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1 VEIGA José J A casca da serpente romanceRio de Janeiro Bertrand Brasil 1989 20031 1Versão digital exclusivamente para fins didáticos leitura por capítulo ao longo da discplina Estilística do Português 20232 O docente recomenda aos interessados em ler a obra integralmente consultar a Bblioteca da UVA ou efetuar a compra do livro através do httpswwwamazoncombrCascaSerpente JoseJVeigadp8528600769 2 A CASCA DA SERPENTE JOSÉ J VEIGA SUMÁRIO A RETIRADA 2 PARA O NORTE 33 OS VISITANTES 55 O SONHO 75 ARRUMAR O SERTÃO 80 3 A RETIRADA A palavra bem manejada e dita na hora certa tem poderes bem dizer mágicos Bem disse o evangelista que no princípio era o verbo e o verbo era Deus E no livro dos Provérbios está escrito a palavra oportuna muito boa é É a sabedoria dos tempos ensinando Se o Bernabé não fosse hábil em combinar palavras e na maneira de soltalas não teria desempenhado com brilho a missão que lhe encomendaram Pois vamos ver como faz isso No dia 2 de outubro de 1897 dois jagunços de Canudos exaustos da guerra e agitando uma bandeira branca conseguiram chegar ao general Artur Oscar comandante da quarta e ultima expedição federal despachada contra os rebeldes Um dos jagunços era Antônio Beatinho o sacristão de Antonio Conselheiro o outro era Bernabé José de Carvalho espécie de secretário para assuntos políticos Vinham comunicara ao general comandante que os derradeiros defensores do arraial queriam se render O general cortou a introdução que ameaçava ser longa e fez a pergunta que realmente o interessava E o Conselheiro O Beatinho olhou para o chão carregou mais na tristeza das feições e respondeu O nosso bom Conselheiro já está no céu Durante o resto da conversa Antonio Beatinho só fez repetir o que havia ensaiado depois de uma reunião que tomara toda a tarde anterior e parte da noite e na qual foram feitos os planos para a retirada dos últimos defensores que quisessem 4 levando o Conselheiro ferido e já muito enfraquecido não queriam que o cadáver caísse em mãos dos federais o que certamente aconteceria se ele morresse ali Para fazer crer aos federais que o Conselheiro havia morrido em conseqüência do bombardeio de 6 de setembro que derrubara as torres da igreja nova e fizera grandes estragos em todo o arraial tiveram de arranjar um cadáver da mesma estatura e compleição que ele o que não foi difícil por haver na praça muitos corpos de pessoas mortas na ultimas semanas e mal enterradas em cova rasas O cadáver foi vestido de novo com um camisolão de zuarte do Conselheiro e reenterrado em um casebre da periferia para ser exumado depois pelos federais se o plano vingasse E vingou Segundo indicações de um dos jagunços que havia se rendido uma comissão de oficias encontrou o cadáver enterrado no chão do casebre Um documento da época conta como isso se deu Removida breve camada de terra apareceu no triste sudário de um lençol imundoo corpo do famigerado e bárbaro agitador Estava hediondo Envolto no velho hábito azul de brim americano mãos cruzadas ao peito rosto tumefacto e esquálido olhos fundos cheios de terra mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida A comissão de oficiais aceitou que aquele era o cadáver do Conselheiro Precisava que fosse tinha que ser Todos os seus membros queriam encerrar logo o assunto e voltar para casa como heróis por isso ninguém levantou nenhuma duvida nem estranhou a colaboração espontânea do prisioneiro em indicar o lugar exato onde estava o corpo Pode ser que tivessem desconfiado de tanta gentileza e perfeito entrosamento de peças mas para que estragar a arrumação que convinha a todos Estando Canudos destruído morta a maioria de seus defensores os restantes aprisionados e já sendo executados meticulosamente por degola que importava que uns poucos remanescentes entre eles talvez o chefe bronco estivessem fugindo pelas veredas de Uauá e Várzea da Ema ao norte as únicas que restavam livres Feridos estropiados famintos e desmoralizados acabariam morrendo pelos caminhos Já temos um cadáver fica sendo o cadáver O retratista oficial tira uns retratos o escrivão cadê 5 o escrivão faz a ata nós da comissão assinamos e vamos todos embora daqui a marchemarche que já estamos enfarados E a embaixada do Bernabé e do Beatinho Quando os chefes remanescentes decidiram pela retirada levando o Conselheiro ferido e doente esses dois se ofereceram para simular a rendição dos derradeiros defensores da praça Não foi uma decisão fácil o Conselheiro estava molengo quase não falava passava o mais do tempo dormitando e devia ter febre Eles haviam se reunido em um casebre do bairro das Casas Vermelhas em um ponto relativamente abrigado do canhoneio Além do Conselheiro que não contava como participante estavam lá Joaquim Norberto o QueroQuero Quim Pisapé Sinfrônio de Quipapá exlugartenente do astuto João Abade Dedé de Donana que fora ferreiro em Pilar de Goiás cabo Nestor Borralho desertor do 2º Batalhão do Pará Baianinho Gonçalves que fora sacristão em Buquim no Sergipe Boanérgio Guerreiro Bernabé de Carvalho e Antônio Beatinho e Pedrão as vezes chamado de EsfolaOnça mas só pelas costas Outros entravam escutavam um pouco opinavam ou não opinavam e saíam logo estavam de guarda nas imediações Era impossível resistirem mais e também não podiam se entregar aos sitiantes que degolavam todos os prisioneiros sem piedade Assim descreve um repórter que acompanhou a campanha uma dessas sessões de degola Chegando á primeira canhada encoberta realizavase uma cena vulgar Os soldados impunham invariavelmente a vítima um viva á República que era poucas vezes satisfeito Era o prólogo invariável de uma cena cruel Agarravamna pelos cabelos dobrandolhe a cabeça esgargalhandolhe o pescoçoe francamente exposta a garganta degolavamna Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes Os jagunços guerreiros sabiam disso e não se entregavam Canudos estava perdido e com ele os últimos defensores que se rendessem acreditando nas promessas de clemência dos atacantes O que se discutia naquela reunião era como ganhar tempo para se preparar uma retirada de ordem E se a gente achar um jeito de espalhar para os defensores que o Conselheiro já morreu com perdão do nosso bom Jesussugeriu Baianinho Gonçalves 6 Fezse demorado o silencio enquanto o Beatinho apalpava a testa do Conselheiro e perguntava se ele tinha ouvido a proposta do comandante Baianinho O Conselheiro demorou a falar e quando falou com dificuldade foi para dizer que tinha ouvido mas não queria opinar para não parecer que estava forçando Ele meditara muito sobre a possibilidade de uma retirada mais para o norte mas reconhecia que estava com pouco tempo de vida praticamente no fim e sabia que seus filhos já andavam muito sacrificados Se os guerreiros restantes quisessem ir cuidar de suas vidas em lugares longe dali ele compreenderia e abençoava Por algum tempo ninguém falou Até que Beatinho indagou E o nosso bom Conselheiro O que tenciona fazer Fico para ver de perto a cara do Anticristo Aí todos esqueceram o respeito com o chefe e várias vozes falaram ao mesmo tempo protestando que isso não de jeito nenhum os federais iam judiar dele demais da conta Se alguns do bando pendessem por sair sairiam levando o Santo Guia Nem que morresse de hoje para amanhã nem o corpo deixariam Por isso é que eu penso falou de novo Baianinho Gonçalves que precisamos achar um jeito de levar aos ouvidos dos federais que o bom Conselheiro já morreu Com isso a gente ganha tempo na marcha para o norte Se eles desconfiarem que o Conselheiro foi com a gente na certa vão atrás Eles são tinhosos Ou não são cabo Nestor É divera Eles vão querer pôr a mão no chefe Conselheiro vivo ou morto pra fazer a festa deles Só vão acreditar que o bom Conselheiro morreu se acharem o cadáver Isso é certo batido o chacoalho falou o cabo EntãoEu acho que a gente cá podia engambelar eles desencavando por aí um cadáver que tenha mais ou menos a idade e o tamanho do Conselheiro Se o bom Conselheiro aprovar disse Bernabé Todos olharam para o catre procurando aprovação mas o Conselheiro cochilava O Beatinho fez sinal para o deixarem e disse que ele assumia a 7 responsabilidade de dar por concedida a aprovação Então Dedé de Donana falou de um carapina muito parecido com o Conselheiro tanto que crianças e beatas as vezes se enganavam e pediam a bênção dele Esse caipira tinha morrido no bombardeio da igreja nova no dia 22 de setembro o próprio Dedé ajudara a enterrálo atrás da igreja Então vamos tratar logo disso que o tempo vai encurtando disse Quero Quero que tomava a frente sempre que havia um serviço repugnante a fazer Eu levo um ajudante e seu Dedé mostra o lugar Quando Dedé e QueroQuero iam saindo o Conselheiro como que acordou Disse que havia escutado tudo e estava de acordo na treta para enganar os Anticristos Mas quem devia fazer o serviço de desenterrar o corpo do carapina Balduíno homem muito temente a Deus era cabo Nestor para pagar os pecados de ter servido os federais QueroQuero insistiu disse que nesse caso ele ajudaria o cabo O Conselheiro pensou e concordou novamente de olhos fechados apenas mexendo a cabeça Todo o trabalho feito com capricho não deixa rabo Quando o cadáver foi achado pela comissão dos federais no dia 6 de outubro todos concordaram ou puderam concordar que se tratava mesmo do famigerado e bárbaro Antônio Vicente Mendes Maciel vulgo Antônio Conselheiro afirma a ata então redigida e transcrita em parte pelo repórter Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha na correspondência que mandou para o seu jornal e que faz parte do livro que publicou sobre a campanha de Canudos cinco anos depois A divulgação dessa ata a publicação de fotografias do cadáver na imprensa de todo o país e exibição da cabeça em algumas cidades tudo alcançou o resultado desejado de convencer a opinião pública de que o facínora que havia derrotado três expedições militares e quase fizera o mesmo com a quarta estava finalmente morto para desagravo e glória das forças da ordem e do progresso A conferência de jagunços que engendrava a morte do Conselheiro para sossegara a fúria dos federais combinou também que Antônio Beatinho e Bernabé de Carvalho fossem em embaixada negociar com os federais a rendição dos últimos defensores de Canudos Deviam eles convencer os federais de que estavam numa missão secreta porque um bando de fanáticos decidira matar quem falasse em rendição 8 Com o seu jeito simplório o Beatinho repetiu ao comandante da tropa sitiante o que havia ensaiado com a orientação de Bernabé ajudado pela experiência do cabo Nestor pela malícia de Baianinho Gonçalves e a sabedoria do Conselheiro Sem nenhuma dificuldade ele convenceu o bravo doutor general que o Conselheiro havia morrido no bombardeio da igreja nova e que varias centena de guerreiros queriam se render mesmo com o risco de serem mortos pelas costas pelos fanáticos Então vá buscálos disse o comandante O governo da República garante tratamento condigno a todos Não posso Se voltar lá os fanáticos me matam Aí falou pela primeira vez o outro embaixador o Bernabé Vamos homem Tenha medo não Eu falo com eles amanso os mais ferozes Quanto mais cedo a gente resolver isso melhor para todos está todo mundo nas ultimas Ninguém tem fogo mais pra guerrear Assim se negociou a transferência para os federais de cerca de trezentos bagaços humanos que há dias não tinham mais o que come r em Canudos O Beatinho ia a frente deles mas Bernabé juntouse aos guerreiros que se retiravam para o norte levando o Conselheiro num banguê Mas nem todos os guerreiros restantes se retiraram Contrariando o Conselheiro uma brigada suicida ficou para morrer combatendo Esse lance final da luta está contado em cores vivas pelo repórter Pimenta da Cunha em seu livro de 1902 Canudos não se rendeu diz ele Exemplo único em toda a história resistiu até o esgotamento Expugnado palmo a palmo na precisão integral do termo caiu no dia 5 de outubro ao entardecer quando caíram os seus últimos defensores que todos morreram Eram quatro apenas um velho dois homens feitos e uma criança na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados Caiu o arraial no dia 5 No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando as casas 5200 cuidadosamente contadas Quando deixaram Canudos no fim da tarde de 2 de outubro eles não sabiam para onde ir A preocupação imediata era não deixar que o Conselheiro fosse apanhado pelos federais nem morto Todos no arraial sabiam o que eles faziam com os guerreiros 9 que capturavam e nesse particular os jagunços respondiam no mesmo tom Era a lei da guerra no sertão aquele mundo onde se diz que o filho chora e a mãe não ouve onde o diabo ri e deus não ralha onde tudo pode acontecer e mesmo assim é bonito Pelos cálculos os oitenta a noventa guerreiros que tinham decidido ficar poderiam embaraçar a entrada dos federais todo o dia seguinte não sendo de esperar nenhum ataque maior antes do amanhecer de sorte que os retirantes teriam uma noite um dia e mais uma noite de marcha tempo suficiente para distanciálos bastante dos soldados caso a armadilha do cadáver falhasse Mas o que os retirantes não sabiam nem imaginavam era que os guerreiros que ficaram ainda iam retardar por mais três dias a entrada dos vencedores em Canudos Não tinham andado mais de duas horas serra acima e o Conselheiro que ia no bangüê carregado Poe dois homens ergueu a mão pedindo que parassem Bernabé que vinha preenchendo o papel do Beatinho na ajudância ao Conselheiro indagou solicito O bom Jesus quer se aliviar Também Primeiro vamos rezar nossa ladainha Já deve ser hora da Ave maria e não vejo motivo para quebrar o costume Arriem o banguê e se ajoelhem Os homens se olharam não entendendo Ladainha naquele momento parecia fora de propósito assunto de maluco com perdão do pensamento Se ladainha adiantasse eles não estariam naquela avaria Foi nisso mais ou menos que Joaquim Norberto cochichou para o cabo Nestor que também entrara muito me dúvida quanto a oportunidade ou conveniência de se ajoelharem mas vendo muitos já se ajoelhando ou procurando lugar menos esconso para ajoelhar se lembrando que por ter servido aos federais ele era o único ali que não podia ficar mostrando desagrado pelas esquisitices do velho sendo assim vamos ajoelhar também Quando viu que estava sozinho na vontade de ficar de fora e que Pedrão QueroQuero o Pisapé e o Baianinho já olhavam interpelando Joaquim Norberto persignouse desajeitado e tratou de se ajoelhar não era hora de criar desavença por motivo tão chocho 10 Vendo todos ajoelhados e em atitude mais ou menos contrita só Joaquim Norberto parecia meio contrariado e cabo Nestor a modos que tentava esconder um sorriso de zombaria detalhes que seriam melhor fingir que não se percebia o Conselheiro levantou a mão direita num gesto de abençoamento e disse Dada nossa pressa em seguir marcha hoje só vamos rezar três Padre nossos com as Ave marias e a Salve rainha correspondentes e mais um Credo pra reforçar O irmão Bernabé puxa Que falta faz o Beatinho O Conselheiro disse isso e fechou os olhos Bernabé sentiuse perdido não sabia rezas inteiras Olhou desamparado para Dedé de Donana que estava perto Dedé pigarreou e começou pelo Padre nosso Todos acompanharam o Conselheiro não percebeu a troca ou fingiu que não tinha percebido as vezes parecia que ele fechava os olhos para deixar os homens a vontade Eles já sabiam que iam subir a serra da Canabrava rota de fuga mais dura porém mais segura dificilmente os federais iriam destacar patrulhas para procurar possíveis retirantes serra acima e não convinha agravar os embaraços naturais com rigores de protocolo talvez fosse esse o pensamento que o Conselheiro antes tão exigente em questões de disciplina e cerimônia agora preferisse fechar os olhos Terminadas as orações aos esbarros e escorregões valendo mais a intenção e não de todos o Conselheiro novamente levantou a mão e falou Agora aquele outro assunto Quero ir no mato Isso era desconcertante porque nenhum daqueles retirantes tinha ainda ajutorado o Conselheiro nessa parte que papel de Beatinho que Deus tivesse em seu Reino e eles ali nem sabiam o procedimento a seguir O embaraço era portanto geral E essa agora Que falta fazia mesmo o manso Beatinho de quem eles tanto zombavam Quem ia se oferecer para ajudar o Conselheiro Mas não havia problema nenhum Não entendendo o embaraço deles o Conselheiro chapou 11 Estão acanhados por quê Eu só quero aliviar a bexiga e a barriga e não preciso de ajutório para isso Basta me levarem para trás daquela pedra ali e me deixem lá Vamos molezas Se era só isso não tinha porém Vários homens flecharam para o bangüê que fora abaixado no chão para as rezas e com isso houve um certo atropelo na hora de pegarem os varais o que irritou mais ainda o Conselheiro Bela escolta eu arranjei Se demorarem eu faço aqui mesmo no banguê e vocês vão ter que aviar outro Por fim Bernabé e cabo Nestor pegaram os varais e resolveram a parte do transporte E enquanto o Conselheiro resolvia o assunto dele atrás da pedreira ninguém deu um pio cada qual procurava distração nos galhos dos arbustos ressecados no chão de tabatinga avermelhada nas lagartixas que corriam tremelicando nas pedras e logo desapareciam E quando QueroQuero virou as costas para o bando afastou ligeiramente as pernas tirou o birro e largou uma mijada de fazer pilão na terra seca todos acharam aquilo uma idéia paidégua e o imitaram era uma ocupação para preencher a espera Foi aí que Boanérgio Guerreiro achou de fazer graça e quase se estrepa Enquanto urinava ele virou a cabeça para trás e falou para o bando E como diz o ditado homem de Baturité cavalo pangaré e mulher que mija em pé líbera nós dominé Alguns riram mas o Sinésio Bailão ex ajudante de Joaquim Macambira o ardiloso bateu forte a coice da Comblain no chão e interpelou A modo que o companheiro tem cisma com homem de Baturité Eu Tenho não ara Conforme falei é um ditado explicou Boanérgio Ditado muito trelente esse Por acaso o companheiro é de Baturité indagou Boanérgio Sou e puno 12 Então peço indulto Deus me livre de ofender pessoa de tanta ufania Enquanto Sinésio considerava se concedia ou não o indulto alguns dos outros olhando para o chão para aparentar desinteresse mas se esquecendo de esconder um sorriso de boca murcha que denotava um desejo de ver o caldo se entornar o que seria motivo de divertimento o Conselheiro apareceu contornando a pedreira e se apoiando nela com um braço e com o outro faz um sinal chamando Como antes muitos apareceram para acomodálo no bangüê e trazêlo de volta mas quem ganhou a corrida foi Bernabé e Boanérgio e com isso a ameaça de topada com Sinésio ficou revogada ou pelo menos adiada Antes de retornarem caminho o Conselheiro pediu a atenção do bando com o seu gesto de levantar a mão o que lhe dava aquele ar de Jesus Cristo de gravura que as beatas tanto apreciavam nos bons tempos Canudos e explicou que enquanto se aliviava esteve também meditando e nesse meditar recebeu uma inspiração alvissareira talvez mesmo salvadora Era para eles se instalarem por algum tempo no alto da serra tinha lá uma planura e malocas de rocha poderiam servir de abrigo para quem não fosse exigente de conforto como era o caso deles Podemos ficar lá rezando e descansando até os Anticristos irem embora Enquanto issoresolvemos com calma para onde ir em definitivo O que é que vocês acham Bernabé e cabo Nestor que começavam a fazer boa liga se olharam e se entenderam Os outros talvez por estarem ainda muitos abalados com a derrota parece que não prestaram atenção na fala do Conselheiro e por isso não notaram a mudança no modo de falar usado agora por ele Antes ele resolvia tudo sozinho e comunicava a decisão aos seguidores agora falava no plural nós resolvemos depois para onde ir Assim ficava melhor claro muitas cabeças pensando e se consultando alcançavam melhor resultado A dúvida era se aquilo seria uma mudança de verdade ou efeito passageiro do descalabro em que se achavam Sabendo enfim para onde ir e o que fazer nos próximos dias ou semanas ou meses tudo dependendo do que Deus mandasse eles sentiram um relaxamento 13 repentino que mudou completamente o comportamento de cada um sentiram uma vontade de brincar e de aceitar brincadeiras de fazer coisas que só tinham feito na infância uma vontade de falar de cantar de assoviar de rir ao menor pretexto ou à toa mesmo sem se incomodar com a presença do Conselheiro era a primeira vez que acontecia isso de ninguém ficar cheio de dedos ou calado perto do chefe e não era Poe desrespeito era resultado do clima de cordialidade e despreocupação que envolve o bando de uma hora para a outra e contagiou até o próprio chefe que de repente sem mais aquela perguntou ao Boanérgio o que era mesmo que ele tinha falado sobre os homens de Baturité Ficaram todos na maior perplexidade cada um teso e olhando pra a frente com medo de olhar um companheiro e não poder segurar o riso até que o Conselheiro explicou que havia perguntado porque se lembrara que o capitão Sinésio era filho de Baturité e podia dar qualquer esclarecimento que Boanérgio desejasse disse isso e piscou um olho de um jeito capenga de quem não é adestrado nessas brincadeiras e foi o sinal para que todos soltassem o riso cachoeiral benéfico que logo veio devolvido pelas paredes e locas da serra numa confusão de repetições cruzadas que os fez rirem mais ainda por parecer que um bando de fantasmas zombeteiros os arremedava Agora era uma competição entre eles e o eco e cada um procurava incluir no próprio riso uma característica que pudesse ser reconhecida na volta e ficava esperando com mo dedo apontado apontando para aqui para ali e quando identificava a sua contribuição ao escarcéu geral aí que redobrava o riso como se quisesse pagar com ele a certeza recém adquirida de que afinal era alguém no mundo alguém reconhecido e replicado por nada menos do que a serra da Canabrava Finalmente se cansaram mas não puderam descansar porque logo baixou neles uma crise de tosse parecia que de repente todos tinham contraído coqueluche uma tosse engasgante que os deixava afogueados e obrigava uns a se sentarem no chão outros a se apoiarem em barrancos pedras troncos de arbustos o único que não tossia era o Conselheiro que não tinha participado do festival de gargalhadas Ele só olhava sentado me seu bangüê os joelhos dobrados as mãos os enlaçando e esperava que os homens recuperassem o fôlego e o senso tamanhos marmanjos procedendo como 14 crianças Tanto mais quanto já era hora de começarem a pensar no decomer assunto que aparentemente ainda não entrara nas preocupações de ninguém do bando Quando nãos ouvia mais nenhum resquício de tosse e os homens estavam todos sentados espalhados menos uns poucos que haviam se afastado para verter água ou esvaziar as tripas o Conselheiro levantou o braço e falou Vocês não acham que era hora de alguém estar armando uma trempe para cozinhar a janta Ou ninguém vai jantar hoje Não falo por mim que tanto me faz comer ou não Com efeito Na pressa de sair do arraial ninguém pensou em comida em trem de cozinha Agora o problema estava ali levantado pelo Conselheiro justamente o único do bando que não ligava a comida com ele era trem muito bem não tem tivesse Foi ele falar o assunto esquecido baixar sobre o bando como demanda urgente os estômagos já roncando Mas cozinhar o quê e com quê se ninguém tinha se lembrado de levar se quer uma panela um caldeirão uma simples pichorra pra ferver água Depois de um curto debate concluíram pelo obvio caçar o que pipocasse para comer assado em espeto improvisado Para isso se decidiram em grupos que logo se espalharam pela serra com o Conselheiro ficando apenas com o Bernabé que não sendo guerreiro não tinha prática em atividades de campo e Dedé de Donana que vinha meio anuviado desde que comera de uma frutinha roxa de beira de caminho uma horas antes De repente Dedé deu um susto em Bernabé e no Conselheiro levantouse rápido e onde estava e saiu correndo seria soldado chegando Não era o Dedé atacado de alguma coisa ia tentando desafivelar o cinto se atrapalhou e quando conseguiu baixou a calça na vista do Conselheiro mesmo e do Bernabé agachouse quase caindo Bernabé acudiu Ele soltou uma pasta rala escura que sujou a botina de Bernabé botina que ele tinha tirado de um soldado morto e tratava como muito requinte agora a botina nauele estado está aí no que dá a pessoa querer ser prestativa o Dedé não podia ter sido cuidadoso no descarregar a barrela 15 Mesmo contrariado Bernabé continuou dando ajuda ao companheiro segurandoo para que ele não despencasse em cima do godó fedido no que teve a simpatia do Conselheiro que olhava de longe a boa ação com ar aprovador Vendo que Dedé tinha uma cor cinzenta de batata na casca e suava muito a ponto de o suor cair no chão Bernabé tirou o chapéu e com ele abanou o companheiro com uma mão com a outra segurandoo Com isso Dedé foi recuperando a cor o enjôo foi passando as colocas também Finalmente ele se levantou envergonhado e ficou ali indeciso sem ação Novamente o despachado Bernabé interveio e sugeriu que ele fosse procurar um meio de se limpar na falta de folhas verdes que não tinha mesmo estava tudo estorricado por ali uma pedra sem arestas servia ou um punhado de terra para fazer papel de mataborrão Quando voltou da operação de limpeza se assim se podia chamar o trabalho muito sumário que ele fez com uns chumanços de folhas secas atrás de um murundu Dedé encontrou Bernabé cobrindo a sujeira do chão com terra que ia empurrando com as botinas e só então viu que uma estava lambuzada Ô Bernabé Sujando uma botina tão soberana Faz isso não homem de Deus Foi eu não Foi você Eu Naquela hora é Com efeito Que pecado Me dá ela pra limpar Limpar como Não tem água Eu dou um jeito Assim é que não pode ficar Me desculpe companheiro Eu estaca tão avexado que não reparei Tire a botina que eu limpo Mais uma vez Bernabé viu no olhar do Conselheiro que até então parecia alheio a tudo afundado em seus pensamentos ou em suas orações viu aquele mesmo olhar de aprovação de antes o que o fez pensar que o velho atrás daquela cortina de sonolência e desinteresse estava era muito atento ao que se passava em volta Podia ser então que quando ele parecia distraído cochiloso caducante era porque tinha se acendido pra o lado de dentro e entrado em comunicação com alguma força invisível para 16 os outros e da qual recebia sustento para a alma e para o corpo Era preciso prestar mais atenção ao velho conversar mais com ele como fazia o Beatinho que nesse momento já devia estar no céu degolado parece que os federais só vieram a Canudos para degolar gente coisa mesmo de Anticristo Um prisioneiro que conseguiu fugir deles por milagre contou como era isso Eles passavam um laço pelo pescoço do homem e perguntavam como ele queria morrer O prisioneiro naturalmente respondia que de tiro Aí o carrasco ria e dizia pois vai morrer é de faca e o degolava Quando o degolador de serviço se cansava passava o cutelo a outro e ia comer ou dormir de roncar Do nosso lado também soldado prisioneiro não era tratado como vossa alteza ou vossa excelência ou vossa senhoria Mas era preciso ter em conta que Canudos estava s defendendo Ora quem vai buscar lã não deve reclamar caso saia tosquiado Mas isso já passou não vale a pena ficar remoendo O que importa agora é daqui pra frente e o Conselheiro já deu a entender que não vai bambear Ele deve ter um intento não é desses de ficar pelos cantos chorando a morte da bezerra quando leva uma bordoada Ele vai se reanimando já sorriu hoje umas duas vezes o que não me lembro de ter visto antes Tivéssemos mais uns dois ou três desse cabedal e as coisas teriam saído diferente isto é se os três não brigassem entre eles para decidir quem mandava mais infelizmente é o que acontece quando mais de uma pessoa quer aviar numa mesma comarca Mas em Canudos não havia rixa nesse patamar