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Candomblé e Umbanda Caminhos da devoção brasileira Vagner Gonçalves da Silva Candomblé e Umbanda Caminhos da devoção brasileira Vagner Gonçalves da Silva Doutorando em Antropologia pela Universidade de São Paulo EDITOR Nelson dos Reis COORDENAÇÃO DA COLEÇÃO Mustafa Yazbek EDIÇÃO DE TEXTO Ivany Picasso Batista REVISÃO Roberto Bezerra de Albuquerque ILUSTRAÇÕES Olavo Cavalcanti PAGINAÇÃO ELETRÔNICA G C Associados PROJETO GRÁFICO DIREÇÃO DE ARTE E CAPA Isabel Carballo Impressão e acabamento W ROTH SA 011 9602988 ISBN 85 08 04685 5 1994 Todos os direitos reservados Editora Ática SA Rua Barão de Iguape 110 CEP 01507900 Tel PABX 011 2789322 Caixa Postal 8656 End Telegráfico Bomlivro Fax 011 2774146 São Paulo SP ISBN SUMÁRIO Introdução 11 UMA HISTÓRIA QUE NÃO ESTÁ NOS LIVROS Capítulo 1 17 O UNIVERSO SOCIAL E RELIGIOSO NO BRASIL COLONIAL 19 O catolicismo português 23 Os ritos indígenas 26 As religiões africanas Capítulo 2 43 O CANDOMBLÉ E A REINVENÇÃO DA ÁFRICA NO BRASIL 50 Abolição e República a emergência do candomblé 56 A famíliadesanto e a organização social dos terreiros 65 As nações do candomblé Capítulo 3 69 O PANTEÃO E AS DENOMINAÇÕES REGIONAIS DAS RELIGIÕES AFROBRASILEIRAS 70 Deuses africanos e santos católicos 82 Candomblé batuque e xangô 83 Tambordemina 85 Cabula 86 Macumba 87 Candomblé de caboclo 88 Catimbó pajelança e cura Capítulo 4 99 UMBANDA UMA RELIGIÃO À MODA BRASILEIRA 106 As origens da umbanda 107 O kardecismo 110 A codificação umbandista 113 Organização burocrática e legitimação social 118 As entidades brasileiras da umbanda 129 Conclusão 135 Glossário 141 Bibliografia Para Oseas e Ofélia Agradecimentos A Rita de Cássia Amaral pela colaboração e estímulo e a José Carlos Honório Terezinha Sávio Rubens de Souza e José Eduardo Azevedo pelo apoio INTRODUÇÃO Uma História que não está nos livros Muitas perguntas passam pela cabeça das pessoas quando o assunto são as religiões afrobrasileiras O que são Como se originaram O que pregam Quais as diferenças entre elas Quem as pratica O objetivo deste livro é responder a essas perguntas e fornecer ao leitor uma visão histórica do desenvolvimento dessas religiões enfocando principalmente seus dois modelos mais conhecidos o candomblé e a umbanda Com certeza entretanto sua leitura despertará novas dúvidas novos interesses já que o campo religioso afrobrasileiro é muito rico e diversificado como veremos Reconstituir o processo histórico de formação das religiões afrobrasileiras não é contudo uma tarefa fácil Primeiro porque sendo religiões originárias de segmentos marginalizados em nossa sociedade como negros índios e pobres em geral e perseguidas durante muito tempo há poucos documentos ou registros históricos sobre elas E entre esses os mais freqüentes são os produzidos pelos órgãos ou instituições que combateram essas religiões e as apresentam de forma preconceituosa ou pouco esclarecedora de suas reais características É o caso dos autos da Visitação do Santo Ofício da Inquisição nos quais estão registrados os processos de julgamento de muitos adeptos dos cultos afrobrasileiros que foram perseguidos sob a acusação de praticarem bruxaria pela Igreja católica no Brasil colonial Ou então dos boletins de ocorrência feitos pela polícia para relatar a invasão de terreiros e a prisão de seus membros sob a acusação de praticarem curandeirismo charlatanismo etc A mesma visão preconceituosa também domina os relatos dos viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil nos séculos passados e descreveram algumas das manifestações religiosas afrobrasileiras como festas danças procissões etc Outras razões que dificultam o relato da história das religiões afrobrasileiras são suas características particulares Tratase de religiões cujos princípios e práticas doutrinárias são em geral estabelecidos e transmitidos oralmente Não há nelas livros sagrados como a Bíblia por exemplo que registrem sua doutrina de forma unificada ou sua história Neste sentido são religiões não institucionalizadas Ao contrário do que acontece por exemplo com a Igreja católica que tem uma hierarquia centralizada na figura do Papa e estabelece princípios doutrinários válidos para as suas CAPÍTULO 1 O universo social e religioso do Brasil colonial Quando Portugal no início do século XVI resolveu colonizar suas terras descobertas nos trópicos trouxe também para o Brasil sua religião oficial o catolicismo Neste período a Igreja católica já sofria críticas por parte dos reformistas que denunciavam seus desvirtuamentos e perdia adeptos para as religiões protestantes que se formavam na Europa A possibilidade de conversão dos habitantes das terras do Novo Mundo serviu então como forma de a Igreja assegurar sua influência religiosa na América Para a Coroa portuguesa a catequese dos índios também pareceu vantajosa pois ao tornálos cristãos a Igreja os fazia tementes a Deus e principalmente submissos aos interesses colonizadores do Rei que estava muito mais interessado em conquistar suas terras do que em garantir o céu às suas almas Na colonização do Brasil o cultivo da cana logo sobressaiu como atividade principal e a produção de açúcar a exemplo do que já ocorria em outras colônias portuguesas tornouse aqui um negócio promissor O progressivo sucesso da empresa colonial a expansão das lavouras canavieiras e as invasões holandesas e francesas conduziram a Metrópole a uma colonização mais efetiva e a um controle político mais intenso das atividades Na tentativa de melhor controlar impostos fiscalizar fronteiras e combater os índios que ameaçavam os engenhos de açúcar em 1549 criouse o GovernoGeral com sede na capitania da Bahia e fundouse a cidade de Salvador Foi neste período que chegaram as primeiras missões jesuíticas as quais culminaram com a criação do primeiro bispado no Brasil instituindo definitivamente o catolicismo na colônia A produção de açúcar nos latifúndios exigiu grandes contingentes de trabalhadores e devido à escassez de mãodeobra portuguesa os índios foram escravizados para servirem nas fazendas Com o passar do tempo a escravidão indígena foi sendo substituída pela do negro de origem africana Portugal já era aliás especializado no tráfico de negros mesmo antes da descoberta do Brasil e não teve dificuldades em abastecer com essa mãodeobra sua colônia brasileira Foi nas primeiras décadas do século XVI que teve início portanto a vinda de negros para o Brasil E dessa forma até fins do século XIX o Brasil alimentou com mãodeobra escrava os vários ciclos econômicos pelos quais passou desde sua descoberta até sua transformação em República Assim para falar das origens das religiões afrobrasileiras é preciso descrever o encontro destes três tipos de religiosidade postos em contato com o descobrimento e durante a colonização portuguesa do Brasil o catolicismo do colonizador que veio para cá as crenças dos grupos indígenas que aqui já se encontravam e principalmente as religiões das várias etnias africanas O CATOLICISMO PORTUGUÊS Um ambiente profundamente religioso marcou a história da formação de nosso país As marcas começam com o próprio descobrimento no nome com que foi batizada inicialmente a terra descoberta Terra de Santa Cruz no ato de rezar a primeira missa nos nomes das primeiras vilas e sesmarias aqui fundadas São Vicente e Santos e até mesmo na forma tradicional de ocupação do espaço nas cidades brasileiras que geralmente cresceram tendo como centro a praça onde se destaca a igreja O catolicismo além de religião oficial foi uma religião obrigatória Professar outra fé que não fosse a cristã era correr o risco de ser considerado herege e também inimigo do rei cujo poder provinha de Deus Para garantir a conversão e fiscalizar a vida religiosa dos seus fiéis a Igreja dispunha de várias formas de controle e repressão aos desviantes da fé cristã Uma das mais violentas e arbitrárias foi o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição Estabelecido pela Igreja na Europa esse tribunal tinha como objetivo punir os praticantes de atos forma que as igrejas instituições organizadas de religião opunhamse às seitas dissidências não institucionalizadas ou organizadas de culto Mas esses conceitos há muito tempo foram revistos e o ponto de vista adotado neste livro é o de que não existem religiões superiores ou inferiores certas ou erradas do bem ou do mal pois essas classificações resultam mais de juízos éticos ou julgamentos subjetivos para os quais não há consenso possível principalmente porque com frequência as religiões são julgadas com os conceitos ou preconceitos provenientes de outras Ainda que se considere como o fizeram os evolucionistas que as religiões mais atrasadas são aquelas que possuem uma dose maior de magia bastaria lembrar que todos os sistemas religiosos baseiamse em categorias do pensamento mágico O ofício de uma missa por exemplo comporta uma série de atos simbólicos ou operações mágicas como as bênçãos a transubstanciação da hóstia em corpo de Cristo etc tanto quanto um ritual do candomblé ou da umbanda Aliás como veremos a seguir foram as semelhanças estruturais entre a forma de culto do catolicismo popular e das religiões de origem africana e indígena devoção aos santos e deuses tutelares etc que possibilitaram o sincretismo e a síntese da qual se originaram as religiões afrobrasileiras Por fim cabe ressaltar que as religiões ainda que sejam sistemas de práticas simbólicas e de crenças relativas ao mundo invisível dos seres sobrenaturais não se constituem senão como formas de expressão profundamente relacionadas à experiência social dos grupos que as praticam Assim a história das religiões afrobresileiras inclui necessariamente o contexto das relações sociais políticas e econômicas estabelecidas entre os seus principais grupos formadores negros brancos e índios O desenvolvimento do candomblé por exemplo foi marcado entre outros fatores pela necessidade por parte dos grupos negros de reelaborarem sua identidade social e religiosa sob as condições adversas da escravidão e posteriormente do desamparo social tendo como referência as matrizes religiosas de origem africana Daí a organização social e religiosa dos terreiros em certa medida enfatizarem a reinvenção da África no Brasil No caso da umbanda de formação mais recente seu desenvolvimento foi marcado pela busca iniciada por segmentos brancos da classe média urbana de um modelo de religião que pudesse integrar legitimamente as contribuições dos grupos que compõem a sociedade nacional Daí a ênfase dessa religião em apresentarse como genuinamente nacional uma religião à moda brasileira Mas para reconhecer e entender melhor este complexo quadro de semelhanças e divergências que caracterizam as religiões afrobrasileiras devese começar indicando suas fontes a partir do universo social e religioso do Brasil colonial mágicos tidos como bruxaria feitiçaria ou curandeirismo de aberrações sexuais ou de outras atividades pagãs Era muito frequente que a esses atos a Igreja atribuísse a influência do demônio Assim atitudes consideradas suspeitas como reuniões festivas com danças ou músicas poderiam ser vistas como sabás reunião de bruxas para invocar o demônio e se entregar à luxúria e a pecados abomináveis como imaginavase o sacrifício de crianças Contra os acusados de tais atos a Igreja promovia um processo que geralmente acabava com o réu sendo queimado em plena praça pública No Brasil o Tribunal não chegou a se estabelecer propriamente mas em suas visitações à Bahia e a Pernambuco em 1591 à Bahia em 1618 e ao GrãoPará e Maranhão em 176368 processou muitos brancos índios e negros sob a acusação de feitiçaria ou de luxúria o que terminou na sua deportação e julgamento pelos tribunais da Inquisição em Portugal O catolicismo estabelecendose através desses mecanismos de conversão obrigatória foi se tornando cada vez mais integrado ao cotidiano da vida colonial sendo vivido de modo intenso através de festas procissões ladainhas e tantas outras atividades do extenso calendário anual da Igreja que congregava toda a população No diaadia as orações pela manhã antes das refeições e à noite após o trabalho marcavam como ponteiros o ritmo da vida das pessoas A devoção aos santos foi uma das características da formação de nosso catolicismo ou seja do catolicismo romano e que teria consequências no sincretismo afro brasileiro tornandoo possível O português acostumado a dedicar rezas e fazer promessas aos santos padroeiros trouxe para cá sua devoção a estes intercessores santificados santos anjos e mártires através dos quais acreditava que seus pedidos chegavam mais depressa a Deus Os santos guerreiros como Santo Antônio São Sebastião São Jorge São Miguel e outros que de alguma forma aludiam à condição de conquistadores dos portugueses em sua luta contra índios invasores e contra as duras condições de povoamento da terra eram muito solicitados São Roque São Lázaro São Brás e Nossa Senhora das Cabeças e outros santos que curavam doenças de pele respiratórias hidrocefalia e tantas outras facilmente contraíveis nos trópicos também eram constantemente invocados nas promessas e ladainhas A devoção à Virgem Maria em suas várias aparições ou denominações como Nossa Senhora das Dores do Parto da Conceição etc era também uma característica da religiosidade portuguesa que estruturada na família patriarcal fazia da pureza e da maternidade de Maria um modelo de comportamento para as mulheres cf Hoornaert 1978 O catolicismo nessa época é uma religião profundamente mística ou mágica Embora a Igreja proibisse as superstições pagãs e os atos considerados mágicos e punisse seus praticantes ela não o fazia usando um discurso da nãoexistência desses fenômenos Ela os combatia porque acreditava que somente eram legítimos os milagres e a intervenção do sobrenatural na vida das pessoas quando fosse a Igreja que os patrocinasse cf Thomas 1991 p 53 Assim fitas cortadas pelos padres com a medida das imagens dos santos e amarradas na cintura eram usadas para removerem dores doenças e realizarem o pedido dos seus portadores Os bentinhos as figuras e medalhas de santos e as orações escritas depois de benzidas pelos sacerdotes eram postos entre livros debaixo dos travesseiros ou dobrados e costurados em forma de uma pequena bolsa carregada junto ao corpo para combater os males e garantir a proteção do santo retratado cf Ewbank 1976 Aspergir água benta benzerse com o sinaldacruz e repetir preces consideradas poderosas afastavam os maus espíritos Numa religião em que o paraíso e a felicidade eterna estavam reservados para a vida após a morte era natural que o culto às almas fosse uma preocupação constante dos fiéis Para que as almas alcançassem o céu mais rapidamente não se economizavam velas novenas missas fúnebres e orações específicas em homenagem aos mortos Dessa forma evitavase ao mesmo tempo que eles assombrassem os vivos Morrer sem receber a extremaunção ou não poder garantir um enterro digno isto é cristão também eram preocupações dos católicos A missa e os sacramentos da Igreja católica tinham aos olhos do povo a força de atos mágicos O mistério da eucaristia também conhecida como ceia do Senhor pão dos anjos ou pão das almas em que o padre transforma o pão hóstia e o vinho em corpo e sangue de Cristo posteriormente ingerido pelos fiéis para que fossem absolvidos de seus pecados era tido como demonstração da força do poder divino As ladainhas ritmadas as rezas proferidas em latim o som dos sinos e campânulas a imponência dos trajes sacerdotais como escapulários o altar consagrado com relíquias tiradas dos ossos ou pedaços de roupa de santos e purificado pela fumaça aromática dos incensadores enfim todos esses aspectos contribuíam para que o ofício da missa exercesse um fascínio mágico sobre os católicos como se ali estivesse sendo aberto um acesso privilegiado ao mundo do sobrenatural sob os olhos extasiados dos anjos e santos pintados nos tetos das capelas Um fascínio mágico do qual a Igreja deliberadamente soube tirar vantagens para converter reprimir e atrair seus fiéis A esse catolicismo é que índios e negros subordinados à religião do conquistador foram convertidos e ao qual somaram sua religiosidade de origem OS RITOS INDÍGENAS A presença portuguesa nos primeiros tempos da colonização do Brasil representou uma guerra semfim contra os índios que aqui viviam A maioria de uma população que se acredita em torno de cinco milhões de índios em 1500 reunidos em centenas de grupos foi dizimada fazendo com que nações inteiras desaparecessem como os tupinambás antigos habitantes da costa brasileira Os que não eram mortos eram feitos prisioneiros e escravizados para trabalhar nas frentes de colonização As missões jesuíticas logo trataram de convertêlos à fé católica Todavia como costuma acontecer entre culturas diferentes que se encontram os grupos indígenas mesmo convertidos não abandonaram totalmente suas crenças e tradições Assim ao mesmo tempo em que os índios associaram seus deuses aos santos e ao deus dos católicos estes associaram os demônios aos espíritos indígenas como o Jurupari entidade sobrenatural filho da virgem que veio mandado pelo Sol para reformar os costumes da terra cf Cascudo 1988 p 420 Hoje em dia é muito difícil reconstituir o que teriam sido as religiões originais desses índios Pelas poucas informações que se tem e comparandoas com as práticas atuais dos grupos que sobreviveram podemos apenas ter uma ideia das características básicas dessa religiosidade Seu ponto central era o culto à natureza deificada O pajé e o feiticeiro ou xamã eram os que tinham acesso ao mundo dos mortos e dos espíritos da floresta e geralmente a eles competia realizar rituais de cura de doenças expulsar maus espíritos que se alojavam nos corpos das pessoas e desfazer feitiços mandados pelos inimigos A ingestão de alimentos e bebidas fermentadas em muitos grupos tinha uma função ritual Mesmo a antropofagia que caracterizou os tupinambás se revestia de um tom sagrado Acreditavam que comendo a carne dos seus inimigos apoderavamse de sua valentia e coragem O uso de instrumentos mágicos chocalhos maracás e adornos feitos com penas de aves era indispensável para o cerimonial do pajé A fumaça derivada da queima do fumo também assumia um papel ritualístico importante Para catequizar os índios os missionários combat ídolo de pedra que recebia o nome de Maria o qual tinha como função promover a incorporação do espírito da santidade Espírito Santo no fiel através do uso do tabaco conforme prática comum entre os pajés indígenas cf Bastide 1985 p 243 Como se vê o índio mesmo católico não deixou de acreditar em seus deuses de cultuar os espíritos das florestas ou de reverenciar seus ancestrais No século XVII ao sincretismo indígenacatólico foi acrescentada a influência das religiões trazidas pelos escravos negros AS RELIGIÕES AFRICANAS As etnias do negro No Brasil