construir uma espécie de fortaleza dourada para os poucos que poderiam se safar do que decorre a explosão das desigualdades E resolveram que para dissimular o egoísmo sórdido de tal fuga para fora do mundo comum seria preciso rejeitar absolutamente a ameaça que motivou essa fuga desesperada o que explica a negação da mutação climática Aqui vale lembrar da metáfora clichê de Titanic as classes dominantes percebem que o naufrágio é inevitável apropriampse dos botes salvavidas e pedem que a orquestra toque durante um bom tempo canções de ninar para que possam aproveitar a noite escura e dar o fora antes que a inclinação excessiva do navio chame a atenção das outras classes²⁴ Há um episódio elucidativo que por seu turno nada tem de metafórico no início dos anos 1990 a companhia ExxonMobil com pleno conhecimento de causa ela já havia até publicado excelentes artigos científicos sobre os perigos da mudança climática decide investir pesadamente na extração frenética de petróleo e ao mesmo tempo na campanha igualmente frenética para negar a existência da ameaça²⁵ Essas pessoas a quem daqui para frente chamaremos de elites obscurantistas compreenderam que para sobreviverem confortavelmente não precisavam mais fingir compartilhar a terra com o resto do mundo nem mesmo como um sonho a perseguir Essa hipótese permitiria explicar como a globalizaçãomais se tornou a globalizaçãomenos Enquanto até os anos 1990 ainda se podia associar o horizonte da modernização a noções de progresso emancipação riqueza conforto até mesmo de luxo e principalmente de ra ²² Naomi Oresks e Erik M Conway Merchants of Doubt How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming Nova York Bloomsbury Press 2010 ²³ A datação é claramente muito vaga mas não contradiz os dados de Thomas Piketty em Capital in the TwentyFirst Century trans Arthur Goldhammer Cambridge MA Harvard University Press 2014 2013 nem a meticulosa abordagem de Dominique Pestre sobre o modo como a ciência econômica absorveu e eufemizou a ecologia Ver principalmente Dominique Pestre La mise en économie de lenvironment comme règle 19702010 Entre théologie économique pragmatisme e hegemonia política Écologie et Politique 52 2016 As reações ao relatório do Clube de Roma de 1972 podem servir de referência nessa questão da cronologia Ver a tese de Élodie VieilleBlanchard Les Limites à la croissance dans un monde global Modélisations prospectives réfutations Tese de doutorado EHESS Paris 2011 24 Para um surpreendente retrato psicológico do proprietário de Titanic sobrevivente do naufrágio ler Frances Wilson How to Survive the Titanic The Sinking of J Bruce Ismay Nova York Harper 2012 25 Dois artigos por David Kaiser e Lee WasserMan The Rockfeller Family fund takes on Exxon Mobil New York Review of Books 8 e 22 dez 2016 Geoffrey Supran e Naomi Oreskes Assessing Exxon Mobils climate change communications 19772014 Environnemental Research Letters 12 2017 28 Bruno Latour 29 Onde aterrar cionalidade ao menos para os que dele se beneficiavam a fúria da desregulação a explosão das desigualdades e o abandono das solidariedades associaramno gradativamente à noção de uma decisão arbitrária surgida do nada para beneficiar apenas alguns O melhor dos mundos passou a ser o pior Do alto do convés as classes inferiores agora alertas veem os botes se afastarem cada vez mais A orquestra continua tocando Plus près de toi mon Dieu mas a música não consegue abafar os gritos de raiva E é mesmo de raiva que devemos falar se quisermos compreender a reação de desconfiança e de incompreensão diante de tamanho abandono e traição Se desde os anos 1980 ou 1990 as elites percebendo que a festa tinha acabado viram que era preciso construir o mais rápido possível comunidades muradas26 para não ter de partilhar mais nada com as massas e sobretudo com as massas de cor que logo avançariam por todo o planeta uma vez que seriam expulsas de suas próprias casas é de se imaginar que os deixados para trás tenham igualmente percebido que se a globalização estava a deus dará então eles também precisariam de muros de proteção A reação de uns provoca a reação de outros ambos reagindo a uma outra reação muito mais radical a da Terra que parou de amortecer os golpes e começou a revidar de maneira cada vez mais violenta Essa sobreposição parece irracional apenas se nos esquecermos de que se trata de uma mesma e única reação em 26 Evan Osnos Doomsday Prep for the SuperRich The New Yorker 30 jan 2017 httpswwwnewyorkercommagazine20170130doomsday prepforthesuperrich Para uma ilustração impressionante da construção desse mundo offshore ver os Paradise Papers publicados pelo International Consortium for Investigative Journalism em 2017 https wwwicijorginvestigationsparadisepapers Acesso em 1 jun 2020 cadeia motivada pela reação da Terra às nossas investidas Fomos nós que começamos nós o antigo Ocidente e mais precisamente a Europa Não há nada mais a fazer senão aprender a viver com as consequências daquilo que desencadeamos Não podemos compreender o crescimento vertiginoso das desigualdades a onda de populismo e nem a crise migratória se não entendermos que estas são três respostas em larga medida compreensíveis ainda que não sejam eficazes à reação colossal de um solo àquilo que a globalização o fez sofrer Uma vez diante da ameaça a decisão parece ter sido não enfrentála mas fugir Alguns buscaram abrigo no exílio dourado do 1 Os superricos devem ser protegidos em primeiro lugar outros esconderamse atrás de fronteiras seguras Por piedade garantanos ao menos uma identidade estável por fim outros os mais miseráveis tomaram o caminho do exílio No fim das contas todos são de um modo ou de outro os abandonados pela globalização menos que começa a perder seu poder de atração 6 Segundo a hipótese levantada aqui as elites obscurantistas teriam levado a ameaça a sério Elas teriam entendido que sua dominância estava ameaçada e decidido desmantelar a ideologia de um planeta comum a todos Teriam também compreendido que um abandono como esse não poderia de modo algum ser explicitado por isso seria preciso obliterar secretamente todo o conhecimento científico sobre a ameaça Tudo isso ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos 30 Bruno Latour 31 Onde aterrarr A hipótese parece inverossímil a ideia de denegação se assemelha demais a uma interpretação psicanalítica ou a uma teoria da conspiração27 Contudo ela se torna mais plausível se fizermos a suposição bastante razoável de que as pessoas rapidamente desconfiam quando se esconde alguma coisa delas e se preparam para agir em resposta a isso Ainda que não haja um flagrante da traição os efeitos da desconfiança são bem visíveis No momento o mais evidente deles é o delírio epistemológico que se apoderou da cena pública desde a eleição de Trump A negação não é uma situação confortável Negar é mentir friamente e depois esquecer que mentiu mas constantemente lembrandose da mentira apesar de tudo É