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A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral que estrutura o pensamento cristão Essa dualidade é de resto o fundamento do modelo das duas cidades que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do qual o mundo se divide em dois conjuntos opostos a cidade de Deus que reúne os justos daqui de baixo e a Igreja celeste a cidade do Diabo da qual fazem parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os danados e os diabos que povoam o inferno Segundo essa visão a oposição entre o bem e o mal prevalece sobre aquela entre o aqui embaixo e o além pois cada cidade engloba uma parte deste mundo e uma parte do outro Não é menos verdade que a dualidade do além submete o universo à sua polaridade pois ele é a residência privilegiada das forças sobrenaturais Deus em seu trono no reino dos céus cercado pela corte de anjos e de santos Satã imperador do reino de dor segundo as palavras de Dante O além é igualmente o ponto de perspectiva que obriga a ler cada ato humano através de uma grade moral dual como pecado passível da danação ou como virtude merecedora da beatitude do céu A Regula bullata aceita pela Ordem Franciscana não resume do modo mais lapidar possível o objetivo da pregação dos frades anunciar aos fiéis os vícios e as virtudes a pena e a glória O conjunto dessas dualidades morais concorre para ativar a exigência fundamental em nome da qual a Igreja pretende governar a sociedade cristã prover a sua salvação A GUERRA ENTRE O BEM E O MAL O mundo campo de batalha entre vícios e virtudes A oposição entre o bem e o mal é essencial no cristianismo medieval Os pecados e as virtudes constituem categorias fundamentais para ordenar a leitura do mundo tanto de sua história desde a queda dos anjos e o pecado de Adão e Eva até o Juízo Final como de seu presente todas as atitudes humanas devem ser louvadas como virtudes ou denunciadas como vícios e de seu futuro o destino no além é a consequência das boas ou das más ações realizadas na terra Nenhuma realidade escapa a esse crivo temerário que dá lugar a um discurso moral de amplitude estupenda do qual a Igreja se esforça para assegurar os fundamentos teológicos analisando a natureza de cada pecado e de cada virtude e para promover o uso pastoral produzindo classificações eficazes e adaptando incessantemente as categorias morais às realidades sociais O enorme sucesso da moral dos vícios e virtudes ligase ao fato de que ela oferece um discurso totalizante sobre o mundo ou mais exatamente um discurso sobre a ordem da sociedade conforme os critérios clericais Ao mesmo tempo a dualidade moral é a justificativa fundamental da intervenção da Igreja na sociedade que visa liberar os homens do pecado protegêlos do mal e mantêlos no correto caminho que leva à salvação Entretanto para chegar a isso terá sido necessário o gênio de santo Agostinho que lega à cristandade medieval sua doutrina do pecado original Ela é forjada no decorrer de sua luta contra Pelágio e seus discípulos os quais para melhor exaltar a liberdade do homem afirmam que o pecado original não manchou inteiramente a vontade do indivíduo e que cada um pode portanto encontrar em si a força para elevarse até Deus Rejeitando essa visão otimista e heróica Agostinho insiste sobre o rebaixamento da natureza humana Para ele o pecado original é transmitido a cada homem que então nasce pecador antes mesmo de ter realizado algo E não é somente a pena do pecado original que é transmitida assim conforme a advertência que Deus enuncia a Adão e Eva mas também a própria falta A humanidade inteira é parte integrante do pecado do primeiro casal e é coletivamente responsável por ele O peso dessa falta afeta até o nível mais profundo a vontade do homem e torna suspeito o exercício de sua liberdade que o leva geralmente para o mal Igualmente na mesma medida em que ela deprecia o homem a teologia agostiniana reforça a importância do batismo e valoriza com maior força sua necessidade indispensável se o sacramento purificador não restitui totalmente ao homem a pureza de suas origens edênicas ao menos apaga o peso massacrante da falta original e lhe oferece a oportunidade quase inesperada de sua redenção A sombria teoria de Agostinho demonstra assim que o homem não pode se salvar sozinho e que tem necessidade para tanto do socorro insubstituível das instituições e em primeiro lugar da Igreja apenas a mediação desta pode atrair sobre ele a graça divina e lhe permitir evitar as emboscadas que semeiam o caminho da salvação Entre as virtudes e os vícios só pode existir uma luta sem tréguas A Psycho machia do poeta Prudêncio século V obra destinada a amplo sucesso descreve os combates épicos a que se lançam as personificações armadas dos vícios e das virtudes por exemplo Fé contra Idolatria Paciência contra Cólera Humildade contra Soberba Entretanto tratandose das virtudes as classificações utilizadas ao longo da Idade Média são múltiplas e variáveis e é possível mencionar notadamente as obras de misericórdia Mat 25 e os sete dons do Espírito Santo Is 11 Uma das principais tipologias é sem nenhuma dúvida a das sete virtudes quatro virtudes cardeais prudência justiça temperança e força e três virtudes teológicas caridade fé e esperança As primeiras são tomadas de empréstimo a Platão e Cícero enquanto as últimas são criações especificamente cristãs I Cor 13 Embora de origens distintas elas são associadas a partir do século XII para formar o septenário das virtudes O recurso a este não é todavia desprovido de problema em primeiro lugar porque ele não se contrapõe ponto a ponto aos sete pecados capitais mas também porque ele não inclui certos valores cristãos fundamentais É por isso que a humildade particularmente essencial no mundo monástico e considerada a mãe de todas as virtudes deve em geral ser acrescentada em epígrafe ao septenário ou à raiz da árvore do bem da qual florescem as virtudes Entretanto a preeminência da humildade pode ser contestada em benefício da caridade tida como a primeira das virtudes por São Paulo e que se beneficia também ela no seio do septenário da posição de mãe das virtudes Com efeito no pensamento medieval ela adquire importância considerável pois significa a um só tempo o amor ao próximo e o amor a Deus constituindo assim o próprio fundamento do laço social e da organização da cristandade Quanto às outras virtudes do septenário são certamente a justiça e a fé que se beneficiam do eco social mais manifesto Os pecados são ordenados muito mais precocemente em um septenário em primeiro lugar com João Cassiano monge vindo do Egito para Marselha no início do século V e sobretudo na Moralia in Job de Gregório o Grande que lhe dá sua forma canônica para a Idade Média orgulho inveja ira preguiça avareza gula e luxúria Esses pecados são ditos capitais porque se engendram uns aos outros e sobretudo porque cada um deles é o ponto de partida de ramificações que dão nascimento a numerosos pecados derivados assim como é representado pelas árvores dos vícios que se multiplicam na sequência do Liber floridus de Lamberto de SaintOmer por volta de 1120 figura 34 na p 378 É verdade que o septenário sofre a concorrência de outras classificações e por vezes deve dar lugar a categorias novas como os pecados da fala que a partir do século XIII reagrupam todas as faltas cometidas quando se fala desde a blasfêmia e a injúria até a maledicência e a mentira ou quando se cala indevidamente taciturnitas Entretanto ao mesmo tempo o papel do septenário apenas se reforça especialmente graças à Summa confessorum do inglês Tomás de Chobham em 121015 e pouco depois à Suma dos vícios e das virtudes do dominicano Guilherme Peyraut a mais importante no gênero Ela consagra o triunfo do septenário e faz dele o ponto cardeal da pastoral cristã bem estudado por Carla Casagrande e Silvana Vecchio A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 377 34 A árvore dos vícios c 1300 Verger de Soulas Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 9220 f 6 A árvore dos vícios como a nomeia a inscrição emerge da garganta do inferno Em meio às chamas um cavaleiro com um falcão no punho e caindo de sua montaria simboliza o orgulho raiz de todos os vícios e por excelência pecado dos dominantes Do tronco da árvore nascem sete galhos que terminam com um medalhão correspondendo a um dos pecados capitais com suas subdivisões indicadas nas folhas Da esquerda para a direita a avareza um homem tranca suas riquezas em um cofre a ira uma mulher arranca seus cabelos a gula Janus à mesa a luxúria uma mulher nua segurando um espelho e tentada pelo diabo a preguiça um personagem sentado como que prostrado a vanglória uma mulher segurando uma taça e um livro a inveja uma mulher com uma serpente em torno do pescoço Discurso sobre os vícios discurso sobre a ordem social O sucesso considerável do septenário é explicado por sua notável eficácia sintética e por sua capacidade de adaptarse às realidades sociais em permanente transformação Tratar dos pecados significa com efeito sustentar um discurso sobre a boa ordem da sociedade O orgulho é por excelência o pecado dos dominantes clérigos ou aristocratas que exaltados pela sua posição são vítimas de um excessivo desejo de elevação e terminam por infringir a obediência e a submissão que convém manifestar perante Deus figura 34 na p 378 A inveja é o ciúme que se exerce entre semelhantes em particular nos meios em que a competição é viva como entre cortesãos ou entre universitários mas ela é sobretudo o vício das classes inferiores que repugnam sua posição de dominados e lançam um olhar maldoso em direção ao topo da sociedade Enfim a ira estigmatiza a violência e a agressividade que se manifestam no corpo social sob suas formas mais variadas desde o insulto e o homicídio até a blasfêmia e a rixa figura 37 na p 398 Esses três pecados rompem então a harmonia hierárquica da sociedade cristã atentando contra a justa medida do poder exercido pelos dominantes contra a submissão que os dominados devem manifestar e contra a concórdia que deve reunir a todos no vínculo da caridade A evolução dos outros pecados capitais não é menos notável A preguiça também chamada acédia e tristeza é sem dúvida o pecado cujo sentido se transforma