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Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB ISSN 23176989 TERROR MARFIM E BORRACHA IMPERIALISMO E RESISTÊNCIA NO ESTADO LIVRE DO CONGO 1879 1908 Diego Lunardelli1 Resumo O objetivo do presente artigo é analisar de que forma se deu o estabelecimento do Estado Livre do Congo procurando observar além da política colonial europeia os impactos do imperialismo sobre os povos africanos que habitavam a bacia hidrográfica do Congo desde as primeiras expedições empregadas no início do último quarto do século XIX até o fim da primeira década do século XX As reflexões sobre o processo de instituição e consolidação do Estado Livre do Congo serão realizadas através de uma discussão bibliográfica envolvendo fontes de origens distintas a fim de obter acesso a diversas perspectivas na condução dissertativa revelando que o processo de colonização desta região não foi simples rápido ou pleno havendo oposição sistemática por parte das populações autóctones Palavraschave Imperialismo Resistência Domínio Colonial 1 Graduando do curso de História na Universidade Federal de Santa Catarina Email dihego122gmailcom Recebido em 27 de janeiro de 2018 e aprovado para publicação em 04 de agosto de 2018 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 101 Introdução A partir do último quarto do século XIX o continente africano foi palco de intensas disputas no campo geopolítico protagonizadas por potências capitalistas europeias Além das nações com envergadura política e econômica suficientes para se colocar na dianteira do processo de exploração do continente africano crescia entre os países com a economia em desenvolvimento o sentimento de que a posse de colônias seria o caminho para o progresso Um episódio marcante dessa marcha pela colonização do continente africano foi a ocupação europeia sobre a região da bacia hidrográfica do rio Congo uma história repleta de reviravoltas no campo da articulação política e diplomática Vamos analisar neste artigo nuances desse processo de colonização enfatizando o caráter cruel da exploração colonial e o seu impacto sobre as populações autóctones Inicialmente serão contextualizados os primeiros contatos de povos africanos especificamente habitantes da foz do rio Congo com relação aos europeus a fim de colocarmos em pauta os impactos desses contatos précoloniais nas sociedades nativas Em seguida apontaremos como se deu a investida europeia sobre o território africano na primeira metade da década de 1880 nesse momento já havendo um interesse das nações europeias quanto ao domínio e exploração econômica daquela região Com a conferência de Berlim poderemos analisar como funcionou o processo de partilha da África em especial a formação do Estado Livre do Congo com seus atores e suas contradições A partir de 1885 com o estabelecimento de um estado independente da ação das potências europeias lançaremos mão de algumas perspectivas analíticas quanto ao sistema colonial imposto nesse recorte temporal destacando em primazia os mecanismos de controle social com ênfase na violência e no terror que envolvia as relações de produção e transferência de riquezas Não menos necessário está disposto nesse artigo o exame das especificidades locais e campos autônomos das sociedades subjugadas no sentido de buscar entender o quanto da realidade vivida naquele momento é de origem endógena e não necessariamente exógena Por fim trataremos das diversas manifestações de resistência existentes no seio das populações autóctones o papel das lideranças locais nesse processo desde o fomento de insurreições que duraram anos até greves morosidade no trabalho e deslocamentos migratórios a fim de fugir do domínio e opressão colonial Da mesma forma será abordada a relação dicotômica entre colonizado e colonizador num ambiente onde coabitam projetos civilizadores e massacres filantropia e exploração ou seja num cenário em que ao mesmo tempo se Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 102 aponta um interesse pelo pitoresco por parte do colonizador mas também se revela a face mais cruel da exploração colonial A metodologia empregada neste artigo será uma discussão bibliográfica que tem como ponto norteador a multidisciplinaridade das obras consultadas e as diferentes perspectivas dos autores com relação à problemática apresentada Primeiramente será utilizado o sétimo volume da coleção História Geral da África denominado África sob dominação colonial 18801935 obra organizada pelo professor Albert Adu Boahen2 com o intuito de observarmos aspectos conjunturais relativos aos avanços do imperialismo europeu sobre o continente africano no período que permeou a instituição do Estado Livre do Congo e principalmente as manifestações de resistência das populações autóctones diante este processo No sentido de buscar uma fonte com base materialista mais específica para análise será utilizada uma dissertação apresentada ao programa de pósgraduação em História econômica do departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a seguinte nomenclatura Estada Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 1885 1908 do autor Martinho Camargo Milani3 Em seguida será destacada uma obra que trabalhará com elementos intrínsecos a vivência política do Rei Leopoldo II e principalmente evidenciar o caráter violento de sua dominação sobre o território Congolês O Fantasma do Rei Leopoldo de Adam Hochschild revela de forma objetiva as atrocidades cometidas no processo de exploração colonial do Estado Livre do Congo A obra trata além da violência sistemática empregada no processo de dominação colonial nuances e ricos detalhes da personalidade dos atores principais desse processo algo muito interessante no sentido de entender as motivações do Rei Leopoldo II em sua empreitada colonial Com o intuito de tratar com mais especificidade a questão geopolítica intrínseca a problemática abordada no presente artigo será utilizada a obra Dividir Para Dominar do autor H L Wesseling4 que nos fornece uma ótima análise de conjuntura quanto à política de partilha da África no fim do século XIX Já a obra Congo A Guerra Mundial Africana do autor Igor Castellano da Silva5 nos traz de forma sintetizada aspectos pertinentes a formação social das populações africanas na bacia hidrográfica 2 Historiador e político ganês Acadêmico da Universidade de Gana entre 1959 e 1990 3 Doutor em história econômica pela Universidade de São Paulo 4 Doutor em história pela Universidade de Leiden sendo titular da cadeira de história contemporânea nesta mesma instituição entre 1973 e 2002 5 Professor Adjunto do departamento de economia e relações internacionais e do programa de pós graduação em economia e desenvolvimento da Universidade Federal de Santa Maria doutor em estudos estratégicos internacionais pela Universidade de Johannesburg Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 103 do Congo buscando entender inclusive como as manifestações de resistência ao domínio colonial dialogam com a própria constituição das relações de poder e organização social desses povos Por fim mas não menos importante utilizaremos o terceiro capítulo da obra de Eric Williams6 Capitalismo e Escravidão para contextualizarmos de que forma o impacto dos primeiros contatos de europeus com os povos autóctones da foz do rio Congo permitiu a instalação de uma rede de tráfico de escravos que se perpetuou por séculos e desestabilizou profundamente aquelas sociedades Os primeiros contatos Como pode ele ser um bom homem se não veio comerciar se não vemos seus pés se anda o tempo todo coberto de roupas ao contrário de toda a gente Não existe algo de muito misterioso a seu respeito talvez malvado quem sabe seja um mágico de toda maneira é melhor deixalo em paz e não perturbálo7 Esta é uma anotação retirada do diário de Stanley8 descrevendo o relato de um indígena africano9 fazendo referência ao contato com sua expedição nas entranhas da África Central em setembro de 1876 Nesse relato podemos enfatizar o choque cultural que decorre do contato direto entre europeus e indígenas destacando porém que a relação comercial naquele ambiente era algo habitual revelandose um elemento comum e usual naquele universo Em 1482 houve um primeiro contato europeu com essa região quando navegantes portugueses chegam à foz do rio Congo o seu objetivo era o comércio Em pouco tempo os portugueses já haviam instalado missionários em menos de dez anos a catequese era uma prática muito presente naquela região tanto que em 1491 o futuro rei do Kongo que adotaria o nome de Afonso I em seu reinado 1506 1546 6 Doutor em história na Universidade de Oxford um dos mais influentes historiadores com referência à escravidão moderna e tráfico de escravos no atlântico 7 STANLEY apud HOCHSCHILD Adam O Fantasma do Rei Leopoldo Uma história de cobiça terror e heroísmo na África colonial São Paulo Companhia das Letras 1999 p 6364 8 Henry Morton Stanley jornalista e explorador que conquistou fama em incursões no continente africano na segunda metade do século XIX Protagonista na expedição de resgate ao explorador britânico Dr Livingstone e na formação do Estado Livre do Congo 9 Nos primeiros mil anos de nosso calendário a região da bacia hidrográfica do Congo abrigou diversas civilizações originárias do tronco linguístico Bantu podemos destacar entre elas a dos Lubas os Lundas os Lelés os Tios os Bakubas ou Kubas e a maior de todas o reino do Kongo MILANI 2011 p89 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 104 eleva o cristianismo a religião oficial do Estado10 Porém foi no primeiro quarto do século XVI que surgiram os primeiros registros de tráfico de escravos na região O tráfico de escravos na costa ocidental chegou ao seu auge no século XVIII a região da bacia hidrográfica do Congo forneceu grande parte dos escravos para a Europa nesse período Ainda no século XIX mesmo com a deterioração moral da estrutura escravista no mundo ocidental esta região era responsável por um grande veio de escravos permanecendo assim até o início do último quarto deste mesmo século É muito importante colocar que os lucros provenientes desse processo para os estados europeus foram altíssimos e financiaram a industrialização de diversos deles posteriormente se apoderando de um capital moral voltado à abdicação dessa estrutura que lhes foi tão útil no passado Esse processo de acumulação de capitais é apontado nos estudos de Eric Willians demonstrando na obra Capitalismo e Escravidão a íntima ligação entre o desenvolvimento industrial europeu com o tráfico de escravos africanos No comércio marítimo triangular a Inglaterra bem como a França e a América colonial fornecia os navios e os produtos de exportação a África a mercadoria humana as fazendas as matériasprimas coloniais Assim o comércio triangular deu triplo estímulo à indústria britânica Os negros eram comprados com artigos britânicos transportados para as fazendas eles produziam açúcar algodão anil melaço e outros produtos tropicais cujo processamento criava novas indústrias na Inglaterra e enquanto isso a manutenção dos negros e seus