lá todos seguiam o Conselheiro sem piscar e alei vigorante era a lei traçada por ele No entanto caiu O que foi que traço errado Tanta reza para nada Ou será que reza em demasia prejudica Arrelia Deus e os santos Talvez o Conselheiro já possa explicar com essa tanta meditação que anda fazendo mas quem é que vai perguntar Olhe os caçadores chegando Pedrão com uma cobra enorme pendurada no pescoço como se fosse agasalho e um tatu emborcado na mão E Quim Pisapé vem com um rosário de passarinhos amarrados um pé coitadinhos tão pequenininhos que nem uma dúzia mataria a fome de um menino ainda se tivesse panela água e arroz podiam fazer uma passarinhada ou se tivessem gordura e farinha poderiam aviar um paçoca assim sozinhos não dão para encher o buraco de um dente 17 Cabo Nestor conseguiu matar dois coelhos Baianinho Gonçalves também trouxe um tatu já melhorava mas Sinésio e Boanergio vinham de mão abanando Sinésio enfezado e mancando por ter despencado de um buraco quando perseguia outro tatu e ainda teve de agüentar o desfrute dos companheiros Depois que comeram os bichos assados sem sal menos a cobra que ficou relegada diante da relativa fartura das outras peças até o Conselheiro provou uns fiapos de coxa e gabou a macieza todos arrotaram satisfeitos menos Dedé que achou prudente não se arriscar tão logo e acenderam pitos e se deitaram para jiboiar o sol tinha sumido para eles e um ventinho fresco começava a vigorar Logo seria noite e era preciso resolver se continuariam a marcha ou pousariam ali mesmo Não seria bom consultar o Conselheiro enquanto ainda era dia O Conselheiro achou que não havia necessidade de subir serra no escuro afinal não estavam com os federais nos calcanhares Dormiriam ali no dia seguinte cedo retornariam a subida Mas que não descuidassem da vigilância Vigiai porque não sabeis o dia nem a hora aconselha São Mateus Mas antes de tudo pagar as orações que ficaram devendo Todos de joelhos No dia seguinte alcançaram o alto da serra ainda cedo no começo da tarde e depois de um breve descanso trataram de organizar o acampamento Água não era problema na subida tinham passado por uma pedra que escorria água por várias fendas a água fazendo uma cacimbazinha no chão que até deu para cada um completar ou encher a sua cabaça e beber o que achava que podia aguentar no bucho subindo ladeira Quando precisassem se reabastecer duas pessoas poderiam descer até ali encher todas as cabaças e voltar ao acampamento em uma hora ou menos Caça não faltaria desde que se conformassem a só comer tatu que corriam e coriscavam por todos os lados Abrindo mão do sal da rapadura e do café e se fosse preciso também do fumo que afinal não é nenhum sustento dizem até que tira sustento um bando de homens sacudidos poderia viver muito tempo na Canabrava Então começaram a amansar o lugar para viverem enquanto o Conselheiro se fortalecia para traçar o futuro Felizmente o velho tinha bom tecido apesar da comidinha rala e dos caldinhos que se habituara a mandar para dentro durante anos e 18 anos ela raramente adoecia ali na serra com as coisas de mais sustança que ia ter de comer ele ficava mais fornido de corpo e de cabeça quem sabe até deixava um pouco aquela mania de oração a toda hora aliás parecia que já ia deixando dede que saíram de Canudos só rezaram duas vezes ou melhor uma vez e meia A organização do acampamento foi trabalho de todos cada um na sua especialidade Pedrão e Joaquim Norberto guerreadores mais calejados opinaram sobre os requisitos de defesa Dedé de Donana e Sinésio que tinham sido operários se encarregaram de indicar materiais para os abrigos cabo Nestor e Baianinho cuidariam da cozinha isto é do rancho na linguagem do cabo Os outros forneceriam a caça e o mais que pudessem encontrar para o sustento do bando Bernabé ficaria de enfermeiro acompanhante e secretário do Conselheiro dada a sua experiência de pessoa bem falante Os primeiros dias foram cheios de nós e desencontros agravados pela falta de notícias do mundo isto é de Canudos Que teria acontecido aos guerreiros que teimaram em ficar Como estaria o Beatinho se é que estava de algum jeito outro que não degolado Não pensemos mais no Beatinho como gente viva disse o Conselheiro quando soube dessa preocupação do bando Ele se sacrificou por nós e está em bom lugar Não precisa do nosso choro Mais tarde vamos fazer uma homenagem a ele Vendo que essas palavras não desmancharam as preocupações dos homens o Conselheiro prometeu que em época oportuna autorizaria a ida de olheiros ao arraial Por enquanto era perigoso Ademais meus filhos temos muito que fazer na arrumação da casa que guardamos dentro de nós Para que o lado de fora fique formoso é preciso arrumar primeiro o lado de dentro Ninguém entendeu como podiam limpar o lado de dentro de uma casa que ainda não existia O Conselheiro mesmo dormia debaixo de um jirau esquisito feito de dois paus fincados horizontalmente num paredão da serra as outras pontas apoiadas em 19 duas estacas cravadas no chão o arranjo coberto malemal com galhos secos só mesmo para não dizer que dormia ao relento enquanto os outros todos por enquanto dormiam em locas ou encostados em barrancos De sorte que falar em casa que devia ser limpada por dentro antes de ser arrumada por fora era dificultoso de entender Essa mania que o Conselheiro tinha de pôr máscara nas palavras devia ser resultado do muito ler a Bíblia Tudo que cai no exagero desanda Mas não podiam negar que a presença do Conselheiro era uma espécie de grude forte que segurava todos sem ele nem estariam ali Era ele quem traçava o rumo dizia o que era acertado fazer o que era perigoso Sem ele o bando desfacelava tantos seriam os desafinos Ele tinha um jeito de influir nas pessoas para elas o respeitarem de vontade própria sem que ele precisasse falar grosso Falar grosso aliás não resolve emperrações a pessoa que recebe o ronco obedece se não tem outro jeito mas fica de sobreaviso e na primeira vaza em que pega o outro que quebra vai à forra com juros Grito impõe obediência mas não impõe o respeito Conforme o prometido passados dez dias na serra o Conselheiro autorizou a ida de dois homens ao arraial mas não indicou mais Disse que não era adepto de se envolver em assuntos pequenos eles mesmos resolvessem quem devia ir Acertaram mandar QueroQuero e Pedrão um por ter cara de simplório e assim poder mais fácil enganar os federais o outro por ter experiência de espionar soldados apanhada no tempo que serviu com João Abade Pedrão e QueroQuero levavam também a missão de angariar suprimentos e vasilhame para melhorar o passadio do bando e mais o que achassem Não se falou em cachaça porque era assunto proibido mas se achassem não iam largar lá E lá em cima o bando foi levando comendo tatu assado sem tempero tomando chás de folhas e raízes que um ou outro conhecesse como inofensivas Bernabé cuidando do velho e passando aos companheiros as mudanças que iam ocorrendo nele por exemplo ele não andava mais tão apegado a citações da Bíblia falava uma linguagem mais singela Disse há pouco que era preciso evitar os erros de Canudos formar outro arraial mais voltado para as necessidades das pessoas não se perdendo tanto tempo com rezas No novo arraial iase rezar claro mas não como em Canudos As rezas agora iam 20 ser entoadas em agradecimento e regozijo não mais para pleitear graças impossíveis Porque de duas uma falou o Conselheiro ou o castigo é merecido e decorre de alguma lei superior que não foi observada e nesse caso nem Deus pode abrir exceção ou é injusto Mas considerar um castigo injusto é blasfêmia do castigo pois não sabe ele que Deus é justo Então é perda de tempo rezar pedindo abertura de buracos no pano da lei Se uma pessoa ou um povo tem direito a um benefício não será ofensa a Deus ou no mínimo impertinência estar cutucando ele com rezas para ele não esquecer de deferir um direito Então ele é relaxado em suas obrigações É nesse assunto das rezas precisa ser muito bem pensado Outro episódio que deixou os homens embasbacados foi o do banho Em Canudos nunca se soube que o Conselheiro tomasse banho Dos guerreiros que tinham contato com ele alguns falaram no cheirum que ele exalava e parece que ele mesmo falou na igreja contra os banhos das mulheres Pois não é que agora vendo o Sinésio lamentar a falta de um pedaço de sabão para lavar o corpo que isso de lavar só com água não tira o encardido o Conselheiro quis saber se estavam tomando banho na bacia da mina Os homens se olharam apreensivos mas não era de preparativo para a censura O que o Conselheiro indagava era se tinha jeito de uma pessoa crescida tomar banho naquela baciinha Sinésio informou que ele e cabo Nestor cavucando com uma estaca pontuda tinham conseguido alargar e aprofundar o poço para caber nele uma pessoa com as pernas encolhidas Pois eu vou experimentar essa bacia Estou precisando limpar o ceroto Também sou filho de Deus disse o velho Só quando o viram voltando da fonte com o cabelo molhado e a camisola em parte também acreditaram que ele tinha entrado para airmandade dos asseados Seria bom ou ruim Era cedo para saber Baianinho Gonçalves disse que não era para agourar mas se lembrava de um farmacêutico em Buquim que sofria de mania de limpeza toamava dois banhos por dia levantava no meio da noite para lavar as mãos e no entanto era um carrasco para a mulher e os filhos a ponto de ter sofrido censura num sermão do padre De que adiantava tanta limpeza por fora E quando Dedé ou foi cabo Nestor lembrou que o Conselheiro estava longe de sofrer com mania de limpeza por 21 enquanto tinha apenas tomado um banho Baianinho repetiu que não era agouro era apenas um aviso porque tem gente que quando era na velhice passa do oito para oitenta e não de repente mas aos poucos O Conselheiro sentouse numa pedra ao sol pediu um pente a Barnabé e ficou briquitando para desembaraçar o cabelo e o pente não achando jeito de entrar naquela maçaroca Para ajudar e também para salvar o pente que era filho único Barnabé disse que cabelo seco penteia melhor e recuperou o pente O Conselheiro ficou desapontado parecendo criança de quem tomaram um brinquedo mas se distraiu olhando os braços as pernas os pés parecia não acreditar que eram dele fazia tempo que não os via sem o cascorão Os outros notavam admirados aquela curiosidade nova do Conselheiro com o próprio corpo e ninguém teve coragem de fazer uma brincadeira de dizer um pilhéria Foi aí que o Bernabé entendeu e depois explicoi aos outros o Conselheiro era uma pessoa tão limpa de malícia que não passava pela cabeça de ninguém uma mínima idéia de caçoar dele por mais criancices que ele fizesse Finalmente chegaram Pedrão e QueroQuero e mais um menino mafrelo os dois carregando sacos amarrados dois a dois pelas bocas e pendurados ao ombro e tocando um burrico também carregado Quando ouviram o bater de cascos e as vozes os homens prepararam suas armas e tomaram posição de defesa mas logo cabo Nestor que estava de guarda deu sinalpara relaxarem Todos largaramas armas e foram descendo ao encontro dos que vinham chegando queriam saber as notícias que no momento interessavam mais do que mantimento As perguntas saíam atropeladas muitos falando ao mesmo tempo Pedrão pediu calma primeiro eles precisavam tomar fôlego vinham subindo serra há três dias pensavam que era passeio Depois não seria correto darem as notícias sem a presença do Conselheiro Isso sossegou a curiosidade geral e sem ela atropelando os homens se lembraram de ajudar os expedicionários e os dois puderam acabar de chegar aliviados das cargas até o menino achou quem o socorrese num meio em que criança só é vista na hora de receber castigo Quem é o franguinho perguntou Dedé 22 QueroQuero explicou que era o Dasdor que encontraram escondido numa loca no arraial E afilhado do Beatinho Pedrão completou Mas não adianta perguntar pelo padrinhho Ele não sabe Chegaram ao altp descarregaram Primeiro que tudo o menino correu para o Conselheiro ao vêlo sentado na entrada de seu abrigo olhando o tempo distraído O menino ajoelhouse diante dele e pediu a bênção O Conselheiro benzeuo mecanicamente depois como acordando acariciouo na cabeça e disse É bom ver você de novo Dasdor Mas se levante Pedrão e QueroQuero também tomaram a bênção mas não se ajoelharam Os outros que não estavam chegando de viagem ficaram em dúvida se não seria falta de respeito não pedirem a bêncão eles também E agora Parece que o Conselheiro notou o embaraço e resolveu o assunto de vez De agora em diante acabam as bênçãos e ajoelhações Agora só quem ainda toma bênça aqui é o Dasdor porque é órfão e ainda não tem barba Não quero mais bodes velhos se ajoelhando pra mim e babando na minha mão Basta um bomdia um suscrito Nem de manhã cedo meu bom Jesus Era o Bernabé perguntando Basta um suscrito repetiu o Conselheiro em um tom que encerrava o assunto E agora vamos ver que ramos de oliveira os nossos pombos trazem no bico Pedrão e QueroQuero tinham chegado às imediações de Canudos no começo da tarde de 17 de outubro sem saberem que era domingo Acharam tudo muito esquisito nem canto de galo nem latido de cachorro nem pancada de machado cortando lenha Seria domingo por acaso Mas em que parte do mundo galo e cachorro respeitam o silêncio do domingo Achando tanto sossego um mau aviso combinaram de passar o resto da tarde e a noite amoitados e no dia seguinte não muito cedo saírem de fazendo de vaqueiros na direção do arraial Convinha que não andassem juntos para no caso de um ser presoo outro quem sabe escapar para dar a notícia Para todos os efeitos não se 23 conheciam e toda noite se possível se encontrariam naquele lugar onde iam dormir para trocar informações Eles estavam certos em serem prudentes pois seguro morreu de velho e onça se alimenta de bicho desleixado mas no caso deles foi trabalho e tempo perdidos o grosso dos soldados já tinha deixado Canudos em três levas no dia 10 no dia 12 e no dia 13 Ficaram dois batalhões para fazer a limpeza ou seja matar quem ainda aparecesse nas imediações do arraial mas faltos de provisões de boca esses também logo descamparam Antes de deixarem o esconderijo na segundafeira Pedrão e QueroQuero foram achados por uma mulher Maria Hermengarda Marigarda que catava lenha para o almoço Passado o susto de parte a parte Pedrão falou primeiro perguntando pelos soldados Soverteram Não ficou um para remédio se soldado é remédio para alguma coisa Graças a Deus e ao bom Jesus Conselheiro persignouse Foram assim sem mais nem menos insistiu Pedrão Foram uai Não tinham mais ninguém para degolar Jesus do céu que mortandade Quem sabe ficou algum escondido ou desgarrado Faz dias que não vejo nenhum O último um meninote matou a facão Fez mal eu acho O soldado estava tão ruinzinho Pedi que não matasse o menino não me ouviu Disse que estava vingando o padrinho dele E esse menino Escapou Anda por aí como alma penada Passa horas no monturo do arraial Vai acabar leso E a senhora Escapou de que jeito Me amoitei E tive proteção divina 24 Os dois ajudaram DªMarigarda no trabalho de catar lenha e nessa cata sabendo que não havia mais soldados por ali QueroQuero matou um tatu a tiro de garrucha o que foi grande socorro porque ultimamente ela só vinha comendo mexido de flor de mandacaru ou de miolo de cabaça as vezes um quibebe de mamão quando achava O menino andou levando pedaços de carneseca sapecada de toucinho costelas tudo exalando mau cheiro ela desconfiou que não fosse de bicho de quatro pés e refugou Enquanto Marigarda preparava o tatu Pedrão e QueroQuero foram dar uma espiada no arraial ver como tinha ficado e também esperando encontrar o tal menino que tinha matado um federal E o que viram foi de cortar o coração mais endurecido em horrores como era o deles Já de longe um cheiro virulento de carne podre só podia ser mas com uma diferença alarmante Uma coisa é cheiro de carniça de bicho horrível mas esquecível quando a fonte dele é afastada Outra coisa era aquela ofensa que parecia atacar a pessoa bem no fundo do ser e de lá ir se soltando e se espalhando como corante na água talvez por identificar naqueles caminhos uma semelhança um parentesco e querer deixar neles uma advertência como dizendo não me repila assim vocês vão cheirar um dia é melhor se acostumarem É um cheiro que todo ser humano reconhece logo mesmo da primeira vez que o sente o cheiro antecipado dele mesmo Pedrão e QueroQuero nada falaram sobre aquele cheiro mas ficaram sabendo imediatamente o que significava Foi aí que prestaram atenção nos urubus Urubu no céu da catinga não é raridade eles estão sempre lá observando escutando esperando Nada do que se passa cá embaixo escapa ao escrutínio deles Qualquer vivente que cambaleia passa a ser vigiado particularmente e já é contabilizado como ganho a posse e sequente consumo sendo questão de tempo Quando o bicho cai ainda é preciso esperar que ele pare de mexer Urubu não tem pressa e não aborda animal vivo não dá prejuízo a criadores Bobagem dele ter escolhido o preto para vestimenta Se ele fosse branco não seria tão malquisto 25 Andando calados para não terem de comparar suspeitas mas pensando e deduzindo quando Pedrão e QueroQuero perceberam já estavam bem dentro do arraial Os escombros que vinham encontrando se repetiam monótonos como se um desatino de boiada tivesse passado por ali demolindo tudo o que encontrasse Por algum tempo a vista da destruição os fez esquecerem o cheiro de carne podre e eles continuaram andando O fogo também tinha dado a sua ajuda Havia lugares em que o monturo era puro carvão aqui e ali ainda fumegando Era difícil reconhecer em que parte do arraial estavam era tudo repetido igual não se distinguia nenhuma referência que lembrasse Canudos E os cachorros os gatos as galinhas as criações que antes zanzavam por toda parte ciscando brigando latindo bodejando para onde teriam ido De repente um fenômeno Quando olharam para dentro de uma cratera escancarada bem no meio de uma viela Pedrão viu uma coisa se mexendo lá dentro no formato de uma grande pedra abaulada Modo que tem uma coisa mexendo lá dentro Vigie só disse ele ao companheiro QueroQuero olhou não viu Precisou insistir para acostumar a vista Tá mexendo Bem ali um bocado pra esquerda Será que quer sair falou Pedrão ajudando QueroQuero continuou olhando acabou vendo Não é que tem mermo Que coisa mais esquisita O que é que será Pedrão agachouse na beira do buraco firmou a vista a mão em pala ajudando atinou Deu uma risada e disse Sabe o que é Sei não disse o outro Vou ajudar Tem telhado e não é casa Tem cabeça não é prego Tem pernas não é cadeira Sabe andar mas não sabe correr 26 Pode parar que já sei disse QueroQuero Não sei é como o ladrisco foi parar lá Foi a salvação dele parece Vamos tirar Pra quê Não vai salvar ele Ai ele morre na certa Não tem o que comer Cá fora também não Jabuti não come terra nem cinza Vou tirar assim mesmo Depois que se arranje Não teve a sorte de escapar entrando ou caindo aí Quem sabe a sorte continua ajudando De mais a mais se diz que esse bicho dá sorte Vamos ajudar ele pra ele ajudar a gente Sabendo o quanto ele e os companheiros lá na serra precisavam de sorte QueroQuero parou de resistir Quem está com a vida desarrumada vai lá desafiar os poderes Vamos oxente E sem esperar instrução ou sugestão escorregou para dentro do buraco Mas ficou lá sem expediente só olhando o bicho Pega pelas beiradas do casco orientou Pedrão O outro fez isso Levantou o jabuti como quem levanta uma laje e depositou na beira do buraco Era pesadinho O bicho ficou imóvel a cabeça escondida as pernas encolhidas Assim ficaria relativamente protegido se o inimigo não tivesse um machado um facão afiado uma lança pontiaguda Facão tinham mas não pensavam em usálo Os dois homens ficaram olhando esperando uma reação do bicho E agora Fizemos bem Talvez ele preferisse ficar no buraco e agora era tirado contra a vontade Às vezes a gente pensa que faz um bem e faz é maldade Vamos jogálo de novo e esquecer que o vimos 27 Estavam nisso cada um pensando no mesmo sentido e olhe o bicho tremelicando parecendo uma laje mal assentada Botocou a cabeça resvaloua para um lado para outro Tremelicou de novo e deu uns passos lentos de jabuti Pedrão e QueroQuero continuavam olhando ainda em dúvida se ele não ficaria melhor onde tinha se escondido E nessa preocupação não viram que um outro personagem se aproximara O Viramundo O jabuti do meu padrinho Estou caçando ele há dias Onde acharam Era um menino magrinho alourado de uns doze treze anos de físico porém o olhar indicando mais idade O que é que vão fazer com ele Judiam dele não Era do meu padrinho Eu quero ele E quem é o seu padrinho perguntou Pedrão Antônio Beatinho E cadê ele Mataram Os soldados Pedrão e QueroQuero se olharam embaraçados A gente conhece muito o Beatinho Como é que não conhece você Eu não acompanhava ele Ele não gostava Mas punia por mim Houve uma pausa Os homens ficaram olhando o jabuti que o menino acariciava no casco como se o bicho sentisse Ou sentia A gente entende disse Pedrão finalmente E agora Agora o quê o menino quis saber Onde é que você mora perguntou um dos homens 28 Moro com DªMarigarda Às vezes E o que é que faz aqui Olhando Derrubaram tudo Tocaram fogo QueroQuero cutucou Pedrão com o cotovelo e disse Fala para ele e fez sinal com a cabeça na direção da serra Pedrão olhou o menino demoradamente que por sua vez olhava as ruínas fumegantes Pedrão avaliando o menino esse parece que com medo de cometer uma traição ao arraial se deixasse de olhar Por fim tendo boa nota ao menino Pedrão falou Canudos acabou não nenen Acabou aqui mas vai nascer de novo em outro lugar Não é Quero Adonde perguntou o menino sem maior interesse Vem com a gente O menino pensou parece que consultando Canudos pedindo licença Olhou para Pedrão para QueroQuero e disse Vou pensar Pois pense Isso aqui não presta mais disse QueroQuero Como é a sua graça Dasdor Dasdor Ixe Você é mulher Sou muito homem disse o menino já se enfezando e se afastando deles Precisa postemar não nenen Falei porque até hoje só conheci Dasdor mulher Se você diz que é homem a gente não põe dúvida Não é Pedrão Justo Hei espere ai Não foi você que matou um soldado Matei muitos 29 Como foi que escapou deles Meu padrinho tinha arrumado um lugar para me esconder quando chegasse a hora Antes de se entregar ele me mandou pra lá Mas eu saía de noite Uma vez quase me pegaram Minha sorte foi que tinha muito defunto no chão me joguei no meio deles Os homens se olharam de novo O menino era crismado sim E o Conselheiro Os soldados desenterraram ele Um traidor mostrou o lugar Desenterraram e cortaram a cabeça pra levar Depois degolaram o traidor Bem feito QueroQuero encostouse em Pedrão e perguntou em voz baixa se não estava na hora de contar a verdade Pedrão sacudiu a cabeça indicando que não E vocês Como foi que escaparam E agora Era preciso dizer alguma coisa concreta para não passarem por fujões O menino era atilado A gente foi fazer um serviço para bom Jesus Conselheiro disse Pedrão Hum Um serviço Que serviço Você vai saber E vai gostar É só vir com a gente Pra onde Está especulando muito Não é obrigado a ir Mas se for não se arrepende O menino pensou Parece que estava difícil decidir DªMarigarda pode ir também Uai se quiser pode Não é Quero Até que vai ter serviço pra ela Se ela for eu vou decidiu o menino 30 Então vamos embora daqui Chega de ver urubu e cheirar carniça DªMarigarda está fazendo almoço já deve estar pronto Como é que se assa um tatu Há várias maneiras e DªMarigarda tinha a dela Depois de degolálo para que o pobrezinho não sofresse o que ia ser feito com ele ela abriuo ao comprido pela barriga e retirou as vísceras Não o lavou por dentro porque tatu não se lava Com a faca desapregouo do casco mas só dos lados Preencheu esses vãos laterais com sal e salgou tambéma abertura da barriga fez um buraco de cada lado do casco perto da beirada e forçou o casco a se embocar pelo avesso Enfiou o espeto pelos buracos feitos no casco e levou a peça as brasas Enquanto ele assava ela foi enterrando umas raízes de mandioca do borralho para acompanhar o assado Quando os três chegaram ao racho as mandiocas esfriavam na sombra soltando uma fumacinha azulada e sadia e o tatu já assado e também cheirando a gostoso esperava longe das brasas mas ainda ao alcance do calor Comeram calados Pedrão e QueroQuero porque há tempos não provavam comida feita por mulher e queriam aproveitar ao máximo a regalia O menino também não falava porque tinha dúvida se fizera bem em prometer ir com aqueles homens e repassava os prós e os contras E DªMarigarda porque achava que onde tem homens calados mulher não deve piar era princípio da educação dela Devagar saboreando aproveitando tudo minuciosamente quando viram não tinha mais o que comer tatu e mandioca tinham sumido e por sorte na hora em que a fome também acabara ou se recolhera aos recantos onde habita quando está atendida Só depois que arrotaram começaram a conversar mesmo assim numa batida preguiçosa O que é que pode haver de melhor do que pessoas satisfeitas de estômago sem problema mordendo o calcanhar jiboiar o assentamento de uma boa comida entre amigos Enquanto DªMarigarda que não era de ficar muito tempo parada dava uma arrumaçãozinha no rancho e no terreiro ajudada pelo Dasdor que cobria os restos de brasa com cinza para aproveitálas mais tarde o Pedrão deitado de costas no chão disse 31 para QueroQuero também deitado perto que eles precisavam fazer diligência para levar alguma coisa mais para os companheiros além de notícias Já pensei mas não estou vendo nenhum sobejo Parece que os soldados passaram o pente fino nisso tudo aí antes de irem embora Édeveras Mas quem sabe se um pente mais fino ainda não acaba recrutando uns restolhos A gente pode aventurar Mas a esperança é pouca Esse menino aí o Dasdor ele é muito expedito Pode ajudar Ó Dasdor O menino acudiu agarrado à vassoura de gravetos com que juntava o cisco Eu e o companheiro QueroQuero precisamos levar coisas de comer e de cozinhar lá pra onde estamos acampados Tem gente passando apertos lá Você que tem zanzado por aí tudo pode ajutorar O menino pensou coçando o peito do pé com a planta do outro Cuspiu para um lado e falou O sior diz mantimento Farinha rapadura toucinho sal essas coisas Eu não ia mangar com o amigo exigindo tanto Mas uma farinhinha uma rapadurinha um salzinho já servia Não quer carneseca nem toucinho Aí já é o amigo quem a modos que está mangando É não A gente arruma Pedrão sentouse rápido e disse a QueroQuero Escutou essa companheiro Ele vai fornecer até toicinho e carneseca pra nós Vendo que o companheiro dormia falou só para o Dasdor Você é vendeiro Dasdor A gente não tem cobre não 32 Mantimentos é meu não É das tulhas do Conselheiro Quem zelava era meu padrinho Está bem guardado e vai perder Quer levar leva Algumas coisas já estão estragando Pedrão olhou para ele com mais respeito ainda O semvergonha era mais prestante do que muito marmanjo Tinha que ir com eles Em último caso abriria o jogo e contaria sobre o Conselheiro Aliás o segredo não era mais tão necessário segredo só se justifica quando há perigo de espalhar Ali agora não tinha mais ninguém além de DªMarigarda e do Dasdor que nem podiam continuar vivendo naquele cemitério Mas como nada neste mundo é garantido de pedra e cal vamos que aparecessem outras pessoas de supetão como eles dois apareceram Convinha ir tenteando por enquanto Acho que está na hora de você perguntar para DªMarigarda se ela quer ir com a gente disse Pedrão cortando os próprios pensamentos Dasdor cismou e disse que achava melhor que o Sr Pedrão mesmo fazer isso se ele Dasdor falasse ela podia achar que era invenção de menino DªMarigarda tinha acabado a sua lida e agora puxava fumaça num cachimbinho de barro sentada num cepo na porta da rancho Pedrão levantouse chegouse perto dela Caçou um lugar para sentar sentou no chão mesmo DªMarigarda que mal pergunte a senhora é sozinha Agora é