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Livro Primeiro TUDO é certo em saindo das mãos do Autor das coisas tudo degenera nas mãos do homem Ele obriga uma terra a nutrir as produções de outra uma árvore a dar frutos de outra mistura e confunde os climas as estações mutila seu cão seu cavalo seu escravo transtorna tudo desfigura tudo ama a deformidade os monstros não quer nada como o fez a natureza nem o homem tem de ensinálo para si como um cavalo de picadeiro tem que moldálo a seu jeito como uma árvore de seu jardim Sem isso tudo iria de mal a pior e nossa espécie não deve ser formada pela metade No estado em que já se encontram as coisas um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os demais seria o mais desfigurado de todos Os preconceitos a autoridade a necessidade o exemplo todas as instituições sociais em que nos achamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam no lugar dela Ela seria como um arbusto que o acaso fez nascer no meio do caminho e que os passantes logo farão morrer nele batendo de todos os lados e dobrandoo em todos os sentidos É a ti que me dirijo terna e previdente mãe1 que te soubeste afastar do caminho trilhado e proteger o arbusto nascente contra o choque das opiniões humanas Cultiva rega a jovem planta antes que morra seus frutos darteão um dia alegrias Estabelece desde cedo um cinto de muralhas ao redor da alma de tua criança Outro pode assinalar o circuito mas só tu podes erguer o muro2 Amanhamse as plantas pela cultura e os homens pela educação Se o homem nascesse grande e forte seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles ser virse Serlheiam prejudiciais impedindo os outros de pensar em 1 A educação primeira é a que mais importa e essa primeira educação cabe incontestavelmente às mulheres se o Autor da natureza tivesse querido que pertencesse aos homens terlhesia dado leite para alimentarem as crianças Falai portanto às mulheres de preferência em vossos tratados de educação pois além de terem a possibilidade de para isso atentar mais de perto que os homens e de nisso influir cada vez mais o êxito as interessa também muito mais porquanto em sua maioria as viúvas se acham quase à mercê de seus filhos e que então precisam sentir em bem ou mal o resultado da maneira pela qual os educaram As leis sempre tão preocupadas com os bens e tão pouco com as pessoas por terem como objetivo a paz e não a virtude não outorgam suficiente autoridade às mães Entretanto suas condições são mais seguras que as dos pais seus deveres mais penosos seus cuidados têm mais importância para a boa ordem da família geralmente elas se apegam mais às crianças Há ocasiões em que um filho que falta o respeito a seu pai pode até certo ponto ser desculpado mas se em qualquer oportunidade que seja um filho se revelasse bastante inumano para faltálo a sua mãe quem o carregou no seu seio quem o alimentou com seu leite quem durante anos se esqueceu a si mesma para só se ocupar dele deverseia sufocar esse miserável como um monstro indigno de ver o dia As mães dizem estragam os filhos A mãe quer que seu filho seja feliz que o seja desde logo Nisso tem razão quando se engana quanto aos meios é preciso esclarecêla A ambição a avareza a tirania a falsa previdência dos pais sua negligência sua dura insensibilidade são cem vezes mais funestas às crianças que a cega ternura das mães De resto é preciso explicar o sentido que dou a este nome de mãe e é o que se fará dentro em pouco 2 Asseguramme que Mr Fourmey pensou que eu quisesse aqui falar de minha mãe e que ele o disse em certa obra É zombar cruelmente de Mr Formey e de mim assistilo3 e abandonado a si mesmo ele morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades Deplorase o estado da infância não se vê que a raça humana teria perecido se o homem não começasse sendo criança Nascemos fracos precisamos de força nascemos desprovidos de tudo temos necessidade de assistência nascemos estúpidos precisamos de juízo Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos adultos énos dado pela educação Essa educação nos vem da natureza ou dos homens ou das coisas O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas Cada um de nós é portanto formado por três espécies de mestres O aluno em quem as diversas lições desses mestres se contrariam é mal educado e nunca estará de acordo consigo mesmo aquele em quem todas visam ao mesmos pontos e tendem para os mesmos fins vai sozinho a seu objetivo e vive em consequência Somente esse é bem educado Ora dessas três educações diferentes a da natureza não depende de nós a das coisas só em certos pontos depende A dos homens é a única de que somos realmente senhores e ainda assim só o somos por suposição pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras e as ações de todos os que cercam uma criança Sendo portanto a educação uma arte tornase quase impossível que alcance êxito total porquanto a ação necessária a esse êxito não depende de ninguém Tudo o que se pode fazer à força de cuidados é aproximarse mais ou menos da meta mas é preciso sorte para atingila Que meta será essa A própria meta da natureza isso acaba de ser provado Dado que a ação das três educações é necessária à sua perfeição é para aquela sobre a qual nada podemos que cumpre orientar as duas outras Mas talvez esta palavra natureza tenha um sentido demasiado vago é preciso tentar definilo com exatidão A natureza dizemnos é apenas o hábito4 Que significa isso Não há hábitos que só se adquirem pela força e não sufocam nunca a natureza É o caso por exemplo do hábito das plantas cuja direção vertical se perturba Em se lhe devolvendo a liberdade a planta conserva a inclinação que a obrigaram a tomar mas a seiva não muda com isso sua direção primitiva e se a planta continuar a vegetar seu prolongamento voltará a ser vertical O mesmo acontece com as inclinações dos homens Enquanto permanecemos no mesmo estado podemos conservar as que resultam do hábito e que nos são menos naturais Mas desde que a situação mude o hábito cessa e o natural se restabelece A 3 Semelhante a eles exteriormente e privado da palavra como das ideias que exprime seria incapaz de leválos a entenderem a necessidade que teriam de seu auxílio e nada nele lhes mostraria essa necessidade 4 M Foutmey asseguranos que não se diz precisamente isto Isto se me afigura entretanto muito precisamente dito neste verso a que eu me propunha responder A natureza creiame é apenas o hábito M Fourmey que não quer enobrecer seus semelhantes dános modestamente a medida de seu cérebro como a do entendimento humano educação não é certamente senão um hábito Mas não há pessoas que esquecem e perdem sua educação e outras que a conservam De onde vem essa diferença Se devemos restringir o nome de natureza aos hábitos conformes à natureza é de se poupar este galimatias Nascemos sensíveis e desde nosso nascimento somos molestados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam Mal tomamos por assim dizer consciência de nossas sensações e já nos dispomos a procurar os objetos que as produzem ou a deles fugir primeiramente segundo nos sejam elas agradáveis ou desagradáveis depois segundo a conveniência ou a inconveniência que encontramos entre esses objetos e nós e finalmente segundo os juízos que fazemos deles em relação à ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece Essas disposições se estendem e se afirmam na medida em que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos mas constrangidas por nossos hábitos elas se alteram mais ou menos sob a influência de nossas opiniões Antes dessa alteração elas são aquilo a que chamo em nós a natureza É pois a essas disposições primitivas que tudo se deveria reportar e isso seria possível se nossas três educações fossem tão somente diferentes mas que fazer quando são opostas Quando ao invés de educar um homem para si mesmo se quer educálo para os outros Então o acerto se faz impossível Forçado a combater a natureza ou as instituições cumpre optar entre fazer um homem ou um cidadão porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo Toda sociedade parcial quando restrita e bem unida alienase da grande Todo patriota é duro com os estrangeiros são apenas homens nada são a seus olhos5 Tal inconveniente é inevitável mas é fraco O essencial é ser bom à gente com a qual se vive Com os de fora o espartano era ambicioso avarento iníquo mas o desinteresse a equidade a concórdia reinavam dentro dos muros de sua cidade Desconfiai desses cosmopolitas que vão buscar em seus livros os deveres que desdenham cumprir em relação aos seus Tal ou qual filósofo ama os tártaros para ser dispensado de amar seus vizinhos O homem natural é tudo para ele é a unidade numérica é o absoluto total que não tem relação senão consigo mesmo ou com seu semelhante O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo que é o corpo social As boas instituições sociais são as que mal bem sabem desnaturar o homem tirarlhe sua existência absoluta para darlhe outra relativa e colocar o eu na unidade comum de modo que cada particular não se acredite mais ser um que se sinta uma parte da unidade e não seja mais sensível senão no todo Um cidadão de Roma não era nem Caio nem Lúcio era um romano amava mesmo uma pátria exclusivamente sua Régulo pretendia ser cartaginês como se tendo tornado a propriedade de seus senhores Na qualidade de estrangeiro recusavase a ter assento no senado de Roma foi preciso que um cartaginês lho ordenasse Indignavao que lhe 5 Por isso as guerras das repúblicas são mais cruéis que as das monarquias Mas se a guerra dos reis é moderada sua paz é terrível vale mais ser inimigo deles do que súditos quisessem salvar a vida Venceu e voltou triunfante para morrer supliciado Isso não tem muita relação pareceme com os homens que conhecemos Placedemônio Pedarete apresentase para ser admitido ao conselho dos trezentos é recusado volta satisfeito por ter encontrado em Esparta trezentos homens mais dignos do que ele Suponho que essa demonstração era sincera é de se acreditar que era Eis o cidadão Uma mulher de Esparta tinha cinco filhos no exército e aguardava notícias da batalha Chega um hilota ela pedelhe trêmula informações Vossos cinco filhos morreram Vil escravo pergunteite isso Alcançamos a vitória A mãe corre ao templo e rende graças aos deuses Eis a cidadã Aquele que na ordem civil deseja conservar a primazia da natureza não sabe o que quer Sempre em contradição consigo mesmo hesitando entre suas inclinações e seus deveres nunca será nem homem nem cidadão não será bom nem para si nem para outrem Será um dos homens de nossos dias um francês um inglês um burguês não será nada Para ser alguma coisa para ser si mesmo e sempre um é preciso agir como se fala é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar tomálo com altivez e seguilo sempre Estou à espera de que me mostrem esse prodígio a fim de saber se é homem ou cidadão ou como se arranja para ser a um tempo um e outro Desses dois objetos necessariamente opostos decorrem duas formas de instituições contrárias uma pública e comum outra particular e doméstica Quereis ter uma ideia da educação pública lede a República de Platão Não se trata de uma obra de política como pensam os que julgam os livros pelos títulos é o mais belo tratado de educação que jamais se escreveu Quando se quer enviar alguém ao país das quimeras citase a instituição de Platão Ora se Licurgo houvesse escrito a sua eu a acharia bem mais quimérica Platão não fez senão depurar o coração do homem Licurgo desnaturouo A instituição pública não existe mais e não pode mais existir porque não há mais pátria não pode haver cidadãos Estas duas palavras pátria e cidadão devem ser riscadas das línguas modernas Bem sei qual a razão mas não a quero dizer nada tem a ver com meu assunto Não encaro como uma instituição pública esses estabelecimentos ridículos a que chamam colégios6 Não levo em conta tampouco a educação da sociedade porque essa educação tendendo para dois fins contrários erra ambos os alvos ela só serve para fazer homens de duas caras parecendo sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada senão a si mesmos Ora essas demonstrações sendo comuns não 6 Há em muitas escolas e sobretudo na Universidade de Paris professores que amo que muito estimo e que acredito muito capazes de instruir a juventude se não fossem forçados a obedecer aos usos estabelecidos Exorto um deles a publicar o projeto de reforma que concebeu Serseá enfim tentado a curar o mal ao ver que não é sem remédio iludem ninguém São cuidados perdidos Dessas contradições nascem as que experimentamos sem cessar em nós mesmos Arrastados pela natureza e pelos homens por caminhos contrários obrigados a nos desdobrarmos entre tão diversos impulsos seguimos um de compromisso que não nos leva nem a uma nem a outra meta Assim combatidos e hesitantes durante toda a nossa vida nós a terminamos sem ter podido acordarnos conosco e sem termos sido bons para nós nem para os outros Resta enfim a educação doméstica ou a da natureza mas que será para os outros um homem unicamente educado para si mesmo Se o duplo objetivo que se propõe pudesse porventura reunirse num só eliminando as contradições do homem eliminar seia um grande obstáculo à sua felicidade Para julgar fora preciso vêlo inteiramente formado fora preciso ter observado suas tendências visto seus progressos acompanhado sua evolução fora preciso em poucas palavras conhecer o homem natural Creio que alguns passos terão sido dados nessas pesquisas em se lendo este livro Para formar esse homem raro que devemos fazer Muito sem dúvida impedir que nada seja feito Quando não se trata senão de ir contra o vento bordejase mas se o mar está agitado e se quer não sair do lugar cumpre lançar a âncora Toma cuidado jovem piloto para que o cabo não se perca ou que tua âncora não se arraste a fim de que o barco não derive antes que o percebas Na ordem social em que todos os lugares estão marcados cada um deve ser educado para o seu Se um indivíduo formado para o seu dele sai para nada mais serve A educação só é útil na medida em que sua carreira acorde com a vocação dos pais em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno nem que seja apenas em virtude dos preconceitos que lhe dá No Egito onde o filho era obrigado a abraçar a profissão do pai a educação tinha pelo menos um fim certo Mas entre nós quando somente as situações existem e os homens mudam sem cessar de estado ninguém sabe se educando o filho para o seu não trabalha contra ele Na ordem natural sendo os homens todos iguais sua vocação comum é o estado do homem e quem quer seja bem educado para esses não pode desempenharse mal dos que com esse se relacionam Que se destine meu aluno à carreira militar à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa Antes da vocação dos pais a natureza chamao para a vida humana Viver é o ofício que lhe quero ensinar Saindo de minhas mãos ele não será concordo nem magistrado nem soldado nem padre será primeiramente um homem Tudo o que um homem deve ser ele o saberá se necessário tão bem quanto quem quer que seja e por mais que o destino o faça mudar de situação ele estará sempre em seu lugar Occupavi te Fortuna atque cepi omnesque aditus tuos interclusi ut ad me aspirare non posses Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana Quem entre nós melhor sabe suportar os bens e os males desta vida é a meu ver o mais bem educado daí decorre que a verdadeira educação consiste menos em preceitos do que em exercícios Começamos a instruirnos em começando a viver nossa educação começa conosco nosso primeiro preceptor é nossa ama Por isso esta palavra educação tinha entre os antigos sentido diferente do que lhe damos hoje significava alimento Educit obstetrix diz Varrão educat nutrix instituit pedagogus docet magister Assim a educação a instituição a instrução são três coisas tão diferentes em seu objeto quanto a governante o preceptor e o mestre Mas tais distinções são mal compreendidas e para ser bem orientada a criança deve seguir um só guia É preciso portanto generalizar nossos pontos de vista e considerar em nosso aluno o homem abstrato o homem exposto a todos os acidentes da vida humana Se os homens nascessem arraigados ao solo de um país se a mesma estação durasse o ano todo se cada qual se prendesse a seu destino de maneira a nunca poder mudar a prática estabelecida seria boa até certo ponto a criança educada para sua condição dela não saindo nunca não poderia ser exposta aos inconvenientes de outra Mas dada a mobilidade das coisas humanas dado o espírito inquieto e agitado deste século que tudo transforma a cada geração poderseá conceber um método mais insensato que o de educar uma criança como nunca devendo sair de seu quarto como devendo sem cessar acharse cercada dos seus Se o infeliz dá um só passo na terra se desce um só degrau está perdido Não é isso ensinarlhe a suportar a dor é exercitálo a sentila Não se pensa senão em conservar a criança não basta deveselhe ensinar a conservarse em sendo homem a suportar os golpes da sorte a enfrentar a opulência e a miséria a viver se necessário nos gelos da Islândia ou no rochedo escaldante de Malta Por maiores precauções que tomeis para que não morra terá contudo que morrer E ainda que sua morte não fosse obra de vossos cuidados ainda assim estes seriam mal entendidos Tratase menos de impedila de morrer que de fazêla viver Viver não é respirar é agir é fazer uso de nossos órgãos de nossos sentidos de nossas faculdades de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência O homem que mais vive não é aquele que conta maior número de anos e sim o que mais sente a vida Há quem seja enterrado a cem anos e que já morrera ao nascer Teria ganho em ir para o túmulo na mocidade se ao menos tivesse vivido até então Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis todos os nossos usos não são senão sujeição embaraço e constrangimento O homem civil nasce vive e morre na escravidão ao nascer envolvemno em um cueiro ao morrer encerramno em um caixão enquanto conserva sua figura humana está acorrentado a nossas instituições Dizem que muitas parteiras pretendem com massagens na cabeça das crianças recémnascidas darlhe uma forma mais conveniente e aceitase isso Nossas cabeças estariam erradas se em obediência ao Autor de nosso ser cumprenos modelálas de fora pelas parteiras e por dentro pelos filósofos Os caribes são metade mais felizes do que nós Mal a criança sai do seio da mãe mal goza a liberdade de se mexer e distender seus membros já lhe dão novas cadeias Enrolamna em faixas deitamna com a cabeça imóvel e as pernas alongadas os braços pendentes ao lado do corpo envolvemna em toda espécie de panos e tiras que não lhe permitem mudar de posição Que se deem por felizes se não se veem apertadas a ponto de não poderem respirar se tiveram a precaução de deitála de lado para que o liquido que deve devolver caia por si mesmo pois não teria a liberdade de virar a cabeça a fim de facilitar o escorrimento O recémnascido precisa distender e movimentar seus membros para arrancálos do entorpecimento em que juntados numa espécie de pelota ficam tanto tempo Distendemnos é verdade mas impedemnos de se mexerem ajeitam até a cabeça dentro de toucas Dirseia que têm medo de que pareçam viver Assim o impulso das partes internas de um corpo que tende a crescer encontra um obstáculo insuperável aos movimentos que esse impulso exige A criança faz continuamente esforços inúteis que lhe esgotam as forças ou atrasam seu progresso Estava menos comprimida no âmnio do que nas suas fraldas não vejo o que ganhou em nascendo A inação o constrangimento em que mantêm os membros da criança não podem senão perturbar a circulação do sangue dos humores impedir a criança de se fortalecer de crescer e alterar sua constituição Nos lugares em que não se tomam tais precauções extravagantes os homens são mais altos fortes bem proporcionados Os países onde enfaixam as crianças são os que mais exibem corcundas mancos cambaios raquíticos aleijados de todo tipo De medo que os corpos se deformem com movimentos livres apressamse em deformálos imprensandoos Tornálosiam de bom grado paralíticos a fim de impedilos de se estropiarem Tão cruel constrangimento poderia não influir em seu humor em seu temperamento Seu primeiro sentimento é um sentimento de dor e de esforço só encontram obstáculos a todos os movimentos de que necessitam Mais desgraçados do que um criminoso algemado fazem esforços vãos irritamse gritam Seus primeiros sons dizei vós são de choro É evidente Vós os contrariais desde o nascimento o primeiro presente que recebem de vós são algemas os primeiros tratos que experimentam são tormentos Nada tendo de livre senão a voz como não se servirem dela para se queixarem Choram por causa do mal que vós lhes fazeis Assim envolvidos e amarrados gritaríeis mais do que eles De onde vem esse hábito insensato De um costume antinatural Desde que as mães desprezando seu principal dever não mais quiseram amamentar os filhos foi preciso confiálos a mulheres mercenárias que vendose assim mães de filhos estranhos e não sentindo o apelo da natureza não se preocuparam senão com poupar trabalho Fora necessário vigiar sem cessar uma criança em liberdade mas estando ela bem amarrada basta jogála num canto sem se incomodar com os gritos Desde que não haja provas da negligência da ama desde que o bebê não quebre o braço ou a perna que importa afinal que morra aleijado para o resto da vida Conservamse seus membros a expensas de seu corpo e a ama é desculpada aconteça o que acontecer Essas ternas mães que livres de seus filhos se entregam alegremente aos divertimentos da cidade sabem porventura que tratamento recebe a criança em suas faixas na aldeia Ante o menor aborrecimento que venha a ocorrer suspendemna a um prego como um trapo e enquanto sem se apressar a ama trata de seus afazeres a infeliz fica crucificada Todas as que foram encontradas nessa posição tinham a cara roxa Com o peito fortemente comprimido que impedia a circulação o sangue subia à cabeça E acreditavase estivesse a paciente mui tranquila porque em verdade não tinha forças para gritar Ignoro quantas horas uma criança pode permanecer nesse estado sem perder a vida mas duvido que possa ir muito longe Eis penso uma das maiores comodidades do enfaixamento Supõese que as crianças em liberdade podem colocarse em más posições e efetuar movimentos suscetíveis de prejudicar a boa conformação de seus membros Tratase de um desses raciocínios gratuitos de nossa falsa sabedoria e que jamais uma experiência confirmou Na multidão de crianças que entre os povos mais sensatos do que nós são criadas com inteira liberdade de seus membros não se vê uma só que se fira ou se estropie Não poderiam dar a seus movimentos a força que os tornariam perigosos E quando se colocam numa posição errada logo a dor as adverte de que devem mudar Não nos lembramos ainda de enfaixar os filhotes de cães ou gatos têmse visto resultar alguns inconveniente dessa negligência Certamente as crianças são mais pesadas mas proporcionalmente são também mais fracas Mal podem mexerse como se estropiariam Se as puséssemos de costas morreriam nessa posição como as tartarugas sem nunca poder virarse Não contentes com terem deixado de amamentar seus filhos as mulheres se recusam a fazêlos a consequência é natural A partir do momento em que o estado de mãe se torna oneroso encontrase logo um meio de se desembaraçar dele inteiramente querse realizar um trabalho inútil a fim de recomeçálo sempre e contra a espécie é que se volta a atração dada para multiplicála Esse expediente acrescentado às outras causas de despovoamento anuncia o destino próximo da Europa As ciências as artes a filosofia e os costumes que engendra não tardarão em fazer dela um deserto Será povoada de animais ferozes não terá mudado muito de habitantes Tive a oportunidade de ver por vezes o jeitinho das jovens mulheres que fingem querer amamentar seus filhos Sabem fazer com que as instiguem a renunciarem a tal fantasia fazem com que intervenham habilmente os maridos e os médicos7 sobretudo as mães Um marido que ousasse consentir que sua mulher amamentasse o filho seria um homem perdido tachariamno de assassino desejoso de se livrar dela Maridos prudentes precisam imolar o amor paterno no altar da paz Felizes os que encontram no campo mulheres mais virtuosas do que as próprias Mais felizes ainda em acontecendo que o tempo por estas ganho a outros não se destine O dever das mulheres não é discutível o que se discute é se em o 7 A aliança das mulheres com os médicos sempre se me afigurou uma das mais divertidas singularidades de Paris É através das mulheres que os médicos adquirem sua reputação e é através deles que as mulheres fazem suas vontades Vêse por aí que espécie de habilidade é necessária a um médico de Paris para se tornar célebre menosprezando importa serem os filhos amamentados por elas ou por outras Considero essa questão de que são juízes os médicos como resolvida em favor das mulheres Pareceme a mim de resto que mais vale a criança mamar o leite de uma ama saudável que o de uma mãe degenerada se houvesse algum mal a temer do sangue que tem nas veias Mas devese encarar o problema exclusivamente pelo lado físico E terá a criança menos necessidade dos cuidados de uma mãe que de seu seio Outras mulheres e até bichos poderão darlhe o leite que ela lhe recusa a solicitude materna não se supre É mãe condenável a que alimenta o filho de outra em lugar do seu como poderia ser um boa ama Poderá tornarse porém lentamente será preciso que o hábito mude a natureza e a criança mal tratada terá tempo de morrer cem vezes antes que a ama por ela se tome de uma ternura de mãe Dessa vantagem já resulta um inconveniente que deveria tirar de toda mulher sensível a coragem de fazer amamentar o filho por outra o de partilhar o direito de mãe ou antes o de alienálo O de ver seu filho amar outra mulher tanto quanto ela ou mais o de sentir que a ternura que conserva por sua mãe verdadeira é uma graça e a que dedica a sua mãe adotiva um dever pois onde encontro os cuidados de uma mãe devo ter o apego de um filho A maneira de remediar a tal inconveniente é inspirar às crianças desprezo por suas amas tratandoas como verdadeiras criadas Terminado seu serviço retirase a criança ou despedese a ama à força de recebêla mal fazse com que se desgoste de ver o bebê Ao fim de alguns anos ele não a vê mais não a conhece mais A mãe que imagina substituirse a ela e corrigir sua negligência mediante sua crueldade enganase Ao invés de fazer um filho amoroso de um bebê desnaturado ela o exercita na ingratidão ensinalhe a desprezar um dia quem lhe deu a vida tal qual quem lhe deu o leite Como eu insistiria neste ponto se fosse menos desanimador debater em vão questões úteis Isso se prende a mais coisas do que se imagina Quereis fazer com que todos se atenham a seus deveres Começai pelas mães ficareis espantados com as mudanças que provocareis Tudo provém sucessivamente dessa primeira depravação toda a ordem moral se altera o natural se apaga em todos os corações o interior das casas fazse menos vivo o espetáculo comovente de uma família em formação não mais prende os maridos não impõe mais deferência aos estranhos respeitase menos a mãe cujos filhos não se veem não há mais achego nas famílias o hábito não reforça mais os laços do sangue não há mais pais nem mães nem filhos nem irmãos nem irmãs mal se conhecem todos como se amariam Ninguém mais pensa senão em si Quando a casa não passa de uma triste solidão cumpre divertirse alhures Mas que as mães concordem em amamentar seus filhos e os costumes reformar seão sozinhos os sentimentos da natureza despertarão em todos os corações o Estado se repovoará E este ponto tãosomente este ponto vai tudo unir A atração da vida doméstica é o melhor contraveneno para os maus costumes O aborrecimento das crianças que se imagina importuno tornase agradável torna o pai e mãe mais necessários mais caros um ao outro estreita entre eles a ligação conjugal Quando a