extenuante Podemos nos perguntar o que tal confusão provoca às pessoas que caem nessa armadilha Isso as deixa loucas Tratemos primeiro desse povo que os comentaristas políticos autorizados parecem estar descobrindo de repente Os jornalistas abraçaram a ideia de que o povão se tornou partidário dos acontecimentos alternativos a ponto de esquecer qualquer forma de racionalidade Passaram então a acusar essa boa gente de se comprazera com suas visões estreitas seus medos sua congênita desconfiança em relação às elites sua deplorável indiferença pela própria ideia de verdade e principalmente com sua paixão pela identidade pelo folclore pelo arcaísmo e pelas 27 O problema das teorias da conspiração como bem observou Luc Boltanski é que elas às vezes são o que há de mais real Luc Boltanski Énigmes et Complots Une enquête à propos denquêtes Paris Gallimard 2012 Um livro bem convincente sobre isso é o de Nancy Maclean Democracy in Chains The Deep History of the Radical Rights Stealth Plan for America Londres Penguin Randon House 2017 fronteiras sem esquecer de sua condenável indiferença pelos fatos Disso decorre o sucesso da expressão realidade alternativa No entanto acreditar nisso é esquecer que esse povo foi friamente traído por aqueles que abandonaram a ideia de levar a cabo a modernização do planeta com todo mundo já que estes souberam antes de qualquer um que aquele mundo era impossível precisamente por falta de planeta vasto o suficiente para estender a todos seus sonhos de crescimento Antes de acusar o povo de não mais acreditar em nada nem ninguém é preciso considerar o efeito dessa imensa traição de confiança ele foi abandonado num descampado Nenhum conhecimento comprovado como bem sabemos sustentase sozinho Os fatos só ganham corpo quando para sustentálos existe uma cultura comum instituições nas quais se pode confiar uma vida pública relativamente decente uma imprensa confiável na medida do possível28 E no entanto se esperava das pessoas a quem nunca fora anunciado abertamente ainda que elas pudessem pressentilo que todos os esforços de modernização empreendidos ao longo de dois séculos corriam o risco de serem abandonados que viam todos os ideais de solidariedade serem jogados ao mar por aqueles que as lideravam se esperava dessas pessoas que tivessem nos fatos científicos a mesma confiança de um Louis Pasteur ou de uma Marie Curie Mas o desastre epistemológico é igualmente grande entre os responsáveis por essa tremenda traição 28 Dominique Pestre Introduction aux Science Studies Paris La Découverte 2006 para uma apresentação para um resumo pedagógico Bruno Latour Cogitamus Six lettres sur les humanités scientifiques Paris La Découverte 2010 32 Bruno Latour 33 Onde aterrar Para se convencer disso basta acompanhar diariamente o caos que reina na Casa Branca desde a chegada de Trump Como respeitar os fatos mais estabelecidos quando se deve negar a magnitude da ameaça e travar ainda que sem anunciar uma guerra mundial contra todos os outros É como conviver com um elefante na sala como diz a expressão popular ou com o rinoceronte de Ionesco Nada pode ser mais desconfortável Esses imensos animais roncam evacuam rugem te esmagam e impedem de concatenar qualquer pensamento O Salão Oval se tornou um verdadeiro zoológico O fato é que a negação intoxica tanto os que colocam em prática esse descaso quanto aqueles supostamente enganados por ela examinaremos a trapaça particular do trumpismo mais à frente A única diferença e ela é enorme é que os superricos dos quais Trump é apenas um atravessador adicionam à sua fuga um outro crime imperdoável a negação compulsiva das ciências do clima Isso faz com que as demais pessoas tenham que se virar em meio a um nevoeiro de desinformação sem que ninguém nunca lhes diga em momento algum que a modernização foi encerrada e que uma mudança de regime se tornou inevitável Se é verdade que as pessoas comuns já tendiam a desconfiar de tudo elas foram levadas graças aos bilhões de dólares investidos na desinformação a desconfiar de um fato muitíssimo sólido a mutação do clima29 A questão é que para enfrentar esse problema a tempo seria preciso confiar desde logo cedo na solidez desse fato de modo a pressionar os políticos a agir antes que fosse tarde demais No momento em que ainda era possível encontrar uma saída de segurança os céticos do clima se colocaram na frente dela para barrar o acesso do público Quando chegar a hora do julgamento é desse crime que eles terão de ser acusados30 As pessoas não se dão conta propriamente de que a questão do negacionismo climático organiza toda a política do tempo presente31 É portanto uma abordagem superficial chamar o problema de uma política da pósverdade como fazem os jornalistas Eles não enfatizam o motivo por que alguns decidiram continuar fazendo política abandonando voluntariamente o vínculo com a verdade que os aterrorizava não sem razão Tampouco discutem o porquê de as pessoas comuns terem resolvido aqui também não sem razão não acreditar em mais nada Depois de todos os sapos que tentaram fazêlas engolir dá para entender que desconfiem de tudo e que não queiram ouvir mais nada A reação da imprensa ao negacionismo prova que a situação infelizmente não é melhor entre aqueles que se vangloriam por se acharem os espíritos racionais que se indignam com a indiferença aos fatos demonstrada pelo Ubu Rei ou que denunciam a estupidez das massas ignorantes Aqueles que o fazem continuam acreditando que os fatos se sustentam sozinhos sem precisar de um mundo compartilhado de instituições e de uma vida pública e que bastaria simplesmente reunir as pessoas comuns numa boa sala de aula como 29 James Hoggan Climate CoverUp The Crusade to Deny Global Warming Vancouver Greystone Books 2009 30 Ver o curto e desconcertante livro de Erik M Conway e Naomi Oreskes The Collapse of Western Civilization A View from the Future Nova York Columbia University Press 2014 31 O que não quer dizer que os comentaristas estejam conscientes disso Em um livromanifesto publicado em doze línguas que reúne o que os intelectuais têm a dizer sobre a grande regressão entendase a surpresa que eles sentem diante do aumento do populismo apenas um capítulo o meu aborda essa questão Heinrich Geiselberger org The Great Regression London Polity 2017 34 Bruno Latour 35 Onde aterrar antes com quadro negro e lições a estudar para que a razão enfim triunfasse Mas esses tipos racionais também estão presos nas armadilhas da desinformação Não entendem que de nada serve se indignar porque as pessoas acreditam em fatos alternativos quando eles próprios vivem de verdade em um mundo alternativo um mundo no qual a mutação climática existe o que não acontece no mundo de seus oponentes A questão portanto não é saber como corrigir as falhas do pensamento mas sim como partilhar a mesma cultura enfrentar os mesmos desafios e vislumbrar um panorama que possamos explorar conjuntamente A primeira atitude demonstra o