eu e Deus Marido morreu no combate do Calumbi Deus tenha benzeuse E muito bem tido emendou Pedrão se benzendo também Depois de uma pausa de respeito ao guerreiro continuou O motivo do meu especular não é maldoso Como asenhora já deve ter compreendido este lugar aqui acabou Não acha que é tempo de procurar outro Aonde meu senhor Me diz 33 Se a senhora está nos casos eu sei de um Não digo que seja bom mas é melhor do que este Ela soprou uma baforada comprida e disse olhando para longe Quer que lhe diga o nome meu senhor Depois que o bom Jesus Conselheiro finou não tem mais lugar bom no mundo Não pra mim Novamente a dúvida abrir ou não abrir as cartas Vamos ver se conseguimos algum resultado sem entregar tudo Eu sei que sem o Conselheiro o mundo minguou Mas será que ele morreu mesmo A senhora viu ele morto Eu mesma não Mas o Dasdor disse que soube que desenterraram o corpo dele e cortaram a cabeça pra levar a prova Será mesmo que esse corpo que desenterraram era o do Conselheiro Como é que não pode ser Dasdor ouviu uns soldados alando isso ele estava fingindo de morto pra não ser morto Chegou aqui chorando Dasdor vinha acompanhando a conversa de perto mas só entrou quando foi chamado Você conheceu bem o Conselheiro Dasdor Garante que o defunto que desenterraram era ele perguntou Pedrão Eu não vi o corpo desenterrado nem a cabeça que cortaram Eu vivia escondido Mas os soldados falaram que era sem saberem que eu escutava Vejo tudo muito enfumaçado disse Pedrão E vendo QueroQuero acordado se espreguiçando falou para ele também Olhe aí Quero Parece que andaram contando leréia pra gente lá no trabando Consoante o quê perguntou o outro Consoante o Conselheiro não ter morrido 34 QueroQuero pensou se situando Finalmente falou uma fala dessas que não avançam na conversa só servem para não deixar a peteca cair É é Que coisa né A gente fica sem saber E se não morreu insistiu Pedrão Aí seria bom demais Aí quem sabe um dia ele voltava disse DªMarigarda Mas não pra cá disse Pedrão Por isso acho que devemos nos reunir em outro lugar Até já tem um indez se juntando pra receber o bom Jesus Foi de lá que viemos eu e QueroQuero e é pra lá que vamos Quem quiser nos acompanhe Dasdor vem Não vem Dasdor S ó se DªMarigarda for Ela bateu o cachimbo na palma da mão pra esvaziálo caçou um buraco na parede para enfiálo e só então falou Esse lugar que vocês falam é muito longe Por enquanto não Depois a gente vai mudar pra outro que pode ser longe Nesse primeiro a gente fica só o tempo requerido para aclarar umas coisas e tratar de uns companheiros doentes Hum Então proponho outro arranjo Quando vocês estiverem pra deixar esse lugar onde estão agora vem aqui e me avisa Não posso largar tudo de repente também tenho minhas coisas pra aclarar Mas Dasdor pode ir indo Não precisa ficar me pajeando Ouvindo isso Dasdor respondeu meio enfezado que então ele ia com os homens E não vai se arrepender disse Pedrão E você mesmo podia vir apanhar DªMarigarda quando a gente marchar de vez Levantouse se espreguiçou Então a gente desacampa amanhã hein Quero Dasdor cadê aquele sortimento que você prometeu 35 Passaram o restante do dia reunindo os mantimentos e o vasilhame que arrecadaram nas ruínas até um resto de rolo de fumo acharam meio sapecado por fora mas ainda aproveitável E depois que reuniram tudo viram que estavam com um problema como carregar tudo aquilo serra acima O jeito era podar a ambição e levar só o que aguentassem nas costas a menos que alguém quisesse fazer uma segunda viagem Está aí no que dá a gente ter os olhos maiores do que as costas Mas não tiveram que se preocupar com esse problema por muito tempo Quando DªMarigarda socava um punhado de café que havia torrado da despensa do Conselheiro Pedrão e QueroQuero sentados perto olhando com cigarros já preparados esperando a bocadepito ouviram bufos e batida de cascos na macega perto Prudentemente pegaram suas armas e se resguardaram DªMarigarda continuou tranquila fazendo o seu trabalho o pó já estava quase no ponto que ela gostava nem muito fino para atravessar o pano no coador nem aquirerado para não soltar gosto na água fervente A única providência que ela tomou foi se virar de banda para o rumo do barulho e assim proteger o peito do perigo de um tiro isso aprendera ouvindo conversas dos defensores do arraial tiro de lado se não pegar a cabeça não é tão perigoso Peito do perigo de um tiroisso aprendera ouvindo conversas dos defensores do arraial tiro de lado se não pegar a cabeça não é tão perigoso Quando o barulho se resolveu em figuras era Dasdor montado em pelo num burrico governado por cabresto de embira Pela alegria dos dois homens logo que compreenderam o que viam o menino só podia estar chegando do céu Olhaí DªMarigarda Pensei que tinha perdido para sempredisse Dasdor escorregando do lombo do burro e abraçandoo pelo pescoço Adonde você achou essa prenda Dasdor Esse bicho vale ouro em pó disse Quero Quero É meu É o Ruibarbo Meu padrinho me deu Pensei que os soldados tinham levado Ou matado Ou então levaram e ele fugiu Ó Ruibarbo Eta bichinho bom Com o Ruibarbo de Ouro carregado Pedrão e Quero Quero também com cargas para levar nas costas e a matula que DªMarigarda ficou de aviar era só esperar o 36 amanhecer para pegar a estrada O único aborrecimento que tiveram na partida foi com o Dasdor que não era visto desde muito cedo fazendo pensar que tivesse desistido de ir e se amoitado de novo Se é assim vamos sem ele não estamos aqui para implorar Então até mais ver DªMarigarda Deus lhe pague por tudo Ah e dê um cascudo no tratante se ele aparecer Suspende o cascudo olhe ele chegando com um saco nas costas parece pesado Assim com o burrinho Ruibarbo carregado os homens também cada um a sua carga e o menino com um saco misterioso nas costas devia ser alguma surpresa dele para o bando chegaram no alto da Canabrava da maneira que ficou relatadoantes até o ponto em que Dasdor se ajoelhou aos pés do conselheiro Sabendo então que os Anticristo como os chamava tinham ido embora e que em Canudos só restava uma mulher sozinha o Conselheiro decidiu abreviar a estada na Serra Mas quando ia comunicar a decisão ao bando teve uma inspiração Vamos acabar com a praxe antiga de uma pessoa só por mais chefe que for baixar decisão para um grupo Por causa dessa praxe muita coisa andou torta em Canudos Vamos fazer assim uma experiência discutir os assuntos em reunião pelo menos com os mais discernentes Todo mundo opina depois se conta os votos e o que a maioria decidir fica valendo Alegria é como gravatá uma fruta gostosa encastoada num arranjo cercado de folhas espinhentas O Conselheiro ficara alegre ao saber que o estratagema de passar por morto tinha pegado mas saber o fim final dos derradeiros defensores da praça o deixara consternado Que a resistência desesperada foi bonita foi mas teria sido útil a morte dos guerreiros É verdade que eles ficaram porque quiseram e contra a vontade do conselheiro O consolo então era reconhecer que foi bonita E se tivesse chegado até ele o relato do repórter pimenta da cunha na correspondência que mandou para o seu jornal mais consolado ficaria ao saber que canudos não se entregou precisou ser tomado palmo pelos atacantes e que os últimos guerreiros a tombar foram três homens um deles já idoso e um menino Pena que não se ficou conhecendo os nomes deles 37 Falando a uns jagunços que ele ouvira comentando os seus momentos de abatimento quando todos ali deviam soltar foguetes por estarem vivos e com planos para a construção de um novo Canudos o Conselheiro pela primeira vez abriu uma fenda para o seu pensamento mais íntimo disse que não tinha certeza se não devera ter ficado para fazer companhia aos valentes que morreram lutando Logo sacudiu a cabeça com isso sacudindo também a tristeza e falou para os companheiros reunidos Ando pensando cá umas coisas e desejo saber a opinião dos senhores Houve um momento geral de cabeças umas para a direita outras para a esquerda cada um querendo ler nas feições do companheiro do lado o que ele deduzia daquela mudança do chefe Mas quem deu a explicação foi o próprio conselheiro Vejo que os senhores estão estranhando esta minha conversa e não é para menos Antes eu resolvia tudo sozinho e dava as ordem Isso vai mudar aliás já mudou e expôs a idéia já de deixaram logo o acampamento na Canabrava e procurarem um lugar outro para a nova comunidade que seria como que a continuação de Canudos mas uma Canudos passada a limpo melhorada com as lições aprendida com a derrota Porque é que a gente não pode reerguer Canudos lá mesmo Os alicerces estão lá Não é mais fácil reerguer o antigo em vez de principiar tudo de novo em outro sítio Sem querer contrariar a alta competência do bom Jesus era o Boanérgio Guerreiro falando Peço perdão pelo atrevimento de falar o meu pensamento O conselheiro olhou o jagunço primeiro com um ar de lástima depois de compreensão E vendo que os outros pareciam esperar uma lambada de reprimenda ao atrevido Boanérgio percebeu que ali estava uma oportunidade de ser mais mestre do que chefe Preste atenção Boanérgio Primeiro você fez muito bem em ter falando Se eu não souber o que os companheiros pensam fico apalpando no escuro De hoje em diante cada um aqui tem obrigação de dizer o que pensa nas reuniões como esta não resmungando pelos cantos Por enquanto é obrigação quando se acostumarem passa a ser um direito Segundo acho que o chão da velha Canudos não serve mais para morada 38 de gente foi pisado pelos cascos do Anticristo sofreu profanação Aquele chão secou morreu Aquela idéia de estar o chão de Canudos imprestável por ter sido pisado pelos federais ninguém tinha pensado agora o Conselheiro falando assim ficava claro que era verdade Como contestar uma pessoa que sabia ver com tanta clareza a arrumação complicada das coisas Ao ver que todos o olhavam Boanérgio se animou a falar de novo E falou com uma competência que ninguém ali esperava de pessoa não afeita a se explicar por palavras Senhor nosso Conselheiro sou vosso devedor pela vaza que me deu de opinar sobre o rumo que devemos tomar Quando falei em voltar para Canudos eu pensava no mais fácil Lá ficaram os alicerces que poderiam ser aproveitados Mas depois que o bom Conselheiro lembrou que aquilo agora é chão emporcalhando pelos pés dos federais caí em mim e me envergonho do que disse Vamos para qualquer outro lugar que o bom Conselheiro com a sua boa cabeça designar Então eu Era só isso com a sua licença Feito esse discurso comprido para um homem sem o traquejo do Bernabé o Boanérgio parou cansado e suando Olhando em volta depois de tomar fôlego e esfriar por dentro ele notou que os companheiros o olhavam de um jeito deferente que ele não soube interpretar se era de aprovação ou de censura Mas o semblante do Conselheiro o sossegou Então suaspalavras não tinham destoado Graças a Deus E olhe ai o Conselheiro falando O companheiro Boanérgio falou como um doutor Gostei de ver que tem aqui mais um que sabe falar bem não é só o Bernabé Por outro lado não gostei porque ele só fez se retratar se desculpar se encolher como se tivesse feito alguma coisa feia Então eu fico na dúvida Será que ele se encolheu foi porque eu falei contra a volta para Canudos Quem sabe se o melhor não é a gente voltar mesmo Eu acho que não Mas pode ser que um de vocês traga um argumento que desmanche a minha prevençãoEu queria ouvir mais para pesar melhor Como eu disse não quero mais decidir sozinho Não 39 é refugo de responsabilidade é pra não continuar impondo a minha opinião Quem sabe o certo sempre é Deus não eu Entenderam Aí o Bernabé que ultimamente andava muito ensimesmado sentiuse cutucado pelo olhar do Conselheiro e achou que lhe tocava dizer alguma coisa mesmo porque os companheiros vinham comentando o seu mutismo ele que tinha fama de falante Sentado mesmo com as mãos enfiadas entre os joelhos ele falou Me agrada ver que o bom Conselheiro se interessa pela opinião de seus humildes seguidores sobre os assuntos respeitantes ao nosso porvir Sendo assim é nossa obrigação opinar sem barreiras nem gagueira Mas tem um porém O pessoal aqui carece de tirocínio nesse capitulo Quando viemos para o lado do bom Conselheiro viemos justamente pra nos arrimas numa pessoa de intelecto superior sabedora dos rumos Agora ele quer que a gente opine Para opinar é preciso pensar antes e nós não temos esse tirocínio Então o bom Conselheiro precisa ter paciência de ensinar Até a gente poder navegar nisso ai temos de continuar nos escorando na sabedoria dele Ele disse que Canudos não serve mais porque o chão lá foi empestado pelas pisadas dos federais Concordo e digo mais não serve porque também a feição do lugar ficou conhecida de perto pelo inimigo e tendo esse conhecimento eles podem voltar quando estiver tudo de pé novamente e ai fica mais difícil a defesa É só isso que eu queria falar Viva o bom Jesus Conselheiro O Conselheiro fingiu que batia palmas só encostando as mãos e disse Ora vivas Coefeito A nossa irmandade é rica em bacharéis Se a nossa guerra tivesse sido guerreada no fórum a gente teria vencido Cada um fala mais caprichado do que o outro sô Parou fechou a cara corrigiuFalei bobagem Relevem Ofendi os mortos O Conselheiro ficou calado de olhos fechados como ficava em Canudos quando se recolhia ao santuário para meditar antes de sua pregação diária Bernabé se ajoelhou no chão duro e persignouse no que foi imitado por alguns outros Alertado talvez pelos estalos de juntas de tanta gente ajoelhando o Conselheiro abriu os olhos A 40 cena meio ridícula deixou o em dúvida se devia aprender ou gracejar Persistindo a dúvida apenas fez sinal com a mão para que se levantassem Aquele era um assunto que precisava ser resolvido o quanto antes A posição dele agora era como a de um carreiro que pretende mudar de caminho mas para isso precisa recuar os bois Boi de carro não sabe andar para trás Parar o carro era o que ele tentava fazer como primeira medida Depois uma temporada de descanso para os homens esgotarem o impulso interior de movimento como acontece com os bois de carro até eles ficarem impacientes para andar de novo E durante a parada aquela doutrinação sistemática e sutil para os induzir a aceitarem o novo caminho Talvez conviesse esticar um pouco mais o remancho ali até os homens ficarem impacientes Afinal ninguém tinha pressa A nova Canudos também não seria feita em um dia e como diz um outro ditado a pressa é inimiga da perfeição Não que ele sonhasse fazer a nova Canudos uma construção perfeita perfeição é obra só de Deus mas no que dependesse dele Conselheiro sairia melhor do que a outra Para começar lá não se ia rezar tanto isso já estava decidido O tempo que antes era gasto em orações agora seria empregado em obras para melhorar a vida das pessoas evitar aqueles sofrimentos do corpo que até entopem a comunicação com Deus Era bem possível que Deus tivesse largado a mão de Canudos justamente para se livrar de tanta lamuriação mal apresentada Na nova Canudos as pessoas iam falar a Deus com clareza já depois de terem trabalhado em coisas úteis para elas e comido com decência Era difícil levar essas idéias aos jagunços sem decepcionálos e ele mesmo não estava sabendo como fazer sem forçar a mão O chefe que não sabe tirar as dúvidas de um chefiado deve desistir da chefia Então enquanto os homens não aprendessem o caminho do novo viver ficariam ali ele martelando Até nos assuntos mais corriqueiros Como este Seu Bernabé Chegue aqui Bernabé polia os dentes com uma pelota de fumo mascado rebuçada de cinza sentado perto De vez em quando conferia o resultado num caco de espelho Ao ouvir o chamado jogou o fumo fora guardou o espelho e se chegou Sim senhor meu bom Conselheiro 41 O Conselheiro olhouo satisfeito vendo ali um homem bem capaz de aprender depressa e de ajudar na educação dos outros Bernabé tinha alguma instrução era desembaraçado de cabeça e nem precisava estar ali podia fazer bonito em qualquer capital do norte não era como a maioria dos jagunços pobres pausrodados que só foram bater em Canudos porque não tinham para onde ir Como é que estamos de mantimentos seu Bernabé Bem servidos meu bom Conselheiro Isto é dependendo do tempo que vamos ficar aqui e do quanto de bocas Ontem chegaram mais duas E de mãos abanando Por algum aviso misterioso ou pelo faro pessoas ainda atordoadascom o desastre de setembro subiam a serra em busca de sossego para recompor suas vidas E também por algum motivo misterioso nenhuma se lembrava de levar mantimentos mas logo que chegavam e sentiam o cheiro de comida não se acanhavam de se colocar bem na vista de quem estivesse lidando com ela Contando as bocas que temos hoje quanto tempo o senhor acha que pode alcançar o nosso sortimento indagou o Conselheiro Bernabé fez um cálculo por alto e informouHomem no certo no certo avalio nuns dez dias Depois disso voltamos a contar só com o que a gente tinha antes tatu pombadebando cobra essas coisas De fome ninguém vai morrer Se o bando não crescer muito bem entendido porque aí a caça também vai raleando Que o bando crescesse era inevitável Havia muito jagunço ainda esguaritado pelas veredas pelo cambaio por Massacará pelo caminho do Calumbi vivendo da mão para boca quando não curtindo fome Desses uma parte tomaria outros rumos dando por encerrado a sua guerra mas outra parte seguiria o cheiro dos companheiros e acabaria esbarrando neles ali na Canabrava ou em outro lugar portanto era preciso sair dali antes que o alto da serra ficasse estrelado de exguerreiros Mas a paragem ali tinha o seu lado rendoso num sentido difícil de avaliar mas que todos sentiam A claridade que iluminava o alto e parecia alcançar o mundo todo vinha produzindo efeitos benéficos na mente do Conselheiros Dali ele via bem o que devia fazer e foi percebendo que antes era preciso entremostrar ao bando o mundo 42 retificado que ele sonhava criar Não era isso o que tinha feito o salmista o profeta o discípulo amado Do que estaria falando o rei pastor quando disse cantai um cântico novo Ou Isaías eis que as coisas de antes já vieram e as nova seu vos anuncio Eu crio céus novos e nova terra e não haverá mais lembrança das coisas passadas Ou o evangelista vi um novo céu e uma nova terra por que já o primeiro céu e a primeira terra passaram Certamente que preparavam o seu público para novidades e mudanças que lhes eram reveladas ou que desejavam ver implantadas Então era tempo mais de ler Bíblia em vez de ficar rezando a esmo como antigamente Será que não tinham esquecido de levar a Bíblia na azáfama da retirada tanta teimosia a desmanchar tantas providências a tomar desatinos a conter como o das mulheres que se atiravam nas fogueiras dos bombardeios levando nos braços seus filhos pequenos Quem sabe o Bernabé se lembrou da Bíblia já que ele o Conselheiro estava muito caído de febre e fraqueza para pensar Senhor Bernabé eu não tenho visto a nossa Bíblia O senhor por acaso dá notícia Trouxe comigo meu bom Conselheiro Está comigo Muito bem pensado Vamos precisar dela Desde então a leitura da Bíblia passou a acontecimento diário na serra Todo fim de tarde o Conselheiro reunia os homens no grande espaço livre do alto ele e Bernabé no centro Bernabé para ler ele para explicar e ampliar Quando a leitura tocava um ponto que ele julgava pertinente o Conselheiro mandava Bernabé ler de novo mais alto e compassado Eis que as coisas de antes já vieram e as novas eu vos anuncio e antes que venham à luz volas faço ouvir Onde seria esse mundo novo ele não sabia ainda e não tinha pressa de saber Em toda a sua vida ele nunca fizera planos precisos para o futuro nem se impacientara com a aparente lentidão da natureza e do mundo Mesmo antes de conhecer as palavras do pregador já achava que tudo tem o seu tempo e que para todo propósito há um tempo e um modo Que adianta querer apressar amadurecimento do Ouricuri ou o dia 43 primeiro vôo do carcará Desde cedo se habituara a acreditar no destino para ele uma espécie de desígnio que a pessoa recebe ao nascer e que terá de cumprir queira ou não Assim para que ter pressa Vamos com os ventos eles sabem o rumo E ouvir os ventos também é bom eles sabem o oculto sopram sugestões tilintam chaves quando a pessoa está perdida Deve ter sido um desses ventos prestimosos o que o levou uma vez há muito tempo a um lugar apartado num desvão da serra de Ariranga quase na divisa com Pernambuco Ele vagava pelos sertões evitando lugares frequentados para esconder a vergonha de um desastre pessoal quando no norte da Bahia mal passada a divisa de Pernambuco de onde descia avistou o recorte da serra de Ariranga nas nascentes do rio Gravatá A atração por lugares altos o puxou para a serra Ele ainda não tinha trinta anos e ainda não era o Antônio Conselheiro mas Antônio Mendes Maciel simplesmente um moço sem rumo e sem projeto Não tinha pressa porque não tinha amanhã ninguém o esperava em parte alguma ninguém sentia falta dele Naquele momento seu único objetivo era chegar ao alto da serra sentar e olhar em volta mesmo sabendo que a paisagem que ia ver não seria diferente de outras vistas de outras serras que já havia visitado Mas o vento que o levava também era errante A certa altura num patamar amplo e abrigado dos ventos encontrou umas pessoas morando A recepção foi fria mas não hostil Aquele homem sem enfeites descalço vestindo camisolão de asilo cabelo e barba compridos podia incomodar mas não podia fazer mal Certamente pediria alguma coisa para comer água para beber uma sombra para descansar e logo tomaria rumo se tivesse de qualquer forma não ficaria se ninguém lhe desse corda Mas detalhe curioso aquele homem quase maltrapilho aparência de mendigo de rejeitado do mundo tinha a presença e o olhar de criatura superior Ele desarrumava as pessoas mas em nenhum mau sentido Quem ele olhasse firme sentia um tremor interno que atraía para ele E em pouco tempo de convívio mesmo silencioso implantouse nos moradores a crença de que aquele homem tão despossuído e tão fraco 44 de corpo tinha dentro uma força e uma qualidade que tocavam a todos tanto que ninguém se animava a tomar liberdades com ele Depois de passar ali o resto do dia e a noite sem pedir nada aceitando apenas um coité de caldo e um canto para descansar no dia seguinte cedo ele agradeceu a acolhida abençoou o lugar e os moradores rezou uma breve oração cujas palavras não foram entendidas e retomou a subida Aqueles moradores sabiam que lá em cima nada havia para acolher uma pessoa sem bagagem a não ser cobras lagartixas asperezas e vento Se o bom homem queria subir que subisse mas não se demoraria não podia Pois demorouse Demorouse tanto que a gente simples da meiaencosta acabou se esquecendo deleNão que a vida ali fosse exigente em trabalhos e atribulações De parte a criação de umas poucas cabras e galinhas e uma ocasional expedição de caça o deles era um viver despreocupados até a fala se resumia num ruído curto exclamações sem entusiasmo grunhidos e muxoxos que só eles entendiam Assim conjeturar sobre as intenções de um caminhante que apareceu pousou uma noite e desapareceu serra a cima estava aquém da capacidade mental deles O homem parou comeu dormiu e se foi disso se lembravam Para onde foi O que fazia Procurava o quê Isso não sabiam nem se indagavam para indagar é preciso conjeturar deduzir racionar funções que não existiam para eles Lá em cima o caminhante descobriu uma pedreira que minava água o que já resolvia um grande problema Continuando o reconhecimento ele viu fincados num barranco dois ou três Ouricurizeiros carregados um já derrubando Subindo um pouco mais uma surpresa dois mamoeiros viçosos que não tinham explicação de estarem ali a não ser que as sementes tivessem sido levadas no bucho de alguma ave já que ninguém teria tido o capricho de plantálos E as muitas aves rolinhas e pombos que viviam ou pousavam no alto da serra não deixariam uma pessoa passar fome e ovo de rolinha e pomba também alimenta O andarilho de barba e cabelo compridos descalço e vestindo camisolão de santo de estampa de feira e olhar de sabedor ficou lá em cima enquanto quis vivendo 45 como pôde fazendo não se sabe o quê talvez nem ele soubesse que estava escorraçando os seus demônios Quando parou novamente na comunidade da meia encosta provocou o mesmo espanto que da primeira vez Era aquele andarilho voltando descendo a serra Há quanto tempo subiu Há quanto tempo vivera lá sem apetrechos de cozinha sem carregamento de mantimento sem nenhum agasalho E sem arma Aquela criatura era um santo Tinha poderes Só podia Ou tinha pacto Pacto não o jeito era de um santo mesmo Quem tem pacto apanha uma cor amareloesverdeada de enxofre solta um cheiro de queimado e não senta em assento duro por causa do toco de rabo Aquele escapava dessas especificações e agora mesmo está sentado num ressalto da pedreira que avança de encosta sem dar o menor sinal de desajeito Mas vamos puxar por ele especular Moque o santinho se agradou lá de cima disse um senhor magro sem dentes barbinha rala no queixo picando fumo com um facão de ponta quebrada operação difícil de praticar devido à desproporção do pedacinho de fumo para a enormidade do facão mesmo quebrado Não sofreu penúria O andarilho preocupado em ver como aquele fumo ia ser picado façanha quase comparável à de tirar bichodepé com enxó não percebeu logo que era interpelado Quando percebeu pediu repetição Mecê perguntava Se o santinho não sentiu penúria lá em cima Nhor não O senhor estava comigo Coefeito Viva ele disse o banguelo sem interromper a batalhacom o fumo Mas como é que o santinho sabe que ele estava lá Ele me disse Ahn Coefeito Tendo concluído depois dos olhares de esguelha que vinha lançando ao andarilho desde o início da conversa que estava diante de um homem manso o banguelo afrouxou a vigilância Dali não viria perigo para ninguém tanto menos que o homem não 46 tinha arma parecia muito fraco e não agüentaria esbarrão nem de criança bastava ver como ele tremia as pernas ao andar Sem que ninguém mandasse nem sugerisse as crianças passaram a pedir a bênção ao estranho no que foram seguidas pelas mulheres e por alguns homens Foi aí que começou nele a transformação queo levaria de simples recusante da sociedade a pregador de uma nova era Quando ele desceu a Ariranga e se enfiou pelas trilhas rudes da caatinga já se sentia escolhido por forças superiores para falar aos desprotegidos e consolálos com a descrição dos castigos que já estavam providenciados para os grandes e poderosos Todos eles Não seria um alvo muito amplo muito vago e injusto Para os grandes e poderosos que estão nos palácios da República desmanchando o que foi feito pelo imperador um sábio que discutia de igual para igual com os sábios do mundo pelo menos era o que ele ouvira dizer É isso Afinal a República está longe e provavelmente jamais chegará ao sertão como o Império mesmo não tinha chegado e justamente por isso por estar longe dos governos é que ali era o sertão E sertão continuaria sendo por muito tempo senão para sempre Então vamos soltar a ronca na República que ninguém sabe o que é nem o que pretende Mas o tempo passado na serra da Arirangadias semanas meses Ele mesmo perdera a contacontemplando a natureza rezando conversando com ele mesmo ficaram na lembrança como a quadra mais serena de sua vida e sempre que sentia necessidade de esquecer um pouco as pressões acabrunhantes do momento ia buscar alívio na lembrança daquele tempo Tendo ouvido de um menino na meiaencosta que o nome do lugar era Itatimundé guardouo como o nome de um paraíso entrevisto nome revigorante que ele murmurava para si mesmo em momentos de abatimento Ora se só o nome já era um conforto não poderia o lugar vir a ser uma das cidades de refúgio de que fala o Livro Sagrado Vamos então para Itatimundé fazer de lá um refúgio de pecadores que estejam dispostos a romper com o pecado uma cidade um reino onde quem entrar se limpa automaticamente 47 PARA O NORTE Quando o bando desceu a