família é viva e animada os cuidados domésticos tornamse a mais cara ocupação da mulher e o mais doce divertimento do marido Assim desse único abuso corrigido resultaria em breve uma reforma geral logo a natureza readquiriria seus direitos Em voltando as mulheres a ser mães logo os homens voltariam a ser pais e maridos Palavras supérfluas Nem mesmo o tédio dos prazeres da vida social traz de volta àqueles As mulheres deixaram de ser mães não o serão mais não o querem mais ser Ainda que o quisessem mal o poderiam Agora que o costume contrário se estabeleceu cada uma delas teria de combater a oposição de todas as companheiras ligadas contra um exemplo que algumas não deram e que outras não querem seguir Encontramse ainda por vezes entretanto jovens mulheres de bom natural que ousando enfrentar sob esse aspecto o império da moda cumprem com virtuosa intrepidez o dever tão suave que a natureza lhes impõe Possa seu número aumentar com a atração dos bens destinados às que a ele se entregam Baseado nas consequências que oferece o mais simples raciocínio e em observações que nunca vi desmentidas ouso prometer a essas dignas mães um apelo sólido e constante de seus maridos uma ternura realmente filial por parte de seus filhos a estima e o respeito do público partos felizes sem acidentes nem consequências uma saúde constante e vigorosa o prazer enfim de se verem um dia imitadas por suas filhas e citadas como exemplo às de outrem Em não havendo mãe não pode haver filho Entre ambos os deveres são recíprocos e se são mal cumpridos de um lado de outro são negligenciados O filho deve amar a mãe antes de saber se o deve Se a voz do sangue não for fortalecida pelo hábito e pelos cuidados ela se extinguirá nos primeiros anos e o coração morrerá por assim dizer antes de nascer Eisnos desde os primeiros dias fora da natureza Desta se sai ainda por caminho oposto quando ao invés de negligenciar os cuidados de mãe uma mulher os leva ao exagero quando ela faz de seu filho um ídolo quando aumenta e alimenta sua fraqueza para impedilo de sentila e que esperando subtraílo às leis da natureza dele afasta os insultos penosos sem pensar quanto ao preço de alguns incômodos de que o preserva um instante ela acumula ao longe acidentes e perigos sobre a cabeça dele e a que ponto é precaução bárbara prolongar a fraqueza da infância sob a fadiga dos homens feitos Tétis para tornar seu filho invulnerável mergulhouo diz a fábula nas águas do Estige Essa alegoria é bela e clara As mães cruéis de que falo agem de outra maneira à força de mergulhar seus filhos na moleza preparamnos para o sofrimento abremlhes os poros aos males de toda espécie de que não deixarão de ser presas ao crescerem Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica Ela exercita continuamente as crianças ela enrijesse seu temperamento mediante experiências de toda espécie ela ensinalhes desde cedo o que é pena e dor Os dentes que apontam dãolhes febres as cólicas agudas dãolhes convulsões as tosses prolongadas sufocam nos os vermes atormentamnos a pletora corrompelhes o sangue fermentações diversas neste se manifestam e provocam erupções perigosas Quase toda a primeira infância é doença e perigo metade das crianças que nascem morre antes dos oito anos Passando pelas provações a criança adquiriu forças e desde logo que pode usar a vida mais seguro se torna o princípio dela Essa a regra da natureza Por que a contrariais Não vedes que pensando corrigi la destruís sua obra impedis o efeito de seus cuidados Fazer por fora o que ela faz por dentro é a vosso ver aumentar o perigo e ao contrário é provocar uma diversão é atenuálo Mostra a experiência que morrem mais crianças criadas delicadamente do que outras Conquanto não se ultrapasse a medida de suas forças arriscase menos empregandoas do que as poupando Exercitaias portanto nas afrontas que um dia terão de suportar Enrijeceilhes o corpo às intempéries das estações dos climas dos elementos à fome à sede ao cansaço mergulhaias nas águas do Estige Antes que se adquira o hábito do corpo dáselhe o que se quer sem perigo Mas uma vez em sua consistência qualquer alteração se torna perigosa Uma criança suportará mudanças que um homem não suporta as fibras dela moles flexíveis tomam sem esforço as dobras que se lhes impõem as do homem mais endurecidas só com violência mudam as que receberam Podese portanto tornar uma criança robusta sem expor sua vida e sua saúde e ainda que houvesse algum risco não se deveria hesitar Se são riscos inseparáveis da vida humana podese agir melhor do que transpôlos para o tempo de sua duração em que são menos prejudiciais Uma criança se torna mais preciosa na medida em que se faz mais idosa Ao preço de sua pessoa juntase o dos cuidados que custou à perda da vida juntase nela o sentimento da morte É portanto no futuro que é preciso pensar zelando pela sua conservação é contra os males da juventude que é preciso defendêla antes que a eles chegue Se o preço da vida aumenta até a idade de a tornar útil não será loucura poupar alguns males na infância multiplicandoos na idade da razão Serão essas as lições do mestre O destino do homem é sofrer em qualquer época O próprio cuidado de sua conservação está ligado à dor Felizes os que só conhecem na infância os males físicos males bem menos cruéis bem menos dolorosos do que os outros e que bem mais raramente do que eles nos fazem renunciar à vida Ninguém se mata com as dores da gota somente as da alma suscitam o desespero Temos dó da sorte da infância mas é da nossa que deveríamos ter Nossos maiores males vêm de nós mesmos Ao nascer uma criança grita sua primeira infância passa a chorar Sacodemna às vezes ou a acariciam para acalmála ameaçamna também e batemna para que se cale Ou fazemos o que lhe agrada ou dela exigimos o que nos agrada Ou nos submetemos a Suas fantasias ou a submetemos às nossas não há meio termo é preciso que nos dê ordens ou que as receba Assim suas primeiras ideias são de império ou de servidão Antes de saber falar ela manda antes de poder agir ela obedece e não raro castigamna antes que ela possa conhecer seus erros Ou os cometer E assim é que se inculcam em seu jovem coração as paixões imputadas a seguir à natureza e que depois de ter se esforçado por tornála má a gente se queixa de descobrila má Uma criança passa assim seis ou sete anos dessa maneira nas mãos das mulheres vítimas dos caprichos delas e do seu próprio E depois de lhe ensinar isto ou aquilo isto é depois de ter sobrecarregado sua memória com palavras que não pode entender ou com coisas que em nada lhe auxiliam depois de ter abafado o natural com paixões que se incitam entregase esse ser factício nas mãos de um preceptor o qual acaba de desenvolver os germens artificiais que já encontra formados e lhe ensina tudo menos a se conhecer menos a tirar proveito de si mesmo menos a saber viver bem e se tornar feliz Finalmente quando essa criança escrava e tirana cheia de conhecimentos e desprovida de sentidos igualmente débil de corpo e de alma é jogada no mundo mostrando sua inépcia seu orgulho e todos os seus vícios ela faz com que se deplorem a miséria e a perversidade humanas Enganamonos esse é o homem de nossa fantasia o da natureza é diferente Quereis que conserve sua forma original Conservai a partir do instante em que vem ao mundo Logo ao nascer apropriaivos dele não o largueis antes que seja homem nada conseguireis sem isso Assim como a verdadeira ama é a mãe o verdadeiro preceptor é o pai Que se acordem na ordem de suas funções bem como em seu sistema que das mãos de uma passe às mãos de outro Será mais bem educado por um pai judicioso e limitado do que pelo mais hábil preceptor do mundo porquanto o zelo substituirá mais o talento do que o talento o zelo Mas os negócios as funções os deveres Ah os deveres sem dúvida o último é o do pai8 Que não nos espante o fato de um homem cuja mulher desdenhou alimentar o fruto de sua união desdenhe educálo Não há quadro mais encantador que o da família mas um só traço errado desfigura todos os demais Se a mãe não tem bastante saúde para ser ama o pai tem negócios demais para ser preceptor Os filhos afastados espalhados por pensões ou conventos ou colégios levarão para alhures o amor à casa paterna ou melhor a esta levarão o hábito de não se apegarem a nada Os irmãos e irmãs mal se conhecerão Quando todos se reunirem em alguma cerimônia serão corteses entre si mas se tratarão como estranhos Desde que não haja mais intimidade entre parentes desde que a companhia da família não contribua mais para a doçura da vida será necessário recorrer aos maus costumes para suprila Quem será bastante estúpido para não ver o encadeamento disso tudo Um pai quando engendra e alimenta seus filhos não faz nisso senão o terço de sua tarefa Deve homens a sua espécie deve à sociedade homens sociáveis deve cidadãos ao Estado Todo homem que pode pagar essa dívida tríplice e não o faz é culpado e mais culpado ainda talvez quando a paga em parte Quem não pode pagar os deveres de pai não tem o direito de ser pai Não há nem pobreza nem tarefas nem 8 Quando se lê em Plutarco que Catão o Censor que governou Roma com tanta glória educou ele próprio o filho desde o berço e com tal cuidado que tudo abandonava para estar presente quando a ama isto é a mãe a virava e lavava quando se lê em Suetônio que Augusto senhor do mundo por ele conquistado e por ele dirigido ensinava ele próprio a seus netos a escrita a natação os elementos das ciências e que os tinha sempre a seu lado não se pode deixar de rir das gentinhas daquela época que se divertiam com semelhantes bobagens demasiadas medíocres sem dúvida para saberem atender às grandes questões dos grandes homens de hoje respeito humano que o dispensem de nutrir seus filhos e de educálos ele próprio Leitores podeis acreditar em mim predigo que quem quer que seja tenha entranhas e negligencie tão santos deveres derramará por sua causa lágrimas amargas e nunca se consolará Mas que faz esse homem rico esse pai de família tão ocupado e forçado a seu ver de abandonar os filhos Paga outro homem para prodigalizar os cuidados que lhe cabem Alma venal Imaginas dar a teu filho outro pai com dinheiro Não te enganes não é sequer um mestre que lhe dás é um criado Ele formará dentro em breve outro Discutese muito acerca das qualidades de um bom governante A primeira que eu exigiria e essa supõe muitas outras seria não ser um homem à venda Há ofícios tão nobres que ninguém os pode desempenhar por dinheiro sem se mostrar indigno o guerreiro por exemplo o instrutor Quem então educará meu filho Já o disse tu mesmo Não o posso Não o podes Transformate então em amigo Não vejo outra solução Um governante ó que alma sublime Em verdade para fazer um homem é preciso ser pai ou mais do que um homem e eis a função que confiais tranquilamente a mercenários Quanto mais se pensa nisso mais se depara com novas dificuldades Fora preciso que o governante tivesse sido educado para seu aluno que seus criados tivessem sido educados para seu senhor que todos os que dele se aproximam tivessem recebido as impressões que lhe devem comunicar fora preciso de educação em educação remontar a não sei onde Como pode ocorrer que uma criança seja bem educada por quem não o foi ele próprio Encontrarseá esse mortal Ignoroo Nestes tempos de aviltamento quem sabe a que ponto de virtude pode atingir uma alma humana Mas suponhamos esse prodígio encontrado É considerando o que deve fazer que veremos o que deve ser O que eu imagino ver de antemão é que um pai que sentisse todo o valor de um bom governante tomaria a resolução de passar sem ele pois teria mais dificuldade em adquirilo que em o tornarse ele próprio Quer então ter um amigo que eduque seu filho para sêlo eilo dispensado de procurálo alhures e já a natureza fez metade de sua tarefa Alguém de quem conheço apenas a posição social propôsme educar o filho Honroume muito sem dúvida mas longe de se queixar de minha recusa deve agradar se de minha discrição Seu eu tivesse aceito seu oferecimento e tivesse errado no meu método teria sido uma educação falhada se tivesse tido êxito fora muito pior seu filho teria renegado seu título não houvera mais querido ser príncipe Estou por demais compenetrado da grandeza dos deveres de um preceptor para aceitar semelhante emprego de quem quer que me ofereça e o próprio interesse da amizade seria para mim mais um motivo de recusa Acredito que depois de ter lido este livro pouca gente seria tentada a me fazer tal oferecimento e peço a quem o pudesse ser a não se dar ao trabalho inútil de fazêlo Fiz outrora uma experiência suficiente para convencerme de que não tenho disposição para tanto e de que minha condição me dispensaria da obrigação ainda que meus conhecimentos me tornassem capaz dela Acreditei dever esta declaração pública àqueles que parecem não me outorgar bastante estima para me acreditarem sincero e assentado na minha resolução Na impossibilidade de cumprir a tarefa mais útil ousarei ao menos tentar a mais fácil a exemplo de tantos outros não porei a mão na massa e sim na pena e ao invés de fazer o que é preciso esforçarmeei por dizêlo Sei que em empresas semelhantes a esta o autor sempre à vontade em sistema que é dispensado de pôr em prática dá sem pena muitos belos preceitos impossíveis de serem seguidos e que na falta de pormenores e de exemplos o que diz de praticável permanece sem aplicação quando ele não a mostra Tomei portanto o partido de me dar um aluno imaginário de supor a idade a saúde os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar na sua educação conduzila desde o momento de seu nascimento até aquele em que homem feito não terá mais necessidade de outro guia senão ele próprio Esse método parece me útil para impedir um autor que desconfia de si de se perder em visões Sim porque a partir do momento em que se afasta da prática ordinária não lhe cabe senão experimentar a sua no seu aluno Sentirá desde logo ou o leitor o sentirá por ele se acompanha o progresso da infância e a marcha natural do coração humano Eis o que tentei fazer em todas as dificuldades que se apresentaram Para não ampliar excessivamente o livro contenteime com pôr os princípios cuja verdade todos deviam sentir Mas quanto às regras que poderiam ter necessidade de provas apliquei as todas a meu Emílio ou a outros exemplo e mostrei em pormenores assaz precisos como o que eu estabelecia podia ser praticado Esse é ao menos o plano que me propus executar Cabe ao leitor julgar se o consegui Disso decorreu que de início pouco falei de Emílio porque minhas primeiras máximas de educação embora contrárias às estabelecidas são de uma evidência a que é difícil a qualquer homem de bom senso recusar seu consentimento Mas na medida em que avanço meu aluno dirigido diferentemente dos vossos não é mais uma criança ordinária Precisa de um regime próprio Então ele aparece mais frequentemente no palco e nos últimos tempos não o perco mais de vista até que diga o que disser não tenha mais a menor necessidade de mim Não falo aqui das qualidades de um bom governante suponhoas e me suponho a mim mesmo dotado de todas essas qualidades Lendo esta obra verão que liberalidade outorgo a mim mesmo Observarei tãosomente contra a opinião comum que o governante de uma criança deve ser jovem e até tão jovem quanto o pode ser um homem sensato Gostaria que ele pudesse ser ele próprio criança se possível que pudesse tornarse o companheiro de seu aluno e angariar sua confiança partilhando seus divertimentos Não há suficientes coisas comuns entre a infância e a idade madura para que se consiga uma afeição muito sólida com tal distância As crianças por vezes adulam os velhos mas não os amam nunca Desejarseia que o governante já tivesse praticado uma educação É demais um mesmo homem só pode fazer uma Se fossem necessárias duas para ter êxito com que direito se empreenderia a primeira Com um pouco mais de experiência seria possível fazer melhor mas não se poderia mais fazêlo Quem quer que seja tenha tentado isso uma vez bastante bem para sentirlhe todas as penas não procura recomeçar E em se tendo tido mau resultado da primeira vez já se tem um mau preconceito para a segunda É muito diferente concordo acompanhar um jovem durante quatro anos do que orientálo durante vinte e cinco Dais um governante a vosso filho já formado eu quero que tenha um antes de nascer Vosso homem a cada lustro pode mudar de aluno o meu só terá um Vós distinguis o preceptor do governante outra loucura Distinguis o discípulo do aluno Há somente uma ciência a ensinar às crianças é a dos deveres do homem Essa ciência é uma e o que quer que tenha dito Xenofonte da educação dos persas ela não se partilha De resto eu chamo governante de preferência a preceptor o mestre dessa ciência porque se trata menos para ele de instruir que de conduzir Ele não deve dar preceitos deve fazer com que os encontrem Se é preciso escolher com tanto cuidado o governante élhe também permitido escolher seu aluno principalmente quando se trata de um modelo a ser proposto Essa escolha não pode cair nem no gênio nem no caráter da criança que só se conhece no fim da tarefa e que eu adoto antes de nascer Se pudesse escolher só tomaria um espírito comum tal qual suponho meu aluno Só se tem necessidade de educar os homens comuns somente sua educação deve servir de exemplo à de seus semelhantes Os demais se educam de qualquer maneira A terra não é indiferente à cultura dos homens eles só são o que podem ser nos climas temperados Nos climas extremados a desvantagem é visível Um homem não é plantado como uma árvore em certa terra para nela sempre ficar e quem parte de um dos extremos para chegar a outro é obrigado a fazer duas vezes o caminho a fim de chegar à mesma meta que quem parte de meio caminho Ainda que o habitante de um país temperado vá sucessivamente aos dois extremos sua vantagem é evidente pois embora tanto se ressinta quanto quem vai de um extremo a outro se afasta de metade apenas de sua constituição natural Um francês vive na Guiné ou na Lapônia mas um negro não viverá igualmente na Suécia nem um habitante de Samoa no Benim Parece ainda que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois extremos Nem os negros nem os lapões têm o equilíbrio dos europeus Se quero portanto que meu aluno seja habitante da terra tenho que escolhêlo numa zona temperada na França por exemplo de preferência No Norte os homens consomem muito num solo ingrato no Sul consomem pouco num solo fértil Daí nasce essa diferença que torna uns laboriosos e outros contemplativos A sociedade oferecenos em um mesmo lugar a imagem dessas diferenças entre os pobres e os ricos os primeiros habitam um solo ingrato os outros uma terra fértil O pobre não precisa de educação é obrigatória a de sua condição não poderia ter outra Ao contrário a educação que o rico recebe de sua condição é a que menos lhe convém tanto para si mesmo quanto para a sociedade Ademais a educação natural deve tornar um homem adaptável a todas as condições humanas ora é menos razoável educar um pobre para ser rico do que um rico para ser pobre pois em proporção do número das duas condições há mais arruinados do que enriquecidos Escolhamos portanto um rico teremos certeza ao menos de ter feito um homem a mais ao passo que um pobre pode tornarse homem sozinho Pela mesma razão não me desagradaria que Emílio tivesse berço Será sempre uma vítima arrancada do preconceito Emílio é órfão Pouco importa que tenha pai e mãe Assumindo seus deveres adquiro seus direitos Ele deve honrar seus pais mas só deve obedecer a mim É minha condição primeira ou melhor minha única condição Devo acrescentar outra consequência dessa a de que não nos separarão jamais um do outro sem nosso consentimento Esta cláusula é essencial e eu desejaria mesmo que aluno e governante se encarassem a tal ponto como inseparáveis que o destino de seus dias sempre fosse por eles olhado como um objeto comum A partir do momento em que encare uma separação no afastamento a partir do momento em que prevejam a hora em que deverão tornarse estranhos um ao outro já o serão cada qual construirá seu pequeno sistema particular e ambos preocupados com o dia em que não estarão mais juntos só o ficarão a contragosto O discípulo só olha o mestre como a marca e o flagelo de sua infância o mestre só olha o discípulo como um fardo pesado de que aspira a desembaraçarse o mais depressa possível sonham ambos como se libertarem um do outro e como não há nunca entre eles verdadeira afeição um deve ter pouca vigilância e outro pouca docilidade Mas quando eles se veem como devendo passar a vida juntos importalhes fazeremse amar mutuamente e por isso mesmo se tornam caros um a outro O aluno não se envergonha de acompanhar na infância o amigo que deverá ter em crescendo o governante toma interesse pelos cuidados cujo fruto deverá colher e todo o tempo que dá a seu aluno é um capital que aplica em proveito de sua velhice Esse contrato estabelecido de antemão supõe um parto feliz uma criança bem formada vigorosa sadia Um pai não tem escolha e não deve ter preferência na família que Deus lhe dá todos os filhos são igualmente seus filhos deve a todos os mesmos cuidados e a mesma ternura Estropiados ou não anêmicos ou robustos cada um deles é um depósito de que deve prestar contas àquele de quem o recebe e o casamento é um contrato feito com a natureza tanto quanto entre os cônjuges Mas quem quer se imponha um dever que a natureza não lhe impôs deve assegurarse antes dos meios de cumprilo de outro modo tornase culpado até do que não puder fazer Quem se encarrega de um aluno enfermo e valetudinário troca sua função de governante pela de enfermeiro perde com tratar de uma vida inútil o tempo que destinava a valorizála expõese a ver uma mãe desesperada censurarlhe um dia a morte de um filho que ele lhe terá conservado por muito tempo Eu não me encarregaria de uma criança doentia e caquética ainda que devesse viver oitenta anos Não quero saber de um aluno sempre inútil a si mesmo e aos outros que só se ocupe com se conservar e cujo corpo prejudique a educação da alma Que faria prodigalizandolhe em vão meus cuidados senão dobrar o prejuízo da sociedade arrancandolhe dois homens ao invés de um só Que outro em meu lugar se encarregue desse enfermo concordo e aprovo sua caridade mas meu ofício não é esse não sei ensinar a viver a quem não pensa senão em não morrer É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma um bom servidor deve ser robusto Sei que a intemperança excita as paixões extenua também o corpo com o tempo as macerações os jejuns produzem amiúde os mesmos efeitos por uma causa oposta Quanto mais fraco o corpo mais ele comanda quanto mais forte mais obedece Todas as paixões sensuais se abrigam em corpos efeminados e estes tanto mais se irritam quanto menos as podem satisfazer O corpo débil enfraquece a alma Daí o império da medicina arte mais perniciosa aos homens do que todos os males que pretende curar Não sei quanto a mim de que doenças nos curam os médicos mas sei que nos dão algumas assaz funestas a covardia a pusilanimidade a credulidade o pavor da morte se curam o corpo matam a coragem Que nos importa façam eles com que andem cadáveres é de homens que precisamos e estes não os vemos saírem das mãos deles A medicina está na moda entre nós ela deve estar É o divertimento das pessoas ociosas desocupadas que não sabendo que fazer de seu tempo o desperdiçam conservandose Se tivessem tido a desgraça de nascerem imortais seriam os mais miseráveis dos seres uma vida que nunca teriam medo de perder não lhes seria de nenhum valor Essa gente precisa de médicos que a ameacem para lisonjeála e lhe deem todos os dias o único prazer que podem ter o de não estarem mortos Não tenho o menor intuito de me estender aqui acerca da vaidade da medicina Meu objetivo é apenas encarála pelo lado moral Não posso impedirme entretanto de observar que os homens empregam a seu respeito os mesmos sofismas que acerca da procura da verdade Supõem sempre que tratando de um doente o curam e que procurando uma verdade a encontram Não vêem que cumpre equilibrar uma cura operada pelo médico com a morte de cem doentes que ele mata e a utilidade de uma verdade descoberta com malefício dos erros perpetrados ao mesmo tempo A ciência que instrui e a medicina que cura são muito boas sem dúvida mas a ciência que engana e a medicina que mata são más Ensinainos portanto a distinguilas Eis o X do problema Se soubéssemos ignorar a verdade nunca seriamos iludidos pela mentira se soubéssemos não querer morrer contra a natureza nunca morreríamos pela mão do médico essas duas abstinências seriam sábias ganharíamos evidentemente com nos sujeitarmos a elas Não discuto se a medicina pode ser útil a alguns homens digo que é funesta ao gênero humano Dirmeão como o fazem sem cessar que os erros são do médico mas que a medicina em si é infalível Ainda bem mas que venha então sem médico pois enquanto vierem juntos será cem vezes mais de se temerem os erros do artista que se esperar o socorro da arte Essa arte mentirosa mais feita para os males do espírito que para os do corpo não é mais útil a uns do que a outros curanos menos de nossas doenças do que nos outorga o pavor delas recua menos a morte do que nos faz sentila de antemão desgasta a vida ao invés de prolongála e ainda que a prolongasse seria em prejuízo da espécie porquanto nos afasta da sociedade pelos cuidados que nos impõe e dos nossos deveres pelos temores que nos dá É o conhecimento dos perigos que nos faz temêlos quem se acreditasse invulnerável não teria medo de nada À força de armar Aquiles contra o perigo o poeta tiralhe o mérito da coragem qualquer outro no lugar dele teria sido também um Aquiles Quereis encontrar homens de verdadeira coragem Procuraios nos lugares onde não há médicos onde se ignoram as consequências das doenças onde não se pensa na morte O homem sabe naturalmente sofrer com firmeza e morre em paz São os médicos com suas receitas os filósofos com seus preceitos os padres com suas exortações que lhes aviltam a coragem e os levam a desaprenderem de morrer Que me deem um aluno que não precise dessa gente ou o recusarei Não quero que outros estraguem minha obra quero educálo sozinho ou não me meter nisso O sábio Locke que passou parte de sua vida estudando a medicina recomenda fortemente que não se droguem as crianças nem por precaução nem por causa de ligeiros incômodos Irei mais longe e declaro que nunca chamando médico para mim nunca chamarei para meu Emílio a menos que sua vida se ache em perigo evidente porque então não poderá fazer pior do que matálo Bem sei que o médico não deixará de tirar proveito da demora Se a criança morrer têloão chamado tarde demais se escapar ele a terá salvo Seja que o médico triunfe mas principalmente que só seja chamado em último caso Na impossibilidade de saber curarse que a criança saiba ficar doente esta arte supre a outra e muitas vezes dá melhor resultado é a arte da natureza Quando o animal está doente sofre em silêncio e não se mexe ora não se vê maior número de animais abatidos que de homens A que ponto a impaciência o temor a inquietude e principalmente os remédios puderam matar indivíduos que a doença teria poupado e que o tempo houvera curado Dirão que os animais vivendo de maneira mais de acordo com a natureza devem estar sujeitos a menor número de males do que nós Pois bem essa maneira de viver é precisamente a que eu quero dar a meu aluno deve ele portanto tirar dela igual proveito A única parte útil da medicina é a higiene e a higiene é menos uma ciência que uma virtude A temperança e o trabalho são os dois verdadeiros médicos do homem o trabalho aguçalhe o apetite a temperança impedeo de abusar dele Para saber que regime é mais útil à vida e à saúde basta saber qual o regime seguido pelos povos que vivem melhor que são mais robustos e duram mais tempo Se ante as observações de ordem geral não se acha que a medicina dá aos homens uma saúde mais sólida ou uma vida mais longa já há que considerar que não sendo útil essa arte é nociva porquanto