mais claramente ao longo da Idade Média No início ela é um vício essencialmente monástico que traz a marca de sua origem o pensamento dos eremitas do deserto egípcio transmitido por Cassiano e Gregório e dos valores dominantes durante a Alta Idade Média Ela se refere então ao desalento do monge ao desgosto pela solidão e à melancolia que o assolam para desviálo de Deus e lhe fazer abandonar sua vocação Mas no contexto da Idade Média Central ela muda radicalmente de sentido e visa principalmente em Guilherme Peyraut e aqueles inspirados por ele à ociosidade considerada a partir do século XIII a mãe de todos os vícios o que designa a contrario o trabalho como a função legítima da terceira ordem da sociedade Diferentemente de seu sentido monástico inicial a preguiça é então associada principalmente aos laicos que não cumprem seu ofício como laboratores ou que negligenciam seus deveres para com Deus Uma outra evolução notável é a promoção da avareza que a partir do século XII rivaliza com o orgulho pelo primado no seio do septenário Lester Little Se é verdade que o orgulho atenta contra a virtude cristã da humildade ele aparece de início como um pecado feudal e clerical sua preeminência é iniciada pelas inquietudes suscitadas pela importância crescente do dinheiro na vida social Proliferam discursos e sermões sobre a avareza e o capítulo que lhe é consagrado nas Sumas a começar pela de Guilherme Peyraut é geralmente o mais alentado A condenação da avareza tornase cada vez mais um ataque contra a usura pecado profissional dos mercadores e dos banqueiros Ela é fundamentalmente uma manifestação do amor excessivo aos bens materiais que a Igreja opõe ao desejo dos bens espirituais A avareza rompe então com a exigência de circulação generalizada que Deus institui sob o nome de caritas como princípio que rege a ordem social e os clérigos medievais retomam para denunciar o entesouramento culpado do avaro a metáfora de Ambrósio de Milão que opõe o poço inutilizado cuja água estagnada se corrompe e aquele em que a água escoa límpida e boa para beber Enfim se a condenação da luxúria está desde o princípio no centro da cultura cristã do pecado sua importância é ainda mais reforçada a partir do século XII no momento em que o celibato é definido como uma obrigação estrita dos clérigos e a nova doutrina do casamento impõe aos laicos regras mais coercitivas No geral o discurso sobre os pecados amplamente assumido pelas ordens mendicantes a partir do século XIII ecoa as transformações sociais e em particular o desenvolvimento das cidades Ele confere uma atenção crescente ao universo dos laicos não para reconhecer positivamente os seus valores específicos mas para denunciar mais eficazmente seus defeitos e para ordenálo conforme os valores da Igreja O discurso dos vícios ao mesmo tempo denúncia do mal e ocasião de inculcar as atitudes legítimas é um instrumento excepcional pelo qual a Igreja difunde seus valores no seio da sociedade e aumenta seu controle sobre ela Se consegue isso com tanto sucesso não é apenas porque ela empreende uma exploração exaustiva e minuciosa dos sentimentos e das paixões que se inscreve em uma arqueologia da psicologia ocidental é também porque ela faz ver ao mesmo tempo o mal e o remédio que pode curálo Melhor ainda ela reivindica o monopólio dos meios que permitem apagar o pecado ou ao menos escapar de suas consequências funestas Somente ela confere o batismo que lava a mancha do pecado original e abre as portas do paraíso Somente ela concede o perdão dos pecados capitais pelo sacramento da penitência cuja forma por excelência vem a ser a confissão a partir do Concílio de Latrão IV sem falar de outros meios como as indulgências que diminuem ou anulam a penitência requerida para perdão das faltas Assim se a pastoral do pecado cujo desenvolvimento nos últimos séculos da Idade Média é considerável visa aguçar a culpabilidade dos fiéis ela é também e sobretudo a valorização dos meios de salvação oferecidos pelos clérigos A confissão é seguramente o principal deles e é aliás para o uso dos confessores que o essencial do discurso sobre os vícios é produzido através da profusão das sumas morais dos manuais de confissão e dos exames de consciência A confissão adquire com efeito uma importância estratégica pois a condição do perdão é a declaração de culpa e como preço da tranqüilidade da alma os clérigos arroganse o direito de um olhar sobre a vida dos fiéis que mergulha até o mais íntimo das consciências O diabo príncipe deste mundo Por trás do combate entre vícios e virtudes perfilase uma outra luta ainda mais fundamental Com efeito o diabo e suas tropas demoníacas tentam os homens e os induzem ao pecado enquanto Deus e seus exércitos celestes esforçamse para protegêlos e incitálos à virtude O mundo é o teatro desse afrontamento permanente e dramático entre o Criador e Satã Uma das criações mais originais do cristianismo e praticamente ignorado no Antigo Testamento seu papel é valorizado principalmente pelo Evangelho que faz dele príncipe deste mundo Jo 12 o deus deste mundo secular Il Cor 4 Ele sintetiza então a multidão dos espíritos demoníacos que pululam no judaísmo popular ao mesmo tempo que procede da dissociação da figura ambivalente de Jeová deus tanto de cólera e de castigo como benefitor É então recorrendo principalmente à literatura apócrifa judaica sobretudo o Livro de Henoch do século II aC que é precisado o mito da queda dos anjos que constitui o ato de nascimento do diabo e marca a entrada do mal no universo Se no relato inicial a queda é a consequência do desejo dos demônios que foram seduzidos pela beleza das mulheres a partir do século IV ela é explicada pelo orgulho do primeiro dos anjos Lúcifer desejoso de se igualar a Deus e por isso expulso do céu junto com todos os anjos rebeldes aliados à sua pretensão insana Ao longo da Idade Média a importância da figura do Maligno é constantemente reforçada tanto nos textos como nas imagens nas quais ele só aparece a partir do século IX No mais é somente por volta do ano mil que encontra um lugar digno dele quando se desenvolve uma representação específica que sublinha sua monstruosidade e sua animalidade manifestando assim seu poderio hostil de modo sempre mais insistente figuras 36 e 37 nas pp 390 e 398 Entretanto mesmo se o cristianismo faz do universo o teatro de uma luta entre Deus e Satã não se poderia assimilálo às doutrinas dualistas Ao contrário opondose à religião de Mani 21677 e de seus discípulos os maniqueus e mais tarde ao catarismo o cristianismo medieval procura se distanciar do dualismo segundo o qual o mundo material é a criação de um princípio do mal totalmente independente de Deus A doutrina cristã tem Deus por senhor e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 381 criador de todas as coisas e a narrativa da queda dos anjos mostra que Satã e os diabos são criaturas anjos caídos que como repetem os clérigos disputando entre si para ver quem o diz melhor não podem agir senão com a permissão de Deus Preocupado em afastar o mais possível o risco dualista são Tomás insiste mesmo sobre o fato de que os demônios foram criados bons e que eles são maus por vontade e não por natureza Entretanto o poder do príncipe deste mundo é aparentemente tão extenso que a doutrina parece por vezes eclipsarse um pouco em proveito de um aspecto profundamente vivido que lhe concede de facto uma ampla autonomia de ação Toda a história do mundo parece marcada pela intervenção do Maligno desde a queda dos anjos até o desencadeamento escatológico anunciado pelo Apocalipse A tentação de Adão e Eva é a primeira revanche de Lúcifer e na sequência de Agostinho é dito que graças ao pecado original o diabo possui um verdadeiro direito de propriedade sobre o homem Mas Cristo através de seu sacrifício resgata esse direito do diabo e pode então liberar Adão Eva e todos os justos do Antigo Testamento que Satã retinha até então como prisioneiros no inferno A guerra entre as forças do mal e as forças do bem é a partir daí mais equilibrada com as primeiras reivindicando em seu benefício o pecado original e as últimas encontrando na Encarnação um argumento ainda mais poderoso e relembrando que o homem tem desde então os meios de reencontrar a harmonia perdida com Deus A luta não é por isso menos incerta e obstinada e numerosos relatos detalham as ações maléficas daquele que se nomeia a justo título o Inimigo Dizse que ele é responsável por todos os males e todos os infortúnios ele provoca tempestades e borrascas apodrece os frutos da terra causa as doenças dos homens e do gado Ele faz afundar os navios desabar os edifícios e bloqueia as melhores intenções contase por exemplo que ele se opõe à construção da catedral de York tornando as pedras impossíveis de ser levantadas Com suas armas favoritas que são a tentação e o engodo ele procura insinuar no coração dos homens desejos culpáveis suscitando maus pensamentos por meio do sonho sempre suspeito de ter uma origem diabólica ou da aparição a célebre Vida de Antônio o eremita do deserto fornece desde 356 o arquétipo dessas tentações diabólicas com frequência retomadas e expressadas por imagens Para tal ele pode usurpar uma aparência humana em particular a de uma mulher sedutora ou a de um belo jovem ou até mesmo a de um santo Nada é impossível para o diabo verdadeiro campeão da metamorfose nem mesmo tomar as feições do arcanjo Gabriel da Virgem ou de Cristo As tentações da carne e do dinheiro do poder e das honrarias são as mais temíveis são aquelas às quais sucumbe Teófilo prefiguração medieval de Fausto depois de feito seu pacto com o diabo segundo a lenda bizantina conhecida no Ocidente a partir do século IX 382 Jérôme Baschiel e largamente difundida nos textos nas pregações e nas imagens figura 35 na p 384 E já que o Maligno intervém em todos os negócios deste mundo aqui embaixo não se hesita em manipulálo a ponto de em certos conflitos cada partido mencionar uma carta enviada por Lúcifer ao outro campo esse estratagema utilizado notadamente durante o Grande Cisma devia parecer um meio eficaz para desacreditar os adversários Assim o diabo pode insinuarse no corpo dos homens possuilos e lhes fazer perder toda a vontade própria É por isso que o ritual de exorcismo