costumavase classificar os escravos de acordo com a localização dos portos onde embarcavam na África e como nestes se reuniam negros de várias procedências capturados no litoral ou no interior do continente ainda hoje prevalece muita confusão acerca de sua origem Até onde se sabe entre as principais etnias grupo de origem e cultura comuns africanas que desembarcaram nas costas brasileiras sobrevivendo às precárias condições de viagem nos porões dos navios negreiros destacaramse dois grupos os sudaneses e os bant os Os sudaneses englobam os grupos originários da África Ocidental e que viviam em territórios hoje denominados de Nigéria Benin exDaomé e Togo São entre outros os iorubás ou nagôs subdivididos em queto A catequese dos índios também serviu para subordinálos nos interesses econômicos de Portugal igrejas em todo o mundo os terreiros são autônomos Cada chefe de terreiro é o senhor absoluto a autoridade máxima o papa de sua comunidade A história dessas religiões tem sido feita portanto quase que anonimamente sem registros escritos no interior dos inúmeros terreiros fundados ao longo do tempo em quase todas as cidades brasileiras Ao lado dessas dificuldades existem ainda outras relativas ao desinteresse pelos estudos das religiões afrobrasileiras É que tanto no senso comum como em muitos circuitos intelectuais essas religiões não desfrutam do mesmo status de outras por exemplo o catolicismo cuja história tem sido fartamente registrada e em muitos casos divulgada nas escolas como parte dos currículos de algumas disciplinas oficiais ou como matéria principal do ensino religioso facultativo Os cultos afrobrasileiros por serem religiões de transe de sacrifício animal e de culto aos espíritos portanto distanciados do modelo oficial de religiosidade dominante em nossa sociedade têm sido associados a certos estereótipos como magia negra por apresentarem geralmente uma ética que não se baseia na visão dualista do bem e do mal estabelecida pelas religiões cristãs superstições de gente ignorante práticas diabólicas etc Alguns desses atributos foram inclusive reforçados pelos primeiros estudiosos do assunto que influenciados pelo pensamento evolucionista do século passado cujo modelo de religião superior era o monoteísmo cristão viam as religiões de transe como formas primitivas ou atrasadas de culto Assim religião opunhase à magia da mesma dos e pecaminosos como a antropofagia a magia e a poligamia Contudo para que os índios melhor assimilassem a espiritualidade cristã os missionários deixavam que os nativos adaptassem ao catolicismo outras características de sua religião consideradas não ofensivas à fé de Cristo O consumo ritual de alimentos característica da religião indígena foi por exemplo revestido pelos padres de um sentido cristão A farinha de mandioca abençoada pelos padres nos domingos após as missas à falta de pão de trigo era comida pelos índios com muita devoção cf Azevedo 1976 p 378 Sob essas condições a conversão do índio se fez pela união de suas crenças com as católicas A Santidade movimento do século XVI em que o xamanismo indígena e a antropofagia ritual somavamse à devoção aos santos católicos foi um dos mais significativos exemplos desse sincretismo Em 1583 manifestouse um desses movimentos em forma bastante expressiva na Bahia Pelas imediações das vilas apareceram grandes grupos de indígenas com insígnias e emblemas católicos mas com danças cantos e instrumentos nativos nesses grupos manifestavamse transes faziamse sacrifícios de crianças e praticavamse ritos aparentemente expiatórios atacavam fazendas e engenhos e pregavam que os seus ancestrais mortos há muito tempo deveriam chegar em navio para livrar os índios da servidão aos portugueses Azevedo 1976 p 382 Na Primeira Visitação do Santo Ofício da Inquisição também temos a descrição de uma Santidade que foi perseguida pela Igreja Nesse culto indígena cujo chefe era denominado de papa idolatravase um ijexá egbá etc os jejés ewe ou fon e os fantiachantis Entre os sudaneses também vieram algumas nações islamizadas como os haussás tapas peuls fulas e mandingas Essas populações se concentraram mais na região acucareira da Bahia e de Pernambuco e sua entrada no Brasil ocorreu sobretudo em meados do século XVII durando até metade do século XIX Os bant os englobam as populações oriundas das regiões localizadas no atual Congo Angola e Moçambique São os angolas caçanjes e bengalas entre outros Desse grupo calculase que tenha vindo o maior número de escravos Foi também o que maior influência exerceu sobre a cultura brasileira tendo deixado marcas na música na língua na culinária etc Os bant os se espalharam por quase todo o litoral e pelo interior principalmente Minas Gerais e Goiás Sua vinda teve início em fins do século XVI e não cessou até o século XIX Os negros que foram vendidos como escravos eram capturados diretamente pelos europeus ou comprados em regiões de intenso comércio escravagista como a do Golfo do Benin conhecida como Costa dos Escravos Em muitos casos os negros vendidos nessas regiões eram aprisionados por tribos inimigas ou pertenciam a facções rivais dentro de sua própria tribo Recentes pesquisas históricas mostram que em fins do século XVIII uma rainha do Daomé Agontimé mulher do rei Agonglo que foi derrotado por seu rival Adandozan foi vendida como escrava tendo vindo parar em São Luís do Maranhão E nessa cidade no terreiro Casa das Minas ainda existente teria difundido o culto aos deuses voduns da família real daomeana cf Verger 1990 Os contatos entre as várias nações africanas e entre estas e os brancos já eram frequentes em períodos anteriores à deportação dos grupos negros para o Brasil Devido às relações de aliança ou de dominação entre os reinos africanos era comum que cultos e divindades se difundissem de uma região para outra como a adoção pelos iorubás de alguns dos deuses do Daomé e viceversa O islamismo proveniente da África Oriental também já havia se estendido até a costa ocidental e o colonialismo europeu a partir do século XVIII intensificou o contato religioso entre brancos e negros Pela ação da catequese religiosa muitas tradições étnicas foram transformadas A escravidão fez assim com que homens mulheres e crianças membros de reinos clãs e linhagens aliados e inimigos caçadores guerreiros agricultores sacerdotes e cultuadores de antepassados enfim pessoas com relações de parentesco próprias vivendo sob uma determinada organização social política e religiosa fossem retiradas desses contextos para tornaremse mãodeobra escrava numa terra distante e numa sociedade diferente da sua Aqui tiveram de viver sob um regime que não lhes conferia o status de pessoa eram vistos como meras peças compradas e revendidas como coisas Seu diaadia era marcado por jornadas de trabalho que começavam nas primeiras horas da madrugada e terminavam quando seus donos permitissem Os negros amontoados nas senzalas barracos de portas e janelas estreitas sem ventilação ou higiene dormindo em esteiras pelo chão e separados de seus parentes ficavam à margem do convívio social De um lado estava o modelo dominador da família patriarcal da casagrande onde o senhor de engenho reinava absoluto tendo sob suas ordens mulher e filhos clero e autoridades civis na casagrande o negro só entrava como escravo doméstico amadeleite pajem dos sinhozinho e das sinhazinhas De outro lado estavam os valores e tradições culturais que os negros trazidos da África tentarão conservar a todo custo como seres dotados de um passado que a brutalidade do cotidiano não pode apagar Entre a senzala e a casagrande A catequese dos negros não correspondeu salvo em raras exceções ao protesto dos jesuítas e padres contra as condições desumanas de trabalho e de maus tratos a que os negros foram submetidos Esta atitude contraditória da Igreja fez com que a catequese e a manutenção da escravidão andassem de mãos dadas Embora pregassem a igualdade e a fraternidade dos homens perante Deus navios negreiros utilizados no comércio escravagista eram batizados com nomes católicos Nossa Senhora da Imaculada Conceição Mãe de Deus e muitos padres eram donos de escravos Aos negros era ensinada a resignação e a obediência ao senhor de engenho como forma de alcançar o céu e redimir os pecados de suas almas A comparação entre as privações da vida do escravo e os sofrimentos de Cristo era frequentemente utilizada para consolálos Os negros tornados cristãos pelo batismo somavam à fé nos santos católicos sua devoção aos orixás africanos Como se vê o escravo deveria aceitar a religião do branco embora este raramente procurasse se aproximar para entender a religião do negro que desde cedo foi estigmatizada considerada coisa do mal do diabo enfim ofensiva a Deus O catolicismo do negro A partir de fins do século XVII o catolicismo brasileiro até então uma religião doméstica centrada na capela das fazendas passou a ser uma religião das cidades que se formavam ao redor dos engenhos de açúcar do litoral ou das minas de ouro do interior As igrejas tornaramse os principais centros aglutinadores das atividades religiosas e pontos de convergência da comunidade que era formada pelos segmentos básicos da sociedade colonial a aristocracia o clero e os escravos No alto dessa hierarquia social a aristocracia e o clero muitas vezes se confundiam As famílias aristocráticas conscientes do alto prestígio do clero esforçavamse para ter um padre entre os seus membros Figura de poder ao padre competia não só rezar missas ministrar os sacramentos da Igreja batizados casamentos etc mas também cuidar da educação dos jovens zelar pela moral católica e é claro além desse controle religioso e social apoiar as alianças políticas segundo os interesses da Igreja Com o crescimento das cidades decorrente da multiplicação das atividades econômicas produção de açúcar mineração do ouro fumo gado café etc a partir do século XVIII a vida urbana passou a apresentar uma heterogeneidade de problemas e uma proximidade entre as classes que ameaçaram as fronteiras entre senhores e escravos ricos e pobres Nas cidades uma população considerável de indivíduos mestiços negros alforriados e escravos de ganho que trabalhavam como vendedores barbeiros e carregadores andavam livremente pelas ruas se reuniam pelas esquinas e becos e formavam associações de ofício e de lazer onde se entregavam efusivamente às suas danças e rodas de capoeira e de batuque Assim se a religião aproximava os negros dos brancos e a cidade com seu estilo de vida facilitava os contatos entre as classes era preciso que a Igreja controlasse essa aproximação mantendo os grupos subordinados nessa condição tanto no interior das instituições religiosas católicas como na sociedade fora delas O ofício da missa e a realização das festas religiosas ou cívicas que envolviam procissões autos e folguedos quebravam a rotina de trabalho marcando os domingos e feriados santificados Eram momentos privilegiados de reunião da sociedade de convergência da população urbana e das vizinhanças Tornados católicos os negros escravos e a população mestiça tinham o direito de freqüentar a missa e as igrejas de seus senhores Contudo só faziam isso em espaços reservados a eles como nos pórticos de onde assistiam à missa em pé Na nave principal as famílias senhoriais ocupavam os bancos de acordo com sua riqueza e seu prestígio Quanto mais ricas e poderosas mais próximas ficavam do altar principal Uma das leis do acordo entre a Coroa portuguesa e a Igreja dizia que o escravo deveria ser batizado no prazo máximo de cinco anos depois de chegado ao Brasil Assim competia à Igreja aplicar os sacramentos básicos que os transformassem de pagãos pecadores em cristãos O batismo e a adoção de um nome cristão geralmente de inspiração bíblica ou de santos como José Maria Sebastião e Benedito não lhes garantia Entretanto nenhum tratamento fraterno ou mesmo humano A Igreja fazia vistas grossas ao tipo de conversão do escravo considerado mãodeobra essencial uma vez que punilo por seus desvios religiosos era privar o senhor de engenho de uma importante força de trabalho Bastava neste caso o verniz católico para satisfazer a consciência de padres e senhores A vida sexual dos negros também era vigiada para que se pudesse combater o pecado da promiscuidade e preservar a moral católica Os casais se formavam a partir das preferências do senhor de engenho tendo em vista a procriação de filhos saudáveis para o trabalho na lavoura e o seu casamento era abençoado pelo padre local Já em relação ao sexo entre brancos e negros a moral católica era mais condescendente diante da evidência dos freqüentes nascimentos de filhos bastardos do senhor de engenho com suas escravas Para esses mulatos que continuaram escravos mesmo tendo como pai o senhor de engenho ou os filhos destes que se iniciavam sexualmente com as negras o destino reservado foi o da dupla discriminação a dos brancos que os consideravam negros e a destes que os consideravam brancos Os que foram libertados por influência das senhoras que não queriam ver por perto o fruto do adultério de seus maridos logo engrossaram as fileiras dos desocupados e dos indivíduos que prestando serviços ocasionais aqui e ali formaram uma categoria intermediária que não tinha a solidariedade nem dos servos nem dos patrões A repressão à magia africana A Igreja vinculada a interesses diversos que se refletiam na política ambígua de catequese dos negros ora tentava disciplinar a vida religiosa destes grupos ora fazia vistas grossas às suas danças cânticos e rezas realizadas em domingos e feriados santificados nos terreiros das fazendas em frente às senzalas Nessas ocasiões os padres preferiam acreditar na justificativa dos negros que diziam ser os batuques homenagens aos santos católicos feitas em sua língua natal e com as danças de sua terra Neste sentido os batuques eram tolerados porque vistos como um inofensivo folclore A aristocracia e o governo quando admitiam os batuques era porque além de considerálos como folclore havia uma justificativa política por trás da tolerância Julgavam que sua prática fosse uma forma de os negros manterem vivas suas tradições africanas e as rivalidades entre os grupos de escravos provenientes de nações inimigas na África Assim a organização de rebeliões ficaria mais difícil se não se criassem entre as etnias africanas laços de solidariedade que as aproximassem do inimigo comum os escravizadores Continuo se as danças e músicas foram toleradas o aspecto mágico da religiosidade africana foi duramente combatido As religiões africanas caracterizavamse como ainda hoje pela crença em deuses que incorporam em seus filhos São também religiões baseadas na magia O sacerdote ao manipular objetos como pedras ervas amuletos etc e fazer sacrifícios de animais rezas e invocações secretas acredita poder entrar em contato com os deuses conhecer o futuro curar doenças melhorar a sorte e transformar o destino das pessoas Por esses princípios a magia africana era vista como prática diabólica pelas autoridades eclesiásticas como já havia ocorrido com as religiões indígenas Principalmente porque sendo o catolicismo colonial também uma religião fortemente magicizada era preciso distinguir a fé católica nos santos almas benditas e milagres das crenças consideradas primitivas em seres que incorporam em espíritos que recebem como alimento sacrifícios de sangue e em adivinhos que operam curas Da mesma forma que foi preciso distinguir a ingestão da hóstia representando o corpo de Cristo da antropofagia ritual dos índios Durante as Visitações o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição perseguiu e condenou muitos negros por ver seus encontros com cantos e danças frenéticas como invocações do demônio espécies de orgias à semelhança dos sabás europeus Os transes dos negros eram vistos como demonstração de possessão demoníaca e as adivinhações sacrifícios e outras práticas mágicas eram bruxaria ou então magia negra como se convencionou chamar a magia feita para o mal Essa irmandade criada pelos jesuítas em 1586 visava atrair os negros através da devoção aos santos de cor preta São Benedito e às virgens negras Nossa Senhora do Rosário Em geral essas irmandades reuniam escravos de uma mesma nação africana e muitas vezes eram exclusivas de homens ou de mulheres Na Bahia os daomeanos jejes foram agrupados na Confraria do Senhor da Redenção os negros angolas na Ordem Terceira do Rosário os mulatos na Ordem do Senhor da Cruz cf Bastide 1985 p 171 Procurando traduzir o catolicismo para a compreensão dos negros a Igreja permitia que as irmandades organizassem seus folguedos como forma de participarem das comemorações cristãs pois negarlhes totalmente os seus folguedos que são o único alívio do seu cativeiro é querêlos desconsolados e melancólicos de pouca vida e saúde Portanto não lhes estranhe os senhores o criarem seus reis cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano e o alegraremse inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito e do orago da capela do engenho Antonil apud Braga 1987 p 14 Os escravos tinham também nas irmandades uma importante associação de auxílio mútuo Através da contribuição de seus filiados tentavase formar um pecúlio suficiente para comprar a alforria dos seus membros e assegurar um enterro cristão aos seus filiados o que geralmente era feito misturandose as ladainhas católicas com os ritos funerários da nação africana do morto Nas procissões que percorriam as ruas da cidade em louvor a Corpus Christi Cinzas São Francisco etc a aristocracia branca o clero os negros e os mulatos desfilavam sempre de modo a não se misturarem durante o cortejo Ao participar dessas cerimônias o negro incorporou a elas seu modo de ser marcado pela alegria música dança e utilização de instrumentos de percussão O viajante SaintHilaire que esteve no Brasil entre 1816 e 1822 relata como na procissão das Cinzas em Minas Gerais por influência dos negros a cerimônia tornavase irreverente com ridículas palhaçadas que se misturavam com o que a religião católica tem de mais respeitável 1975 p 66 Os alemães Spix e Martius que estiveram no Brasil nessa mesma época em sua visita a Salvador narram que os festejos do Senhor do Bonfim no arredalde desse nome os quais se celebram duas vezes ao ano atraem inumerável aglomeração de povo e duram com a iluminação da igreja e dos edifícios próximos alguns dias e noites O vozerio e os divertimentos extravagantes do grande número de negros ali reunidos dão a essa festa popular uma feição estranha e excêntrica da qual só pode fazer idéia quem observou as diversas raças na sua promiscuidade 1981 p 152 Também nos autos teatralizações de passagens bíblicas ou de eventos da história do cristianismo os negros sempre representavam os inimigos da fé Nas cavalhadas teatralizações com cavaleiros que simulam a batalha entre mouros povo islamizado que invadiu Lucifer Rugendas A