emprega o tempo os homens e as coisas em pura perda Não somente o tempo que se consome em preservar a vida é perdido como para dela fazer uso cumpre deduzilo e quando esse tempo é empregado em nos atormentar tornase mais do que nulo tornase negativo e para calculálo equitativamente cabe subtraílo em quantidade idêntica daquele que nos resta Um homem que vive dez anos sem médico vive mais para si e para outrem do que o que vive trinta anos como vítima dele Tendo feito uma e outra experiências acreditome com mais motivos do que ninguém para chegar a tais conclusões Eis minhas razões para só desejar um aluno robusto e sadio e meus princípios para mantêlo assim Não me deterei em provar demoradamente a utilidade dos trabalhos manuais e dos exercícios do corpo para fortalecer o temperamento e a saúde é o que ninguém discute os exemplos das mais longas vidas são quase todos tirados de homens que fizeram mais exercícios que suportaram maiores fadigas e mais trabalharam9 Não entrarei tampouco em muitos pormenores acerca dos cuidados que terei com esse fim verão que se incluem tão necessariamente na minha prática que basta entender o espírito da coisa para não haver necessidade de explicação Com a vida começam as necessidades O recémnascido precisa de uma ama Se a mãe consentir em cumprir seu dever muito que bem caberá darlhe sua orientação por escrito pois essa vantagem tem seu contrapeso e mantém o governante algo afastado de seu aluno Mas é de se crer que o interesse da criança e a estima por aquele a quem ela consente em confiar tão caro depósito tornarão a mãe atenta às ideias do mestre e tudo o que quiser fazer ela o fará melhor do que ninguém Se nos for necessário uma ama estranha comecemos por bem escolhêla Uma das misérias da gente rica é ser enganada em tudo Se julga mal os homens devemos espantarnos São as riquezas que a corrompem e naturalmente essa gente é a primeira a sentir o defeito do único instrumento que lhe seja conhecido Tudo é mal feito em casa dessa gente à exceção do que ela própria faz e não faz quase nada Trata se de escolher uma ama ela entrega ao parteiro o cuidado disso Que acontece então A 9 E eis um exemplo haurido em documentos ingleses e que não posso deixar de mencionar a tal ponto oferece margem a reflexões relativas a meu assunto Um indivíduo chamado Patrice Oneil nascido em 1647 acaba de se casar em 1700 pela sétima vez Serviu no regimento dos dragões no décimo sétimo ano do reinado de Carlos II e em diferentes outros corpos do exército até 1740 quando obteve dispensa Fez todas as campanhas do Rei Guilherme e do Duque de Malborough Esse homem nunca bebeu senão cerveja comum sempre se alimentou de vegetais e só comeu carne em alguns jantares que dava à família Seu hábito foi sempre o de se levantar e se deitar com o sol a menos de o impedirem seus deveres Está agora com cento e treze anos ouvindo bem passando bem e andando sem bastão Apesar de sua idade avançada não fica um só momento sem trabalhar e todos os domingos vai à sua paróquia acompanhado por seus filhos netos e bisnetos melhor é a que mais bem o paga Não irei portanto consultar um parteiro para a ama de Emílio cuidarei de escolhêla eu próprio Não raciocinarei a respeito tão eruditamente quanto um cirurgião mas serei sem dúvida de mais boa fé e meu zelo me enganará menos do que sua cupidez Essa escolha não comporta grande mistério as regras são conhecidas mas não sei se não deveriam cuidar mais da idade do leite tanto quanto de sua qualidade O leite novo é muito seroso deve quase ser aperitivo para purgar o resto do mecônio acumulado nos intestinos da criança que acaba de nascer Pouco a pouco o leite toma consistência e fornece um alimento mais sólido à criança já tornada mais forte para digerilo Não é certamente por nada que nas fêmeas de toda espécie a natureza muda a consistência do leite segundo a idade do filhote Seria necessário portanto uma ama recémparturiente para uma criança recém nascida Isso tem sua dificuldade bem o sei mas desde que se sai da ordem natural tudo tem dificuldade em ser bem feito O único expediente cômodo é fazer mal é também o que se escolhe Fora necessário uma ama tão sadia de coração quanto de corpo a intempérie das paixões pode como a dos humores alterarlhe o leite demais atentar unicamente para o físico é ver apenas a metade do objetivo O leite pode ser bom e a ama má um bom caráter é tão essencial quanto um bom temperamento Em se tomando uma mulher viciada não digo que o bebê adquirirá seus vícios mas digo que com isso sofrerá Não lhe deve ela com o seu leite cuidados que exigem zelo paciência doçura limpeza Gulosa intemperante logo terá seu leite estragado negligente ou arrebatada que irá acontecer com o pobre infeliz à sua mercê que não pode defenderse nem se queixar Nunca no que quer que seja os maus podem ser bons em algo bom A escolha de uma ama tem tanto maior importância quanto seu bebê não deve ter outra governante senão ela assim como não deve ter outro preceptor senão seu governante Assim o pensavam os antigos menos argumentadores porém mais sábios do que nós Depois de ter amamentado os filhos deles as amas não mais os abandonavam Eis porque em suas peças de teatro as confidentes são as amas em sua maioria É impossível que uma criança que passa sucessivamente por tantas mãos diferentes venha a ser bem educada A cada mudança ela faz comparações secretas que tendem sempre a diminuir sua estima pelos que a governam e consequentemente a autoridade deles Se porventura chega a pensar um dia que há adultos com não mais juízo do que as crianças eis a autoridade da idade perdida e malograda a educação Uma criança não deve conhecer outros superiores que não o pai e a mãe ou na falta destes a ama e o governante já é demais um dos dois mas a partilha é inevitável E tudo o que se pode fazer para remediar a tal inconveniente é que as pessoas dos dois sexos que a dirigem estejam de acordo a seu respeito que os dois sejam um só para ela É preciso que a ama viva um pouco mais comodamente que tenha alimentos mais substanciais mas não que mude inteiramente de maneira de viver pois uma mudança total ainda que para melhor é sempre perigosa para a saúde E se seu regime habitual a tornou sadia e bem constituída para que fazer com que o troque As camponesas comem menos carne e mais legumes do que as mulheres da cidade e esse regime vegetal parece mais favorável do que contrário a elas e a seus filhos Quando têm bebês burgueses dãolhe sopas persuadidos de que sopas e caldos favorecem a digestão e lhes melhoram o leite Não acredito nisso de modo algum tenho a meu favor a experiência que nos ensina que as crianças assim amamentadas são mais sujeitas do que as outras às cólicas e aos vermes Não é de espantar porquanto a substância animal em putrefação formiga de vermes o que não acontece com a substância vegetal O leite embora elaborado no corpo do animal é uma substância vegetal10 demonstrao a análise fazse ácido facilmente e longe de provocar qualquer vestígio de álcali volátil como ocorre com as substâncias animais dá como as plantas um sal neutro essencial O leite das fêmeas herbívoras é mais doce e salutar que o das carnívoras Formado de uma substância homogênea conserva melhor sua natureza e tornase menos sujeito à putrefação Em relação à quantidade ninguém ignora que os farináceos produzem mais sangue do que a carne devem portanto produzir mais leite também Não posso acreditar que uma criança desmamada não demasiado cedo ou somente desmamada com alimentos vegetais e cuja ama só viva também de vegetais venha a ter vermes algum dia Pode ser que os alimentos vegetais deem um leite mais facilmente azedável mas estou longe de encarar o leite azedo como um alimento malsão povos inteiros que não têm outro alimento passam muito bem e toda essa combinação de absorventes se me afigura puro charlatanismo Há temperamentos aos quais o leite não convém e então nenhum absorvente o torna suportável outros o suportam sem absorvente Temem o leite coalhado é bobagem porquanto se sabe que o leite coalha no estômago Assim é que se torna um alimento bastante sólido para alimentar as crianças e os pequenos animais se não coalhasse não faria senão passar não alimentaria11 Podese cortar o leite de mil maneiras empregar mil absorventes quem quer tome leite digere queijo e isso sem exceção É o estômago tão bem feito para coalhar o leite que é com estômago de vitela que se faz a coalhada Penso portanto que ao invés de mudar a alimentação comum das amas basta darlhes a mesma com mais abundância e mais bem escolhida Não é pela natureza dos alimentos que a dieta perturba é seu tempero que os torna malsãos Reformai as regras de vossa cozinha evitai a manteiga queimada e as frituras que nem a manteiga nem o sal nem os laticínios passem pelo fogo que os legumes cozidos na água só sejam temperados ao chegarem quentes à mesa a dieta ao invés de perturbar a ama darlhe 10 As mulheres comem pão legumes laticínios as fêmeas dos cães e dos gatos também até as lobas pastam São sucos vegetais para seu leite Resta a examinar o das espécies que só podem alimentarse de carne se é que as há Do que duvido 11 Embora os sucos que nos nutrem sejam líquidos devem ser tirados de alimentos sólidos Um homem trabalhando que vivesse somente de caldos depereceria rapidamente Sustentarseia muito melhor com o leite porque este coalha á leite em abundância e da melhor qualidade12 Será possível que o regime vegetal reconhecidamente o melhor para a criança não seja melhor do que o animal para a ama Há certa contradição nisso É principalmente nos primeiros anos de vida que o ar atua sobre a constituição das crianças Numa pele delicada e mole ele penetra por todos os poros afeta fortemente os corpos em desenvolvimento deixalhes impressões que não se apagam Não sou por isso favorável a que se tire uma camponesa de sua aldeia para fechála num quarto da cidade e se faça amamentar a criança em casa prefiro que ela vá respirar o bom ar dos campos a respirar o mau da cidade Ela tomará a condição de sua nova mãe morará na sua casa rústica e seu governante a acompanhará O leitor deve lembrarse de que o governante não é um mercenário é um amigo do pai Mas quando não se encontra esse amigo quando essa transposição não é fácil quando nada do que aconselhais é possível que fazer dirmeão Já vos disse o que fazeis e não há necessidade de conselho para isso Os homens não são feitos para se amontoarem em formigueiros e sim para serem espalhados pela terra que devem cultivar Quanto mais se juntam mais se corrompem As enfermidades do corpo bem como os vícios da alma são a consequência infalível dessa aglomeração excessiva De todos os animais o homem é o que menos pode viver em rebanho Homens juntados como carneiros pereceriam dentro de pouco tempo O hálito do homem é mortal para seus semelhantes isso não é menos verdadeiro no sentido próprio do que no figurado As cidades são os báratros da espécie humana Ao fim de algumas gerações as raças morrem ou degeneram é preciso renoválas e é sempre o campo que procede a essa renovação Mandai portanto vossos filhos renovaremse por assim dizer a si mesmos recuperando nos campos o vigor perdido no ar malsão dos lugares demasiado povoados As mulheres grávidas que se encontram nos campos apressamse em ir ter seus filhos na cidade deveriam fazer exatamente o contrário principalmente as que querem amamentálos Teriam menos do que imaginam de que se arrepender e num lugar mais natural à espécie os prazeres ligados aos deveres da natureza tirarlhesiam em breve o pendor pelos que com ela não se relacionam Logo depois do parto lavase a criança com um pouco de água morna a que se mistura comumente vinho Essa adição de vinho não me parece muito necessária Como a natureza não produz nada fermentado não é de se acreditar que o uso de um líquido artificial tenha importância na vida de suas criaturas Pela mesma razão a precaução de amornar a água não é tampouco indispensável e com efeito inúmeros povos lavam os recémnascidos nos rios ou no mar sem maiores cuidados Mas nossos filhos amolecidos antes de nascerem pela moleza dos pais e das mães trazem vindo ao mundo um temperamento já corrompido que cumpre não expor desde logo a todas as provas por que devem passar para restabelecêlo Só gradualmente é que se pode reconduzilos a seu vigor primitivo Começai portanto 12 Os que desejarem discutir mais a fundo as vantagens e os inconvenientes do regime pitagórico poderão consultar os tratados que os doutores Cocchi e Bianchi seu adversário escreveram sobre o assunto seguindo os usos e só aos poucos vos afasteis deles Lavai amiúde as crianças sua sujidade mostra a necessidade disso Vós a feris em vos restringindo a limpálas mas diminuí progressivamente a tepidez da água na medida em que se fortalecem até que as possais lavar no inverno como no verão com água fria e mesmo gelada Como para não as expor a acidentes é preciso que essa diminuição seja lenta sucessiva e insensível podeis empregar o termômetro a fim de medila exatamente Esse uso do banho uma vez estabelecido não deve mais ser interrompido e cumpre conserválo durante toda a vida Encaroo não somente em relação à limpeza e à saúde no momento mas também como uma precaução salutar para tornar mais flexível a textura das fibras e fazêlas ceder sem esforço nem riscos aos diversos graus de calor ou de frio Para isso gostaria que em crescendo a criança se acostumasse pouco a pouco a banharse às vezes em águas quentes a todos os graus suportáveis e muitas vezes em águas frias a todos os graus possíveis Assim depois de se ter habituado a suportar as diversas temperaturas da água que sendo um fluido mais denso toca em maior número de pontos e afeta mais a criança tornarseia quase insensível às do ar No momento em que a criança respira ao sair de seu invólucro não deixeis que lhe deem outro que a mantenha mais acanhada Nada de toucas de faixas de cintas fraldas não apertadas amplas que deixem todos os membros em liberdade que não sejam pesados demais que embaraçaria os movimentos nem quentes demais o que a impediria de sentir o ar13 Colocaia num berço grande14 bem acolchoado em que ela possa mexerse à vontade e sem perigo Quando começar a fortalecerse deixaia engatinhar pelo quarto deixaia distender e desenvolver seus pequenos membros vós a vereis reforçarse dia após dia Comparaia com uma criança bem enfaixada da mesma idade ficareis espantado com a diferença dos progressos15 Devese contar com grandes oposições da parte das amas às quais a criança bem enfaixada dá menos trabalho que aquela que se deve vigiar sem cessar Demais sua sujidade fazse mais sensível com uma roupa aberta cumpre limpála mais vezes Finalmente o costume é um argumento que nunca se refutará em certas regiões à predileção do povo de todos os países Não raciocineis nunca com as amas ordenai vede fazer e nada poupeis para 13 Sufocam as crianças nas cidades à força de conserválas fechadas e vestidas Os que delas se ocupam ainda não sabem que o ar frio longe de lhes fazer mal as fortalece e que o ar quente lhes dá febre e as mata 14 Na falta de outra palavra digoberço berceau que é de uso corrente mas estou persuadido de que não é nunca necessário embalar bercer as crianças e de que este hábito lhes é amiúde pernicioso 15 Os antigos peruanos deixavam os filhos com os braços livres num envolvedouro muito amplo quando dele os tiravam punhamnos em liberdade num buraco feito na terra e guarnecido de lençóis dentro do qual os desciam até metade do corpo dessa maneira tinham os braços livres podiam mexer a cabeça e dobrar o corpo à vontade sem que caíssem nem se machucassem Logo que podiam dar um passo apresentavamlhes o seio de certa distância como uma isca para obrigálos a andar Os negrinhos encontramse por vezes numa posição bem mais cansativa para mamar abarcam as ancas da mãe com os joelhos e os pés e tão bem as apertam que podem sustentarse sem o auxílio dos braços da mãe Prendemse ao seio com as mãos e chupamno constantemente sem que se incomodem ou caiam apesar dos diferentes movimentos da mãe que durante esse tempo trabalha como de costume Essas crianças começam a andar ou antes a engatinhar já no segundo mês Esse exercício dá lhes mais tarde a facilidade de correr dessar maneira quase tão depressa como em pé Hist Nat Tomo IV in12 p 192 A tais exemplos Buffon poderia ter acrescentado o da Inglaterra onde a prática extravagante e bárbara das faixas se vai abolindo dia a dia V também La Loubère Voyage du Siam Le Beau Voyage du Canada etc Encheria vinte páginas de citações se precissasse confirmar isso com fatos tornar fáceis na prática os cuidados que tiverdes prescrito E por que não os compartilharíeis Nas alimentações comuns em que só se atenta para o físico conquanto a criança viva e não depereça o resto pouco importa mas aqui em que a educação começa com a vida ao nascer a criança já é discípulo não do governante e sim da natureza O governante não faz senão estudar orientado por esse primeiro mestre e impedir que seus cuidados sejam contrariados Ele vigia o bebê observao segueo atenta vigilante para o primeiro reluzir de seu fraco entendimento assim como o muçulmano espia quando do quarto crescente o nascer da lua Nascemos capazes de aprender mas não sabendo nada não conhecendo nada A alma acorrentada a seus órgãos imperfeitos e semiformados não tem sequer o sentimento de sua própria existência Os movimentos os gritos da criança que acaba de nascer são efeitos puramente mecânicos desprovidos de conhecimento e de vontade Suponhamos que uma criança tivesse ao nascer a estatura e a força de um homem feito que saísse por assim dizer com todos os seus meios de ação do ventre de sua mãe assim como Palas saiu do cérebro de Júpiter esse homemcriança seria um perfeito imbecil um autômato uma estátua imóvel e quase insensível não veria nada não compreenderia nada não conheceria ninguém não saberia voltar os olhos para o que tivesse necessidade de ver Não somente não perceberia nenhum objeto fora de si como não levaria nenhum ao órgão do sentido que lhe faria percebêlo as cores não estariam nos seus olhos os sons não estariam nos seus ouvidos os corpos que tocasse não estariam no seu nem sequer ele saberia que tem um o contato de suas mãos não estaria no seu cérebro todas as suas sensações se reuniriam num só ponto ele só existiria no sensorium comum teria uma só ideia a do eu a que atribuiria todas as suas sensações e esta ideia ou melhor este sentimento seria a única coisa que teria a mais do que uma criança comum Esse homem formado repentinamente não saberia tampouco erguerse sobre os pés serlheia necessário muito tempo para aprender a equilibrarse neles talvez nem mesmo o tentasse e veríeis esse grande corpo forte e robusto não sair do lugar como uma pedra ou arrastarse rastejando como um cachorrinho Sentiria o incômodo das necessidades sem conhecer nem imaginar um meio de atender a elas Não há nenhuma comunicação imediata dos músculos do estômago com os dos braços e das pernas que mesmo cercado de alimentos o fizesse dar um passo para deles se aproximar ou pegálos e como seu corpo já estaria crescido e estariam desenvolvidos os seus membros ele não teria conseguintemente nem as inquietações nem os movimentos contínuos das crianças e poderia morrer de fome antes de mexer a fim de procurar sua subsistência Por pouco que se tenha refletido sobre a ordem e o progresso de nossos conhecimentos não se pode negar que tal tenha sido mais ou menos o estado primitivo de ignorância e de estupidez natural ao homem antes que tivesse aprendido o que quer que seja da experiência ou de seus semelhantes Conhecese portanto ou podese conhecer o ponto de partida de cada um de nós para chegar ao grau comum do entendimento mas quem conhece a outra extremidade Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio seu gosto suas necessidades seus talentos seu zelo e as oportunidades que tem Não sei de nenhum filósofo ainda que tenha sido bastante ousado para dizer eis o termo a que o homem pode chegar e não pode ultrapassar Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem Qual a alma baixa que essa ideia nunca perturbou e que não tenha dito não raro em seu orgulho quantos não ultrapassei quantos ainda posso alcançar por que meu igual iria mais longe do que eu Repitoo a educação do homem começa com seu nascimento antes de falar antes de compreender já ele se instrui A experiência adiantase às lições no momento em que conhece sua ama já muito ele adquiriu Surpreenderiamnos os conhecimentos do homem mais bronco se seguíssemos seu progresso desde o momento em que nasceu até àquele a que chegou Se se dividisse toda a ciência humana em duas partes uma comum a todos os homens outra peculiar aos sábios esta seria muito pequena em comparação com a outra Mas não pensamos quase nas aquisições gerais porque elas se fazem sem que nelas pensemos e até antes da idade da razão De resto o saber só se faz notar pelas diferenças e como nas equações de álgebra as quantidades comuns não contam Os próprios animais adquirem muito Têm sentidos cumpre que aprendam a usá los têm necessidades cumpre que aprendam a atender a elas cumpre que aprendam a comer a andar a voar Os quadrúpedes embora se mantenham em pé desde o nascimento não sabem andar vemolo a seus primeiros passos que são tentativas inseguras Os canários fugidos da gaiola não sabem voar porque nunca voaram Tudo é instrução para os seres animados e sensíveis Se as plantas tivessem um movimento progressivo seria preciso que tivessem sentidos e adquirissem conhecimentos de outro modo as espécies pereceriam dentro em breve As primeiras sensações das crianças são puramente afetivas não percebem senão o prazer e a dor Não podendo nem andar nem pegar precisam de muito tempo para formarem pouco a pouco as sensações representativas que lhes mostram os objetos fora de si mesmas mas enquanto esses objetos não se estendem não se afastam por assim dizer de seus olhos e tomam para eles dimensões e formas a repetição das sensações afetivas começa a submetêlos ao império do hábito vemos seus olhos voltaremse sem cessar para a luz e se esta vem de lado tomarem a mesma direção De maneira que devemos cuidar de apresentar seu rosto à claridade a fim de que não se tornem vesgos nem se acostumem a olhar de viés E preciso também que se habituem desde cedo às trevas de outro modo choram e gritam logo que se encontram na obscuridade O alimento e o sono demasiado medidos fazemse lhes necessários ao fim dos mesmos intervalos e dentro em breve o desejo não vem mais da necessidade e sim do hábito ou melhor o hábito acrescenta uma nova necessidade à da natureza eis o que cabe evitar O único hábito que se deve deixar a criança adquirir é o de não contrair nenhum que não a ponham mais sobre um braço do que sobre outro que não a acostumem a dar uma mão mais do que a outra a dela fazer uso mais amiudado a querer comer dormir agir nas mesmas horas a não poder ficar sozinha de dia ou de noite Preparai de longe o reinado de sua liberdade e o emprego de suas forças deixando a seu corpo o hábito natural pondoa em estado de ser sempre senhora de si mesma e fazendo em tudo sua vontade logo que tenha uma A partir do momento em que a criança começa a distinguir os objetos cumpre variar os que se lhe mostram Naturalmente todos os novos objetos interessam o homem Sentese ele tão frágil que teme tudo o que não conhece o hábito de ver novos objetos sem ser afetado por eles destrói tal temor As crianças criadas em casas limpas onde não existem aranhas têm medo das aranhas e esse medo se prolonga na idade adulta Nunca vi camponês homem mulher ou criança ter medo de aranha Por que então não começaria a educação da criança antes que ela fale e compreenda desde que a simples escolha dos objetos que lhe apresentamos já pode tornála tímida ou corajosa Quero que a acostumem a ver objetos diferentes animais feios asquerosos estranhos mas pouco a pouco de longe até que a eles se acostume e que à força de vêlos manejados por outrem os maneje ela própria Se tiver visto na infância sapos cobras caranguejos verá sem horror quando adulto qualquer espécie de animal Não há objetos horríveis para quem os vê diariamente Todas as crianças têm medo de máscaras Começo mostrando a Emílio uma máscara de fisionomia agradável depois alguém põe essa máscara no rosto diante dele eu rio e todo mundo ri e a criança ri como todos Pouco a pouco acostumoa a máscaras menos agradáveis e finalmente a caras horrorosas Se tiver ordenado com cuidado a gradação ela há de rir das últimas como da primeira Depois disso não receio mais que a assustem com máscaras Quando nas despedidas de Andrómaca e de Heitor o pequeno Antyanax assustado com o penacho do capacete do pai o desconhece e se joga gritando no colo da ama e arranca de sua mãe um sorriso molhado de lágrimas que fazer para curar o pavor Precisamente o que faz Heitor pôr o capacete no chão e depois acariciar a criança Num momento mais tranquilo não se ficaria nisso aproximarseia do capacete brincarseia com as plumas ofereciamselhes à criança finalmente a ama pegaria o capacete e rindo o colocaria na cabeça se é que uma mão de mulher ousasse tocar nas armas de Heitor Tratase de habituar Emílio ao ruído de uma arma de fogo queimo primeiramente uma mecha na pistola Essa chama brusca e passageira essa espécie de relâmpago alegrao repito a coisa com mais pólvora pouco a pouco acrescento à pistola uma pequena carga sem bucha depois outra maior finalmente acostumoo a tiros de fuzil a bombas a canhões às mais terríveis detonações Observei que as crianças raramente têm medo do trovão a menos que sejam tremendos e firam realmente o ouvido a não ser assim esse receio só lhes vem quando aprendem que o trovão fere e mata às vezes Quando a razão começar a assustálas fazei com que o hábito as tranquilize Com uma gradação lenta e cuidadosa tornamse intrépidos o homem e a criança No princípio da vida quando a memória e a imaginação são ainda inativas a criança só presta atenção àquilo que afeta seus sentidos no momento sendo suas sensações ó primeiro material de seus conhecimentos oferecerlhas numa ordem conveniente é preparar sua memória a fornecerlhas um dia na mesma ordem a seu entendimento mas como ela só presta atenção a suas sensações basta primeiramente mostrarlhe bem distintamente a ligação dessas sensações com os objetos que as provocam Ela quer meter a mão em tudo tudo manejar não contrarieis essa inquietação ela lhe sugere um aprendizado muito necessário Assim é que ela aprende a sentir o calor o frio a dureza a moleza o peso a leveza dos corpos a julgar de seu tamanho de sua forma e de todas as suas qualidades sensíveis a olhando apalpando16 ouvindo e principalmente comparando a vista ao tato estimando pelo olhar a sensação que provocariam em seus dedos É somente pelo movimento que sabemos que há coisas que não são nós e é somente pelo nosso próprio movimento que adquirimos a ideia da extensão É por não ter essa ideia que a criança estende indiferentemente a mão para apanhar o objeto que se acha perto dela ou a cem passos Esse esforço que ela faz se vos afigura sinal de vontade de domínio ordem de aproximarse que ela dá ao objeto ou que vos dá de trazêlo nada disso os mesmos objetos que ela via inicialmente em seu cérebro a seguir em seus olhos ela os vê agora na ponta dos braços e só imagina uma extensão que pode atingir Cuidai portanto de passeála amiúde de transportála de um lugar para outro de fazêla sentir essa mudança a fim de ensinála a julgar as distâncias Quando ela começar a conhecêlas será preciso mudar de método e só a transportar como quiserdes e não como ela quiser Pois em não sendo ela mais enganada pelos sentidos seu esforço mudará de causa essa mudança é notável e exige explicação O malestar das necessidades exprimese por sinais quando o auxílio de outrem é necessário para apaziguálo daí os gritos das crianças Elas choram muito assim deve ser Como todas as suas sensações são afetivas quando são agradáveis elas as apreciam em silêncio quando penosas elas o dizem em sua