Canabrava já era bem maior do que aquele que havia subido primeiro levando o Conselheiro abatido e doente e era bem diferente também em estado físico e em ânimo Mesmo sabendo que não havia mais tropas federais na região não se descuidaram da segurança Boanérgio e cabo Nestor seguiram na frente comandando grupos avançados Indagando se queria dar uma última olhada em Canudos ou no que havia restado o Conselheiro respondeu que ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus e explicou que eram palavras deCristo citado por São Lucas 48 O que fizemos ládisse elefizemos bem Mas se o Senhor permitiu que Satanás destruísse então foi porque a nossa obra não agradou Vamos pois aceitar o castigo e procurar fazer melhor daqui para frente Eu não piso em Canudos nunca mais para não levar nos pés a peçonha que deixaram lá Se alguém quiser ir vá Não veto QueroQuero lembrou a Pedrão que eles tinham ficado de dar aviso a DªMarigarda quando o bando estivesse em marcha E lembrou também a necessidade de prepararem o espírito dela para o encontro com o Conselheiro já que ela o tinha por morto E talvez conviesse levarem o Dasdor para ajudar ele se dava bem com ela e entendia o jeito dela Mas o Dasdor tinha ficado para trás dando ajuda ao Ruibarbo que inventara de enfiar um estrepe num pé justo agora quando o menino briquitava ladeira abaixo com o saco antes misterioso mas que agora se sabia que dentro dele ia o tal Viramundo o jabuti Para que serve um jabuti num bando em marcha senão para estorvar Mas o Conselheiro tinha aprovado o capricho do menino e não ficava bem criticarem nem resmungarem Tendo ouvido parte da conversa de QueroQuero com Pedrão o Conselheiro mostrou interesse em saber que mulher era essa que precisava ter o espírito preparado e para quê Não vendo motivo para segredo Pedrão contou resumindo a história de DªMarigarda Isso aumentou a curiosidade do Conselheiro que perguntou ao sempre presente Bernabé Eu conheço essa criatura Pelo nome não me lembro O acólito pensou vasculhou a memória nada achou que iluminasse a figura descrita por Pedrão Cuido que não Eu também não conheço Deve ser rabo de procissão Rabo de procissãomurmurou o Conselheiro mais para ele do que para fora Pois me interessa conhecer essa criatura Ela deve ter muito o que contar Aí Pedrão achou que convinha preparar o espírito do Conselheiro também para que ele não se assustasse com a soltura de língua de DªMarigarda que era pessoa 49 franca de fala não escondia nem amaciava o que achava que devia dizer com ela era pau pau peixe peixe E QueroQuero ajudou informando que ela não era aferrada a rezas ladainhas e dominus tecus mas era respeitadora isso era Eles tinham feito parada numa elevação na estrada entre Canudos e Cocorobó de onde podiam ver as duas localidades e notar a desolação em volta delas nemde um lado nem de outro havia sinal de vida de atividade humana O Conselheiro fingia indiferença diante desse quadro mas dava para perceber a sua consternação Depois de se recompor por dentro ele se virou para os que estavam perto entre eles Pedrão e QueroQuero e disse Quer dizer então que o único vivente nessa imensidão toda é essa DªMarigarda Me tragam ela aqui Pedrão e QueroQuero se levantaram para cumprir a ordem abrindo mão da companhia do Dasdor que ainda não aparecera com o bendito saco Não tinham ainda desaparecido de vista e foram alcançados por Bernabé que decidira acompanhálos a pretexto de ajudar na preparação do espírito dessa DªMarigarda para o encontro com o Conselheiro orientála para não praticar despropósito ao topar com ele Então o amigo cuida que eu e o Quero não damos conta desse serviço disse Pedrão ao vêlo Deus me livre de pensar uma coisa dessa dos companheiros respondeu Bernabé que tinha horror de quizílias mormente com pessoas curtidas em valentias É que eu sendo mais versejado nesses assuntos que bolem com as coisas de lá de dentro das criaturas cuidei que pudesse dar uma demão Mas se os companheiros refugam não estou mais aqui Deus me livre de arreliar pessoas tão de alto cabedal Os outros dois trocaram olhares e optaram por aceitar o elogio apesar de não terem entendido Bondade de vossa fidalguia disse QueroQuero 50 E pensando melhor acho que devemos mesmo aceitar a ajuda da sua competência discursante Não é Pedrão É deveras Quanto mais sopro na brasa mais depressa vem a lavareda Ele pode ir Mas a decisão por ter demorado parece que não agradou muito ao Bernabé Ter a sua ajuda ameaçada de rejeição já fora desfeita que a aceitação posterior pouco amenizou É ele precisava mudar a sua maneira de agir com aquela gente O próprio Conselheiro não estava mudando o comportamento dele Novos tempos novos modos Para começar ele não ia preparar o espírito de ninguém Chega de querer ser anteparo de trancos alheios quem for fraco para sustos que sofra as consequências afinal a vida é um trançado de sustos cada um que aguente os seus Pensando no que devia ser mudado para entrar nos novos tempos Bernabé se fechou pelo resto do caminho Nas duas ou três vezes que Pedrão ou QueroQuero tentaram atraílo para conversa ele não mostrou interesse Então os outros também se fecharam Quando notou que os dois não estavam ligando ao emburramento Bernabé sentiu o sangue querendo ferver Seria possível Seria possível que os bedamerdas resolveram lhe dar o desprezo Ou seria cisma dele desconfiança sem fundamento Vamos ver Bonito se essa DªMarivalda resolveu levantar acampamento disse E disse alto para ter certeza de que seria ouvido Como nenhum dos dois que caminhavam um na frente e o outro quase emparelhado com Bernabé estivesse fazendo alguma coisa que o impedisse de escutar o comentário ficou positivada a suspeita Então que se aviessem Era só o que faltava Ele Bernabé pessoa qualificada casado com sobrinha de um capitão de Bom Conselho habituado a tratar com gente importante sem fazer feio ficar sabucando uns calcanharesrachados Nem ver Crescessem e aparecessem fossem aprender a falar a ser gente e só depois viessem pedir audiência Homessa Que espevídio Chegaram ao rancho de DªMarigarda quando ela torrava uma panela de fedegoso para tomar como café Não podendo largar o serviço naquele momento crítico 51 quando qualquer descuido pode queimar a torra ela descumpriu a praxe de se assustar ao ver três homens sacudidos chegando de repente E logo que reconheceu Pedrão e depois o QueroQuero numa brecha da fumaça viu que não cabia mesmo o susto Suscrito disse Pedrão QueroQuero apenas tocou na abado chapéu e Bernabé falou alto e explicado talvez para se compensar do muito tempo que ficara calado Licença para acabar de chegar DªMarivalda Marigarda sua criada corrigiu ela retirando a panela do fogo e levando para uma espécie de jirau no terreiro Se arranchem que eu estou muito vexada Se quiserem água tirem do pote Eu não posso nem chegar perto por enquanto É estupora disse QueroQuero Entorta a boca disse Pedrão Bernabé não disse nada Olhou em volta e sentouse no melhor assento que havia um tamborete de couro deixando os outros se arranjarem em adobes ou tocos roliços De agora em diante ia ser assim Nada de meiguices com mequetrefes DªMarigarda deixou a panela no jirau e foi rolando um toco com o pé para dentro do rancho onde ficaria ao resguardo do ar de fora mas perto da porta para poder conversar Estão vindo de onde perguntou ela enxugando o rosto com a barra da saia Enquanto Pedrão e QueroQuero se organizavam para responder como se considerassem a pergunta muito delicada ou ardilosa Bernabé passou na frente e respondeu com naturalidade ao mesmo tempo que descalçava uma botina para ver o que era que lhe incomodava o pé A gente vendo do alto da Canabrava Aliás temos uma surpresa para senhora 52 Deveras Surpresa boa ou ruim É alguma coisa com Dasdor O que é feito dele A última pergunta foi feita a Pedrão e QueroQuero e o QueroQuero respondeu que o menino estava forte tinha ficado para trás por causa do burro que ofendera o pé e também por causa do bendito Viramundo que ele encasquetara em conduzir para onde fosse Então qual é a surpresa perguntou ela ao Bernabé Aliás ainda não sei quem é o senhor Meu nome é Bernabé José de Carvalho e sou seu pacato servidor disse ele ainda às voltas com a botina Ah o senhor é o Bernabé O garantia do Conselheiro Onde o senhor estava quando mataram ele Mataram não dona Ah não Só jogaram as bombas não é Pedrão e QueroQuero riram disfarçado esperando para ver se Bernabé era mesmo desenvolto de fala Ele ganhou essa fama em Canudos e até agora ainda não tinha pisado em falso E era preciso reconhecer o papel dele no descarregar aquela redundância de velhos e estropiados em cima dos federais nos últimos dias da luta Vamos ver se ele ainda não perdeu a embocadura As bombas só machucaram um pouco Ele já sarou e quer ver a senhora Sem delongas Foi aí que DªMarigardaameaçou perder a paciência Olhe aqui senhor Bernabé Mangação comigo não aceito Trato todo mundo bem e de volta exijo respeito Dou pêlo pra deboches não Se quer parar no meu rancho tome tento Vendo que Pedrão e QueroQuero se preparavam para nadar de braçada nas águas de um esperado embaraço dele Bernabé caprichou na resposta 53 DªMarigarda minto Marigarda Lhe aconselho a senhora não dizer mais nada por enquanto para depois não ter que se penitenciar Eu não debocho de homem quanto mais de uma mulher Quanto a respeito eu também sou partidário e não abro mão Nem pra mulher me desculpe A senhora cesse de falar solto e venha com a gente O Conselheiro requer uma palavra com a senhora DªMarigarda arregalou os olhos e piscou muito parece que com isso querendo aclarar as idéias e achar o que responder Olhou para os outros dois e percebeu que eles estavam interessados era em ver que saída ela ia encontrar e não em socorrêla Finalmente o nó do espanto parece que desceu ela engoliu forte umas duas vezes e falou agora mais mansa Seu Bernabé o senhor é pessoa finória foi secretário do bom Jesus Conselheiro portanto deve ter ainda a compenetração do posto Já eu sou uma sertaneja desalumiada mas respeitadora Eu sei que o bom Conselheiro já está no céu o Dasdorviu os soldados desenterrarem o corpo e cortarem a cabeça para levar de prova nisso minto ele ouviu uns soldados falando isso lá entre eles Como é que o senhor quer agora me levar para ver o Conselheiro A senhora conheceu ele Viu ele de perto Guarda as feições dele De perto de perto não Nunca fui de me misturar com aquela chusma de mulheres que viviam em volta dele batendo no peito e desmaiando Vi ele de longe muitas vezes e tenho boa vista Então a senhora vendo ele na sua frente vai reconhecer De banca e panca A menos que ele tenha dito um irmão gêmeo o que não me consta Então a senhora se agasalhe pra não se constipar e venha Fica feio deixar o bom Conselheiro esperando muito tempo falou Bernabé peremptório sem ligar aos companheiros 54 DªMarigarda já não duvidava tanto mas ainda tentou angariar algum apoio de Pedrão e QueroQuero que se mantiveram remotos como se não estivessem ali Largandoos de mão também ela se decidiu Pois vou Mas ai do senhor se for inzona Quando chegaram de volta ao bivaque encontraram o Conselheiro cochilando numa cama de gravetos que os homens tinham feito para ele no chão Isso permitiu que DªMarigarda o reconhecesse prontamente Não havia dúvida era o Conselheiro E vivo olhe aí o peito e a barba arfando com a respiração Como podia ser aquilo O Conselheiro não tinha morrido no fim de setembro diziam que ferido por um pedaço de bomba quando passava da igreja para o santuário durante um bombardeio E o corpo não tinha sido desenterrado depois pelos federais para terem certeza que era ele mesmo tanto fizeram um documento contando isso Então ele ressuscitou E a cabeça que os federais cortaram e levaram para comprovar Onde ele achou outra para ressuscitar Ela olhou mais uma vez andando em volta dele na ponta dos pés Era ele não tinha jeito de não ser E vivo Não era como Senhor Morto que a gente via na Semana Santa Como podia ser isso Partes Milagre Quando achou que DªMarigarda já tivera tempo suficiente para se assombrar Bernabé perguntou em voz baixa se ele tinha afinal escapado do castigo que ela prometera Coefeito disse ela envergonhada O senhor me releva a dureza É o Conselheiro Não tem erro Sorte a minha A senhora tire folga até ele acordar O espetáculo do reconhecimento tinha interessado a todos e quando ela se afastou os outros a acompanharam para poderem conversar sem a preocupação de vigiar a altura da voz DªMarigarda conhecia muitos dos que via reunidos ali conhecia pelo menos de vista e logo que se instalaram a boa distância do velho adormecido ela perguntou a 55 Baianinho Gonçalves o que significava aquela reunião de exguerreiros ali e se o Conselheiro ia voltar para Canudos Sei nada não DªMarigarda A senhora se acalme e espere que o Conselheiro mesmo há de explicar quando espertar Ela tentou o Pisapé nada conseguiu de informação Tentou mais uns dois e só ficou sabendo foi que a parada ali era um descanso ligeiro Então o jeito era mesmo esperar que o homem acordasse Contanto que não demorasse bem entendido E para clareza avisou aos que estavam perto Minha gente vocês parecem que estão por conta do Conselheiro eu não Tenho muito que olhar no meu rancho Vou pitar uma mão de cachimbo Se quando acabar ele ainda estiver dormindo me descampo Se precisarem de mim sabem onde me achar Isso foi dito enquanto ela enfiava uma mão num bolso outra noutro entre os muitos espalhados pelos meandros da saia e ia tirando daqui um fiapo de fumo dali um cachimbinho de barro de cá um quicezinho sem ponta O corte do fumo foi feito com demorosa meticulosidade para não cortar a polpa do dedão nem tirar rodelas muito grossas que dificultam o afofamento Quando avaliou que havia picado fumo suficiente ela escamoteou o quicé e o resto do fumo nos fojos da saia Depois foi afofando o fumo outro trabalho que também foi feito sem pressa rodela por rodela era esfregada entre o polegar e o indicador da mão direita até se desmanchar em felpas Feito isso o todo foi afofado em conjunto cada pelotinha restante desfeita cada nervura de folha expurgada cada semente maior rejeitada Fumar cachimbo requer paciência e o prazer começa já de fornilho mas no sertão é chamado de forno Parece que não vai caber o fumo inchou com o afofamento mas com jeito se consegue é só ir enfiando e apertando não muito para não entupir a passagem do ar Vamos ver Assim está bom Viu Questão de prática Agora é só acender e desfrutar Cadê o bendito fósforo Procura em outros bolsos em outras dobras da saia Será que não veio Está aqui a disgramada uma caixa de fósforos de velinha é bom pra acender cachimbo porque não apaga à toa O resto é questão de experiência de saber equilibrar a pressão do forno com a pressão da boca de vez em quando soprando pelo cabo em vez de chupar tenteando que bom quando o fumo não é bazé este aqui é um baio goiano 56 cheiroso e gostoso ainda no sortimento de Chiquinho da Mota que costumava comer no rancho dela e lá deixar suas coisas de valor quando vigiava com outros as estradas de Cocorobó e Uauá ele também morreu no Calumbi Outros fumantes foram imitando a calmice de DªMarigarda e enrolando seus cigarros enchendo seus cachimbos e logo o espaço que ocupavam ficou parecendo cozinha de rancho quando se queima palha benta para amansar tempestade Logo também o Conselheiro acordou pediu água comeu um coité de sopa de rapadura com farinha e água preparação que uns chamam de chibé outros de gonguinha outros de jacuba conforme o lugar onde nasceu e viveu primeiro mas o Conselheiro chamava de seberaba o que mostra que nome é arranjo artificial sem ligação com a coisa nomeada Terminada a merenda o Conselheiro disfarçou um arroto e notando tanta gente reunida à sua volta como esperando diretriz disse apalpando Onde é que ficamos Ninguém entendeu a pergunta ficou cada um se torcendo como querendo se esconder atrás do próprio embaraço até que o Boanérgio explicou que tinham parado ali para esperar o Bernabé e os outros dois que tinham ido buscar uma DªMarigarda a mando dele Conselheiro É deveras DªMarigarda Então é aquela ali Quando ela enjoar de puxar fumaça mandem ela aqui Foi outro embaraço para os homens Em Canudos nunca ninguém viu o Conselheiro conversar com mulher frente a frente e parece que ele considerava essas criaturas como portadoras de malefícios para os homens Cochichavase nos cantos que ele tinha sido traído por uma mulher na mocidade e desde então nunca mais tivera contato direto com nenhuma outra Mulher para ele qualquer mulher era uma encarnação do pecado da maldade de tudo o que é ruim Na hora das rezas desde do primeiro dia do arraial ele estipulou que o povo devia formar duas procissões separadas mulheres de um lado homens de outro Agora ele querendo falar com DªMarigarda mulher até puxando pra bonita por conseguinte uma das que ele devia mais evitar 57 DªMarigardanão aproveitou a licença de fumar o cachimbo até o fim Quando soube da disposição do Conselheiro parou de chupar o cachimbo para que ele se apagasse Depois enrolouo no lenço para não desperdiçar o restante do fumo e o guardou num dos bolsos Agora de mãos livres deu uma arrumação no cabelo mais por praxe do que por denguice escondendo atrás das orelhas umas mechas teimosas E foi se apresentar ao Conselheiro A bença meu bom jesus Suscristo disse ele sem olhar para ela parecendo encabulado ou já arrependido de têla convocado Mas DªMarigarda que não se embaraçava com pouco pulou por cima do empacamento dele e falou Vejo que o bom Conselheiro ressuscitou com muito vigor graças a Deus e à Virgem Santa Amém minha filha E olhando em volta Malpecado não temos aqui nenhum arrimo para a senhora se abancar Sincomode não meu bom jesus Já cresci tudo o que tinha de crescer Aí o Conselheiro olhoua de frente pela primeira vez e parece que não desgostou O porte mais pra alto sem ser alto o volume mais pra magro sem ser magro o trigueiro do rosto e das mãos mais por efeito do sol do que por mistura de sangue os olhos claros entre marrom e verde o cabelo escorrido já se chamuscando de branco o conjunto lembrava ao Conselheiro sua tia Helena mulher bonita e valente que sustentou por muitos anos uma luta feroz entre os Maciéis e os Araújos no sertão central do Ceará em meados do século A senhora é filha de onde Sou cearense Nascida no Quixadá criada em Baturité Deveras Tive parentes por lá num e noutro desses lugares E a senhora se parece demais da conta com uma tia minha que pelejou ali no redemunho de 58 Quixeramobim Boa Viagem Tamboril Mas isso faz muito tempo A senhora não deve ter conhecido a pessoa de quem falo Diz o nome dela pra ver se eu conheço Deve ter sido uma santa pessoa O Conselheiro olhou para longe depois fechou os olhos rememorando E falou Santa não era Mas era pessoa corajosa cumpridora Defendeu a família enquanto pôde O nome dela era Helena Não me diga uma coisa dessas Helena Maciel Dos Maciéisde Quixeramobim Pois era minha mãe O Conselheiro olhoua afincadamente comparando Não me diga a senhora uma coisa dessas Filha da tia Helena Então a gente é primos Coefeito Como o mundo é pequeno Pequeno e formoso dizia minha mãe Formoso Aí eu discordo Poderá ficar formoso depois que os pecados tantos que o enfeiam forem expurgados Mas isso não seria querer fazer do mundo um céu Se o mundo um dia ficasse limpo de pecado quem ia querer se esforçar para merecer o céu verdadeiro O Conselheiro olhoua demoradamente e nada falou ou por falta de idéia ou por cansaço Por fim desviou o olhar e disse Prima Marigarda esse assunto é alto demais pra ser debatido num acampamento apressado Você com a gente Meu coração quer ir minha obrigação manda que eu fique mais tempo Neste cemitério sem bênção Aqui não vai nascer mais nada tão cedo Na palavra do profeta toda esta terra será um deserto por setenta anos 59 Se o bom Conselheiro me disser para onde estão indo eu sigo atrás depois que resolver um assunto meu Prima nós vamos para um lugar alto chamado Itatimundé Sabe onde fica É na serra de Ariranga Não sei mas acho Viajando ainda sem projeto claro e sem pressa mesmo porque o Conselheiro já contava sessenta e nove anos embora inexplicavelmente aparentasse menos chegaram ao pé da serra de Ariranga nos primeiros dias de janeiro do ano de 1898 quando o presidente Campos Salles mal completara dois meses do seu governo o que os caminhantes não sabiam nem podiam saber Durante a marcha o bando fora crescendo com a incorporação de desgarrados que ia encontrando ou alcançando uns ainda fugitivos de Canudos que vagavam pelo sertão os outros pobres sertanejos andarilhos cuja morada era o espaço coberto pelo próprio chapéu de couro e tendo por projeto de vida os expedientesque se pode encaixar no curto tempo que se chama hoje Alertado pelos homens práticos do núcleo inicial o Conselheiro reuniu o bando e explicou que não tendo eles despensa precisavam se organizar em grupos para garantir a alimentação e cuidar de alguma produção para amanhã Todos teriam de trabalhar inclusive as mulheres que nessa altura já eram seis não contando DªMarigarda que ainda não os havia alcançado Alguns dos mais experientes veteranos de Canudos ficavam encarregados de arrebanhar perto ou longe animais pequenos de pena ou de cascos para começarem criação Todos tinham entendido Pareceu que sim Ele sabia que o bando ia ter muito trabalho durante pelo menos um ano até as coisas começarem a engrenar mas não queria ser consultado a toda hora sobre providências a tomar porque tinha assuntos mais importantes a pensar Se alguém achasse que não tinha vocação para sacrifício a estrada da vinda era a mesma de volta era só pedir a bênção e virar nos cascos Os companheiros Bernabé Boanérgio Nestor e Pedrão ficavam designados para os trabalhos dos grupos Obedecer a eles era o mesmo 60 que obedecer a ele Conselheiro Todos tinham entendido Mais uma vez pareceu que sim Os guerreiros outros Joaquim Norberto Dedé de Donana Pisapé Sinfrônio Baianinho Gonçalves cuidariam da administração e da ordem do arraial que iam fundar quando fosse escolhido o lugar Enquanto isso não estivesse decidido eles teriam as mesmas atribuições no acampamento provisório Entendido As inclinações de cabeça responderam que sim O sonho de viver em lugares altos nasceu com a humanidade Mas sempre esbarrou em dificuldades que só aparecem quando o sonhador começa a pôr em prática o que sonhou Essas dificuldades não são poucas nem pequenas nem fáceis de contornar tanto que não há muitas cidades altas na história Fortalezas e castelos sim mas não cidades Se a altura é vantagem contra assaltos é também gravame em caso de cerco Depois lugar alto não tem variedade de material de construção o que falta precisa ser levado para cima a força de braços e costas um desgaste de energia que renderia melhor se aplicado na construção propriamente E o decomer E o debeber Água não gosta de subir morro Só em sonho a vida no alto é amena E tem ainda a lei da gravidade que nunca descansa no empenho de puxar tudo para baixo o tempo todo Não foi por acaso que nossos antepassados remotos desistiram de viver em cima de árvore Uma comissão subiu ao alto para avaliar as possibilidades de vida lá Acharam a vista uma estampa Não era como a Canabrava que ficava quase que sufocada por outras serras e morros o Pelados a Favela o Caipã Cocorobó Calumbi De Itamundé se via longe nada para quebrar a vista Bem distante ficavam a serra das Marrecas a oeste a cobra do São Francisco ao norte tomando prumo para entrar em Alagoas a leste e ao sul as veredas e rios que eles tinham atravessado na caminhada Baianinho Gonçalves achou que uma igreja lá em cima ficaria imponentezinha agradaria a Deus e não seria alcançada por nenhum canhão a menos que instalassem um no pé da serra mas aí ele teria de atirar muito a prumo Dedé de Donana que tinha sido ferreiro e sabia da distância entre traçar uma forma na mente e depois armála no real ponderou 61 Imaginar não custa Erguer em baldrames pedra e barro é que são elas Eu sei Estou só cismando disse Baianinho Depois parece que o Conselheiro não está mais tão aferrado a rezas Vocês não notaram Sentados numa espécie de prateleira de pedra no alto da serra olhando o mundo tão grande e fumando seus cigarros e cachimbos eles conversavam sobre o futuro Quem respondeu primeiro a indagação de Baianinho foi Sinfrônio exbraço direito de João Abade o sinistro segundo o repórter Pimenta da Cunha o comandante da rua para os seus homens o chefe do povopara os fanáticos morto no canhoneio das igrejas em agosto É Parece que ele quer tirar um descanso o diziamque pode até ser bom para a arrumação das idéias Eu cá sempre achei que reza demais amolece os miolos Disso tenho o exemplo de um tio meu Depois que perdeu um filho menino em resultado de um corte no pé deu gangrena esse meu tio agarrou de rezar desarvorado andava pelos matos e grotas com uma cruz no ombro entoando ladainhas convidando quem encontrava a acompanhar as pessoas diziam que ficava para outro dia outra hora Ele ficava brabo rogava praga ameaçava Esse tio Lindouro deu demasiado trabalho aos filhos restantes E acabou de que jeito perguntou Quim Pisapé Mal Muito mal Um dia os dois filhos mais velhos que não agüentavam mais aquela latomia de rezas de chamados para rezar de ameaças de castigo e mais as críticas de vizinhos esses dois filhos levaram ele de olhos vendados para um lugar bem longe e largaram lá Antes pediram perdão e tomaram a bênção como bons filhos Mesmo assim foi maldade disse Pisapé Foi e não foi explicou Sinfrônio Eles precisavam trabalhar e aquele homem ali avariado que nem era mais o pai deles perturbando criando desavenças invocando desgraças Era preciso tomar uma providência Às vezes a pessoa pra ser boa precisa se fazer de ruim 62 Ninguém entendeu essa teoria para eles muito nova mas pelo ar pensativo que tomaram viase que a estavam avaliando Quem sabe se nesse encarar o duro Pedrão o implacável Pajeú de voz mansa Joaquim Norberto o filho não tiveram sendo bons o tempo todo Ara pode não De qualquer forma esse não era assunto para ser pensado todo de uma vez era melhor ir aos poucos em pedacinhos e por ora já chegava E para não serem apanhados pela noite lá em cima convinha irem descendo Dedé de Donana ficou encarregado de explicar ao Conselheiro os contraindicados de se instalar o arraial lá no alto apesar da lindeza da vista Há pessoas que não podem se arredar do meio em que vivem sem dar brecha a transtornos São como uma espécie de cinta ou parafuso ou amarrilho que segura as pessoas em seus lugares e as protege e quando se afastam a arrumação se desmancha ou se desconjunta Baianinho Gonçalves era assim Há muito tempo ele vinha tendo confirmações desse seu papel de ligame Quando saiu de perto de Margarido Mendes no combate de Bendegó de Baixo em meados de janeiro para acudir o depósito de mantimentos de Monte Santo ameaçado pelo avanço dos federais o Margarido morre não de bala mas mordido de cobra Quando se afastou do chefe João Caramujo em Cocorobó para levar um aviso a Pedrão na Macambira a força de Caramujo foi atacada pela coluna Savaget e perdeu sete homens Quando desceu da igreja velha na manhã de 24 de agosto para atender a uma necessidade que não podia fazer lá em cima para não faltar com respeito ao lugar santo o sino foi derrubado por um tiro de canhão Agora ás vinte e quatro horas se tanto que Baianinho esteve ausento do acampamento provisório bastaram para que o Conselheiro caísse doente com risco de vida E para mal dos pecados quem entendia um pouco de mezinhas e muito dos ataques do Conselheiro andava em missão longe Era opinião quase que geral que dessa vez o Conselheiro só escaparia por milagre Ele não comia nada suava muito já não reconhecia os companheiros e não dizia coisa com coisa nos raros momentos em que falava Bonito O que fazer numa situação dessa Fizeram uma reunião para debater o assunto e ninguém dava uma idéia ninguém tinha prática de