donos nas fazendas forneciam mais um mercado à indústria britânica Os lucros obtidos forneceram um dos principais fluxos de acumulação do capital que na Inglaterra financiou a Revolução Industrial11 Os europeus não foram os únicos a acumular riquezas com o tráfico de escravos na região da bacia do Congo pela costa oriental houve uma grande malha comercial que se construiu em torno dessa atividade econômica desta vez impulsionada por árabes12 No fim do século XVIII já havia uma tendência a diminuição do tráfico de escravos devido a nova política econômica adotada pela Inglaterra13 pressionando nações vinculadas ao tráfico a abandonarem essa atividade Essa conjuntura gerou uma 10 MILANI Martinho C Capítulo 2 O Espaço In Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 2011 Dissertação Mestrado em História Econômica Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2011 77120 p98 11 WILLIAMS Eric O comércio britânico e o comércio marítimo triangular In Capitalismo e Escravidão São Paulo Companhia da Letras 2012 p 90 12 Segundo Wesseling os mercadores de escravos que eram chamados de árabes hoje são conhecidos como suaíles africanos orientais de uma área nominalmente sob controle do sultão de Zanzibar 2008 p 84 Ver também WESSELING H L O Congo e a criação do estado livre 1882 1885 In Dividir Para Dominar A Partilha da África 18801914 Rio de Janeiro Editora UFRJ Editora Revan 2ª edição 2008 p 83147 13 Ver também WILLIAMS Eric A nova ordem industrial In Capitalismo e escravidão São Paulo Companhia das Letras 2012 p 192214 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 105 diminuição no tráfico de escravos na costa ocidental do continente africano porém na costa oriental a relação de compra e venda de seres humanos destinadas ao trabalho compulsório ganhou força conforme destaca Milani Em 1860 a região de comércio de escravos dos árabes ia do LagoTanganica até Loualaba o alto Congo ano em que fundaram a cidade de Nyangwe que por muito tempo foi a capital do Congo Foram mais de 20 anos para os traficantes chegarem a Stanleyville Calculase em cerca de 30 a 50 mil escravos ao ano saindo do Congo nesta época14 Se por um lado o tráfico de escravos esvaiu a costa ocidental da África central por mais de três séculos desestabilizando a constituição econômica e social dos estados africanos já formados ou em formação por outro lado no momento em que os olhares do imperialismo europeu se voltaram novamente para aquela região na segunda metade do século XIX existia ainda um intenso comercio de escravos na face oriental do continente Questão duplamente terrível aos povos autóctones primeiro a dificuldade de consolidação econômica devido a constante fragmentação política e social causada pelo tráfico de escravos e em segundo lugar pela justificativa europeia de ocupação daquele território para combater justamente a iniciativa árabe de perpetuar o tráfico na costa oriental Os efeitos práticos do tráfico de escravos nesta região foram primeiramente o declínio populacional devastador observando que esta diminuição populacional drástica desorganizou a economia local até então diversificada com o foco no comércio intenso transcontinental e entre as regiões vizinhas15 Quando Stanley em 1879 enviado pelo rei Leopoldo II16 chegou a região da bacia do Congo foi esse quadro que encontrou economia desorganizada fragmentação política e religiosa gerando constantes conflitos étnicos muitas sociedades sem condição de se reestruturar devido a catástrofe demográfica imposta por séculos de migração compulsória essa era a fatia do magnífico bolo africano17 que o rei Leopoldo II tanto almejava A medida da ganância Aproveito as vantagens de uma oportunidade segura para lhe enviar umas poucas linhas em meu péssimo inglês É indispensável que o senhor adquira o máximo de terras que puder obter e que coloque sucessivamente sob 14 MILANI 2011 p 104 15 Idem Ibidem p 102 16 Rei Leopoldo II monarca belga de linhagem alemã Seu reinado foi de 1865 a 1908 17 Expressão presente na obra O Fantasma do Rei Leopoldo de Adam Hochschild fazendo alusão a como o monarca se referia ao continente africano Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 106 suserania tão logo seja possível e sem perder um minuto todos os chefes tribais da embocadura do Congo até Stanley Falls18 Este é um fragmento de uma das diversas cartas enviadas pelo Rei Leopoldo II a Stanley durante os anos em que as suas expedições demarcaram o território no centro da África território esse que futuramente seria o Estado Livre do Congo A avidez pelo controle territorial foi uma marca da política imperialista europeia no último quarto do século XIX era uma corrida que o monarca belga não hesitou em participar Dentre as nações interessadas em explorar o território africano neste momento podemos destacar principalmente Inglaterra França e Portugal Observando a configuração geopolítica europeia do período é interessante pontuar a ausência do estado belga nesse contexto levando em consideração que muitas associações e comitês19 voltados à exploração geográfica daquele território viam na política do monarca belga uma referência no que diz respeito ao fomento da presença europeia no continente africano Na verdade o estado belga não estava interessado naquele momento em fixar presença no território africano20 pois demandava receitas à sua manutenção porém o rei Leopoldo II teria sim muito interesse em adquirir21 colônias certo de que este era o caminho para o desenvolvimento Leopoldo tinha como a raposa dado mais um passo Sabia depois de muitas tentativas de comprar uma colônia que não havia nenhuma a venda teria de conquistála Mas fazer isso abertamente seria provocar tanto o povo belga quanto as maiores potências europeias Se quisesse se apoderar de alguma coisa na África teria de convencer a todos de que seus interesses eram puramente altruísticos22 Assim fica claro que a estratégia do monarca belga era voltada a construção de um discurso filantropo com relação à sua presença no continente africano O rei tinha ciência das dificuldades que enfrentaria para conseguir reconhecimento à tutela sobre o território almejado na bacia do Congo portanto a utilização de prerrogativas ligadas ao trono belga tornouo em pouco tempo uma espécie de grande ativista dos direitos 18 REI LEOPOLDO II apud HOCHSCHILD 1999 p 80 19 Organizações criadas com objetivos filantrópicos entre eles o envio de ajuda médica e combate ao tráfico de escravos Mais tarde se observou a verdadeira finalidade dessas instituições as distanciando desse viés humanitário Destaque para a Associação Internacional Africana e Associação Internacional do Congo esta última seria a entidade gestora do Estado Livre do Congo entre 1885 e 1908 20 Depois de intensas revoltas em busca de independência política o estado belga se forma em ruptura ao estado holandês em 1830 O sistema político era parlamentarista o que gerava em muitos momentos discordâncias com relação a corte quanto à política externa do país 21 Adquirir através de título de compra Segundo Hochschild o rei Leopoldo II passou boa parte de sua vida procurando uma colônia que estivesse à venda O tempo vai passando e as práticas se refinando 22 HOCHSCHILD Adam O Fantasma do Rei Leopoldo Uma história de cobiça terror e heroísmo na África colonial São Paulo Companhia das Letras 1999 p56 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 107 humanos inclusive o visconde de Lesseps entre outros declarou que os planos de Leopoldo eram o maior trabalho humanitário da época23 A exploração territorial na região da bacia do Congo estava avançando no início da década de 1880 principalmente em duas frentes oficiais franceses e expedições enviadas pelo monarca belga Estes adentravam o território da África central conforme estabeleciam relações com as lideranças locais como coloca Hochschild Leopoldo e Stanley sabiam que já havia outros europeus bisbilhotando por lá Quem mais preocupava era o conde Pierre Sarvognan de Brazza24 nesse meio tempo Leopoldo contratou um estudioso de Oxford Sir Travers Twiss para lhe fornecer um parecer jurídico que sustentasse o direito de companhias privadas agirem como países soberanos na assinatura de tratados com os chefes nativos Stanley fora instruído a subir e descer o rio fazendo justamente isso Os chefes entregaram suas terras a Leopoldo e o fizeram por uma ninharia Os conquistadores da África assim como do Oeste americano estavam descobrindo que o álcool era quase tão eficiente quanto a metralhadora25 Portugueses possuíam uma antiga relação com a região da foz do rio Congo relação esta que lhes motivava a requisitar um direito prioritário sobre aquele território A questão é que até 1882 as discussões em torno do controle territorial na África central se concentravam em boa parte entre Portugal e Inglaterra reflexo dos séculos de relações comerciais desenvolvidas na costa ocidental da África Obviamente que a política externa portuguesa não era nem de longe páreo para o expansionismo imperialista britânico observando inclusive que a política econômica do estado português era vista como atrasada26 e o seu vínculo com o tráfico de escravos um diagnóstico de debilidade moral Os portugueses não eram muito populares Seu apogeu fora durante o tráfico de escravos e sua atitude displicente em abolilo rendeulhes uma péssima fama na abolicionista GrãBretanha Podiase resumir a reputação de Portugal no século XIX em duas palavras proteção e corrupção27 Apesar de todos esses problemas que inviabilizaram em muito a relação entre Portugal e Inglaterra havia algo mais importante a se resolver na perspectiva britânica o que fariam para controlar a projeção expansionista francesa sobre a África Nesse sentido houve uma tratativa entre os dois países no fim do ano de 1882 a fim de reconhecer o direito do estado português sobre parte do território da África central 23 Idem ibidem p 56 24 Oficial da marinha francesa explorador e administrador colonial 25 HOCHSCHILD 1999 p 81 26 A política econômica amplamente difundida nesse momento era a economia de livre mercado que trata da abertura dos mercados como condição de prosperidade e desenvolvimento pontuando a não interferência estatal no mercado 27 WESSELING 2008 p 114 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 108 Após muito embargo foi assinado somente dois anos depois gerando reações em larga escala conforme coloca Wesseling As câmaras de comércio de Manchester e outras cidades britânicas deslancharam uma campanha contra esse ataque ao nosso comércio e indústria e os círculos eclesiásticos e humanitários como a União Batista e a Sociedade das Senhoras Amigas dos Negros tomaram partido delas Dispensável dizer Leopoldo também não ficou quieto enquanto a França e a Alemanha viramse unidas na oposição ao tratado28 A política imperialista O chanceler alemão Otto Von Bismarck29 mantinha a essa altura certa oposição à ideia de a nação alemã possuir colônias alegando publicamente em 1871 que colônias são para nós alemães o que os casacos de zibelina forrados de seda são para a nobreza polonesa que não tem sequer camisa para