pelo qual a Igreja libera os possuídos adquire grande importância particularmente durante a Alta Idade Média Todavia passado o ano mil a possessão recua em proveito da obsessão diabólica que toma de assalto as consciências em particular a dos monges assim o demônio aparece a Raul Glaber como um pequeno homem esquelético corcunda e negro como um etíope Em numerosos relatos que põem em cena os tormentos da alma perseguida pelas forças hostis o diabo exprime tudo o que a consciência julga negativo e não pode admitir como emanando dela ou de Deus Como sugere Freud os demônios são formas personificadas e projetadas para fora de si dos desejos reprimidos As pulsões demonizadas são muitas vezes de natureza sexual como se constata nos numerosos relatos de sonho ou nos casos das poluções noturnas emissões involuntárias de esperma durante o sono que os monges atribuem à intervenção do diabo Mas essas pulsões podem também adquirir uma feição mórbida como quando o diabo tendo tomado a aparência de são Tiago ordena ao peregrino que se castre e se mate De resto é geralmente no momento da morte que o diabo se torna mais ameaçador Ele se precipita junto aos moribundos para lhes fazer provar uma última tentação e evitar que aproveitem seus últimos momentos para arrependerse confessarse e obter in extremis sua salvação Como indica abundantemente a iconografia anjos e demônios travam uma guerra terrível na cabeceira de cada moribundo para tomar posse da alma do defunto figura 40 na p 415 E quando é preciso recorrer a um verdadeiro julgamento da alma cujos relatos se desenvolvem a partir do século VIII o diabo revela seus talentos litigantes para obter ganho de causa ou de maneira mais grosseira pendurase em um dos pratos da balança em que são pesadas as boas e as más ações do morto Satã contraponto valorizador das potências celestes e da Igreja Não se poderia considerar o diabo de modo isolado Por maior que pareça ser seu poderio ele não pode ser avaliado corretamente se não se leva em conta o conjunto das forças celestes que se lhe opõem As legiões angélicas infligem aos A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 383 35 Teófilo prestando homenagem ao diabo c 1210 salterio da rainha Ingeburge Museu Condé Chantilly ms 9 fl 35v O salterio de Ingeburge esposa repudiada pelo rei Filipe Augusto é ricamente iluminado e seus planos de fundo em ouro são particularmente bem conservados Nele o milagre de Teófilo desenrolase por várias páginas No alto aqui o pacto que Teófilo faz com o diabo toma a forma de uma homenagem vassálica ajoelhado ele junta as mãos como para o inixitio manum do rito feudal O diabo em pé põe somente uma de suas mãos sobre as de Teófilo pois com a outra segura o pacto que contém uma inscrição pouco visível evocando claramente a relação entre um vassalo e seu senhor cu sou teu homem ego sum homo tuus Embaixo Teófilo arrependido encontrase no interior de uma igreja lugar este que o altar e a lamparina suspensa são suficientes para indicar ele se prosternia em prece o gesto das mãos é desde o século XI o do vassalo prestando homenagem a seu senhor e por consequência o mesmo que Teófilo realiza acima diante do diabo É provável que ele ore diante de uma estátua da Virgem posta sobre o altar mas aqui ela parece te aparecer em pessoa e lhe falar Nas cenas seguintes a Virgem retoma o pacto libertando Teófilo de suas obrigações para com o diabo A homenagem legítima à Virgem pôde então apagar a homenagem negativa a Satã anjos rebeldes sua primeira derrota Mesmo sendo as vitimas favoritas das tentações diabólicas os santos conseguem sempre superar a provação que se transforma assim em uma ocasião para confirmar sua força espiritual Nas narrativas hagiográficas o diabo é aquele que acaba por valorizar os santos heróis que triunfam sobre ele O exército dos santos inalteravelmente vitorioso demonstra assim que é um dos recursos mais eficazes para os homens que se põem sob sua proteção Enfim mais ainda do que os santos a Virgem tornase a protetora suprema sobretudo quando é Satã em pessoa que ameaça e é ela que liberta Teófilo de seu pacto diabólico figura 35 na p 384 Nos últimos séculos da Idade Média o par VirgemSatã adquire importância determinante como indica principalmente o tema do processo de Satã que ele intenta contra uma humanidade de quem a Virgem é a advogada A dualidade do diabo e de Maria parece então quase tão importante quanto a oposição entre Satã e Cristo mesmo se a superioridade de Deus sobre o diabo permanece o fundamento do feixe de oposições que acabamos de evocar O homem medieval não está então sozinho diante dos demônios Todas as forças divinas angélicas e santas cuja multiplicação incita a questionar a existência no seio do cristianismo medieval de uma deriva politeísta encontram sua unidade e sua coesão na luta contra ele de modo que o equilíbrio assim produzido sugere finalmente considerar o cristianismo medieval um monoteísmo complexo Além disso o fiel dispõe de práticas de gestos e de ritos para se proteger do Inimigo A Igreja em sua totalidade é uma muralha contra o diabo através dos sacramentos que dispensa o batismo a penitência dos ritos que pratica o exorcismo ou ainda a consagração das igrejas que interdita seu acesso aos diabos as preces e bênçãos que pronuncia e que afastam o Maligno Os objetos sagrados hóstia relíquia cruz mas também amuletos diversos mantêm igualmente o demônio a distância Enfim do mesmo modo que os clérigos sublinham que o diabo nada pode contra aqueles que têm fé existe um gesto simples e familiar cuja infalível virtude salva de todos os perigos satânicos o sinaldacruz O diabo contraponto valorizador das potências celestes que triunfam sobre ele também é então o contraponto valorizador da instituição eclesial através da qual os fiéis são convidados a recolher os frutos dessa vitória É então lógico que o diabo tenha sido considerado o inspirador dos inimigos da Igreja Para os cristãos os deuses adorados pelos pagãos são apenas demônios e após os muçulmanos e os judeus os hereges também são demonizados Iniciado desde o século III esse processo acentuase com as heresias do ano mil e mais tarde no momento da luta contra os cátaros Não somente os heréticos passam por seres inspirados pelo diabo mas são descritos de acor do com o tratado de Adson de MontierenDer sobre o Anticristo como os membros de um corpo do qual Satã seria a cabeça réplica negativa do corpo da Igreja da qual Cristo é o chefe Pouco a pouco a crença em um complô satânico que ameaça a sociedade ampliase A obsessão diabólica invade o Ocidente No mesmo momento em que o perigo herético foi estrangulado passase para a denúncia dos feiticeiros e feiticeiras que aos olhos dos clérigos não passam mais por vítimas de uma ilusão diabólica que convém tratar com clemência como queria o cânone Episcopi mas efetivamente por membros de uma seita diabólica que no sábá participam de um verdadeiro rito de adoração de Satã bula Vox in rama 1233 Convencidos de que a sociedade cristã está exposta a uma ofensiva de Satã sem precedente os poderes eclesiásticos monárquicos e urbanos rivalizam em zelo e desencadeiam a partir dos anos 1430 e principalmente durante a época moderna vasta perseguição em uma escala inédita contra aqueles que considera seus inimigos mortais Satã aparece então como o adversário contra o qual se funda e se reforça o poderio das instituições Acontece que Satã está sempre associado à questão do poder Ao contrário do corpo eclesial ele é também a imagem do mau poder Na época feudal Lúcifer é em geral descrito como o vassalo pronto à felonia e que quer igualarse a seu senhor em vez de lhe prestar obediência É sobretudo a partir do século XIV que se manifesta a majestade de Satã mesmo se suas primícias teológicas já são encontradas em Tomás de Aquino Este admite com efeito a existência de uma ordem e de um poder de comando no mundo demoníaco o céu e o inferno não se opõem mais então como dois contrários ordem versus desordem mas como duas ordens estruturalmente idênticas mas inversas ordem boa versus ordem má A iconografia pode então acentuar o poderio de Satã sublinhando sua autoridade por meio de uma posição frontal e sentada por meio das insígnias de seu poder trono cetro coroa e por meio do respeito que ele impõe à corte dos demônios A majestade de Satã aparece assim ao mesmo tempo como a figura extrema do mau poder tirânico e como o inverso das formas legítimas dos poderes monárquico e pontifício que então se reforçam Assim ao longo de toda a Idade Média Satã amplia sua presença e seu poderio ameaçador Mas esse fenômeno não poderia ser compreendido sem considerar ao mesmo tempo as potências que o controlam figuras divinas e santas instituição eclesial e autoridades monárquicas que afirmam seu poder crescente no combate vitorioso que travam contra o mal absoluto Diante de um poderio incessantemente mais temível são necessários protetores cada vez mais eficazes De seu afrontamento resulta uma tensão mais viva uma polarização mais intensa que parece característica do sistema religioso do fim da Idade 386 Jérôme Baschet Média A dramatização criada pelo reforço da soberania de Satã traduz sem dúvida uma situação de crise mas essa tensão contribui também para tornar mais urgente o recurso às figuras protetoras e à mediação da Igreja A majestade temerária do príncipe das trevas é exatamente o inverso das instituições que se esforçam aqui embaixo para manter ou reforçar sua dominação De resto tal lógica não deixa de ter eco em nossas sociedades contemporâneas nas quais se observa como o poder encontra sua justificativa no mal do qual ele protege a ponto de ter interesse em pôr em cena ou mesmo em produzir a imagem do Satã sobre o qual ele pretende triunfar a União Soviética como império do mal para os Estados Unidos e viceversa os Estados Unidos como Grande Satã para os islamitas radicais os terroristas e a delinquência para as potências ocidentais desamparadas pelo desaparecimento do espectro soviético O AQUI EMBAIXO E O ALÉM UMA DUALIDADE QUE SE CONSOLIDA Doutrina e relatos do além É um traço próprio do cristianismo estabelecer como centro ativo de suas representações uma dualidade radical do além Ao contrário a Grécia antiga e o judaísmo primitivo reagrupavam