lidar com doente de mal invisível Se fosse ferimento ou machucado era fácil aplicavase no lugar os recursos de praxe toucinho quente esterco 63 de animal urina de gente chumaço de algodão queimado conforme o caso Aquilo era assunto para curandeiro ou doutor e não tinha nenhum perto O velho estava mal talvez nas últimas Sem querer agourar era hora de irem olhando em volta pesquisando um lugar para o enterro E com que ferramentas Como furar sete palmos no chão duro De ferro só tinham facão e já era alguma coisa Com paciência e empenho vários homens se revezando fava para abrir uma cova O problema era retirar a terra para dar lugar ao defunto Com as mãos ia levar um acervo de tempo e sangrar Uma solução mais fácil era ver se não havia nas imediações algum buraco ou fenda natural onde se pudesse depositar o morto e depois cobrir cada um levando um chapéu de terra como homenagem Terra é mais fácil despejar do que tirar mormente quando não se tem ferramenta apropriada para cavar De emergência havia uma outra solução porém essa a maioria refuga uns por pena outros por acharem que cria transtorno no Dia do Juízo quando todos os mortos serão ressuscitados menos os que tiveram os seus cadáveres queimados Melhor não pensar nisso pelo menos por enquanto Como se vi depois tudo isso era preocupação de quem tem mania de querer atravessar a ponte antes de chegar nela Aconteceu que sem ninguém esperar nem pensar caiu lá como do céu imagine quem Da Marigarda E para não dizer que ia sozinha ia com Dasdor que finalmente conseguira curar o machucado do pé do Ruibarbo e seguir viagem montado nele com o Viramundo no colo Foi ela chegar e saber do estado do Conselheiro e já ir arregaçando as mangas da blusa e puxando os cabelos para trás das orelhas e os amarrando com uma embira que tirou da boca de um saco e pondo água para ferver e encarregando Dasdor de vigiar a panela Depois acendeu o cachimbo e saiu para o campo buscando as ervas indicadas para o caso que ela com um rápido olhar no Conselheiro percebeu o que era a nojenta malina podre doença mais de assustar do que de matar mas que ali tinha o agravante da idade Em todo caso sendo ele um homem ainda sacudido apesar dos trancos do destino talvez esse agravante não pesasse Caprichando na mistura e no 64 cozimento das ervas e no encaminhamento das rezas e invocando os poderes de Nossa Senhora dos Males do Meio tudo acabaria bem vocês vão ver Depois de se limpar de todo pensamento mesquinho Da Marigarda foi bater a caatinga Com seu olhar e faro experientes ela procurava o fedegoso manjerioba e a quinarana dois punhados de folha nova de cada um bastavam as olhas de baixo já ásperas de tanto receberem vento com areia não serviam Fervidas ligeiramente em partes iguais o fervor acompanhado de orações apropriadas Depois se apaga o fogo que não pode ser aproveitado para nenhum outro fim Deixase a vasilha esfriando ao ar livre coberta com um pano ralo para dar saída ao quentor trazer o ar gentil para dentro e vedar a entrada de bichinhos de asa que estão sempre boiando no ar alguns tão diminutos que mais parecem poeira A mezinha foi servida ao Conselheiro da primeira vez com dificuldade porque ele estava muito enfraquecido e variava Dois homens ajudaram ele sentar na cama de folhas um ajoelhado de cada lado para não atrapalhar o tabalho de Da Marigarda que era o de fazer o doente beber um coitezinho do remédio o que não foi fácil porque nem ânimo para engolir ele tinha Foi preciso que um dos homens que o segurava abrisse a boca dele apertando de cada lado do queixo com os dedos para que Da Marigarda despejasse a bebida mas boa parte se perdeu Ela trouxe mais e repetiu o expediente até achar que ele tinha engolido o suficiente para uma primeira dose Agora vamos deixar o bom Conselheiro dormir Logo mais a gente repete disse ela A senhora acha que ela vai aprumar perguntou Baianinho que já andava mais preocupado com o enterro e lá dentro se julgava culpado da doença do conselheiro pelo motivo já exposto Garantir não posso quem garante é Deus Mas tenho fé E não será a primeira vez que meus preparos dão certo Fiz tudo direito Deus te ouça Perder o bom Jesus Conselheiro agora seria um desconserto geral Ele não pode espichar agora Deus nos livre Deus te ouça também seu 65 Meu nome é Vergílio mas me tratam de Baianinho Baianinho Gonçalves Me acostumei tanto que se de repente alguém me chamar de Vergílio não vou notar que é comigo Então Deus te ouça também seu Baianinho Os outros jagunços todos mais ou menos atarantados com a doença repentina do conselheiro foram se chegando para a conversa E como se chegavam um a um como é costume de sertanejo Da Marigarda teve de repetir muitas vezes o que já tinha falado ao Baianinho a respeito da recuperação do Conselheiro e cada um dos que chegavam também ia dizendo mais ou menos o mesmo que o baianinho tinha falado do descalabro que seria a morte do Conselheiro naquela volta E não seria por falta dos deus teouça ditos com forte carga de sinceridade que a comunidade iria ficar sem seu guia insubstituível O remédio de Da Marigarda foi servido mais duas vezes ao conselheiro sempre com a mesma trabalheira de segurálo e praticamente despejar a aguinha goela abaixo Alguns já resmungavam que seria melhor deixar o pobrezinho finar sossegado que quando a bangadonga toca o berrante para um vivente não tem artifício que vigore o jeito é largar tudo e atender O que parece é que o tal berrante não tinha tocado ou se tocou foi por engano No dia seguinte cedo o Conselheiro acordou outro Ainda fraco e empalamado deveras mas os olhos eram novamente de pessoa viva Logo que viu Dª Marigarda armou um sorriso dificultoso acenou com uma mãozinha muito branca e falou Ah minha prima Que bom A bença ela disse emocionada Suscristo Ficou calado por algum tempo os olhos fechados quando os abriu de novo falou Helena Maciel Sonhei com ela Devo ter sonhado Vocês são mesmo muito parecidas Cara de uma feição de outra Helena Maciel O seu nome como é mesmo 66 Maria Hermengarda Marigarda Ela apalpouo na testa no pescoço por baixo da barba proclamou Não tem mais febre agora é tratar de comer Saco vazio não pára em pé Também acho disse ele tentando novamente um sorriso mas não indo além de um repuxo de lábios Ela saiu preocupada com o que ajeita para ele em matéria de comida de resguardo Tinha que ser um caldo de sustança porém não remoso ele não estava em condições de comer coisas pesadas Caldo de quê Ela não tivera tempo de especular mas não acreditava que na dispensa pobrezinha do acampamento vigorasse alguma coisa que servisse para um caldo Alguém teria de pegar um bicho de pena nem que fosse andorinha nem que fosse uma pombinha das almas ou uma rolinha Não foi preciso montar nenhuma armadilha Naquele preciso momento Quim Pasé matava uma cobraespada de uns oito palmos medidos do focinho à ponta do rabo Depois de mostrála a todos ia jogála numa ribanceira perto e alguém gritou que queria a cobra pra comer Comer cobra só em último caso disse Quim Isso não é bicho de comer normal cruz credo Bobagem disse Joaquim Noberto se apresentando como o interessado Cobra é fina iguaria Dá pra cá que eu sei preparar Joaquim Noberto esticou a cobra no chão e assim esticada ela pareceu bem maior do que quando pendurada pelo meio Era até bonita marrom claro cor de terra em cima e dos lados com uns pontos mais escuros aqui e ali e alaranjado embaixo as escamas arrumadinhas como trançado de laço o rabo afinando sem pressa até acabar quase que em ponta de agulha as escamas de baixo já mudando em anéis como em barriga de tartaruga Esticada a bicha Noberto pegou o facão e cortou um naco de um palmo incluindo cabeça e outro pedaço do mesmo tamanho na parte do rabo disse que couro não precisava tirar couro de cobra também se come a menos que se queira curtir para 67 fazer cinto de mulher ou outras coisas mas ele não ia perder tempo com isso queria era comer uma boa cobra gostosa quem quisesse que se achegasse Vendo Joaquim Noberto retalhando a cobra com um desembaraço de quem sabe o que faz Da Marigarda teve uma idéia Será que isso aí não dá caldo seu Joaquim Por que não haverá de dar Isso é como galinha ou tatu qualquer bicho Tanto se come assada cozida frita Depende do gosto e dos recursos Então separe um pedaço pra fazer um caldinho Não tem demora Da Marigarda e cortou um pedaço de quase dois palmos para ela O Conselheiro aceitou bem o caldo nem perguntou do que era E engoliu tão fácil que Da Marigarda achou que não faria nenhum mal ele tomar um pouco mais para reforço O segundo coité também foi bebido todo porém mais devagar Quando virou tudo o doente suspirou arrotou e logo pegou no sono Só então Da Marigarda foi ver se sobrara alguma coisa do assado do cozido ou do fritado da cobra ela nunca tinha comido disso mas sentiu curiosidade de provar Mais um aprendizado ela tinha recolhido que caldo de cobra é bom para reanimar doente de malina podre Os camponeses foram chegando desgarrados trazendo cada um mais do que seria maneiro daí a demora Um trazia cabras solteiras outro trouxe duas parelhas casadas outro conseguiu dois boiecos outro uma vaca com cria outro uma capoeira de galinhas contando que alguém levasse alguns galos e no fim os casais foram se arrumando As peças solteiras foram marcadas para corte não se pode ficar jejuando enquanto se espera o primeiro desfrute Também vieram ramas de mandioca sementes e mudas disso e daquilo quem tinha noções de plantio e cultivo foi recordando e aplicando e ensinando porque agora com os estrondos da guerra já se apagando dos ouvidos e da memória o objetivo do 68 bando era criar um núcleo onde pudessem se instalar e refazer suas vidas E como tinham pressa de alcançar esse objetivo cada um era o feito de si mesmo e o Conselheiro o guia Com as sementes reunidas para a formação do novo arraial os campeadores trouxeram também algumas notícias que o Conselheiro achou conveniente divulgar para todos Assim o acampamento ficou sabendo que os velhos os doentes e as crianças que haviam se rendido aos federais no dia 2 de outubro foram quase todos fuzilados ou degolados inclusive o Beatinho que foi tratado com muita maldade e finalmente estripado que nenhum dos combatentes que ficaram no arraial para lutar até o fim se entregou que as mulheres que tinham decidido ficar vendo suas casas incendiadas se atiravam nas labaredas com os filhos pequenos nos braços dando vivas ao bom Jesus Conselheiro que as casas que escaparam dos bombardeios e dos incêndios foram desmanchadas pelos soldados como se quisessem descarregar nelas o ódio que sentiam de seus moradores que o ardil da morte do Conselheiro fora engolido pelos federais que bateram direitinho no lugar onde estava enterrado o carpinteiro Balduíno que o cadáver de Balduíno foi desenterrado reconhecido como sendo do Conselheiro e fotografado e depois degolado para mostrarem a cabeça nas capitais do norte e do nordeste que tinha havido festas com foguetes banda de música e discursos no Rio de Janeiro e outras cidades O Conselheiro ouviu os relatos sem mostras qualquer reação parecia que não escutava que pairava longe Mas quando o informante parava receoso de não estar agradando recebia dele um sinal para continuar Quando o relato tocou na parte do desenterramento do cadáver e alguns homens riram e outros se seguravam para não correr o risco de uma repreensão não tendo o Conselheiro dado sinal de desagrado todos riram a princípio como que experimentando e por fim destemperadamente Os federais tinham caído no logro e isso merecia festejo se não de foguetes e zabumbas que não tinham ali ao menos de gargalhadas para espantar a trabuzana rondante Era mais uma prova de que ri melhor quem ri por último Quando sentiu que as gargalhadas perdiam o ímpeto o Conselheiro fez sinal pedindo atenção e falou 69 Agora que já rimos bastante vamos rezar por nossos irmãos mortos Olhou em volta designou O senhor Bernabé puxa Bernabé se assustou com a intimação repentina piscou balançou Quando se recuperou lembrouse do Beatinho de como ele começava uma sessão de orações Persignouse lentamente para dar tempo aos outros de perceberem que deviam imitar Pigarreou forte e começou pelo Padrenosso agora já aprendido uns acompanhando outros fazendo de conta mas pondo cara convincente Mas não foi preciso sustentar esse esforço por muito tempo porque o Conselheiro voltou a cochilar e não ficou sabendo como acabou a sessão que foi por falta de rezadores quando perceberam que o homem dormia cada um foi se levantando e saindo macio inclusive o próprio Bernabé ao ver que rezava para mosquitos Ou por acaso ou pelos fios do telégrafo da caatinga a notícia de que um outro Canudos se formava nas fraldas de Itatimundé correu os sertões do norte e começou a soprar gente para lá Homens escoteiros famílias e grupos do Piauí de Pernambuco de Alagoas de outras partes da Bahia e até do Maranhão de Sergipe de Goiás e de muito mais longe pelo mar pela floresta gente de Munduri de Cruz de Malta de Ouricuri de Ibimirim Água Branca Cacimbinhas de Sambaíba e Pastos Bons de Taipa de Curimatã desse chão todo que fica em volta de qualquer ponto que indique no vasto sertão sem dono ia achando o caminho de Itatimundé Vendo o arraial tomar corpo depressa antes de ganhar esqueleto o Conselheiro achou que estava na hora de firmar certos princípios para prevenir dissabores Primeiro que não convinha ele andar para aqui e para ali orientando e fiscalizando vestido de camisolão de zuarte como em Canudos e mandou Bernabé localizar um alfaiate para fazer uns dois parelhos de roupa para ele se apresentar como todo mundo e não chamar atenção E resolveu que já era tempo de ceifar aquela barba que não tinha mais razão de ser já que o dono dela para todos os efeitos estava enterrado em canudos Vida nova cara e estampa novas E também a maneira de falar com as pessoas acabar com o distanciamento que gera mais distanciamento Ó senhor Bernabé 70 Quem atendeu foi Dasdor veio correndo informar que Bernabé não estava ao alcance Você mesmo serve Dasdor Vá caçar alguém com prática de rapar barba comprida Dasdor disse que um simsenhor atropelado e saiu correndo a cumprir a ordem Mas foi chamado de volta Aprende uma coisa Dasdor Correr só pra tirar o pai da forca Ou para apagar incêndio De surpresa em surpresa o acampamento foi se transformando em arraial mais ou menos como em Canudos o plano era traçado no chão uma casinhola melhorzinha aqui conforme os conhecimentos e o gosto ranchos precários ruas tortas largas numa ponta estreitas na outra uma praça aqui pra respeitar uma pedreira e nesse enredado foi crescendo até que chegaram os dois estrangeiros Falavam uma língua inteiriça impenetrável mas tinham boa cara e foram ganhando aceitação se fossem espiões pior para eles Mas quem anda desarmado entre guerreiros nem sempre leva desvantagem Armamento é assim sempre foi serventia para uns desvalia para outros Quem se habitua a confiar em armamento descuro do cultivo de outros recursos até mais cortantes e menos sujeitos a superação a enguiço em momento crítico a retumbos pela culatra E mais Quem carrega arma para onde vai parece que a presença dela o peso o incômodo mesmo acabam dando ao portador alguma certeza de que está garantido e forrado de que está por cima E mais essa certeza parece que dá na pessoa que carrega a arma coceira uma vontade de recorrer à arma ao menor pretexto como para justificar a posse dela se não é para usar porque carrego isso Já as pessoas que nesta vida só querem viver sem estorvar a vida dos outros essas não têm fascinação pelo carreto de armas Elas acreditam e confiam mais na inteligência e na parlamentação Os dois estrangeiros não carregavam armas porém não ignoravam o funcionamento nem o manejo delas Conheciam muito bem essas máquinas por dentro e por fora o que indicava que eles tivessem servido em algum exército muito bem 71 equipado muito mais do que o dos Anticristo que ainda usavam comblains e manuliches armas já alcaides como eles disseram Quem tivesse uma arma para consertar ou modificar para não ser reconhecida pelo dono que a perdeu era só entregar o trabalho a qualquer dos dois que num tempo razoável ele a devolvia como nova dando desconto naturalmente pela falta da ferramenta adequada Por esse predicado e por outros mais que iam aparecendo no trançado do dia adia os valentes do arraial perceberam que perderiam muito se alguém achasse de soltar faísca por causa de alguma brincadeira deles que desagradasse Como eles não entendiam bem a nossa língua era preciso relevar qualquer lance que parecesse atrevimento e dar três pontos na boca para não retrucar na bucha e assim criar uma situação difícil de consertar Depressa os homens do arraial foram aprendendo a entendêlos viram que era uma questão de acostumar os ouvidos A língua que procuravam falar era a daqui mesmo só que saía estropiada e emendada e ainda misturada com palavras lá deles numa mixorna dos diabos E os nomes deles também eram custosos o do mais velho era um som parecido com Cotenile o do outro ninguém conseguia repetir e o mais perto que se chegava era uma coisa assim como Pião Dó e Pião Dó ficou sendo Quando conversavam entre eles empregavam uma língua que diziam ser irlandês e engrolada que só vendo a menos que estivessem brincando de falar como fazem as crianças quando ficam muito tempo sem arranjar idéia para reinação e inventam falar língua de índio Apesar da figura esquisita e do linguajar custoso os estrangeiros acabaram aceitos e não demorou para que os nomes deles fossem ouvidos a todo instante era Cotenileajudaaqui PiãoDóajudacá Eles sabiam fazer de tudo quase e o que não sabiam inventavam e dava certo Com a boa disposição e a competência deles o arraial foi tomando uma arrumação mais arejada mais desimpedida mais bonita do que os fundadores tinham imaginado É claro que as coisas não corriam sempre roliças nem podia Quem labutava ali de sol a sol eram homens não anjos E como se sabe os homens por mais sadios de 72 alma carregam dentro aquele cupinzinho chamado ciúme que quando acorda começar a roer roer roer Esse cupinzinho teria feito grande estrago ali se o Conselheiro não tivesse percebido os primeiros sinais dele e atacado firme Um dia ele reuniu o povo e falou Meus filhos precisamos nos entender nuns assuntos Não estou gostando da maneira de alguns de vocês tratarem nossos companheiros Cotenile e Pião Dó Se eles praticaram alguma ofensa que o ofendido se apresente e fale Depois os ofendedores também falam se explicam pedem indulto se for o caso Não podemos deixar que a malquerença cresça em nosso roçado Houve um zunzum um torcer de corpos uns olhando para longe outros para os próprios pés O Conselheiro esperou ninguém falou Ele provocou Como é gentes Perderam a língua Aí houve uma troca de cruzada de olhares que ao se encontrarem se desviavam como se com isso quisessem dizer eu não tenho nada a falar não só falei entre nós me põe no fogo não companheiro Parece então que era tudo fuxico de linguarudos Ninguém tem queixa nenhuma Estou certo disse o Conselheiro Então Da Marigarda apareceu abrindo caminho entre os homens até chegar na frente do bando Cruzou os braços ergueu a cabeça e falou Sôr Conselheiro esses que andavam por aí resmungando contra seu Cotenilhe e Pião não falam agora porque não têm mesmo o que dizer com fundamento São muito bons para cochichar e quando chegam aqui dão ponto nos beiços A resmungação deles tem uma explicação É ciúme é despeito é inveja Seu Contenilhe e seu Pião sabem fazer as coisas melhor do que eles E em vez de procurarem aprender eles entortam a boca Ela olhou em volta com o queixo bem erguido e arrematou Era isso que carecia dizer Me relevem a franqueza e voltou para o fundo do bando agora sem necessidade de abrir caminho as pessoas se afastavam 73 espontâneas olhandoa umas com admiração outras com ar de reprovação por acharem que mulher não tem que soltar a voz em meio de homem O Conselheiro esperou que os estremecimentos se acalmassem pediu atenção e disse Então ninguém tem queixa contra os nossos bons companheiros Fico contente de saber E aproveito o momento para chamar os dois aqui para receberem nossos agradecimentos pela ajuda valiosa que vêm dando ao nosso arraial Onde andariam eles Chamados e procurados nenhum se apresentou Fica para outra ocasião Eles não perdem por esperar disse o Conselheiro Não apareceram porque naquele exato momento Cotenile demarcava o terreno para uma casa que ele queria fazer num lugar retirado justamente para não ficar exposto o tempo todo à vigilância dos invejosos E Pião aprendia a fazer e armar arapuca com o Dasdor para tentarem pegar um aracuã ave que ele adotou como preferida principalmente pelo grito que mais parece latido de cachorro O projeto da casa ele tinha na cabeça Seria parecida com uma que ele freqüentou na África num reino chamado Benim Era arredondada paredes de barro e palha cobertura também de palha que ele vacilava em copiar Cobertura de palha derruba muito cisco e coisinhas para dentro de casa quando envelhece Isso aborrece muito os moradores principalmente na hora da comida para não falar na imundície que ficam as camas O problema era arranjar outro material já que telha não havia em Itatimundé Mas esse era um assunto para ser resolvido mais adiante Quem é que já começou uma casa partindo da cobertura Primeiro fazer a casa e uma casa bem acolhedora para ele se sentir protegido das provocações de certos fanáticos que achavam que ele e o Pião andavam enfiando idéias na cabeça do Conselheiro Que culpa eles tinham se o velho gostava de consultálos E quando consultados eles tinham que opinar Mas precisavam ter cuidado Os fanáticos era perigosos gente de fala macia mas capas de atos mesquinhos Talvez nem conviesse fazer logo a casa ali tão longe Vamos primeiro mostrar que não queremos tirar vantagem do nosso bom 74 relacionamento com o velho que somos aves de arribação como eles dizem hoje estamos aqui amanhã voamos e não levamos nada dos lugares onde pousamos a não ser as lembranças e a experiência Em vez de levar alguma coisa até deixamos a experiência do que aprendemos em outras partes Não damos prejuízo a ninguém E o Pião depois do trabalho com a arapuca foi melhorar o seu conhecimento da língua com Da Marigarda enquanto ela separava feijão para cozinhar separava pelo processo antigo e trabalhoso de espalhar o feijão numa peneira e catar um a um os grãos carunchados que recolhia no colo para depois jogar em volta do rancho na esperança de que brotassem e produzissem Enquanto trabalhava ela explicava ao Pião sentado na frente a pretexto de ajudar mas apenas olhando as realidades da vida no sertão ao mesmo tempo em que ia corrigindo a dura pronúncia dele Aqui neste fundo de sertão um filho de Deus precisa de muito tento ao pisar Se descuidar nisso pode pisar em cobras espinhos até em rabos Principalmente rabos Rabos Da Mari Rabo de quê Ela entortou a cabeça para o lado perseguiu um caroço que teimava em se esconder entre os outros e achou que devia falar mais claro Gente que vem do mar costuma ser muito ruda quando alguém fala saindo da trilha comum Com esses empregar artifícios é perder tempo Rabo de gente seu Pião Ele franziu a testa recuou a cabeça para indicar dificuldade de entendimento Logo entendeu e abriu o rosto num largo sorriso Oh entendo Pisar no rabo de outros quer dizer pisar no dedão de outros É isso mesmo Pisar no rabo fica mais forte É perigoloso sim Perigoso Perigoso Pois é Olhem bem onde pisam você e seu amigo Cotenile 75 Oh sim Nós sempre tendo muito cuidado Tivemos Tivemos Ela olhouo satisfeita com a aceitação das correções e sorriu Ele sorriu também Agora que a senhora me ensinou a falar direito posso também ensinar uma coisinha Pode oxente Por que em vez de catar feijão um a um a senhora não põe tudo dentro dágua Aí aqueles que tiverem furo de bichinhos bóiam e é só juntar com a mão Ela pensou virando a cabeça para um lado para o outro Esticou os beiços para ajudar Será que dá certo Vamos ver Pegou a panela de cozinhar feijão encheu dágua e despejou os grãos dentro Mexeu o fundo com a mão esperou Muitos grãos boiaram Não é que dá certo O Pião também mergulhou a mão na panela mexeu no fundo Mais grãos vieram à tona É a lei de Arquimedes Ou Diomedes Ou Arquimago sei lá É um grego que baixou essa lei e desde então os feijões obedecem Deveras Pois o senhor está de parabéns Vou pedir ao Conselheiro pra nomear o senhor ajudante de cozinha Será um prazer ajudar a senhora Mas por que a senhora não chama ele de primo Eu Pra não dar nem tomar liberdades 76 Nisso chegou o Dasdor com um problema e interrompeu a aula Pediu a bênção a Marigarda e no impulso pediu também ao Pião O Pião abençoou mas quis saber por que isso agora se já tinham estado juntos armando arapuca e também por não haver parentesco entre eles O menino se embaraçou ficou vermelho como se tivesse recebido uma reprimenda Marigarda retomou o seu papel de instrutora e explicou que era costume no sertão os meninos e meninas pedirem a bênção dos mais velhos Era sinal de respeito O Pião sorriu e disse ao Dasdor que então não precisava ficar encabulado no que dependesse dele Dasdor estava abençoado pelo resto da vida Dasdor se recuperou do encabulamento mas continuou preocupado Marigarda socorreuo Que bicho lhe mordeu criatura A modos que você está avexado É o Ruibardo Está doente Capaz de morrer Doente Doença de burro é uma de três Ou é velhice e ele não é velho Ou comeu erva Ou foi mordido de cobra Como é essa doença perguntou Marigarda Ele fica deitado bufando como engasgado de vez em quando treme Fiz tudo para ele se levantar seu Boarnégio ajudou torcendo o rabo dele chegando fogo nas ventas não adiantou Ele vai morrer O Pião ficou horrorizado com a informação sobre fogo nas ventas e torção de rabo mas lembrando a conversa recente com Marigarda resolveu não fazer crítica Vamos ver esse burro que não se levanta disse a Dasdor Quem sabe nós dois damos um jeito O estado do burro parecia mesmo grave Deitado de banda num espaço de terra fofa ele não parava de açoitar o chão com o rabo que até já fizera um cavado na terra E a cabeça executava dois movimentos um circular dentro do que permitia o contato com o chão outro de esticaencolhe como se ele quisesse se livrar da cabeça E o pêlo do peito das pernas e das costelas estava escuro de suor apesar da cor dele já ser camurça Os olhos que ele mantinha bem abertos revelavam sofrimento 77 O Pião que fora soldado de cavalaria da Irlanda e conhecia alguma coisa de muar deduziu que o problema estava na boca ou na garganta Aplicando uma técnica aprendida no quartel ele se ajoelhou na frente do burro e foi alisandoo no pescoço sempre falando manso com ele de vez em quando alisando também na testa e no focinho na parte sapecada pelo chumaço que lhe aplicaram que maldade fizeram com o burrinho como foi isso Ruibarbo O burro deu um suspiro e olhouo parece que reconhecendo um amigo e agradecendo Depois quis lamber a mão que o alisava no focinho mas alguma coisa impediu Ele tem um corpo estranho encravado na boca ou na goela Precisamos descobrir o que é disse o Pião Você me ajuda Então não havera xente Eu abro a boca dele e procuro Quando descobrir enfio um braço atravessando na queixada e você mete a mão por cima do meu braço pega o que estiver engasgando ele e puxa pra fora Mas bem com jeito pra não machucar ele Vamos lá Ruibarbo Quietinho Não vai doer Segurando firme os dois maxilares para abrilos o Pião conseguiu uma abertura suficiente para quer que havia mesmo alguma coisa entupindo a garganta mas foi uma visão tão rápida que não deu para identificar Logo o burro sacudiu a cabeça e se soltou das garras do Pião Não deu tempo de ver o que é Você viu Dasdor Vi direito não É uma bola de capim ou de pano Veja se consegue pegar e puxar Tenha medo não Eu travo os queixos dele Novamente Pião abriu a boca do burrinho e num movimento rápido resvalou o