vício habitual da epistemologia que consiste em atribuir a supostos déficits intelectuais algo que é meramente um déficit de prática comum 7 Se a chave para compreender a situação atual não se encontra na falta de inteligência é preciso procurála na forma dos territórios nos quais essa inteligência se manifesta Ora é justamente aí que reside o problema existem hoje vários territórios incompatíveis uns com os outros Para simplificar suponhamos que até agora cada um dos que aceitavam se curvar ao projeto da modernização podia encontrar seu lugar nele graças a um vetor que grosso modo ia do local em direção ao global Era em direção ao Globo com um G maiúsculo que tudo caminhava aquele Globo que projetava o horizonte ao mesmo tempo científico econômico moral o Globo da globalizaçãomais Tratavase de um marco ao mesmo tempo espacial a cartografia e temporal a flecha do tempo lançada em direção ao futuro Esse Globo que arrebatu gerações por ser sinônimo de riqueza de emancipação de conhecimento e de acesso a uma vida confortável trazia com ele uma certa definição universal do humano A imensidão dos mares finalmente Enfim deixar o lar O universo infinito afinal Raros foram os que não ouviram esse chamado Podemos imaginar o entusiasmo que isso causou entre os que puderam se beneficiar ainda que não nos surpreenda o horror que a globalização suscitou junto àqueles que ela foi destruindo pelo caminho O que era preciso abandonar para se modernizar era o Local Também com maiúscula para não ser confundido com algum habitat primordial específico com alguma terra ancestral algum solo de onde autóctones tenham surgido Não há nada de aborígene nada de nativo nada de primitivo nesse terroir reinventado depois que a modernização extinguiu as antigas pertenças É um Local por contraste Um antiGlobal Uma vez identificados esses dois polos é possível traçar um front de modernização pioneiro Ele se caracterizava pela injunção a modernizar demandandonos estar preparados para todos os sacrifícios deixar nossa província natal abandonar nossas tradições e mudar nossos hábitos caso quiséssemos avançar participar do movimento geral de desenvolvimento e enfim desfrutar do mundo Decerto estávamos divididos entre duas ordens contraditórias avançar rumo ao ideal de progresso ou recuar em direção às certezas antigas mas essa hesitação esse impasse no fim das contas nos vinha a calhar Assim como os parisienses sabem se orientar no curso do Rio Sena acompanhando a sequência dos números pares e ímpares de suas ruas nós sabíamos nos situar no curso da história 1 VISUALIZANDO O CORPO TEORIAS OCIDENTAIS E SUJEITOS AFRICANOS Oyèrónkẹ Oyěwùmí OYĚWÙMÍ Oyèrónkẹ Visualizing the Body Western Theories and African Subjects in COETZEE Peter H ROUX Abraham PJ eds The African Philosophy Reader New York Routledge 2002 p 391415 Tradução para uso didático de wanderson flor do nascimento A ideia de que a biologia é destino ou melhor o destino é a biologia tem sido um marco do pensamento ocidental por séculos1 Seja na questão de quem é quem na pólis2 de Aristóteles ou quem é pobre nos Estados Unidos do final do século XX a noção de que diferença e hierarquia na sociedade são biologicamente determinadas continua a gozar de credibilidade mesmo entre cientistas sociais que pretendem explicar a sociedade humana em outros termos que não os genéticos No Ocidente as explicações biológicas parecem ser especialmente privilegiadas em relação a outras formas de explicar diferenças de gênero raça ou classe A diferença é expressa como degeneração Ao traçar a genealogia da ideia de degeneração no pensamento europeu J Edward Chamberlain e Sander Gilman notaram a maneira como ela era usada para definir certos tipos de diferença no século XIX em particular Inicialmente a degeneração reuniu duas noções de diferença uma científica um desvio de um tipo original e a outra moral um desvio de uma norma de comportamento Mas eram essencialmente a mesma noção de uma degradação um desvio do tipo original3 Consequentemente quem está em posições de poder acha imperativo estabelecer sua biologia como superior como uma maneira de afirmar seu privilégio e domínio sobre 1 Comparar com o uso feito por Thomas Laqueur Destino é anatomia que é o título do capítulo 2 de seu Making Sex Body and Gender from the Greeks to Freud Cambridge Mass Harvard University Press 1990 2 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 p 37 3 J Edward Chamberlain Sander Gilman Degeneration The Darker Side of Progress Nova York Columbia University Press 1985 p 292 2 os Outros Quem é diferente é visto como geneticamente inferior e isso por sua vez é usado para explicar sua posição social desfavorecida A noção de sociedade que emerge dessa concepção é que a sociedade é constituída por corpos e como corpos corpos masculinos corpos femininos corpos judaicos corpos arianos corpos negros corpos brancos corpos ricos corpos pobres Uso a palavra corpo de duas maneiras primeiro como uma metonímia para a biologia e segundo para chamar a atenção para a fisicalidade que parece estar presente na cultura ocidental Refirome tanto ao corpo físico como às metáforas do corpo Ao corpo é dada uma lógica própria Acreditase que ao olhar para ele pode se inferir as crenças e a posição social de uma pessoa ou a falta delas Como Naomi Scheman aponta em sua discussão sobre o corpo político na Europa prémoderna As maneiras pelas quais as pessoas conheciam seus lugares no mundo estavam relacionadas com seus corpos e as histórias desses corpos e quando violavam as prescrições para esses lugares seus corpos eram punidos muitas vezes de forma espetacularizada O lugar de alguém no corpo político era tão natural quanto a localização dos órgãos em um corpo e a desordem política era tão antinatural quanto a mudança e o deslocamento desses órgãos4 De modo semelhante Elizabeth Grosz observa o que ela chama de profundidade do corpo nas sociedades ocidentais modernas Nossas formas corporais ocidentais são consideradas expressões de um interior e não inscrições em uma superfície plana Ao construir uma alma ou psique por si mesma o corpo civilizado forma fluxos libidinais sensações experiências e intensifica as necessidades os desejos O corpo se torna um texto um sistema de signos a serem decifrados lidos e interpretados A lei social é encarnada corporalizada correlativamente os corpos são textualizados lidos por outros como expressão do interior psíquico de um sujeito Um depósito de inscrições e mensagens entre as fronteiras externas e internas do corpo gera ou constrói os movimentos do corpo como comportamento que então tem significados e funções interpessoais e socialmente identificáveis dentro de um sistema social5 4 Naomi Scheman Engenderings Constructions of Knowledge Authority and Privilege Nova York Routledge 1993 p 186 5 Elizabeth Grosz Bodies and Knowledges Feminism and the Crisis of Reason in Linda Alcoff Elizabeth Potter eds Feminist Epistemologies Nova