alegria a dança e os instrumentos musicais ingredientes da religiosidade dos negros chocavam a sociedade conservadora colonial CAPÍTULO 2 candomblé e a reinvenção da África no Brasil O nome mais freqüente para as religiões de origem africana no Brasil até o século XVIII parece ter sido calundu termo de origem banto que ao lado de outros como batuque ou batucajé designava e abrangia imprecisamente toda sorte de dança coletiva cantos e músicas acompanhadas por instrumentos de percussão invocação de espíritos sessão de possessão adivinhação e cura mágica Os calundus foram até o século XVIII a forma urbana de culto africano relativamente organizado antecedendo às casas de candomblé do século XIX e aos atuais terreiros de candomblé Um dos relatos mais antigos que se tem dos calundus é de 1728 Na Bahia o viajante português Marques Pereira hospedado em uma fazenda não conseguiu dormir devido ao estrondo dos tabaques pandeiros canzás botijás e castanhetas com tão horrendo alari do que lhe pareceu a confusão do inferno Reclamo na manhã seguinte ao seu anfitrião que se desculpou dizendo que se soubesse que o barulho iria perturbar o sono do visitante mandaria que naquela noite não tocassem os pretos seus calundus Curioso o visitante perguntou Senhor que coisa é calundus Explicoulhe o fazendeiro São uns folguedos ou adivinhações que dizem estes pretos costumam fazer nas suas terras e quando se acham juntos também usam deles cá para saberem várias coisas como as doenças de que precedem e para adivinharem algumas coisas perdidas e também para terem ventura em suas caçadas e lavouras Cascudo 1988 p 182 Em Minas Gerais os calundus foram muito frequentes O pesquisador Luis Mott 1986 enumerou algumas de suas práticas Em 1765 no Arraial de São Sebastião o negro Félix foi denunciado por fazer batuques nos quais desciam almas Em 1777 em Itapecerica os negros Roque Angola e Brígida Maria faziam calundus ao som de violas Utilizavam água de ervas para se lavarem e diziam que as almas dos mortos entravam no corpo dos vivos e que o calundu era o melhor modo de dar graças a Deus O negro angola afirmava também ser o Anjo Angélico e tinha o poder do Sumo Pontífice para casar e descasar Em 1781 em Campanha o negro Antônio também chamado de Antônio Calundu fazia adivinhações com um espelho e uma cruz Já o negro Francisco em 1782 na cidade de Mariana adivinhava e curava fazendo as almas falarem através de um búzio e um chapéu cf Mott 1986 p 141 Também em Minas Gerais a pesquisadora Laura de Mello e Souza localizou muitos calundus como o da negra Luzia Pinto publicamente conhecida por ser feiticeira fazendo aparições diabólicas por meio de umas danças a que chamam vulgarmente calundus No seu ritual para adivinhar coisas ela se vestia em certos trajes não usados naquela terra e cantava e dançava ao som de tambores tocados por negros até ficar fora de si falando coisas que ninguém entendia cf Souza 1989 p 267 Em Pernambuco muitos registros mostram os calundus como bailes feitos às escondidas pelos negros em casas ou em roças Um deles é descrito como uma cerimônia presidida por uma preta mestre com altar de ídolos adorando bodes vivos e outros feitos de barro untando seus corpos com diversos óleos sangue de galo dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas Ribeiro 1952 p 28 Por essas descrições dos calundus é possível perceber que já no início do século XVIII esses cultos estavam minimamente organizados em torno de seus sacerdotes chamados por calundu ou calundeiro como o negro Antônio Calundu feiticeiros como a negra Luzia ou preta mestre Eram cultos que englobavam uma grande variedade de cerimônias misturando os elementos africanos atabaques transe por possessão adivinhação por meio de búzio trajes rituais sacrifício de animais banhos de ervas ídolos de pedra etc aos elementos católicos crucifixos anjos católicos o Anjo Angélico sacramentos como casamento e ao espiritismo e superstições populares de origem européia adivinhação por meio de espelhos almas que falam através dos objetos ou incorporadas nos vivos etc A expressão de que o calundu era o melhor modo de dar graças a Deus é bastante reveladora desse sincretismo e mostra que o negro não apenas modificou o catolicismo introduzindo seus ritos nas festas e procissões realizadas nos pátios das igrejas e nas reuniões das irmandades de cor esse sincretismo também foi elaborado no interior dos cultos africanos No Brasil os primeiros calundus estiveram confinados aos espaços das fazendas Só podiam ser realizados na escuridão e solidão das matas e roças ou nos próprios espaços contíguos à senzala o terreiro permanentemente vigiado pelos capatazes para evitar a fuga dos escravos Nestas condições supõese que sua organização tenha enfrentado muitas dificuldades principalmente porque o culto aos deuses africanos estabelece uma série de interdições que devem ser respeitadas Os deuses devem ser cultuados em recipientes especiais que contêm os elementos naturais que os representam como água pedra peças de ferro etc Esses recipientes tratados como coisas vivas porque neles os deuses habitam devem ficar em local consagrado e de acesso reservado pois sobre eles são feitas as oferendas de alimentos e sacrifícios de animais que renovam sua força mágica e a de seus cultuadores Muitos processos católicos contra negros relatam estes fatos como o do escravo do senhor Inácio Xavier que adorava ao deus de sua terra tendo no teto de sua casa uma panela que reverenciava punhalhe guisados e trastes à mesa pedialhe licença para comer e ao redor da mesma panela fazia suas festas e calundures Souza 1989 p 265 Contudo com o crescimento das cidades e o aumento do número de negros libertos mulatos e escravos urbanos que nelas circulavam com maior liberdade e autonomia em relação aos escravos das fazendas as manifestações religiosas encontraram melhores condições para se desenvolverem As moradias dessa população localizadas nos velhos sobrados e nos casebres coletivos tornaramse pontos de encontro e de culto relativamente resguardados da repressão policial Nessas moradias pôdese garantir ainda que precariamente a realização das festas religiosas com uma certa frequência e a construção e preservação dos altares com os recipientes consagrados dos deuses O uso do mesmo espaço para a moradia dos negros e para o culto dos seus deuses foi uma característica dos primeiros templos das religiões afrobrasileiras e que possibilitou a existência dos calundus sob a adversidade do regime de escravidão Característica que a maioria dos templos preserva até hoje Mudanças na ordem constitucional do país e na Igreja católica ocorridas no século XVIII também favoreceram a continuidade dos cultos africanos nos templos urbanos Com a independência do Brasil a Constituição de 1824 garantiu a liberdade de culto desde que o templo não ostentasse símbolos na fachada Esta atitude visava favorecer principalmente os estrangeiros nãocatólicos mas de uma certa maneira criou também um dispositivo legal de proteção à religião dos negros A Igreja depois de uma longa história de repressão religiosa aos cultos populares de origem africana e indígena com o declínio do poder dos tribunais da Inquisição e por influência das idéias da Revolução Francesa e iluministas deixou de perseguilos substituindo a repressão pelo sentimento de superioridade que separou a fé católica das elites brancas das práticas consideradas rudes e ignorantes do povo cf Souza 1989 p 324 Se a privacidade dos templos contribuiu para uma melhor organização da religião e para coibir a repressão isto não significou contudo que esta tenha cessado Com as sucessivas revoltas de escravos que ocorreram principalmente na Bahia na primeira metade do século XIX temeuse que as reuniões de negros disfarçadas de encontros religiosos facilitassem a elaboração dos levantes De fato muitas insurreições de escravos foram feitas por negros de uma mesma etnia que professavam valores religiosos comuns e se valeram deles para mobilizaremse contra os seus escravizadores Foi o que ocorreu por exemplo na revolta dos malês sudaneses islamizados que usavam para se protegerem durante os conflitos amuletos patuás feitos com orações copiadas do Alcorão o livro sagrado dos muçulmanos contendo as palavras de Deus transmitidas a Maomé pelo anjo Gabriel Entre os terreiros e os quilombos também havia estreitas relações de ajuda Alguns quilombos localizados nas proximidades das cidades se mantiveram auxiliados pelas casas de candomblé E foi nelas que muitos escravos fugidos ou revoltosos se esconderam da perseguição dos capitãesdemato e da guarda cf Rodrigues 1977 O terreiro associouse assim ao protesto do negro contra as condições da escravidão colocando tanto sua organização a favor da luta pela libertação como no plano religioso promovendo a crença na magia compartilhada por pessoas que tinham em comum além da condição de subordinação a esperança na transformação dessas condições ABOLIÇÃO E REPÚBLICA A EMERGÊNCIA DO CANDOMBLÉ Com a abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da República no ano seguinte uma nova ordem econômica e política se instaurou no Brasil O trabalho escravo foi substituído pelo assalariado e a Monarquia deu lugar ao regime republicano A República instalada no Brasil sob influência das idéias liberais e positivistas européias de liberdade igualdade fraternidade ordem e progresso teve como suporte além dos setores militares que a proclamaram as velhas oligarquias agrárias e as novas elites industriais que se formavam nesse período A libertação dos escravos deu mostras da crise por que passava o império em sua última fase De um lado estava o império pressionado externamente por países como a Inglaterra e os Estados Unidos recémsaídos de uma guerra interna contra a escravidão que desejavam a ampliação do sistema capitalista baseado na mãodeobra assalariada e na livre concorrência de mercado De outro estavam os interesses internos das elites modernizantes que querendo fazer o Brasil entrar na era industrial viam na escravidão um empecilho Já os políticos abolicionistas percebendo que a escravidão era um tema que insuflava as multidões estimulavam os movimentos antiescravagistas Contudo nenhuma dessas classes tinha um plano para o que fazer com os negros na manhã seguinte à abolição Assim a abolição ao dissolver o antigo regime de produção agrária e não tendo planos para recolocar os negros na sociedade revelou as contradições de uma economia não preparada para funcionar segundo as leis de mercado e de produtividade impostas pelo regime capitalista Proprietário e escravo tornados da noite para o dia patrão e trabalhador livre foram forçados a estabelecer uma relação contratual que escapava à compreensão de ambos acostumados à relação de paternalismo e servilismo Os patrões não desejando sustentar os trabalhadores negros dos seus latifúndios logo se desfizeram de grande parte de seus contingentes de exescravos preferindo empregar os imigrantes europeus que neste período chegaram em grandes levas ao Brasil e eram considerados mais produtivos que os negros O exescravo agora dono de sua própria vida não encontrando mais emprego nas fazendas ou mesmo não querendo nelas permanecer inchou as cidades em busca de melhores condições de sobrevivência Contudo encontrou nelas situação semelhante ou pior do que aquela do seu tempo de cativeiro tendo de se submeter aos serviços mais desqualificados ou às condições mais degradantes de trabalho nos serviços dos cais na construção de estradas de ferro nas oficinas etc O pequeno comércio foi outra atividade dos negros na cidade Povoando as ruas dedicaramse à venda itinerante de vassouras cestos e outros produtos artesanais Ou ainda instalados em humildes quiosques ou portinhas dos velhos sobrados coloniais comercializavam os mais variados produtos como comidas bebidas fumo aves etc As mulheres negras tidas por exímias cozinheiras quando não continuaram como empregadas domésticas na casa de seus antigos donos se estabeleceram vendendo em seus tabuleiros doces acarajés abará s e outras comidas da culinária africana feitas na hora ali mesmo na rua À noite os que tinham um pouco mais de sorte e não dormiam nas ruas e praças dirigiamse para os cortiços que se multiplicaram pelo centro e periferia das cidades Foi nessas moradias coletivas sem água encanada esgoto energia elétrica feitas de madeira e em locais abandonados de morros nas regiões mais decadentes do centro da cidade ou nos subúrbios que o negro se viu livre do senhor porém não da opressão nem da pobreza O projeto modernizante que as classes dominantes queriam instituir no país reclamava a necessidade de civilizar o Brasil colocandoo ao lado das melhores nações européias Junto com os trabalhadores imigrantes que iriam patrocinar nosso desenvolvimento e as novidades tecnológicas da era industrial importouse também o gosto e estilo de vida europeus a moda das luvas do fraque e cartola com os quais a elite desfilava publicamente sob o sol dos trópicos ou dos símbolos de boa educação como falar francês e tocar piano algo muito desejável para as moças de família Os negros e os mulatos perceberam que mesmo tornados iguais aos brancos perante as leis republicanas estavam de fato segregados por sua condição econômica e principalmente racial pois em tal projeto de modernização não lhes foi reservado nenhum espaço As idéias europeizantes das cidades brasileiras levaram a um paulatino isolamento dos núcleos negros considerados pela polícia como local de malandros criminosos bêbados desocupados e embusteiros em geral A ordem era moralizar cf Rolnik 1989 Planos sanitaristas desempenharam seu papel higienizador junto a esses núcleos Tidos como focos de doenças e epidemias que colocavam em risco a saúde da população das cidades esses lugares foram estigmatizados pela classe média e freqüentemente fiscalizados pelas autoridades sanitárias no sentido de isolálos e prevenir o alastramento de possíveis doenças contagiosas como varíola tuberculose febre amarela e muitas outras doenças da pobreza Além do projeto sanitarista o projeto arquitetônico do desenvolvimentismo urbano tratou de controlar e quando possível expulsar os negros dos espaços mais centrais da cidade As freqüentes remodelações na paisagem urbana de cidades como Rio de Janeiro capital da república tinham como inspiração os boulevards parisienses Essas remodelações atendiam aos interesses industriais e mercantilistas das classes empresariais interessadas em tornar a cidade mais limpa dos par dieiros e funcional ao comércio e à freqüência das famílias ricas e de classe média As ruas foram então alargadas derrubandose centenas de cortiços e expulsando sua população para os morros ou para os subúrbios ao longo das linhas de trem Quiosques e outros pontos onde os negros e os pobres comerciavam foram queimados pela classe média que indignada protestava contra aquilo que considerava uma vergonha A cidade é ainda um povoado africano Precisamos acabar com essa miséria escrevia o jornalista Luís Edmundo retratando o Rio de Janeiro de sua época Ao importar o modelo europeu de vida combatiase a herança africana em nossa cultura vista como exemplo de primitivismo e atraso Os valores da ordem da higiene da moda dos hábitos comedidos se chocavam com os da africanidade expressos em suas danças em sua moda de cores vivas em sua comida apimentada enchendo de fumaça as ruas e principalmente em sua religião onde os deuses eram recebidos no êxtase do transe produzido por danças sensuais músicas agitadas e numa alegria estapafúrdia que envolvia o consumo de comidas exóticas e também de bebidas alcoólicas Instalavase o conflito entre o modelo de país que as elites desejavam adotar publicamente e a realidade que o negava pois mesmo aprendendo francês e tocando piano a gente de bem da época não deixava de misturar as polcas e modinhas européias com o ritmo quente e malicioso dos africanos dos lundus e maxixes que se tocavam às escondidas nos salões das famílias mais respeitadas CANDOMBLÉ E UMBANDA 55 Diante desse conflito dirigentes e intelectuais nesse período questionavam a possibilidade de transformar o Brasil em uma nação moderna civilizada tendo como herança o sangue africano vivendo o país preso a hábitos e crenças primitivas como o candomblé que proliferava pelas cidades Para responder a essa pergunta a ciência entrou em ação aplicando aqui as teorias racistas e evolucionistas produzidas na Europa em fins do século passado e que prometiam explicar por que algumas raças e culturas eram mais atrasadas do que outras O médico Raimundo Nina Rodrigues foi o primeiro a se interessar pelo estudo das religiões afrobrasileiras Para escrever seu trabalho pioneiro nesse campo O animismo fetichista dos negros bahianos publicado no Brasil em forma de artigos em 1896 e na França em forma de livro em 1900 visitou inúmeros terreiros de candomblé situados em Salvador uma das principais cidades brasileiras na difusão do candomblé Neles presenciou vários rituais e pôde obter grande quantidade de informações sobre o culto e o transe das divindades africanas até então raramente descritos Na verdade interessouse pelas religiões afrobrasileiras porque estava empenhado em mostrar que essa religiosidade continha um aspecto doentio considerava o transe por exemplo uma forma de histeria Para ele o fato de a religião do africano e a de seus descendentes ser politeísta que acredita em vários deuses e animista atribuir alma vida a objetos inanimados demonstrava a inferioridade do negro em relação ao branco cuja religião monoteísta que acredita CANDOMBLÉ E UMBANDA 51 num único deus exigia abstrações mais sofisticadas do pensamento Nina Rodrigues concluiu então que o Brasil jamais chegaria a ser um país como os da Europa onde a raça negra não exerceu influência Como se percebe em consequência desse ideal de civilização branca moderna e cientificista os negros foram sendo expulsos da vida social de nossas cidades ou responsabilizados cientificamente pelo nosso atraso cultural tendo de sobreviver material e culturalmente ora introjetando os preconceitos de que eram vítimas ora enaltecendo seus valores afirmando suas diferenças e buscando nelas formas de se articularem alternativamente aos padrões do mundo branco dominante Os terreiros que como vimos estavam presentes nas cidades brasileiras desde o período colonial tornaramse também núcleos privilegiados de encontro lazer e solidariedade para negros mulatos e pobres em geral que encontraram neles o espaço onde reconstituir suas heranças e experiências sociais afirmando sua identidade cultural E a religião restituindo algum conforto espiritual e esperança para grupos tão perseguidos e estigmatizados pôde desempenhar seu papel clássico que é o de tornar o sofrimento suportável e fazer da fé uma forma de prosseguir mesmo diante da dissolução do mundo ao redor A FAMÍLIADESANTO E