todos os mortos em um universo subterrâneo no essencial unificado Hades ou Sheol Mesmo se nestas duas civilizações operase uma progressiva diferenciação dos destinos postmortem esta não atinge a clareza brutal da partilha moral profetizada por Cristo O Juízo Final anunciado pelo Evangelho de Mateus e pelo Apocalipse tido por são Paulo como um elemento de fé fundamental Heb 6 12 e integrado em todas as versões do Credo traça a perspectiva no final dos tempos da segunda vinda de Cristo que separa os bodes e as ovelhas enviando os maus para o fogo eterno da danação e convidando os justos a se elevarem até o reino dos céus Mat 25 A mensagem evangélica ampliada pelos Padres da Igreja funda então a crença em um além dual que divide a humanidade em dois destinos radicalmente opostos a glória celeste do paraíso para uns o castigo eterno do inferno para outros Prevalece então o que nomearemos uma lógica da inversão o destino no além é consequência do comportamento aqui embaixo e produz sua exata reversão Como mostra exemplarmente a parábola de Lázaro e do mau rico Luc 16 aquele que vive no prazer sobre a terra deverá padecer as penas do outro mundo enquanto aquele que sofre aqui embaixo conhecerá a felicidade alémtúmulo A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 387 Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr P 358386 020 J L Copiadora Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Do ano mil à colonização da América tradução Marcelo Rede Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense prefácio Jacques Le Goff EDITORA GLOBO nação da vida humana O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações mundanas e desejando atingir sua pátria celeste o lugar do Pai divino a fim de gozar da estabilidade da morada eterna santo Agostinho Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento cujo ideal é a estabilidade local conceba a vida terrestre como um deslocamento e o homem como um viajante um homo viator segundo um tema muito corrente na época É que em vista das exigências cristãs o aqui embaixo é um vale de lágrimas uma passagem transitória e exterior por oposição ao verdadeiro lugar objeto de todas as esperanças que é o além celeste Nesse sentido a única verdadeira estabilidade é encontrada junto a Deus enquanto o mundo terrestre como todo espaço exterior é associado a um deslocamento sinônimo de perigo e de insegurança de provação e de sofrimento De resto tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o movimento porque se trata de prática excepcional Na cristandade existem é verdade alguns grupos que se movimentam muito mercadores que viajam para longe e clérigos que para estudar nas universidades mais reputadas realizam longos périplos abades que visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e mais tarde frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das exigências da ordem e que praticam habitualmente a pregação itinerante Mas ainda aqui esses deslocamentos só são valorizados na medida em que se constituem como exceções e contribuem para reforçar as estruturas de dominação que garantem a stabilitas loci da imensa maioria dos produtores Além disso tais viagens obedecem a imperativos precisos diferentemente desses clérigos chamados giróvagos ou goliardos que não são vinculados a nenhuma função ou a nenhum lugar e cuja instabilidade excessiva é vigorosamente denunciada Entrase assim na categoria dos vagabundos estes escapando ao princípio da estabilidade local são incluídos por Bertoldo de Ratisbona 121072 na família do Diabo e são vítimas de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século XIV A IGREJA ARTICULAÇÃO DO LOCAL E DO UNIVERSAL Por universal designase aqui a cristandade romana tomada em sua globalidade quer dizer um universal relativo de resto não poderia ser diferente pois os valores universais nunca são mais do que a universalização de valores particulares segundo a expressão de Pierre Bourdieu O valor que essa totalidade pôde assumir através dos séculos medievais é aliás variável Nos séculos V e VI a Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses largamente autônomas Cada bispo detentor de um poder espiritual e temporal considerável é senhor em seu domínio e o bispo de Roma dispõe apenas de uma preeminência simbólica ainda mal estabelecida Depois a época carolíngia marca uma primeira afirmação da unidade cristã sob instigação do imperador e do papa Bento de Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base na regra beneditina enquanto a uniformização litúrgica difunde os hábitos romanos e eclipsa pouco a pouco as outras tradições Enfim a reforma eclesial dos séculos XI e XII e seus prolongamentos até o século XIII reforçam consideravelmente os poderes do papa bem como sua preeminência simbólica A centralização pontifícia tornase então a forma concreta assumida pela unidade da cristandade O papa é a sua encarnação e a projeta além dela mesma conclamando à cruzada ou mais tarde concedendo aos reinos ibéricos um direito de conquista garantindolhes o monopólio indispensável à exploração do Novo Mundo bula Inter caetera de Alexandre VI em 1493 Tratado de Tordesilhas em 1494 Alteração da doutrina eucarística A transformação da doutrina eucarística é ao mesmo tempo um indício e um instrumento da reorganização espacial da cristandade Nos primeiros séculos do cristianismo a celebração eucarística é concebida como um ato de memória conforme as palavras de Cristo que convida seus discípulos no momento da Última Ceia a refazer os mesmos gestos em minha memória O pão e o vinho utilizados são então apenas os símbolos do corpo e do sangue de Cristo servindo para comemorar seu sacrifício Para Agostinho Cristo está presente no sacramento como figura de modo que entre a hóstia e o corpo de Cristo existe a mesma diferença que entre um signo e a coisa que ele significa Prevalece então uma grande proximidade entre os fiéis e o altar sobretudo porque os pães utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à alimentação corrente e são oferecidos pelos membros da assistência Depois esses pães denominados oblata continuam a ser recebidos pelos clérigos mas não são mais levados para o altar e a partir do século IX são utilizados para o sacrifício pães não fermentados úzimos Essa distância em relação à realidade profana contribui para estabelecer uma separação entre os laicos e o altar é de resto um dos aspectos da divergência com o Oriente bizantino que conserva o uso do pão fermentado No século IX aparece também a primeira polêmica importante em matéria eucarística O liturgista Amalário de Metz e sobretudo Pascásio Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção simbólica do A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 359 Jérôme Baschet sacramento em vigor até então A reação é forte e clérigos como Rábano Mauro e Ratramno de Corbie batalham para manter a teoria agostiniana Mas o debate se esgota rapidamente sem dar lugar a nenhuma definição doutrinal como se tratasse de opiniões individuais que não requeriam a intervenção das autoridades eclesiásticas A polémica é retomada em meados do século XI momento em que a teologia eucarística começa verdadeiramente a se desenvolver Berengário de Tours um clérigo bem formado nas escolas da região do Loire e professor em Tours provoca por volta de 1040 uma indignação geral embora não faça mais do que reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os autores anteriores ao século IX confirmandoos com novas justificativas de natureza gramatical em particular uma análise profunda da fórmula central da missa hoc est corpus meum31 Numerosos autores como Lanfranc du Bec ou Guitmond de Aversa apoiados pelo papa Leão IX e Gregório VII e pelas principais figuras da reforma gregoriana opõemse então a Berengário Convocado por numerosas assembleias eclesiásticas ele é obrigado a retratarse e suas concepções são condenadas por uma bula pontifícia em 1059 Isso mostra claramente que uma ortodoxia eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então Não está mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de Cristo mas uma presença substancial do corpo de Cristo na hóstia A bula de 1059 não hesita em afirmar que o pão e o vinho são o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo eles são fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis Doravante explicase que existe uma unidade essencial entre as três formas do corpus Christi a hóstia consagrada o corpo histórico de Cristo e a Igreja Como a hóstia é assimilada ao corpo histórico de Cristo podese afirmar que Cristo está realmente presente no sacramento A hóstia não é mais então um símbolo que dá suporte a um ato de memória ela faz experimentar a presença real de Cristo presença não espiritual mas material de seu verdadeiro corpo Assim quando o sacerdote consagra a hóstia uma metamorfose se realiza um milagre diz Hugo de SaintVictor o pão e o vinho deixam de ser substancialmente pão e vinho eles se transformam e se tornam essencialmente o corpo e o sangue de Cristo mesmo se as espécies acidentais as aparências do pão e do vinho subsistam e permaneçam visíveis É essa metamorfose que é nomeada pelo termo transubstanciação atestado pela primeira vez na obra do teólogo Roberto Pullus por volta de 1140 e que insiste judiciosamente sobre a transformação da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção das aparências acidentais 31 Eis meu corpo NT 360 Jérôme Baschet Tal teoria qualificada de realismo eucarístico não tem nenhum fundamento nem nas Escrituras nem na tradição ela supõe então resolver enormes dificuldades lógicas e intelectuais Sua implantação é lenta avançando à medida que são aperfeiçoadas as argumentações lógicas que permitem contrapor as múltiplas objeções possíveis Além disso em seu esforço para impor uma doutrina sem precedente as proposições combativas do período entre 1050 e 1130 geram formulações bastante rudes que insistem muito literalmente sobre a presença material do corpo de Cristo na hóstia e sobre sua ingestão pelos fiéis Ora os autores ulteriores não tardam em perceber as dificuldades de semelhantes afirmações notadamente porque uma concepção exageradamente realista arrisca limitar Deus no tempo e no espaço Finalmente Tomás de