York Routledge 1994 p 198 grifos meus 3 Consequentemente uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual a ordem social é fundada o corpo está sempre em vista e à vista Como tal invoca um olhar um olhar de diferença um olhar de diferenciação o mais historicamente constante é o olhar generificado Há um sentido em que expressões como o corpo social ou o corpo político não são apenas metáforas mas podem ser lidas literalmente Não surpreende portanto que quando o corpo político precisou ser purificado na Alemanha nazista certos tipos de corpos precisaram ser eliminados6 A razão pela qual o corpo tem tanta presença no Ocidente é que o mundo é percebido principalmente pela visão7 A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao ver O olhar é um convite para diferenciar Diferentes abordagens para compreender a realidade então sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades Em relação à sociedade iorubá que é o foco deste livro o corpo aparece com uma presença exacerbada na conceituação ocidental da sociedade O termo cosmovisão que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade capta o privilégio ocidental do visual É eurocêntrico usálo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos O termo cosmopercepção8 é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais Neste estudo portanto cosmovisão só será aplicada para descrever o sentido cultural ocidental e cosmopercepção será usada ao descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou até mesmo uma combinação de sentidos Isso dificilmente representa a visão recebida da história e do pensamento social ocidentais Muito pelo contrário até recentemente a história das sociedades 6 Scheman Engenderings 7 Consultar por exemplo o seguinte para relatos da importância da visão no pensamento ocidental Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova York Harper and Row 1966 Donald Lowe History of Bourgeois Perception Chicago University of Chicago Press 1982 8 Traduzo aqui a expressão worldsense por cosmopercepção por entender que a palavra sense indica tanto os sentidos físicos quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensamento A palavra percepção pode indicar tanto um aspecto cognitivo quanto sensorial E o uso da palavra cosmopercepção também busca seguir uma diferenciação proposta por Oyěwùmí com a palavra worldview que é usualmente traduzida para o português como cosmovisão e não como visão do mundo N da T 4 ocidentais tem sido apresentada como uma documentação do pensamento racional em que as ideias são enquadradas como agentes da história Se os corpos aparecem eles são articulados como o lado degradado da natureza humana O foco preferido tem estado na mente elevada acima das fraquezas da carne No início do discurso ocidental surgiu uma oposição binária entre corpo e mente O tão falado dualismo cartesiano era apenas uma afirmação de uma tradição9 na qual o corpo era visto como uma armadilha da qual qualquer pessoa racional deveria escapar Ironicamente mesmo quando o corpo permaneceu no centro das categorias e discursos sociopolíticos muitas das pessoas que pensaram sobre isso negaram sua existência para certas categorias de pessoas mais notavelmente elas mesmas A ausência do corpo tem sido uma précondição do pensamento racional Mulheres povos primitivos judeus africanos pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo de diferente em épocas históricas variadas foram consideradas como corporalizadas dominadas portanto pelo instinto e pelo afeto estando a razão longe delas Elas são o Outro e o Outro é um corpo10 Ao apontar a centralidade do corpo na construção da diferença na cultura ocidental não se nega necessariamente que tenha havido certas tradições no Ocidente que tentaram explicar as diferenças segundo critérios diversos em relação à presença ou ausência de certos órgãos a posse de um pênis o tamanho do cérebro a forma do crânio ou a cor da pele A tradição marxista é especialmente notável a esse respeito na medida em que enfatizava as relações sociais como uma explicação para a desigualdade de classes Contudo a crítica ao androcentrismo marxista por numerosas escritoras feministas sugere que esse paradigma também está implicado na somatocentralidade ocidental11 Da mesma forma o surgimento de disciplinas como a sociologia e a 9 Comparar com a discussão de Nancy ScheperHughes e Margaret Lock em The Mindful Body A Prolegomenon to Future Work in Medical Anthropology Medical Anthropology Quarterly ns 1 Março de 1987 p 741 10 O trabalho de Sander Gilman é particularmente elucidativo sobre as concepções de diferença e alteridade Conferir Difference and Pathology Stereotypes of Sexuality Race and Madness Ithaca N Y Cornell University Press 1985 On Blackness without Blacks Essays on the Image of the Black in Germany Boston G K Hall 1982 The Case of Sigmund Freud Medicine and Identity Baltimore John Hopkins University Press 1993 Jewish Self Hatred AntiSemitism and the Hidden Language of the Jews Baltimore John Hopkins University Press 1986 11 Consultar por exemplo Linda Nicholson Feminism and Marx in Feminism as Critique On The Politics of Gender editado por Seyla Benhabib e Drucilla Cornell Minneapolis University of Minnesota 5 antropologia que pretendem explicar a sociedade com base nas interações humanas parece sugerir o ostracismo do determinismo biológico no pensamento social Entretanto em um exame mais detalhado descobrese que dificilmente o corpo fora banido do pensamento social sem mencionar seu papel na constituição do status social Isso pode ser ilustrado na sociologia Em uma monografia sobre o corpo e a sociedade Bryan Turner lamenta o que ele percebe como a ausência do corpo nas investigações sociológicas Ele atribui esse fenômeno dos corpos ausentes12 ao fato de que a sociologia emergiu como uma disciplina que tomou o significado social da interação humana como seu principal objeto de investigação afirmando que o significado das ações sociais nunca pode ser reduzido à biologia ou à fisiologia ibid É possível concordar com Turner sobre a necessidade de separar a sociologia da eugenia e da frenologia No entanto dizer que os corpos estão ausentes das teorias sociológicas é desconsiderar o fato de que os grupos sociais que são objeto da disciplina são essencialmente entendidos como enraizados na biologia São categorias baseadas em percepções da presença da diferença física de vários tipos de corpo Nos EUA contemporâneos enquanto quem exerce a sociologia lida com as chamadas categorias sociais como subclasse suburbanos trabalhadores fazendeiros eleitores cidadãos e criminosos para mencionar algumas categorias que são entendidas historicamente e no ethos cultural como representações de específicos tipos de corpos não há como fugir da biologia Se o reino social é determinado pelos tipos de corpos que o ocupam então até que ponto existe um campo social dado que ele é concebido para ser biologicamente