A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DOS TERREIROS A famíliadesanto foi a forma de organização que estruturou os terreiros onde negros e mulatos destituídos de um grupo de referência pela escravidão se reuniam estabelecendo vínculos baseados em laços de parentesco religioso Essa forma de organização persiste até hoje A tradição oral do candomblé diz que sempre houve a famíliadesanto como forma de organização dos cultos aos deuses africanos no Brasil É difícil estabelecer a época em que as primeiras famíliasdesanto se formaram Pelo que se sabe através da história oral narrada pelos adeptos parece terem sido os africanos de uma mesma etnia os fundadores dos primeiros terreiros onde iniciaram outros negros africanos provenientes da sua etnia ou de outras Com o passar do tempo e com o ingresso na religião de crioulos mulatos e finalmente de brancos a famíliadesanto foi assim perdendo sua característica étnica e passou a ligar por vínculos religiosos os vários terreiros fundados pelas gerações seguintes às gerações dos africanos É pela iniciação que uma pessoa passa a fazer parte de um terreiro e de sua famíliadesanto assumindo um nome religioso africano e um compromisso eterno com seu deus pessoal e ao mesmo tempo com seu pai ou mãedesanto Assim um adepto ao se iniciar nasce para a vida religiosa como filho espiritual do seu iniciador o pai ou a mãedesanto Tendo o iniciado um pai ou mãedesanto terá também irmãosirmãsdesanto os iniciados por seu paidesanto tios e tiasdesanto os irmãosirmãs de seu paidesanto avô e avódesanto pai ou mãedesanto do seu paidesanto e assim sucessivamente A esses parentes religiosos CANDOMBLÊ E UMBANDA 59 devese a consideração o respeito o amor e a obediência que supõese deveriam existir entre membros de qualquer família ou ainda mais pois são pessoas unidas por vínculos sagrados A famíliadesanto além de irmanar os que pertencem a uma mesma casa de candomblé estabelece ligações de parentesco entre terreiros parentes de uma mesma família fundadora Um exemplo desses vínculos familiares sagrados pode ser dado pelo terreiro Ilê Iyá Nassô Casa de Mãe Nassô conhecido popularmente como Casa Branca do Engenho Velho localizado em Salvador Este terreiro até onde se sabe foi fundado no século passado por três exescravas iorubás cujos nomes africanos eram Adetá Iyakala e Iyanassô vindas da cidade de Keto Essas mulheres pertenciam à Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte uma ordem exclusiva de mulheres nagôs existente em Salvador Não se sabe ao certo qual delas teria sido a mãedesanto ou se as três se revezaram no poder e direção do terreiro Com a morte dessas primeiras fundadoras a chefia da casa teria sido transferida para Marcelina da Silva cujo nome de iniciada era Obatossí Após a morte de Marcelina uma rivalidade entre duas candidatas à sucessão Maria Júlia da Conceição e Maria Júlia Figueiredo deu origem à saída da primeira que fundou o terreiro Iya Omi Axé Iyamase conhecido popularmente como terreiro do Gantois nome do local onde este se localizou em Salvador Foi como chefe desse terreiro que Mãe Menininha Escolástica Maria de Nazaré a quarta mulher a ocupar esse posto tornouse famosa sua Discoteca Oneyda AlvarengaCentro Cultural São Paulo Famíliadesanto de Apolinário Gomes da Mota Recife CANDOMBLÊ E UMBANDA 61 morte em 1986 foi vista como o fim das gerações das grandes mãesdesanto baianas Foi também nesse terreiro em fins do século passado que Nina Rodrigues desenvolveu suas pesquisas sobre o candomblé Uma segunda dissidência no Engenho Velho posterior à que resultou na saída da mãedesanto fundadora do Gantois levou Eugênia Ana Santos brasileira filha de africanos auxiliada por Joaquim Vieira da Silva um africano chegado de Recife a fundar em 1910 o terreiro Axé Opô Afonjá localizado em São Gonçalo do Retiro também em Salvador Com o crescimento da famíliadesanto formada por esses três terreiros outros foram aparecendo como o de Nossa Senhora das Candeias fundado no Rio de Janeiro por Mãe Nitinha filhadesanto do Engenho Velho cf Carneiro 1978 Lima 1977 Verger 1981 Esses terreiros saídos do Engenho Velho formaram uma imensa famíliadesanto composta por várias gerações de sacerdotes que se sucederam ao longo de quase duzentos anos de história comum Como esses outros terreiros fundados à mesma época ou mais recentemente em Salvador ou em outras cidades brasileiras expandiram continuamente o candomblé pelo país No Brasil também a hierarquia religiosa teve de considerar o contexto histórico em que se encontrava o culto aos deuses africanos Na África o controle da religião geralmente ficava nas mãos de sacerdotes específicos ou de famílias encarregadas de cultuar certos deuses fazerlhes ofertas e iniciar as pessoas para que os incorporassem nas Discoteca Oneyda AlvarengaCCSP Pai Joãozinho da Goméia acima e Mãe Menininha do Gantois a mais conhecida e homenageada mãedesanto brasileira festas e comemorações Entre os iorubás por exemplo a adivinhação era função dos babalaôs que cultuavam o deus Ifá divindade capaz de predizer o futuro através dos jogos adivinhatórios O conhecimento das ervas utilizadas em remédios ou em vários rituais era uma atribuição do olossaim cultuador do orixá Ossaim deus das folhas Xangô que fora rei da cidade de Oyó e depois divinizado como senhor dos raios e trovões era cultuado pela família real dessa cidade O culto tinha portanto um caráter familiar exclusivo de uma linhagem de um clã ou mesmo de um grupo de sacerdotes Os templos africanos restringiamse por esse motivo ao culto de apenas uma ou poucas divindades Os deuses iorubás por exemplo eram cultuados principalmente em suas cidades Xangô em Oyó Oxóssi em Keto Oxum em Ipondá e Oxobô e assim por diante No Brasil essa estrutura religiosa não pôde se repetir Como vimos a escravidão separou famílias e etnias trazendo escravos de lugares diferentes com cultos e conhecimentos diferentes em relação aos segredos rituais de sua religião Somado a isso o extremo rigor da perseguição aos cultos africanos no Brasil não permitiu que os templos pudessem se multiplicar ao ponto de se dedicar ao culto exclusivo de apenas um orixá Por esses motivos os terreiros tiveram de agrupar o culto a várias entidades inclusive as de etnias diferentes Devido à conversão dos negros ao catolicismo e ao contato cultural com os índios o culto aos deuses africanos somouse ao dos santos católicos e ao das divindades indígenas Planta de um compound africano apud Cunha 1985 Planta do Terreiro Engenho Velho Salvador BA apud Carneiro 1978 das festas públicas reproduziu o pátio interno do compound AS NAÇÕES DO CANDOMBLÉ No candomblé a forma de cultuar os deuses seus nomes cores preferências alimentares louvações cantos dança e música foi distinguida pelos negros segundo modelos de rito chamados de nação numa alusão significativa de que os terreiros além de tentarem reproduzir os padrões africanos de culto possuíam uma identidade grupal étnica como nos reinos da África Os sudaneses foram os grupos que predominaram no século XIX época em que as condições urbanas históricas e sociais de perseguição aos cultos diminui em relação ao período colonial no qual os bantus foram majoritários Devido a essas e outras condições a estrutura religiosa dos povos de língua iorubá forneceu ao candomblé sua infraestrutura de organização influenciada pelas contribuições dos demais grupos étnicos Desse processo resultaram os dois modelos de culto mais praticados o rito jejenagô e o angola O rito jejenagô Esse rito que abrange as nações nagôs queto jexá etc e as jejes jejefon e jejemarrin enfatiza o legado das religiões sudanesas Segundo seus praticantes é considerado mais puro ou superior aos demais porque nele foram preservadas com maior fidelidade as ori gens africanas A noção de pureza e de deturpação no candomblé é assunto bastante polêmico e a ideia da superioridade nagô difundida inclusive pelos principais estudiosos das religiões afrobrasileiras tem sido atualmente bastante criticada e revista cf Dantas 1988 Gonçalves da Silva 1992 Nos terreiros onde o rito jejenagô é praticado geralmente cultuamse orixás voduns erês espíritos infantis e caboclos espíritos indígenas Os terreiros onde prevalece o culto aos orixás são popularmente conhecidos como candomblé queto os de culto aos voduns são chamados de candomblé jeje Nos terreiros partidários da noção de pureza ritual o culto aos caboclos assim como o sincretismo com os santos católicos tem sido malvisto e em muitos casos abolido Nessa nação os atabaques são percutidos com pequenas varinhas os aguidavis cantase para os orixás principalmente em dialeto africano e segundo seus ritmos característicos como o adarrum agueré bravum ijexá sató e vamunha cf Amaral Gonçalves da Silva 1992 O rito angola Esse rito que abrange principalmente o cerimonial congo e cabinda procura enfatizar a herança das religiões bantus Essa nação embora seja a mais popular e a mais praticada pelo povodesanto é vista por membros de outras nações como deturpada pois possui um panteão bem mais abrangente Cultua além dos inquices deuses dos bantus os orixás os voduns os vunjes espíritos infantis e os caboclos Nos terreiros dessa nação chamados de candomblé de angola os atabaques são percutidos com as mãos e as cantigas possuem muitos termos em português Seus ritmos característicos são a cabula o congo e o barravento ou muzenza cf Amaral Gonçalves da Silva 1992 O candomblé de angola pelo grande afluxo e dispersão dos bantos no Brasil difundiuse por quase todo o país Em alguns estados em fins do século passado o candomblé de angola sempre aberto às influências católicas e ameríndias recebeu nomes próprios como cabula no Espírito Santo macumba no Rio de Janeiro e candomblé de caboclo na Bahia É claro que esses cultos também foram permeáveis à influência jejenagô e muitas vezes não sabemos ao certo qual delas predominou Ainda que os terreiros como vimos estejam divididos por nação associadas aos grupos étnicos africanos não significa entretanto que eles pratiquem um culto igual ao praticado por essas mesmas nações na África pois como vimos as religiões africanas sofreram um sincretismo entre si e com as práticas cristãs e indígenas A referida Mãe Eugênia Ana Santos de que falamos na fundação do Axé Opô Afonjá dizia que sua nação de candomblé era nagô puro Porém ela mesma era descendente de africanos gruncis povo da savana que não mantivera contato com os iorubás até o tráfico de escravos cf Lima 1977 p 20 Assim se na origem as nações de candomblé guardaram algum vínculo com a etnia de seus praticantes porque nelas se cultuavam os ancestrais divinizados das linhagens e dos clãs com o passar do tempo isso foi se transformando principalmente com o ingresso na religião dos crioulos negros nascidos no Brasil dos mulatos e finalmente dos brancos que nenhum vínculo de parentesco tinham com a África A ancestralidade africana como critério para se pertencer ao culto foi abolida e os orixás tornaramse deuses adorados por toda uma população que passou a incorporálos conhecer seus mitos e fundamentos segredos rituais e têlos como suas entidades espirituais regentes independentemente de sua cor ou origem CAPÍTULO 3 O panteão e as denominações regionais das religiões afrobrasileiras Na constituição do panteão das religiões afrobrasileiras o sincretismo desempenhou um papel fundamental Historicamente a associação entre os deuses das várias etnias dos negros já ocorria antes de eles serem trazidos para o Brasil Entre os vários fatores que contribuíram para essa associação estão as semelhanças existentes entre o conceito de orixá dos iorubás de vodum dos jejes e de inquice dos bantos Todas essas divindades eram vistas como forças espirituais humanizadas com personalidades próprias características físicas domínios naturais e algumas viveram na terra antes de se tornarem espíritos divinizados A possibilidade dos devotos de incorporálas para que pudessem dançar e receber homenagens foi outra característica que aproximou seus cultos Essas religiões africanas também tinham em comum a crença num ser supremo chamado de Olodumarê entre os iorubás de Mavu e Lissa entre os jejes e de Zambi entre os bantos Esse ser supremo criou a natureza e as divindades intermediárias que estão acima dos homens Neste sentido os deuses africanos se aproximavam dos santos católicos que foram santificados em função de suas vidas na terra marcadas pela virtude valentia heroísmo resistência a dor etc e considerados intermediários entre os homens e Deus Essas semelhanças entre os deuses africanos e entre estes e os santos católicos deu origem aos sincretismos que em cada região e época escolheram traços para aproximar as divindades Vejamos algumas dessas aproximações entre os deuses africanos e os santos católicos DEUSES AFRICANOS E SANTOS CATÓLICOS EXU orixá mensageiro entre os homens e os deuses é uma das figuras mais polêmicas do candomblé Desde sua origem na África está associado ao poder de fertilização e à força transformadora das coisas Nada se faz portanto sem sua permissão Exu quando não é solicitado diretamente é quem conduz o pedido dos homens para os outros deuses Entre os objetos que o representam está o ogó instrumento de madeira esculpido em forma de pénis e adornado com cabaças e búzios que representam os testículos e o sêmen Espírito justo porém vingativo Exu nada executa sem obter algo em troca e não esquece de cobrar as promessas feitas a ele Um mito iorubano conta que dois amigos esqueceram de fazer as oferendas devidas a Exu Este colocou então na cabeça um chapéu pintado de um lado de vermelho e de outro de branco Ao passar entre os dois amigos cumprimentouos e prosseguiu Os amigos intrigados se questionaram Quem seria o andarilho com aquele chapéu vermelho O outro retrucou Não o chapéu era branco Discutindo a respeito da cor do chapéu os amigos começaram a brigar até se matarem cf Verger 1985 O dia de Exu é a segundafeira dia das almas no calendário católico e sua comida preferida é o galo farofa de dendê pimenta e cachaça Com essas atribuições é fácil de imaginar por que o culto a Exu era visto como demoníaco pela Igreja já na África e no Brasil colonial A associação dessa divindade com o demônio que era invocado nas orgias sexuais das bruxas da Idade Média deulhe feições de diabo com chifres rabo e patas de bode no lugar das mãos No rito jeje o deus mensageiro é Elebará e no rito angola é Aluviá masculino e Pombagira feminino OGUM é o orixá da guerra e do fogo Conhecido também como ferreiro é uma espécie de herói civilizador africano na medida em que conhece os segredos da forja necessários para a fabricação de instrumentos agrícolas e de guerra Por isso seus símbolos são a espada e ferramentas como a enxada e a pá No mito Ogum teria sido o filho do rei Odudua fundador da cidade de Ifé o principal centro divulgador da cultura iorubana da África e conquistador de vários reinos No Brasil suas virtudes para o combate o aproximaram dos santos guerreiros como Santo Antônio que já no século XVI era considerado protetor dos portugueses contra os invasores luteranos Santo Antônio recebeu diversas honrarias militares nas províncias brasileiras foi alistado como soldado chegando inclusive a ser promovido a capitão pelo governador da Bahia em 1705 cf Verger 1981 p 27 Outro sincretismo de Ogum foi com São Jorge ocorrido principalmente no Rio de Janeiro Esse santo guerreiro retratado sobre seu cavalo de onde combate e vence com uma lança um dragão era também venerado pelo exército Na guerra do Paraguai na qual lutaram muitos negros atribuiuse à proteção de São Jorge e portanto a Ogum a vitória dos brasileiros na batalha de Humaitá No rito jeje corresponde a Ogum o vodun Doçu filho de rei tido como cavaleiro que dança usando um chicote e também sincretizado com São Jorge No rito angola o deus guerreiro é Inicoc ou Roxo Mucumbe OXÓSSI é o orixá da mata Caçador retira dela seu sustento e o de sua tribo Na África era cultuado pelas famílias reais da cidade de Keto da qual fora rei No Brasil tornouse padroeiro dessa nação e uma das divindades mais populares do candomblé Em alguns mitos Oxóssi e Ogum aparecem como irmãos lembrando que também era função dos caçadores combaterem os inimigos No rito jeje o deus da caça é Azacá No rito angola é Mutacalombo e Congombira Na Bahia Oxóssi foi sincretizado com São Jorge por ser esse santo um caçador de dragões No Rio de Janeiro foi associado com São Sebastião talvez pelo martírio desse santo que é representado amarrado a uma árvore e com o corpo cravado por flechas Em Pernambuco o deus africano Oxóssi dançando com seus símbolos sagrados o ofá arco e flecha e o eruquerê chicote feito com rabo de boi da caça é visto como São Miguel o anjo caçador de demônios que os vence com uma espada OBALUAIÉ também conhecido por Omolu ou Xapanã é o temível orixá das epidemias da varíola e demais doenças contagiosas e de pele Obaluaié traz no próprio corpo as marcas das doenças que carrega Por este motivo vestese com um chapéu em forma de manto feito de palha da costa fios desfiados de dendezeiro para que ninguém veja seu corpo No Brasil o culto a Obaluaié revestiuse de grande seriedade e temor devido aos poderes que lhe são atribuídos de curar ou de espalhar a peste No período colonial do Brasil devido à grande incidência de doenças contagiosas a que estavam expostos os escravos e a população em geral seu culto confundiuse com o dos santos católicos protetores dos homens contra os males físicos Seu sincretismo mais freqüente foi com São Lázaro que traz o corpo coberto por chagas Para obter a proteção de Obaluaié e de São Lázaro nas igrejas desse santo em Salvador todas as segundasfeiras os devotos do candomblé costumam espalhar pipocas pelo chão o alimento preferido de Obaluaié que lembra as marcas deixadas pela varíola em sua pele Obaluaié também foi sincretizado com São Roque santo que dedicou sua vida a tratar dos doentes empesteados Contase que São Roque tendo contraído o vírus da peste retirouse para uma choupana onde um cachorro das imediações todos os dias lhe levava um pão para o seu sustento Curado milagrosamente volta para sua cidade natal onde por injustiça é perseguido e preso vindo a morrer no cárcere No rito jeje Obaluaié vestido com o azê capuz de palha da costa exibe o xaxará a vassoura com a qual cura os doentes o deus das doenças é Acossi Sapatá e no rito angola é conhecido entre outros nomes por Cavungo ou Cafunã OSSAIM é o deus das folhas das ervas e dos medicamentos feitos a partir delas Seu domínio é o mesmo de Oxóssi a mata Pela importância litúrgica que têm as folhas no candomblé na louvação dos orixás na preparação de banhos rituais etc e pelos seus poderes medicinais o culto a Ossaim desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do candomblé Tido muitas vezes como divindade que possui apenas uma perna Ossaim foi associado com alguns encantados dos mitos