linguagem e pedem alívio Ora quando acordadas elas não podem permanecer indiferentes ou dormem ou as sentem Todas as nossas línguas são obras de arte Procurouse durante muito tempo saber se haveria uma língua natural e comum a todos os homens Sem dúvida há uma a que as crianças falam antes de saberem falar Essa língua não é articulada mas é acentuada sonora inteligível O emprego das nossas nos fez negligenciála a ponto de a esquecermos por completo Estudemos a criança e logo a reaprenderemos com ela As amas são nossos professores nessa língua elas entendem tudo o que lhes diz o bebê respondemlhe têm com ele diálogos muito pertinentes e embora elas pronunciem palavras estas são perfeitamente inúteis não é o sentido das palavras que o bebê entende e sim o acento com que se acompanham À linguagem da voz juntase a do gesto não menos enérgica Esse gesto não está 16 O olfato é de todos os sentidos o que mais tarde se desenvolve nas crianças até a idade de dois ou três anos não parece que sejam sensíveis nem aos bons nem aos maus odores têm a respeito a indiferença ou antes a insensibilidade que se observa em muitos animais nas fracas mãos da criança está em seus rostos É de espantar ver a que ponto essas fisionomias mal formadas já têm expressão seus traços mudam de um momento para outro com inconcebível rapidez veemse nelas o sorriso o desejo o pavor nascerem e passarem como relâmpagos e a cada vez acreditase descobrir outro rosto As crianças têm certamente os músculos da face mais móveis do que nós Por outro lado entretanto seus olhos baços quase nada dizem Assim tem de ser o tipo de seus sinais numa idade que só existem necessidades corporais a expressão das sensações está nas contrações do rosto a expressão dos sentimentos nos olhares Como o primeiro estado do homem é de miséria e fraqueza suas primeiras vozes são de queixas e de choros A criança sente suas necessidades e não podendo satisfazê las implora o auxílio de outrem com gritos se tem fome ou sede chora se sente muito frio ou muito calor chora se precisa de movimento e a mantêm em repouso chora se quer dormir e a agitam chora Quanto menos sua maneira de ser se acha à sua disposição mais ela pede constantemente que a mudem Só tem uma linguagem porque não tem por assim dizer senão uma espécie de malestar na imperfeição de seus órgãos não distingue suas diversas impressões todos os males já lhe dão uma sensação de dor Desses choros que imaginamos tão pouco dignos de atenção nasce a primeira relação do homem com tudo o que o cerca forjase o primeiro elo dessa grande cadeia de que é formada a ordem social Quando a criança chora está mal à vontade tem alguma necessidade que não pode satisfazer examinase procurase essa necessidade encontrase e atendese a ela Quando não se a encontra ou quando não se pode atender a ela os choros continuam e importunam acarinhase a criança para que se cale embalase a criança cantase para que durma se se obstina a gente se impacienta a gente a ameaça amas brutais batem na por vezes Eis estranhas lições para sua entrada na vida Não esquecerei nunca ter visto um desses incômodos manhosos batido pela ama Calou imediatamente imagineio intimidado Diziame será uma alma servil da qual nada se obterá a não ser com rigor Enganavame o pobrezinho sufocava de cólera perdera a respiração vilo tornarse roxo Momentos depois vieram os gritos agudos todos os sinais do ressentimento da raiva do desespero dessa idade estavam neles Receei que morresse nessa agitação Se eu houvesse duvidado de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem esse simples exemplo me teria convencido Estou certo de que uma brasa caída por acaso na mão dessa criança lhe teria sido menos sensível do que a pancada bastante leve mas dada com a intenção manifesta de ofendêla Essa disposição das crianças para o arrebatamento para o despeito a raiva exige cuidados muito grandes Boerhaave pensa que suas doenças são em sua maioria de ordem convulsiva porque sendo nelas a cabeça proporcionalmente maior e o sistema dos nervos mais extenso do que nos adultos a parte nervosa é mais suscetível de irritação Afastai delas com o maior cuidado os criados que as excitam as irritam as impacientam sãolhe cem vezes mais perigosos mais funestos que as injúrias do ar e das estações Enquanto as crianças só encontrarem resistência nas coisas e não nas vontades não se tornarão emburradas nem coléricas e conservarseão em melhor saúde É uma das razões porque as crianças do povo mais livres mais independentes são geralmente menos doentias menos delicadas mais robustas do que as que pretendem educar contrariandoas sem cessar Mas cumpre pensar sempre que há grande diferença entre lhes obedecer e não as contrariar Os primeiros choros das crianças são solicitações se não tomamos cuidado logo se tornam ordens começam pedindo assistência acabam fazendose servir Assim de sua própria fraqueza de que provém inicialmente o sentimento de sua dependência nasce a seguir a ideia de império de domínio mas essa ideia sendo menos provocada por suas necessidades do que por nossos serviços começamse a perceber os efeitos morais cuja causa imediata não está na natureza e vêse desde já por que desde a primeira infância importa descobrir a intenção secreta que dita o gesto ou o grito Quando a criança estende a mão com esforço sem nada dizer ela pensa alcançar o objeto porquanto não calcula a distância enganase mas quando se queixa e grita estendendo a mão não mais se engana acerca da distância ordena ao objeto de se aproximar ou a vós de trazêlo No primeiro caso levaia ao objeto devagar e a passos miúdos no segundo fingi que não a entendeis quanto mais gritar menos deveis ouvila Cumpre acostumála desde cedo a não comandar nem nos homens por não ser senhor deles nem nas coisas que não a entendem Assim quando uma criança deseja alguma coisa que vê e que queremos darlhe é melhor conduzila ao objeto que trazêlo a ela dessa prática ela tira uma conclusão que é de sua idade e não há outro meio de sugerir lha O abade de SaintPierre chamava aos homens crianças grandes poderseia reciprocamente chamar às crianças pequenos homens Tais ditos têm sua verdade como sentenças como princípios precisam de esclarecimentos Mas quando Hobbes dizia de um mau que era uma criança robusta afirmava uma coisa absolutamente contraditória Toda maldade vem da fraqueza a criança só é má porque é fraca fortaleceia ela será boa quem tudo pudesse nunca praticaria o mal De todos os atributos da Divindade toda poderosa a bondade é aquele sem o qual menos se poderia concebêla Todos os povos que admitiram dois princípios sempre encaram o mau como inferior ao bom sem o que teriam feito uma suposição absurda Vede a Profissão de fé do Vigário saboiano Somente a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal A consciência que nos faz amar um e odiar o outro embora independente da razão não pode pois desenvolverse sem ela Antes da idade da razão fazemos o bem e o mal sem o saber e não há moralidade em nossas ações embora haja por vezes no sentimento das ações de outrem em relação a nós Uma criança quer desmantelar tudo o que vê parte quebra tudo o que pode alcançar pega um passarinho como pegaria uma pedra e o estrangula sem saber o que está fazendo Por quê Desde logo a filosofia vai explicálo pelos vícios naturais o orgulho a vontade de domínio o amor próprio a maldade do homem O sentimento de sua fraqueza poderá acrescentar torna a criança ávida de perpetrar atos de força e provar a si mesma seu próprio poder Mas vede o ancião enfermo e alquebrado trazido de volta à infância no círculo da vida humana não somente permanece imóvel e sereno como ainda quer que tudo o permaneça em volta dele a menor mudança o perturba e inquieta ele desejaria ver reinar uma calma universal Por que a mesma impotência unida às mesmas paixões produziria efeitos tão diferentes nas duas idades se a causa primeira não fosse outra E onde buscar essa diversidade de causas senão no estado físico dos dois indivíduos O princípio ativo comum a ambos desenvolvese num e se extingue no outro um estáse formando outro se destruindo um tende para a vida outro para a morte A atividade enfraquecida concentrase no coração do velho no da criança ela abunda e projetase para fora ela sente por assim dizer vida suficiente para animar tudo o que a cerca Que faça ou desfaça pouco importa basta que mude o estado das coisas e toda mudança é uma ação Não é por maldade que ela parece ter mais tendência para destruir é porque a ação que forma é sempre lenta e a que destrói sendo mais rápida convém mais a sua vivacidade Ao mesmo tempo que o Autor da natureza dá às crianças esse princípio ativo ele cuida de que seja pouco nocivo outorgandolhes pouca força para que a ele se entreguem Mas logo que elas podem encarar as pessoas que as cercam como instrumentos que depende delas fazer com que ajam deles elas se servem para seguir sua tendência e suprir a sua própria fraqueza Eis como elas se tornam incômodas tirânicas voluntariosas maldosas indomáveis progresso que não lhes vem de uma vontade natural de domínio e sim que lhes dá essa vontade pois não é necessária uma longa experiência para sentir a que ponto é agradável agir pelas mãos de outrem e não ser preciso senão mexer a língua para movimentar o universo Em crescendo adquirimos forças tornamonos menos inquietos menos tréfegos fechamonos mais em nós mesmos A alma e o corpo põemse por assim dizer em equilíbrio e a natureza não nos pede mais do que o movimento necessário à nossa conservação Mas o desejo de mandar não se extingue com a necessidade que o fez surgir o domínio desperta e satisfaz o amor próprio e o hábito o fortalece Assim a fantasia sucede à necessidade assim começam a arraigarse os preconceitos da opinião Conhecido o princípio percebemos claramente o ponto em que abandonamos o caminho da natureza vejamos o que é preciso fazer para nele nos mantermos Longe de ter forças supérfluas as crianças não têm sequer as suficientes para tudo o que delas solicita a natureza cumpre portanto deixarlhes o emprego de todas as que ela lhes dá e de que não podem abusar Primeira máxima É preciso ajudálas e suprir de que carecem seja em inteligência seja em força em tudo o que diz respeito às necessidades físicas Segunda máxima É preciso no auxílio que se lhes dá restringirmonos unicamente ao útil real nada concedendo à fantasia ou ao desejo sem razão pois a fantasia não as atormentará enquanto não a tivermos feito nascer dado que não é da natureza Terceira máxima É preciso estudar com cuidado sua linguagem e seus sinais a fim de que numa idade em que não sabem dissimular possamos distinguir em seus desejos o que vem imediatamente da natureza do que vem da opinião Quarta máxima O espírito dessas regras está em conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos voluntariedade em deixálas com que façam mais por si mesmas e exijam menos dos outros Assim acostumandose desde cedo a subordinar seus desejos a suas forças elas sentirão pouco a privação do que não estiver em seu poder Eis mais uma razão e muito importante para deixar os corpos e os membros das crianças absolutamente livres com a única precaução de afastálas do perigo das quedas e de tirar de suas mãos tudo o que as possa ferir Infalivelmente uma criança com o corpo e os braços livres chocará menos do que outra toda enfaixada Quem só conhece as necessidades físicas chora unicamente quando sofre e é uma grande vantagem pois então se sabe com precisão quando necessita de auxílio e não se atrasa um momento sequer em lho dar se possível Mas se não puderdes aliviálo ficai sossegados sem o acarinhar para acalmálo Vossas carícias não curarão a cólica Mas a criança se lembrará do que é preciso fazer para ser acarinhada e se souber uma vez fazer com que vos ocupeis dela à vontade eila senhora de vós E tudo estará perdido Menos contrariadas em seus movimentos as crianças choram menos menos importunados por seus choros atormentamonos menos a fim de fazêlas calar ameaçadas ou acarinhadas menos vezes elas se mostrarão menos medrosas ou menos voluntariosas e permanecerão melhor em seu estado natural É menos deixando as crianças chorarem do que se esforçando por acalmálas que corremos o risco de acidentes A prova está em que as crianças menos cuidadas a eles são menos sujeitas do que as outras Não quero com isso nem de longe que as negligenciem ao contrário cumpre prevenir tais acidentes e deles não ser advertido somente pelos gritos Mas não quero tampouco que os cuidados sejam mal compreendidos Por que deixariam elas de chorar se percebessem que o choro é útil a tanta coisa Conscientes do que pagam por seu silêncio evitarão prodigalizálo Valorizamno finalmente tanto que não o podemos mais pagar e é então que à força de chorar sem resultado se cansam se esgotam se matam As longas choradeiras da criança que não está nem enfaixada nem doente e à qual não deixam faltar nada não passam de choro de hábito ou de obstinação Não são obra da natureza e sim da ama que por não saber suportar a maçada a multiplica sem pensar que fazendo a criança calar hoje e excita a chorar mais amanhã A única maneira de curar ou prevenir tal hábito é não lhe prestar a menor atenção Ninguém gosta de penar inutilmente nem mesmo as crianças Elas são obstinadas em suas tentativas mas se tiverdes mais constância do que elas de obstinação elas se agastarão e não recomeçarão Assim é que lhes pouparemos o choro e que as acostumaremos a somente chorarem quando a dor a tanto as forçar Demais quando choram por fantasia ou por obstinação o meio seguro para impedilas de continuarem consiste em distraílas com algum objeto agradável e impressionante que as leve a esquecerem que queriam chorar As amas em sua maioria excedem nessa arte que bem aplicada é muito útil mas é da maior importância que a criança não perceba a intenção de distraíla e que ela se divirta sem imaginar que se está pensando nela e é no que em geral as amas são desastradas Desmamam cedo demais as crianças A época em que devem ser desmamadas é indicada pela erupção dos dentes e essa erupção é comumente penosa e dolorosa Por um instinto maquinai a criança leva então à boca tudo o que pega a fim de mastigálo Pensam facilitar a operação dandolhes como chocalho um objeto duro de marfim ou o que valha Creio que se enganam Esses corpos duros aplicados sobre as gengivas em vez de amolecêlas as tornam calosas as endurecem provocam um dilaceramento mais penoso e mais doloroso Tomemos sempre o instinto como exemplo Não se veem os filhotes de cães exercitando seus dentes nascentes em pedra no ferro nos ossos e sim na madeira no couro em trapos em materiais moles que cedem e nos quais os dentes se enfiam Não sabemos mais ser simples com nada nem mesmo com as crianças Guizos de prata de ouro de coral cristais facetados chocalhos de preço e de todos os tipos quantas coisas inúteis e perniciosas Nada disso Nada de guizos nada de chocalhos pequenos galhos de árvores com seus frutos e suas folhas uma bolota de dormideira com suas sementes ruidosas um pirolito de alcaçuz que possam chupar e mastigar as divertirão tanto quanto magníficas bugigangas e não terão o inconveniente de acostumálas ao luxo já ao nascerem Verificouse que a papa não é um alimento muito sadio O leite fervido e a farinha crua fazem muito saburro e convém mal a nosso estômago Na papa a farinha é menos cozida do que no pão e demais não fermentou O caldo de miolo de pão o creme de arroz parecemme preferíveis Se se quiser absolutamente dar uma papa convirá então torrar um pouco a farinha antes Fazem na minha terra com a farinha assim torrada uma sopa muito agradável e sadia O caldo de carne e a sopa são ainda um alimento medíocre que cumpre usar o menos possível É importante que as crianças aprendam primeiramente a mastigar é o meio certo de facilitar o aparecimento dos dentes e quando começam a engolir os sucos salivares misturados aos alimentos facilitam a digestão Eu lhes daria então frutas secas ou cascas de pão para mastigarem Eu lhes daria por brinquedos pedaços de pão duro ou de biscoito semelhante ao pão do Piemonte a que chamam grisse na região À força de amolecer esse pão na boca acabariam engolindo enfim alguma coisa seus dentes apontariam e elas se veriam desmamadas quase antes de o termos percebido Os camponeses têm habitualmente bom estômago e não os desmamam com maiores cuidados As crianças querem falar desde ao nascerem nós lhes falamos não somente antes que compreendam o que lhes dizemos como antes que possam repetir os sons que ouvem Seu órgão ainda mal desenvolvido só pouco a pouco se presta à imitação dos sons que lhes impomos e não é certo sequer que tais sons cheguem a seus ouvidos tão distintamente quanto aos nossos Não desaprovo o fato da ama divertir a criança com cantos e sons muito alegres e variados mas desaprovo que a aturda sem cessar com uma multidão de palavras inúteis a que não compreende nada senão o tom Gostaria que as primeiras articulações que a obrigam a ouvir fossem raras fáceis distintas amiudadamente repetidas e que as palavras que exprimem só dissessem respeito a objetos sensíveis passíveis de serem primeiramente mostrados à criança A lamentável facilidade que temos de nos satisfazermos com palavras que não entendemos começa mais cedo do que se pensa O aluno ouve na escola a parolagem do mestre como ouve nas fraldas a tagarelice de sua ama Pareceme que seria instruílo utilmente se o criassem para nada compreender a isso Acumulamse as reflexões quando queremos ocuparnos da formação da linguagem e das primeiras palavras da criança Façase o que se fizer ela aprenderá sempre a falar da mesma maneira e todas as especulações filosóficas são nisso da maior inutilidade De início têm as crianças por assim dizer uma gramática de sua idade cuja sintaxe tem regras mais gerais do que a nossa E se prestássemos bem atenção espantarnosia a exatidão com que elas seguem certas analogias impróprias se quiserem mas muito defensáveis e que só são chocantes pela sua dureza ou porque o uso não as admite Acabo de ouvir um pobre menino receber um pito do pai por ter dito Mon père iraijety irei aí Ora vêse que esse menino conhecia mais analogia do que nossos gramáticos porquanto se lhe diziam Vasy vai porque não diria ele Iraijety Observai demais com que habilidade evitava o hiato de iraijey ou yiraije Será culpa desse menino termos sem razão suprimido da frase o advérbio determinado y por não sabermos que fazer dele É um pedantismo insuportável e um cuidado dos mais supérfluos insistir em corrigir nas crianças todos esses pequenos erros contra os usos erros de que não deixam de se corrigir elas próprias com o tempo Falai sempre corretamente na frente delas que se comprazam com ninguém tanto quanto convosco e confiai em que vereis que insensivelmente sua linguagem se depurará segundo a vossa sem que jamais as tenhais corrigido Mas um abuso de bem maior importância e que não é menos fácil de prevenir está em insistirmos em que falem depressa como se tivéssemos receio de que não aprendessem a falar sozinhas Esse apressamento indiscreto produz um efeito diretamente contrário ao que se busca falarão mais tarde mais confusamente A extrema atenção que prestamos a tudo o que dizem eximeas de articular direito e como mal se dignam abrir a boca muitas conservam a vida inteira um defeito de pronúncia e um falar confuso que as torna quase ininteligíveis Vivi muito entre os camponeses e nunca ouvi nenhum carregar naturalmente nos rr nem homem nem mulher nem jovem de ambos os sexos De onde vem isso Os órgãos dos camponeses serão diferentes dos nossos Não mas são exercitados de outra maneira Em frente de minha janela há uma colina onde se reúnem em seus folguedos as crianças do lugar Embora se achem bastante afastadas de mim distingo perfeitamente tudo o que dizem e disso tiro frequentemente boas anotações para este estudo Todos os dias meu ouvido me engana a respeito de sua idade Ouço vozes de crianças de dez anos olho e vejo estatura e traços de crianças de três ou quatro Não me prendo sozinho a tais experiências os citadinos que me vêm visitar e que consulto a respeito caem todos no mesmo erro O que o provoca consiste em que até cinco ou seis anos as crianças das cidades criadas num quarto e sob os cuidados de uma governanta não precisam senão engrolar para serem entendidas mal mexem os lábios cuidam logo de ouvilas ditamlhes palavras que repetem mal e à força de prestar atenção a elas as pessoas que estão sempre com elas adivinham o que querem dizer mais do que o que elas dizem No campo a coisa é diferente Um camponês não se acha sempre ao lado de seu filho este precisa aprender a dizer muito nitidamente e alto o que precisa comunicar Nos campos as crianças dispersas afastadas do pai e da mãe e das demais crianças exercitamse em se fazerem ouvir à distância e a medir a força de sua voz no intervalo que as separa daqueles de quem querem ser ouvidos Eis como se aprende verdadeiramente a pronunciar e não gaguejando algumas vogais ao ouvido de uma governanta atenta Quando se interroga o filho de um camponês a vergonha pode impedilo de responder mas o que ele diz dilo com nitidez ao contrário a criada tem de servir de intérprete à criança da cidade sem o que não se entende o que resmunga entre os dentes17 Em crescendo os meninos deveriam corrigirse de tais defeitos nos colégios e as meninas nos conventos em geral uns e outras falam com efeito mais distintamente do que os criados na casa paterna Mas o que os impede de adquirir uma pronúncia tão nítida quanto a dos camponeses é a necessidade de aprender de cor muitas coisas e de recitar em voz alta o que aprenderam Estudando acostumamse a garatujar a pronunciar negligentemente e mal recitando pior ainda procuram as palavras com esforço arrastam e alongam as sílabas quando a memória vacila não é possível que a língua não balbucie também Assim se contraem ou se conservam os vícios de pronúncia Logo verão que meu Emílio não terá tais vícios ou ao menos que não os terá contraído pelas mesmas causas Convenho em que o povo e a gente das aldeias caem em outro extremo falam quase sempre mais alto do que necessário pronunciando demasiado exatamente têm as articulações rudes e fortes acentuam demais escolhem mal seus termos etc Antes de mais nada porém esse extremo me parece muito menos impróprio do que o outro porquanto sendo a primeira lei do discurso a de se fazer entender o erro maior está em falar sem ser entendido Vangloriarse de não ter acento é vangloriarse de tirar da frase a energia O acento é a alma do discurso dálhe sentimento e verdade 17 Isto não vai sem exceção e muitas vezes as crianças que menos se fazem compreender tornamse depois as mais brilhantes quando começam a falar Mas se fosse preciso entrar em todos esses pormenores eu não terminaria nunca Todo leitor sensato deve ver que o excesso e a carência derivados do mesmo abuso são igualmente corrigidos com meu método Encaro estas duas máximas como inseparáveis Sempre bastante nunca demais Bem estabelecida a primeira seguese a outra necessariamente O acento mente menos do que palavra talvez seja por isso que as pessoas bem educadas o receiem tanto É do hábito de tudo dizer no mesmo tom que decorre o de zombar dos outros sem que o sintam Ao acento proscrito sucedem maneiras de pronunciar ridículas afetadas e subordinadas à moda como as que se observam sobretudo nos jovens da corte Essa afetação da fala e da atitude é que toma em geral o contato com o francês hostil e desagradável às gentes de outras terras Ao invés de pôr acento na sua linguagem ele põe atitude Não é o meio de predispor a seu favor Todos esses pequenos defeitos de linguagem que tanto se teme deixar as crianças adquirilos corrigemse com a maior facilidade mas os que as fazem adquirir tornando sua fala surda confusa tímida criticando incessantemente seu tom de voz espiolhando todas as suas palavras não se corrigem nunca Um homem que tenha aprendido a falar nas alcovas farseá mal compreender à frente de um batalhão e não impressionará o povo num motim Ensinai primeiramente as crianças a falarem aos homens saberão falar às mulheres quando for preciso Criados no campo dentro da rusticidade campesina vossos filhos adquirirão uma voz sonora não contrairão o gaguejar confuso da cidade nem contrairão tampouco as expressões e o tom da aldeia ou os perderão facilmente quando o mestre com elas vivendo desde ao nascerem e aí vivendo dia a dia mais exclusivamente evitará ou apagará pela correção de sua linguagem a marca da linguagem dos camponeses Emílio falará um francês tão puro quanto o que posso saber mas o falará mais distintamente e o articulará muito melhor do que eu A criança que quer falar não deve ouvir senão as palavras que pode compreender não dizer senão as que pode articular Os esforços que faz para isso levamna a redobrar a mesma sílaba como para se exercitar a pronunciála mais distintamente Quando começar a balbuciar não vos atormenteis para adivinhar o que diz A pretensão de ser sempre ouvido é ainda uma espécie de domínio e á criança não deve exercer nenhum Contentaivos com prover muito atentamente ao necessário cabe a ela procurar fazer vos compreender o que não o é Bem menos ainda cumprirá exigirdes que ela fale saberá falar na medida em que sentir a utilidade Observase é certo que as que começam a falar muito tarde não falam tão distintamente quanto as outras Mas não é porque falam com atraso que o órgão fica embaraçado é ao contrário porque nasceram com um órgão defeituoso que começam a falar tarde Pois se não porque falariam mais tarde do que as outras Ao contrário a inquietude que dá esse atraso logo que se o percebe faz com que nos atormentemos muito mais em fazêlas balbuciar do que as que articularam mais cedo E essa pressa mal entendida pode contribuir para tornar confuso seu falar o qual como menos precipitação elas teriam tido tempo de aperfeiçoar As crianças que insistimos demais em fazer com que falem não têm tempo nem de aprender a bem pronunciar nem de bem conceber o que as forçamos a dizerem ao passo que quando as deixamos sozinhas elas se exercitam primeiramente nas sílabas mais fáceis de se pronunciarem juntando a elas algum sentido que se depreenda de seus gestos as crianças vos darão suas palavras antes de receberem as vossas isso faz com que só recebam estas depois de as terem entendido Não tendo pressa em delas se servirem começam por bem observar que sentido lhes dais e quando se certificam disso as adotam O maior mal da precipitação com a qual fazem as crianças falar antes da idade não está em que as primeiras palavras que lhes dizemos e as primeiras que nos dizem não tenham para elas nenhum sentido mas sim que tenham um sentido diferente do nosso sem que saibamos percebêlo De modo que parecendo respondernos muito precisamente elas nos falam sem nos entender e sem que nós as entendamos É em geral a tais equívocos que se deve a surpresa em que nos mergulham por vezes seus dizeres a que emprestamos ideias que elas não lhes deram Essa nossa falta de atenção com o verdadeiro sentido que as palavras têm para as crianças pareceme ser a causa de seus primeiros erros e tais erros mesmo depois de se corrigirem influem em seu espírito durante a vida toda Terei mais de uma oportunidade logo mais de esclarecer isso com exemplos Condensai portanto quanto possível o vocabulário da criança É grande inconveniente tenha ela mais palavras que ideias saiba dizer mais coisas do que pode pensar Creio que uma das razões de terem os camponeses o espírito mais acertado que o da gente da cidade está em que seu dicionário é menos extenso Tem essa gente menos ideias mas as assimila muito bem Os primeiros desenvolvimentos da infância ocorrem quase todos ao mesmo tempo A criança aprende a falar a comer a andar quase ao mesmo tempo É em verdade a primeira fase de sua vida Antes ela não é nada mais do que era no ventre da mãe não tem nenhum sentimento nenhuma ideia mal tem sensações não sente sequer sua própria existência Vivit et est vitae nescius ipse suae