determinado Por exemplo ninguém que ouve a expressão executivos corporativos supõe que sejam mulheres e nas décadas de 1980 e 1990 ninguém associaria espontaneamente os brancos aos termos subclasse ou gangues de fato se alguém construísse uma associação entre os termos seus significados teriam que ser mudados Consequentemente qualquer pessoa que exerça Press 1986 Michele Barret Womens Oppression Today Londres New Left Books 1980 Heidi Hartmann The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism Towards a More Progressive Union in Women and Revolution A Discussion of the Unhappy Marriage of Marxism and Feminism editado por Lydia Sargent Boston South End Press 1981 12 Bryan Turner Sociology and the Body in The Body and Society Explorations in Social Theory Oxford Blackwell 1984 p 31 6 a sociologia e estude essas categorias não pode escapar de uma subjacente insidiosidade biológica Essa onipresença de explicações biologicamente deterministas nas ciências sociais pode ser demonstrada com a categoria de criminoso ou delinquente na sociedade estadunidense contemporânea Troy Duster em um excelente estudo sobre o ressurgimento do determinismo biológico evidente nos círculos intelectuais desdenha da ânsia de muitas pessoas que realizam pesquisas em associar a criminalidade à herança genética ele prossegue argumentando que outras interpretações da criminalidade são possíveis A interpretação econômica predominante explica as taxas de criminalidade em termos de acesso a emprego e desemprego Uma interpretação cultural tenta mostrar diferentes os ajustes culturais entre a polícia e aqueles apreendidos por crimes Uma interpretação política vê a atividade criminal como interpretação política ou pré revolucionária Uma interpretação do conflito vê isso como um conflito de interesses por recursos escassos13 Nitidamente em face disso todas essas explicações da criminalidade são não biologicistas no entanto enquanto a população ou o grupo social que elas tentam explicar neste caso os criminosos negros eou pobres é vista como representando um agrupamento genético as suposições subjacentes sobre a predisposição genética dessa população ou grupo estruturarão as explicações apresentadas se são baseadas no corpo ou não Isso está ligado ao fato de que em função da história do racismo a questão de pesquisa subjacente mesmo que não seja declarada não é o motivo pelo qual certos indivíduos cometem crimes efetivamente na verdade é por que os negros têm tal propensão A definição do que é atividade criminosa está muito ligada a quem negro branco rico pobre está envolvido na atividade ibid Da mesma forma a polícia como um grupo é assumida como branca Similarmente quando são feitos estudos sobre liderança na sociedade estadunidense quem pesquisa descobre que a maioria das pessoas em cargos de liderança são machos brancos não importa que tipo de interpretação dão para este resultado suas declarações serão lidas como explicações para a predisposição desse grupo para a liderança 13 Troy Duster Backdoor to Eugenics Nova York Routledge 1990 7 Não questiono aqui a integridade de quem pesquisa meu propósito não é rotular qualquer grupo dedicado à pesquisa como intencionalmente racista Pelo contrário desde o movimento pelos direitos civis a pesquisa científicosocial tem sido usada para formular políticas que reduzam ou que procurem acabar com a discriminação contra grupos subordinados O que deve ser ressaltado no entanto é como a produção e disseminação de conhecimento nos Estados Unidos estão inevitavelmente embutidas no que Michael Omi e Howard Winant chamam de senso comum cotidiano da raça uma maneira de compreender explicar e agir no mundo14 A raça é então um princípio organizador fundamental na sociedade estadunidense É institucionalizada e funciona independentemente da ação de atores individuais No Ocidente as identidades sociais são todas interpretadas através do prisma da hereditariedade15 para tomar emprestada a expressão de Duster O determinismo biológico é um filtro através do qual todo o conhecimento sobre a sociedade funciona Como mencionado no prefácio refirome a esse tipo de pensamento como raciocínio corporal16 é uma interpretação biológica do mundo social O ponto novamente é que enquanto atores sociais como gestores criminosos enfermeiros e pobres sejam apresentados como grupos e não como indivíduos e desde que tais agrupamentos sejam concebidos como geneticamente constituídos então não há como escapar do determinismo biológico Neste contexto a questão da diferença de gênero é particularmente interessante no que diz respeito à história e à constituição da diferença na prática e no pensamento social europeus A longa história da corporificação de categorias sociais é sugerida pelo mito fabricado por Sócrates para convencer cidadãos de diferentes 14 Michael Omi e Howard Winant Racial Formation in the United States from the 1960s to the 1980s Nova York Routledge 1986 Comparar também com a discussão sobre a difusão da raça acima de outras variáveis como a classe na análise do motim de Los Angeles de 1992 Segundo Cedric Robinson A mídia de massa e as declarações oficiais subsumiram a genealogia das revoltas de Rodney King nas narrativas antidemocráticas de raça que dominam a cultura estadunidense A inquietação urbana o crime e a pobreza são economias discursivas que exprimem a raça e apagam a classe Race Capitalism and the AntiDemocracy artigo apresentado no Interdisciplinary Humanities Center University of California Santa Barbara Inverno de 1994 15 Duster Backdoor salienta que a noção amplamente difundida de que tanto as doenças como o dinheiro correm dentro das famílias 16 Comparar com o conceito de raciocínio racial de Cornel West em Race Matters Nova York Vantage 1993 8 classes a aceitarem qualquer status que lhes fosse imposto Sócrates explicou o mito a Gláucon nos seguintes termos Cidadãos diremos a eles em nossa história vocês são irmãos mas Deus os moldou de maneira diferente Alguns de vocês têm o poder de comando e na composição destes misturaram ouro portanto também têm a maior honra outros ele fez de prata para ser auxiliares outros novamente que devem ser lavradores e artesãos Ele compôs de bronze e ferro e as espécies geralmente serão preservadas nas crianças Um Oráculo diz que quando um homem de bronze ou ferro proteger o Estado ele será destruído Tal é a história existe alguma possibilidade de fazer nossos cidadãos acreditarem nela17 Gláucon responde Não na geração atual não há como realizar isso mas seus filhos podem ser levados a acreditar na história e os filhos de seus filhos e a posteridade depois deles18 Gláucon estava enganado sobre a aceitação do mito só poder ser alcançada na geração seguinte o mito daqueles nascidos para governar já estava em operação mães irmãs e filhas mulheres já foram excluídas da consideração em qualquer desses grupamentos Em um contexto em que as pessoas eram classificadas de acordo com