indígenas como o caipora indígena e posteriormente o sacipererê que também possuem apenas uma perna e habitam as matas brasileiras No rito angola o inguice das folhas é chamado de Catendé e no rito jeje é Aguê O sincretismo de Ossaim no catolicismo é muito variado Pode aparecer sincretizado com São Benedito São Roque e São Jorge XANGÔ é o orixá que em sua vida na terra foi rei de Oyó uma das principais cidades de língua iorubá Nos mitos aparece como senhor dos raios e do trovão que solta fogo pela boca Seu símbolo é o machado de duas faces e normalmente quando seus filhos o incorporam nos candomblés usam uma coroa mostrando a condição de rei desse orixá Os negros associaramno a São Jerônimo que é retratado como um velho imponente sentado ao redor de livros e tendo a seus pés um leão símbolo da realeza entre os iorubás No rito jeje o vodum BadéQuevioso é um dos responsáveis pelo controle dos astros dos raios dos trovões e das tempestades Xangô orixá que foi rei sendo coroado durante uma festa em sua homenagem Geralmente é festejado no dia de São Pedro com quem também é sincretizado por ser esse santo católico o porteiro do céu e ser retratado nas nuvens No rito angola seu nome é Zaze OXUM é a deusa iorubana da água doce dos lagos das fontes e das cachoeiras Na África está relacionada com a fertilidade das mulheres e com a riqueza dela decorrente já que é pela procriação que se garante a continuidade das famílias e a subsistência das comunidades Por essas características seu culto no Brasil foi somado à devoção católica a Nossa Senhora da Conceição O correspondente a Oxum no rito jeje é Eowa ou Azirítoboce E no rito angola é Quissambo ou Samba IEMANJÁ é a deusa das águas tida como mãe de todos os outros orixás Na África era divindade de um rio de água doce porém para fugir de seu marido desmbocou no mar onde vive junto de sua mãe Okun No Brasil é cultuada sobretudo no mar sendo associada com outros encantados das águas de origem indígena Daí ser louvada também como Rainha do Mar Janaína Mãe Dágua Sereia Iara etc No rito jeje a divindade da água salgada é Abé representada pela estrelaguia que caiu no mar No rito angola o mar é representado por Mãe Danda Dandalunda ou Quissimbe A festa de Iemanjá quando é costume dos devotos levar flores perfumes e outros presentes ao mar tem reunido milhares de pessoas e vem sendo praticada desde o século passado em praias diques fontes e lagos ao longo de quase todo o litoral brasileiro e em várias cidades do interior Devido à relação de Iemanjá com a maternidade seu culto no Brasil foi aproximado ao de Nossa Senhora em suas várias louvações Na Bahia e no Rio Grande do Sul a festa dessa deusa é realizada em 2 de fevereiro dia de Nossa Senhora dos Navegantes e das Candeias No Rio de Janeiro e São Paulo o culto ocorre no dia 8 de dezembro dia de Nossa Senhora da Conceição ou no dia 31 de dezembro na passagem do ano quando se acredita que a água tenha forças benéficas trazidas por Iemanjá para propiciar um ano novo positivo IANSÃ ou OYÁ é a deusa iorubana dos ventos dos raios e das tempestades domínio que divide com seu marido Xangô Segundo o mito o culto aos mortos chamados de egungun também está relacionado a Iansã que preparou roupas especiais para vestilos de modo que pudessem voltar à Terra e falar com os seus descendentes Sobre o culto a Iansã a devoção às almas presente no catolicismo popular pôde encontrar correspondência na religiosidade dos negros No sincretismo afrocatólico Iansã também foi associada a Santa Bárbara que atraiu a fúria de seu pai ao se converter ao catolicismo Condenada à morte foi o próprio pai quem lhe cortou a cabeça ato seguido por terrível tempestade em que um raio atingiu o executor da santa Desse modo Santa Bárbara tem a seu favor o poder do raio dos ventos e da tempestade como Iansã Por isso a imagem de Santa Bárbara uma jovem mulher com uma espada foi também associada ao caráter guerreiro de Iansã No rito jeje a entidade dos trovões é Sobô No rito angola ela é chamada de Bamburucema ou Matamba OXALÁ é o orixá da criação Foi ele quem modelou com o barro o corpo dos homens sobre o qual Olodumarê O Ser Supremo soprou para dar vida No princípio Oxalá foi designado por Olodumarê para criar todo o mundo tendo para isso recebido o saco da criação e o poder de realização axé Contudo antes de sair para a sua missão esqueceuse de fazer as oferendas a Exu que resolveu se vingar provocandolhe uma enorme sede Desesperado ele se embriaga com vinho de palmeira e adormece Olodumarê ao saber do ocorrido designa Odudua o segundo deus criado depois de Oxalá para substituir o orixá embriagado Odudua espalha então a substância do saco da criação sobre a superfície da água até formar um monte Neste monte coloca uma galinha que ciscando vai espalhando continuamente a terra até cobrir a superfície das águas Foi neste monte que se erigiu a cidade de Ifé cf Verger 1981 Devido a essas características o culto a Oxalá foi relacionado com a devoção católica a Jesus também filho do criador supremo e salvador dos homens na Terra Exemplo desse sincretismo entre Jesus e Oxalá aparece numa das festas mais populares na Bahia a lavagem da Igreja do Senhor do Bonfim Nesse caso a origem desse sincretismo está num mito africano O velho Oxalá resolveu visitar seu amigo Xangô rei de Oyó Após longa jornada ao entrar nessa cidade encontrou perdido o cavalo de Xangô Tentando amansálo foi visto pelos soldados do rei que logo o tomaram por um ladrão Oxalá foi atirado na prisão e lá ficou por sete anos Durante esse período grandes catástrofes Oxalá o velho deus da criação caminho apoiado no puxoró o cajado sagrado que o acompanha em suas cerimônias a península Ibérica e eram considerados o mal e cristãos que os expulsaram e eram considerados o bem os negros sempre eram os mouros não só pela semelhança da cor de pele mas por ambos serem considerados pagãos As investidas da aristocracia branca contra as transformações que a religiosidade africana impôs ao catolicismo fizeram com que a Igreja em muitos casos proibisse a realização das cerimônias dos negros junto com as festas católicas Certas celebrações populares como as congadas moçambiques folias de reis e o próprio carnaval que caracterizam a cultura brasileira tiveram aí sua origem Outra forma de separação entre negros e brancos foram as irmandades dos homens de cor Uma das características da Igreja católica no Brasil foi o incentivo à criação de associações de leigos Essas associações como as Confrarias Ordem Terceira Ordem dos Militares Irmandades Santa Casa de Misericórdia e outras tinham por objetivo integrar a comunidade católica através da participação dos seus membros na organização da vida religiosa local Competia às irmandades organizar as festas da paróquia recolher o dízimo prestar serviços assistenciais e divulgar a fé cristã Os negros impedidos de participarem das irmandades dos brancos foram reunidos em irmandades religiosas próprias separadas segundo a cor de pele e a condição de escravo ou de liberto Uma das mais conhecidas irmandades foi a de Nossa Senhora do Rosário estabelecida em vários pontos do Brasil acometeram o reino de Oyó seca epidemias e esterilidade das mulheres Xangô consultou então o adivinho e ficou sabendo da prisão injusta de um velho Ao saber que este era seu amigo Oxalá como forma de desculparse ordenou que todos de seu reino vestissem roupas brancas porque branco é a cor de Oxalá e buscassem água três vezes seguidas para banhar Oxalá Na lavagem da Igreja do Bonfim o costume católico de lavar o chão como ato de devoção forneceu aos negros uma ocasião de comemorarem o banho de Oxalá Assim até hoje os adeptos do candomblé vestidos de branco e carregando na cabeça jarros com água fazem uma grande procissão até a igreja onde lavam seu chão com a água dos jarros homenageando ao mesmo tempo o Senhor do Bonfim e revivendo o mito de Oxalá cf Verger 1981 No rito jeje a criação ficou a cargo do par MavuLissa Mavu representa o princípio feminino e é completada por Lissa o princípio masculino representado pelo Sol No rito angola a divindade da criação é Zambi ou Lemba CANDOMBLÉ BATUQUE E XANGÔ As religiões afrobrasileiras se desenvolveram praticamente em todos os estados onde houve a presença do negro e de seus descendentes Fatores como o tamanho da população negra em relação à de brancos e de índios a influência de determinadas etnias a repressão ao culto as condições urbanas e outros fizeram com que os cultos apresentassem características regionais próprias sendo alguns conhecidos em uma região e desconhecidos em outras Assim variações regionais do rito jejenagô podem ser encontradas por todo o Brasil em cultos equivalentes ainda que distanciados no espaço e aparentemente sem contatos entre si como no candomblé da Bahia no batuque do Rio Grande do Sul e no xangô de Pernambuco o nome do culto vem do orixá Xangô muito cultuado nessa região Com relação a esses cultos é possível deduzir que uma mesma influência iorubá direcionou o seu desenvolvimento incorporando a cultura local Assim se Ogum na Bahia recebe como oferenda feijão preto em Porto Alegre seu prato é o churrasco e nos terreiros dessa cidade os homens dançam vestidos com a bombacha traje típico gaúcho em vez das calças brancas comuns nos outros lugares do Brasil TAMBORDEMINA Na região do Maranhão e do Pará a forte influência dos jejes criou uma forma de culto específica chamada de tambordemina O termo mina é uma referência à procedência dos escravos aprisionados no forte português São Jorge da Mina na África Ocidental antes de embarcarem para o Brasil Com exceção de alguns terreiros da Bahia e de Porto Alegre foi no Maranhão particularmente em São Luís que o culto aos voduns divindades dos jejes mais se desenvolveu Na Casa das Minas terreiro fundado nessa cidade em meados do século passado os voduns são cultuados de acordo com as famílias mitológicas às Essa irmandade criada pelos jesuítas em 1586 visava atrair os negros através da devoção aos santos de cor preta São Benedito e às virgens negras Nossa Senhora do Rosário Em geral essas irmandades reuniam escravos de uma mesma nação africana e muitas vezes eram exclusivas de homens ou de mulheres Na Bahia os daomeanos jejes foram agrupados na Confraria do Senhor da Redenção os negros angolas na Ordem Terceira do Rosário os mulatos na Ordem do Senhor da Cruz cf Bastide 1985 p 171 Procurando traduzir o catolicismo para a compreensão dos negros a Igreja permitia que as irmandades organizassem seus folguedos como forma de participarem das comemorações cristãs pois negarlhes totalmente os seus folguedos que são o único alívio do seu cativeiro é querêlos desconsolados e melancólicos de pouca vida e saúde Portanto não lhes estranhe os senhores o criarem seus reis cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano e o alegraremse inocentemente à tarde depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário de São Benedito e do orago da capela do engenho Antonil apud Braga 1987 p 14 Os escravos tinham também nas irmandades uma importante associação de auxílio mútuo Através da contribuição de seus filiados tentavase formar um pecúlio suficiente para comprar a alforria dos seus membros e assegurar um enterro cristão aos seus filiados o que geralmente era feito misturandose as ladainhas católicas com os ritos funerários da nação africana do morto quais pertençam A família de Davice é formada pelos voduns chamados nobres reis e rainhas da corte real do Daomé É considerada a principal família mitológica do terreiro e hospeda as demais a família de Savaluno constituída pelos voduns adorados na região ao norte do Daomé a família de Dambirá a dos voduns da terra das doenças e da peste e a família de Quevioso e de Aladanu a dos voduns dos raios dos trovões do ar e das águas Esta última família é considerada de origem nagô iorubá pelos jejes por isso os voduns que a ela pertencem quando incorporam alguém não falam pois temese que se eles falassem revelariam segredos dos nagôs aos jejes Como se vê a organização desse terreiro preservou no Brasil as relações históricas estabelecidas entre as etnias na África Os rituais na Casa das Minas também incluem a devoção aos santos católicos Antes de homenagear as divindades africanas os membros do terreiro rezam a ladainha em frente ao oratório cristão Segundo os adeptos os santos católicos são tidos como entidades acima dos voduns porque são puros e nada pedem mas também estão muito longe e não podem chegar aos homens pois não baixam Os voduns estariam assim abaixo dos santos porque têm algumas falhas e às vezes se irritam cf Ferretti S 1988 p 181 Por isso eles são tidos como o caminho para os homens chegarem aos santos católicos e a Deus No tambordemina divindades nãoafricanas também são cultuadas como os encantados de diversas origens míticas os caboclos da mata como Tabajara e CorreBeirada os fidalgos ou nobres portugueses e franceses como Rei Sebastião e Dom Luís rei de França e os turcos ou mouros como Rei da Turquia O culto a esse vasto panteão também é chamado de tambordamata ou terecô e geralmente é visto pelos praticantes do culto aos voduns como uma reprodução imperfeita das práticas religiosas jejes mais ortodoxas onde apenas o culto às divindades africanas é admitido como na Casa das Minas cf Ferretti M 1993 No Pará o culto aos voduns realizado ao lado das entidades da mata ficou conhecido como babassuê derivação de batuquedeSantaBárbara ou barbasuêra onde essa santa aparece como padroeira de muitos terreiros CABULA Esse culto assim como os outros cultos descritos a seguir recebeu forte influência das práticas bantos Segundo a descrição do bispo D Nery a cabula era praticada na região do Espírito Santo em fins do século passado por negros mas com a presença de alguns brancos Hoje em dia esse culto parece ter desaparecido transformandose em outras denominações A reunião dos cabulistas que ocorria em determinada casa ou mais freqüentemente nas florestas chamavase mesa sendo as principais a de Santa Bárbara e a da Santa Maria O chefe de cada mesa tinha o nome de embanda e o de seu ajudante era cambone Os adeptos eram conhecidos por camanás e a sua reunião formava a engira As engiras eram secretas e realizadas à noite Os cabulistas vestidos de branco dirigiamse a um deter A construção de igrejas próprias também era um objetivo dessas irmandades Os santos negros católicos eram em princípio venerados em altares laterais das igrejas cujos cuidados ficavam a cargo das irmandades Contudo construir uma igreja própria para o santo de devoção dessas associações era considerado um símbolo de prestígio para a irmandade Considerandose a condição de miséria em que viviam os negros podese supor o sacrifício necessário para a realização desse objetivo e a importância que assumiu o catolicismo para as suas vidas Se a fé dos negros nos deuses de sua religião original esteve primeiramente disfarçada nas danças e cantos que eles faziam em louvor aos santos católicos num segundo momento sua fé se dirigiu tanto a uns como a outros Ou seja o negro assim como o índio continuou acreditando nos seus deuses mesmo considerandose cristão Portanto a enorme separação social entre brancos negros e índios não significou que suas tradições culturais se mantivessem impermeáveis umas às outras O que se verificou no universo religioso do Brasil colonial é que as religiões que o compunham romperam seus limites e se traduziram mutuamente dando origem às novas formas mistas afrobrasileiras minado ponto da mata faziam uma fogueira e preparavam a mesa com toalha velas e pequenas imagens O embanda entoava um canto preparatório pedindo licença aos espíritos Calunga espírito do mar Tatá espíritos benéficos sendo acompanhado por palmas e por outras cantigas Durante os ritos era servido vinho e mastigavase uma raiz enquanto se sorvia o fumo do incenso que era queimado num vaso As iniciações eram feitas nesse momento quando o adepto passava três vezes por baixo da perna do embanda simbolizando sua obediência ao seu novo pai Um pó sagrado enba era soprado para afastar os espíritos inferiores e preparar o ambiente para a tomada do Santé que significava a incorporação do espírito protetor Para se ter um Santé era preciso que o iniciado passasse por provas por exemplo entrar no mato com uma vela apagada e retornar com ela acesa sem ter levado meios para acendêla e trazendo então o nome do seu espírito protetor Alguns desses espíritos eram conhecidos como Tatá Guerreiro Tatá Flor da Carunga Tatá RompeSerra e Tatá RompePonte cf Nery 1963 MACUMBA As macumbas do Rio de Janeiro se aproximavam muito das práticas da cabula O chefe do culto também era chamado de embanda umbanda ou quimbanda e seus ajudantes cambono ou cambone As iniciadas eram as filhasdesanto por influência do rito jejenagô ou médiuns por influência do espiritismo Na macumba as entidades como os orixás inquices caboclos e os santos católicos eram agrupadas por falanges ou linhas como a linha da Costa de Umbanda de Quimbanda de Mina de Cabinda do Congo do Mar de Caboclo linha Cruzada etc cf Ramos 1940 p 124 Nas sessões de macumba procuravase cultuar o maior número de linhas possível pois quanto mais conhecimento o paidesanto tivesse sobre elas mais poderoso era considerado A abrangência de cultos que sob o termo macumba eram conhecidos parece ter sido um dos motivos de sua popularidade e de seu uso indiscriminado para se designar as religiões afrobrasileiras em geral CANDOMBLÉ DE CABOCLO O culto aos caboclos tão presentes na religiosidade dos bantos deu origem ao candomblé de caboclo considerado por muitos adeptos como uma variação do candomblé de angola no qual os deuses indígenas assumiram o papel central com o mesmo status dos orixás Os caboclos são os espíritos donos da terra e representam os índios que aqui viviam antes da chegada dos brancos e dos negros Quando baixam nos terreiros vestemse com cocar de pena dançam com arco e flecha fumam charutos e bebem vinho Geralmente falam um português antigo e quase incompreensível Muitos deles são extremamente católicos e suas preces e louvações lembram os tempos coloniais de sua catequese Por serem conhecedores da medicina local e dos segredos da mata são famosos como curandeiros e feiticeiros Os caboclos apesar de serem brasileiros e ressaltarem essa característica nas suas cantigas nelas se di zem da nação brasileira e nos nomes que carregam de povos indígenas brasileiros como Tupi Tupinambá Aimoré Guarani quando narram suas origens se apresentam como habitantes de uma aldeia mítica como Hungria e Visala nãolocalizável no tempo e no espaço Em alguns casos seus nomes fazem referências à natureza cultuada pelos índios como caboclo Sol Lua Nova Estrela Mata Verde TombaSerra etc Os caboclos além de representarem os espíritos de índios que já morreram e que retornaram à terra como encantados podem ser vistos como representantes da população