Aquino propõe uma síntese nuançada e moderada Para ele a presença física de Cristo na hóstia realizase de uma maneira que não é material mas invisível e espiritual de modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua forma natural mas sob sua espécie sacramental O essencial não é entretanto absolutamente posto em causa a saber a transubstanciação a presença real e a identidade substancial da hóstia e do corpo histórico de Cristo Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido pelo sacramento eucarístico Assim o gesto pelo qual o sacerdote eleva a hóstia após suas palavras de consagração aparece justamente na região de Tours no século XI como que para apoiar o realismo eucarístico em face dos perigos das teorias declaradas heterodoxas de Berengário Depois entre 1198 e 1203 o bispo de Paris Eudês de Sully prescreve o uso desse gesto em sua diocese até que essa nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente Compreendese a importância desse gesto que torna sensível o efeito das palavras de consagração e sublinha o carácter extraordinário da transubstanciação que provocam A elevação exibe a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos Esse gesto tornase então tão importante que ele concentra a atenção dos fiéis a tal ponto que assistir à elevação lhes pareça um substituto aceitável da comunhão Isso não é surpreendente se for lembrado que esta última permanece rara para a maioria dos fiéis que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo Concílio de Latrão IV É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e portanto tão perigoso para o homem exposto ao pecado que é melhor não ser excessivamente zeloso Do mesmo modo assistir à elevação parece uma maneira suficiente e menos arriscada de adorar a Deus e no século XIII são conhecidos fiéis que correm de uma igreja a outra para testemunhar o maior número possível de elevações E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um sacramento eles lhe atribuem todavia uma notável virtude espiritual comparandoa à comunhão e qualificandoa de mastigação pela visão manducatio per visum Sem dúvida é para canalizar tal devoção e mais largamente para permitir o prolongamento do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao próprio sacramento eucarístico o Corpus Christi Realizada em Liège desde os anos 1240 ela é oficializada pelo papa Urbano IV em 1264 e floresce sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon Clemente V no início do século XIV No momento dessa festividade solene a hóstia consagrada exibida em um ostensório transparente e assim tornada visível a todos os fiéis é levada em procissão sob um pálio através da cidade depois é celebrado um ofício especial chamado Corpus Christi cuja redação é devida a Tomás de Aquino A procissão que faz sair o objeto sagrado de seu próprio lugar o que não deixa de ser perigoso exibe o poder sacralizado do clero que toma posse do espaço urbano graças à deambulação de seu emblema maior a hóstia Nos últimos séculos da Idade Média a devoção eucarística adquire incessantemente importância crescente cujo reverso é o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia Frequentes a partir do século XIII elas são comumente utilizadas contra os judeus que são acusados assim de repetir contra o sacramento o crime cometido contra Jesus mas sobretudo afiançam o realismo eucarístico que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que sangra De resto fora as narrativas de profanação milagres cada vez mais frequentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico assim o Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação como na visão do rei Eduardo o Confessor relatada por Mateus Paris no século XIII como vista na figura 31 na p 363 a não ser que a hóstia sangre acima do altar ou se transforme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote Enfim entre os simples fiéis o desejo de ver a hóstia não se enfraquece concorrendo sempre com a prática da comunhão A eucaristia tornase assim nos três últimos séculos da Idade Média um supersacramento superior a todos os outros pois permite o contato de maneira repetida com a presença corporal de Cristo Miri Rubin Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos XI e XII Podese sem muita dificuldade sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse mesmo período o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e laicos Com toda a evidência a doutrina da presença real ressalta a eminência do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada Ela atribui então um poder simbólico ampliado ao sacerdote capaz de realizar um ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em sangue A um só tempo fora do domínio do natural ou contranatureza diz o teólogo Simão de Tournai e indispensável à salvação de todos a operação realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que separa 362 Jérôme Baschet 31 Cristo aparece miraculosamente na hóstia c 125560 abadia de SaintAlbans ou Westminster História do santo rei Eduardo Cambridge University Library Ee359 p 37fl 27 Celebrando a missa o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia É então que segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris o santo rei Eduardo o Confessor teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote no lugar da hóstia Este tipo de milagre mencionado em vários relatos a partir do século XII é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real Com efeito como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote clérigos e laicos Podemos então afirmar a existência de um laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da eucaristia Miri Rubin Isso é tornado ainda mais claro pelo fato de que no século XII no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico o cálice é salvo casos excepcionais retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies A distância entre clérigos e laicos é marcada assim por uma diferença ritual bem visível e uma reivindicação dos A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 363 partidários de Hus no século XV é que ela seja abolida e que se restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies De maneira ainda mais clara a maior parte dos hereges notadamente os cátaros e os lolardos e depois os reformados contesta radicalmente a doutrina da presença real transformada no fundamento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal Realismo eucarístico lugar sagrado e comunhão eclesial Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicos contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal Com efeito a presença real valoriza o ritual local que se realiza em cada igreja sobre cada altar ali naquele exato lugar está verdadeiramente presente o corpo de Cristo Ora um evento tão extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar fortemente sacralizado vigorosamente extraído do espaço terrestre normal É por isso que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamentação nas Escrituras ou na Patrística como bem demonstrou Dominique IognaPrat Nos primeiros séculos do cristianismo a questão do lugar onde seria realizada a celebração tem pouca importância ela é quase sem interesse e qualquer mesa por mais modesta que seja pode servir de altar A reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas de culto domina então Michel Lauwers e Agostinho faz ainda esta pergunta irônica São os muros que fazem os cristãos Uma primeira transformação intervém no fim do século IV quando a presença de relíquias no altar é julgada útil e mais tarde em 401 considerada indispensável para a celebração da missa santo Ambrósio explica que do mesmo modo que as almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse os corpos dos santos devem se encontrar sob o altar terrestre O lugar deixa de ser indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer durante a Alta Idade Média os grandes santuários perfumados e rutilantes em meio a um mundo mal iluminado e malcheiroso aparecem como fragmentos de paraíso Peter Brown A prática conserva entretanto certa maleabilidade e na época carolíngia é necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relembrar a indispensável presença das relíquias no altar É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de uma justificativa precisa tornada necessária pela contestação dos hereges Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras em 1205 e os discípulos de Pedro de Bruis no século seguinte pretendem voltar à prática antiga e negam radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembléia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicacão progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosas enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 365 CONCLUSÃO DOMINÂNCIA ESPACIAL NA IDADE MÉDIA DOMINÂNCIA TEMPORAL HOJE A partir daqui é possível contar entre as características fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade a articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à cristandade assim como a articulação entre stabilitas loci e mobilidade tratandose deste último ponto é possível distinguir de uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo distanciamentos positivos a deambulação penitencial e depois a peregrinação e a cruzada e distanciamentos negativos a vagabundagem e o banimento Três elementos ao menos concorrem para tal resultado Em primeiro lugar a criação da malha paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo edifício cultual sacralizado e o cemitério consagrado tendo em seu coração o altar e suas relíquias onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal Em segundo lugar o desenvolvimento sistemático da oposição interiorexterior notadamente pela prática de peregrinação associa as experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar protetor e familiar Enfim o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e hierarquizado polarizado pelos santos e suas relíquias Esta organização que assegura o máximo de estabilidade possível ao mesmo tempo que permite as trocas necessárias e que fixa os homens na região de conhecimento ao mesmo passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal sugere quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisiva Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas as reducciones e congregaciones que criam novas aldeias cujo centro é evidentemente uma igreja no caso de Bartolomeu de Las Casas por exemplo notase desde seus primeiros projetos de colonização pacífica em 1551 e 1520 uma verdadeira obsessão para organizar os índios em aldeias Como fruto de sua secular experiência na congregatio hominum da Europa Ocidental a Igreja sabe que o controle das populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo Tal é em todo caso o princípio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e igualmente ao que parece do feudalismo dependente implantado no Novo Mundo Se o feudalismo é caracterizado por uma dominação espacial isso não ocorre mais hoje No mundo contemporâneo é o tempo que parece constituir o ponto nodal da organização social pois com base no assalariamento e no cálculo do tempo de trabalho forma sempre dominante das relações de produção desenvolveramse consequências múltiplas para seres apressados submetidos à tirania dos relógios e à compulsão de saber que horas são Uma regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida tempo é dinheiro Inversamente na sociedade medieval o coração da organização social e das relações de produção dependia da relação com o espaço a primeira condição do funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens ao solo sua integração com uma célula espacial restrita na qual se entrelaçam sem se sobrepor poder senhorial comunidade aldeã e quadro paroquial uma célula na qual deviam ser batizados quitar as obrigações eclesiais e senhoriais e por fim ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos ancestrais Hoje quando o lugar está em via de não ser mais percebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos quando as manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do globo estamos em via de perder esse sentido da localização Nós vivemos é verdade o paradoxo de uma globalização fragmentada que multiplica as fronteiras exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial desigual Entretanto o mercado prolonga nos domínios que o favorecem sua obra de homogeneização e de banalização espaciais iniciada no século XVIII a tal ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam por vezes a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência humana a qual não poderia existir a não ser estando aí em algum lugar No momento em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos custosa poderseia dizer que a deslocalização tornase uma característica geral do mundo contemporâneo na medida em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia seja a prisão privação de liberdade e entrava à capacidade de deslocamento localização forçada por decorrência Na Idade Média a prisão era uma pena muito acessória enquanto o banimento era ao contrário essencial Hannah Zaremzka Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar o exílio era uma quase morte social pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures Nesta sociedade de honra vale mais ser um homem morto que um homem ultrajado De certo modo o exílio é pior que a morte Claude Gauvard Ao inverso do princípio de stabilitas loci o banimento constituía uma obrigação de deslocamento deslocalização forçada ou seja o exato inverso do castigo carcerário Coerção principalmente espacial de um lado coerção essencialmente temporal do outro aí está dito de modo muito esquemático uma das marcas de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo
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A oposição entre o aqui embaixo e o além é inseparável da dualidade moral que estrutura o pensamento cristão Essa dualidade é de resto o fundamento do modelo das duas cidades que Agostinho lega à Idade Média e em virtude do qual o mundo se divide em dois conjuntos opostos a cidade de Deus que reúne os justos daqui de baixo e a Igreja celeste a cidade do Diabo da qual fazem parte tanto os seres vivos atormentados pelo pecado como os danados e os diabos que povoam o inferno Segundo essa visão a oposição entre o bem e o mal prevalece sobre aquela entre o aqui embaixo e o além pois cada cidade engloba uma parte deste mundo e uma parte do outro Não é menos verdade que a dualidade do além submete o universo à sua polaridade pois ele é a residência privilegiada das forças sobrenaturais Deus em seu trono no reino dos céus cercado pela corte de anjos e de santos Satã imperador do reino de dor segundo as palavras de Dante O além é igualmente o ponto de perspectiva que obriga a ler cada ato humano através de uma grade moral dual como pecado passível da danação ou como virtude merecedora da beatitude do céu A Regula bullata aceita pela Ordem Franciscana não resume do modo mais lapidar possível o objetivo da pregação dos frades anunciar aos fiéis os vícios e as virtudes a pena e a glória O conjunto dessas dualidades morais concorre para ativar a exigência fundamental em nome da qual a Igreja pretende governar a sociedade cristã prover a sua salvação A GUERRA ENTRE O BEM E O MAL O mundo campo de batalha entre vícios e virtudes A oposição entre o bem e o mal é essencial no cristianismo medieval Os pecados e as virtudes constituem categorias fundamentais para ordenar a leitura do mundo tanto de sua história desde a queda dos anjos e o pecado de Adão e Eva até o Juízo Final como de seu presente todas as atitudes humanas devem ser louvadas como virtudes ou denunciadas como vícios e de seu futuro o destino no além é a consequência das boas ou das más ações realizadas na terra Nenhuma realidade escapa a esse crivo temerário que dá lugar a um discurso moral de amplitude estupenda do qual a Igreja se esforça para assegurar os fundamentos teológicos analisando a natureza de cada pecado e de cada virtude e para promover o uso pastoral produzindo classificações eficazes e adaptando incessantemente as categorias morais às realidades sociais O enorme sucesso da moral dos vícios e virtudes ligase ao fato de que ela oferece um discurso totalizante sobre o mundo ou mais exatamente um discurso sobre a ordem da sociedade conforme os critérios clericais Ao mesmo tempo a dualidade moral é a justificativa fundamental da intervenção da Igreja na sociedade que visa liberar os homens do pecado protegêlos do mal e mantêlos no correto caminho que leva à salvação Entretanto para chegar a isso terá sido necessário o gênio de santo Agostinho que lega à cristandade medieval sua doutrina do pecado original Ela é forjada no decorrer de sua luta contra Pelágio e seus discípulos os quais para melhor exaltar a liberdade do homem afirmam que o pecado original não manchou inteiramente a vontade do indivíduo e que cada um pode portanto encontrar em si a força para elevarse até Deus Rejeitando essa visão otimista e heróica Agostinho insiste sobre o rebaixamento da natureza humana Para ele o pecado original é transmitido a cada homem que então nasce pecador antes mesmo de ter realizado algo E não é somente a pena do pecado original que é transmitida assim conforme a advertência que Deus enuncia a Adão e Eva mas também a própria falta A humanidade inteira é parte integrante do pecado do primeiro casal e é coletivamente responsável por ele O peso dessa falta afeta até o nível mais profundo a vontade do homem e torna suspeito o exercício de sua liberdade que o leva geralmente para o mal Igualmente na mesma medida em que ela deprecia o homem a teologia agostiniana reforça a importância do batismo e valoriza com maior força sua necessidade indispensável se o sacramento purificador não restitui totalmente ao homem a pureza de suas origens edênicas ao menos apaga o peso massacrante da falta original e lhe oferece a oportunidade quase inesperada de sua redenção A sombria teoria de Agostinho demonstra assim que o homem não pode se salvar sozinho e que tem necessidade para tanto do socorro insubstituível das instituições e em primeiro lugar da Igreja apenas a mediação desta pode atrair sobre ele a graça divina e lhe permitir evitar as emboscadas que semeiam o caminho da salvação Entre as virtudes e os vícios só pode existir uma luta sem tréguas A Psycho machia do poeta Prudêncio século V obra destinada a amplo sucesso descreve os combates épicos a que se lançam as personificações armadas dos vícios e das virtudes por exemplo Fé contra Idolatria Paciência contra Cólera Humildade contra Soberba Entretanto tratandose das virtudes as classificações utilizadas ao longo da Idade Média são múltiplas e variáveis e é possível mencionar notadamente as obras de misericórdia Mat 25 e os sete dons do Espírito Santo Is 11 Uma das principais tipologias é sem nenhuma dúvida a das sete virtudes quatro virtudes cardeais prudência justiça temperança e força e três virtudes teológicas caridade fé e esperança As primeiras são tomadas de empréstimo a Platão e Cícero enquanto as últimas são criações especificamente cristãs I Cor 13 Embora de origens distintas elas são associadas a partir do século XII para formar o septenário das virtudes O recurso a este não é todavia desprovido de problema em primeiro lugar porque ele não se contrapõe ponto a ponto aos sete pecados capitais mas também porque ele não inclui certos valores cristãos fundamentais É por isso que a humildade particularmente essencial no mundo monástico e considerada a mãe de todas as virtudes deve em geral ser acrescentada em epígrafe ao septenário ou à raiz da árvore do bem da qual florescem as virtudes Entretanto a preeminência da humildade pode ser contestada em benefício da caridade tida como a primeira das virtudes por São Paulo e que se beneficia também ela no seio do septenário da posição de mãe das virtudes Com efeito no pensamento medieval ela adquire importância considerável pois significa a um só tempo o amor ao próximo e o amor a Deus constituindo assim o próprio fundamento do laço social e da organização da cristandade Quanto às outras virtudes do septenário são certamente a justiça e a fé que se beneficiam do eco social mais manifesto Os pecados são ordenados muito mais precocemente em um septenário em primeiro lugar com João Cassiano monge vindo do Egito para Marselha no início do século V e sobretudo na Moralia in Job de Gregório