usar por baixo30 Essa posição política se dava por motivos semelhantes aos colocados pelo parlamento belga em oposição as aspirações do rei Leopoldo II Existia a noção de que colônias poderiam ser um bom negócio porém era necessária uma grande estrutura para administrála como uma frota naval que pudesse defender a costa daquele território companhias comerciais capazes de explorar o comércio da produção colonial sendo o capital para investir nessa empreitada algo que na visão de Bismarck não estava à disposição da nação alemã Porém para entendermos como funcionou a política imperialista que culminou na conferência de Berlim31 será necessário abordar de que forma o chanceler alemão mudou de posição quanto à exploração de colônias a partir do movimento colonial alemão No início da década de 1880 surge o movimento colonial alemão composto inicialmente por personalidades dos setores comercial político e jurídico O objetivo era promover lucros através da exploração do comércio colonial e estender pelo mundo a cultura germânica Essa iniciativa foi exitosa na sua inserção em meio à sociedade alemã lembrando que nesse momento o estado alemão era um fortíssimo 28 Idem Ibidem p 117 29 Primeiro ministro alemão entre 1871 e 1890 um dos responsáveis pela unificação da Alemanha em 1870 Líder com forte viés nacionalista e diplomático 30 WESSELING 2008 p 124 31 A Conferência de Berlim foi realizada entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 e teve como objetivo organizar por meio de regras a ocupação da África pelas potências coloniais Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 109 empreendedor industrial32 destacandose na produção do aço porém com uma tímida participação do comércio na economia havia portanto uma demanda de ampliação Bismarck já no auge dos seus setenta anos almejava para a Alemanha um futuro glorioso e cada vez mais a ideia de um alto nível de desenvolvimento passava pela exploração de colônias portanto apontando para uma mutação na política externa e econômica da Alemanha em meados da década de 1880 Algumas explicações são atribuídas ao próprio Bismarck A primeira observada por Friedrich Von Holstein foi Todo esse negócio colonial é um engodo mas precisamos deles para as eleições Aí temos a alegação de um motivo eleitoral isto é de política interna A outra explicação foi dada por Bismarck numa conversa com Eugen Wolf um colonialista explorador entusiástico Seu mapa da África é muito bom mas meu mapa da África está na Europa Aqui fica a Rússia e aqui a França estamos no meio este é o meu mapa da África Era uma explicação voltada a política externa33 Esses elementos são importantes para compreender de que forma o setor político alemão voltou suas atenções para a África Por um lado havia as demandas sociais do estado alemão que necessitavam de uma resposta política do chanceler quanto ao futuro da nação não era prudente ir contra essas demandas em período eleitoral Por outro lado a expansão de outras potências rumo à aquisição de novas colônias poderia colocar a Alemanha em segundo plano na geopolítica europeia O domínio colonial sobre a África estava causando já havia muito tempo tensões por toda a Europa Em novembro de 1884 foi realizada em Berlim uma conferência multinacional com o intuito de trazer ao debate internacional a situação da soberania dos territórios africanos Apesar de GrãBretanha e Alemanha pontuarem constantemente durante a conferência que o objetivo seria a abertura de livre comércio nas redes fluviais do rio Níger e Congo bem como o desenvolvimento civilizatório da população nativa um jogo muito diferente estava sendo disputado fora do salão o da barganha diplomática e do tomaládácá34 Objetivamente falando foi assim que lideranças políticas europeias decidiram o futuro da África em reuniões de gabinete a mais de nove mil quilômetros de distância da bacia do Congo Mais do que qualquer outro fora Stanley que ascendera a cobiça por terras africanas mas até ele sentia um certo desconforto com a avidez que pairava no ar A conferência de Berlim foi a expressão mais completa de uma era em que o recémdescoberto entusiasmo pela democracia possuía limites muito claros e a caça abatida não tinha direito a voto Não havia um único africano na mesa de negociações em Berlim35 32 WESSELING 2008 p 120 33 WESSELING 2008 p 124 34 WESSELING 2008 p 135 35 HOCHSCHILD 1999 p 94 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 110 A possibilidade de tornar a bacia do Congo uma região de livre circulação comercial era um dos raros consensos observados na conferência O rei Leopoldo II já havia feito o seu lobby de forma a angariar apoio político individualmente36 para suas associações filantrópicas grifo nosso portanto a maneira encontrada pelas lideranças políticas presentes na conferência para manter essa zona de livre comércio na África central foi não deixála sobre tutela de nenhuma nação e sim de uma organização humanitária O monarca belga conseguiu convencer a todos que essa seria a melhor saída e agora teria uma terrível decisão a tomar se seria imperador rei soberano ou simplesmente proprietário de um vastíssimo território no interior da bacia hidrográfica do Congo37 Um dos principais motivos que lhe permitiram pôr as mãos em tamanha vastidão foi o fato de os outros países acharem que estavam dando a sua aprovação a uma espécie de colônia internacional sob os auspícios do Rei dos Belgas sem dúvida mas aberta a comerciantes de toda a Europa38 Do ardil ao horror O estado do Congo certamente não é um negócio Se recolhe algum marfim em determinadas terras é apenas para reduzir seus déficits39 Esse fragmento de correspondência que o rei Leopoldo II mandou ao primeiro ministro belga em 1891 revela de que forma era mascarada a exploração econômica dos recursos presentes no Estado Livre do Congo O marfim e a borracha eram os recursos naturais mais cobiçados naquele momento sem falar do recurso mais valioso e indispensável a força de trabalho Para que o monarca belga pudesse dispor de capitais suficientes a fim de mobilizar a estrutura necessária à exploração do território teve de abrir o mercado a investidores externos porém o sistema de concessão de terras era amarrado aos seus interesses sempre lhe abonando com a obrigatoriedade de possuir 50 de todos os 36 Os tentáculos diplomáticos do rei Leopoldo II eram longos e chegavam a atravessar oceanos quando necessário Sanford um proprietário de terras e aristocrata americano foi incumbido de conseguir o apoio do governo norte americano na empreitada humanitária do monarca belga na África Hochschild coloca em sua obra que a múltipla campanha de Sanford foi talvez o exemplo mais sofisticado de lobby em favor de um governante estrangeiro em todo o século XIX 2008 p 90 37 HOCHSCHILD 1999 p 97 38 Idem Ibidem p 96 39 Idem Ibidem p 129 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 111 ativos privados no país40 Aquele acordo de livre mercado feito na Conferência de Berlim nunca teve intenção de ser cumprido e de fato não foi O marfim era a prioridade no início da instituição do Estado Livre do Congo Era um produto já bem requisitado na Europa devido a suas qualidades como matéria prima de ornamentação e produção de artigos exóticos de fato o fetiche da mercadoria41 já atiçava há algum tempo a burguesia europeia42 Desta forma o marfim era recolhido associado à caça de elefantes e pela negociação ou confisco junto aos nativos valendo lembrar que havia exclusividade quanto ao fornecimento desse recurso restrito somente aos funcionários estatais No caso da borracha tornouse interessante quando no início da última década do século XIX surgiu um mercado associado a produtos que exigiam isolamento impermeável o pneu inflável e o revestimento para linhas de telégrafo são os exemplos mais nítidos Era sabido que esse recurso poderia ser encontrado em outras regiões do globo portanto a ordem era de implantar um sistema de exploração que proporcionasse o maior lucro no menor tempo possível43 A produção tanto do marfim quanto da borracha era feita com base no trabalho compulsório motivado pela violência apoiada num estado militarizado Essa força militar44 visava maximizar a produção forçando o trabalho e eliminando focos de resistência Era composta em sua imensa maioria por nativos recrutados a força45 e que também eram castigados com frequência muitas vezes a bel prazer das elites militares europeias Podemos apontar que já na própria construção da infraestrutura logística ao longo da bacia do Congo houve uma dinâmica extremamente coercitiva e violenta na 40 SILVA Igor Castellano da As origens históricas do estado congolês In Congo A Guerra Mundial Africana Conflitos Armados Construção do Estado e Alternativas Para a Paz Porto Alegre Editora Leitura XXICebrafrica 2012 p 75 41 Na obra de Karl Marx intitulada O Capital essa expressão aparece como uma forma de explicar o fenômeno de aquisição de valor da mercadoria depois de finalizada O autor aponta a fragilidade do vínculo desta com a quantidade de trabalho empregada para a sua produção e outras variáveis envolviam o processo de formação do valor do produto A mercadoria passa a ter personalidade própria 42 Segundo Silva o marfim era transformado em cabos de faca tacos de bilhar pentes leques porta guardanapos teclas de piano e órgão peças de xadrez crucifixos caixas de rapé broches estatuetas e dentaduras 2012 p 75 43 Sobre a expansão por demandas de matérias prima como a borracha verificar MILANI Martinho C Capítulo 3 A Conquista In Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 2011 Dissertação Mestrado em História Econômica Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2011 121209 44 Denominada Force Publique era um exército formado com a finalidade de promover o controle do trabalho e reprimir revoltas contava com cerca de 18000 homens Ver MILANI Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 1885 1908 p 164171 45 MILANI 2011 p 167 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 112 relação de trabalho Uma expressão dessa vivência na cadeia produtiva estava fixada na utilização do chicote O chicote era feito com couro de hipopótamo seco ao sol cortado em tiras compridas e afiadas em forma de saca rolhas Em geral era aplicado às nádegas nuas da vítima Seus golpes deixavam cicatrizes permanentes mais de 25 chibatadas podiam levar à perda da consciência cem ou mais o que não era raro muitas vezes matava46 Esse tipo de castigo era utilizado mais frequentemente no processo de exploração de marfim destacando que havia uma gama variada de torturas empregadas por oficiais em caso de baixa produção ou negação ao trabalho Também era comum encontrar em meio às trilhas corpos de carregadores que se recusavam a seguir o expediente de trabalho forçado ou mesmo que caiam desmaiados em estado de inanição e extremo cansaço Porém o que poderíamos chamar de terror as práticas mais cruéis estavam ligadas a extração da borracha Quando os homens brancos e seus guerreiros se foram retomamos nosso trabalho esperando que não voltassem mais mas eles voltaram logo depois os soldados trouxeram cestos