braço esquerdo para dentro fazendo trava enquanto a mão segurava o maxilar inferior por baixo Depressa Dasdor meteu a mão direita por cima do braço do Pião e tocou uma coisa fofa que ele segurou firme enterrando os dedos naquilo uma massa mole e elástica Puxou firme mas devagar como o Pião recomendara A coisa veio vindo escorregando 78 num visgo dela mesma ou da baba do burro Não era hora de ligar a nojo era segurar firme e vir puxando Quando a coisa ficou toda de fora e o Dasdor viu o que era jogou longe O Ruibardo bufou já solto sacudindose e respirou fundo aliviado Que vergonha Ruibardo Um burro bonito e inteligente como você comendo comendo frogas Agora temos que lavar as mãos essa coisa tem peçonha disse o Pião e foram depressa se lavar enquanto o sapo continuava imóvel no lugar onde caíra se fazendo de morto até passar o perigo de um chute ou espetada A única consequência maior do episódio foi que naquele dia Dasdor não conseguiu jantar Tudo o que ele punha na boca imediatamente acordava nele a lembrança da gosma do sapo e ele saía correndo para lavar as mãos de novo Quanto ao Pião nem pensou mais no assunto E o Ruibarbo longe do aperto que quase o matou foi asfixia também se recuperou depressa tanto que foi visto bebendo água com vontade e se afastando para tosar um pouco do capinzinho ralo de que se alimentava enquanto não aparecia um filho de Deus para favorecêlo com uma cuia de milho E o sapo quando foi procurado depois por mera curiosidade no lugar onde tinha caído e ficado não foi mais visto nem em terra nem no charcozinho que havia no pé de um barranco que minava água Aparentemente voou consciente do perigo que corria ali de ser engolido por um burro distraído OS VISITANTES 79 Quem inventou a fotografia Niepce Daguerre Talbot Hercules Florence nem de longe poderia imaginar a agitação que o invento causaria meio século depois na crescente Nova Canudos nome ainda não aprovado pelo fundador que não se sentia feliz com ele e vinha pensando em arranjar outro desde o início Aconteceu que numa conversa de fim de tarde na praça formada em volta de um umbuzeiro de copagem imponente o Conselheiro sugeriu que já era tempo de se dar um jeito de conseguir umas ferramentas e apetrechos mais modernos do que as três ou quatro enxadas velhas que haviam arrecadado pelo caminho na retirada os facões de corte já selado pelo tanto uso as achas de madeira que usavam para cavar buracos e para aluir grandes pesos E também puxa vida era preciso ter dó dos coitados que trabalhavam carregando peso nas costas e arranjar apetrechos de roda carroças ou mesmo estrados afinal iase começar obras mais caprichadas que não podem ser feitas à força de braços e costas Alguém tinha idéia de como conseguir essas ferramentas e apetrechos Pedrão em quem o olhar do Conselheiro pousou numa primeira panorâmica mexeuse como que para se esquentar clareou a garganta com um pigarro desafinado e falou que achava difícil quisesse Deus que não impossível angariar ferramentas e maquinismos de obras naquelas quebradas porquanto os soldados tinham desmantelado tudo o que não valia a pena levar E para procurarem mais longe teriam de comprar E comprar de que jeito se não tinha cobre Simplesmente irem chegando pegando e carregando como faziam antigamente agora era desaconselhável pelo menos por enquanto Outros homens também consultados pelo Conselheiro com o olhar acompanharam o pessimismo de Pedrão não havia mais nenhum apetrecho ainda aproveitável abandonado pelos caminhos e nas fazendas onde se poderia encontrar alguma coisa deviam ter ficado destacamentos de federais justamente para agarrar algum jagunço que ainda aparecesse 80 O Conselheiro ficou ruminando o que ouvira Queriam dizer então que não havia jeito de melhorar o rendimento do trabalho no arraial Sendo assim ele não ia ver a realização do seu sonho Estava já com setenta anos e a saúde falhando Não teria mais muito tempo de vida Ele gostaria de deixar as obras mais adiantadas num ponto que permitisse a outros acabalas sem grandes sacrifícios Mas se era da vontade do Senhor que ele morresse logo certamente que o Senhor tinha planos para que elas fossem levadas a bom termo e quem era ele Antônio Vicente Mendes Maciel para reclamar Falar nisso era tempo também de ir largando a casca de Conselheiro que dali para frente podia até estorvar Se os federais o tinham declarado morto com documentos e tudo não convinha ele ficar se apresentando como desmentido A verdade verdadeira era que o Antônio Vicente Mendes Maciel de hoje não correspondia mais ao de Canudos isso qualquer sobrevivente de guerra podia perceber Era preciso soltar a casca antiga Mas não de supetão para não assustar Quanto ao assunto das ferramentas e utensílios quem sabe os nossos hóspedes estrangeiros têm alguma idéia eles que são tão fornecidos delas Eles ainda não falaram com certeza para evitar despiques Vamos convidálos a falar Esse assunto das ferramentas é importante disse o Conselheiro com ar grave Eu sei das dificuldades mas não podemos desanimar Vamos pôr nossas cabeças pra trabalhar quem sabe brota uma idéia Nossos hóspedes e amigos senhores Cotenile e Pião que já mostraram ter boa cabeça os que dizem O Pião consultou o companheiro com o olhar e recebeu um sinal de incentivo para falar Então falou Senhor Conselheiro eu e o meu companheiro Cotenile também somos de opinião que vai ser difícil conseguir utensílios e veículos de transporte para obras Houve um murmúrio na assistência e uma voz não identificada disse qualquer coisa como Até aí morreu o Neves O Conselheiro pediu silêncio e disse que se convidara os hóspedes a falarem era porque queria ter a opinião deles Portanto os outros fizessem o favor de ficar calados 81 Bem eu e o amigo Cotenile achamos que vai ser difícil conseguir os apetrechos principalmente porque não temos dinheiro Mas se reconhecemos que é difícil não queremos dizer que seja impossível Houve um movimento geral de corpos e cabeças como se todos ou a maioria estivessem interessados em saber como o difícil pode se transformar em possível mas ninguém falou dessa vez Qual é então a sua proposta Sr Pião falou o Conselheiro Proposta concreta não tenho Novo murmúrio durante o qual a palavra potoca foi ouvida umas duas ou três vezes A minha idéia é sairmos os dois sem rumo nem prazo certo e ver o que é que acontece Se o Sr Conselheiro estiver de acordo é claro Quer dizer que os senhores vão aventurar É isso Aventurar O Conselheiro disse que aprovava a aventura que seria melhor do que ficarem sentados coçando o queixo E desejou boa sorte aos dois A pressa deles em partir deixou o arraial desconfiado Parecia que eles estavam era largando tudo Até o Conselheiro tão crédulo e ponderado estranhou a precipitação tanto que tendo Cotenile pedido licença para levarem o Dasdor o velho coçou a cabeça e disse que tinha umas obrigações para dar ao menino nos próximos dias e não estava podendo abrir mão dele E depois que os dois partiram evitou falou neles como se quisesse esquecer a passagem deles pelo arraial Mas como nada falasse não se ficou sabendo ao certo om que ele pensava Assim os dois partiram sozinhos e leves contando somente com a experiência de vida que tinham e com a boa estrela que até então os acompanhara Logo que acharam o ritmo certo do passo nos caminhos rudes e pouco percorridos do sertão olhe eles desenrolando conversa 82 Há quem diga que quando não se tem o que dizer melhor é ficar calado Mas soltar a fala sem compromisso de assunto como exercício para ocupar a mente enquanto o corpo vai cumprindo seus movimentos também tem os seus adeptos E dizem até que muitas descobertas importantes em filosofia e em ciências e muitos inventos geniais foram obtidos por este processo de falar a esmo Então falar solto não causa nenhum mal quando se tem tempo a gastar Vamos ouvir alguns pedaços da conversa de Cotenile e Pião Dó na viagem sertão a cima Reparou como eles se despediram de nós falou Cotenile Notei frieza em alguns e alegria disfarçada em outros Só quem pareceu penalizada foi Marigarda É Ela pareceu preocupada Mas estou falando é de outros sinais que captei Não percebi Eu pensava era em nós Na nossa situação se fracassarmos Todos eles com umas poucas exceções parecem convencidos de que não nos verão mais Pensam que aproveitamos o pretexto para escapar O velho também Marigarda também Também eles Mas com uma diferença O velho e Marigarda acham que nos perderam Os outros acham que ganharam a nossa ausência Sentemse livres de nós Mas nós vamos fazer esse favor a eles vamos Não sei Se não conseguirmos os apetrechos Acho que nem assim Se não conseguirmos devemos voltar só pra ver a cara dos Pedrões Vamos ver como é que a gente vai se sentir na ocasião Bem pensado O eu e o você de amanhã podem não ser o mesmo de hoje Não vamos assumir compromissos para eles desde já Lembrase da Costa do Níger Da promessa que fizemos àquele irlandês maluco de ajudálo enquanto ele servisse na África Ele continua lá e nós estamos aqui com um largo oceano no meio 83 Como é que você sabe que o Roger ainda está na África Os ingleses não iriam brigar com a Bélgica por causa dele Saber não sei Mas deduzo baseado em três pontos Primeiro ele é maluco mesmo Segundo é teimoso Terceiro gosta da África O que é tudo um motivo só Pra gostar da África é preciso ter o pote rachado ser lunático Lunático não digo Ele é um sonhador Uma vez eu o chamei de Quixote do Ulster ele gostou Pensado bem todo bom irlandês tem parentesco com o Homem da Mancha Veja nós O que é que viemos fazer aqui neste fim de mundo se não foi por quixotismo Quixotismo extraviado porque os nossos moinhos de vento estão em Erin Somos cidadãos do mundo como Garibaldi Lafayette Poucos são Quixotes em suas terras Nós somos é uns covardes Em vez de estarmos lá ajudando Parnel viemos ambular em terra estranha Isso é fuga companheiro Discordo Ajudando o velho Antônio ajudamos o mundo Não importa onde seja O mundo é redondo e não pára de girar Onde estamos é indiferente porque nunca estamos no mesmo lugar Agora estamos no sertão baiano e eu estou com fome Fizeram uma parada para comer comida de sertanejo carneseca farinha e rapadura Enquanto comiam a natureza montou um espetáculo inédito para eles Sentados num montinho de terra à beira de um córrego de repente viram uma cobra fina e comprida deslizando no capim ralo na outra margem Enquanto a olhavam admirando o bonito desenho em pirâmide de cor marrom escura das escamas os vértices se tocando no alto o rabo afinando quase que abruptamente toda ele medindo talvez mais de um metro de repente o espaço acima dela escureceu e uma coisa em forma de bola baixou sobre ela Eles ainda não tinham entendido o que viam e a coisa se ergueu no ar e a cobra ficou contorcendo no chão a cabeça como chumbada só o corpo mexendo Novamente 84 a bola escura baixou debateuse em cima da cobra e mais uma vez flechou para o alto Só então eles viram que era uma ave do tamanho de uma franga pequena de bico curto curvado para baixo e para dentro o corpo coberto de penas no peito e pardas nas costas e asas Olhe ela aí de novo agora pousando ao lado da cobra e circulando ligeira em volta dela Súbito solta uma bicada na cabeça que praticamente separa a cabeça do corpo ficando presa apenas de um lado pela pele Vamos ver o que essa ave tão aguerrida vai fazer ainda Vai comer a cobra Vai largala contentandose em vêla morta Parece que ela também pensa no que fazer ainda rodeando em volta da vítima Finalmente se decide com rápidas bicadas parte a cobra ao meio apanha um pedaço com as garras e voa na direção de um matinho perto baixo difícil Não demorou muito eila de volta para buscar o resto Se havia alguma lição alguma teoria alguma filosofia a deduzir do episódio nem Contenile nem o Pião se interessaram Terminada a refeição cada um picou o seu fumo enrolou o seu cigarro e fumou em silêncio Não faz bem ao corpo nem à mente conversar assuntos profundos com estômago cheio Por muitos dias a viagem foi aquela mesmice de conversas circulares para ajudar a passagem do tempo de observações sobre animais e plantas e fenômenos naturais do sertão de tentativas nem sempre felizes de pescaria nos raros riachos que atravessavam seria bom se tivessem peixe fresco para variar carneseca farinha e rapadura já enjoava A idéia de talvez não voltarem ao arraial quando batia já não era com a carga de pensamento condenável Voltar para quê afinal Para darem assuntos a piadinhas Também homens como eles não voltam andam sempre para frente Se não voltassem nem iam desapontar o velho que no íntimo parece que já esperava isso Ainda bem que não tinham levado o menino e isso deviam à clarividência do velho Foi então que encontraramaquele senhor montado num burro e tocando outro carregado O encontro foi numa encruzilhada de várzea e tão de repente que os três se encolheram automaticamente como é natural em situação assim Ele pararam e ficaram se olhando enquanto procuravam se recuperar e achar o que dizer Quando se viaja no sertão duro e se topa de repente com um desconhecido tudo pode acontecer E 85 quem viaja escoteiro corre maior risco e por isso pode cometer algum ato irreparável que depois se vê que era desnecessário e aí vem o desapontamento quando não o arrependimento Então o que se aconselha é o viajante não se precipitar procurar manter a calma mesmo com risco de ser surpreendido com um ato precipitado vindo da outra parte Afinal a vida é uma seqüência de perigos entremeados de sustos Vamos ver o que vai acontecer nos próximos minutos Quem se recuperou primeiro foi o Pião que falou Bemvindo ao sertão de Deus meu bom homem O homem dos burros respirou aliviado e respondeu Quando Deus é mencionado o mal se desvanece Deus seja louvado amigos Louvado seja respondeu o Pião e Contenile ao mesmo tempo Para onde se norteia o amigo perguntou o Pião Justamente o que me falta é um norte Vou por aí E os senhores No mesmo rumo disse Contenile E vêm de onde se mal pergunto O pião e Contenile se consultaram com o olhar e não viram em dizer a verdade O homem tinha boa cara e podia até dar alguma ajuda já que os dois não sabiam mesmo por onde começar a procura das tais ferramentas Se quer mesmo ouvir é melhor a gente apear sugeriu o Pião Aceita a sugestão procuraram uma sombra para eles e os animais pois o sol do meio da tarde castigava forte Trocaram fumos para variar o paladar e também como gesto de cordialidade e enquanto preparavam cigarros e os burros dormitavam aproveitando o descanso Contenile e o Pião foram contando a história deles e finalmente a missão que levavam Guerreiros de Canudos Então escapou algum É voz corrente que morreram todos Não me digam uma coisa dessas Preciso ir lá Me levem a esse lugar 86 pediu o homem dos burros sem no entanto disfarçar certa incredulidade Que maravilha Que sorte a minha Que mal pergunte o cavalheiro quer ir lá com que fim perguntou Contenile O senhor não é espião do governo O homem dos burros explicou que era retratista vinha percorrendo os sertões do norte fotografando fazendas gente bichos costumes do povo Guardava a intenção de ir a Canudos para registrar nas chapas o estado em que ficara o arraial depois da guerra seria material de grande interesse para a imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo talvez também do estrangeiro A carga que levava eram os apetrechos de fotógrafo Agora preciso ir a esse arraial novo também e conto com a ajuda dos senhores O meu nome é Militão Militão Augusto de Azevedo Tive estabelecimento de fotografia na cidade de São Paulo Não posso deixar de ir a esse lugar onde estão os guerreiros sobreviventes Se os senhores me levarem lá farei tudo ao meu alcance para retribuir o favor Contenile e o Pião novamente se olharam em consulta e finalmente o Pião falou propondo um acordo o Sr Militão os ajudaria no capítulo das ferramentas eles o guiariam ao novo arraial e a Canudos Se era só isso que eles queriam o acordo estava fechado Por incrível coincidência o Sr Militão tinha passado no dia anterior por uma fazenda abandonada onde havia toda sorte de ferramentas leves e pesadas inclusive uma carroça aparentemente em bom estado Ele tirara umas fotografias da casa das benfeitorias e de alguns utensílios que escolheu para compor um quadro A dificuldade era uma animal para puxar a carroça pois não vira nenhum nas imediações Mas em último caso cederia um dos deles ou os dois se necessário Assim como num lance de mágica o problema de conseguir sem dinheiro o material encomendado pelo Conselheiro ficou praticamente resolvido No dia seguinte pelo meio da tarde eles já estavam na fazenda dando balanço no material prestável e separando o que achavam que poderiam levar Com uns reparos no estrado meio 87 escancelado a carroça ficaria em condições de uso o eixo as rodas os tirantes estavam perfeitos Por fim separaram três enxadões dois bons machados enxadas uma serra de vaivém um debulhador de milho uma alavanca oitavada um moinho de café dois pilões de dois buracos e as mãos uma marreta de três quilos um balde de couro de cinco litros com um furinho de nada facilmente reparável duas picaretas uma com o cabo quebrado no olho três tambores quase bons uma viola sem as cordas uma sela e um silhão um caixote com ferramentas várias ferraduras cravos martelos um relógio de parede com a corda quebrada podia ser que um dia aparecesse na serra alguém capaz de consertálo Quando Cotenile e o Pião que separavam as coisas debatiam se levavam também uma cabeça de boi com os chifres que descansava em um canto da peça que devia ter sido a sala de visitas o fotógrafo que tudo vinha olhando sem opinar achou que era tempo de se intrometer Lembremse que o nosso veículo é só uma carroça A tralha que os senhores já marcaram pede um carro de bois Os dois estrangeiros caíram em si e sorriam desapontados e Contenile falou Esquecemos que a carroça não estica ou que a parafernália não encolhe Teremos que jogar carga ao mar E não esqueçam que o meu equipamento tem preferência disse Militão Diz um princípio muito antigo e parece que universal que a necessidade é a mãe da invenção Pensando nele ou agindo instintivamente com base nele os três inventaram um meio prático de lavarem o máximo de tralha aproveitável darem duas ou mais viagens quantas forem necessárias até não ficar mais nada que pudesse ter utilidade lá em cima alguns móveis por exemplo A viagem de volta ao arraial foi tranquila e serviu para os três se conhecerem um pouco mais Militão era homem já de seus sessenta anos estatura meã franzino olhar inteligente e cordial Depois de vinte anos de atividade profissional em São Paulo ele fechara o estúdio por achar que a fotografia era um invento importante demais para ficar restrito às quatro paredes de um gabinete servindo apenas a pessoas que podiam pagar uma dúzia de retratos para oferecer aos amigos Desde então ele vinha viajando 88 pelo país fotografando pessoas em seu ambiente registrando costumes cenas de trabalho festas regionais paisagens e também por que não as personalidades importantes de vez em quando viajava ao estrangeiro para se atualizar com a evolução da técnica fotográfica Sua idéia no momento era montar um álbum que desse uma visão geral da vida brasileira no limiar do novo século não só nas grandes cidades mas também nas imensidões praticamente desconhecida do interior O episódio de Canudos contrariamente ao que pensava ou queria pensar a maioria das pessoas nos grandes centros era uma página emocionante da história do país e precisava ser documentada fotograficamente Ele saíra de São Paulo com a intenção de alcançar a guerra mas uma série de contratempos o retardara inclusive um acidente com o equipamento e com ele mesmo e que o forçara a parar no Recife para se recuperar e para consertar as partes danificadas da máquina Mas se conseguisse fotografar os remanescentes da guerra e as ruínas de Canudos já se daria por satisfeito E aqueles senhores tão de longe o que é que estavam urdindo naquelas paragens Reconhecendo que Cotenile tinha mais aptidão para conversa concatenada o Pião deixou que ele falasse Cotenile explicou que ele e o Pião eram amigos de infância apesar da diferença de idade Insatisfeitos com a situação de seu país sempre envolvido em contendas aparentemente insolúveis de religião com política complicadas com a presença dos ingleses que se imiscuíam em tudo para manter a Irlanda escravizada a seus interesses eles resolveram sair para conhecer o mundo e dar um tempo para que os líderes dasvárias correntes se entendessem e encontrassem uma solução para o país se é que havia solução Andaram um pouco pelo continente europeu batendo cabeça aqui e ali se envolvendo em complicações que não procuravam Um dia tomaram um navio em Gênova e foram parar no Senegal onde conheceram um inglês que administrava uma plantação de cacau na Costa do Níger e os levou para lá Aí conheceram outro jovem irlandês meio excêntrico também trabalhando para ingleses Esse rapaz escrevia poesia e andava às turras com os ingleses por causa do tratamento que eles davam aos negros tratamento que ele considerava desumano Mas esse irlandês que sofria com o sofrimentos dos negros sob os ingleses parece que não se 89 comovia com o tratamento que os ingleses davam aos patriotas irlandeses na Irlanda Era um rapaz bonito de muito boas maneiras com uma voz de teatro que encontrava todo mundo principalmente quando lia suas poesias Fazia relatórios para as autoridades inglesas que eram muito apreciados em Londres fazia denúncias que não eram levadas em consideração e entre os ingleses da África diziase que logo ele seria distinguido com um título oficial e iria para a Câmara dos Lordes mas para isso precisava parar com as denúncias Esse irlandês amigo dos africanos queria muito que Cotenile e o Pião ficassem trabalhando com ele na África pois os africanos precisavam da ajuda de gente como eles três que não estavam ali para explorálos O nome dele era Roger o sobrenome não se lembravam O convite não interessou e os dois foram dar uma olhada na África do Sul onde se dizia que se apanhava diamante na flor da terra Não encontraram nenhum talvez por não terem paciência de andar olhando para o chão Sabiase que uma parte do país o Transvaal preparava uma guerra antes que ela estourasse eles pegaram transporte como foguistas num navio belga que vinha para a Bahia Da Bahia subiram para o Amazonas contratados como fiscais de uma firma inglesa que explorava borracha Chegando lá descobriram que a função deles não era de fiscais mas de capatazes e que os fiscais tinham poder até de morte sobre os trabalhadores Se o que havia de maustratos com os seringueiros no Amazonas não caberia em nenhum relatório Como capatazes eles tinham certa liberdade de movimento o que lhes permitiu fugirem do já então chamado Inferno Verde Quando chegaram a Manaus com a roupa do corpo descobriram que tinham sdido distinguidos com um milagre ninguém que não conhecesse bem a floresta jamais saíra dela com vida se não contasse com armamento munição e matula Enquanto se recuperavam do mal passadio e das canseiras foram trabalhar como apontadores na construção do Teatro Amazonas onde deixaram seus nomes no mármore de um parapeito da sacada que dá para a praça que defronta o prédio Essa façanha foi ideia do Piso que para executála aliciou a cumplicidade do artista italiano que trabalhava no mármore 90 Mas quem ou o que consegue segurar por muito tempo em um lugar dois irlandeses irrequietos Nem aquele senhor muito instruído e viajado engenheiro e poeta de nome Joaquim de Sousa Andrade que conheceram em Manaus Esse Sousa Andrade falava inglês e tinha mania de declamar versos de um poeta norteamericano chamado Whitman ou nome assim na pensão onde moravam Um dia para não ficar classificado de ignorante em assuntos de espírito Cotenile retrucou com um poema de um poeta irlandês conhecido dele por terem sido vizinhos na adolescência poema até bonito que dizia mais ou menos isto vou me levantar e partir partir para Innisfree Lá fincarei meu rancho um rancho de pau a pique com nove pés de feijão e uma casinha de abelhas para me embalar de zumbidos Quero viver sozinho na ilha de Innisfree O engenheiro gostou quis saber quem era o autor Yeats Não conhecia Anotou o nome e não largou mais os dois irlandeses queria que ficassem sócios dele numa mina de gipsita que disse possuir no Maranhão Mas o Sousa Andrade tinha os seus momentos de neurastenia um dia acordava alegre e falador no outro amanhecia de veneta não falava com ninguém e se respondia era de mal humor Um dia explodiu com o Pião o ambiente na pensão ficou carregado e os irlandeses decidiram pegar a estrada e nisso estavam ainda Tinham uma espécie de compromisso com o velho no arraial e graças à ajuda do Sr Militão podiam agora levar grande alegria ao velho que aliás merecia De conversa em conversa a distância foi se encurtando e quase que sem sentir chegaram a Itatimundé A chegada deles foi festa para uns e desapontamento para outros O Conselheiro ficou radiante e saindo do seu natural de pessoa reservada abraçouos e agradeceu o bom cumprimento da missão e nem quis ouvir a explicação deles de que se não fosse a sorte incrível que tiveram não estariam tão cedo e tão fornecidos Quando soube que o senhor franzino que os acompanhava era retratista fotógrafo o Conselheiro ficou com cara de cabra que vê girafa pela primeira vez Mas Marigarda que também deixara seus afazeres para receber os dois estrangeiros prestou socorro ao primo 91 O moço tira estampas de pessoas com uma máquina que fica debaixo de um pano e especada numa trempe alta As estampas saem iguaizinhas à pessoa Veio um desses acompanhando os soldados Muito antes andou um lá em Baturité disse ela O Conselheiro pensou olhou o tal fotógrafo retratista achouo de boa cara Olhou a dupla Cotenile e Pião nada viu nem pressentiu que denunciasse traição Depois que grande mal poderia fazer aquele homeme sozinho no meio de tanta gente fiel e vigilante Vamos ver então as tais estampas que ele tira das pessoas com a sua máquina vestida de preto Logo que descarregou seus apetrechos e se assegurou de que os burros iam ser atendidos com água e milho e tomou fôlego e comeu e descansou um pouco o retratista pegou um bauzinho encourado que podia ser carregado debaixo do braço abriuo com a solenidade que dava a essas ocasiões e começou a mostrar fotografias Com exceção dos dois estrangeiros e de Marigarda ninguém ali tinha visto ainda uma fotografia Cada cópia era mostrada primeiro ao Conselheiro que a pegava e esticava o braço na distância máxima que alcançava ao mesmo tempo apertando os olhos para ajudar enquanto o Militão ao lado dele ia explicando este é o presidente da Bahia Dr Viana este é o presidente da República Dr Prudente de Morais não foi tirada por mim o marechal Machado Bitencourt ministro da Guerra também não é minha o senhor quer ver mais de perto Aqui tem uma lente de aumento não precisa fechar um olho é só pôr a lente em cima e ir regulando assim o poeta Olavo Bilac autor do Caçador de Esmeraldas não sei se o senhor conhece o escritor Machado de Assis fundador da Academia de Letras um talento respeitado até em Portugal Aqui uma vista da rua de São Bento em São Paulo parece um formigueiro Aqui uma vista da Baía do Rio de Janeiro dizem que é a mais bonita do mundo foi tirada do pátio da igreja da Glória A rua do Ouvidor também do Rio de Janeiro olhe quanta gente quiseram mudar o nome para rua Coronel Moreira César mas o povo não aceitou A Torre Eiffel de Paris tem trezentos metros de altura A Estátua da Liberdade na entrada do porto de Nova York lá na América do Norte O resto é tudo assunto estrangeiro se o senhor quiser pode ir olhando com calma 92 O Conselheiro deixou para olhar o resto outra hora para não força muito a vista que começava a aguar Mais tarde queria repassar algumas das primeiras como a do marechalcomoéquechama e a do tal presidente o da