mestiça proveniente do cruzamento do branco com a índia São antigos homens do sertão caipiras roceiros com seus hábitos rurais cf Santos 1992 p 57 Em muitos terreiros os caboclos são classificados em dois tipos os caboclos de pena porque usam cocar e os boiadeiros quando seu contato com a cultura dos brancos já descaracterizou seus hábitos originais da aldeia Em vez do cocar de pena o boiadeiro vestese com chapéu de couro e dança segurando um laço com o qual imita os gestos de laçar o gado CATIMBÓ PAJELANÇA E CURA Esses cultos se expandiram principalmente pelo norte do Brasil na região que vai da Amazônia até Pernambuco onde a influência do índio se mostrou mais intensa É muito difícil distinguir fronteiras nítidas entre o catimbó a pajelança e a cura ou mesa de cura De qualquer modo por esses nomes entre outros chamase a religião de caráter essencialmente mágicocurativa baseada no culto dos mestres entidades sobrenaturais que se manifestam como espíritos de índios caboclos de animais ou de antigos e prestigiados chefes do culto A sessão do catimbó é liderada pelo mestre o chefe do culto pela rainha que o acompanha e pelos discípulos Os trabalhos iniciamse com a abertura da mesa que é a defumação das pessoas reunidas ao redor do altar ou de uma mesa com velas e imagens de santos católicos feita com a fumaça dos cachimbos Seguemse as rezas católicas painosso e avemaria e as danças que consistem basicamente em agitar o maracá para invocar os espíritos dos mestres que vão baixando no corpo dos presentes conforme se canta para a linha a que pertencem Há os mestres indígenas como Jandarai Xaramundi Caboclo Tupi os mestres de origem africana o que demonstra a presença do negro no catimbó como Pai Joaquim e Mestre Malunguinho e os mestres de origem católica como Mestre Santo Antônio A função básica dos mestres quando incorporados é curar doenças receitar remédios e exorcizar com o poder de seu maracá as coisasfeitas e os maus espíritos do corpo das pessoas Na pajelança da Região Amazônica além da incorporação dos espíritos de mestres humanos outras entidades descem acreditase que por uma corda imaginária e se manifestam no corpo dos praticantes como o espírito de animais reais jacarés cobras botos cavalosmarinhos ou fantásticos mãedolago cobra grande É através da alma do animal encarnada no pajé que este fica sabendo as causas das doenças e seus remédios cf Cascudo 1988 Foto Arquivo do Autor Mesa de cura Ao som do maracá os espíritos dos encantados descem para confortar os fiéis Nesses ritos a utilização da jurema é muito frequente pois é através dessa bebida sagrada feita com a casca da árvore de mesmo nome que o pajé tem visões e sonhos Até o século XVIII as reuniões para beber jurema eram vistas como reuniões de feitiçaria e muitos índios foram presos por essa prática cf Cascudo 1988 Pelas descrições da Santidade do século XVI parece que o catimbó a pajelança a cura e outras crenças similares tiveram aí suas origens Ao sincretismo inicial entre as práticas indígenas o uso do maracá da jurema do fumo e o catolicismo devocional aos santos somouse a crença dos africanos que trazendo seus orixás e voduns aumentaram o panteão já bastante vasto dos deuses protetores das florestas cf Bastide 1985 A imagem do caboclo nas religiões afrobrasileiras como candomblé de caboclo catimbó pajelança etc absorveu muito dos mitos heróicos construídos por nossa literatura indigenista No romantismo o índio foi idealizado por nossos escritores que influenciados pela imagem do bom selvagem de Rousseau e de outros autores atribuíramlhe sentimentos e valores parecidos com os dos personagens dos romances europeus Foi o caso dos personagens populares de José de Alencar como Peri o herói guarani que se apaixona por Ceci a filha do fidalgo português e Iracema a poética índia tabajara que abandona seu povo para seguir Martim o colonizador branco Esses índios e índias românticos e inocentes mas também orgulhosos bravos e guerreiros representaram na literatura a valorização da aliança entre brancos e índios que historicamente foram os primeiros grupos formadores do povo brasileiro Além das influências literárias o caboclo dos cultos afrobrasileiros reproduziu em muitos sentidos a imagem do índio transformado em símbolo de nossa identidade pelo movimento nacionalista deflagrado durante a independência do Brasil no qual as elites brasileiras passaram a buscar símbolos que pudessem representar nossa singularidade como nação em oposição a Portugal de quem nos libertávamos Um episódio significativo dessa aproximação entre o índio e o caboclo foi a comemoração de um ano da independência da Bahia do domínio português ocorrida em 2 de julho de 1823 Nessa data a população constituída em sua maioria por negros e mulatos saiu às ruas desfilando com uma carreta enfeitada por ramos de café fumo e folha brasileira cróton Durante o desfile colocaram sobre a carreta um velho mestiço descendente de índios reforçando assim os emblemas da independência Nas comemorações dos anos seguintes uma imagem de madeira foi construída para representar esse mestiço e o desfile de Dois de Julho tornouse uma grande festa cívica da Bahia A figura do mestiço da carreta enaltecida como emblema da independência e da nacionalidade brasileiras confundiuse com a do caboclo divinizado pelas religiões populares e a participação dos negros e mulatos nas comemorações acrescentou ao seu sentido de festa cívica o de festa religiosa Nas décadas posteriores o sentido religioso da comemoração se ampliou e o Dois de Julho passou a ser uma data de culto ao caboclo que é homenageado tanto no interior dos terreiros baianos como no próprio desfile cívico quando os adeptos da religião vestidos de índios cocar tangas de palha e colares acompanham a procissão com danças e cantos ao som dos atabaques cf Santos J 1992 Quadro 1 CORRESPONDÊNCIA ENTRE OS DEUSES AFRICANOS E OS SANTOS CATÓLICOS Orixá Vodum Inuice Catolicismo Exu Elebará Aluviá Pombagira Demônio Ogum Doçu Roxo Mucumbe Incocé SantoAntônio BA São Jorge RJ Oxossi Azacá Mutacolombo Congobira São Miguel PE São Jorge BA São Sebastião RJ Obaluaiê Omolu Xapaná Acossi Sapatá Cavungo Cafuná São Roque São Lázaro Ossaim Aguê Catende São Benedito São Roque São Jorge Oxumaré Bessem Dã Angorô São Bartolomeu Xangô BadéQuevioso Zaze São Jerônimo São Pedro Oxum Aziritoboce Eowa Quissambo Samba N Sra das Candeias N Sra da Conceição N Sra Aparecida Iemanjá Abé Dandalunda Quissimbe N Sra da Conceição N Sra dos Navegantes Iansã Sobó Bamburucema Matamba Santa Bárbara Oxalá MavuLissa Zambi Lembo Jesus Cristo N Sr do Bonfim BA Erê Ibeji Espíritos Infantis Hohó Tobosi Vunje São Cosme São Damião Quadro 2 CLASSIFICAÇÃO DOS ORIXÁS I Orixá Elemento natural Domínio local de culto Atividade humana Atributo qualidade humana Exu fogo estrada caminhos porta locais de passagem encruzilhada cemitério comunicação deus mensageiro fecundidade zombeteiro vingativo Ogum fogo ar ferro metais estrada caminhos guerra metalurgia violência virilidade Oxossi mata árvores mata floresta caça provedor aglidade Obaluaiê terra cemitérios medicina saúde e doença Ossaim folha planta árvores mata floresta medicina saúde e doença segredo da magia das plantas Oxumaré arcoíris poço fonte de agua serpente sagrada continuidade Xangô raio trovão pedreira pedras de raio justiça validade realeza riqueza Oxum água doce fonte cachoeira rio lago procriação fertilidade feminilidade riqueza amor Iemanjá água salgada mar praia procriação fertilidade maternidade Iansã vento raio tempestade cemitério bambual sensualidade coragem dominio sobre os mortos impetuosidade Oxalá ar todos os lugares criação criação dos homens paciencia sabedoria Quadro 3 CLASSIFICAÇÃO DOS ORIXÁS II Orixá Cor Oferenda alimentar Sacrifício animal Dia Exu vermelho preto pimenta álcool farofa com dendê cabrito galo frango preto segunda sexta Ogum azulescuro vermelho inhame assado feijão preto cabrito galo terça Oxossi azulclaro verde feijão fradinho milho coco animais de caça coelho tatu etc quinta Obaluaiê marrom preto branco abadó milho torrado pipoca porco segunda Ossaim verde branco mel fumo cabrito segunda quinta sábado Oxumaré verde amarelo aberém bolo de milho ou arroz cabrito galo terça Xangô vermelho branco amalá quiabo cozido com farinha carneiro cabeça quarta Oxum amarelo omolocum feijão fradinho e ovos pete massa de inhame com camarão cabra galinha sábado Iemanjá azulclaro arroz milho branco cabra peixe sábado Iansã vermelho marrom rosa acarajé bolo de feijão fradinho cabra galinha quarta Oxalá branco acaça bolo de arroz sem sal mel ibi caracol sexta Quadro 4 CALENDÁRIO DAS FESTAS RELIGIOSAS DO CANDOMBLÉ DiaMês Santo católico Divindade Cerimônia 20 de janeiro São Sebastião Oxossi Cabodó SP Festa de Oxóssi Festa de Cabodó 2 de fevereiro NSra das Candeias NSrados Navegantes Iemanjá Procissão dos Navegantes Presente de Iemanjá Quaresma Oxalá Lorogum Encerramento 23 de abril São Jorge Ogum RJ Oxossi BA Feijoada de Ogum Festa de Oxóssi 13 de junho Santo Antônio Ogum BA Feijoada de Ogum 24 de junho São João Xangô Fogueira de Xangô 29 de junho São Pedro Xangô Fogueira de Xangô 16 de agosto São Roque Obaluaiê Olubajé 24 de agosto São Bartolomeu Oxumarê Festa de Oxumarê 27 de setembro São Cosme e São Damião Erê Festa de Erê 30 de setembro São Jerônimo Xangô Festa de Xangô 4 de dezembro Santa Bárbara Iansã Acarajé de Iansã 8 de dezembro NSrada Conceição Oxum Ipetê de Oxum Festa das Iabás Iemanjá Festa de IemanjáPraia 25 de dezembro Natal Oxalá Águas de Oxalá Pilão de Oxaguia Quadro 5 INFLUÊNCIAS E DENOMINAÇÕES REGIONAIS DAS RELIGIÕES AFROBRASILEIRAS RELIGIÕES INDÍGENAS CATOLICISMO POPULAR ESPIRITISMO POPULAR EUROPEU KARDECISMO SÉC XIX PRÁTICAS SUDANESAS PRÁTICAS BANTOS candomblé queto BARJSP candomblé angola pajelança AM PA MA xangô PE BA RJ SP catimbó PE PB batuque RS candomblé de caboclo BA xambá AL PB PE cabula ES séc XIX toré SE macumba RJ e SP umbanda RJ SP e todo o Brasil tambordemina MA e PA babassuê PA CAPÍTULO 4 Umbanda uma religião à moda brasileira A visão depreciativa e preconceituosa da qual o índio e o negro foram vítimas até o final do século passado aos poucos foi dando lugar às interpretações menos pessimistas sobre o valor de suas contribuições para a formação da cultura brasileira No plano dos movimentos artísticos patrocinados pelas nossas elites seguiuse à idealização romântica e conservadora do índio uma busca realista por nossas raízes permeada pela denúncia social das condições de vida de negros brancos e indígenas Na literatura Aluízio de Azevedo criticou os preconceitos raciais de nossa sociedade O mulato 1881 e as condições degradantes de vida de negros e pobres nas moradias coletivas urbanas do Rio de Janeiro O cortiço 1890 O homem do campo o sertanejo e o mestiço foram mostrados em sua luta corajosa contra as adversidades do meio como na comunidade baiana de Canudos reunida em torno do líder messiânico Antônio Conselheiro massacrada pelas tropas do exército episódio documentado em Os sertões 1902 de Euclides da Cunha O caipira ingênuo humilde e desamparado tornouse famoso na figura de Jeca Tatu personagem de Monteiro Lobato autor que inspirado pelo folclore rural povoou seus livros de sacispererês caiporas e outras entidades do universo mítico do homem do campo A partir do Modernismo de 1922 as elites intelectuais importando da Europa uma estética de vanguarda romperam com o formalismo artístico elegendo radicalmente os tipos populares brasileiros como elementos centrais para a expressão da cultura nacional Buscando nas lendas indígenas e no folclore do nosso passado os temas para recontar a história do Brasil surgiram os poemas nacionalistas como PauBrasil 1925 de Oswald de Andrade e a rapsódia Macunaíma 1928 de Mário de Andrade Neste livro Macunaíma o herói de nossa gente filho de índia tapahnumas que nasce preto retinto e depois se torna branco representa o cruzamento das três raças enaltecido como a força e a originalidade do povo brasileiro Na pintura pela primeira vez os negros e sua cultura tornamse temas de vanguarda sendo retratados em quadros famosos como A negra 1923 de Tarsila do Amaral Mulatas 1926 e Samba 1926 de Di Cavalcanti e Mestiço 1934 de Portinari As religiões afrobrasileiras como expressões das experiências e tradições dos negros tornaramse um tema obrigatório para o entendimento da formação da cultura popular Jorge Amado iniciando sua carreira literária com as sagas dos canaviais nordestinos no romance Jubiabá 1935 torna o candomblé nacionalmente conhecido na figura do paidesanto Jubiabá guia espiritual do negro Antonio Balduíno herói popular dos anseios de integração dos negros à sociedade brasileira Na música Dorival Caymmi compondo sobre o cotidiano da Bahia acabou inevitavelmente divulgando o candomblé do qual fazia parte Cantando suas composições Carmen Miranda tornou a Bahia o Brasil e o candomblé internacionalmente conhecidos No plano das teorias sociais e da historiografia brasileira as visões negativas sobre o Brasil baseadas na inferioridade racial dos seus elementos formadores foram sendo deixadas de lado nas primeiras décadas deste século Em substituição a elas um espírito nacionalista tomou conta dos intelectuais que passaram a enaltecer as riquezas brasileiras e a originalidade de nosso povo em relação ao europeu As teorias preconceituosas de Nina Rodrigues entre outros deram lugar à apologia da miscigenação brasileira Com a publicação de Casagrande e senzala 1933 de Gilberto Freire criouse o mito da democracia racial brasileira Neste livro tornado clássico as contradições entre senhores e escravos do período colonial foram atenuadas e substituídas por uma interpretação na qual se elogiou a adaptação do homem português nos trópicos e a miscigenação entre as raças que deu origem ao caráter benevolente e cordial do homem brasileiro O Brasil como paraíso tropical cheio de potencialidades adormecidas começa a ser descoberto pelas ideologias que apregoavam um futuro de grandeza a partir da valorização do seu passado Os estudos centrados nas religiões afrobrasileiras adquiriram novo impulso e nova direção Arthur Ramos em O negro brasileiro publicado em 1934 substitui o conceito de raça usado para desqualificar o negro e sua religiosidade pelo de cultura que vê as manifestações religiosas como processos históricos e sociais não subordinados às características biológicas de seus participantes Pela primeira vez as religiões afrobrasileiras são amplamente investigadas sendo analisados além dos terreiros da capital baiana visitados por Nina Rodrigues os candomblés de outras regiões os catimbós do Nordeste e as macumbas do Rio de Janeiro e de São Paulo Na trilha aberta por Arthur Ramos a partir da década de 1930 outros pesquisadores foram atraídos para o estudo dos cultos afrobrasileiros No Recife Gonçalves Fernandes publicou em 1937 Xangôs do Nordeste obra escrita num período em que os cultos eram duramente reprimidos pela Seção de Polícia de Costumes e Repressão a Jogos O antagonismo aos cultos afro nessa época teve várias origens entre elas a retomada da oposição católica e a perseguição política A Constituição de 1934 por influência da Igreja foi promulgada em nome de Deus o catolicismo voltou a ser a religião oficial do Estado ato que havia sido revogado pela fechados dois centros de catimbó na Avenida Norte Apprehendido farto material do culto her vas e consultas Objetos sagrados apreendidos pela polícia em terreiros do Recife na década de 1930 Repressão e intolerância religiosa marcam a história dos cultos afrobrasileiros Discoteca Oneyda AlvarengaCentro Cultural São PauloDiário de Pernambuco Constituição leiga de 1891 o ensino facultativo da religão católica foi instaurado nas escolas primárias e secundárias o casamento religioso oficialmente reconhecido e a assistência católica autorizada nas instituições do governo Com o golpe de estado dado por Getúlio Vargas em 1937 os estados foram governados por interventores que temerosos com as ações de movimentos antiditatura ou do Partido Comunista aumentaram o controle social e político sobre as camadas populares e as elites liberais que se identificavam com os seus anseios Muitos estudiosos considerados inimigos políticos foram presos nesse período como Gilberto Freire O baiano etnólogo e folclorista Edison Carneiro autor de importantes estudos sobre os cultos de origem africana sobretudo os de procedência banto como Negros bântus 1937 Candomblés da Bahia 1948 e Religiões negras 1963 perseguido pela polícia política do Estado Novo teve de refugiarse no terreiro Axé Opô Afonjá sob a guarda de Mãe Aninha cf Santos D 1988 p 14 As religiões afrobrasileiras além de serem temas de estudo das elites locais também atraíram a atenção de pesquisadores estrangeiros O antropólogo Roger Bastide vindo ao Brasil em 1938 para estudar as relações raciais entre brancos e negros encantouse com o universo mítico dos candomblés baianos passando a estudálo e produzindo uma das mais abrangentes análises sobre o assunto Suas principais obras O candomblé da Bahia e Religiões africanas do Brasil tornaramse leituras obrigatórias durante as décadas de 1950 e 1960 Outro francês Pierre Verger fotógrafo e posteriormente etnólogo depois de ler o romance Jubiabá de Jorge Amado nos inícios da década de 1940 resolveu mudarse para a Bahia cenário dos personagens do livro onde estabeleceu estreitas relações com as casas de culto de Salvador Em suas frequentes viagens à África produziu vários estudos comparativos entre a religião dos orixás na África e no Brasil e um dos mais belos acervos de fotografia sobre o tema publicado em Orixás 1981 Em muitos casos os estudos das manifestações religiosas dos negros chegaram mesmo a ser patrocinados por órgãos oficiais do Estado Em São Paulo Mário de Andrade como secretário da Cultura organizou a Missão de Pesquisas Folclóricas que de fevereiro a julho de 1938 percorreu o Nordeste e o Norte do Brasil e registrou por meio de gravações sonoras fotos e material recolhido as principais manifestações musicais e religiosas afrobrasileiras como tambordemina xangô babassuê e catimbó A contradição entre cultura oficial e cultura popular já se revelava neste período pois a Missão de Pesquisas mesmo sendo uma iniciativa do governo paulista só conseguiu gravar os rituais religiosos depois que estes obtiveram autorização policial para serem realizados Como se vê nas primeiras décadas deste século a questão do negro e sua religiosidade tornamse inevitáveis para a definição do Brasil buscada pelos intelectuais Em muitos casos a valorização desse segmento formador da cultura nacional se fez juntamente com a adesão dos intelectuais ao seu universo religioso Muitos pesquisadores e artistas brancos encantados com essa reinvenção da África no Brasil converteramse ao candomblé e passaram a divulgálo com maior ênfase Foi nesse contexto que a classe média branca se uniu à classe pobre