de comida para nós carregarmos dentro dos quais carne humana defumada marchamos até tarde depois acampamos perto de um riacho onde demos graça por ter o que beber pois estávamos sedentos Não tínhamos nada para comer pois os soldados não nos deram nada E assim continuou todos os dias até o quinto quando os soldados tomaram o bebê da minha irmã e o atiraram no mato deixandoo ali para morrer e fizeram com que ela carregasse algumas panelas que haviam encontrado numa aldeia deserta47 Além de utilizar de técnicas violentas como as já mencionadas foram instalados mecanismos de controle de trabalho extremamente cruéis sobre as populações nativas Existia por exemplo um sistema de cotas para a extração da borracha se esta cota não fosse atingida além de passar por diversos níveis de tortura os nativos tinham seus familiares sequestrados e violentados só ocorrendo o seu retorno com a devida cota entregue em caso de negativa destes em extrair a borracha todos eram mortos Toda essa pressão pela exploração da borracha gerava também um problema ambiental pois o terror da punição fazia com que se empreendesse uma exploração desenfreada eliminando em muitas regiões a própria presença de seringueiras Vilas que se negavam ou estavam sem condições de explorar a borracha eram completamente dizimadas com estupros torturas mutilações e assassinatos O procedimento levou pelo menos dez milhões de pessoas à morte relacionadas a assassinatos à fome à exaustão e à própria queda na taxa de natalidade48 46 HOCHSCHILD 1999 p 131 47 Idem Ibidem p 143 Esse relato demonstra na perspectiva de uma africana nativa chamada Ilanga como era a experiência de ser capturado e escravizado pela force publique do Estado Livre do Congo 48 SILVA 2012 p 78 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 113 A resistência Ó mãe que infelizes nós somos Mas o sol há de matar o homem branco Mas a lua há de matar o homem branco Mas a bruxa há de matar o homem branco Mas o tigre há de matar o homem branco Mas o crocodilo há de matar o homem branco Mas o elefante há de matar o homem branco Mas o rio há de matar o homem branco49 Nas últimas duas décadas do século XIX houve como já observamos uma corrida pela posse dos territórios africanos neste caso com destaque para a formação do Estado Livre do Congo Quando analisamos o desenrolar do processo histórico constatamos que existe uma vasta historiografia voltada a compreender como se deu o avanço europeu sobre o continente africano não havendo muito espaço para a análise de como as sociedades africanas se comportaram no processo de dominação colonial Dessa forma é mais que necessário a abordagem desse lado da história que nem sempre é lembrada A maioria das sociedades autóctones sob domínio do Estado Livre do Congo eram inicialmente pouco resistentes à ocupação territorial belga pois identificava na figura do colonizador uma possibilidade de parceria comercial e mutua defesa contra inimigos em comum50 podemos citar como exemplo os traficantes árabes de escravos Porém a cruel cooptação ao trabalho foi o grande motivo das diversas insurgências observadas nas duas décadas iniciais ao processo de domínio colonial portanto a resistência dos povos nativos tinha duas faces uma localizada na tentativa de atenuar abusos específicos do regime colonial e outra com o foco em rebeliões destinadas à destruição do sistema estrangeiro que havia gerado tais abusos51 Podemos destacar inclusive as revoltas que envolviam a produção de borracha que teriam um regime mais agressivo de controle do trabalho gerando resistência ativa por vários anos52 49 Canção africana transcrita por missionários no Estado Livre do Congo em meados da década de 1890 Ver Hochschild O Fantasma do Rei Leopoldo p 149 50 ISSACMAN Allen VANSINA Jan Inciativas e resistências africanas na África central 1880 1914 In BOAHEN A A ed História Geral da África África sob dominação colonial 18801935 Volume VII Brasília UNESCO 2010 p 198 51 Idem Ibidem p 192 52 Entre 1885 e 1905 mais de uma dúzia de grupos teoricamente subjugados do baixo Congo e do Congo central se revoltou Entre eles os mais bemsucedidos foram os Yaka que combateram eficazmente os europeus por mais de dez anos ISAACMAN VANSINA 2010 p 198 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 114 Nesse contexto existiam duas realidades quando discutimos as relações étnicas na África central Por um lado havia aqueles grupos nativos que em nome da manutenção de sua autodeterminação e por evidentes rivalidades com povos vizinhos empregavam forças militares em favor do colonizador Porém esta situação estava longe de ser regra até mesmo históricos rivais em determinados momentos formaram coalizões a fim ofertar combate ao avanço colonialista conforme colocam Isaacman e Vansina De vez em quando rivais de longa data punham de lado sua animosidade na tentativa de sobreviver o que explica a aliança entre os Lunda da região Central e os Chokwe contra as tropas do Estado Livre do Congo apesar de mútua inimizade que remontava a mais de uma geração53 Além do confronto direto havia entre os trabalhadores africanos outras formas de boicotar o sistema de trabalho forçado colonialista como a indolência ao trabalho a destruição de bens ligados ao processo produtivo e a sonegação de impostos54 Surgindo portanto comunidades provenientes do êxodo a localidades que ficavam fora do alcance colonial nas regiões montanhosas do Congo Os africanos que tinham o privilégio de viver perto de uma fronteira internacional passavam de um lado para o outro da divisa para fugir aos coletores de impostos das suas colônias Periodicamente os Yaka atravessavam o rio Cuango que separa Angola do Congo enquanto seus compatriotas aproveitavam a falta de vigilância na fronteira para passar ao Congo francês onde se deixavam ficar até que fossem de novo perseguidos pelos agentes locais do fisco55 Entre os que ficaram ocorria com certa frequência a formação de bandos que armados defendiam os seus contra a crueldade imposta no regime de trabalho O foco dessa resistência era voltado para os símbolos da opressão rural contando com apoio de seus pares nas incursões hostis ao sistema colonial Os próprios africanos dispostos a desmantelar esses bandos e quaisquer outras revoltas também se viam em situação de rebelião regularmente devido aos maus tratos baixos salários e inadequação com a conduta apresentada por oficiais europeus Foi no Estado Livre do Congo que irromperam os motins mais violentos em 1895 toda a guarnição de Luluaborg se revoltou e sob o comando de suboficiais amotinados os soldados massacraram o chefe do posto para se vingar de sua intolerável tirania Durante mais de seis meses os rebeldes controlaram quase toda a província de Kasai mas acabaram sendo vencidos pelas tropas que permaneceram leais Dois anos depois o grosso do exército se revoltava56 53 ISAACMAN VANSINA 2010 p 200 54 Escapar de impostos era coisa frequente em toda a África central Justamente antes da chegada do coletor de impostos todos ou quase todos os habitantes de uma aldeia fugiam para lugares inacessíveis até a partida do funcionário da administração ISAACMAN VANSINA 2010 p 205 55 ISAACMAN VANSINA 2010 p 205 56 ISAACMAN VANSINA 2010 p 209 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 115 Apesar de todos os abusos o ingresso na force publique do Estado Livre do Congo era para os nativos uma das únicas possibilidades de ascensão social portanto por mais que houvesse condições degradantes de trabalho uma das formas de evitar os castigos e torturas mais cruéis era estar ao lado do opressor CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente artigo discorremos de forma sintética sobre elementos relevantes a formação do Estado livre do Congo Entre os aspectos mais relevantes foram destacados os laços comerciais que em diversos momentos surgem como ponto de ligação entre a África e Europa Dessa forma o processo de dominação colonial no último quarto do século XIX tornouse algo mais viável levando em consideração o desmantelamento das sociedades autóctones e a fragmentação das ações de combate a imposição do regime colonial algo construído a priori por séculos de atuação do tráfico de escravos na região da bacia do Congo De equivalente modo é importante ressaltar que não podemos tratar a relação de africanos e europeus na instituição do domínio colonial como fator unilateral de degradação das sociedades autóctones Por séculos as elites locais africanas se beneficiaram do tráfico de escravos em muitos casos utilizandose de alianças com os colonizadores para combater históricos adversários étnicos Especificamente observando o objeto de estudo ficou claro que as elites dirigentes locais não ofereceram resistência a imposição territorial europeia logo no início preservando em muito seus privilégios Quanto aos processos de resistência tratando especificamente quanto as relações de trabalho fixadas a partir da criação do novo estado independente fica evidente que não havia entre os nativos quem estivesse imune a barbárie praticada pelos oficiais europeus até mesmo agentes recrutados para a execução da política desumana de coerção eram regularmente vítimas de atrocidades semelhantes a que praticavam revelando o caráter racista das relações de poder inseridas na presença europeia sobre aquele território O certo é que a passividade está escrita somente na historiografia que atende ao senso comum os povos nativos oprimidos foram sim agentes com protagonismo nesse processo e em muito combativos na resistência ao domínio colonial Os emaranhados de relações que permearam a geopolítica mundial no fim do século XIX nos trazem reflexões sobre como a dominação dos povos autóctones da África central se deu também por um discurso humanitário pois é comum na história a Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 116 construção de narrativas e justificações de caráter teoricamente benevolente para garantir a tutela sobre outros povos Na prática o que identificamos nesses discursos é a busca de um consenso na sociedade quanto aos objetivos políticos e econômicos de pequenos grupos sedentos por acumulação de riquezas Portanto o contato com a história da formação do Estado Livre do Congo nos faz pensar o quanto é tênue a relação entre passado e o presente históricos Expansão da cristianização processo civilizatório e atualmente a instituição da democracia liberal nos dá a impressão de que o passado não passa o processo de expansão do capital vai se modificando com o tempo e gerando contradições das mais diversas Essa não é o tipo de história que aprendemos na formação básica deveras não é uma história que possui heróis de classe abastada os heróis aqui são aqueles que se negaram a mobilizar forças em função da exploração de seu povo que destruíram os símbolos de sua opressão que migraram para sobreviver e aqueles também que para preservar seus iguais se submeteram as mais duras condições de trabalho O pior é pensar que em outras partes da África ocorreram práticas tão cruéis quanto e até mais nesse período