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Livro Primeiro TUDO é certo em saindo das mãos do Autor das coisas tudo degenera nas mãos do homem Ele obriga uma terra a nutrir as produções de outra uma árvore a dar frutos de outra mistura e confunde os climas as estações mutila seu cão seu cavalo seu escravo transtorna tudo desfigura tudo ama a deformidade os monstros não quer nada como o fez a natureza nem o homem tem de ensinálo para si como um cavalo de picadeiro tem que moldálo a seu jeito como uma árvore de seu jardim Sem isso tudo iria de mal a pior e nossa espécie não deve ser formada pela metade No estado em que já se encontram as coisas um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os demais seria o mais desfigurado de todos Os preconceitos a autoridade a necessidade o exemplo todas as instituições sociais em que nos achamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam no lugar dela Ela seria como um arbusto que o acaso fez nascer no meio do caminho e que os passantes logo farão morrer nele batendo de todos os lados e dobrandoo em todos os sentidos É a ti que me dirijo terna e previdente mãe1 que te soubeste afastar do caminho trilhado e proteger o arbusto nascente contra o choque das opiniões humanas Cultiva rega a jovem planta antes que morra seus frutos darteão um dia alegrias Estabelece desde cedo um cinto de muralhas ao redor da alma de tua criança Outro pode assinalar o circuito mas só tu podes erguer o muro2 Amanhamse as plantas pela cultura e os homens pela educação Se o homem nascesse grande e forte seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles ser virse Serlheiam prejudiciais impedindo os outros de pensar em 1 A educação primeira é a que mais importa e essa primeira educação cabe incontestavelmente às mulheres se o Autor da natureza tivesse querido que pertencesse aos homens terlhesia dado leite para alimentarem as crianças Falai portanto às mulheres de preferência em vossos tratados de educação pois além de terem a possibilidade de para isso atentar mais de perto que os homens e de nisso influir cada vez mais o êxito as interessa também muito mais porquanto em sua maioria as viúvas se acham quase à mercê de seus filhos e que então precisam sentir em bem ou mal o resultado da maneira pela qual os educaram As leis sempre tão preocupadas com os bens e tão pouco com as pessoas por terem como objetivo a paz e não a virtude não outorgam suficiente autoridade às mães Entretanto suas condições são mais seguras que as dos pais seus deveres mais penosos seus cuidados têm mais importância para a boa ordem da família geralmente elas se apegam mais às crianças Há ocasiões em que um filho que falta o respeito a seu pai pode até certo ponto ser desculpado mas se em qualquer oportunidade que seja um filho se revelasse bastante inumano para faltálo a sua mãe quem o carregou no seu seio quem o alimentou com seu leite quem durante anos se esqueceu a si mesma para só se ocupar dele deverseia sufocar esse miserável como um monstro indigno de ver o dia As mães dizem estragam os filhos A mãe quer que seu filho seja feliz que o seja desde logo Nisso tem razão quando se engana quanto aos meios é preciso esclarecêla A ambição a avareza a tirania a falsa previdência dos pais sua negligência sua dura insensibilidade são cem vezes mais funestas às crianças que a cega ternura das mães De resto é preciso explicar o sentido que dou a este nome de mãe e é o que se fará dentro em pouco 2 Asseguramme que Mr Fourmey pensou que eu quisesse aqui falar de minha mãe e que ele o disse em certa obra É zombar cruelmente de Mr Formey e de mim assistilo3 e abandonado a si mesmo ele morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades Deplorase o estado da infância não se vê que a raça humana teria perecido se o homem não começasse sendo criança Nascemos fracos precisamos de força nascemos desprovidos de tudo temos necessidade de assistência nascemos estúpidos precisamos de juízo Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos adultos énos dado pela educação Essa educação nos vem da natureza ou dos homens ou das coisas O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas Cada um de nós é portanto formado por três espécies de mestres O aluno em quem as diversas lições desses mestres se contrariam é mal educado e nunca estará de acordo consigo mesmo aquele em quem todas visam ao mesmos pontos e tendem para os mesmos fins vai sozinho a seu objetivo e vive em consequência Somente esse é bem educado Ora dessas três educações diferentes a da natureza não depende de nós a das coisas só em certos pontos depende A dos homens é a única de que somos realmente senhores e ainda assim só o somos por suposição pois quem pode esperar dirigir inteiramente as palavras e as ações de todos os que cercam uma criança Sendo portanto a educação uma arte tornase quase impossível que alcance êxito total porquanto a ação necessária a esse êxito não depende de ninguém Tudo o que se pode fazer à força de cuidados é aproximarse mais ou menos da meta mas é preciso sorte para atingila Que meta será essa A própria meta da natureza isso acaba de ser provado Dado que a ação das três educações é necessária à sua perfeição é para aquela sobre a qual nada podemos que cumpre orientar as duas outras Mas talvez esta palavra natureza tenha um sentido demasiado vago é preciso tentar definilo com exatidão A natureza dizemnos é apenas o hábito4 Que significa isso Não há hábitos que só se adquirem pela força e não sufocam nunca a natureza É o caso por exemplo do hábito das plantas cuja direção vertical se perturba Em se lhe devolvendo a liberdade a planta conserva a inclinação que a obrigaram a tomar mas a seiva não muda com isso sua direção primitiva e se a planta continuar a vegetar seu prolongamento voltará a ser vertical O mesmo acontece com as inclinações dos homens Enquanto permanecemos no mesmo estado podemos conservar as que resultam do hábito e que nos são menos naturais Mas desde que a situação mude o hábito cessa e o natural se restabelece A 3 Semelhante a eles exteriormente e privado da palavra como das ideias que exprime seria incapaz de leválos a entenderem a necessidade que teriam de seu auxílio e nada nele lhes mostraria essa necessidade 4 M Foutmey asseguranos que não se diz precisamente isto Isto se me afigura entretanto muito precisamente dito neste verso a que eu me propunha responder A natureza creiame é apenas o hábito M Fourmey que não quer enobrecer seus semelhantes dános modestamente a medida de seu cérebro como a do entendimento humano educação não é certamente senão um hábito Mas não há pessoas que esquecem e perdem sua educação e outras que a conservam De onde vem essa diferença Se devemos restringir o nome de natureza aos hábitos conformes à natureza é de se poupar este galimatias Nascemos sensíveis e desde nosso nascimento somos molestados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam Mal tomamos por assim dizer consciência de nossas sensações e já nos dispomos a procurar os objetos que as produzem ou a deles fugir primeiramente segundo nos sejam elas agradáveis ou desagradáveis depois segundo a conveniência ou a inconveniência que encontramos entre esses objetos e nós e finalmente segundo os juízos que fazemos deles em relação à ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos fornece Essas disposições se estendem e se afirmam na medida em que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos mas constrangidas por nossos hábitos elas se alteram mais ou menos sob a influência de nossas opiniões Antes dessa alteração elas são aquilo a que chamo em nós a natureza É pois a essas disposições primitivas que tudo se deveria reportar e isso seria possível se nossas três educações fossem tão somente diferentes mas que fazer quando são opostas Quando ao invés de educar um homem para si mesmo se quer educálo para os outros Então o acerto se faz impossível Forçado a combater a natureza ou as instituições cumpre optar entre fazer um homem ou um cidadão porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo Toda sociedade parcial quando restrita e bem unida alienase da grande Todo patriota é duro com os estrangeiros são apenas homens nada são a seus olhos5 Tal inconveniente é inevitável mas é fraco O essencial é ser bom à gente com a qual se vive Com os de fora o espartano era ambicioso avarento iníquo mas o desinteresse a equidade a concórdia reinavam dentro dos muros de sua cidade Desconfiai desses cosmopolitas que vão buscar em seus livros os deveres que desdenham cumprir em relação aos seus Tal ou qual filósofo ama os tártaros para ser dispensado de amar seus vizinhos O homem natural é tudo para ele é a unidade numérica é o absoluto total que não tem relação senão consigo mesmo ou com seu semelhante O homem civil não passa de uma unidade fracionária presa ao denominador e cujo valor está em relação com o todo que é o corpo social As boas instituições sociais são as que mal bem sabem desnaturar o homem tirarlhe sua existência absoluta para darlhe outra relativa e colocar o eu na unidade comum de modo que cada particular não se acredite mais ser um que se sinta uma parte da unidade e não seja mais sensível senão no todo Um cidadão de Roma não era nem Caio nem Lúcio era um romano amava mesmo uma pátria exclusivamente sua Régulo pretendia ser cartaginês como se tendo tornado a propriedade de seus senhores Na qualidade de estrangeiro recusavase a ter assento no senado de Roma foi preciso que um cartaginês lho ordenasse Indignavao que lhe 5 Por isso as guerras das repúblicas são mais cruéis que as das monarquias Mas se a guerra dos reis é moderada sua paz é terrível vale mais ser inimigo deles do que súditos quisessem salvar a vida Venceu e voltou triunfante para morrer supliciado Isso não tem muita relação pareceme com os homens que conhecemos Placedemônio Pedarete apresentase para ser admitido ao conselho dos trezentos é recusado volta satisfeito por ter encontrado em Esparta trezentos homens mais dignos do que ele Suponho que essa demonstração era sincera é de se acreditar que era Eis o cidadão Uma mulher de Esparta tinha cinco filhos no exército e aguardava notícias da batalha Chega um hilota ela pedelhe trêmula informações Vossos cinco filhos morreram Vil escravo pergunteite isso Alcançamos a vitória A mãe corre ao templo e rende graças aos deuses Eis a cidadã Aquele que na ordem civil deseja conservar a primazia da natureza não sabe o que quer Sempre em contradição consigo mesmo hesitando entre suas inclinações e seus deveres nunca será nem homem nem cidadão não será bom nem para si nem para outrem Será um dos homens de nossos dias um francês um inglês um burguês não será nada Para ser alguma coisa para ser si mesmo e sempre um é preciso agir como se fala é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar tomálo com altivez e seguilo sempre Estou à espera de que me mostrem esse prodígio a fim de saber se é homem ou cidadão ou como se arranja para ser a um tempo um e outro Desses dois objetos necessariamente opostos decorrem duas formas de instituições contrárias uma pública e comum outra particular e doméstica Quereis ter uma ideia da educação pública lede a República de Platão Não se trata de uma obra de política como pensam os que julgam os livros pelos títulos é o mais belo tratado de educação que jamais se escreveu Quando se quer enviar alguém ao país das quimeras citase a instituição de Platão Ora se Licurgo houvesse escrito a sua eu a acharia bem mais quimérica Platão não fez senão depurar o coração do homem Licurgo desnaturouo A instituição pública não existe mais e não pode mais existir porque não há mais pátria não pode haver cidadãos Estas duas palavras pátria e cidadão devem ser riscadas das línguas modernas Bem sei qual a razão mas não a quero dizer nada tem a ver com meu assunto Não encaro como uma instituição pública esses estabelecimentos ridículos a que chamam colégios6 Não levo em conta tampouco a educação da sociedade porque essa educação tendendo para dois fins contrários erra ambos os alvos ela só serve para fazer homens de duas caras parecendo sempre tudo subordinar aos outros e não subordinando nada senão a si mesmos Ora essas demonstrações sendo comuns não 6 Há em muitas escolas e sobretudo na Universidade de Paris professores que amo que muito estimo e que acredito muito capazes de instruir a juventude se não fossem forçados a obedecer aos usos estabelecidos Exorto um deles a publicar o projeto de reforma que concebeu Serseá enfim tentado a curar o mal ao ver que não é sem remédio iludem ninguém São cuidados perdidos Dessas contradições nascem as que experimentamos sem cessar em nós mesmos Arrastados pela natureza e pelos homens por caminhos contrários obrigados a nos desdobrarmos entre tão diversos impulsos seguimos um de compromisso que não nos leva nem a uma nem a outra meta Assim combatidos e hesitantes durante toda a nossa vida nós a terminamos sem ter podido acordarnos conosco e sem termos sido bons para nós nem para os outros Resta enfim a educação doméstica ou a da natureza mas que será para os outros um homem unicamente educado para si mesmo Se o duplo objetivo que se propõe pudesse porventura reunirse num só eliminando as contradições do homem eliminar seia um grande obstáculo à sua felicidade Para julgar fora preciso vêlo inteiramente formado fora preciso ter observado suas tendências visto seus progressos acompanhado sua evolução fora preciso em poucas palavras conhecer o homem natural Creio que alguns passos terão sido dados nessas pesquisas em se lendo este livro Para formar esse homem raro que devemos fazer Muito sem dúvida impedir que nada seja feito Quando não se trata senão de ir contra o vento bordejase mas se o mar está agitado e se quer não sair do lugar cumpre lançar a âncora Toma cuidado jovem piloto para que o cabo não se perca ou que tua âncora não se arraste a fim de que o barco não derive antes que o percebas Na ordem social em que todos os lugares estão marcados cada um deve ser educado para o seu Se um indivíduo formado para o seu dele sai para nada mais serve A educação só é útil na medida em que sua carreira acorde com a vocação dos pais em qualquer outro caso ela é nociva ao aluno nem que seja apenas em virtude dos preconceitos que lhe dá No Egito onde o filho era obrigado a abraçar a profissão do pai a educação tinha pelo menos um fim certo Mas entre nós quando somente as situações existem e os homens mudam sem cessar de estado ninguém sabe se educando o filho para o seu não trabalha contra ele Na ordem natural sendo os homens todos iguais sua vocação comum é o estado do homem e quem quer seja bem educado para esses não pode desempenharse mal dos que com esse se relacionam Que se destine meu aluno à carreira militar à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa Antes da vocação dos pais a natureza chamao para a vida humana Viver é o ofício que lhe quero ensinar Saindo de minhas mãos ele não será concordo nem magistrado nem soldado nem padre será primeiramente um homem Tudo o que um homem deve ser ele o saberá se necessário tão bem quanto quem quer que seja e por mais que o destino o faça mudar de situação ele estará sempre em seu lugar Occupavi te Fortuna atque cepi omnesque aditus tuos interclusi ut ad me aspirare non posses Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana Quem entre nós melhor sabe suportar os bens e os males desta vida é a meu ver o mais bem educado daí decorre que a verdadeira educação consiste menos em preceitos do que em exercícios Começamos a instruirnos em começando a viver nossa educação começa conosco nosso primeiro preceptor é nossa ama Por isso esta palavra educação tinha entre os antigos sentido diferente do que lhe damos hoje significava alimento Educit obstetrix diz Varrão educat nutrix instituit pedagogus docet magister Assim a educação a instituição a instrução são três coisas tão diferentes em seu objeto quanto a governante o preceptor e o mestre Mas tais distinções são mal compreendidas e para ser bem orientada a criança deve seguir um só guia É preciso portanto generalizar nossos pontos de vista e considerar em nosso aluno o homem abstrato o homem exposto a todos os acidentes da vida humana Se os homens nascessem arraigados ao solo de um país se a mesma estação durasse o ano todo se cada qual se prendesse a seu destino de maneira a nunca poder mudar a prática estabelecida seria boa até certo ponto a criança educada para sua condição dela não saindo nunca não poderia ser exposta aos inconvenientes de outra Mas dada a mobilidade das coisas humanas dado o espírito inquieto e agitado deste século que tudo transforma a cada geração poderseá conceber um método mais insensato que o de educar uma criança como nunca devendo sair de seu quarto como devendo sem cessar acharse cercada dos seus Se o infeliz dá um só passo na terra se desce um só degrau está perdido Não é isso ensinarlhe a suportar a dor é exercitálo a sentila Não se pensa senão em conservar a criança não basta deveselhe ensinar a conservarse em sendo homem a suportar os golpes da sorte a enfrentar a opulência e a miséria a viver se necessário nos gelos da Islândia ou no rochedo escaldante de Malta Por maiores precauções que tomeis para que não morra terá contudo que morrer E ainda que sua morte não fosse obra de vossos cuidados ainda assim estes seriam mal entendidos Tratase menos de impedila de morrer que de fazêla viver Viver não é respirar é agir é fazer uso de nossos órgãos de nossos sentidos de nossas faculdades de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência O homem que mais vive não é aquele que conta maior número de anos e sim o que mais sente a vida Há quem seja enterrado a cem anos e que já morrera ao nascer Teria ganho em ir para o túmulo na mocidade se ao menos tivesse vivido até então Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis todos os nossos usos não são senão sujeição embaraço e constrangimento O homem civil nasce vive e morre na escravidão ao nascer envolvemno em um cueiro ao morrer encerramno em um caixão enquanto conserva sua figura humana está acorrentado a nossas instituições Dizem que muitas parteiras pretendem com massagens na cabeça das crianças recémnascidas darlhe uma forma mais conveniente e aceitase isso Nossas cabeças estariam erradas se em obediência ao Autor de nosso ser cumprenos modelálas de fora pelas parteiras e por dentro pelos filósofos Os caribes são metade mais felizes do que nós Mal a criança sai do seio da mãe mal goza a liberdade de se mexer e distender seus membros já lhe dão novas cadeias Enrolamna em faixas deitamna com a cabeça imóvel e as pernas alongadas os braços pendentes ao lado do corpo envolvemna em toda espécie de panos e tiras que não lhe permitem mudar de posição Que se deem por felizes se não se veem apertadas a ponto de não poderem respirar se tiveram a precaução de deitála de lado para que o liquido que deve devolver caia por si mesmo pois não teria a liberdade de virar a cabeça a fim de facilitar o escorrimento O recémnascido precisa distender e movimentar seus membros para arrancálos do entorpecimento em que juntados numa espécie de pelota ficam tanto tempo Distendemnos é verdade mas impedemnos de se mexerem ajeitam até a cabeça dentro de toucas Dirseia que têm medo de que pareçam viver Assim o impulso das partes internas de um corpo que tende a crescer encontra um obstáculo insuperável aos movimentos que esse impulso exige A criança faz continuamente esforços inúteis que lhe esgotam as forças ou atrasam seu progresso Estava menos comprimida no âmnio do que nas suas fraldas não vejo o que ganhou em nascendo A inação o constrangimento em que mantêm os membros da criança não podem senão perturbar a circulação do sangue dos humores impedir a criança de se fortalecer de crescer e alterar sua constituição Nos lugares em que não se tomam tais precauções extravagantes os homens são mais altos fortes bem proporcionados Os países onde enfaixam as crianças são os que mais exibem corcundas mancos cambaios raquíticos aleijados de todo tipo De medo que os corpos se deformem com movimentos livres apressamse em deformálos imprensandoos Tornálosiam de bom grado paralíticos a fim de impedilos de se estropiarem Tão cruel constrangimento poderia não influir em seu humor em seu temperamento Seu primeiro sentimento é um sentimento de dor e de esforço só encontram obstáculos a todos os movimentos de que necessitam Mais desgraçados do que um criminoso algemado fazem esforços vãos irritamse gritam Seus primeiros sons dizei vós são de choro É evidente Vós os contrariais desde o nascimento o primeiro presente que recebem de vós são algemas os primeiros tratos que experimentam são tormentos Nada tendo de livre senão a voz como não se servirem dela para se queixarem Choram por causa do mal que vós lhes fazeis Assim envolvidos e amarrados gritaríeis mais do que eles De onde vem esse hábito insensato De um costume antinatural Desde que as mães desprezando seu principal dever não mais quiseram amamentar os filhos foi preciso confiálos a mulheres mercenárias que vendose assim mães de filhos estranhos e não sentindo o apelo da natureza não se preocuparam senão com poupar trabalho Fora necessário vigiar sem cessar uma criança em liberdade mas estando ela bem amarrada basta jogála num canto sem se incomodar com os gritos Desde que não haja provas da negligência da ama desde que o bebê não quebre o braço ou a perna que importa afinal que morra aleijado para o resto da vida Conservamse seus membros a expensas de seu corpo e a ama é desculpada aconteça o que acontecer Essas ternas mães que livres de seus filhos se entregam alegremente aos divertimentos da cidade sabem porventura que tratamento recebe a criança em suas faixas na aldeia Ante o menor aborrecimento que venha a ocorrer suspendemna a um prego como um trapo e enquanto sem se apressar a ama trata de seus afazeres a infeliz fica crucificada Todas as que foram encontradas nessa posição tinham a cara roxa Com o peito fortemente comprimido que impedia a circulação o sangue subia à cabeça E acreditavase estivesse a paciente mui tranquila porque em verdade não tinha forças para gritar Ignoro quantas horas uma criança pode permanecer nesse estado sem perder a vida mas duvido que possa ir muito longe Eis penso uma das maiores comodidades do enfaixamento Supõese que as crianças em liberdade podem colocarse em más posições e efetuar movimentos suscetíveis de prejudicar a boa conformação de seus membros Tratase de um desses raciocínios gratuitos de nossa falsa sabedoria e que jamais uma experiência confirmou Na multidão de crianças que entre os povos mais sensatos do que nós são criadas com inteira liberdade de seus membros não se vê uma só que se fira ou se estropie Não poderiam dar a seus movimentos a força que os tornariam perigosos E quando se colocam numa posição errada logo a dor as adverte de que devem mudar Não nos lembramos ainda de enfaixar os filhotes de cães ou gatos têmse visto resultar alguns inconveniente dessa negligência Certamente as crianças são mais pesadas mas proporcionalmente são também mais fracas Mal podem mexerse como se estropiariam Se as puséssemos de costas morreriam nessa posição como as tartarugas sem nunca poder virarse Não contentes com terem deixado de amamentar seus filhos as mulheres se recusam a fazêlos a consequência é natural A partir do momento em que o estado de mãe se torna oneroso encontrase logo um meio de se desembaraçar dele inteiramente querse realizar um trabalho inútil a fim de recomeçálo sempre e contra a espécie é que se volta a atração dada para multiplicála Esse expediente acrescentado às outras causas de despovoamento anuncia o destino próximo da Europa As ciências as artes a filosofia e os costumes que engendra não tardarão em fazer dela um deserto Será povoada de animais ferozes não terá mudado muito de habitantes Tive a oportunidade de ver por vezes o jeitinho das jovens mulheres que fingem querer amamentar seus filhos Sabem fazer com que as instiguem a renunciarem a tal fantasia fazem com que intervenham habilmente os maridos e os médicos7 sobretudo as mães Um marido que ousasse consentir que sua mulher amamentasse o filho seria um homem perdido tachariamno de assassino desejoso de se livrar dela Maridos prudentes precisam imolar o amor paterno no altar da paz Felizes os que encontram no campo mulheres mais virtuosas do que as próprias Mais felizes ainda em acontecendo que o tempo por estas ganho a outros não se destine O dever das mulheres não é discutível o que se discute é se em o 7 A aliança das mulheres com os médicos sempre se me afigurou uma das mais divertidas singularidades de Paris É através das mulheres que os médicos adquirem sua reputação e é através deles que as mulheres fazem suas vontades Vêse por aí que espécie de habilidade é necessária a um médico de Paris para se tornar célebre menosprezando importa serem os filhos amamentados por elas ou por outras Considero essa questão de que são juízes os médicos como resolvida em favor das mulheres Pareceme a mim de resto que mais vale a criança mamar o leite de uma ama saudável que o de uma mãe degenerada se houvesse algum mal a temer do sangue que tem nas veias Mas devese encarar o problema exclusivamente pelo lado físico E terá a criança menos necessidade dos cuidados de uma mãe que de seu seio Outras mulheres e até bichos poderão darlhe o leite que ela lhe recusa a solicitude materna não se supre É mãe condenável a que alimenta o filho de outra em lugar do seu como poderia ser um boa ama Poderá tornarse porém lentamente será preciso que o hábito mude a natureza e a criança mal tratada terá tempo de morrer cem vezes antes que a ama por ela se tome de uma ternura de mãe Dessa vantagem já resulta um inconveniente que deveria tirar de toda mulher sensível a coragem de fazer amamentar o filho por outra o de partilhar o direito de mãe ou antes o de alienálo O de ver seu filho amar outra mulher tanto quanto ela ou mais o de sentir que a ternura que conserva por sua mãe verdadeira é uma graça e a que dedica a sua mãe adotiva um dever pois onde encontro os cuidados de uma mãe devo ter o apego de um filho A maneira de remediar a tal inconveniente é inspirar às crianças desprezo por suas amas tratandoas como verdadeiras criadas Terminado seu serviço retirase a criança ou despedese a ama à força de recebêla mal fazse com que se desgoste de ver o bebê Ao fim de alguns anos ele não a vê mais não a conhece mais A mãe que imagina substituirse a ela e corrigir sua negligência mediante sua crueldade enganase Ao invés de fazer um filho amoroso de um bebê desnaturado ela o exercita na ingratidão ensinalhe a desprezar um dia quem lhe deu a vida tal qual quem lhe deu o leite Como eu insistiria neste ponto se fosse menos desanimador debater em vão questões úteis Isso se prende a mais coisas do que se imagina Quereis fazer com que todos se atenham a seus deveres Começai pelas mães ficareis espantados com as mudanças que provocareis Tudo provém sucessivamente dessa primeira depravação toda a ordem moral se altera o natural se apaga em todos os corações o interior das casas fazse menos vivo o espetáculo comovente de uma família em formação não mais prende os maridos não impõe mais deferência aos estranhos respeitase menos a mãe cujos filhos não se veem não há mais achego nas famílias o hábito não reforça mais os laços do sangue não há mais pais nem mães nem filhos nem irmãos nem irmãs mal se conhecem todos como se amariam Ninguém mais pensa senão em si Quando a casa não passa de uma triste solidão cumpre divertirse alhures Mas que as mães concordem em amamentar seus filhos e os costumes reformar seão sozinhos os sentimentos da natureza despertarão em todos os corações o Estado se repovoará E este ponto tãosomente este ponto vai tudo unir A atração da vida doméstica é o melhor contraveneno para os maus costumes O aborrecimento das crianças que se imagina importuno tornase agradável torna o pai e mãe mais necessários mais caros um ao outro estreita entre eles a