a associação com certos metais as mulheres eram por assim dizer feitas de madeira e portanto nem sequer eram consideradas Stephen Gould um historiador da ciência chama de profecia à observação de Gláucon uma vez que a história mostra que a narrativa de Sócrates foi promulgada e aceita pelas gerações subsequentes ibid A questão no entanto é que mesmo nos tempos de Gláucon era mais do que uma profecia já era uma prática social excluir mulheres das classes de governantes Paradoxalmente no pensamento europeu apesar do fato de que a sociedade era vista como habitada por corpos apenas as mulheres eram percebidas como corporificadas os homens não tinham corpos eram mentes caminhantes Duas categorias sociais que emanaram dessa construção foram o homem da razão o pensador e a mulher do corpo e elas foram construídas de maneira oposicional A ideia de que o homem de razão frequentemente tinha a mulher do corpo em sua mente nitidamente não era bem recebida Como sugere a História da Sexualidade de 17 Platão A República III 415 ac N da T 18 Platão A República III 415 d Citado em Stephen Gould The Mismeasure of Man Nova York Norton 1981 p 19 9 Michel Foucault no entanto o homem de ideias frequentemente tinha a mulher e outros corpos em sua mente19 Nos últimos tempos graças em parte à pesquisa feminista o corpo está começando a receber a atenção que merece como local e como material para a explicação da história e do pensamento europeus20 A contribuição característica do discurso feminista para nossa compreensão das sociedades ocidentais é que ele explicita a natureza generificada e portanto corporificada e androcêntrica de todas as instituições e discursos ocidentais As lentes feministas desnudam o homem de ideias para todos verem Mesmo os discursos como os da ciência considerados objetivos foram mostrados como masculinamente tendenciosos21 A extensão em que o corpo está implicado na construção de categorias e epistemologias sociopolíticas não pode ser exagerada Como observado anteriormente Dorothy Smith escreveu que nas sociedades ocidentais o corpo de um homem confere credibilidade a seus enunciados enquanto o corpo de uma mulher o afasta dos dela22 Escrevendo sobre a construção da masculinidade R W Connell observa que o corpo é inescapável nessa construção e que uma fisicalidade gritante fundamenta as categorias 19 Uma antologia recente questiona a auto representação dominante dos judeus como o Povo do Livro e no processo tenta documentar uma imagem relativamente menos comum dos judeus como o Povo do Corpo O editor do volume faz um comentário interessante sobre O pensador judeu e seu livro Ele comenta que o livro do pensador evoca a sabedoria e a busca pelo conhecimento Dessa forma a imagem do judeu que é sempre masculino debruçada sobre um livro é sempre enganosa Ele parece estar elevado na busca espiritual Mas se pudéssemos espiar por cima dos ombros e ver o que seu texto diz ele poderia de fato estar lendo sobre assuntos tão eróticos como que posição adotar durante a relação sexual O que está acontecendo na cabeça do pensador ou mais interessantemente em seu lombo Howard ElbergSchwartz Povo do Corpo introdução a People of the Body Jews and Judaism from an Embodied Perspective Albany State University of New York Press 1992 A natureza somatocêntrica dos discursos europeus sugere que a expressão Povo do Corpo pode ter um alcance mais amplo 20 A atenção ao corpo também não foi um mar de rosas no feminismo Consultar Elizabeth Grosz Volatile Bodies Toward a Corporeal Feminism Bloomington Indiana University Press 1994 21 Virginia Woolf resumiu sucintamente a posição feminista A ciência parece não ser assexuada ela é um homem também um pai infectado citado em Hillary Rose Hand Brain and Heart A Feminist Epistemology for the Natural Sciences Signs 9 n1 1983 7390 Consultar também Sandra Harding The Science Question in Feminism Ithaca NY Cornell University Press 1986 Sandra Harding ed The Racial Economy of Science Bloomington Indiana University Press 1993 Donna J Haraway Primate Visions Gender Race and Nature in the World of Modern Science Nova York Routledge 1989 e Margaret Wertheim Pythagoras Trousers God Physics and the Gender Wars Nova York Random House 1995 22 Dorothy E Smith The Everyday World as Problematic A Feminist Sociology Boston Northeastern University Press 1987 p 30 10 de gênero na cosmovisão ocidental Em nossa cultura ocidental pelo menos a sensação física de masculinidade e feminilidade é central para a interpretação cultural do gênero O gênero masculino é entre outras coisas uma certa sensação na pele certas formas e tensões musculares certas posturas e modos de se movimentar certas possibilidades no sexo23 Desde as pessoas da antiguidade até as da modernidade o gênero tem sido uma categoria fundamental sobre a qual as categorias sociais foram erguidas Assim o gênero foi ontologicamente conceituado A categoria cidadão que tem sido a pedra angular de grande parte da teoria política ocidental era masculina apesar das muito aclamadas tradições democráticas ocidentais24 Elucidando a categorização dos sexos feita por Aristóteles Elizabeth Spelman escreve Uma mulher é uma fêmea que é livre um homem é um macho que é um cidadão25 As mulheres foram excluídas da categoria de cidadãos porque a posse do pênis Ibid era uma das qualificações para a cidadania Lorna Schiebinger observa em um estudo sobre as origens da ciência moderna e a exclusão das mulheres das instituições científicas europeias que as diferenças entre os dois sexos eram reflexos de um conjunto de princípios dualistas que penetravam o cosmos e os corpos de homens e mulheres26 Diferenças e hierarquias portanto estão consagradas nos corpos e os corpos consagram as diferenças e a hierarquia Assim dualismos como naturezacultura públicoprivado e visívelinvisível são variações sobre o tema dos corpos masculinosfemininos hierarquicamente ordenados diferencialmente colocados em relação ao poder e espacialmente distanciados um do outro27 No transcurso da história ocidental as justificativas para a elaboração das categorias homem e mulher não permaneceram as mesmas Pelo contrário elas 23 R W Connell Masculinities Londres Polity Press 1995 p 53 24 Susan Okin Women in Western Political Thought Princeton NJ Princeton University Press 1979 Elizabeth Spelman Inessential Woman Problems of Exclusion in Feminist Thought Boston Beacon Press 1988 25 Citado em Laqueur Making Sex p 54 26 Lorna Schiebinger The Mind Has No Sex Women in the Origins of Modern Science Cambridge Mass Harvard University Press 1989 p 162 27 Para a descrição de alguns desses dualismos consultar Hélène Cixous em New French Feminisms An Anthology editado por Elaine Marks e Isabelle de Courtivron Amherst Mass University of Massachusetts Press 1980 11 foram dinâmicas Embora as fronteiras estejam se deslocando e o conteúdo de cada categoria possa mudar as duas categorias permaneceram hierárquicas e em oposição