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Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB ISSN 23176989 TERROR MARFIM E BORRACHA IMPERIALISMO E RESISTÊNCIA NO ESTADO LIVRE DO CONGO 1879 1908 Diego Lunardelli1 Resumo O objetivo do presente artigo é analisar de que forma se deu o estabelecimento do Estado Livre do Congo procurando observar além da política colonial europeia os impactos do imperialismo sobre os povos africanos que habitavam a bacia hidrográfica do Congo desde as primeiras expedições empregadas no início do último quarto do século XIX até o fim da primeira década do século XX As reflexões sobre o processo de instituição e consolidação do Estado Livre do Congo serão realizadas através de uma discussão bibliográfica envolvendo fontes de origens distintas a fim de obter acesso a diversas perspectivas na condução dissertativa revelando que o processo de colonização desta região não foi simples rápido ou pleno havendo oposição sistemática por parte das populações autóctones Palavraschave Imperialismo Resistência Domínio Colonial 1 Graduando do curso de História na Universidade Federal de Santa Catarina Email dihego122gmailcom Recebido em 27 de janeiro de 2018 e aprovado para publicação em 04 de agosto de 2018 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 101 Introdução A partir do último quarto do século XIX o continente africano foi palco de intensas disputas no campo geopolítico protagonizadas por potências capitalistas europeias Além das nações com envergadura política e econômica suficientes para se colocar na dianteira do processo de exploração do continente africano crescia entre os países com a economia em desenvolvimento o sentimento de que a posse de colônias seria o caminho para o progresso Um episódio marcante dessa marcha pela colonização do continente africano foi a ocupação europeia sobre a região da bacia hidrográfica do rio Congo uma história repleta de reviravoltas no campo da articulação política e diplomática Vamos analisar neste artigo nuances desse processo de colonização enfatizando o caráter cruel da exploração colonial e o seu impacto sobre as populações autóctones Inicialmente serão contextualizados os primeiros contatos de povos africanos especificamente habitantes da foz do rio Congo com relação aos europeus a fim de colocarmos em pauta os impactos desses contatos précoloniais nas sociedades nativas Em seguida apontaremos como se deu a investida europeia sobre o território africano na primeira metade da década de 1880 nesse momento já havendo um interesse das nações europeias quanto ao domínio e exploração econômica daquela região Com a conferência de Berlim poderemos analisar como funcionou o processo de partilha da África em especial a formação do Estado Livre do Congo com seus atores e suas contradições A partir de 1885 com o estabelecimento de um estado independente da ação das potências europeias lançaremos mão de algumas perspectivas analíticas quanto ao sistema colonial imposto nesse recorte temporal destacando em primazia os mecanismos de controle social com ênfase na violência e no terror que envolvia as relações de produção e transferência de riquezas Não menos necessário está disposto nesse artigo o exame das especificidades locais e campos autônomos das sociedades subjugadas no sentido de buscar entender o quanto da realidade vivida naquele momento é de origem endógena e não necessariamente exógena Por fim trataremos das diversas manifestações de resistência existentes no seio das populações autóctones o papel das lideranças locais nesse processo desde o fomento de insurreições que duraram anos até greves morosidade no trabalho e deslocamentos migratórios a fim de fugir do domínio e opressão colonial Da mesma forma será abordada a relação dicotômica entre colonizado e colonizador num ambiente onde coabitam projetos civilizadores e massacres filantropia e exploração ou seja num cenário em que ao mesmo tempo se Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 102 aponta um interesse pelo pitoresco por parte do colonizador mas também se revela a face mais cruel da exploração colonial A metodologia empregada neste artigo será uma discussão bibliográfica que tem como ponto norteador a multidisciplinaridade das obras consultadas e as diferentes perspectivas dos autores com relação à problemática apresentada Primeiramente será utilizado o sétimo volume da coleção História Geral da África denominado África sob dominação colonial 18801935 obra organizada pelo professor Albert Adu Boahen2 com o intuito de observarmos aspectos conjunturais relativos aos avanços do imperialismo europeu sobre o continente africano no período que permeou a instituição do Estado Livre do Congo e principalmente as manifestações de resistência das populações autóctones diante este processo No sentido de buscar uma fonte com base materialista mais específica para análise será utilizada uma dissertação apresentada ao programa de pósgraduação em História econômica do departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo com a seguinte nomenclatura Estada Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 1885 1908 do autor Martinho Camargo Milani3 Em seguida será destacada uma obra que trabalhará com elementos intrínsecos a vivência política do Rei Leopoldo II e principalmente evidenciar o caráter violento de sua dominação sobre o território Congolês O Fantasma do Rei Leopoldo de Adam Hochschild revela de forma objetiva as atrocidades cometidas no processo de exploração colonial do Estado Livre do Congo A obra trata além da violência sistemática empregada no processo de dominação colonial nuances e ricos detalhes da personalidade dos atores principais desse processo algo muito interessante no sentido de entender as motivações do Rei Leopoldo II em sua empreitada colonial Com o intuito de tratar com mais especificidade a questão geopolítica intrínseca a problemática abordada no presente artigo será utilizada a obra Dividir Para Dominar do autor H L Wesseling4 que nos fornece uma ótima análise de conjuntura quanto à política de partilha da África no fim do século XIX Já a obra Congo A Guerra Mundial Africana do autor Igor Castellano da Silva5 nos traz de forma sintetizada aspectos pertinentes a formação social das populações africanas na bacia hidrográfica 2 Historiador e político ganês Acadêmico da Universidade de Gana entre 1959 e 1990 3 Doutor em história econômica pela Universidade de São Paulo 4 Doutor em história pela Universidade de Leiden sendo titular da cadeira de história contemporânea nesta mesma instituição entre 1973 e 2002 5 Professor Adjunto do departamento de economia e relações internacionais e do programa de pós graduação em economia e desenvolvimento da Universidade Federal de Santa Maria doutor em estudos estratégicos internacionais pela Universidade de Johannesburg Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 103 do Congo buscando entender inclusive como as manifestações de resistência ao domínio colonial dialogam com a própria constituição das relações de poder e organização social desses povos Por fim mas não menos importante utilizaremos o terceiro capítulo da obra de Eric Williams6 Capitalismo e Escravidão para contextualizarmos de que forma o impacto dos primeiros contatos de europeus com os povos autóctones da foz do rio Congo permitiu a instalação de uma rede de tráfico de escravos que se perpetuou por séculos e desestabilizou profundamente aquelas sociedades Os primeiros contatos Como pode ele ser um bom homem se não veio comerciar se não vemos seus pés se anda o tempo todo coberto de roupas ao contrário de toda a gente Não existe algo de muito misterioso a seu respeito talvez malvado quem sabe seja um mágico de toda maneira é melhor deixalo em paz e não perturbálo7 Esta é uma anotação retirada do diário de Stanley8 descrevendo o relato de um indígena africano9 fazendo referência ao contato com sua expedição nas entranhas da África Central em setembro de 1876 Nesse relato podemos enfatizar o choque cultural que decorre do contato direto entre europeus e indígenas destacando porém que a relação comercial naquele ambiente era algo habitual revelandose um elemento comum e usual naquele universo Em 1482 houve um primeiro contato europeu com essa região quando navegantes portugueses chegam à foz do rio Congo o seu objetivo era o comércio Em pouco tempo os portugueses já haviam instalado missionários em menos de dez anos a catequese era uma prática muito presente naquela região tanto que em 1491 o futuro rei do Kongo que adotaria o nome de Afonso I em seu reinado 1506 1546 6 Doutor em história na Universidade de Oxford um dos mais influentes historiadores com referência à escravidão moderna e tráfico de escravos no atlântico 7 STANLEY apud HOCHSCHILD Adam O Fantasma do Rei Leopoldo Uma história de cobiça terror e heroísmo na África colonial São Paulo Companhia das Letras 1999 p 6364 8 Henry Morton Stanley jornalista e explorador que conquistou fama em incursões no continente africano na segunda metade do século XIX Protagonista na expedição de resgate ao explorador britânico Dr Livingstone e na formação do Estado Livre do Congo 9 Nos primeiros mil anos de nosso calendário a região da bacia hidrográfica do Congo abrigou diversas civilizações originárias do tronco linguístico Bantu podemos destacar entre elas a dos Lubas os Lundas os Lelés os Tios os Bakubas ou Kubas e a maior de todas o reino do Kongo MILANI 2011 p89 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 104 eleva o cristianismo a religião oficial do Estado10 Porém foi no primeiro quarto do século XVI que surgiram os primeiros registros de tráfico de escravos na região O tráfico de escravos na costa ocidental chegou ao seu auge no século XVIII a região da bacia hidrográfica do Congo forneceu grande parte dos escravos para a Europa nesse período Ainda no século XIX mesmo com a deterioração moral da estrutura escravista no mundo ocidental esta região era responsável por um grande veio de escravos permanecendo assim até o início do último quarto deste mesmo século É muito importante colocar que os lucros provenientes desse processo para os estados europeus foram altíssimos e financiaram a industrialização de diversos deles posteriormente se apoderando de um capital moral voltado à abdicação dessa estrutura que lhes foi tão útil no passado Esse processo de acumulação de capitais é apontado nos estudos de Eric Willians demonstrando na obra Capitalismo e Escravidão a íntima ligação entre o desenvolvimento industrial europeu com o tráfico de escravos africanos No comércio marítimo triangular a Inglaterra bem como a França e a América colonial fornecia os navios e os produtos de exportação a África a mercadoria humana as fazendas as matériasprimas coloniais Assim o comércio triangular deu triplo estímulo à indústria britânica Os negros eram comprados com artigos britânicos transportados para as fazendas eles produziam açúcar algodão anil melaço e outros produtos tropicais cujo processamento criava novas indústrias na Inglaterra e enquanto isso a manutenção dos negros e seus donos nas fazendas forneciam mais um mercado à indústria