República Agora ele estava interessado era em ver como é que se tira os retratos se não fosse abusar da boa vontade do Sr Militão Abuso nenhum ora essa Será um prazer tirar retratos das pessoas daqui e umas vistas também para isso vim Só que não pode ser hoje e não por má vontade ou capricho é que o sol já vai escasseando e a fotografia requer muita claridade Amanhã não muito cedo com o sol ainda penso que é a melhor posição eu armo a máquina e a gente tiraumas fotografias Não não é preciso cortar cabelo nem vestir roupa de festa fique todo mundo no seu natural O fotógrafo passou uns quinze dias ali tirando retratos e vistas e falando dos seus projetos de um álbum documental das coisas e gente do Brasil contando casos e ouvindo histórias da vida no sertão Quando partiu deixou o arraial bem abastecidos de retratos que as pessoas com o tempo foram enjoando de olhar e largaram em fundo de baús Como tudo e em toda parte a moda da fotografia que ainda não chegara de todo no país tinha deixado de ser novidade em Itatimundé Mas o arraial não ficou ignorado no mundo Por algum processo misterioso de comunicação capilar os centros urbanos de perto e de longe ficaram sabendo do novo arraial que se formava no norte da Bahia com remanescentes da guerra de Canudos e alguns estudiosos e mesmo simples curiosos foram se interessando por ver como era aquilo A princípio o Conselheiro e alguns companheiros ficaram apreensivos com essa romaria e chegaram a pensar em nova retirada Mas Cotenile que tinha se revelado um assessor muito competente convenceuos de que não havia motivo para preocupação E por que não havia Primeiro porque os federais tendo já festejado ruidosamente a sua penosa vitória e exibido em várias cidades uma cabeça que eles garantiram ser a do Conselheiro não iam querer acreditar que o bom Jesus tivesse ressuscitado mais adiante Segundo porque o governo que tinha combatido Canudos já saíra melancolicamente de cena a República tinha outro presidente às voltas com outros problemas outras preocupações outras emergências ara ele Canudos era uma página 93 virada E com a decisão muito acertada do Conselheiro de mudar de casca trocando a barba o camisolão de zuarte e o bordão de pastor por uma cara lisa cabelo curto e roupa comum de sertanejo ninguém ia notar nem acreditar que ali estivesse o gnóstico bronco um caso notável de degenerescência intelectual como o classificou o repórter Pimenta da Cunha e que mesmo assim derrotara com sua gente três expedições militares bem armadas Uma derrota não é necessariamente uma calamidade definitiva como nem toda vitória é uma gloria para sempre amém A derrota de hoje pode ser o início do caminho para dias deslumbrantes manhã pode ser como o desatamento de um nó E quantas vitórias a história registrou que seria melhor não tivessem ocorrido O Conselheiro não demorou a perceber isso e quando percebe não pôde mais continuar no papel de derrotado e não apenas quanto à imagem física A barba ele já havia tirado antes não pelo desejo de mudar de aparência mas para se livrar de uma carga de piolhos que não o vinha deixando dormir nem sossegar providência que teve de ser completada com a tosa da cabeleira Quando as pessoas o viram tosquiado não esconderam o espanto espanto de aprovação Então aquele era o nosso bom Jesus Conselheiro Mas era vistoso E nem era tão velho Numa cidade do litoral ele poderia passar por capitalista ou tabelião ou mesmo doutor Era só trocar o camisolão por um parelho de brim cáqui as alpercatas por umas botinas de pileque ou de botão e cobrir a cabeça com um bom chapéu Mangueira e seria tratado de senhor ou senhoria Foi até mais do que isso o que exclamou Marigarda ao vêlo de repente na nova casca quando ela vinha de uma volta para catar ervas e raízes Ela deu de cara com ele parou livrou uma mão do manojo para pôlo no rosto e exclamou É o tio Antônio Como ele é bonito Era a primeira vez que se ouvia ali tratamento de tio dado ao Conselheiro e todos acharam que ficava bem era melhor do que primo considerando a diferença de idade Será que ele vai gostar O Conselheiro está confuso Passa a mão no rosto procurando a barba Não acha também ajuda no cabelo agora curto Parece perdido sem os apoios antigos Olha 94 para baixo vê o camisolão e a ponta dos pés nas alpercatas Pelo menos isso Nos ouvidos ainda ressoam as palavras de Marigarda dizendo que ele era bonito Bonito Homessa É curioso Todo mundo quer ser rico luta para isso mas quando alguém chama outro de rico é como se fizesse uma acusação o acusando protesta se encolhe quem sou eu quem me dera Mas quando alguém é chamado de bonitos se empavona sorri implora confirmação O Conselheiros não tentou desmentir a prima que agora queria ser sobrinha o que ele fez foi sorrir Depois caminhou uns passos pegoua pela mão puxou para perto Você acha mesmo Agora acho Estava escondido pela barba e pela belama Então posso ser seu tio Sobrinha bonita não pode ter tio feioso Ele disse isso fez que ia abraçala desistiu Assim sem dor nem reclamação o Conselheiro passou a ser tio Antônio com tudo o que a mudança implicava e não só no visual Sempre atento Militão Augusto percebeu que valia a apena registrar numa chapa aquele momento A fotografia engatinhava ainda mas parece que os fotógrafos já existiam antes dela com o faro para discernir os assuntos e o momento Hoje sabemos que aquele senhor alto magro rosto escaveirado e de olhar penetrante que aparece sozinho ou em grupos em muitas fotografias tiradas por Militão em Itatimundé e identificado como tio característico do sertão da Bahia é Antônio Vicente Mendes Maciel natural de Quixeramobim no Ceará mais tarde conhecido no país inteiro como Antônio Conselheiro Le magedu sertão segundo um escritor francês e o inspirador da heroica resistência de Canudos como está contado parece que a contragosto pelo repórter Pimenta da Cunha Existe uma fotografia em particular que mostra bem o homem que a barba o cabelo comprido e o camisolão de zuarte vinham ocultando Nela Antônio Vicente Mendes Maciel o tio Antônio o antigo Antônio Conselheiro aparece de corpo inteiro com o braço esquerdo no ombro de DªMarigarda Ambos de frente sorrindo para Militão que deve ter pedido um sorriso Ele veste calça listrada e camisa branca de algodão grosso aberta até o meio do peito Tem o 95 cabalo cortado como qualquer tabelião e nenhum sinal de barba certamente rapada para a fotografia Calça botinas de carregação daquelas que os soldados usavam antigamente e que bem podiam ter pertencidos a algum praça morto em combate Seria apenas um sertanejo chegando à velhice vestido com roupa limpa para essa novidade de tirar retrato com o apoio de uma filha que entrou no quadro apenas para o pai não ficar sem saber o que fazer das mãos das quais pelo menos uma já tinha a incumbência de abraçar a filha Seria só isso se não fossem o olhar e o resto da fisionomia É um olhar vigilante discernidor mas sereno e sábio Um olhar que atrai a atenção de quem vê a fotografia e ao mesmo tempo que está sendo olhado olha também a quem o olha e diz que ali está quem viu o avesso do mundo e da vida e não enlouqueceu mas tirou conclusões e aprendeu e agora tem a tranquilidade húmil orgulhosa de dizer estou aqui apesar Quando achou que já havia fotografado tudo o que valia uma chama em Itatimundé Militão Augusto empacotou seus apetrechos preparou os burros despediu se agradecendo a acolhida e desceu a serra tendo antes garantido mais uma vez ao tio Antônio e a seus homens que jamais revelaria o segredo da ressurreição do Conselheiro Garantia desnecessária porque o próprio tio Antônio já havia tranquilizado o arraial contra o receio de delação Cotenile e o Pião acompanharam o fotografo até a planície que o sérvio para entornar um pretenso segredo de DªMarigarda É que desde algum tempo o arraial vinha notando o crescimento de um afeto entre ela e o Cotenile sentimento que os dois ela mais do que ele supunham fosse segredo deles O afastamento repentino dos dois estrangeiros num momento em que ela andava longe em sua cata periódica de plantas para mezinhas levou algumas pessoas enjoadas a insinuarem que eles tinham aproveitado o botafora como pretexto para irem embora de vez para reformar a insinuação esconderam os pertences deles Apanhada de surpresa pelos rumores Marigarda reagiu como toda pessoa que se sente traída em assuntos do coração Primeiro ficou como quem recebe uma descarga de raio as pernas duras como estacas o rosto e os lábios brancos os olhos abertos mas parados sem ver Ela parecia uma figura de cera imitando gente Depois os 96 olhos começaram a registrar a boca treme a cabeça se vira para um lado para outro Não é possível Ele foi embora Não falou comigo Tanta promessa tanto carinhos como nunca tive Promessa quanto é muita E tio Antônio deixou Não Não acredito Ele vai voltar Com essa crença o desejo transformado em certeza ela se organizou tomou posse de si mesma Olhou braçada de raízes e folhas que ainda sustentava e retomou a rotina Se pensam que vou chorar desesperar estão enganados Tio Antônio sua saúde está garantida Olhe o que eu trouxe Marapuana ervadebicho faveca vermelha valetudo vaicomasoutras suspiromanso segura peito fedegoso abreapetite Tudo isso minha filha Sou como Moisés Só preciso de mel e leite de cabra A euforia de Margarda era falsa não durou O resto do dia para ela foi cinzento arrastado sem graça Ela fez o seu trabalho mecanicamente os gestos para um lado o pensamento para outro Os homens já a olhavam com pena mas pela maldade natural das pessoas ninguém desmanchava o esquema todos queriam que ela penasse o máximo inclusive tio Antônio que agora era uma pessoa como as outras interessada em criar embaraços para ver como o decente os enfrenta Exatamente como faz Deus Mas não sendo nenhuma bateorelhas Marigarda percebeu logo que os homens pareciam muito curiosos em acompanhar as reações dela Então eles sabiam do que vinha se passando entre ela e Cotenile Claro que sabiam essas coisas acabam porejando no suor Fora ingenuidade dela pensar que pudessem esconder Mas se sabiam e tendo ele ido embora porque ninguém veio consolála dar apoio Por acharem que não havia necessidade Então eles sabiam que ele ia voltar Estava descoberto o jogo Pois se eles queriam se divertir não se acanhassem Ela também ficava com o direito de fazer o seu joguinho Vamos ver quem vai rir melhor Finalmente eles acharam que era hora de irem fechando o cerco já que ela teimava em não dar o braço a torcer Que coisa hein DªMarigarda A gente passa o tempo todo pensando que trata com nhambu vai ver é jacu era o Pedrão falando jogado milho 97 Oxente o senhor não sabe diferençar uma da outra seu Pedrão É tão fácil Nhambu é sureca e menorzinha Jacu é maior e tem rabo e sobrancelhas Não tem o que errar seu Pedrão Pedrão faz bico coçou um lado do rosto pensando E voltou Quando eu falo em nhambu e jacu estou pensando é em outra coisa Ah é E quando foi que o senhor ficou desregulado assim Ara DªMarigarda A senhora sabe muito bem do que é que eu falo Sei não seu Pedrão O senhor não me ajuda Começou falando de nhambu e jacu Depois disse que a sua nhambu e sua jacu não eram nhambu e jacu Assim fica difícil entender O senhor dê uma volta aí refresca as ideias quem sabe melhora Pode ser um chamusco passageiro fique nervoso não Pedrão desistiu disse que esava brincando falta de assunto lombeira Me cede um pouco do seu fumo o meu melhou Outro que experimentou a resistência de DªMarigarda foi o finório Joaquim Norberto Ele chegou na porta do rancho como quem não quer anda só salvar Comentou sobre o tempo a falta de vento pra refrescar a boa disposição do bom Jesus queria dizer do tio Antônio perguntou se ela não poderia favorecelo com um gole de café Só se for café do mato E não serve Quem não é barão se conforma com João Ela serviu a jalapa escura num coitezinho ele engoliu fazendo de conta que gostava e depressa acendeu o cachimbo pra abafar o gosto horrível Olhou para um lado para o outro cuspiu Fingiu que matava com tapa um mosquito na nuca e falou como que por acaso Que falta fazem aqueles dois trocalínguas Não pensei que fosse sentir tanto 98 Deveras Isso mostra que tinham prestança Exato Mas saírem assim De sopetão como negros fugidos Ficaram devendo Carregaram petrechos alheios Que eu saiba não Então qual é a queixa O mundo é grande e formoso e a vida da gente é curta Quem finca os pés num lugar e não arreda mais acaba virando estaca O senhor não acha Eu Não acho nem desacho pesar de ter zanzado muito eu mesmo Ele pensou olhando para dentro do forno do cachimbo parece que procurando inspiração para nova investida E voltou à carga Então a senhora não sente falta deles Olha seu Joaquim Falta de alguém eu já senti muito porém foi de minha mãe Mas faz tanto tempo que perdi ela que já me acostumei Hoje em dia só sinto falta é de um fuminho cheiroso quanto não tenho de um pedaço de toicinho pra temperar um feijão de um punhadinho de açúcar pra adoçar o café essas coisas miúdas que a gente aprende a apreciar e cujas aprende também a abrir mão quando vasqueiam Agora me diga uma coisa seu Joaquim Em que parte a falta daqueles dois está fazendo pisadura no senhor Em parte nenhuma ora essa É que a gente já tinha se acostumado com eles e achei esquisito eles terem ido embora sem dizer atéumdia O senhor não sabe que estrangeiro não gosta de despedida aquela história de beijos e abraços de choro segurado e olhos marejados Eles são de pouca conversa É pra ir Então vamos sem fazer lambança Que coisa mais estrangeira DªMarigarda Então é como cigano Ou tapuio Esconjuro E quem disse que cigano e tapuio estão errados Pra que essa bobagem de verter lágrimas e fingir sentimentos pra logo depois quando dobrar a primeira curva esquecer tudo 99 Então a senhora não ficou magoada Não tenho motivo seu Joaquim Com efeito DªMarigarda Então o que andam dizendo no arraial é inzona Não posso opinar porque não sei o que dizem Tendo esgotado seus recursos especulativos Joaquim Noberto saiu como tinha chegado Sacudiu fora as cinzas do cachimbo olhou intrigado para ele como que desconfiado de que o cachumbo fosse responsável pelo desapontamento do dono Por fim guardouo na patrona Agora só faltava achar brecha para uma saída honrosa Essa veio quando o cachorro de Pedrão passou como fugindo de algum perigo ou perseguindo algum bicho passou e arrastou Joaquim Norberto como ímã atrai metal Só então DªMarigarda pôde desfrutar o efeito de sua estratégia Era divertido vêlos ciscando em volta do assunto mas evitando tocar nele como naquele jogo infantil de narrar as peripécias de uma galinha um cachorro sem falar no nome do bicho nem imitar a voz dele O jogo não durou porque antes de completar uma semana de ausência Cotenile e o Pião desapearam no arraial e trazendo novidades como sempre faziam quando voltavam de viagem Uma era que o novo presidente da República tinha ido ao estrangeiro buscar recursos para pagar as despesas com a guerra de Canudos Tio Antônio ouviu a notícia sem mostrar nenhum interesse sinal de que ele agora só queria olhar era para a frente Canudos parecia uma página virada para ele também Desde o dia anterior à volta dos irlandeses ele vinha espremendo a cabeça para decifrar um sonho enrolado que tivera No sonho um homem alto e forte vestido de rei imperador ou coisa parecida lhe mostrava uma árvore de casca grossa escamosa que dá flores amarelas em forma de espiga e como gruta uma vagem achatada meio curva de um palmo de comprimento mais ou menos O rei ou imperador disse que a árvore era uma riqueza a flor dá mel a vagem pode ser comida de várias maneiras crua cozida ou assada A madeira serve para obras diversas e para mobiliário a serragem é uma farinha que nem precisa ser torrada E a folha alimenta animais De onde era o imperador ele não ficou sabendo Viase que não era indiano porque não tinha aquela pedra que os indianos 100 usam na testa Também não era de nenhuma Arábia porque não calçava tamanco de ponta virada para cima não vestia calçabalão nem tinha adaga na cintura Antes de sumir o imperador recomendou ao Conselheiro que plantasse tal árvore em Itatimundé Que raio de árvore seria essa que mais aprecia despensa cheia e mais uma serraria Ele e o imperador conversavam debaixo de uma dessas árvores que aparecia nítida como uma fotografia de Militão ele chegou a ver as carocas e os rachados da casca e notar a cor marromavermelhada da capa da baga chamuscada de preto aqui e ali Haveria mesmo tal pé de planta no mundo ou seria fantasia de sonhador como quando a pessoa sonha que acha um horror de moedas de ouro dentro de um riacho tantas que dá pra apanhar com uma cuia e guardar debaixo da cama e quando a pessoa acorda na manhã seguinte e vai olhar só acha cisco e badulaques debaixo da cama Esse sonho e a preocupação com ele não seria sinal de que a cabeça do bom velho já estava carunchando Contenile não achava que todo sonho devesse ser riscado como bobagem ou delirança Lembrou que a Bíblia está cheia de referências a sonhos que foram avisos o sono de Jacó com a escada o de Nabucodonosor que arretou a morte de tantos sábios e adivinhos E a árvores do sonho do Conselheiro era parecida com uma que existe no Peru que também dá mel dá fruta comestível dá madeira para obras e para farinha alimentícia Por azar ele não se lembrava do nome da árvore peruana e não tinha como descobrilo a não ser que a memória de repente acordasse E mesmo que ele lembrasse o nome não adiantaria nada quem iria ao Peru buscar muda ou semente da árvore Mas não deviam desapontar o Conselheiro desfazendo do sonho dele Nem foi preciso se preocuparem porque o próprio assunto como era natural foi ficando para trás e dando lugar a outros mais atuais e mais palpáveis Como o namoro de Contenile e Matigarda DªMarigarda quem diria tão desinclinada a intimidades com homem e tão dedicada ao bemestar do tio Antônio de repente sai do retraimento e fica daquele jeito como mocinha que acabou de crescer peitos E o velhote também Homem tão viajado tão experiente agora voltando ao tempo de mocinho e vivendo em agarramentos pelos cantos e pelos caminhos numa cheiração e numa agarração vergonhosa e quanto mais 101 cheira e mais agarra mais quer cheirar e agarrar Que pensaria o Conselheiro Será que não via Para decepção dos censores parece que o Conselheiro achava tudo muito natural O homem não era solteiro E Marigarda não era viúva ou separada ou coisa assim E os dois não eram maiores de idade Então O que era que o resto tinha a ver com o assunto De mais a mais era muito feio gente grande ficar pombeando namorados em vez de cuidarem dos seus serviços que eram muitos em um arraial em formação Deixassem os namorados namorar Namoro faz bem Não repararam como Marigarda ficou mais bonita mais alegre mais sadia Vocês outros que são escoteiros tratem de arranjar companhia Homem sem mulher e mulher sem homem é macho sem cabo garfo sem dente botina sem solado Essas coisas não foram ditas de uma vez pelo Conselheiro mas aos pedaços a um e a outro de seus auxiliares em várias ocasiões Ultimamente ele conversava muito com o Pião gostava de ouvilo falar de suas viagens de suas peripécias pelo mundo Admirava a coragem do Pião em deixar sua terra e sua família e se atirar mundo afora enfrentando dificuldades e perigos Era longe essa terra de onde ele viera Era longe sim ficava do outro lado do mar e não era longe só em milhas era também em costumes história língua Lá tinha índio como aqui Não tinha Teve no tempo de São Patrício há séculos agora o que sobrava lá em inglês que poderiam passar por índio não fossem os dentes postiços Lá tinha governo Dizem que tem mas não se vê O governo lá vive em Londres que fica em outro país Não me diga uma coisa dessa E pode Poder não pode mas tem sido assim Se o povo se conforma Que remédio se a força está do outro lado Mas nem todos se conformam Os republicanos refugam Meu pai era republicano Frequentava um clube chamado Fenianos Os fenianos eram os moradores antigos do país os índios de lá A república vem tem que vir O que é que nós irlandeses temos a ver com a rainha da Inglaterra É só a força que está impedindo a independência e a república Mas não vão impedir por muito tempo o senhor escreva O senhor foi contra a república aqui mas precisa reconhecer que lá é diferente não queremos prestar obediência a rei e rainha estrangeiros e na minha terra não tem ninguém querendo ser rei Então a nossa saída é a república A república não está dando certo na América do Norte 102 Mesmo a conversa mais animada acaba esmorecendo principalmente quando chega a hora de comer e DªMarigarda já avisara que a janta não ia demorar só faltava socar a paçoca e isso não demorava caso o Pião desse uma ajudazinha Não tiveram tempo de desfrutar a boa paçoca com o arroz de jurubeba do mato porque a cachorrada disparou a latir como endemoniados não adiantando ralhos nem ameaças Então o que eles tinham a fazer era deixar a janta para depois provando só um pouquinho para não porem o filho fora já que o paladar tinha sido escorvado com o cheiro Se era gente de paz que vinha chegando teriam de dividir a comida com eles assim manda a lei da hospitalidade vigorante também no sertão Enfim chegou um grupo de cinco pessoas três das quais se via que eram serviçaos vinham cuidado dos cargueiros e certamente indicando o caminho Os outros eram uma senhora de seus cinquenta anos vistosa e despachada a cara e os olhos de uma alegria natural de dissolver má vontade Vestia roupa azul de duas peças saia comprida rodada de corpete justo fechado até o pescoço e na cabeça um chapéu que não assentava direito no cabelo farto repuxado para trás formando coque o chapéu devia ter sido arranjado pelo caminho O companheiro era alto avermelhado rosto castigado pelo sol e uns óculos pequeninos de míope Vestia calça de brim cáqui camisa branca bordada e por cima da camisa um paletozão amarelo na cabaça um chapéu de pano muito surrado A senhora e seu marido estão convidados a comer de nossa janta que está pronta Os outros terão que fazer a deles porque infelizmente a nossa não chega para todos Dª Chiquinha não fez cerimônia Disse que aceitava a gentileza A viagem serra acima a sacudira muito e lhe dera fome E fez uma retificação o Dr Orville o senhor que a acompanhava não era marido dela Viajavam juntos por acaso e por conveniência Dr Orville era cientista fazia estudos de terrenos e minerais para o governo Tinham se conhecido na Bahia e ficado amigos Era um sábio e pessoa muita distinta Quando disse que o Dr Orville trabalhava para o governo Dª Chiquinha notou que a informação não fora bem recebida Mas sendo esperta e estando a par dos 103 acontecimentos passados no sertão baiano acrescentou depressa que o Dr Orville era estrangeiro e vivia no país há muito tempo e não se envolvia em política que os seus primeiros trabalhos sobre terrenos e minerais tinham sido encomendados pelo Imperador que o mandara buscar para isso Com as novas informações o semblante de DªMarigarda voltou ao natural e ela foi ver como podia servir o jantar para pessoas tão distintas mas antes pediu que não reparassem era comida de sertanejos e sertanejos pobres O Conselheiro vinha o tempo todo observando os estranhos por uma fresta da janela de sua casinhola e concluiu que não havia inconveniente em aparecer para jantar com eles DªMarigarda fez as apresentações sem revelar quem era o homem a quem tratava de tio Serviu primeiro os visitantes depois o tio e convidou os demais a se servirem Enquanto comiam cada um sentado onde pôde com o prato no colo chegou Cotenile que agora só cuidada da construção da sua casa saía cedo do arraial e voltava de tardinha Logo que se instalou também com o prato no colo entrou em conversa com Dr Orville sobre a geologia da região O Conselheiro se interessou e trocou de lugar com DªMarigarda que estava mais perto para ouvir melhor Ninguém conhece este chão todo daqui até o Caerá como o nosso bom Conselheiro disse Cotenile Ele já bateu tudo isso aí de alto a baixo e viceversa várias vezes Não é verdade Sr Conselheiro Dª Chiquinha e Dr Orville pararam de comer e indagaram os dois ao mesmo tempo Conselheiro Não o de Canudos Aí Cotenile percebeu que havia deixado o gato escapar Tossiu como é de praxe olhou para Marigarda e recebeu de voltar um sacudir de ombros O próprio Conselheiro mastigando com dificuldade devido às falhas de dentes sorriu mais para dentro do que para fora como pensando quero ver como esse estrangeiro vai sair do engasgo Mas a honestidade não precisa se armar de sutilezas basta continuar honesta e tudo se resolve bem 104 Vi que meti o pé na boca Peguei um frango como vocês dizem Estou sempre fazendo isso disse Contenile Se avexe não disse Marigarda ajudando Pode falar Mais cedo ou mais tarde eles iam saber Ademais é gente amiga Pois é Esse senhor ainda sacudido que está a seu lado madame é o bom Jesus Conselheiro de Canudos que lá fora é tido por morto Mas continua muito vivo como se pode ver Hoje ele prefere ser tratado de tio Antônio Ainda não acostumamos mas vamos aprender Dr Orville tirou os óculos piscou muito Tornou a pôr os óculos Olhou para Contenile para Marigarda depois para o Conselheiro parece que conferindo Finalmente falou Deixem ver se entendi O Antônio Conselheiro que morreu num bombardeio a Canudos e foi depois desenterrado pelas troas federais e fotografado e degolado achou um jeito de ressuscitar e aparecer aqui É incrível Eu vi as fotografias nos jornais do Rio de Janeiro Foi uma decepção de guerra como se diz E passou Olhe o resultado aí O morto continua vivo Apenas mudou de casca e de nome Dr Orville sacudiu a cabeça olhou novamente o Conselheiro e disse afinal rendido Gosh É coisa de teatro E mais baixp como falando para ele só É fantástico Que país E em voz mais alta Me expliquem os detalhes Preciso entender O jantar já estava terminado e Cotenile ia explicar o milagre da ressurreição quando o Conselheiro tomou a palavra Eu explico Afinal quem ressuscitou foi eu Não estando particularmente interessada nos detalhes da história se o homem estava ali comendo e conversando era porque não tinha mesmo morrido Dª Chiquinha foi ver se os cargueireiros precisavam mas encontrouos já entrosados com os 105 homens do arraial principalmente com o Pião sempre interessado em saber o que se passava no mundo lá fora Ela se chegou conversou provou da comida deles e sentouse para tomar parte na conversa Aos poucos a noite foi baixando sobre o mundo e a escuridão não os envolveu por completo porque havia ainda uns tições queimando debaixo da trempe DªMarigarda veio avisar Dª Chiquinha que o problema da acomodação estava resolvido ela e o Dr Orville iam dormir no casebre ocupado pelo Pião e Contenile que se espremeriam em outros ranchos Dª Chiquinha não reparasse a falta de conforto mas era o que se podia arranjar assim de repente e não pensasse que ela estava sendo mandada para a cama como criança o aviso era só para sossegar caso Dª Chiquinha estivesse preocupada com o aonde dormir Ora se Dª Chiquinha havia chegado aos cinquenta cinquenta e um anos aparentando bem menos era justamente por não se preocupar com insignificâncias e por não querer chegar à alvorada antes de passada a meianoite Ela costumava dizer que ninguém por mais aflito que esteja consegue tirar mais de vinte e quatro horas de um dia Dr Orville fez bom proveito do aviso de DªMarigarda e foi dormir ou pelo menos se recolher Tinha que anotar as observações feitas na subida da serra que ele chamava de Itatimundê Mas Dª Chiquinha deixouse ficar mais tempo no sereno porque um dos homens havia puxado de uma flauta de piteira ou bambu não dava para ver no escuro e começado a tirar uns sons Ela pediu licença para experimentar e ele muito acanhado torcia o corpo dizia que aquilo era coisa ruda feita por ele mesmo sem ciência nem sabença só mesmo pra distrair o àtoa Ela insistiu ele limpou a flauta na mão mesmo e passou a ela envergonhado