binária Para Stephen Gould a justificativa para classificar os grupos pelo valor inato variou com os fluxos da história ocidental Platão fiouse na dialética a igreja sobre o dogma Nos últimos dois séculos as alegações científicas tornaramse o principal agente de validação do mito de Platão28 A constante nessa narrativa ocidental é a centralidade do corpo dois corpos à mostra dois sexos duas categorias persistentemente vistas uma em relação à outra Essa narrativa trata da elaboração inabalável do corpo como o local e causa de diferenças e hierarquias na sociedade No Ocidente desde que a questão seja a diferença e a hierarquia social o corpo é constantemente colocado posicionado exposto e reexposto como sua causa A sociedade então é vista como um reflexo preciso do legado genético aqueles com uma biologia superior são inevitavelmente aqueles em posições sociais superiores Nenhuma diferença é elaborada sem corpos posicionados hierarquicamente Em seu livro Making Sex Thomas Laqueur traz uma história ricamente contextualizada da construção do sexo desde a Grécia clássica até o período contemporâneo observando as mudanças nos símbolos e as transformações nos significados O ponto no entanto é a centralidade e a persistência do corpo na construção de categorias sociais Em vista dessa história a afirmação de Freud de que a anatomia é destino não foi original ou excepcional ela foi apenas mais explícita que as de muitos de seus predecessores A ordem social e a biologia naturais ou construídas A ideia de que o gênero é socialmente construído de que as diferenças entre machos e fêmeas devem estar localizadas em práticas sociais e não em fatos biológicos foi uma compreensão importante que emergiu no início da pesquisa feminista da segunda onda Essa descoberta foi compreensivelmente considerada radical em uma cultura em que a diferença particularmente a diferença de gênero foi sempre articulada como natural e portanto biologicamente determinada O gênero como construção social tornouse o pilar de muitos discursos feministas A noção foi 28 Gould Mismeasure of Man p 20 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE EDUCAÇÃO CURSO DE PEDAGOGIA MODALIDADE EAD Disciplina FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EAD08035 Coordenadorao LILIAN DO VALLE AVALIAÇÃO A DISTÂNCIA 2 20242 1 Faça um breve resumo do Texto 3 assinalando as ideias centrais MÍNIMO DE 10 LINHAS 20 PONTOS 2 A partir da sua experiência no espaço escolar seja como alune ou trabalhando na educação apresente um caso que ilustre a ideia central identificada no Texto 3 É fundamental para a resposta relacionar o caso apresentado com o texto em questão 30 PONTOS 3 Apresente aqui em tópicos quais são os assuntos discutidos no Texto 4 20 PONTOS 4 A partir da sua resposta na Questão 3 escolha um dos tópicos que você achou mais importante e apresente uma análise sobre como essa discussão pode contribuir para a sua formação no curso de Pedagogia e para a sua visão e questionamentos sobre a sua realidade e a do nosso país Apresente ao final um exemplo para ilustrar sua resposta 30 PONTOS Mas atenção A avaliação examinará o desenvolvimento e aprofundamento do texto aqui cobrado bem como a apresentação e explicações das ideias centrais assinaladas na resposta Respostas curtas sem justificativas não serão bem avaliadas As respostas não deverão ser enviadas por anexo mas sim através do espaço disponível na atividade Leia o aviso sobre cópias e plágio disponível na nossa página inicial atentandose ao uso correto de citações na elaboração da resposta caso ache necessário citar o texto ou fontes externas 1 Faça um breve resumo do Texto 3 assinalando as ideias centrais O texto de Oyèrónkép Oyëwùmí intitulado Visualizando o Corpo Teorias Ocidentais e Sujeitos Africanos aborda criticamente a forma como o corpo é entendido e usado como uma base para diferenças e hierarquias sociais no pensamento ocidental Oyëwùmí explora como na tradição ocidental o corpo é visto tanto como um símbolo físico quanto como uma metáfora social onde características físicas como gênero e raça são interpretadas como indicadores de posição social e valor A autora analisa a noção de degeneração na Europa do século XIX destacando como certos grupos por serem vistos como biologicamente inferiores eram socialmente marginalizados Ela também aponta a centralidade da visão como o principal sentido no Ocidente o que contribui para a distinção de corpos por características visíveis como cor de pele e estrutura física Além disso Oyëwùmí critica o dualismo ocidental entre corpo e mente que historicamente situou homens como seres racionais e mulheres como seres corporificados destacando a marginalização das mulheres e outros grupos sob essa lógica Ela sugere que o conceito de cosmopercepção poderia melhor representar culturas que valorizam uma variedade de sentidos na construção da realidade como a cultura iorubá Por fim o texto questiona o determinismo biológico e ressalta a importância da visão feminista na desconstrução das categorias de gênero demonstrando que essas são socialmente construídas e não biologicamente definidas Oyëwùmí nos convida a refletir sobre o papel do corpo na construção de identidades e a considerar abordagens não ocidentais para o entendimento da sociedade 2 A partir da sua experiência no espaço escolar seja como alune ou trabalhando na educação apresente um caso que ilustre a ideia central identificada no Texto 3 É fundamental para a resposta relacionar o caso apresentado com o texto em questão Um caso que ilustra a ideia central do texto de Oyèrónkép Oyëwùmí aconteceu durante minha experiência como estudante em uma escola pública Lembrome de uma colega que por ser uma jovem indígena enfrentava uma série de estereótipos e preconceitos por parte de alunos e até mesmo de alguns professores Sua aparência com características físicas que claramente refletiam sua origem indígena era frequentemente alvo de comentários que subestimavam suas capacidades intelectuais e seu potencial acadêmico Essa situação reflete o conceito discutido por Oyěwùmí sobre como no Ocidente o corpo é frequentemente usado como um ponto de diferenciação social e de exclusão A ideia de que certas características físicas correspondem a uma predisposição para certos papéis sociais ou para limitações intelectuais é uma prática que está embutida nas atitudes e suposições culturais Na escola essa colega era constantemente vista como uma pessoa menos capaz sendo estigmatizada por traços que segundo a lógica discriminatória a distinguia dos demais colegas não só por questões físicas mas pelo que o corpo dela simbolizava no imaginário social Por exemplo quando ela tinha bons resultados em disciplinas como matemática e ciências alguns colegas reagiam com surpresa e até certo desdém como se sua aparência fosse incompatível com o sucesso nessas áreas Esse comportamento revela um pensamento enraizado que liga a inteligência e o