britânica Os lucros obtidos forneceram um dos principais fluxos de acumulação do capital que na Inglaterra financiou a Revolução Industrial11 Os europeus não foram os únicos a acumular riquezas com o tráfico de escravos na região da bacia do Congo pela costa oriental houve uma grande malha comercial que se construiu em torno dessa atividade econômica desta vez impulsionada por árabes12 No fim do século XVIII já havia uma tendência a diminuição do tráfico de escravos devido a nova política econômica adotada pela Inglaterra13 pressionando nações vinculadas ao tráfico a abandonarem essa atividade Essa conjuntura gerou uma 10 MILANI Martinho C Capítulo 2 O Espaço In Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 2011 Dissertação Mestrado em História Econômica Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2011 77120 p98 11 WILLIAMS Eric O comércio britânico e o comércio marítimo triangular In Capitalismo e Escravidão São Paulo Companhia da Letras 2012 p 90 12 Segundo Wesseling os mercadores de escravos que eram chamados de árabes hoje são conhecidos como suaíles africanos orientais de uma área nominalmente sob controle do sultão de Zanzibar 2008 p 84 Ver também WESSELING H L O Congo e a criação do estado livre 1882 1885 In Dividir Para Dominar A Partilha da África 18801914 Rio de Janeiro Editora UFRJ Editora Revan 2ª edição 2008 p 83147 13 Ver também WILLIAMS Eric A nova ordem industrial In Capitalismo e escravidão São Paulo Companhia das Letras 2012 p 192214 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 105 diminuição no tráfico de escravos na costa ocidental do continente africano porém na costa oriental a relação de compra e venda de seres humanos destinadas ao trabalho compulsório ganhou força conforme destaca Milani Em 1860 a região de comércio de escravos dos árabes ia do LagoTanganica até Loualaba o alto Congo ano em que fundaram a cidade de Nyangwe que por muito tempo foi a capital do Congo Foram mais de 20 anos para os traficantes chegarem a Stanleyville Calculase em cerca de 30 a 50 mil escravos ao ano saindo do Congo nesta época14 Se por um lado o tráfico de escravos esvaiu a costa ocidental da África central por mais de três séculos desestabilizando a constituição econômica e social dos estados africanos já formados ou em formação por outro lado no momento em que os olhares do imperialismo europeu se voltaram novamente para aquela região na segunda metade do século XIX existia ainda um intenso comercio de escravos na face oriental do continente Questão duplamente terrível aos povos autóctones primeiro a dificuldade de consolidação econômica devido a constante fragmentação política e social causada pelo tráfico de escravos e em segundo lugar pela justificativa europeia de ocupação daquele território para combater justamente a iniciativa árabe de perpetuar o tráfico na costa oriental Os efeitos práticos do tráfico de escravos nesta região foram primeiramente o declínio populacional devastador observando que esta diminuição populacional drástica desorganizou a economia local até então diversificada com o foco no comércio intenso transcontinental e entre as regiões vizinhas15 Quando Stanley em 1879 enviado pelo rei Leopoldo II16 chegou a região da bacia do Congo foi esse quadro que encontrou economia desorganizada fragmentação política e religiosa gerando constantes conflitos étnicos muitas sociedades sem condição de se reestruturar devido a catástrofe demográfica imposta por séculos de migração compulsória essa era a fatia do magnífico bolo africano17 que o rei Leopoldo II tanto almejava A medida da ganância Aproveito as vantagens de uma oportunidade segura para lhe enviar umas poucas linhas em meu péssimo inglês É indispensável que o senhor adquira o máximo de terras que puder obter e que coloque sucessivamente sob 14 MILANI 2011 p 104 15 Idem Ibidem p 102 16 Rei Leopoldo II monarca belga de linhagem alemã Seu reinado foi de 1865 a 1908 17 Expressão presente na obra O Fantasma do Rei Leopoldo de Adam Hochschild fazendo alusão a como o monarca se referia ao continente africano Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 106 suserania tão logo seja possível e sem perder um minuto todos os chefes tribais da embocadura do Congo até Stanley Falls18 Este é um fragmento de uma das diversas cartas enviadas pelo Rei Leopoldo II a Stanley durante os anos em que as suas expedições demarcaram o território no centro da África território esse que futuramente seria o Estado Livre do Congo A avidez pelo controle territorial foi uma marca da política imperialista europeia no último quarto do século XIX era uma corrida que o monarca belga não hesitou em participar Dentre as nações interessadas em explorar o território africano neste momento podemos destacar principalmente Inglaterra França e Portugal Observando a configuração geopolítica europeia do período é interessante pontuar a ausência do estado belga nesse contexto levando em consideração que muitas associações e comitês19 voltados à exploração geográfica daquele território viam na política do monarca belga uma referência no que diz respeito ao fomento da presença europeia no continente africano Na verdade o estado belga não estava interessado naquele momento em fixar presença no território africano20 pois demandava receitas à sua manutenção porém o rei Leopoldo II teria sim muito interesse em adquirir21 colônias certo de que este era o caminho para o desenvolvimento Leopoldo tinha como a raposa dado mais um passo Sabia depois de muitas tentativas de comprar uma colônia que não havia nenhuma a venda teria de conquistála Mas fazer isso abertamente seria provocar tanto o povo belga quanto as maiores potências europeias Se quisesse se apoderar de alguma coisa na África teria de convencer a todos de que seus interesses eram puramente altruísticos22 Assim fica claro que a estratégia do monarca belga era voltada a construção de um discurso filantropo com relação à sua presença no continente africano O rei tinha ciência das dificuldades que enfrentaria para conseguir reconhecimento à tutela sobre o território almejado na bacia do Congo portanto a utilização de prerrogativas ligadas ao trono belga tornouo em pouco tempo uma espécie de grande ativista dos direitos 18 REI LEOPOLDO II apud HOCHSCHILD 1999 p 80 19 Organizações criadas com objetivos filantrópicos entre eles o envio de ajuda médica e combate ao tráfico de escravos Mais tarde se observou a verdadeira finalidade dessas instituições as distanciando desse viés humanitário Destaque para a Associação Internacional Africana e Associação Internacional do Congo esta última seria a entidade gestora do Estado Livre do Congo entre 1885 e 1908 20 Depois de intensas revoltas em busca de independência política o estado belga se forma em ruptura ao estado holandês em 1830 O sistema político era parlamentarista o que gerava em muitos momentos discordâncias com relação a corte quanto à política externa do país 21 Adquirir através de título de compra Segundo Hochschild o rei Leopoldo II passou boa parte de sua vida procurando uma colônia que estivesse à venda O tempo vai passando e as práticas se refinando 22 HOCHSCHILD Adam O Fantasma do Rei Leopoldo Uma história de cobiça terror e heroísmo na África colonial São Paulo Companhia das Letras 1999 p56 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 107 humanos inclusive o visconde de Lesseps entre outros declarou que os planos de Leopoldo eram o maior trabalho humanitário da época23 A exploração territorial na região da bacia do Congo estava avançando no início da década de 1880 principalmente em duas frentes oficiais franceses e expedições enviadas pelo monarca belga Estes adentravam o território da África central conforme estabeleciam relações com as lideranças locais como coloca Hochschild Leopoldo e Stanley sabiam que já havia outros europeus bisbilhotando por lá Quem mais preocupava era o conde Pierre Sarvognan de Brazza24 nesse meio tempo Leopoldo contratou um estudioso de Oxford Sir Travers Twiss para lhe fornecer um parecer jurídico que sustentasse o direito de companhias privadas agirem como países soberanos na assinatura de tratados com os chefes nativos Stanley fora instruído a subir e descer o rio fazendo justamente isso Os chefes entregaram suas terras a Leopoldo e o fizeram por uma ninharia Os conquistadores da África assim como do Oeste americano estavam descobrindo que o álcool era quase tão eficiente quanto a metralhadora25 Portugueses possuíam uma antiga relação com a região da foz do rio Congo relação esta que lhes motivava a requisitar um direito prioritário sobre aquele território A questão é que até 1882 as discussões em torno do controle territorial na África central se concentravam em boa parte entre Portugal e Inglaterra reflexo dos séculos de relações comerciais desenvolvidas na costa ocidental da África Obviamente que a política externa portuguesa não era nem de longe páreo para o expansionismo imperialista britânico observando inclusive que a política econômica do estado português era vista como atrasada26 e o seu vínculo com o tráfico de escravos um diagnóstico de debilidade moral Os portugueses não eram muito populares Seu apogeu fora durante o tráfico de escravos e sua atitude displicente em abolilo rendeulhes uma péssima fama na abolicionista GrãBretanha Podiase resumir a reputação de Portugal no século XIX em duas palavras proteção e corrupção27 Apesar de todos esses problemas que inviabilizaram em muito a relação entre Portugal e Inglaterra havia algo mais importante a se resolver na perspectiva britânica o que fariam para controlar a projeção expansionista francesa sobre a África Nesse sentido houve uma tratativa entre os dois países no fim do ano de 1882 a fim de reconhecer o direito do estado português sobre parte do território da África central 23 Idem ibidem p 56 24 Oficial da marinha francesa explorador e administrador colonial 25 HOCHSCHILD 1999 p 81 26 A política econômica amplamente difundida nesse momento era a economia de livre mercado que trata da abertura dos mercados como condição de prosperidade e desenvolvimento pontuando a não interferência estatal no mercado 27 WESSELING 2008 p 114 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 108 Após muito embargo foi assinado somente dois anos depois gerando reações em larga escala conforme coloca Wesseling As câmaras de comércio de Manchester e outras cidades britânicas deslancharam uma campanha contra esse ataque ao nosso comércio e indústria e os círculos eclesiásticos e humanitários como a União Batista e a Sociedade das Senhoras Amigas dos Negros tomaram partido delas Dispensável dizer Leopoldo também não ficou quieto enquanto a França e a Alemanha viramse unidas na oposição ao tratado28 A política imperialista O chanceler alemão Otto Von Bismarck29 mantinha a essa altura certa oposição à ideia de a nação alemã possuir colônias alegando publicamente em 1871 que colônias são para nós alemães o que os casacos de zibelina forrados de seda são para a nobreza polonesa que não tem sequer camisa para usar por baixo30 Essa posição política se dava por motivos