ligação conjugal Quando a família é viva e animada os cuidados domésticos tornamse a mais cara ocupação da mulher e o mais doce divertimento do marido Assim desse único abuso corrigido resultaria em breve uma reforma geral logo a natureza readquiriria seus direitos Em voltando as mulheres a ser mães logo os homens voltariam a ser pais e maridos Palavras supérfluas Nem mesmo o tédio dos prazeres da vida social traz de volta àqueles As mulheres deixaram de ser mães não o serão mais não o querem mais ser Ainda que o quisessem mal o poderiam Agora que o costume contrário se estabeleceu cada uma delas teria de combater a oposição de todas as companheiras ligadas contra um exemplo que algumas não deram e que outras não querem seguir Encontramse ainda por vezes entretanto jovens mulheres de bom natural que ousando enfrentar sob esse aspecto o império da moda cumprem com virtuosa intrepidez o dever tão suave que a natureza lhes impõe Possa seu número aumentar com a atração dos bens destinados às que a ele se entregam Baseado nas consequências que oferece o mais simples raciocínio e em observações que nunca vi desmentidas ouso prometer a essas dignas mães um apelo sólido e constante de seus maridos uma ternura realmente filial por parte de seus filhos a estima e o respeito do público partos felizes sem acidentes nem consequências uma saúde constante e vigorosa o prazer enfim de se verem um dia imitadas por suas filhas e citadas como exemplo às de outrem Em não havendo mãe não pode haver filho Entre ambos os deveres são recíprocos e se são mal cumpridos de um lado de outro são negligenciados O filho deve amar a mãe antes de saber se o deve Se a voz do sangue não for fortalecida pelo hábito e pelos cuidados ela se extinguirá nos primeiros anos e o coração morrerá por assim dizer antes de nascer Eisnos desde os primeiros dias fora da natureza Desta se sai ainda por caminho oposto quando ao invés de negligenciar os cuidados de mãe uma mulher os leva ao exagero quando ela faz de seu filho um ídolo quando aumenta e alimenta sua fraqueza para impedilo de sentila e que esperando subtraílo às leis da natureza dele afasta os insultos penosos sem pensar quanto ao preço de alguns incômodos de que o preserva um instante ela acumula ao longe acidentes e perigos sobre a cabeça dele e a que ponto é precaução bárbara prolongar a fraqueza da infância sob a fadiga dos homens feitos Tétis para tornar seu filho invulnerável mergulhouo diz a fábula nas águas do Estige Essa alegoria é bela e clara As mães cruéis de que falo agem de outra maneira à força de mergulhar seus filhos na moleza preparamnos para o sofrimento abremlhes os poros aos males de toda espécie de que não deixarão de ser presas ao crescerem Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica Ela exercita continuamente as crianças ela enrijesse seu temperamento mediante experiências de toda espécie ela ensinalhes desde cedo o que é pena e dor Os dentes que apontam dãolhes febres as cólicas agudas dãolhes convulsões as tosses prolongadas sufocam nos os vermes atormentamnos a pletora corrompelhes o sangue fermentações diversas neste se manifestam e provocam erupções perigosas Quase toda a primeira infância é doença e perigo metade das crianças que nascem morre antes dos oito anos Passando pelas provações a criança adquiriu forças e desde logo que pode usar a vida mais seguro se torna o princípio dela Essa a regra da natureza Por que a contrariais Não vedes que pensando corrigi la destruís sua obra impedis o efeito de seus cuidados Fazer por fora o que ela faz por dentro é a vosso ver aumentar o perigo e ao contrário é provocar uma diversão é atenuálo Mostra a experiência que morrem mais crianças criadas delicadamente do que outras Conquanto não se ultrapasse a medida de suas forças arriscase menos empregandoas do que as poupando Exercitaias portanto nas afrontas que um dia terão de suportar Enrijeceilhes o corpo às intempéries das estações dos climas dos elementos à fome à sede ao cansaço mergulhaias nas águas do Estige Antes que se adquira o hábito do corpo dáselhe o que se quer sem perigo Mas uma vez em sua consistência qualquer alteração se torna perigosa Uma criança suportará mudanças que um homem não suporta as fibras dela moles flexíveis tomam sem esforço as dobras que se lhes impõem as do homem mais endurecidas só com violência mudam as que receberam Podese portanto tornar uma criança robusta sem expor sua vida e sua saúde e ainda que houvesse algum risco não se deveria hesitar Se são riscos inseparáveis da vida humana podese agir melhor do que transpôlos para o tempo de sua duração em que são menos prejudiciais Uma criança se torna mais preciosa na medida em que se faz mais idosa Ao preço de sua pessoa juntase o dos cuidados que custou à perda da vida juntase nela o sentimento da morte É portanto no futuro que é preciso pensar zelando pela sua conservação é contra os males da juventude que é preciso defendêla antes que a eles chegue Se o preço da vida aumenta até a idade de a tornar útil não será loucura poupar alguns males na infância multiplicandoos na idade da razão Serão essas as lições do mestre O destino do homem é sofrer em qualquer época O próprio cuidado de sua conservação está ligado à dor Felizes os que só conhecem na infância os males físicos males bem menos cruéis bem menos dolorosos do que os outros e que bem mais raramente do que eles nos fazem renunciar à vida Ninguém se mata com as dores da gota somente as da alma suscitam o desespero Temos dó da sorte da infância mas é da nossa que deveríamos ter Nossos maiores males vêm de nós mesmos Ao nascer uma criança grita sua primeira infância passa a chorar Sacodemna às vezes ou a acariciam para acalmála ameaçamna também e batemna para que se cale Ou fazemos o que lhe agrada ou dela exigimos o que nos agrada Ou nos submetemos a Suas fantasias ou a submetemos às nossas não há meio termo é preciso que nos dê ordens ou que as receba Assim suas primeiras ideias são de império ou de servidão Antes de saber falar ela manda antes de poder agir ela obedece e não raro castigamna antes que ela possa conhecer seus erros Ou os cometer E assim é que se inculcam em seu jovem coração as paixões imputadas a seguir à natureza e que depois de ter se esforçado por tornála má a gente se queixa de descobrila má Uma criança passa assim seis ou sete anos dessa maneira nas mãos das mulheres vítimas dos caprichos delas e do seu próprio E depois de lhe ensinar isto ou aquilo isto é depois de ter sobrecarregado sua memória com palavras que não pode entender ou com coisas que em nada lhe auxiliam depois de ter abafado o natural com paixões que se incitam entregase esse ser factício nas mãos de um preceptor o qual acaba de desenvolver os germens artificiais que já encontra formados e lhe ensina tudo menos a se conhecer menos a tirar proveito de si mesmo menos a saber viver bem e se tornar feliz Finalmente quando essa criança escrava e tirana cheia de conhecimentos e desprovida de sentidos igualmente débil de corpo e de alma é jogada no mundo mostrando sua inépcia seu orgulho e todos os seus vícios ela faz com que se deplorem a miséria e a perversidade humanas Enganamonos esse é o homem de nossa fantasia o da natureza é diferente Quereis que conserve sua forma original Conservai a partir do instante em que vem ao mundo Logo ao nascer apropriaivos dele não o largueis antes que seja homem nada conseguireis sem isso Assim como a verdadeira ama é a mãe o verdadeiro preceptor é o pai Que se acordem na ordem de suas funções bem como em seu sistema que das mãos de uma passe às mãos de outro Será mais bem educado por um pai judicioso e limitado do que pelo mais hábil preceptor do mundo porquanto o zelo substituirá mais o talento do que o talento o zelo Mas os negócios as funções os deveres Ah os deveres sem dúvida o último é o do pai8 Que não nos espante o fato de um homem cuja mulher desdenhou alimentar o fruto de sua união desdenhe educálo Não há quadro mais encantador que o da família mas um só traço errado desfigura todos os demais Se a mãe não tem bastante saúde para ser ama o pai tem negócios demais para ser preceptor Os filhos afastados espalhados por pensões ou conventos ou colégios levarão para alhures o amor à casa paterna ou melhor a esta levarão o hábito de não se apegarem a nada Os irmãos e irmãs mal se conhecerão Quando todos se reunirem em alguma cerimônia serão corteses entre si mas se tratarão como estranhos Desde que não haja mais intimidade entre parentes desde que a companhia da família não contribua mais para a doçura da vida será necessário recorrer aos maus costumes para suprila Quem será bastante estúpido para não ver o encadeamento disso tudo Um pai quando engendra e alimenta seus filhos não faz nisso senão o terço de sua tarefa Deve homens a sua espécie deve à sociedade homens sociáveis deve cidadãos ao Estado Todo homem que pode pagar essa dívida tríplice e não o faz é culpado e mais culpado ainda talvez quando a paga em parte Quem não pode pagar os deveres de pai não tem o direito de ser pai Não há nem pobreza nem tarefas nem 8 Quando se lê em Plutarco que Catão o Censor que governou Roma com tanta glória educou ele próprio o filho desde o berço e com tal cuidado que tudo abandonava para estar presente quando a ama isto é a mãe a virava e lavava quando se lê em Suetônio que Augusto senhor do mundo por ele conquistado e por ele dirigido ensinava ele próprio a seus netos a escrita a natação os elementos das ciências e que os tinha sempre a seu lado não se pode deixar de rir das gentinhas daquela época que se divertiam com semelhantes bobagens demasiadas medíocres sem dúvida para saberem atender às grandes questões dos grandes homens de hoje respeito humano que o dispensem de nutrir seus filhos e de educálos ele próprio Leitores podeis acreditar em mim predigo que quem quer que seja tenha entranhas e negligencie tão santos deveres derramará por sua causa lágrimas amargas e nunca se consolará Mas que faz esse homem rico esse pai de família tão ocupado e forçado a seu ver de abandonar os filhos Paga outro homem para prodigalizar os cuidados que lhe cabem Alma venal Imaginas dar a teu filho outro pai com dinheiro Não te enganes não é sequer um mestre que lhe dás é um criado Ele formará dentro em breve outro Discutese muito acerca das qualidades de um bom governante A primeira que eu exigiria e essa supõe muitas outras seria não ser um homem à venda Há ofícios tão nobres que ninguém os pode desempenhar por dinheiro sem se mostrar indigno o guerreiro por exemplo o instrutor Quem então educará meu filho Já o disse tu mesmo Não o posso Não o podes Transformate então em amigo Não vejo outra solução Um governante ó que alma sublime Em verdade para fazer um homem é preciso ser pai ou mais do que um homem e eis a função que confiais tranquilamente a mercenários Quanto mais se pensa nisso mais se depara com novas dificuldades Fora preciso que o governante tivesse sido educado para seu aluno que seus criados tivessem sido educados para seu senhor que todos os que dele se aproximam tivessem recebido as impressões que lhe devem comunicar fora preciso de educação em educação remontar a não sei onde Como pode ocorrer que uma criança seja bem educada por quem não o foi ele próprio Encontrarseá esse mortal Ignoroo Nestes tempos de aviltamento quem sabe a que ponto de virtude pode atingir uma alma humana Mas suponhamos esse prodígio encontrado É considerando o que deve fazer que veremos o que deve ser O que eu imagino ver de antemão é que um pai que sentisse todo o valor de um bom governante tomaria a resolução de passar sem ele pois teria mais dificuldade em adquirilo que em o tornarse ele próprio Quer então ter um amigo que eduque seu filho para sêlo eilo dispensado de procurálo alhures e já a natureza fez metade de sua tarefa Alguém de quem conheço apenas a posição social propôsme educar o filho Honroume muito sem dúvida mas longe de se queixar de minha recusa deve agradar se de minha discrição Seu eu tivesse aceito seu oferecimento e tivesse errado no meu método teria sido uma educação falhada se tivesse tido êxito fora muito pior seu filho teria renegado seu título não houvera mais querido ser príncipe Estou por demais compenetrado da grandeza dos deveres de um preceptor para aceitar semelhante emprego de quem quer que me ofereça e o próprio interesse da amizade seria para mim mais um motivo de recusa Acredito que depois de ter lido este livro pouca gente seria tentada a me fazer tal oferecimento e peço a quem o pudesse ser a não se dar ao trabalho inútil de fazêlo Fiz outrora uma experiência suficiente para convencerme de que não tenho disposição para tanto e de que minha condição me dispensaria da obrigação ainda que meus conhecimentos me tornassem capaz dela Acreditei dever esta declaração pública àqueles que parecem não me outorgar bastante estima para me acreditarem sincero e assentado na minha resolução Na impossibilidade de cumprir a tarefa mais útil ousarei ao menos tentar a mais fácil a exemplo de tantos outros não porei a mão na massa e sim na pena e ao invés de fazer o que é preciso esforçarmeei por dizêlo Sei que em empresas semelhantes a esta o autor sempre à vontade em sistema que é dispensado de pôr em prática dá sem pena muitos belos preceitos impossíveis de serem seguidos e que na falta de pormenores e de exemplos o que diz de praticável permanece sem aplicação quando ele não a mostra Tomei portanto o partido de me dar um aluno imaginário de supor a idade a saúde os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar na sua educação conduzila desde o momento de seu nascimento até aquele em que homem feito não terá mais necessidade de outro guia senão ele próprio Esse método parece me útil para impedir um autor que desconfia de si de se perder em visões Sim porque a partir do momento em que se afasta da prática ordinária não lhe cabe senão experimentar a sua no seu aluno Sentirá desde logo ou o leitor o sentirá por ele se acompanha o progresso da infância e a marcha natural do coração humano Eis o que tentei fazer em todas as dificuldades que se apresentaram Para não ampliar excessivamente o livro contenteime com pôr os princípios cuja verdade todos deviam sentir Mas quanto às regras que poderiam ter necessidade de provas apliquei as todas a meu Emílio ou a outros exemplo e mostrei em pormenores assaz precisos como o que eu estabelecia podia ser praticado Esse é ao menos o plano que me propus executar Cabe ao leitor julgar se o consegui Disso decorreu que de início pouco falei de Emílio porque minhas primeiras máximas de educação embora contrárias às estabelecidas são de uma evidência a que é difícil a qualquer homem de bom senso recusar seu consentimento Mas na medida em que avanço meu aluno dirigido diferentemente dos vossos não é mais uma criança ordinária Precisa de um regime próprio Então ele aparece mais frequentemente no palco e nos últimos tempos não o perco mais de vista até que diga o que disser não tenha mais a menor necessidade de mim Não falo aqui das qualidades de um bom governante suponhoas e me suponho a mim mesmo dotado de todas essas qualidades Lendo esta obra verão que liberalidade outorgo a mim mesmo Observarei tãosomente contra a opinião comum que o governante de uma criança deve ser jovem e até tão jovem quanto o pode ser um homem sensato Gostaria que ele pudesse ser ele próprio criança se possível que pudesse tornarse o companheiro de seu aluno e angariar sua confiança partilhando seus divertimentos Não há suficientes coisas comuns entre a infância e a idade madura para que se consiga uma afeição muito sólida com tal distância As crianças por vezes adulam os velhos mas não os amam nunca Desejarseia que o governante já tivesse praticado uma educação É demais um mesmo homem só pode fazer uma Se fossem necessárias duas para ter êxito com que direito se empreenderia a primeira Com um pouco mais de experiência seria possível fazer melhor mas não se poderia mais fazêlo Quem quer que seja tenha tentado isso uma vez bastante bem para sentirlhe todas as penas não procura recomeçar E em se tendo tido mau resultado da primeira vez já se tem um mau preconceito para a segunda É muito diferente concordo acompanhar um jovem durante quatro anos do que orientálo durante vinte e cinco Dais um governante a vosso filho já formado eu quero que tenha um antes de nascer Vosso homem a cada lustro pode mudar de aluno o meu só terá um Vós distinguis o preceptor do governante outra loucura Distinguis o discípulo do aluno Há somente uma ciência a ensinar às crianças é a dos deveres do homem Essa ciência é uma e o que quer que tenha dito Xenofonte da educação dos persas ela não se partilha De resto eu chamo governante de preferência a preceptor o mestre dessa ciência porque se trata menos para ele de instruir que de conduzir Ele não deve dar preceitos deve fazer com que os encontrem Se é preciso escolher com tanto cuidado o governante élhe também permitido escolher seu aluno principalmente quando se trata de um modelo a ser proposto Essa escolha não pode cair nem no gênio nem no caráter da criança que só se conhece no fim da tarefa e que eu adoto antes de nascer Se pudesse escolher só tomaria um espírito comum tal qual suponho meu aluno Só se tem necessidade de educar os homens comuns somente sua educação deve servir de exemplo à de seus semelhantes Os demais se educam de qualquer maneira A terra não é indiferente à cultura dos homens eles só são o que podem ser nos climas temperados Nos climas extremados a desvantagem é visível Um homem não é plantado como uma árvore em certa terra para nela sempre ficar e quem parte de um dos extremos para chegar a outro é obrigado a fazer duas vezes o caminho a fim de chegar à mesma meta que quem parte de meio caminho Ainda que o habitante de um país temperado vá sucessivamente aos dois extremos sua vantagem é evidente pois embora tanto se ressinta quanto quem vai de um extremo a outro se afasta de metade apenas de sua constituição natural Um francês vive na Guiné ou na Lapônia mas um negro não viverá igualmente na Suécia nem um habitante de Samoa no Benim Parece ainda que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois extremos Nem os negros nem os lapões têm o equilíbrio dos europeus Se quero portanto que meu aluno seja habitante da terra tenho que escolhêlo numa zona temperada na França por exemplo de preferência No Norte os homens consomem muito num solo ingrato no Sul consomem pouco num solo fértil Daí nasce essa diferença que torna uns laboriosos e outros contemplativos A sociedade oferecenos em um mesmo lugar a imagem dessas diferenças entre os pobres e os ricos os primeiros habitam um solo ingrato os outros uma terra fértil O pobre não precisa de educação é obrigatória a de sua condição não poderia ter outra Ao contrário a educação que o rico recebe de sua condição é a que menos lhe convém tanto para si mesmo quanto para a sociedade Ademais a educação natural deve tornar um homem adaptável a todas as condições humanas ora é menos razoável educar um pobre para ser rico do que um rico para ser pobre pois em proporção do número das duas condições há mais arruinados do que enriquecidos Escolhamos portanto um rico teremos certeza ao menos de ter feito um homem a mais ao passo que um pobre pode tornarse homem sozinho Pela mesma razão não me desagradaria que Emílio tivesse berço Será sempre uma vítima arrancada do preconceito Emílio é órfão Pouco importa que tenha pai e mãe Assumindo seus deveres adquiro seus direitos Ele deve honrar seus pais mas só deve obedecer a mim É minha condição primeira ou melhor minha única condição Devo acrescentar outra consequência dessa a de que não nos separarão jamais um do outro sem nosso consentimento Esta cláusula é essencial e eu desejaria mesmo que aluno e governante se encarassem a tal ponto como inseparáveis que o destino de seus dias sempre fosse por eles olhado como um objeto comum A partir do momento em que encare uma separação no afastamento a partir do momento em que prevejam a hora em que deverão tornarse estranhos um ao outro já o serão cada qual construirá seu pequeno sistema particular e ambos preocupados com o dia em que não estarão mais juntos só o ficarão a contragosto O discípulo só olha o mestre como a marca e o flagelo de sua infância o mestre só olha o discípulo como um fardo pesado de que aspira a desembaraçarse o mais depressa possível sonham ambos como se libertarem um do outro e como não há nunca entre eles verdadeira afeição um deve ter pouca vigilância e outro pouca docilidade Mas quando eles se veem como devendo passar a vida juntos importalhes fazeremse amar mutuamente e por isso mesmo se tornam caros um a outro O aluno não se envergonha de acompanhar na infância o amigo que deverá ter em crescendo o governante toma interesse pelos cuidados cujo fruto deverá colher e todo o tempo que dá a seu aluno é um capital que aplica em proveito de sua velhice Esse contrato estabelecido de antemão supõe um parto feliz uma criança bem formada vigorosa sadia Um pai não tem escolha e não deve ter preferência na família que Deus lhe dá todos os filhos são igualmente seus filhos deve a todos os mesmos cuidados e a mesma ternura Estropiados ou não anêmicos ou robustos cada um deles é um depósito de que deve prestar contas àquele de quem o recebe e o casamento é um contrato feito com a natureza tanto quanto entre os cônjuges Mas quem quer se imponha um dever que a natureza não lhe impôs deve assegurarse antes dos meios de cumprilo de outro modo tornase culpado até do que não puder fazer Quem se encarrega de um aluno enfermo e valetudinário troca sua função de governante pela de enfermeiro perde com tratar de uma vida inútil o tempo que destinava a valorizála expõese a ver uma mãe desesperada censurarlhe um dia a morte de um filho que ele lhe terá conservado por muito tempo Eu não me encarregaria de uma criança doentia e caquética ainda que devesse viver oitenta anos Não quero saber de um aluno sempre inútil a si mesmo e aos outros que só se ocupe com se conservar e cujo corpo prejudique a educação da alma Que faria prodigalizandolhe em vão meus cuidados senão dobrar o prejuízo da sociedade arrancandolhe dois homens ao invés de um só Que outro em meu lugar se encarregue desse enfermo concordo e aprovo sua caridade mas meu ofício não é esse não sei ensinar a viver a quem não pensa senão em não morrer É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma um bom servidor deve ser robusto Sei que a intemperança excita as paixões extenua também o corpo com o tempo as macerações os jejuns produzem amiúde os mesmos efeitos por uma causa oposta Quanto mais fraco o corpo mais ele comanda quanto mais forte mais obedece Todas as paixões sensuais se abrigam em corpos efeminados e estes tanto mais se irritam quanto menos as podem satisfazer O corpo débil enfraquece a alma Daí o império da medicina arte mais perniciosa aos homens do que todos os males que pretende curar Não sei quanto a mim de que doenças nos curam os médicos mas sei que nos dão algumas assaz funestas a covardia a pusilanimidade a credulidade o pavor da morte se curam o corpo matam a coragem Que nos importa façam eles com que andem cadáveres é de homens que precisamos e estes não os vemos saírem das mãos deles A medicina está na moda entre nós ela deve estar É o divertimento das pessoas ociosas desocupadas que não sabendo que fazer de seu tempo o desperdiçam conservandose Se tivessem tido a desgraça de nascerem imortais seriam os mais miseráveis dos seres uma vida que nunca teriam medo de perder não lhes seria de nenhum valor Essa gente precisa de médicos que a ameacem para lisonjeála e lhe deem todos os dias o único prazer que podem ter o de não estarem mortos Não tenho o menor intuito de me estender aqui acerca da vaidade da medicina Meu objetivo é apenas encarála pelo lado moral Não posso impedirme entretanto de observar que os homens empregam a seu respeito os mesmos sofismas que acerca da procura da verdade Supõem sempre que tratando de um doente o curam e que procurando uma verdade a encontram Não vêem que cumpre equilibrar uma cura operada pelo médico com a morte de cem doentes que ele mata e a utilidade de uma verdade descoberta com malefício dos erros perpetrados ao mesmo tempo A ciência que instrui e a medicina que cura são muito boas sem dúvida mas a ciência que engana e a medicina que mata são más Ensinainos portanto a distinguilas Eis o X do problema Se soubéssemos ignorar a verdade nunca seriamos iludidos pela mentira se soubéssemos não querer morrer contra a natureza nunca morreríamos pela mão do médico essas duas abstinências seriam sábias ganharíamos evidentemente com nos sujeitarmos a elas Não discuto se a medicina pode ser útil a alguns homens digo que é funesta ao gênero humano Dirmeão como o fazem sem cessar que os erros são do médico mas que a medicina em si é infalível Ainda bem mas que venha então sem médico pois enquanto vierem juntos será cem vezes mais de se temerem os erros do artista que se esperar o socorro da arte Essa arte mentirosa mais feita para os males do espírito que para os do corpo não é mais útil a uns do que a outros curanos menos de nossas doenças do que nos outorga o pavor delas recua menos a morte do que nos faz sentila de antemão desgasta a vida ao invés de prolongála e ainda que a prolongasse seria em prejuízo da espécie porquanto nos afasta da sociedade pelos cuidados que nos impõe e dos nossos deveres pelos temores que nos dá É o conhecimento dos perigos que nos faz temêlos quem se acreditasse invulnerável não teria medo de nada À força de armar Aquiles contra o perigo o poeta tiralhe o mérito da coragem qualquer outro no lugar dele teria sido também um Aquiles Quereis encontrar homens de verdadeira coragem Procuraios nos lugares onde não há médicos onde se ignoram as consequências das doenças onde não se pensa na morte O homem sabe naturalmente sofrer com firmeza e morre em paz São os médicos com suas receitas os filósofos com seus preceitos os padres com suas exortações que lhes aviltam a coragem e os levam a desaprenderem de morrer Que me deem um aluno que não precise dessa gente ou o recusarei Não quero que outros estraguem minha obra quero educálo sozinho ou não me meter nisso O sábio Locke que passou parte de sua vida estudando a medicina recomenda fortemente que não se droguem as crianças nem por precaução nem por causa de ligeiros incômodos Irei mais longe e declaro que nunca chamando médico para mim nunca chamarei para meu Emílio a menos que sua vida se ache em perigo evidente porque então não poderá fazer pior do que matálo Bem sei que o médico não deixará de tirar proveito da demora Se a criança morrer têloão chamado tarde demais se escapar ele a terá salvo Seja que o médico triunfe mas principalmente que só seja chamado em último caso Na impossibilidade de saber curarse que a criança saiba ficar doente esta arte supre a outra e muitas vezes dá melhor resultado é a arte da natureza Quando o animal está doente sofre em silêncio e não se mexe ora não se vê maior número de animais abatidos que de homens A que ponto a impaciência o temor a inquietude e principalmente os remédios puderam matar indivíduos que a doença teria poupado e que o tempo houvera curado Dirão que os animais vivendo de maneira mais de acordo com a natureza devem estar sujeitos a menor número de males do que nós Pois bem essa maneira de viver é precisamente a que eu quero dar a meu aluno deve ele portanto tirar dela igual proveito A única parte útil da medicina é a higiene e a higiene é menos uma ciência que uma virtude A temperança e o trabalho são os dois verdadeiros médicos do homem o trabalho aguçalhe o apetite a temperança impedeo de abusar dele Para saber que regime é mais útil à vida e à saúde basta saber qual o regime seguido pelos povos que vivem melhor que são mais robustos e duram mais tempo Se ante as observações de ordem geral não se acha que a medicina dá aos homens uma saúde mais sólida ou uma vida mais longa já há que considerar que não sendo útil essa