e ao mesmo tempo curioso de ver como aquela criatura de jeito tão distinto ia tirar som de uma flauta feira a canivete Primeiro ela olhou o instrumento segurandoo pelo meio como medindo o tamanho e o peso Depois o diâmetro interno do canudo Novamente por fora medindo a distância dos furos só então levou a flauta à boca Soprou ensaiando para conhecer as possibilidades Manejou os dedos nos buraquinhos testando os sons Aí então tomou posse do instrumento e tocou 106 Saiu uma música que depois quando perguntaram ela disse que era uma valsa Uma música daquelas que põem o ouvinte em harmonia com a vida e aqueles lá em cima sentiram um bemestar como há tempos não conheciam se é que tinham conhecido coisa igual antes Sentiramse alegres de uma alegria que não faz barulho para fora Se não fosse a escuridão talvez desse para ver no rosto de cada um o que era que eles viviam por dentro Mas não era preciso ver os que já haviam se retirado vinham voltando e se acomodando como podiam em silencio para não espantar o encanto A música tem muito a ver com magia e deve corresponder a um anseio íntimo do ser humano desde o princípio uma saudade de qualquer coisa que ficou longe nas origens talvez cósmicas O troglodita que primeiro bateu com um pau ou um osso numa superfície dura procurava alguma coisa que lhe fazia falta e que ele não sabia o que era Bateu procurando encontrou era um som feito pelo homem O som primeiro nasceu no íntimo como necessidade e tinha de ser encontrado Encontrado passou a existir Onde não existe é reinventado Ou redescoberto Quando Dª Chiquinha parou as pessoas em volta pediram mais e ela tocou Valsas maxixes improvisos Até que embriagados de música foram todos dormir 107 O SONHO Estar de passagem não significa necessariamente estar com pressa Quem tem pressa não vive o presente quer a impossibilidade de viver o futuro hoje A pressa tem raiz na violência contra a vida Dª Chiquinha não tinha maior interesse por filologia mas se interessava muito pela vida Tendo se casado muito cedo por arranjo de família ela logo descobriu que havia caido num poço do qual só podia sair sozinha Saiu mas com filhos para criar Para agravar a situação optou por uma carreira então vedada a mulheres escolheu ser compositora e execultante de música e com muito esforço conseguiu fazer 108 o nome no meio teatral Voltara de Lisboa onde musicara uma peça e dirigira a orquestra de teatro O navio tocou na Bahia e lá ela conheceu o Dr Orville no hotel Logo nos primeiros contatos percebeu que se tratava de pessoa estudiosa dedicada ao trabalho e também muito carente Não tendo pressa de chegar ao Rio aceitou acompanhálo numa viagem de estudos pelo sertão oportunidade que ele aproveitaria para estudar o folclore musical sertanejo pouco conhecido na corte Aquela flautinha feita a canivete pouco dissera o jagunço ia ser de grande ajuda Ela levava uma flauta francesa na bagagem mas não pretendia mostrála por enquanto para não inibir os possíveis colaboradores No dia seguinte Dr Orville saiu cedo com sua lente suas ferramentazinhas e seu caderno de apontamentos e desenhos material esse que resultou no livro sobre estruturas rochosas do norte da Bahia publicado pela Universidade de Wisconsin em 1906 e Dª Chiquinha ficou para ajudar Dª Marigarda e observar E teve sorte porque naqueles dias desencandeouse uma série de acontecimentos quase que simultâneos muita gente chegando de repente como se tivesse marcado encontro justo ali de todos os lugares do mundo Primeiro foi um senhor alto magro olhar sonhador voz encorpada e ressoante Devia ser escritor ou filósofo Não largava um livro em françês que vivia lendo e anotando nas margens e andava às voltas com um catatau manuscrito que dizia ser um livro que vinha escrevendo O nome do escritor era muito complicado para ouvidos e língua sertanejos e ele mesmo pediu que deixassem o nome e o chamassem de Pedro Quando esse Pedro chegou sozinho e puxando pelo cabresto esse cavalo arreado os homens andavam fora quase todos tocando seus afazeres e Dr Orville ainda não tinha voltado do seu trabalho de campo Ao verem aquele homemzarrão magro cara de fome e jeito de bezerro desgarrado Marigarda e tio Antônio que tinham chegado à porta do casebre quando ouviram os cachorros latindo se olharam como perguntando e essa agora Será que viramos pousada O homem amarrou o cavalo numa estaca e caminhou para as duas únicas pessoas que via Por cumprimento apenas tocou a aba do chapéu panamá e inclinou 109 ligeiramente a cabeça Marigarda e Antônio também inclinaram a cabeça indicando que se consideravam saudados O passo seguinte foi determinado pela necessidade Subir serra numa tarde quente ora montado ora a pé para não castigar muito o cavalo tem que dar muita sede E para pedir água não há um gesto universal e imediatamente entendível O viajante fez o gesto acompanhado de uma palavra que não foi entendida mas foi deduzida O moço tem sede diz Antônio Traz água pra ele Na cuia O viajente tirou o chapéu e não tinha ainda acabado de enxugar a testa já Marigarda aparecia com a cuia dágua que ele pegou e foi bebendo sem pressa e antes de terminar olhou para o cavalo amarrado perto e apontou para ele com a cuia Marigarda entendeu e levou água para um cocho perto Depois desamarrou o cavalo que foi beber sozinho O viajante viu aquilo e sorriu Tudo vinha saindo bem até ali Mas o pior pelo menos o mais difícil ainda faltava Como dizer aquela boa gente que ele estava cansado e tinha fome e precisava de um canto para passar uns dias ele e cavalo Aí vem uma mulher pelo vestir e pelo jeito de se arrumar não é daqui Quem sabe ela pode ajudar Dª Chiquinha vinha enxugando o cabelo numa toalha listrada Vestia uma blusa rendada uma saia comprida e nos pés uns chinelões que pareciam de homem pelo menos eram enormes para ela Ela só viu o recémchegado quando estava quase esbarrando nele E tinha de se assustar primeiro por não têlo visto em tempo segundo por ser um estranho terceiro pelo volume da cabeça enorme para o corpo já em si grande Parecia que a cabeça destoava do corpo daí o susto demorar mais para ser absorvido Mas bastou ela olhar para ele ele sorrir ela sorrir também e tudo se assentou definitivamente Aquele homem não tinha maldade Em palavras sucintas eles se apresentaram Eu Pedro eu Francisca Chiquinha Foi um alívio para Marigarda que logo encarregou a hóspede de perguntar a Pedro se ele não queria tomar um banho para tirar a poeira e se refrescar antes de comer Por sorte o homem falava françês que Dª Chiquinha tinha estudado no colégo interno 110 Ele aceitava sim um banho e estava sim com fome e lamentava incomodar Ela explicou que o banho seria de cacimba e levouo ao lugar Sabão ele tinha era questão de achar na bagagem Procurou achou Sabonete inglês preto ovalado e muito cheiroso Enquanto o Pedro tomava seu banho chegaram os irlandeses Ao verem o cavalo dormitando junto ao cocho perceberam que havia novidade Or isso aqui está ficando um caravançarai disse o Pião Não acha que é tempo de levantar ferro Calma disse o outro Eu agora tenho contrapeso Claro Não me tome ao pé da letra Não demorou muito chegou Dr Orville também cansado suando e faminto Mas Dª Marigarda ajudada por Dª Chiquinha e pelo Dasdor já tinha a janta pronta Vendo o Pedro voltando da cacimba se enxugando Dr Orville também quis se lavar antes de comer e todos acharam que não custava esperar um pouco mais Lembrando que Dr Orville e o Pedro não se conheciam Dª Chiquinha fez as apresentações como vai prazer muito gosto Durante o jantar Cotenile relembrou a briga que ele e o Pião haviam assistido de uma cobra e uma aracuã luta demorada cheia de malícias até que a ave conseguiu imobilizar a cobra com uma bicada abaixo da cabeça partila em duas e voar com um pedaço no bico O Pião quis explicar isso como a luta das espécies pela sobrevivência o Pedro discordou Disse que respeitava muito o grande Darwin mas discordava dele em um ponto a evolução das espécies não se processa unicamente pela competição e pela rapinagem como quer o sábio inglês Vi na Ásia colônias de animais de espécies diferentes vivendo em harmonia e não em luta feroz pela existência Um de meus projetos é escrever uma tese sobre a ajuda que os animais inclusive o homem prestam uns aos outros Será uma refutação da teoria darwiniana da luta permanente pela sobrevivência A competição não é a norma predonimante na natureza Ela só acorre em circunstãncias anormais A seleção natural se processa por outras formas A ajuda mútua oferece melhores condições para a seleção e 111 consequentemente para a evolução Tenho pensado muito sobre isso e feito observações Vou escrever sobre o assunto Dr Orville tinha se interessando pela conversa e escutava atento O Pião provocouo a opinar Nada sei sobre a evolução no reino animal a não ser o que li no velho Darwin mas apenas para não ficar em completa ignorância não me aprofundei Meus estudos se concentram no reino mineral e esse não evolui mais O que existe nele hoje se formou há milhões de anos Os cristais as rochas os minérios estão aí como sempre estiveram O quartzo que eu vejo e pego é igual ao que foi tocado pelo homem de Pequim ou de Neandertal O petróleo que estão descobrindo na Arábia e na Califórnia existe há trezentos milhões de anos foi formado pelo paleozóico e um dia acaba porque não se forma mais Aliás nem sei se esse petróleo vai ter o futuro que anunciam para ele Uma lama fedida que requer refino para ser usada e o refino encarece o produto Não é como o carvão que sai das minas para os fornos e caldeiras Já tem gente pensando que o petróleo vai ser a oitava maravilha a solução definitiva par ao problema da energia Tem um engenheiro alemão que inventou um motor para queimar o petróleo bruto como sai da terra Ainda está em experiência Vamos ver Se aprovar vai matar o carvão Não por ser melhor como combustível mas por ser novidade O alemão que se cuide Já ouvi falar disse Cotenile Se o motor desse alemão parece que se chama Rudolf Diesel se o motor dele vingar vai ser bom para a Irlanda Não vejo a relação disse Dr Orville Só se descobrirem petróleo na Irlanda Mas as formações do complexo irlandês são diferentes das da Califórnia e da Arábia Se a Irlanda quiser se beneficiar com o petróleo vai ter que comprálo como todo país que não o tem Vamos nos beneficiar indiretamente explicou o irlandês Se esse motor novo aprovar o carvão perde valor O carvão perdendo o valor a Inglaterra se enfraquece Ela se enfraquecendo afrouxa a mão no nosso pescoço Percebo disse Dr Orville É como diz o ditado o sustento de uns é o veneno de outros 112 Dª Chiquinha sentada perto se abanando com a fralda do avental entrou na conversa Até agora vocês só falaram de assuntos lá de longe E aqui no Brasil o que vocês acham dessa república que não acerta o passo Ela já vai completar dez anos Com dez anos eu já costurava fazia alfenim e batucava piano E aposto que fazia tudo muito bem disse o Pedro Já eu aos dez anos era muito bobinho Ficava como um pavão quando alguém me tratava de príncipe Felizmente me curei logo dessa bobagem Interesseime por geografia me alistei no exército do meu país e fui servir na Sibéria com o objetivo de estudar a geografia da região Aquilo era um mundo infinito como o sertão brasileiro só que muito frio e usado para desterro de revolucionários Aos poucos o feitiço foi virando contra o feiticeiro e eu acabei aderindo aos revolucionários que eu devia vigiar Mas é uma história muito cumprida e eu queria falar era da república brasileira A senhora não deve ficar desanimada Dª Chiquinha Um sistema de governo não é uma caixa um estojo que se compra no armazém da história e é só abrir para ficar tudo resolvido A caixa vem vazia É caixa de pôr não de tirar As pessoas é que devem enchêla E não se enche de uma vez é um pouco cada dia Vocês brasileiros têm uma oportunidade de ouro nessa caixa republicana que compraram O senhor não está exagerando falou o Conselheiro Nem um pouco Vejo como uma oportunidade de ouro porque vocês vão iniciar vida nova uma época propícia que é a entrada de um novo século Eu sei que para o mundo para o globo terrestre um dia é igual ao outro um ano é igual ao outro A divisão do tempo é invenção humana Mas os negócios humanos se regulam pelo calendário e o início de um século é importante pelo menos psicologicamente Faltam apenas três anos para entrarmos no tão falado século XX que se espera seja a Idade de Ouro da humanidade Os inventos e descobertas que pipocam por toda parte reforçam essa esperança Vocês brasileiros podem se beneficiar muito do invento daquele moço italiano o telégrafo sem fio Imaginem um país do tamanho do Brasil poder se comunicar de uma ponta a outra sem precisar de fincar postes e esticar fios E o raio invisível 113 descoberto por um alemão raio que atravessa corpos opacos e mostra o que existe dentro Mas isso é um perigo disse o Conselheiro Ninguém mais vai ter sossego nem dentro de casa Não sei ainda para que vai servir esse raio X como foi chamado mas não será para expionar pessoas dentro de suas casas Seria o mesmo que gastar ouro para fazer prego A grande aplicação dele vai ser na medicina para mostrar onde se localiza um tumor uma fratura coisas assim Pode servir para descobrir onde tem ouro Onde tem água debaixo da terra Assim a gente fura poço na certa se aventurou a dizer o Dasdor que ouvia tudo com atenção Isso provocou malestar principalmente no setor dos jagunços criados no princípio de que criança não deve se enfiar em conversa de adultos Notando o constrangimento do menino que parecia arrependido do atrevimento o Conselheiro saiu em socorro dele disse que o Dasdor dera uma ideia muito boa para aplicação desse raio invisível Descobrir onde tem água debaixo da terra é uma peleja Ele mesmo quando era moço em Quixeramobim andou se aventurando na abertura de poços que não minavam água a única água que ele conseguiu com esse trabalho foi a água das bolhas que fez nas mãos E o Pedro reforçou disse que o emprego do raio X na perfuração de poços era uma ideia muito boa e possivelmente passara pela cabeça do descobridor o que mostrava ser o Dasdor um menino inteligente Deve ter apanhado inteligência com o Viramundo não é Dasdor São companheiros de unha e carne disse o Conselheiro Se era para rir não custava fazer esse favor ao bom velho e fizeram E o Pedro continuou Quem sabe o Dasdor não vai ainda descobrir ou inventar alguma coisa importante para ajudar a república brasileira a achar o seu caminha 114 É baixo Por mais inventos que apareçam essa república vai ficar sempre sem caminho disse o Conselheiro recaindo na sua prevenção antiga Mas Dª Marigarda cortou alguma possibilidade de discussão política levantandose e dizendo alto Tio Antônio precisa tomar a sua mezinha e descansar senão fica sem força para combater a república Com a licença dos senhores Com essa cortada brusca mas necessária a assembléia se desfez Dª Chiquinha tentou organizar uma sessão musical não encontrou apoio e se recolheu também Só o Pedro ficou de pé olhando as estrelas e pensando lá suas coisas E quando ia se recolhendo também esbarrou no Conselheiro que tinha perdido o sono e saira à procura de companhia para conversar Mas por falta de testemunha não se ficou sabendo o que falaram ARRUMAR O SERTÃO 115 As mudanças que vão acontecendo devagar um pouco hoje um pouco amanhã não são percebidas imediatamente Só quando a acumulação delas jã forma um feixe considerável é que o mundo em volta toma conhecimento E aí ou aplude ou se assusta Era claro que ventos novos vinham soprando com desembaraço na mente do tio Antônio Desde que tirara a barba e jogara fora o camisolão de penitente parecia que ele andara fazendo uma limpeza também nas ideias deixara o exagero das rezas e a mania de entender tudo pelo compasso da Bíblia e do fanatismo religioso Mas as ideias que ele andara soltando eram ainda confusas nebulosas A única consequência prática da nova feição do Conselheiro foi a mudança na maneira de tratar as pessoas principalmente a sobrinha Podia ser que ele estivesse se exercitando num programa de viver sem apoio na Bíblia para aprender a pensar com mais autonomia Agora depois daquela noite de conversa com o Pedro ele parecia determinado a ligar ideia com ação Primeiro ele pediu a alguns homens que descessem lá embaixo embaixo e conseguissem como pudessem menos pela força algum material de escrever papel e lápis Tinta não servia seca depressa no clima enxuto da serra e ainda fica dependendo de pena que borra a escrita quando manejada por quem não tem traquejo Enquanto isso aceitou um caderno e um lápis que Dr Orville ofereceu mas caderno sem pauta mais próprio para desenho Dª Chiquinha e o Pedro também tinham lá seus cadernos lápis e tinta mas o Pedro explicou que estava escrevendo um livro e ia precisar muito de papel e Dª Chiquinha mostrou que o papel que ela levava sempre em suas viagens era papel de escrever música seria desperdício usar para outro fim Conseguir papel lá embaixo não foi difícil mas foi demorado De venda em venda de feira em feira os homens foram recolhendo um caderninho aqui doi ali umas folhas de almaço encardidas e amarrotadas um livro de capa preta dura que os guarda livros chamavam de borrador esse tinha um canto da capa comido não se sabe por que espécie de bicho rato é que não podia ser não consta que rato coma papel nem pano a não ser para chegar a outra coisa que esteja dentro o que não era o caso Cabo Nestor opinou que seria obra de papagaio ou arara bichos que destroçam tudo até quina de 116 porta para fazer graça ou descarregar contrariedade vocês não ouviram um ente desse tagarelando enfezado lá nos fundos da casa Quanto ao lápis é curioso o que acontece Depois que o João Faber o inventou nunca faltou lápis no mundo Por mais lápis que se perca ou se mastigue ou se quebre ou se empreste ou se desvie para coleções ainda fica lápis sobrando Em qualquer casa por mais distante ou isolada abrese uma gaveta procurando uma tesoura um botão um comprimido encontráse um lápis ou dois Vaise limpar embairo de um móvel olhe lá um lápis esquecido Até parece que eles se reproduzem Se duvudar há mais lápis do que gente no mundo E quando esta nossa civilização acabar e ficar esquecida e depois começar a ser escavada os arqueólogos vão quebrar a cabeça para descobrir para que serviam esses artefatos e poderão até ser considerados objetos rituais Se um dia faltar madeira para revestilos não tenham dúvida que outro material será descoberto para substituíla o que não pode é faltar lápis Assim os homens voltaram à serra levando vários feixes de lápis que se contados dariam uns cem ou mais e com eles os cadernos e o papel Tio Antônio e seus amigos podiam rabiscar à vontade E que fizessem bom proveito Pois fizeram Pedro e o Conselheiro passavam boa parte do tempo discutindo e escrevendo Dasdor ficou encarregado de apontar os lápis o que fazia caprochosamente com um canivete que achara nos escombros de Canudos Vendo os dois homens naquela faina que muitas vezes entrava pelas horas de descasso do tio Dª Marigarda um dia perguntou se eles estavam a fim de passar o mundo a limpo Quem respondeu foi o tio O mundo não Só esse pedaço de sertão Não é sr Pedro Por enquanto Quando tivermos arrumado o sertão vamos cuidar do país Depoius atacaremos o mundo Vôte Disse ela e saiu de perto balançando a cabeça Em todo caso parecia que tio Antônio tinha finalmente encontrado um companheiro a sua altura para verrumar projetos estrambóticos O que ela desejava mesmo e isso já dizia em conversas discretas era que ele encontrasse companhia de 117 mulher mas isso ali na serra só aconteceria por milagre Também Dª Chiquinha Orville o Pião e outros mais achavam aquela tanta escreveção uma perda de tempo uma mania senão uma aflição das muitas que costumam atacar os idosos mas não chegavam ao ponto de censurar os escrevedores até achavam que se era achaque de velhice deviam era erguer as mãos aos céus por estarem os dois velhos se distraindo com ocupação inofensiva Muito pior seria se eles dessem para azucrinar a vida dos outros ou disparassem a fazer travessuras comuns na velhice Mas nem todos viam aquela atividade de debater e escrever como se fosse perda de tempo ou brincadeira sem consequência Para esses o tio Antônio ainda tinha boa cabeça e sabia muito bem o que fazia Esse homem é atilado e ainda não perdeu a escorva disse o Bernabé um dia defendendo o chefe E o Sr Pedro não fica atrás Eles formam boa parelha Daquele conluio vai sair coisa boa podem escrever Não havendo meio de saber antecipadamente se aquilo era trabalho ou passatempo o jeito era esperar O próprio Conselheiro já não tinha decidido que tudo que fosse de interesse para o arraial seria agora explicado e discutido entre todos Então vamos esperar Enquanto isso a vida ia se rolando sem pressa e sem abalos Cotenile acabou a casa e o único trabalho que tinha agora era aqueles retoques e melhoramentos que só o uso vai reclamando uma cerca que não estava no projeto um puxado um telhado uma prateleira para tralhas uma calçadinha para os moradores não pisarem na lama em dias de chuva coisas assim necessárias mas não urgentes Dª Chiquinha já falava em ir embora para tristeza de todos e mais ainda de Marigarda visto a boa liga que tinham feito tão boa que uma noite após a ceia quase todos reunidos no larguinho que já chamavam de largo de Dª Chiquinha só faltava a placa com o nome Dª Chiquinha pegou a flauta e anunciou que ia tocar uma música que acabara de compor Tocou uma composição sacudidinha que mexeu com todos e foi muito elogiada Quando acabou ela perguntou a Marigarda se tinha gostado Então não oxente uma música tão animadinha tão alegre Gostara e muito 118 Que bom porque é dedicada a você e vai se chamar Amiga Marigarda É uma polca Novos aplausos e pedidos de bis Queriam ouvir a música de novo agora com o nome da homenageada em mente E enquanto se tocou polca no mundo a Amiga Marigarda sempre foi ouvida primeiro em Itatimundé e imediações depois no país E muito tempo depois que o gênero ficou esquecido suplantado por muitos ritmos vez por outra algum estudioso relembrava essa polca em suas conferências ilustradas Um dia chegou na serra um jornal velho embrulhando umas compras Jornal ali era raridade e o Bernabé desamassouo para ler Depois passouo a outro que o passou a outro e assim até correr todos os interessandos Como era natural o Pedro também quis dar uma olhada e com ajuda de um e de outro foi decifrando as notícias até dar com uma correspondência da Rússia Depois disso ele mudou Passava muito tempo calado olhando para longe Outras horas ficava inquieto andando de um lado para outro como fervendo por dentro Às vezes desaparecia no arraial deixando todos preocupados Comentando essa mudança de comportamento com Marigarda e tio Antônio ela achando que o Sr Pedro pudesse estar doente ou precisando de alguma coisa mas com acanhamento de pedir Cotenile opinou Sei o que é isso Já aconteceu comigo várias vezes É terrível Ele está dividido uma hora quer ir embora outra hora quer ficar E não podemos ajudar em alguma coisa perguntou Marigarda Ajudar a quê A ir A ficar Ele mesmo não sabe A melhor ajuda é não interferir Sei o que é isso Ninguém pode ajudar Então vamos pelo menos tratar ele muito bem nessa quadra disse Dª Marigarda Pra ele se sentir apoiado coitado Nem isso Se ele estiver pendendo para ir paparicos demais puxam para o outro lado e ele fica mais confuso ainda Essa crise ele tem que resolver sozinho 119 Fico avexada de ver o pobrezinho nesse estado Parece galinha que queimou o pé Quem sabe se tio Antônio conversando com ele sondando Me envolvo não disse Conselheiro Se ele não quer se abrir é porque acha que não deve Pra mim doença de homem que não seja dor de ciático de cabeça é dengo E de homem dengoso quero distância Mas um dia que o Pedro não parecia tão atacado e o Conselheiro amanhecera mais tolerante eles voltaram a conversar Falando com naturalidade sem forçar o Conselheiro provocou o assunto A modos que o amigo anda avexado Alguém aqui maltratou Ofendeu Nem de brincadeira Sr Antônio Aqui só tenho recebido tratamento fidalgo de todos Não tenho o mínimo motivo de queixa Por favor tire essa ideia da cabeça Então Sei que venho procedendo de maneira inconveniente Já que o senhor tocou no assunto aproveito a oportunidade para explicar o que é que se passa comigo O senhor tem tempo de me ouvir Sentaram e o Pedro foi explicando o motivo de sua esquisitice dos últimos tempos Outras pessoas foram se chegando e sendo convidadas a sentar para escultar Ele disse que se sentira tão bem em Itatimundé que acabara se demorando mais do que pretendera embora não estivesse indo para nenhum lugar claramente definido Gostara do lugar da paisagem das pessoas principalmente e fora ficando Pensara até na possibilidade de nunca mais sair dali As lembranças de sua terra onde não fora feliz pareciam já quase apagadas Ao ler naquele jornal antigo uma correspondência de lá foi como se uma comporta tivesse se aberto e o inundado de lembranças da infância da família da terra da língua E lá se preparavam acontecimentos importantes que ele precisava acompanhar se possível influenciar A Rússia era como uma caldeira em tempo de explodir e ele queria estar lá para assistir à explosão 120 O senhor entende tio Antônio A minha terra me chama eu tenho que ir Lamento deixar Itatimundé mas o meu lugar agora é lá O Conselheiro pensou coçou o rosto como se coçasse a barba que não tinha mais e perguntou E nossos planos como ficam Pois é Tanto trabalho disse Marigarda pensando mais no vazio que a partida do Sr Pedro ia deixar do que nos tais planos Os planos que fizemos ficam em boas mãos disse Pedro Chegando lá eu mando o endereço e continuamos nossas conversas por carta só que vai demorar mais Mas o senhor tem aí gente boa que pode ajudar Tem o Cotenile tem o Pião meio adoidado mas inteligente e capaz Tem o Bernabé bom executor Tem Marigarda Tem o Dasdor Ensine o Dasdor a ler que ele vai longe Pedro foi embora e o povo da serra levou muito tempo para se conformar com a falta Mas os debates que entravam pela noite no alto de Itatimundé não ficaram soterradoss no tempo Num livro que o Pedro publicou anos depois na França para expor seu projeto de sociedade sem governo eles são reconstituídos E no arraial o resultado de tanta conversa e escritos foi aparecendo nas simples e belas construções materiais e nas normas de convivência e trabalho que deram corpo e alma à Concorrência de Itatimundé comunidade que serviu de modelo a uma infinidade de outras mundo afora Se daquele sonho e daquele esforço hoje só restam ruínas isso não significa que o sonho fosse absurdo Ele deu tão certo que precisou ser demolido à força como fora Canudos setenta anos antes E da mesma forma que o Conselheiro o gnóstico bronco um caso notável de degenerescência intelectual foi degolado depois de morto também a estátua do tio Antônio que completava o visual da praça principal da Concorrência foi dinamitada pelos invadores em 1965 e seus pedaços jogados serra abaixo O tio Antônio mesmo tinha morrido antes aos noventa e quatro anos de marrada de um bode que o Roger filho do Cotenile e Marigarda criava como animal de casa Foi reparar o que ele considerava sua culpa que o Roger escultor premiado fez em 121 granito de Baturité a estátua de tio Antônio tão fotografada enquanto existiu Nela o velho Conselheiro aparecia como tronco de uma árvore robusta talvez aquela com que sonhara e cujo nome jamais soube os pés se confundindo com as raízes os membros se confundindo com as asperezas da casca os cabelos se confundindo com galhos e folhas Se essa estátua não mais existe fotografias dela estão em revistas e livros de arte editados em vários países E a terra o chão onde foi a Concorrência de Itatimundé é agora depósito de lixo atômico administrado por uma indústria química com sede fictícia no Principado de Mônaco