semelhantes aos colocados pelo parlamento belga em oposição as aspirações do rei Leopoldo II Existia a noção de que colônias poderiam ser um bom negócio porém era necessária uma grande estrutura para administrála como uma frota naval que pudesse defender a costa daquele território companhias comerciais capazes de explorar o comércio da produção colonial sendo o capital para investir nessa empreitada algo que na visão de Bismarck não estava à disposição da nação alemã Porém para entendermos como funcionou a política imperialista que culminou na conferência de Berlim31 será necessário abordar de que forma o chanceler alemão mudou de posição quanto à exploração de colônias a partir do movimento colonial alemão No início da década de 1880 surge o movimento colonial alemão composto inicialmente por personalidades dos setores comercial político e jurídico O objetivo era promover lucros através da exploração do comércio colonial e estender pelo mundo a cultura germânica Essa iniciativa foi exitosa na sua inserção em meio à sociedade alemã lembrando que nesse momento o estado alemão era um fortíssimo 28 Idem Ibidem p 117 29 Primeiro ministro alemão entre 1871 e 1890 um dos responsáveis pela unificação da Alemanha em 1870 Líder com forte viés nacionalista e diplomático 30 WESSELING 2008 p 124 31 A Conferência de Berlim foi realizada entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 e teve como objetivo organizar por meio de regras a ocupação da África pelas potências coloniais Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 109 empreendedor industrial32 destacandose na produção do aço porém com uma tímida participação do comércio na economia havia portanto uma demanda de ampliação Bismarck já no auge dos seus setenta anos almejava para a Alemanha um futuro glorioso e cada vez mais a ideia de um alto nível de desenvolvimento passava pela exploração de colônias portanto apontando para uma mutação na política externa e econômica da Alemanha em meados da década de 1880 Algumas explicações são atribuídas ao próprio Bismarck A primeira observada por Friedrich Von Holstein foi Todo esse negócio colonial é um engodo mas precisamos deles para as eleições Aí temos a alegação de um motivo eleitoral isto é de política interna A outra explicação foi dada por Bismarck numa conversa com Eugen Wolf um colonialista explorador entusiástico Seu mapa da África é muito bom mas meu mapa da África está na Europa Aqui fica a Rússia e aqui a França estamos no meio este é o meu mapa da África Era uma explicação voltada a política externa33 Esses elementos são importantes para compreender de que forma o setor político alemão voltou suas atenções para a África Por um lado havia as demandas sociais do estado alemão que necessitavam de uma resposta política do chanceler quanto ao futuro da nação não era prudente ir contra essas demandas em período eleitoral Por outro lado a expansão de outras potências rumo à aquisição de novas colônias poderia colocar a Alemanha em segundo plano na geopolítica europeia O domínio colonial sobre a África estava causando já havia muito tempo tensões por toda a Europa Em novembro de 1884 foi realizada em Berlim uma conferência multinacional com o intuito de trazer ao debate internacional a situação da soberania dos territórios africanos Apesar de GrãBretanha e Alemanha pontuarem constantemente durante a conferência que o objetivo seria a abertura de livre comércio nas redes fluviais do rio Níger e Congo bem como o desenvolvimento civilizatório da população nativa um jogo muito diferente estava sendo disputado fora do salão o da barganha diplomática e do tomaládácá34 Objetivamente falando foi assim que lideranças políticas europeias decidiram o futuro da África em reuniões de gabinete a mais de nove mil quilômetros de distância da bacia do Congo Mais do que qualquer outro fora Stanley que ascendera a cobiça por terras africanas mas até ele sentia um certo desconforto com a avidez que pairava no ar A conferência de Berlim foi a expressão mais completa de uma era em que o recémdescoberto entusiasmo pela democracia possuía limites muito claros e a caça abatida não tinha direito a voto Não havia um único africano na mesa de negociações em Berlim35 32 WESSELING 2008 p 120 33 WESSELING 2008 p 124 34 WESSELING 2008 p 135 35 HOCHSCHILD 1999 p 94 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 110 A possibilidade de tornar a bacia do Congo uma região de livre circulação comercial era um dos raros consensos observados na conferência O rei Leopoldo II já havia feito o seu lobby de forma a angariar apoio político individualmente36 para suas associações filantrópicas grifo nosso portanto a maneira encontrada pelas lideranças políticas presentes na conferência para manter essa zona de livre comércio na África central foi não deixála sobre tutela de nenhuma nação e sim de uma organização humanitária O monarca belga conseguiu convencer a todos que essa seria a melhor saída e agora teria uma terrível decisão a tomar se seria imperador rei soberano ou simplesmente proprietário de um vastíssimo território no interior da bacia hidrográfica do Congo37 Um dos principais motivos que lhe permitiram pôr as mãos em tamanha vastidão foi o fato de os outros países acharem que estavam dando a sua aprovação a uma espécie de colônia internacional sob os auspícios do Rei dos Belgas sem dúvida mas aberta a comerciantes de toda a Europa38 Do ardil ao horror O estado do Congo certamente não é um negócio Se recolhe algum marfim em determinadas terras é apenas para reduzir seus déficits39 Esse fragmento de correspondência que o rei Leopoldo II mandou ao primeiro ministro belga em 1891 revela de que forma era mascarada a exploração econômica dos recursos presentes no Estado Livre do Congo O marfim e a borracha eram os recursos naturais mais cobiçados naquele momento sem falar do recurso mais valioso e indispensável a força de trabalho Para que o monarca belga pudesse dispor de capitais suficientes a fim de mobilizar a estrutura necessária à exploração do território teve de abrir o mercado a investidores externos porém o sistema de concessão de terras era amarrado aos seus interesses sempre lhe abonando com a obrigatoriedade de possuir 50 de todos os 36 Os tentáculos diplomáticos do rei Leopoldo II eram longos e chegavam a atravessar oceanos quando necessário Sanford um proprietário de terras e aristocrata americano foi incumbido de conseguir o apoio do governo norte americano na empreitada humanitária do monarca belga na África Hochschild coloca em sua obra que a múltipla campanha de Sanford foi talvez o exemplo mais sofisticado de lobby em favor de um governante estrangeiro em todo o século XIX 2008 p 90 37 HOCHSCHILD 1999 p 97 38 Idem Ibidem p 96 39 Idem Ibidem p 129 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 111 ativos privados no país40 Aquele acordo de livre mercado feito na Conferência de Berlim nunca teve intenção de ser cumprido e de fato não foi O marfim era a prioridade no início da instituição do Estado Livre do Congo Era um produto já bem requisitado na Europa devido a suas qualidades como matéria prima de ornamentação e produção de artigos exóticos de fato o fetiche da mercadoria41 já atiçava há algum tempo a burguesia europeia42 Desta forma o marfim era recolhido associado à caça de elefantes e pela negociação ou confisco junto aos nativos valendo lembrar que havia exclusividade quanto ao fornecimento desse recurso restrito somente aos funcionários estatais No caso da borracha tornouse interessante quando no início da última década do século XIX surgiu um mercado associado a produtos que exigiam isolamento impermeável o pneu inflável e o revestimento para linhas de telégrafo são os exemplos mais nítidos Era sabido que esse recurso poderia ser encontrado em outras regiões do globo portanto a ordem era de implantar um sistema de exploração que proporcionasse o maior lucro no menor tempo possível43 A produção tanto do marfim quanto da borracha era feita com base no trabalho compulsório motivado pela violência apoiada num estado militarizado Essa força militar44 visava maximizar a produção forçando o trabalho e eliminando focos de resistência Era composta em sua imensa maioria por nativos recrutados a força45 e que também eram castigados com frequência muitas vezes a bel prazer das elites militares europeias Podemos apontar que já na própria construção da infraestrutura logística ao longo da bacia do Congo houve uma dinâmica extremamente coercitiva e violenta na 40 SILVA Igor Castellano da As origens históricas do estado congolês In Congo A Guerra Mundial Africana Conflitos Armados Construção do Estado e Alternativas Para a Paz Porto Alegre Editora Leitura XXICebrafrica 2012 p 75 41 Na obra de Karl Marx intitulada O Capital essa expressão aparece como uma forma de explicar o fenômeno de aquisição de valor da mercadoria depois de finalizada O autor aponta a fragilidade do vínculo desta com a quantidade de trabalho empregada para a sua produção e outras variáveis envolviam o processo de formação do valor do produto A mercadoria passa a ter personalidade própria 42 Segundo Silva o marfim era transformado em cabos de faca tacos de bilhar pentes leques porta guardanapos teclas de piano e órgão peças de xadrez crucifixos caixas de rapé broches estatuetas e dentaduras 2012 p 75 43 Sobre a expansão por demandas de matérias prima como a borracha verificar MILANI Martinho C Capítulo 3 A Conquista In Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 2011 Dissertação Mestrado em História Econômica Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2011 121209 44 Denominada Force Publique era um exército formado com a finalidade de promover o controle do trabalho e reprimir revoltas contava com cerca de 18000 homens Ver MILANI Estado Livre do Congo Imperialismo a Roedura Geopolítica 1885 1908 p 164171 45 MILANI 2011 p 167 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 112 relação de trabalho Uma expressão dessa vivência na cadeia produtiva estava fixada na utilização do chicote O chicote era feito com couro de hipopótamo seco ao sol cortado em tiras compridas e afiadas em forma de saca rolhas Em geral era aplicado às nádegas nuas da vítima Seus golpes deixavam cicatrizes permanentes mais de 25 chibatadas podiam levar à perda da consciência cem ou mais o que não era raro muitas vezes matava46 Esse tipo de castigo era utilizado mais frequentemente no processo de exploração de marfim destacando que havia uma gama variada de torturas empregadas por oficiais em caso de baixa produção ou negação ao trabalho Também era comum encontrar em meio às trilhas corpos de carregadores que se recusavam a seguir o expediente de trabalho forçado ou mesmo que caiam desmaiados em estado de inanição e extremo cansaço Porém o que poderíamos chamar de terror as práticas mais cruéis estavam ligadas a extração da borracha Quando os homens brancos e seus guerreiros se foram retomamos nosso trabalho esperando que não voltassem mais mas eles voltaram logo depois os soldados trouxeram cestos de comida para nós carregarmos dentro dos quais carne