o Grande que lhe dá sua forma canônica para a Idade Média orgulho inveja ira preguiça avareza gula e luxúria Esses pecados são ditos capitais porque se engendram uns aos outros e sobretudo porque cada um deles é o ponto de partida de ramificações que dão nascimento a numerosos pecados derivados assim como é representado pelas árvores dos vícios que se multiplicam na sequência do Liber floridus de Lamberto de SaintOmer por volta de 1120 figura 34 na p 378 É verdade que o septenário sofre a concorrência de outras classificações e por vezes deve dar lugar a categorias novas como os pecados da fala que a partir do século XIII reagrupam todas as faltas cometidas quando se fala desde a blasfêmia e a injúria até a maledicência e a mentira ou quando se cala indevidamente taciturnitas Entretanto ao mesmo tempo o papel do septenário apenas se reforça especialmente graças à Summa confessorum do inglês Tomás de Chobham em 121015 e pouco depois à Suma dos vícios e das virtudes do dominicano Guilherme Peyraut a mais importante no gênero Ela consagra o triunfo do septenário e faz dele o ponto cardeal da pastoral cristã bem estudado por Carla Casagrande e Silvana Vecchio A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 377 34 A árvore dos vícios c 1300 Verger de Soulas Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 9220 f 6 A árvore dos vícios como a nomeia a inscrição emerge da garganta do inferno Em meio às chamas um cavaleiro com um falcão no punho e caindo de sua montaria simboliza o orgulho raiz de todos os vícios e por excelência pecado dos dominantes Do tronco da árvore nascem sete galhos que terminam com um medalhão correspondendo a um dos pecados capitais com suas subdivisões indicadas nas folhas Da esquerda para a direita a avareza um homem tranca suas riquezas em um cofre a ira uma mulher arranca seus cabelos a gula Janus à mesa a luxúria uma mulher nua segurando um espelho e tentada pelo diabo a preguiça um personagem sentado como que prostrado a vanglória uma mulher segurando uma taça e um livro a inveja uma mulher com uma serpente em torno do pescoço Discurso sobre os vícios discurso sobre a ordem social O sucesso considerável do septenário é explicado por sua notável eficácia sintética e por sua capacidade de adaptarse às realidades sociais em permanente transformação Tratar dos pecados significa com efeito sustentar um discurso sobre a boa ordem da sociedade O orgulho é por excelência o pecado dos dominantes clérigos ou aristocratas que exaltados pela sua posição são vítimas de um excessivo desejo de elevação e terminam por infringir a obediência e a submissão que convém manifestar perante Deus figura 34 na p 378 A inveja é o ciúme que se exerce entre semelhantes em particular nos meios em que a competição é viva como entre cortesãos ou entre universitários mas ela é sobretudo o vício das classes inferiores que repugnam sua posição de dominados e lançam um olhar maldoso em direção ao topo da sociedade Enfim a ira estigmatiza a violência e a agressividade que se manifestam no corpo social sob suas formas mais variadas desde o insulto e o homicídio até a blasfêmia e a rixa figura 37 na p 398 Esses três pecados rompem então a harmonia hierárquica da sociedade cristã atentando contra a justa medida do poder exercido pelos dominantes contra a submissão que os dominados devem manifestar e contra a concórdia que deve reunir a todos no vínculo da caridade A evolução dos outros pecados capitais não é menos notável A preguiça também chamada acédia e tristeza é sem dúvida o pecado cujo sentido se transforma mais claramente ao longo da Idade Média No início ela é um vício essencialmente monástico que traz a marca de sua origem o pensamento dos eremitas do deserto egípcio transmitido por Cassiano e Gregório e dos valores dominantes durante a Alta Idade Média Ela se refere então ao desalento do monge ao desgosto pela solidão e à melancolia que o assolam para desviálo de Deus e lhe fazer abandonar sua vocação Mas no contexto da Idade Média Central ela muda radicalmente de sentido e visa principalmente em Guilherme Peyraut e aqueles inspirados por ele à ociosidade considerada a partir do século XIII a mãe de todos os vícios o que designa a contrario o trabalho como a função legítima da terceira ordem da sociedade Diferentemente de seu sentido monástico inicial a preguiça é então associada principalmente aos laicos que não cumprem seu ofício como laboratores ou que negligenciam seus deveres para com Deus Uma outra evolução notável é a promoção da avareza que a partir do século XII rivaliza com o orgulho pelo primado no seio do septenário Lester Little Se é verdade que o orgulho atenta contra a virtude cristã da humildade ele aparece de início como um pecado feudal e clerical sua preeminência é iniciada pelas inquietudes suscitadas pela importância crescente do dinheiro na vida social Proliferam discursos e sermões sobre a avareza e o capítulo que lhe é consagrado nas Sumas a começar pela de Guilherme Peyraut é geralmente o mais alentado A condenação da avareza tornase cada vez mais um ataque contra a usura pecado profissional dos mercadores e dos banqueiros Ela é fundamentalmente uma manifestação do amor excessivo aos bens materiais que a Igreja opõe ao desejo dos bens espirituais A avareza rompe então com a exigência de circulação generalizada que Deus institui sob o nome de caritas como princípio que rege a ordem social e os clérigos medievais retomam para denunciar o entesouramento culpado do avaro a metáfora de Ambrósio de Milão que opõe o poço inutilizado cuja água estagnada se corrompe e aquele em que a água escoa límpida e boa para beber Enfim se a condenação da luxúria está desde o princípio no centro da cultura cristã do pecado sua importância é ainda mais reforçada a partir do século XII no momento em que o celibato é definido como uma obrigação estrita dos clérigos e a nova doutrina do casamento impõe aos laicos regras mais coercitivas No geral o discurso sobre os pecados amplamente assumido pelas ordens mendicantes a partir do século XIII ecoa as transformações sociais e em particular o desenvolvimento das cidades Ele confere uma atenção crescente ao universo dos laicos não para reconhecer positivamente os seus valores específicos mas para denunciar mais eficazmente seus defeitos e para ordenálo conforme os valores da Igreja O discurso dos vícios ao mesmo tempo denúncia do mal e ocasião de inculcar as atitudes legítimas é um instrumento excepcional pelo qual a Igreja difunde seus valores no seio da sociedade e aumenta seu controle sobre ela Se consegue isso com tanto sucesso não é apenas porque ela empreende uma exploração exaustiva e minuciosa dos sentimentos e das paixões que se inscreve em uma arqueologia da psicologia ocidental é também porque ela faz ver ao mesmo tempo o mal e o remédio que pode curálo Melhor ainda ela reivindica o monopólio dos meios que permitem apagar o pecado ou ao menos escapar de suas consequências funestas Somente ela confere o batismo que lava a mancha do pecado original e abre as portas do paraíso Somente ela concede o perdão dos pecados capitais pelo sacramento da penitência cuja forma por excelência vem a ser a confissão a partir do Concílio de Latrão IV sem falar de outros meios como as indulgências que diminuem ou anulam a penitência requerida para perdão das faltas Assim se a pastoral do pecado cujo desenvolvimento nos últimos séculos da Idade Média é considerável visa aguçar a culpabilidade dos fiéis ela é também e sobretudo a valorização dos meios de salvação oferecidos pelos clérigos A confissão é seguramente o principal deles e é aliás para o uso dos confessores que o essencial do discurso sobre os vícios é produzido através da profusão das sumas morais dos manuais de confissão e dos exames de consciência A confissão adquire com efeito uma importância estratégica pois a condição do perdão é a declaração de culpa e como preço da tranqüilidade da alma os clérigos arroganse o direito de um olhar sobre a vida dos fiéis que mergulha até o mais íntimo das consciências O diabo príncipe deste mundo Por trás do combate entre vícios e virtudes perfilase uma outra luta ainda mais fundamental Com efeito o diabo e suas tropas demoníacas tentam os homens e os induzem ao pecado enquanto Deus e seus exércitos celestes esforçamse para protegêlos e incitálos à virtude O mundo é o teatro desse afrontamento permanente e dramático entre o Criador e Satã Uma das criações mais originais do cristianismo e praticamente ignorado no Antigo Testamento seu papel é valorizado principalmente pelo Evangelho que faz dele príncipe deste mundo Jo 12 o deus deste mundo secular Il Cor 4 Ele sintetiza então a multidão dos espíritos demoníacos que pululam no judaísmo popular ao mesmo tempo que procede da dissociação da figura ambivalente de Jeová deus tanto de cólera e de castigo como benefitor É então recorrendo principalmente à literatura apócrifa judaica sobretudo o Livro de Henoch do século II aC que é precisado o mito da queda dos anjos que constitui o ato de nascimento do diabo e marca a entrada do mal no universo Se no relato inicial a queda é a consequência do desejo dos demônios que foram seduzidos pela beleza das mulheres a partir do século IV ela é explicada pelo orgulho do primeiro dos anjos Lúcifer desejoso de se igualar a Deus e por isso expulso do céu junto com todos os anjos rebeldes aliados à sua pretensão insana Ao longo da Idade Média a importância da figura do Maligno é constantemente reforçada tanto nos textos como nas imagens nas quais ele só aparece a partir do século IX No mais é somente por volta do ano mil que encontra um lugar digno dele quando se desenvolve uma representação específica que sublinha sua monstruosidade e sua animalidade manifestando assim seu poderio hostil de modo sempre mais insistente figuras 36 e 37 nas pp 390 e 398 Entretanto mesmo se o cristianismo faz do universo o teatro de uma luta entre Deus e Satã não se poderia assimilálo às doutrinas dualistas Ao contrário opondose à religião de Mani 21677 e de seus discípulos os maniqueus e mais tarde ao catarismo o cristianismo medieval procura se distanciar do dualismo segundo o qual o mundo material é a criação de um princípio do mal totalmente independente de Deus