arte é nociva porquanto emprega o tempo os homens e as coisas em pura perda Não somente o tempo que se consome em preservar a vida é perdido como para dela fazer uso cumpre deduzilo e quando esse tempo é empregado em nos atormentar tornase mais do que nulo tornase negativo e para calculálo equitativamente cabe subtraílo em quantidade idêntica daquele que nos resta Um homem que vive dez anos sem médico vive mais para si e para outrem do que o que vive trinta anos como vítima dele Tendo feito uma e outra experiências acreditome com mais motivos do que ninguém para chegar a tais conclusões Eis minhas razões para só desejar um aluno robusto e sadio e meus princípios para mantêlo assim Não me deterei em provar demoradamente a utilidade dos trabalhos manuais e dos exercícios do corpo para fortalecer o temperamento e a saúde é o que ninguém discute os exemplos das mais longas vidas são quase todos tirados de homens que fizeram mais exercícios que suportaram maiores fadigas e mais trabalharam9 Não entrarei tampouco em muitos pormenores acerca dos cuidados que terei com esse fim verão que se incluem tão necessariamente na minha prática que basta entender o espírito da coisa para não haver necessidade de explicação Com a vida começam as necessidades O recémnascido precisa de uma ama Se a mãe consentir em cumprir seu dever muito que bem caberá darlhe sua orientação por escrito pois essa vantagem tem seu contrapeso e mantém o governante algo afastado de seu aluno Mas é de se crer que o interesse da criança e a estima por aquele a quem ela consente em confiar tão caro depósito tornarão a mãe atenta às ideias do mestre e tudo o que quiser fazer ela o fará melhor do que ninguém Se nos for necessário uma ama estranha comecemos por bem escolhêla Uma das misérias da gente rica é ser enganada em tudo Se julga mal os homens devemos espantarnos São as riquezas que a corrompem e naturalmente essa gente é a primeira a sentir o defeito do único instrumento que lhe seja conhecido Tudo é mal feito em casa dessa gente à exceção do que ela própria faz e não faz quase nada Trata se de escolher uma ama ela entrega ao parteiro o cuidado disso Que acontece então A 9 E eis um exemplo haurido em documentos ingleses e que não posso deixar de mencionar a tal ponto oferece margem a reflexões relativas a meu assunto Um indivíduo chamado Patrice Oneil nascido em 1647 acaba de se casar em 1700 pela sétima vez Serviu no regimento dos dragões no décimo sétimo ano do reinado de Carlos II e em diferentes outros corpos do exército até 1740 quando obteve dispensa Fez todas as campanhas do Rei Guilherme e do Duque de Malborough Esse homem nunca bebeu senão cerveja comum sempre se alimentou de vegetais e só comeu carne em alguns jantares que dava à família Seu hábito foi sempre o de se levantar e se deitar com o sol a menos de o impedirem seus deveres Está agora com cento e treze anos ouvindo bem passando bem e andando sem bastão Apesar de sua idade avançada não fica um só momento sem trabalhar e todos os domingos vai à sua paróquia acompanhado por seus filhos netos e bisnetos melhor é a que mais bem o paga Não irei portanto consultar um parteiro para a ama de Emílio cuidarei de escolhêla eu próprio Não raciocinarei a respeito tão eruditamente quanto um cirurgião mas serei sem dúvida de mais boa fé e meu zelo me enganará menos do que sua cupidez Essa escolha não comporta grande mistério as regras são conhecidas mas não sei se não deveriam cuidar mais da idade do leite tanto quanto de sua qualidade O leite novo é muito seroso deve quase ser aperitivo para purgar o resto do mecônio acumulado nos intestinos da criança que acaba de nascer Pouco a pouco o leite toma consistência e fornece um alimento mais sólido à criança já tornada mais forte para digerilo Não é certamente por nada que nas fêmeas de toda espécie a natureza muda a consistência do leite segundo a idade do filhote Seria necessário portanto uma ama recémparturiente para uma criança recém nascida Isso tem sua dificuldade bem o sei mas desde que se sai da ordem natural tudo tem dificuldade em ser bem feito O único expediente cômodo é fazer mal é também o que se escolhe Fora necessário uma ama tão sadia de coração quanto de corpo a intempérie das paixões pode como a dos humores alterarlhe o leite demais atentar unicamente para o físico é ver apenas a metade do objetivo O leite pode ser bom e a ama má um bom caráter é tão essencial quanto um bom temperamento Em se tomando uma mulher viciada não digo que o bebê adquirirá seus vícios mas digo que com isso sofrerá Não lhe deve ela com o seu leite cuidados que exigem zelo paciência doçura limpeza Gulosa intemperante logo terá seu leite estragado negligente ou arrebatada que irá acontecer com o pobre infeliz à sua mercê que não pode defenderse nem se queixar Nunca no que quer que seja os maus podem ser bons em algo bom A escolha de uma ama tem tanto maior importância quanto seu bebê não deve ter outra governante senão ela assim como não deve ter outro preceptor senão seu governante Assim o pensavam os antigos menos argumentadores porém mais sábios do que nós Depois de ter amamentado os filhos deles as amas não mais os abandonavam Eis porque em suas peças de teatro as confidentes são as amas em sua maioria É impossível que uma criança que passa sucessivamente por tantas mãos diferentes venha a ser bem educada A cada mudança ela faz comparações secretas que tendem sempre a diminuir sua estima pelos que a governam e consequentemente a autoridade deles Se porventura chega a pensar um dia que há adultos com não mais juízo do que as crianças eis a autoridade da idade perdida e malograda a educação Uma criança não deve conhecer outros superiores que não o pai e a mãe ou na falta destes a ama e o governante já é demais um dos dois mas a partilha é inevitável E tudo o que se pode fazer para remediar a tal inconveniente é que as pessoas dos dois sexos que a dirigem estejam de acordo a seu respeito que os dois sejam um só para ela É preciso que a ama viva um pouco mais comodamente que tenha alimentos mais substanciais mas não que mude inteiramente de maneira de viver pois uma mudança total ainda que para melhor é sempre perigosa para a saúde E se seu regime habitual a tornou sadia e bem constituída para que fazer com que o troque As camponesas comem menos carne e mais legumes do que as mulheres da cidade e esse regime vegetal parece mais favorável do que contrário a elas e a seus filhos Quando têm bebês burgueses dãolhe sopas persuadidos de que sopas e caldos favorecem a digestão e lhes melhoram o leite Não acredito nisso de modo algum tenho a meu favor a experiência que nos ensina que as crianças assim amamentadas são mais sujeitas do que as outras às cólicas e aos vermes Não é de espantar porquanto a substância animal em putrefação formiga de vermes o que não acontece com a substância vegetal O leite embora elaborado no corpo do animal é uma substância vegetal10 demonstrao a análise fazse ácido facilmente e longe de provocar qualquer vestígio de álcali volátil como ocorre com as substâncias animais dá como as plantas um sal neutro essencial O leite das fêmeas herbívoras é mais doce e salutar que o das carnívoras Formado de uma substância homogênea conserva melhor sua natureza e tornase menos sujeito à putrefação Em relação à quantidade ninguém ignora que os farináceos produzem mais sangue do que a carne devem portanto produzir mais leite também Não posso acreditar que uma criança desmamada não demasiado cedo ou somente desmamada com alimentos vegetais e cuja ama só viva também de vegetais venha a ter vermes algum dia Pode ser que os alimentos vegetais deem um leite mais facilmente azedável mas estou longe de encarar o leite azedo como um alimento malsão povos inteiros que não têm outro alimento passam muito bem e toda essa combinação de absorventes se me afigura puro charlatanismo Há temperamentos aos quais o leite não convém e então nenhum absorvente o torna suportável outros o suportam sem absorvente Temem o leite coalhado é bobagem porquanto se sabe que o leite coalha no estômago Assim é que se torna um alimento bastante sólido para alimentar as crianças e os pequenos animais se não coalhasse não faria senão passar não alimentaria11 Podese cortar o leite de mil maneiras empregar mil absorventes quem quer tome leite digere queijo e isso sem exceção É o estômago tão bem feito para coalhar o leite que é com estômago de vitela que se faz a coalhada Penso portanto que ao invés de mudar a alimentação comum das amas basta darlhes a mesma com mais abundância e mais bem escolhida Não é pela natureza dos alimentos que a dieta perturba é seu tempero que os torna malsãos Reformai as regras de vossa cozinha evitai a manteiga queimada e as frituras que nem a manteiga nem o sal nem os laticínios passem pelo fogo que os legumes cozidos na água só sejam temperados ao chegarem quentes à mesa a dieta ao invés de perturbar a ama darlhe 10 As mulheres comem pão legumes laticínios as fêmeas dos cães e dos gatos também até as lobas pastam São sucos vegetais para seu leite Resta a examinar o das espécies que só podem alimentarse de carne se é que as há Do que duvido 11 Embora os sucos que nos nutrem sejam líquidos devem ser tirados de alimentos sólidos Um homem trabalhando que vivesse somente de caldos depereceria rapidamente Sustentarseia muito melhor com o leite porque este coalha á leite em abundância e da melhor qualidade12 Será possível que o regime vegetal reconhecidamente o melhor para a criança não seja melhor do que o animal para a ama Há certa contradição nisso É principalmente nos primeiros anos de vida que o ar atua sobre a constituição das crianças Numa pele delicada e mole ele penetra por todos os poros afeta fortemente os corpos em desenvolvimento deixalhes impressões que não se apagam Não sou por isso favorável a que se tire uma camponesa de sua aldeia para fechála num quarto da cidade e se faça amamentar a criança em casa prefiro que ela vá respirar o bom ar dos campos a respirar o mau da cidade Ela tomará a condição de sua nova mãe morará na sua casa rústica e seu governante a acompanhará O leitor deve lembrarse de que o governante não é um mercenário é um amigo do pai Mas quando não se encontra esse amigo quando essa transposição não é fácil quando nada do que aconselhais é possível que fazer dirmeão Já vos disse o que fazeis e não há necessidade de conselho para isso Os homens não são feitos para se amontoarem em formigueiros e sim para serem espalhados pela terra que devem cultivar Quanto mais se juntam mais se corrompem As enfermidades do corpo bem como os vícios da alma são a consequência infalível dessa aglomeração excessiva De todos os animais o homem é o que menos pode viver em rebanho Homens juntados como carneiros pereceriam dentro de pouco tempo O hálito do homem é mortal para seus semelhantes isso não é menos verdadeiro no sentido próprio do que no figurado As cidades são os báratros da espécie humana Ao fim de algumas gerações as raças morrem ou degeneram é preciso renoválas e é sempre o campo que procede a essa renovação Mandai portanto vossos filhos renovaremse por assim dizer a si mesmos recuperando nos campos o vigor perdido no ar malsão dos lugares demasiado povoados As mulheres grávidas que se encontram nos campos apressamse em ir ter seus filhos na cidade deveriam fazer exatamente o contrário principalmente as que querem amamentálos Teriam menos do que imaginam de que se arrepender e num lugar mais natural à espécie os prazeres ligados aos deveres da natureza tirarlhesiam em breve o pendor pelos que com ela não se relacionam Logo depois do parto lavase a criança com um pouco de água morna a que se mistura comumente vinho Essa adição de vinho não me parece muito necessária Como a natureza não produz nada fermentado não é de se acreditar que o uso de um líquido artificial tenha importância na vida de suas criaturas Pela mesma razão a precaução de amornar a água não é tampouco indispensável e com efeito inúmeros povos lavam os recémnascidos nos rios ou no mar sem maiores cuidados Mas nossos filhos amolecidos antes de nascerem pela moleza dos pais e das mães trazem vindo ao mundo um temperamento já corrompido que cumpre não expor desde logo a todas as provas por que devem passar para restabelecêlo Só gradualmente é que se pode reconduzilos a seu vigor primitivo Começai portanto 12 Os que desejarem discutir mais a fundo as vantagens e os inconvenientes do regime pitagórico poderão consultar os tratados que os doutores Cocchi e Bianchi seu adversário escreveram sobre o assunto seguindo os usos e só aos poucos vos afasteis deles Lavai amiúde as crianças sua sujidade mostra a necessidade disso Vós a feris em vos restringindo a limpálas mas diminuí progressivamente a tepidez da água na medida em que se fortalecem até que as possais lavar no inverno como no verão com água fria e mesmo gelada Como para não as expor a acidentes é preciso que essa diminuição seja lenta sucessiva e insensível podeis empregar o termômetro a fim de medila exatamente Esse uso do banho uma vez estabelecido não deve mais ser interrompido e cumpre conserválo durante toda a vida Encaroo não somente em relação à limpeza e à saúde no momento mas também como uma precaução salutar para tornar mais flexível a textura das fibras e fazêlas ceder sem esforço nem riscos aos diversos graus de calor ou de frio Para isso gostaria que em crescendo a criança se acostumasse pouco a pouco a banharse às vezes em águas quentes a todos os graus suportáveis e muitas vezes em águas frias a todos os graus possíveis Assim depois de se ter habituado a suportar as diversas temperaturas da água que sendo um fluido mais denso toca em maior número de pontos e afeta mais a criança tornarseia quase insensível às do ar No momento em que a criança respira ao sair de seu invólucro não deixeis que lhe deem outro que a mantenha mais acanhada Nada de toucas de faixas de cintas fraldas não apertadas amplas que deixem todos os membros em liberdade que não sejam pesados demais que embaraçaria os movimentos nem quentes demais o que a impediria de sentir o ar13 Colocaia num berço grande14 bem acolchoado em que ela possa mexerse à vontade e sem perigo Quando começar a fortalecerse deixaia engatinhar pelo quarto deixaia distender e desenvolver seus pequenos membros vós a vereis reforçarse dia após dia Comparaia com uma criança bem enfaixada da mesma idade ficareis espantado com a diferença dos progressos15 Devese contar com grandes oposições da parte das amas às quais a criança bem enfaixada dá menos trabalho que aquela que se deve vigiar sem cessar Demais sua sujidade fazse mais sensível com uma roupa aberta cumpre limpála mais vezes Finalmente o costume é um argumento que nunca se refutará em certas regiões à predileção do povo de todos os países Não raciocineis nunca com as amas ordenai vede fazer e nada poupeis para 13 Sufocam as crianças nas cidades à força de conserválas fechadas e vestidas Os que delas se ocupam ainda não sabem que o ar frio longe de lhes fazer mal as fortalece e que o ar quente lhes dá febre e as mata 14 Na falta de outra palavra digoberço berceau que é de uso corrente mas estou persuadido de que não é nunca necessário embalar bercer as crianças e de que este hábito lhes é amiúde pernicioso 15 Os antigos peruanos deixavam os filhos com os braços livres num envolvedouro muito amplo quando dele os tiravam punhamnos em liberdade num buraco feito na terra e guarnecido de lençóis dentro do qual os desciam até metade do corpo dessa maneira tinham os braços livres podiam mexer a cabeça e dobrar o corpo à vontade sem que caíssem nem se machucassem Logo que podiam dar um passo apresentavamlhes o seio de certa distância como uma isca para obrigálos a andar Os negrinhos encontramse por vezes numa posição bem mais cansativa para mamar abarcam as ancas da mãe com os joelhos e os pés e tão bem as apertam que podem sustentarse sem o auxílio dos braços da mãe Prendemse ao seio com as mãos e chupamno constantemente sem que se incomodem ou caiam apesar dos diferentes movimentos da mãe que durante esse tempo trabalha como de costume Essas crianças começam a andar ou antes a engatinhar já no segundo mês Esse exercício dá lhes mais tarde a facilidade de correr dessar maneira quase tão depressa como em pé Hist Nat Tomo IV in12 p 192 A tais exemplos Buffon poderia ter acrescentado o da Inglaterra onde a prática extravagante e bárbara das faixas se vai abolindo dia a dia V também La Loubère Voyage du Siam Le Beau Voyage du Canada etc Encheria vinte páginas de citações se precissasse confirmar isso com fatos tornar fáceis na prática os cuidados que tiverdes prescrito E por que não os compartilharíeis Nas alimentações comuns em que só se atenta para o físico conquanto a criança viva e não depereça o resto pouco importa mas aqui em que a educação começa com a vida ao nascer a criança já é discípulo não do governante e sim da natureza O governante não faz senão estudar orientado por esse primeiro mestre e impedir que seus cuidados sejam contrariados Ele vigia o bebê observao segueo atenta vigilante para o primeiro reluzir de seu fraco entendimento assim como o muçulmano espia quando do quarto crescente o nascer da lua Nascemos capazes de aprender mas não sabendo nada não conhecendo nada A alma acorrentada a seus órgãos imperfeitos e semiformados não tem sequer o sentimento de sua própria existência Os movimentos os gritos da criança que acaba de nascer são efeitos puramente mecânicos desprovidos de conhecimento e de vontade Suponhamos que uma criança tivesse ao nascer a estatura e a força de um homem feito que saísse por assim dizer com todos os seus meios de ação do ventre de sua mãe assim como Palas saiu do cérebro de Júpiter esse homemcriança seria um perfeito imbecil um autômato uma estátua imóvel e quase insensível não veria nada não compreenderia nada não conheceria ninguém não saberia voltar os olhos para o que tivesse necessidade de ver Não somente não perceberia nenhum objeto fora de si como não levaria nenhum ao órgão do sentido que lhe faria percebêlo as cores não estariam nos seus olhos os sons não estariam nos seus ouvidos os corpos que tocasse não estariam no seu nem sequer ele saberia que tem um o contato de suas mãos não estaria no seu cérebro todas as suas sensações se reuniriam num só ponto ele só existiria no sensorium comum teria uma só ideia a do eu a que atribuiria todas as suas sensações e esta ideia ou melhor este sentimento seria a única coisa que teria a mais do que uma criança comum Esse homem formado repentinamente não saberia tampouco erguerse sobre os pés serlheia necessário muito tempo para aprender a equilibrarse neles talvez nem mesmo o tentasse e veríeis esse grande corpo forte e robusto não sair do lugar como uma pedra ou arrastarse rastejando como um cachorrinho Sentiria o incômodo das necessidades sem conhecer nem imaginar um meio de atender a elas Não há nenhuma comunicação imediata dos músculos do estômago com os dos braços e das pernas que mesmo cercado de alimentos o fizesse dar um passo para deles se aproximar ou pegálos e como seu corpo já estaria crescido e estariam desenvolvidos os seus membros ele não teria conseguintemente nem as inquietações nem os movimentos contínuos das crianças e poderia morrer de fome antes de mexer a fim de procurar sua subsistência Por pouco que se tenha refletido sobre a ordem e o progresso de nossos conhecimentos não se pode negar que tal tenha sido mais ou menos o estado primitivo de ignorância e de estupidez natural ao homem antes que tivesse aprendido o que quer que seja da experiência ou de seus semelhantes Conhecese portanto ou podese conhecer o ponto de partida de cada um de nós para chegar ao grau comum do entendimento mas quem conhece a outra extremidade Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio seu gosto suas necessidades seus talentos seu zelo e as oportunidades que tem Não sei de nenhum filósofo ainda que tenha sido bastante ousado para dizer eis o termo a que o homem pode chegar e não pode ultrapassar Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem Qual a alma baixa que essa ideia nunca perturbou e que não tenha dito não raro em seu orgulho quantos não ultrapassei quantos ainda posso alcançar por que meu igual iria mais longe do que eu Repitoo a educação do homem começa com seu nascimento antes de falar antes de compreender já ele se instrui A experiência adiantase às lições no momento em que conhece sua ama já muito ele adquiriu Surpreenderiamnos os conhecimentos do homem mais bronco se seguíssemos seu progresso desde o momento em que nasceu até àquele a que chegou Se se dividisse toda a ciência humana em duas partes uma comum a todos os homens outra peculiar aos sábios esta seria muito pequena em comparação com a outra Mas não pensamos quase nas aquisições gerais porque elas se fazem sem que nelas pensemos e até antes da idade da razão De resto o saber só se faz notar pelas diferenças e como nas equações de álgebra as quantidades comuns não contam Os próprios animais adquirem muito Têm sentidos cumpre que aprendam a usá los têm necessidades cumpre que aprendam a atender a elas cumpre que aprendam a comer a andar a voar Os quadrúpedes embora se mantenham em pé desde o nascimento não sabem andar vemolo a seus primeiros passos que são tentativas inseguras Os canários fugidos da gaiola não sabem voar porque nunca voaram Tudo é instrução para os seres animados e sensíveis Se as plantas tivessem um movimento progressivo seria preciso que tivessem sentidos e adquirissem conhecimentos de outro modo as espécies pereceriam dentro em breve As primeiras sensações das crianças são puramente afetivas não percebem senão o prazer e a dor Não podendo nem andar nem pegar precisam de muito tempo para formarem pouco a pouco as sensações representativas que lhes mostram os objetos fora de si mesmas mas enquanto esses objetos não se estendem não se afastam por assim dizer de seus olhos e tomam para eles dimensões e formas a repetição das sensações afetivas começa a submetêlos ao império do hábito vemos seus olhos voltaremse sem cessar para a luz e se esta vem de lado tomarem a mesma direção De maneira que devemos cuidar de apresentar seu rosto à claridade a fim de que não se tornem vesgos nem se acostumem a olhar de viés E preciso também que se habituem desde cedo às trevas de outro modo choram e gritam logo que se encontram na obscuridade O alimento e o sono demasiado medidos fazemse lhes necessários ao fim dos mesmos intervalos e dentro em breve o desejo não vem mais da necessidade e sim do hábito ou melhor o hábito acrescenta uma nova necessidade à da natureza eis o que cabe evitar O único hábito que se deve deixar a criança adquirir é o de não contrair nenhum que não a ponham mais sobre um braço do que sobre outro que não a acostumem a dar uma mão mais do que a outra a dela fazer uso mais amiudado a querer comer dormir agir nas mesmas horas a não poder ficar sozinha de dia ou de noite Preparai de longe o reinado de sua liberdade e o emprego de suas forças deixando a seu corpo o hábito natural pondoa em estado de ser sempre senhora de si mesma e fazendo em tudo sua vontade logo que tenha uma A partir do momento em que a criança começa a distinguir os objetos cumpre variar os que se lhe mostram Naturalmente todos os novos objetos interessam o homem Sentese ele tão frágil que teme tudo o que não conhece o hábito de ver novos objetos sem ser afetado por eles destrói tal temor As crianças criadas em casas limpas onde não existem aranhas têm medo das aranhas e esse medo se prolonga na idade adulta Nunca vi camponês homem mulher ou criança ter medo de aranha Por que então não começaria a educação da criança antes que ela fale e compreenda desde que a simples escolha dos objetos que lhe apresentamos já pode tornála tímida ou corajosa Quero que a acostumem a ver objetos diferentes animais feios asquerosos estranhos mas pouco a pouco de longe até que a eles se acostume e que à força de vêlos manejados por outrem os maneje ela própria Se tiver visto na infância sapos cobras caranguejos verá sem horror quando adulto qualquer espécie de animal Não há objetos horríveis para quem os vê diariamente Todas as crianças têm medo de máscaras Começo mostrando a Emílio uma máscara de fisionomia agradável depois alguém põe essa máscara no rosto diante dele eu rio e todo mundo ri e a criança ri como todos Pouco a pouco acostumoa a máscaras menos agradáveis e finalmente a caras horrorosas Se tiver ordenado com cuidado a gradação ela há de rir das últimas como da primeira Depois disso não receio mais que a assustem com máscaras Quando nas despedidas de Andrómaca e de Heitor o pequeno Antyanax assustado com o penacho do capacete do pai o desconhece e se joga gritando no colo da ama e arranca de sua mãe um sorriso molhado de lágrimas que fazer para curar o pavor Precisamente o que faz Heitor pôr o capacete no chão e depois acariciar a criança Num momento mais tranquilo não se ficaria nisso aproximarseia do capacete brincarseia com as plumas ofereciamselhes à criança finalmente a ama pegaria o capacete e rindo o colocaria na cabeça se é que uma mão de mulher ousasse tocar nas armas de Heitor Tratase de habituar Emílio ao ruído de uma arma de fogo queimo primeiramente uma mecha na pistola Essa chama brusca e passageira essa espécie de relâmpago alegrao repito a coisa com mais pólvora pouco a pouco acrescento à pistola uma pequena carga sem bucha depois outra maior finalmente acostumoo a tiros de fuzil a bombas a canhões às mais terríveis detonações Observei que as crianças raramente têm medo do trovão a menos que sejam tremendos e firam realmente o ouvido a não ser assim esse receio só lhes vem quando aprendem que o trovão fere e mata às vezes Quando a razão começar a assustálas fazei com que o hábito as tranquilize Com uma gradação lenta e cuidadosa tornamse intrépidos o homem e a criança No princípio da vida quando a memória e a imaginação são ainda inativas a criança só presta atenção àquilo que afeta seus sentidos no momento sendo suas sensações ó primeiro material de seus conhecimentos oferecerlhas numa ordem conveniente é preparar sua memória a fornecerlhas um dia na mesma ordem a seu entendimento mas como ela só presta atenção a suas sensações basta primeiramente mostrarlhe bem distintamente a ligação dessas sensações com os objetos que as provocam Ela quer meter a mão em tudo tudo manejar não contrarieis essa inquietação ela lhe sugere um aprendizado muito necessário Assim é que ela aprende a sentir o calor o frio a dureza a moleza o peso a leveza dos corpos a julgar de seu tamanho de sua forma e de todas as suas qualidades sensíveis a olhando apalpando16 ouvindo e principalmente comparando a vista ao tato estimando pelo olhar a sensação que provocariam em seus dedos É somente pelo movimento que sabemos que há coisas que não são nós e é somente pelo nosso próprio movimento que adquirimos a ideia da extensão É por não ter essa ideia que a criança estende indiferentemente a mão para apanhar o objeto que se acha perto dela ou a cem passos Esse esforço que ela faz se vos afigura sinal de vontade de domínio ordem de aproximarse que ela dá ao objeto ou que vos dá de trazêlo nada disso os mesmos objetos que ela via inicialmente em seu cérebro a seguir em seus olhos ela os vê agora na ponta dos braços e só imagina uma extensão que pode atingir Cuidai portanto de passeála amiúde de transportála de um lugar para outro de fazêla sentir essa mudança a fim de ensinála a julgar as distâncias Quando ela começar a conhecêlas será preciso mudar de método e só a transportar como quiserdes e não como ela quiser Pois em não sendo ela mais enganada pelos sentidos seu esforço mudará de causa essa mudança é notável e exige explicação O malestar das necessidades exprimese por sinais quando o auxílio de outrem é necessário para apaziguálo daí os gritos das crianças Elas choram muito assim deve ser Como todas as suas sensações são afetivas quando são agradáveis elas as apreciam em silêncio quando penosas