que já frequentava a religião afrobrosiletra que viria a se tornar a mais popular da experiência religiosa dos brasileiros a umbanda As ORIGENS DA UMBANDA A umbanda como culto organizado segundo os padrões atualmente predominantes teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930 quando kardecistas de classe média no Rio de Janeiro São Paulo e Rio Grande do Sul passaram a mesclar com suas práticas elementos das tradições religiosas afrobrasileiras e a professar e defender publicamente essa mistura com o objetivo de tornála legitimamente aceita com o status de uma nova religião Mesmo antes porém de adquirir um contorno mais definido muitos elementos formadores da umbanda já estavam presentes no universo religioso popular do final do século XIX sobretudo nas práticas bantos Na cabula por exemplo como vimos o chefe do culto era chamado de embanda possível origem do nome da religião que se formou pela ação desses líderes ou se confundiu com suas práticas Cargos e elementos litúrgicos da cabula também preservaramse na umbanda como o de cambone auxiliar do chefe do culto ou a enba ou pemba pó sagrado usado para limpar o ambiente dos rituais Também na macumba o termo umbanda designava o chefe do culto e uma de suas linhas mais fortes cf Ramos 1940 p 121 179 Embora faltem dados para reconstituir as diferenças existentes entre as linhas da macumba é possível supor que pela sua popularidade a linha de umbanda tenha ganhado autonomia em relação às demais e passado a designar um culto à parte As origens afrobrasileiras da umbanda remontam assim ao culto às entidades africanas aos caboclos espíritos ameríndios aos santos do catolicismo popular e finalmente às outras entidades que a esse panteão foram sendo acrescentadas pela influência do kardecismo como veremos adiante Essa influência tornouse ainda mais significativa especialmente depois da reordenação por que passou o heterogêneo universo da macumba codificado e reinterpretado sob a inspiração da doutrina kardecista O KARDECISMO O kardecismo chegou ao Brasil em meados do século passado Criado na França por Allan Kardec pseudônimo de Léon Hippolyte Dénizart Rivail essa doutrina filosófica e religiosa fez pouco sucesso em seu local de origem mas no Brasil teve grande repercussão e aceitação inicialmente entre as famílias de classe média mais próximas das idéias e novidades produzidas na Europa e depois entre a população em geral Como base doutrinária o kardecismo estabelece a existência de um Deus criador onipotente e onipresen te o mesmo da tradição judaicocristã porém muito distante dos homens Mais próximos destes estão os guias espíritos dos mortos desencarnados cuja missão é ajudar os homens a evoluir através da prática da caridade do bem e do amor aos semelhantes A crença na reencarnação é um dos pontos centrais desse sistema religioso Os espíritos passariam por sucessivas encarnações ao longo das quais dotados do livrearbítrio poderiam evoluir através da prática do bem ou regredir cedendo aos vícios do corpo material promiscuidade alcoolismo drogas violência ignorância etc Pela lei do carma de inspiração hinduísta a cada reencarnação na Terra os espíritos colhem os frutos das boas ações praticadas no passado ou pagam pelas más De acordo com essas ações é que eles se tornam espíritos de luz ou das trevas A Terra é considerada nesse contexto um planeta de aprendizado expiação através do sofrimento solidariedade e caridade para com os que sofrem Jesus Cristo cujo evangelho é reinterpretado à luz dessa doutrina é tido como um espírito superior a maior entidade encarnada que já veio ao nosso mundo e exemplo do sacrifício e abdicação necessários ao aprimoramento espiritual A mediunidade capacidade de entrar em contato com o mundo invisível dos espíritos é considerada uma qualidade inata e necessária ao homem em seu processo de evolução espiritual Cabe à religião portanto promover os meios para que os adeptos desenvolvam essa capacidade e entrem em contato com o mundo dos desencarnados O kardecismo caracterizase ainda pela aplicação dos métodos e explicações científicos em pleno auge de valorização na época de sua formação no entendimento dos fenômenos sobrenaturais Assim para explicar os fenômenos espirituais como a possessão a vida após a morte etc através da dedução das leis de ação e reação causa e efeito o kardecismo produziu ao mesmo tempo um discurso racional e religioso Se nas religiões mágicas os fenômenos sobrenaturais são aceitos tendo como base a fé nos mistérios divinos no kardecismo esses mistérios foram explicados em bases científicas o que permitiu atingir um público mais instruído e suscetível às críticas ao chamado baixo espiritismo O transe sendo praticado no kardecismo por uma população de nível educacional maior como funcionários públicos e profissionais liberais passou a ser melhor aceito por essa camada social que sempre o vira como característica das religiões primitivas ou atrasadas Essa atitude racional e científica do kardecismo refletiuse na valorização da escrita e da leitura no contexto religioso Os livros geralmente psicografados pelos médiuns contendo a doutrina e os ensinamentos morais tornaramse veículos importantes para a difusão da religião principalmente entre a classe média instruída No plano organizacional o movimento espírita desenvolveuse articulando suas várias áreas de atuação em federações Embora essas federações não fossem uma instância controladora dos centros espíritas através da imposição de uma doutrina ou práticas unifica das a serem seguidas funcionaram como importantes canais para o desenvolvimento da religião no nível da mobilização em favor dos ideais e interesses comuns aos grupos espíritas Em resumo o kardecismo sendo praticado por um estrato social mais elevado da população autodenominandose uma religião cristã legitimando a posseção dos espíritos e apresentando um discurso racional frente os fenômenos mágicos serviu como mediador para a constituição da umbanda que sob sua influência se desenvolveu como religião organizada A CODIFICAÇÃO UMBANDISTA É muito difícil dizer com precisão em que momento começaram a baixar nas sessões espíritas kardecistas as entidades dos cultos afro ou quando estes começaram a absorver os valores kardecistas Contudo a história de formação de um dos terreiros de umbanda mais conhecidos do Rio de Janeiro o Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade possibilita a compreensão dos princípios básicos que estruturaram a nova religião Esse centro de umbanda embora tivesse sido registrado como espírita por imposição legal foi fundado por um grupo de kardecistas liderados por Zélio de Moraes em meados da década de 1920 em Niterói Posteriormente transferiuse para o centro do Rio de Janeiro onde se localiza até hoje Segundo Diana Brown que pesquisou as origens da umbanda nesse período Zélio e seus companheiros provinham predominantemente dos setores médios Trabalhavam no comércio na burocracia governamental eram oficiais de unidades militares o grupo incluía também alguns profissionais liberais jornalistas professores e advogados e ainda alguns operários especializados Todos esses indivíduos eram homens e quase todos eram brancos Muitos integrantes deste grupo de fundadores eram como Zélio kardecistas insatisfeitos que empreenderam visitas a diversos centros de macumba localizados nas favelas dos arredores do Rio e de Niterói Eles passaram a preferir os espíritos e divindades africanas e indígenas presentes na macumba considerandoos mais competentes do que os altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no tratamento de uma gama muito ampla de doenças e outros problemas Eles achavam os rituais da macumba muito mais estimulantes e dramáticos do que os do kardecismo que comparados nos primeiros lhes pareceriam estáticos e insípidos Em contrapartida porém ficavam extremamente incomodados com certos aspectos da macumba Consideravam repugnantes os rituais que envolviam sacrifícios de animais a presença de espíritos diabólicos exus ao lado do próprio ambiente que muitas vezes incluía bebedeiras comportamento grosseiro e a exploração econômica dos clientes Brown 1985 p 11 Como se vê a ênfase no culto às divindades africanas e indígenas consideradas pelos kardecistas como atrasadas e a depuração desse culto para que elas pudessem baixar e trabalhar na umbanda foi uma das mais marcantes características dessa religião Essas entidades a princípio caboclos e pretosvelhos representando os espíritos dos índios brasileiros e dos escravos africanos tornaramse centrais na nova religião que se formava proclamando sua missão de irmanar todas as raças e classes sociais que formavam o povo brasileiro A umbanda constituiuse portanto como uma forma religiosa intermediária entre os cultos populares já existentes Por um lado preservou a concepção kardecista do carma da evolução espiritual e da comunicação com os espíritos e por outro mostrouse aberta às formas populares de culto africano Contudo não sem antes purificálas retirando os elementos considerados muito bárbaros e por isso estigmatizados o sacrifício de animais as danças frenéticas as bebidas alcoólicas o fumo e a pólvora Ou então quando se fazia necessário o uso desses elementos explicandoos cientificamente segundo o discurso racional do kardecismo No caso da bebida alcoólica seu uso era justificado argumentandose que essa tinha uma ação e vibração anestésica e fluídica devido à sua evaporação o que propiciava as descargas limpezas das pessoas ou objetos impregnados de fluidos pesados ou negativos No caso da fumaça do fumo ou dos incensos explicavase que sendo esta um gás poderia destruir um fluido mau ou nocivo presente num ambiente substituindoo por outro fluido bom e favorável A explosão da pólvora por sua vez ao propiciar a deslocação de ar atingia os espíritos perturbadores que então se afastavam cf Ortiz 1978 p 155 Partindo de explicações como essas a umbanda apresentouse então como uma religião mais antiga que os próprios cultos africanos Como magia universal sua origem passou a ser declarada como localizada no conhecimento esotérico e cabalístico de outros povos como os egípcios e os hindus Não faltou inclusive quem lhe atribuisse uma origem na Lemúria um fantástico continente perdido ou derivasse a palavra umbanda de uma fusão de termos de origem sânscrita ORGANIZAÇÃO BUROCRÁTICA E LEGITIMAÇÃO SOCIAL A fundação na década de 1920 do centro de umbanda de Zélio de Moraes embora significativa para a história não permite entretanto que possamos identificálo como o primeiro centro dessa religião Mesmo porque é mais provável que a umbanda não tenha se formado a partir de um único terreiro irradiador Como lembra Renato Ortiz a umbanda se desenvolve paralelamente em diferentes estados sem que exista pelo menos de maneira comprovada uma relação de influências entre os diversos terreiros Em meados dos anos 20 existe em Niterói a tenda de Zélio de Moraes no Rio de Janeiro a de Benjamin Figueiredo em Porto Alegre a de Otacílio Charão 1986 p 136 Contudo no final da década de 1930 e início da de 1940 já é possível observar a existência de um movimento umbandista portador de uma ideologia conscientemente estabelecida à qual os terreiros com maior ou menor fidelidade se identificam Como vimos o período do Estado Novo 193745 foi particularmente contra o desenvolvimento dos cultos afrobrasileiros o que pode ser afirmado pela forte repressão policial Por outro lado em decorrência do enaltecimento da cultura popular e dos valores negros patrocinados pelas elites intelectuais e artísticas com prometidas com a definição de nossa identidade nacional muitas brechas se abriram para a continuidade das práticas religiosas afrobrasileiras A umbanda desse período ao minimizar as influências africanas em suas práticas e sendo liderada por setores médios da população organizouse tendo como ponto de apoio essas idéias Ao mesmo tempo que embranquecia os valores religiosos da macumba considerados atrasados ou primitivos e alvos de perseguição policial empretecia os valores do kardecismo considerados europeus por demais distantes de nossa realidade cf Ortiz 1978 Ao identificarse com os cultos afro os umbandistas a maioria de classe média propunham uma religião brasileira nascida aqui Essa religião refletia os anseios de reconhecimento dos segmentos marginalizados negros índios prostitutas estivadores pobres em geral e as possibilidades de acomodação desses anseios numa sociedade urbana e industrial marcada por divisões de classe trabalho sexual etc discriminações e desigualdades e onde os valores da cultura dominante branca continuavam a ser os mais influentes A organização dos terreiros umbandistas a partir de um quadro burocrático foi um dos primeiros sinais desses anseios de reconhecimento Se no candomblé o culto formado a partir de fragmentos de várias religiões africanas tinha na famíliadesanto uma forma de reconstruir através do parentesco mítico as contribuições étnicas dos negros desagregados pelas condições de subordinação social a umbanda se inspirou nas associações civis cartoriais para estabelecer sua organização sócioreligiosa O terreiro passou então a funcionar segundo um estatuto que estabelecia os cargos como presidente secretário tesoureiro as funções dos membros os horários de funcionamento e de atendimento ao público as formas de ingresso e os direitos e deveres de cada sócio como o pagamento de mensalidades para a manutenção da associação A hierarquia religiosa assentouse sobre esta organização burocrática de forma menos complexa que no candomblé O líder espiritual o pai ou mãedesanto é auxiliado por assessores pai ou mãepequena cambonos e tocadores de atabaques e pelo corpo de médiuns os filhosdesanto ou filhos de fé A umbanda inspirandose nas federações kardecistas também criou suas próprias federações Em 1939 Zélio e outros líderes umbandistas fundaram no Rio de Janeiro a primeira federação de umbanda a União Espírita da Umbanda do Brasil principal articuladora do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda ocorrido em 1941 no Rio de Janeiro quando as principais diretrizes da religião foram traçadas Os objetivos das federações que a partir da década de 1940 começam a proliferar também em outros estados onde a umbanda foi se expandindo como São Paulo e Porto Alegre eram os de fornecer assistência jurídica aos seus filiados contra a perseguição policial patrocinar cerimônias religiosas coletivas organizar eventos de divulgação da religião e na medida do possível impor alguma regulamentação sobre as práticas rituais e doutrinárias através da administração de cursos e da fiscalização das atividades dos terreiros filiados A variedade de tendências doutrinárias sob a qual se mantinha o movimento umbandista não tardou a provocar as primeiras dissidências Se o Primeiro Congresso teve como um dos temas centrais criar a imagem de uma umbanda pura branca através da eliminação dos elementos africanos tidos como maléficos ou de quimbanda a partir da década de 1950 setores dessa religião provenientes dos estratos mais baixos da população geralmente negros e mulatos começaram a contestar o distanciamento da umbanda das práticas africanas À umbanda branca opôsse a tendência de recuperação dos valores africanos presentes na religiosidade popular No Segundo Congresso de Umbanda ocorrido no Rio de Janeiro em 1961 o potencial de crescimento da religião evidenciouse pela quantidade de devotos que aos milhares lotaram o estádio do Maracanãzinho com representantes de dez estados brasileiros e com a presença de políticos municipais e estaduais cf Brown 1985 p 27 Foi na década de 1960 que a umbanda já com amplas bases e aproveitandose de suas alianças políticas pôde ampliar sua organização e legitimação perante a sociedade Embora não tivesse uma posição política muito clara a umbanda soube por exemplo aproveitar a seu favor o clientelismo eleitoral e posteriormente em 1964 o antagonismo do regime militar contra os setores radicais da Igreja católica principal adversária da umbanda simpatizantes dos movimentos esquerdistas de oposição ao governo Como afirma Diana Brown A umbanda passou bem nas mãos da ditadura militar instituída em 1964 Diferentemente da ditadura anterior sob Vargas este novo governo militar não negou aos umbandistas seus direitos políticos enquanto umbandistas nem a liberdade da prática religiosa Ao contrário a ditadura apoiou os ganhos políticos e sociais alcançados nos 15 anos anteriores e auxiliou a sua institucionalização Foi sob a ditadura militar que o registro dos centros de umbanda passou da jurisdição policial para a civil em cartório que a umbanda foi reconhecida como religião no censo oficial e que muitos dos seus feriados religiosos foram incorporados aos calendários públicos locais e nacionais de caráter oficial 1985 p 37 No Terceiro Congresso de Umbanda realizado em 1973 essa religião afirmouse definitivamente como uma das que mais crescem e uma força expressiva no campo das atividades assistenciais Além dos centros onde aconteciam as atividades rituais de desenvolvimento espiritual a religião já contava também com instituições como escolas creches ambulatórios etc articuladas em torno da missão comum de promover a caridade e a ajuda Atuando também através de programas de rádio de jornais e de publicações próprias e contando com o apoio de políticos umbandistas ou de simpatizantes da causa umbandista a religião pôde divulgar em grande escala sua mensagem e atrair adeptos Como resultado do processo de legitimação social a umbanda aos poucos foi adquirindo permissão legal e apoio institucional dos órgãos governamentais para a realização de suas festas em espaços públicos No Rio de Janeiro o dia 31 de dezembro por ser uma data na qual milhares de umbandistas vão às praias para levar presentes perfumes flores colares a Iemanjá foi proclamado em 1967 Dia dos Umbandistas Em São Paulo a grande popularidade da festa de Iemanjá realizada por volta do dia 8 de dezembro dia de Nossa Senhora da Conceição com quem é sincretizada fez com que em 1976 a Prefeitura de Praia Grande construísse à beiramar uma estátua dessa divindade segundo a concepção umbandista com cerca de cinco metros de altura ao redor da qual a festa foi oficialmente instituída no calendário turístico da cidade Calculase que cerca de um milhão de pessoas entre umbandistas e simpatizantes participem das homenagens a Iemanjá que atualmente têm se estendido até o dia 31 de dezembro Outras festas da umbanda como a do Dia da Abolição 13 de maio dedicada aos pretos velhos ou a de São Jorge orixá Ogum no dia 23 de abril também ganharam o apoio das autoridades governamentais Nessa última realizada em São Paulo há algumas décadas no Ginásio Esportivo do Ibirapuera a imagem de São Jorge é trazida para esse local por um carro do corpo de bombeiros desfilando pelas ruas em cortejo Diante do palanque montado