desempenho acadêmico a estereótipos raciais e físicos algo que Oyěwùmí explora ao abordar o conceito de raciocínio corporal Além disso alguns professores tinham baixas expectativas em relação ao seu desempenho acadêmico Embora nunca dissessem isso explicitamente suas ações revelavam um preconceito sutil a jovem era raramente encorajada a participar de competições acadêmicas ou a se destacar em projetos escolares Isso exemplifica a maneira como o sistema educacional assim como outras estruturas sociais ocidentais mencionadas por Oyěwùmí tende a subestimar ou ignorar as capacidades dos alunos cujas aparências se afastam do que é considerado o padrão Para abordar essa situação a escola eventualmente promoveu atividades de conscientização sobre as culturas indígenas e o respeito à diversidade Esse processo foi um passo importante para ajudar os estudantes a entenderem que aparência e etnia não determinam habilidades ou potencial e que o ambiente escolar deve valorizar todos os indivíduos de maneira justa e igualitária Esse caso exemplifica a necessidade de que o sistema educacional desafie e reveja constantemente esses preconceitos visuais e corporificados para que a sociedade possa avançar em direção a uma visão menos biologicamente determinista e mais inclusiva como sugerido no texto de Oyěwùmí 3 Apresente aqui em tópicos quais são os assuntos discutidos no Texto 4 O autor aborda temas centrais ligados ao Antropoceno e à crise ecológica propondo uma reflexão profunda sobre como a humanidade deve se reposicionar politicamente diante das mudanças climáticas e das transformações globais como I A Crise Climática e a Negação Científica Latour argumenta que para muitas elites a negação das mudanças climáticas serve como uma estratégia deliberada para manter seu status e confundir as classes populares sobre a gravidade dos problemas ambientais A ideia é que ao negar a ciência essas elites podem continuar usufruindo de recursos finitos enquanto criam comunidades muradas para si um conceito que se reflete na criação de bolhas de segurança que isolam essas elites do restante da sociedade II Mudança de Paradigma Do Global ao Terrestre O autor propõe a transição do pensamento global para o terrestre Ele sugere que a ciência e a política se distanciaram da realidade terrestre focando no global e deixando de lado os saberes locais e a conexão com a Terra Latour questiona a visão de Sirius uma perspectiva exógena e distanciada da realidade que ele considera insuficiente para lidar com as crises ambientais Ele propõe uma reorientação para o atrator terrestre onde as ciências e políticas sejam mais integradas e conectadas com as necessidades do planeta III O Acordo de Paris e a Nova Percepção de Limites Latour descreve o impacto psicológico do Acordo de Paris de 2015 sobre os signatários que perceberam que a continuação de seus planos de desenvolvimento como previsto exigiria recursos de múltiplos planetas Isso levou à constatação de que é necessário repensar os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade pois o planeta não comporta o atual modelo globalizado de consumo e expansão IV A Crise Migratória e a Perda de Terra A obra trata da crise migratória como uma manifestação visível da crise do Antropoceno na qual milhões de pessoas estão em busca de territórios habitáveis devido a guerras desastres naturais e o colapso ambiental Latour argumenta que todos somos de certa forma migrantes no novo contexto planetário à medida que enfrentamos a falta de solo um lugar seguro e estável para viver Esse fenômeno atinge tanto os migrantes externos quanto os migrantes internos aqueles que mesmo permanecendo no mesmo lugar veem sua segurança e seus modos de vida ameaçados V Reconfiguração Política para o Antropoceno Latour defende que a questão principal que nos divide hoje não é mais a oposição entre esquerda e direita mas sim entre aqueles que aceitam a realidade das mudanças climáticas e buscam uma forma de aterrar ou seja de encontrar um novo solo comum e sustentável e aqueles que preferem continuar ignorando esses problemas Ele enfatiza a necessidade de um novo modelo de ação política baseado em um entendimento coletivo da Terra como um espaço comum e interdependente onde todas as partes humanas e nãohumanas compartilham um destino coletivo 4 A partir da sua resposta na Questão 3 escolha um dos tópicos que você achou mais importante e apresente uma análise sobre como essa discussão pode contribuir para a sua formação no curso de Pedagogia e para a sua visão e questionamentos sobre a sua realidade e a do nosso país Apresente ao final um exemplo para ilustrar sua resposta Entre os tópicos discutidos por Bruno Latour o que mais ressoa para a minha formação no curso de Pedagogia é a ideia de Reconfiguração Política para o Antropoceno Essa perspectiva questiona profundamente como entendemos a educação em tempos de crise ambiental e mudança climática Latour sugere que o verdadeiro divisor de águas atualmente não é entre esquerda e direita mas sim entre aqueles que aceitam a realidade ambiental e aqueles que preferem ignorála No contexto da educação isso traz à tona a necessidade de um ensino mais conectado com a realidade ecológica e com a formação de cidadãos que compreendam seu papel e responsabilidade no mundo Ao adotar essa reconfiguração a formação pedagógica pode explorar um currículo que vá além dos conceitos tradicionais incluindo discussões sobre sustentabilidade ética ambiental e a importância de uma cidadania global responsável Esse tipo de abordagem é fundamental no Brasil onde os efeitos das mudanças climáticas já afetam inúmeras comunidades principalmente as mais vulneráveis O educador pode ser um agente de conscientização preparando os alunos para enfrentar esses desafios e tomar decisões que considerem o impacto ecológico de suas ações Latour também nos faz questionar como a educação deve se alinhar a essa nova realidade No Brasil onde os recursos naturais e a biodiversidade são fundamentais é imprescindível que o ensino se aproxime das questões ambientais e do cuidado com a casa comum Como futuro pedagogo esse tópico me incentiva a refletir sobre práticas pedagógicas que promovam uma visão mais holística e crítica capaz de despertar nos alunos uma compreensão profunda sobre a interdependência entre sociedade e natureza Exemplo Em um projeto escolar por exemplo os alunos poderiam desenvolver atividades de educação ambiental no próprio bairro identificando problemas como poluição falta de áreas verdes e descarte inadequado de lixo A partir dessas observações poderiam elaborar e propor ações sustentáveis como a criação de hortas comunitárias ou campanhas de conscientização para reciclagem Essas atividades concretas incentivam o engajamento dos alunos em questões locais enquanto promovem uma educação voltada para o aterrar que Latour propõe enraizandoos na realidade de sua comunidade e em seu papel de agentes transformadores