humana defumada marchamos até tarde depois acampamos perto de um riacho onde demos graça por ter o que beber pois estávamos sedentos Não tínhamos nada para comer pois os soldados não nos deram nada E assim continuou todos os dias até o quinto quando os soldados tomaram o bebê da minha irmã e o atiraram no mato deixandoo ali para morrer e fizeram com que ela carregasse algumas panelas que haviam encontrado numa aldeia deserta47 Além de utilizar de técnicas violentas como as já mencionadas foram instalados mecanismos de controle de trabalho extremamente cruéis sobre as populações nativas Existia por exemplo um sistema de cotas para a extração da borracha se esta cota não fosse atingida além de passar por diversos níveis de tortura os nativos tinham seus familiares sequestrados e violentados só ocorrendo o seu retorno com a devida cota entregue em caso de negativa destes em extrair a borracha todos eram mortos Toda essa pressão pela exploração da borracha gerava também um problema ambiental pois o terror da punição fazia com que se empreendesse uma exploração desenfreada eliminando em muitas regiões a própria presença de seringueiras Vilas que se negavam ou estavam sem condições de explorar a borracha eram completamente dizimadas com estupros torturas mutilações e assassinatos O procedimento levou pelo menos dez milhões de pessoas à morte relacionadas a assassinatos à fome à exaustão e à própria queda na taxa de natalidade48 46 HOCHSCHILD 1999 p 131 47 Idem Ibidem p 143 Esse relato demonstra na perspectiva de uma africana nativa chamada Ilanga como era a experiência de ser capturado e escravizado pela force publique do Estado Livre do Congo 48 SILVA 2012 p 78 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 113 A resistência Ó mãe que infelizes nós somos Mas o sol há de matar o homem branco Mas a lua há de matar o homem branco Mas a bruxa há de matar o homem branco Mas o tigre há de matar o homem branco Mas o crocodilo há de matar o homem branco Mas o elefante há de matar o homem branco Mas o rio há de matar o homem branco49 Nas últimas duas décadas do século XIX houve como já observamos uma corrida pela posse dos territórios africanos neste caso com destaque para a formação do Estado Livre do Congo Quando analisamos o desenrolar do processo histórico constatamos que existe uma vasta historiografia voltada a compreender como se deu o avanço europeu sobre o continente africano não havendo muito espaço para a análise de como as sociedades africanas se comportaram no processo de dominação colonial Dessa forma é mais que necessário a abordagem desse lado da história que nem sempre é lembrada A maioria das sociedades autóctones sob domínio do Estado Livre do Congo eram inicialmente pouco resistentes à ocupação territorial belga pois identificava na figura do colonizador uma possibilidade de parceria comercial e mutua defesa contra inimigos em comum50 podemos citar como exemplo os traficantes árabes de escravos Porém a cruel cooptação ao trabalho foi o grande motivo das diversas insurgências observadas nas duas décadas iniciais ao processo de domínio colonial portanto a resistência dos povos nativos tinha duas faces uma localizada na tentativa de atenuar abusos específicos do regime colonial e outra com o foco em rebeliões destinadas à destruição do sistema estrangeiro que havia gerado tais abusos51 Podemos destacar inclusive as revoltas que envolviam a produção de borracha que teriam um regime mais agressivo de controle do trabalho gerando resistência ativa por vários anos52 49 Canção africana transcrita por missionários no Estado Livre do Congo em meados da década de 1890 Ver Hochschild O Fantasma do Rei Leopoldo p 149 50 ISSACMAN Allen VANSINA Jan Inciativas e resistências africanas na África central 1880 1914 In BOAHEN A A ed História Geral da África África sob dominação colonial 18801935 Volume VII Brasília UNESCO 2010 p 198 51 Idem Ibidem p 192 52 Entre 1885 e 1905 mais de uma dúzia de grupos teoricamente subjugados do baixo Congo e do Congo central se revoltou Entre eles os mais bemsucedidos foram os Yaka que combateram eficazmente os europeus por mais de dez anos ISAACMAN VANSINA 2010 p 198 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 114 Nesse contexto existiam duas realidades quando discutimos as relações étnicas na África central Por um lado havia aqueles grupos nativos que em nome da manutenção de sua autodeterminação e por evidentes rivalidades com povos vizinhos empregavam forças militares em favor do colonizador Porém esta situação estava longe de ser regra até mesmo históricos rivais em determinados momentos formaram coalizões a fim ofertar combate ao avanço colonialista conforme colocam Isaacman e Vansina De vez em quando rivais de longa data punham de lado sua animosidade na tentativa de sobreviver o que explica a aliança entre os Lunda da região Central e os Chokwe contra as tropas do Estado Livre do Congo apesar de mútua inimizade que remontava a mais de uma geração53 Além do confronto direto havia entre os trabalhadores africanos outras formas de boicotar o sistema de trabalho forçado colonialista como a indolência ao trabalho a destruição de bens ligados ao processo produtivo e a sonegação de impostos54 Surgindo portanto comunidades provenientes do êxodo a localidades que ficavam fora do alcance colonial nas regiões montanhosas do Congo Os africanos que tinham o privilégio de viver perto de uma fronteira internacional passavam de um lado para o outro da divisa para fugir aos coletores de impostos das suas colônias Periodicamente os Yaka atravessavam o rio Cuango que separa Angola do Congo enquanto seus compatriotas aproveitavam a falta de vigilância na fronteira para passar ao Congo francês onde se deixavam ficar até que fossem de novo perseguidos pelos agentes locais do fisco55 Entre os que ficaram ocorria com certa frequência a formação de bandos que armados defendiam os seus contra a crueldade imposta no regime de trabalho O foco dessa resistência era voltado para os símbolos da opressão rural contando com apoio de seus pares nas incursões hostis ao sistema colonial Os próprios africanos dispostos a desmantelar esses bandos e quaisquer outras revoltas também se viam em situação de rebelião regularmente devido aos maus tratos baixos salários e inadequação com a conduta apresentada por oficiais europeus Foi no Estado Livre do Congo que irromperam os motins mais violentos em 1895 toda a guarnição de Luluaborg se revoltou e sob o comando de suboficiais amotinados os soldados massacraram o chefe do posto para se vingar de sua intolerável tirania Durante mais de seis meses os rebeldes controlaram quase toda a província de Kasai mas acabaram sendo vencidos pelas tropas que permaneceram leais Dois anos depois o grosso do exército se revoltava56 53 ISAACMAN VANSINA 2010 p 200 54 Escapar de impostos era coisa frequente em toda a África central Justamente antes da chegada do coletor de impostos todos ou quase todos os habitantes de uma aldeia fugiam para lugares inacessíveis até a partida do funcionário da administração ISAACMAN VANSINA 2010 p 205 55 ISAACMAN VANSINA 2010 p 205 56 ISAACMAN VANSINA 2010 p 209 Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 115 Apesar de todos os abusos o ingresso na force publique do Estado Livre do Congo era para os nativos uma das únicas possibilidades de ascensão social portanto por mais que houvesse condições degradantes de trabalho uma das formas de evitar os castigos e torturas mais cruéis era estar ao lado do opressor CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente artigo discorremos de forma sintética sobre elementos relevantes a formação do Estado livre do Congo Entre os aspectos mais relevantes foram destacados os laços comerciais que em diversos momentos surgem como ponto de ligação entre a África e Europa Dessa forma o processo de dominação colonial no último quarto do século XIX tornouse algo mais viável levando em consideração o desmantelamento das sociedades autóctones e a fragmentação das ações de combate a imposição do regime colonial algo construído a priori por séculos de atuação do tráfico de escravos na região da bacia do Congo De equivalente modo é importante ressaltar que não podemos tratar a relação de africanos e europeus na instituição do domínio colonial como fator unilateral de degradação das sociedades autóctones Por séculos as elites locais africanas se beneficiaram do tráfico de escravos em muitos casos utilizandose de alianças com os colonizadores para combater históricos adversários étnicos Especificamente observando o objeto de estudo ficou claro que as elites dirigentes locais não ofereceram resistência a imposição territorial europeia logo no início preservando em muito seus privilégios Quanto aos processos de resistência tratando especificamente quanto as relações de trabalho fixadas a partir da criação do novo estado independente fica evidente que não havia entre os nativos quem estivesse imune a barbárie praticada pelos oficiais europeus até mesmo agentes recrutados para a execução da política desumana de coerção eram regularmente vítimas de atrocidades semelhantes a que praticavam revelando o caráter racista das relações de poder inseridas na presença europeia sobre aquele território O certo é que a passividade está escrita somente na historiografia que atende ao senso comum os povos nativos oprimidos foram sim agentes com protagonismo nesse processo e em muito combativos na resistência ao domínio colonial Os emaranhados de relações que permearam a geopolítica mundial no fim do século XIX nos trazem reflexões sobre como a dominação dos povos autóctones da África central se deu também por um discurso humanitário pois é comum na história a Revista Eletrônica Discente Históriacom Cachoeira v 5 n 10 p 100116 2018 Centro de Artes Humanidades e Letras CAHL da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB 116 construção de narrativas e justificações de caráter teoricamente benevolente para garantir a tutela sobre outros povos Na prática o que identificamos nesses discursos é a busca de um consenso na sociedade quanto aos objetivos políticos e econômicos de pequenos grupos sedentos por acumulação de riquezas Portanto o contato com a história da formação do Estado Livre do Congo nos faz pensar o quanto é tênue a relação entre passado e o presente históricos Expansão da cristianização processo civilizatório e atualmente a instituição da democracia liberal nos dá a impressão de que o passado não passa o processo de expansão do capital vai se modificando com o tempo e gerando contradições das mais diversas Essa não é o tipo de história que aprendemos na formação básica deveras não é uma história que possui heróis de classe abastada os heróis aqui são aqueles que se negaram a mobilizar forças em função da exploração de seu povo que destruíram os símbolos de sua opressão que migraram para sobreviver e aqueles também que para preservar seus iguais se submeteram as mais duras condições de trabalho O pior é pensar que em outras partes da África ocorreram práticas tão cruéis quanto e até mais nesse período