no Ginásio lotado por milhares de umbandistas de todos os estados e muitas vezes contando também com convidados estrangeiros a imagem é recebida por políticos e em muitas ocasiões até mesmo pelo governador do Estado de São Paulo As entidades brasileiras da umbanda Na umbanda as entidades sobrenaturais apresentam significativas diferenças na sua concepção e finalidade em relação às religiões de origem africana como o candomblé e o kardecismo Estátua de Iemanjá Praia Grande SP A protetora mãe das águas é uma das divindades mais populares da umbanda No candomblé os deuses africanos transformaramse de deuses tutelares de um clã linhagem ou cidade em deuses pessoais que cada pessoa recebe em seu corpo e cultua como protetor individual Contudo ainda que o orixá Ogum por exemplo incorpore em vários filhosdesanto ele é reconhecido pela comunidade de candomblé como um deus único ao qual se associam danças cores preferências alimentares e outros atributos de sua identidade No kardecismo as entidades recebidas no corpo dos médiuns são espíritos de mortos isto é pessoas que viveram na Terra e voltam para cumprir uma missão de caridade e ajuda como médicos artistas escritores Nesse sentido são espíritos de indivíduos e reconhecidos como tal o dr Fritz e o dr Bezerra de Menezes são alguns dos mais conhecidos Na umbanda as entidades situamse a meio caminho entre a concepção dos deuses africanos do candomblé e os espíritos dos mortos dos kardecistas Os orixás por exemplo são entendidos e cultuados com outras características Sendo considerados espíritos muito evoluídos de luz tornaramse uma categoria mítica muito distante dos homens só ocasionalmente descem à Terra e mesmo assim apenas na forma de vibração Se no candomblé as entidades foram agrupadas preservandose na medida do possível as referências aos grupos étnicos de origem africana na umbanda foi através da teoria das linhas que se tentou classificar e organizar a grande variedade de entidades cultuadas Segundo a literatura que tem sido escrita pelos teóricos religiosos da umbanda nessa religião existem sete linhas dirigidas por orixás principais Cada linha é composta por sete falanges ou legiões O número sete é devido ao seu valor cabalístico Algumas dessas linhas são Linha de Oxalá Linha de Iemanjá Linha de Xangô Linha de Ogum Linha de Oxóssi Linha das Crianças e Linha dos Pretos Velhos Não existe entretanto um consenso entre os vários terreiros e codificadores da umbanda a respeito da composição dessas linhas e falanges Em muitos casos por exemplo juntamse às linhas dirigidas pelos orixás a Linha do Oriente da qual fazem parte as ciganas a Linha das Almas etc Abaixo dos orixás encontramse os espíritos um pouco menos evoluídos como os caboclos e os pretos velhos Podese dizer que essas entidades embora tenham nomes próprios caboclo Sete Flechas RompeMato preto velho Pai João vovó Maria Conga etc são espíritos de indivíduos como na concepção kardecista remetem muito mais aos segmentos formadores da sociedade brasileira Os caboclos representam o indígena enaltecido na literatura romântica e popularizado na pajelança no catimbó e no candomblé de caboclo Porém apresentamse na umbanda como espíritos civilizados doutrinados ou batizados como dizem os umbandistas Quando incorporados apresentamse como católicos e freqüentemente abrem seus trabalhos espirituais com orações do tipo painosso e avemaria O preto velho quando incorporado nos médiuns apresentase como o espírito de um negro escravo muito idoso que por isso anda todo curvado com muita dificuldade o que o faz permanecer a maior LODY R Santo também come Rio de Janeiro Editora Pallas 2006 A partir de uma pesquisa de campo realizada por Raul Giovanni da Motta Lody na Bahia Maranhão Pernambuco Rio de Janeiro e outras localidades do Brasil a obra em questão revela questões pontuados de um Brasil à luz das fundamentações sagradas das religiões de matrizes africanas marcada por rituais e festas com ênfase na cozinha afro brasileira A obra em questão inicia trazendo o ponto de que o Exu foi o cozinheiro dos orixás Exu é descrito como cozinheiro preocupado com o pedalar e as peculiaridades do paladar duas orixás A fim de fundamentar o foco temática de sua obra Lody traz a relação entre a formação de uma identidade cultural e alimentação assim como o processo de cozinhar sofrer influência dos costumes e preceitos dos deuses africanos Sob essa ótica o fator determinante para a união e a preservação das ações dos deuses é a alimentação e é por meio dela que os deuses e os adeptos têm assegurado a sobrevivência dessas religiões Nesse viés a boca do homem é também um espaço cultural e religioso ou seja o processo de se alimentar implica em um ato biológico social e cultural onde a prática tem sua origem vinculada às necessidades de nutrição e sobrevivência A comida fundamentada nessas concepções é um marco cultural de civilização histórico social e econômico Nos terreiros comer é estabelecer vínculos entre homens deuses antepassados e natureza a alimentação vem como um processo que nutre corpo e alma Por exemplo como o dendê é uma das marcas mais presentes da mesa afrobrasileira e com isso comer dendê é como um pouco da África Com isso o comer abrange a concepção formal da palavra sendo o equivalente a cultuar zelar e manter os princípios A mesa dos Deuses dentro das fundamentações das religiões afrobrasileiras são estabelecidas à base de carnes peixes farinhas tempero e óleo sendo o gosto e hábito condicionado às suas ações sagradas e nutritivas para os homens Dentro desse contexto comidas à base de milho papas azeitedecheiro camarões secos gengibre e bebidas desempenham papel socializante mantendo o divertimento e a fé Além do alimento em si representar significações dentro das religiões o processo de preparo os utensílios e os tipos de fogões utilizados mantém princípios tradicionais das religiões O Ajeum é a comida é o ato da alimentação que se expande dentro das festas públicas dos terreiros de Candomblé Momento este marcado por danças rituais dos orixás voduns e inquices As comidas dessa festa são chamadas de comida de branco servidas obedecendo uma sequência hierarquia As visitas são as primeiras a se servirem A cachaça a cerveja são as principais bebidas servidas em ocasiões festivas após a prática de rituais com o amanhecer do dia As louças servidas são separadas de acordo com os preceitos pessoais diante dos deuses africanos A cozinha é organizada por meio de critérios de utilização e as cozinheiras dos deuses devem atuar como se estivessem no interior dos santuários Os processos de fazer alimentos rituais implicam em um compromisso desde do modo de preparação os utensílios utilizados A louça baiana é decorada por pinturas em alguns casos de relevo A louça de Maragogipinho é dividida em louça grossa que são as peças maiores e a miçalha que são loucas menores Há também presença de vasilhas de barro Os pratos de Nanã representam uma civilização simbolizada pelos utensílios em madeira de fibras naturais Em festividades dedicadas ao orixá Nanã um peixe emblemático é recorrente inaugurando um cortejo cerimonial de filhas do terreiro A prática dos terreiros também fundamentam atitudes das vendedeiras de tabuleiro que é possível observar nas ruas e nas praças do Rio e de salvador sendo essa uma prática de forte vínculo religioso A festa do caruru dos Ibejis é marcada por momentos de descontração e alegrias sendo o caruru um dos pratos servidos no rigor dos terreiros Os Ibejis tem um papel no culto de divindades infantis marcando sua característica de alegria análoga às crianças Em suma a obra analisada é marcada por uma diversidade de conceitos apresentados sobre a cultura alimentar das manifestações das religiões de matrizes africanas sendo impossível pontuar todas as concepções culturais trazidas na obra Por isso no resumo foi enfatizada apenas alguns pontos dessa pluralidade GONÇALVES DA SILVA V Candomblé e umbanda Caminhos da devoção brasileira São Paulo Editora Ática 1994 A obra em questão tem como principal objetivo responder os questionamentos que envolvem a sociedade quando se fala sobre as religiões afrobrasileiras fornecendo uma análise histórica do desenvolvimento das religiões com ênfase no Candomblé e na Umbanda Nesse viés o autor pontua de forma crítica as perseguições sofrida pelas religiões de matrizes africanos que se estenderam desde do período colonial quando Portugal colonizou as terras brasileiras já trazendo o catolicismo até a república onde na década de 1980 o Candomblé e a Umbanda são inseridas no âmbito da cultura nacional sendo aceitas por setores da intelectualidade brasileira Entretanto até os dias atuais tais religiões ainda sofrem diversos preconceitos e perseguições Baseado nessas concepções no período colonial de acordo com o autor tais expressões representavam um perigo ao catolicismo colonial como uma afronta à uma magia oficialmente instituída que foi posta aos nativos desde a chegada dos portugueses em terras brasileiras No contexto republicano fundamentado em Gonçalves da silva 1994 a realidade começa a mudar sendo essas religiões palcos de pesquisa e composições literárias e acadêmicas O autor utiliza figuras como Hilária Batista de Almeida a Tia Ciata mãe de santo em cujo terreiro na Praça Onze costumavam se reunir pioneiros na maturação do samba como linguagem musical como Pixinguinha João da Baiana Heitor dos Prazeres e Donga para dar ênfase a influência do Candomblé e da Umbanda nos diversos setores sociais Não consonante um movimento antagônico ganha forma e força nos últimos anos as chamadas religiões neopentecostais que visam o combate a diversas formas de manifestação das religiões afrobrasileiras representando um processo que corrói a legitimidade de tais religiões O autor ainda dá ênfase a eventos como Capoeira do Senhor que visa retratar os cânticos africanos tradicionais vinculadas como uma prática um processo que o autor chama de contrainformação Ademais é possível refletir por meio da obra a interrelação entre as práticas religiosas de origens africanas e a cultura indidigena e asiática uma vez que a formação das religiões em questão são formadas a partir da interação das duas outras matrizes Sob essa ótica o autor reflete sobre a necessidade de reconhecimento dessas convergências sem um extremismo comparativo que afirme que por exemplo São Jorge seja a versão católica do Ogum ou vice e versa Nesse ínterim o autor reconhece que a origem da Umbanda como póssincretismo ao kardecismo Outrossim o autor retrata algumas concepções que diferenciam o Candomblé da Umbanda mostrando que no Candomblé os orixás se tornam deuses pessoais enquanto na Umbanda eles são postos como ancestrais que só descem ocasionalmente Por fim é provocado ainda na obra em questão sobre a oposição entre religiões ditas monoteístas e politeístas como é o caso da Umbanda e do Candomblé quando o Gonçalves da silva 1994 pontua que o próprio catolicismo que é monoteísta possui o topo formado por uma trindade e a presença de santos intercessores Tal provocação está associada ao fato de que em muitos casos uma das razões utilizadas para explicar o preconceito e a discriminação sofridas por essas religiões é o fato de serem politeísta LODY R Santo também come Rio de Janeiro Editora Pallas 2006 A partir de uma pesquisa de campo realizada por Raul Giovanni da Motta Lody na Bahia Maranhão Pernambuco Rio de Janeiro e outras localidades do Brasil a obra em questão revela questões pontuados de um Brasil à luz das fundamentações sagradas das religiões de matrizes africanas marcada por rituais e festas com ênfase na cozinha afro brasileira A obra em questão inicia trazendo o ponto de que o Exu foi o cozinheiro dos orixás Exu é descrito como cozinheiro preocupado com o pedalar e as peculiaridades do paladar duas orixás A fim de fundamentar o foco temática de sua obra Lody traz a relação entre a formação de uma identidade cultural e alimentação assim como o processo de cozinhar sofrer influência dos costumes e preceitos dos deuses africanos Sob essa ótica o fator determinante para a união e a preservação das ações dos deuses é a alimentação e é por meio dela que os deuses e os adeptos têm assegurado a sobrevivência dessas religiões Nesse viés a boca do homem é também um espaço cultural e religioso ou seja o processo de se alimentar implica em um ato biológico social e cultural onde a prática tem sua origem vinculada às necessidades de nutrição e sobrevivência A comida fundamentada nessas concepções é um marco cultural de civilização histórico social e econômico Nos terreiros comer é estabelecer vínculos entre homens deuses antepassados e natureza a alimentação vem como um processo que nutre corpo e alma Por exemplo como o dendê é uma das marcas mais presentes da mesa afrobrasileira e com isso comer dendê é como um pouco da África Com isso o comer abrange a concepção formal da palavra sendo o equivalente a cultuar zelar e manter os princípios A mesa dos Deuses dentro das fundamentações das religiões afro brasileiras são estabelecidas à base de carnes peixes farinhas tempero e óleo sendo o gosto e hábito condicionado às suas ações sagradas e nutritivas para os homens Dentro desse contexto comidas à base de milho papas azeitedecheiro camarões secos gengibre e bebidas desempenham papel socializante mantendo o divertimento e a fé Além do alimento em si representar significações dentro das religiões o processo de preparo os utensílios e os tipos de fogões utilizados mantém princípios tradicionais das religiões O Ajeum é a comida é o ato da alimentação que se expande dentro das festas públicas dos terreiros de Candomblé Momento este marcado por danças rituais dos orixás voduns e inquices As comidas dessa festa são chamadas de comida de branco servidas obedecendo uma sequência hierarquia As visitas são as primeiras a se servirem A cachaça a cerveja são as principais bebidas servidas em ocasiões festivas após a prática de rituais com o amanhecer do dia As louças servidas são separadas de acordo com os preceitos pessoais diante dos deuses africanos A cozinha é organizada por meio de critérios de utilização e as cozinheiras dos deuses devem atuar como se estivessem no interior dos santuários Os processos de fazer alimentos rituais implicam em um compromisso desde do modo de preparação os utensílios utilizados A louça baiana é decorada por pinturas em alguns casos de relevo A louça de Maragogipinho é dividida em louça grossa que são as peças maiores e a miçalha que são loucas menores Há também presença de vasilhas de barro Os pratos de Nanã representam uma civilização simbolizada pelos utensílios em madeira de fibras naturais Em festividades dedicadas ao orixá Nanã um peixe emblemático é recorrente inaugurando um cortejo cerimonial de filhas do terreiro A prática dos terreiros também fundamentam atitudes das vendedeiras de tabuleiro que é possível observar nas ruas e nas praças do Rio e de salvador sendo essa uma prática de forte vínculo religioso A festa do caruru dos Ibejis é marcada por momentos de descontração e alegrias sendo o caruru um dos pratos servidos no rigor dos terreiros Os Ibejis tem um papel no culto de divindades infantis marcando sua característica de alegria análoga às crianças Em suma a obra analisada é marcada por uma diversidade de conceitos apresentados sobre a cultura alimentar das manifestações das religiões de matrizes africanas sendo impossível pontuar todas as concepções culturais trazidas na obra Por isso no resumo foi enfatizada apenas alguns pontos dessa pluralidade GONÇALVES DA SILVA V Candomblé e umbanda Caminhos da devoção brasileira São Paulo Editora Ática 1994 A obra em questão tem como principal objetivo responder os questionamentos que envolvem a sociedade quando se fala sobre as religiões afro brasileiras fornecendo uma análise histórica do desenvolvimento das religiões com ênfase no Candomblé e na Umbanda Nesse viés o autor pontua de forma crítica as perseguições sofrida pelas religiões de matrizes africanos que se estenderam desde do período colonial quando Portugal colonizou as terras brasileiras já trazendo o catolicismo até a república onde na década de 1980 o Candomblé e a Umbanda são inseridas no âmbito da cultura nacional sendo aceitas por setores da intelectualidade brasileira Entretanto até os dias atuais tais religiões ainda sofrem diversos preconceitos e perseguições Baseado nessas concepções no período colonial de acordo com o autor tais expressões representavam um perigo ao catolicismo colonial como uma afronta à uma magia oficialmente instituída que foi posta aos nativos desde a chegada dos portugueses em terras brasileiras No contexto republicano fundamentado em Gonçalves da silva 1994 a realidade começa a mudar sendo essas religiões palcos de pesquisa e composições literárias e acadêmicas O autor utiliza figuras como Hilária Batista de Almeida a Tia Ciata mãe de santo em cujo terreiro na Praça Onze costumavam se reunir pioneiros na maturação do samba como linguagem musical como Pixinguinha João da Baiana Heitor dos Prazeres e Donga para dar ênfase a influência do Candomblé e da Umbanda nos diversos setores sociais Não consonante um movimento antagônico ganha forma e força nos últimos anos as chamadas religiões neopentecostais que visam o combate a diversas formas de manifestação das religiões afrobrasileiras representando um processo que corrói a legitimidade de tais religiões O autor ainda dá ênfase a eventos como Capoeira do Senhor que visa retratar os cânticos africanos tradicionais vinculadas como uma prática um processo que o autor chama de contrainformação Ademais é possível refletir por meio da obra a interrelação entre as práticas religiosas de origens africanas e a cultura indidigena e asiática uma vez que a formação das religiões em questão são formadas a partir da interação das duas outras matrizes Sob essa ótica o autor reflete sobre a necessidade de reconhecimento dessas convergências sem um extremismo comparativo que afirme que por exemplo São Jorge seja a versão católica do Ogum ou vice e versa Nesse ínterim o autor reconhece que a origem da Umbanda como póssincretismo ao kardecismo Outrossim o autor retrata algumas concepções que diferenciam o Candomblé da Umbanda mostrando que no Candomblé os orixás se tornam deuses pessoais enquanto na Umbanda eles são postos como ancestrais que só descem ocasionalmente Por fim é provocado ainda na obra em questão sobre a oposição entre religiões ditas monoteístas e politeístas como é o caso da Umbanda e do Candomblé quando o Gonçalves da silva 1994 pontua que o próprio catolicismo que é monoteísta possui o topo formado por uma trindade e a presença de santos intercessores Tal provocação está associada ao fato de que em muitos casos uma das razões utilizadas para explicar o preconceito e a discriminação sofridas por essas religiões é o fato de serem politeísta