elas o dizem em sua linguagem e pedem alívio Ora quando acordadas elas não podem permanecer indiferentes ou dormem ou as sentem Todas as nossas línguas são obras de arte Procurouse durante muito tempo saber se haveria uma língua natural e comum a todos os homens Sem dúvida há uma a que as crianças falam antes de saberem falar Essa língua não é articulada mas é acentuada sonora inteligível O emprego das nossas nos fez negligenciála a ponto de a esquecermos por completo Estudemos a criança e logo a reaprenderemos com ela As amas são nossos professores nessa língua elas entendem tudo o que lhes diz o bebê respondemlhe têm com ele diálogos muito pertinentes e embora elas pronunciem palavras estas são perfeitamente inúteis não é o sentido das palavras que o bebê entende e sim o acento com que se acompanham À linguagem da voz juntase a do gesto não menos enérgica Esse gesto não está 16 O olfato é de todos os sentidos o que mais tarde se desenvolve nas crianças até a idade de dois ou três anos não parece que sejam sensíveis nem aos bons nem aos maus odores têm a respeito a indiferença ou antes a insensibilidade que se observa em muitos animais nas fracas mãos da criança está em seus rostos É de espantar ver a que ponto essas fisionomias mal formadas já têm expressão seus traços mudam de um momento para outro com inconcebível rapidez veemse nelas o sorriso o desejo o pavor nascerem e passarem como relâmpagos e a cada vez acreditase descobrir outro rosto As crianças têm certamente os músculos da face mais móveis do que nós Por outro lado entretanto seus olhos baços quase nada dizem Assim tem de ser o tipo de seus sinais numa idade que só existem necessidades corporais a expressão das sensações está nas contrações do rosto a expressão dos sentimentos nos olhares Como o primeiro estado do homem é de miséria e fraqueza suas primeiras vozes são de queixas e de choros A criança sente suas necessidades e não podendo satisfazê las implora o auxílio de outrem com gritos se tem fome ou sede chora se sente muito frio ou muito calor chora se precisa de movimento e a mantêm em repouso chora se quer dormir e a agitam chora Quanto menos sua maneira de ser se acha à sua disposição mais ela pede constantemente que a mudem Só tem uma linguagem porque não tem por assim dizer senão uma espécie de malestar na imperfeição de seus órgãos não distingue suas diversas impressões todos os males já lhe dão uma sensação de dor Desses choros que imaginamos tão pouco dignos de atenção nasce a primeira relação do homem com tudo o que o cerca forjase o primeiro elo dessa grande cadeia de que é formada a ordem social Quando a criança chora está mal à vontade tem alguma necessidade que não pode satisfazer examinase procurase essa necessidade encontrase e atendese a ela Quando não se a encontra ou quando não se pode atender a ela os choros continuam e importunam acarinhase a criança para que se cale embalase a criança cantase para que durma se se obstina a gente se impacienta a gente a ameaça amas brutais batem na por vezes Eis estranhas lições para sua entrada na vida Não esquecerei nunca ter visto um desses incômodos manhosos batido pela ama Calou imediatamente imagineio intimidado Diziame será uma alma servil da qual nada se obterá a não ser com rigor Enganavame o pobrezinho sufocava de cólera perdera a respiração vilo tornarse roxo Momentos depois vieram os gritos agudos todos os sinais do ressentimento da raiva do desespero dessa idade estavam neles Receei que morresse nessa agitação Se eu houvesse duvidado de que o sentimento do justo e do injusto é inato no coração do homem esse simples exemplo me teria convencido Estou certo de que uma brasa caída por acaso na mão dessa criança lhe teria sido menos sensível do que a pancada bastante leve mas dada com a intenção manifesta de ofendêla Essa disposição das crianças para o arrebatamento para o despeito a raiva exige cuidados muito grandes Boerhaave pensa que suas doenças são em sua maioria de ordem convulsiva porque sendo nelas a cabeça proporcionalmente maior e o sistema dos nervos mais extenso do que nos adultos a parte nervosa é mais suscetível de irritação Afastai delas com o maior cuidado os criados que as excitam as irritam as impacientam sãolhe cem vezes mais perigosos mais funestos que as injúrias do ar e das estações Enquanto as crianças só encontrarem resistência nas coisas e não nas vontades não se tornarão emburradas nem coléricas e conservarseão em melhor saúde É uma das razões porque as crianças do povo mais livres mais independentes são geralmente menos doentias menos delicadas mais robustas do que as que pretendem educar contrariandoas sem cessar Mas cumpre pensar sempre que há grande diferença entre lhes obedecer e não as contrariar Os primeiros choros das crianças são solicitações se não tomamos cuidado logo se tornam ordens começam pedindo assistência acabam fazendose servir Assim de sua própria fraqueza de que provém inicialmente o sentimento de sua dependência nasce a seguir a ideia de império de domínio mas essa ideia sendo menos provocada por suas necessidades do que por nossos serviços começamse a perceber os efeitos morais cuja causa imediata não está na natureza e vêse desde já por que desde a primeira infância importa descobrir a intenção secreta que dita o gesto ou o grito Quando a criança estende a mão com esforço sem nada dizer ela pensa alcançar o objeto porquanto não calcula a distância enganase mas quando se queixa e grita estendendo a mão não mais se engana acerca da distância ordena ao objeto de se aproximar ou a vós de trazêlo No primeiro caso levaia ao objeto devagar e a passos miúdos no segundo fingi que não a entendeis quanto mais gritar menos deveis ouvila Cumpre acostumála desde cedo a não comandar nem nos homens por não ser senhor deles nem nas coisas que não a entendem Assim quando uma criança deseja alguma coisa que vê e que queremos darlhe é melhor conduzila ao objeto que trazêlo a ela dessa prática ela tira uma conclusão que é de sua idade e não há outro meio de sugerir lha O abade de SaintPierre chamava aos homens crianças grandes poderseia reciprocamente chamar às crianças pequenos homens Tais ditos têm sua verdade como sentenças como princípios precisam de esclarecimentos Mas quando Hobbes dizia de um mau que era uma criança robusta afirmava uma coisa absolutamente contraditória Toda maldade vem da fraqueza a criança só é má porque é fraca fortaleceia ela será boa quem tudo pudesse nunca praticaria o mal De todos os atributos da Divindade toda poderosa a bondade é aquele sem o qual menos se poderia concebêla Todos os povos que admitiram dois princípios sempre encaram o mau como inferior ao bom sem o que teriam feito uma suposição absurda Vede a Profissão de fé do Vigário saboiano Somente a razão nos ensina a conhecer o bem e o mal A consciência que nos faz amar um e odiar o outro embora independente da razão não pode pois desenvolverse sem ela Antes da idade da razão fazemos o bem e o mal sem o saber e não há moralidade em nossas ações embora haja por vezes no sentimento das ações de outrem em relação a nós Uma criança quer desmantelar tudo o que vê parte quebra tudo o que pode alcançar pega um passarinho como pegaria uma pedra e o estrangula sem saber o que está fazendo Por quê Desde logo a filosofia vai explicálo pelos vícios naturais o orgulho a vontade de domínio o amor próprio a maldade do homem O sentimento de sua fraqueza poderá acrescentar torna a criança ávida de perpetrar atos de força e provar a si mesma seu próprio poder Mas vede o ancião enfermo e alquebrado trazido de volta à infância no círculo da vida humana não somente permanece imóvel e sereno como ainda quer que tudo o permaneça em volta dele a menor mudança o perturba e inquieta ele desejaria ver reinar uma calma universal Por que a mesma impotência unida às mesmas paixões produziria efeitos tão diferentes nas duas idades se a causa primeira não fosse outra E onde buscar essa diversidade de causas senão no estado físico dos dois indivíduos O princípio ativo comum a ambos desenvolvese num e se extingue no outro um estáse formando outro se destruindo um tende para a vida outro para a morte A atividade enfraquecida concentrase no coração do velho no da criança ela abunda e projetase para fora ela sente por assim dizer vida suficiente para animar tudo o que a cerca Que faça ou desfaça pouco importa basta que mude o estado das coisas e toda mudança é uma ação Não é por maldade que ela parece ter mais tendência para destruir é porque a ação que forma é sempre lenta e a que destrói sendo mais rápida convém mais a sua vivacidade Ao mesmo tempo que o Autor da natureza dá às crianças esse princípio ativo ele cuida de que seja pouco nocivo outorgandolhes pouca força para que a ele se entreguem Mas logo que elas podem encarar as pessoas que as cercam como instrumentos que depende delas fazer com que ajam deles elas se servem para seguir sua tendência e suprir a sua própria fraqueza Eis como elas se tornam incômodas tirânicas voluntariosas maldosas indomáveis progresso que não lhes vem de uma vontade natural de domínio e sim que lhes dá essa vontade pois não é necessária uma longa experiência para sentir a que ponto é agradável agir pelas mãos de outrem e não ser preciso senão mexer a língua para movimentar o universo Em crescendo adquirimos forças tornamonos menos inquietos menos tréfegos fechamonos mais em nós mesmos A alma e o corpo põemse por assim dizer em equilíbrio e a natureza não nos pede mais do que o movimento necessário à nossa conservação Mas o desejo de mandar não se extingue com a necessidade que o fez surgir o domínio desperta e satisfaz o amor próprio e o hábito o fortalece Assim a fantasia sucede à necessidade assim começam a arraigarse os preconceitos da opinião Conhecido o princípio percebemos claramente o ponto em que abandonamos o caminho da natureza vejamos o que é preciso fazer para nele nos mantermos Longe de ter forças supérfluas as crianças não têm sequer as suficientes para tudo o que delas solicita a natureza cumpre portanto deixarlhes o emprego de todas as que ela lhes dá e de que não podem abusar Primeira máxima É preciso ajudálas e suprir de que carecem seja em inteligência seja em força em tudo o que diz respeito às necessidades físicas Segunda máxima É preciso no auxílio que se lhes dá restringirmonos unicamente ao útil real nada concedendo à fantasia ou ao desejo sem razão pois a fantasia não as atormentará enquanto não a tivermos feito nascer dado que não é da natureza Terceira máxima É preciso estudar com cuidado sua linguagem e seus sinais a fim de que numa idade em que não sabem dissimular possamos distinguir em seus desejos o que vem imediatamente da natureza do que vem da opinião Quarta máxima O espírito dessas regras está em conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos voluntariedade em deixálas com que façam mais por si mesmas e exijam menos dos outros Assim acostumandose desde cedo a subordinar seus desejos a suas forças elas sentirão pouco a privação do que não estiver em seu poder Eis mais uma razão e muito importante para deixar os corpos e os membros das crianças absolutamente livres com a única precaução de afastálas do perigo das quedas e de tirar de suas mãos tudo o que as possa ferir Infalivelmente uma criança com o corpo e os braços livres chocará menos do que outra toda enfaixada Quem só conhece as necessidades físicas chora unicamente quando sofre e é uma grande vantagem pois então se sabe com precisão quando necessita de auxílio e não se atrasa um momento sequer em lho dar se possível Mas se não puderdes aliviálo ficai sossegados sem o acarinhar para acalmálo Vossas carícias não curarão a cólica Mas a criança se lembrará do que é preciso fazer para ser acarinhada e se souber uma vez fazer com que vos ocupeis dela à vontade eila senhora de vós E tudo estará perdido Menos contrariadas em seus movimentos as crianças choram menos menos importunados por seus choros atormentamonos menos a fim de fazêlas calar ameaçadas ou acarinhadas menos vezes elas se mostrarão menos medrosas ou menos voluntariosas e permanecerão melhor em seu estado natural É menos deixando as crianças chorarem do que se esforçando por acalmálas que corremos o risco de acidentes A prova está em que as crianças menos cuidadas a eles são menos sujeitas do que as outras Não quero com isso nem de longe que as negligenciem ao contrário cumpre prevenir tais acidentes e deles não ser advertido somente pelos gritos Mas não quero tampouco que os cuidados sejam mal compreendidos Por que deixariam elas de chorar se percebessem que o choro é útil a tanta coisa Conscientes do que pagam por seu silêncio evitarão prodigalizálo Valorizamno finalmente tanto que não o podemos mais pagar e é então que à força de chorar sem resultado se cansam se esgotam se matam As longas choradeiras da criança que não está nem enfaixada nem doente e à qual não deixam faltar nada não passam de choro de hábito ou de obstinação Não são obra da natureza e sim da ama que por não saber suportar a maçada a multiplica sem pensar que fazendo a criança calar hoje e excita a chorar mais amanhã A única maneira de curar ou prevenir tal hábito é não lhe prestar a menor atenção Ninguém gosta de penar inutilmente nem mesmo as crianças Elas são obstinadas em suas tentativas mas se tiverdes mais constância do que elas de obstinação elas se agastarão e não recomeçarão Assim é que lhes pouparemos o choro e que as acostumaremos a somente chorarem quando a dor a tanto as forçar Demais quando choram por fantasia ou por obstinação o meio seguro para impedilas de continuarem consiste em distraílas com algum objeto agradável e impressionante que as leve a esquecerem que queriam chorar As amas em sua maioria excedem nessa arte que bem aplicada é muito útil mas é da maior importância que a criança não perceba a intenção de distraíla e que ela se divirta sem imaginar que se está pensando nela e é no que em geral as amas são desastradas Desmamam cedo demais as crianças A época em que devem ser desmamadas é indicada pela erupção dos dentes e essa erupção é comumente penosa e dolorosa Por um instinto maquinai a criança leva então à boca tudo o que pega a fim de mastigálo Pensam facilitar a operação dandolhes como chocalho um objeto duro de marfim ou o que valha Creio que se enganam Esses corpos duros aplicados sobre as gengivas em vez de amolecêlas as tornam calosas as endurecem provocam um dilaceramento mais penoso e mais doloroso Tomemos sempre o instinto como exemplo Não se veem os filhotes de cães exercitando seus dentes nascentes em pedra no ferro nos ossos e sim na madeira no couro em trapos em materiais moles que cedem e nos quais os dentes se enfiam Não sabemos mais ser simples com nada nem mesmo com as crianças Guizos de prata de ouro de coral cristais facetados chocalhos de preço e de todos os tipos quantas coisas inúteis e perniciosas Nada disso Nada de guizos nada de chocalhos pequenos galhos de árvores com seus frutos e suas folhas uma bolota de dormideira com suas sementes ruidosas um pirolito de alcaçuz que possam chupar e mastigar as divertirão tanto quanto magníficas bugigangas e não terão o inconveniente de acostumálas ao luxo já ao nascerem Verificouse que a papa não é um alimento muito sadio O leite fervido e a farinha crua fazem muito saburro e convém mal a nosso estômago Na papa a farinha é menos cozida do que no pão e demais não fermentou O caldo de miolo de pão o creme de arroz parecemme preferíveis Se se quiser absolutamente dar uma papa convirá então torrar um pouco a farinha antes Fazem na minha terra com a farinha assim torrada uma sopa muito agradável e sadia O caldo de carne e a sopa são ainda um alimento medíocre que cumpre usar o menos possível É importante que as crianças aprendam primeiramente a mastigar é o meio certo de facilitar o aparecimento dos dentes e quando começam a engolir os sucos salivares misturados aos alimentos facilitam a digestão Eu lhes daria então frutas secas ou cascas de pão para mastigarem Eu lhes daria por brinquedos pedaços de pão duro ou de biscoito semelhante ao pão do Piemonte a que chamam grisse na região À força de amolecer esse pão na boca acabariam engolindo enfim alguma coisa seus dentes apontariam e elas se veriam desmamadas quase antes de o termos percebido Os camponeses têm habitualmente bom estômago e não os desmamam com maiores cuidados As crianças querem falar desde ao nascerem nós lhes falamos não somente antes que compreendam o que lhes dizemos como antes que possam repetir os sons que ouvem Seu órgão ainda mal desenvolvido só pouco a pouco se presta à imitação dos sons que lhes impomos e não é certo sequer que tais sons cheguem a seus ouvidos tão distintamente quanto aos nossos Não desaprovo o fato da ama divertir a criança com cantos e sons muito alegres e variados mas desaprovo que a aturda sem cessar com uma multidão de palavras inúteis a que não compreende nada senão o tom Gostaria que as primeiras articulações que a obrigam a ouvir fossem raras fáceis distintas amiudadamente repetidas e que as palavras que exprimem só dissessem respeito a objetos sensíveis passíveis de serem primeiramente mostrados à criança A lamentável facilidade que temos de nos satisfazermos com palavras que não entendemos começa mais cedo do que se pensa O aluno ouve na escola a parolagem do mestre como ouve nas fraldas a tagarelice de sua ama Pareceme que seria instruílo utilmente se o criassem para nada compreender a isso Acumulamse as reflexões quando queremos ocuparnos da formação da linguagem e das primeiras palavras da criança Façase o que se fizer ela aprenderá sempre a falar da mesma maneira e todas as especulações filosóficas são nisso da maior inutilidade De início têm as crianças por assim dizer uma gramática de sua idade cuja sintaxe tem regras mais gerais do que a nossa E se prestássemos bem atenção espantarnosia a exatidão com que elas seguem certas analogias impróprias se quiserem mas muito defensáveis e que só são chocantes pela sua dureza ou porque o uso não as admite Acabo de ouvir um pobre menino receber um pito do pai por ter dito Mon père iraijety irei aí Ora vêse que esse menino conhecia mais analogia do que nossos gramáticos porquanto se lhe diziam Vasy vai porque não diria ele Iraijety Observai demais com que habilidade evitava o hiato de iraijey ou yiraije Será culpa desse menino termos sem razão suprimido da frase o advérbio determinado y por não sabermos que fazer dele É um pedantismo insuportável e um cuidado dos mais supérfluos insistir em corrigir nas crianças todos esses pequenos erros contra os usos erros de que não deixam de se corrigir elas próprias com o tempo Falai sempre corretamente na frente delas que se comprazam com ninguém tanto quanto convosco e confiai em que vereis que insensivelmente sua linguagem se depurará segundo a vossa sem que jamais as tenhais corrigido Mas um abuso de bem maior importância e que não é menos fácil de prevenir está em insistirmos em que falem depressa como se tivéssemos receio de que não aprendessem a falar sozinhas Esse apressamento indiscreto produz um efeito diretamente contrário ao que se busca falarão mais tarde mais confusamente A extrema atenção que prestamos a tudo o que dizem eximeas de articular direito e como mal se dignam abrir a boca muitas conservam a vida inteira um defeito de pronúncia e um falar confuso que as torna quase ininteligíveis Vivi muito entre os camponeses e nunca ouvi nenhum carregar naturalmente nos rr nem homem nem mulher nem jovem de ambos os sexos De onde vem isso Os órgãos dos camponeses serão diferentes dos nossos Não mas são exercitados de outra maneira Em frente de minha janela há uma colina onde se reúnem em seus folguedos as crianças do lugar Embora se achem bastante afastadas de mim distingo perfeitamente tudo o que dizem e disso tiro frequentemente boas anotações para este estudo Todos os dias meu ouvido me engana a respeito de sua idade Ouço vozes de crianças de dez anos olho e vejo estatura e traços de crianças de três ou quatro Não me prendo sozinho a tais experiências os citadinos que me vêm visitar e que consulto a respeito caem todos no mesmo erro O que o provoca consiste em que até cinco ou seis anos as crianças das cidades criadas num quarto e sob os cuidados de uma governanta não precisam senão engrolar para serem entendidas mal mexem os lábios cuidam logo de ouvilas ditamlhes palavras que repetem mal e à força de prestar atenção a elas as pessoas que estão sempre com elas adivinham o que querem dizer mais do que o que elas dizem No campo a coisa é diferente Um camponês não se acha sempre ao lado de seu filho este precisa aprender a dizer muito nitidamente e alto o que precisa comunicar Nos campos as crianças dispersas afastadas do pai e da mãe e das demais crianças exercitamse em se fazerem ouvir à distância e a medir a força de sua voz no intervalo que as separa daqueles de quem querem ser ouvidos Eis como se aprende verdadeiramente a pronunciar e não gaguejando algumas vogais ao ouvido de uma governanta atenta Quando se interroga o filho de um camponês a vergonha pode impedilo de responder mas o que ele diz dilo com nitidez ao contrário a criada tem de servir de intérprete à criança da cidade sem o que não se entende o que resmunga entre os dentes17 Em crescendo os meninos deveriam corrigirse de tais defeitos nos colégios e as meninas nos conventos em geral uns e outras falam com efeito mais distintamente do que os criados na casa paterna Mas o que os impede de adquirir uma pronúncia tão nítida quanto a dos camponeses é a necessidade de aprender de cor muitas coisas e de recitar em voz alta o que aprenderam Estudando acostumamse a garatujar a pronunciar negligentemente e mal recitando pior ainda procuram as palavras com esforço arrastam e alongam as sílabas quando a memória vacila não é possível que a língua não balbucie também Assim se contraem ou se conservam os vícios de pronúncia Logo verão que meu Emílio não terá tais vícios ou ao menos que não os terá contraído pelas mesmas causas Convenho em que o povo e a gente das aldeias caem em outro extremo falam quase sempre mais alto do que necessário pronunciando demasiado exatamente têm as articulações rudes e fortes acentuam demais escolhem mal seus termos etc Antes de mais nada porém esse extremo me parece muito menos impróprio do que o outro porquanto sendo a primeira lei do discurso a de se fazer entender o erro maior está em falar sem ser entendido Vangloriarse de não ter acento é vangloriarse de tirar da frase a energia O acento é a alma do discurso dálhe sentimento e verdade 17 Isto não vai sem exceção e muitas vezes as crianças que menos se fazem compreender tornamse depois as mais brilhantes quando começam a falar Mas se fosse preciso entrar em todos esses pormenores eu não terminaria nunca Todo leitor sensato deve ver que o excesso e a carência derivados do mesmo abuso são igualmente corrigidos com meu método Encaro estas duas máximas como inseparáveis Sempre bastante nunca demais Bem estabelecida a primeira seguese a outra necessariamente O acento mente menos do que palavra talvez seja por isso que as pessoas bem educadas o receiem tanto É do hábito de tudo dizer no mesmo tom que decorre o de zombar dos outros sem que o sintam Ao acento proscrito sucedem maneiras de pronunciar ridículas afetadas e subordinadas à moda como as que se observam sobretudo nos jovens da corte Essa afetação da fala e da atitude é que toma em geral o contato com o francês hostil e desagradável às gentes de outras terras Ao invés de pôr acento na sua linguagem ele põe atitude Não é o meio de predispor a seu favor Todos esses pequenos defeitos de linguagem que tanto se teme deixar as crianças adquirilos corrigemse com a maior facilidade mas os que as fazem adquirir tornando sua fala surda confusa tímida criticando incessantemente seu tom de voz espiolhando todas as suas palavras não se corrigem nunca Um homem que tenha aprendido a falar nas alcovas farseá mal compreender à frente de um batalhão e não impressionará o povo num motim Ensinai primeiramente as crianças a falarem aos homens saberão falar às mulheres quando for preciso Criados no campo dentro da rusticidade campesina vossos filhos adquirirão uma voz sonora não contrairão o gaguejar confuso da cidade nem contrairão tampouco as expressões e o tom da aldeia ou os perderão facilmente quando o mestre com elas vivendo desde ao nascerem e aí vivendo dia a dia mais exclusivamente evitará ou apagará pela correção de sua linguagem a marca da linguagem dos camponeses Emílio falará um francês tão puro quanto o que posso saber mas o falará mais distintamente e o articulará muito melhor do que eu A criança que quer falar não deve ouvir senão as palavras que pode compreender não dizer senão as que pode articular Os esforços que faz para isso levamna a redobrar a mesma sílaba como para se exercitar a pronunciála mais distintamente Quando começar a balbuciar não vos atormenteis para adivinhar o que diz A pretensão de ser sempre ouvido é ainda uma espécie de domínio e á criança não deve exercer nenhum Contentaivos com prover muito atentamente ao necessário cabe a ela procurar fazer vos compreender o que não o é Bem menos ainda cumprirá exigirdes que ela fale saberá falar na medida em que sentir a utilidade Observase é certo que as que começam a falar muito tarde não falam tão distintamente quanto as outras Mas não é porque falam com atraso que o órgão fica embaraçado é ao contrário porque nasceram com um órgão defeituoso que começam a falar tarde Pois se não porque falariam mais tarde do que as outras Ao contrário a inquietude que dá esse atraso logo que se o percebe faz com que nos atormentemos muito mais em fazêlas balbuciar do que as que articularam mais cedo E essa pressa mal entendida pode contribuir para tornar confuso seu falar o qual como menos precipitação elas teriam tido tempo de aperfeiçoar As crianças que insistimos demais em fazer com que falem não têm tempo nem de aprender a bem pronunciar nem de bem conceber o que as forçamos a dizerem ao passo que quando as deixamos sozinhas elas se exercitam primeiramente nas sílabas mais fáceis de se pronunciarem juntando a elas algum sentido que se depreenda de seus gestos as crianças vos darão suas palavras antes de receberem as vossas isso faz com que só recebam estas depois de as terem entendido Não tendo pressa em delas se servirem começam por bem observar que sentido lhes dais e quando se certificam disso as adotam O maior mal da precipitação com a qual fazem as crianças falar antes da idade não está em que as primeiras palavras que lhes dizemos e as primeiras que nos dizem não tenham para elas nenhum sentido mas sim que tenham um sentido diferente do nosso sem que saibamos percebêlo De modo que parecendo respondernos muito precisamente elas nos falam sem nos entender e sem que nós as entendamos É em geral a tais equívocos que se deve a surpresa em que nos mergulham por vezes seus dizeres a que emprestamos ideias que elas não lhes deram Essa nossa falta de atenção com o verdadeiro sentido que as palavras têm para as crianças pareceme ser a causa de seus primeiros erros e tais erros mesmo depois de se corrigirem influem em seu espírito durante a vida toda Terei mais de uma oportunidade logo mais de esclarecer isso com exemplos Condensai portanto quanto possível o vocabulário da criança É grande inconveniente tenha ela mais palavras que ideias saiba dizer mais coisas do que pode pensar Creio que uma das razões de terem os camponeses o espírito mais acertado que o da gente da cidade está em que seu dicionário é menos extenso Tem essa gente menos ideias mas as assimila muito bem Os primeiros desenvolvimentos da infância ocorrem quase todos ao mesmo tempo A criança aprende a falar a comer a andar quase ao mesmo tempo É em verdade a primeira fase de sua vida Antes ela não é nada mais do que era no ventre da mãe não tem nenhum sentimento nenhuma ideia mal tem sensações não sente sequer sua própria existência Vivit et est vitae nescius ipse suae