A doutrina cristã tem Deus por senhor e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 381 criador de todas as coisas e a narrativa da queda dos anjos mostra que Satã e os diabos são criaturas anjos caídos que como repetem os clérigos disputando entre si para ver quem o diz melhor não podem agir senão com a permissão de Deus Preocupado em afastar o mais possível o risco dualista são Tomás insiste mesmo sobre o fato de que os demônios foram criados bons e que eles são maus por vontade e não por natureza Entretanto o poder do príncipe deste mundo é aparentemente tão extenso que a doutrina parece por vezes eclipsarse um pouco em proveito de um aspecto profundamente vivido que lhe concede de facto uma ampla autonomia de ação Toda a história do mundo parece marcada pela intervenção do Maligno desde a queda dos anjos até o desencadeamento escatológico anunciado pelo Apocalipse A tentação de Adão e Eva é a primeira revanche de Lúcifer e na sequência de Agostinho é dito que graças ao pecado original o diabo possui um verdadeiro direito de propriedade sobre o homem Mas Cristo através de seu sacrifício resgata esse direito do diabo e pode então liberar Adão Eva e todos os justos do Antigo Testamento que Satã retinha até então como prisioneiros no inferno A guerra entre as forças do mal e as forças do bem é a partir daí mais equilibrada com as primeiras reivindicando em seu benefício o pecado original e as últimas encontrando na Encarnação um argumento ainda mais poderoso e relembrando que o homem tem desde então os meios de reencontrar a harmonia perdida com Deus A luta não é por isso menos incerta e obstinada e numerosos relatos detalham as ações maléficas daquele que se nomeia a justo título o Inimigo Dizse que ele é responsável por todos os males e todos os infortúnios ele provoca tempestades e borrascas apodrece os frutos da terra causa as doenças dos homens e do gado Ele faz afundar os navios desabar os edifícios e bloqueia as melhores intenções contase por exemplo que ele se opõe à construção da catedral de York tornando as pedras impossíveis de ser levantadas Com suas armas favoritas que são a tentação e o engodo ele procura insinuar no coração dos homens desejos culpáveis suscitando maus pensamentos por meio do sonho sempre suspeito de ter uma origem diabólica ou da aparição a célebre Vida de Antônio o eremita do deserto fornece desde 356 o arquétipo dessas tentações diabólicas com frequência retomadas e expressadas por imagens Para tal ele pode usurpar uma aparência humana em particular a de uma mulher sedutora ou a de um belo jovem ou até mesmo a de um santo Nada é impossível para o diabo verdadeiro campeão da metamorfose nem mesmo tomar as feições do arcanjo Gabriel da Virgem ou de Cristo As tentações da carne e do dinheiro do poder e das honrarias são as mais temíveis são aquelas às quais sucumbe Teófilo prefiguração medieval de Fausto depois de feito seu pacto com o diabo segundo a lenda bizantina conhecida no Ocidente a partir do século IX 382 Jérôme Baschiel e largamente difundida nos textos nas pregações e nas imagens figura 35 na p 384 E já que o Maligno intervém em todos os negócios deste mundo aqui embaixo não se hesita em manipulálo a ponto de em certos conflitos cada partido mencionar uma carta enviada por Lúcifer ao outro campo esse estratagema utilizado notadamente durante o Grande Cisma devia parecer um meio eficaz para desacreditar os adversários Assim o diabo pode insinuarse no corpo dos homens possuilos e lhes fazer perder toda a vontade própria É por isso que o ritual de exorcismo pelo qual a Igreja libera os possuídos adquire grande importância particularmente durante a Alta Idade Média Todavia passado o ano mil a possessão recua em proveito da obsessão diabólica que toma de assalto as consciências em particular a dos monges assim o demônio aparece a Raul Glaber como um pequeno homem esquelético corcunda e negro como um etíope Em numerosos relatos que põem em cena os tormentos da alma perseguida pelas forças hostis o diabo exprime tudo o que a consciência julga negativo e não pode admitir como emanando dela ou de Deus Como sugere Freud os demônios são formas personificadas e projetadas para fora de si dos desejos reprimidos As pulsões demonizadas são muitas vezes de natureza sexual como se constata nos numerosos relatos de sonho ou nos casos das poluções noturnas emissões involuntárias de esperma durante o sono que os monges atribuem à intervenção do diabo Mas essas pulsões podem também adquirir uma feição mórbida como quando o diabo tendo tomado a aparência de são Tiago ordena ao peregrino que se castre e se mate De resto é geralmente no momento da morte que o diabo se torna mais ameaçador Ele se precipita junto aos moribundos para lhes fazer provar uma última tentação e evitar que aproveitem seus últimos momentos para arrependerse confessarse e obter in extremis sua salvação Como indica abundantemente a iconografia anjos e demônios travam uma guerra terrível na cabeceira de cada moribundo para tomar posse da alma do defunto figura 40 na p 415 E quando é preciso recorrer a um verdadeiro julgamento da alma cujos relatos se desenvolvem a partir do século VIII o diabo revela seus talentos litigantes para obter ganho de causa ou de maneira mais grosseira pendurase em um dos pratos da balança em que são pesadas as boas e as más ações do morto Satã contraponto valorizador das potências celestes e da Igreja Não se poderia considerar o diabo de modo isolado Por maior que pareça ser seu poderio ele não pode ser avaliado corretamente se não se leva em conta o conjunto das forças celestes que se lhe opõem As legiões angélicas infligem aos A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 383 35 Teófilo prestando homenagem ao diabo c 1210 salterio da rainha Ingeburge Museu Condé Chantilly ms 9 fl 35v O salterio de Ingeburge esposa repudiada pelo rei Filipe Augusto é ricamente iluminado e seus planos de fundo em ouro são particularmente bem conservados Nele o milagre de Teófilo desenrolase por várias páginas No alto aqui o pacto que Teófilo faz com o diabo toma a forma de uma homenagem vassálica ajoelhado ele junta as mãos como para o inixitio manum do rito feudal O diabo em pé põe somente uma de suas mãos sobre as de Teófilo pois com a outra segura o pacto que contém uma inscrição pouco visível evocando claramente a relação entre um vassalo e seu senhor cu sou teu homem ego sum homo tuus Embaixo Teófilo arrependido encontrase no interior de uma igreja lugar este que o altar e a lamparina suspensa são suficientes para indicar ele se prosternia em prece o gesto das mãos é desde o século XI o do vassalo prestando homenagem a seu senhor e por consequência o mesmo que Teófilo realiza acima diante do diabo É provável que ele ore diante de uma estátua da Virgem posta sobre o altar mas aqui ela parece te aparecer em pessoa e lhe falar Nas cenas seguintes a Virgem retoma o pacto libertando Teófilo de suas obrigações para com o diabo A homenagem legítima à Virgem pôde então apagar a homenagem negativa a Satã anjos rebeldes sua primeira derrota Mesmo sendo as vitimas favoritas das tentações diabólicas os santos conseguem sempre superar a provação que se transforma assim em uma ocasião para confirmar sua força espiritual Nas narrativas hagiográficas o diabo é aquele que acaba por valorizar os santos heróis que triunfam sobre ele O exército dos santos inalteravelmente vitorioso demonstra assim que é um dos recursos mais eficazes para os homens que se põem sob sua proteção Enfim mais ainda do que os santos a Virgem tornase a protetora suprema sobretudo quando é Satã em pessoa que ameaça e é ela que liberta Teófilo de seu pacto diabólico figura 35 na p 384 Nos últimos séculos da Idade Média o par VirgemSatã adquire importância determinante como indica principalmente o tema do processo de Satã que ele intenta contra uma humanidade de quem a Virgem é a advogada A dualidade do diabo e de Maria parece então quase tão importante quanto a oposição entre Satã e Cristo mesmo se a superioridade de Deus sobre o diabo permanece o fundamento do feixe de oposições que acabamos de evocar O homem medieval não está então sozinho diante dos demônios Todas as forças divinas angélicas e santas cuja multiplicação incita a questionar a existência no seio do cristianismo medieval de uma deriva politeísta encontram sua unidade e sua coesão na luta contra ele de modo que o equilíbrio assim produzido sugere finalmente considerar o cristianismo medieval um monoteísmo complexo Além disso o fiel dispõe de práticas de gestos e de ritos para se proteger do Inimigo A Igreja em sua totalidade é uma muralha contra o diabo através dos sacramentos que dispensa o batismo a penitência dos ritos que pratica o exorcismo ou ainda a consagração das igrejas que interdita seu acesso aos diabos as preces e bênçãos que pronuncia e que afastam o Maligno Os objetos sagrados hóstia relíquia cruz mas também amuletos diversos mantêm igualmente o demônio a distância Enfim do mesmo modo que os clérigos sublinham que o diabo nada pode contra aqueles que têm fé existe um gesto simples e familiar cuja infalível virtude salva de todos os perigos satânicos o sinaldacruz O diabo contraponto valorizador das potências celestes que triunfam sobre ele também é então o contraponto valorizador da instituição eclesial através da qual os fiéis são convidados a recolher os frutos dessa vitória É então lógico que o diabo tenha sido considerado o inspirador dos inimigos da Igreja Para os cristãos os deuses adorados pelos pagãos são apenas demônios e após os muçulmanos e os judeus os hereges também são demonizados Iniciado desde o século III esse processo acentuase com as heresias do ano mil e mais tarde no momento da luta contra os cátaros Não somente os heréticos passam por seres inspirados pelo diabo mas são descritos de acor do com o tratado de Adson de MontierenDer sobre o Anticristo como os membros de um corpo do qual Satã seria a cabeça réplica negativa do corpo da Igreja da qual Cristo é o chefe Pouco a pouco a crença em um complô satânico que ameaça a sociedade ampliase A obsessão diabólica invade o Ocidente No mesmo momento em que o perigo herético foi estrangulado passase para a denúncia dos feiticeiros e feiticeiras que aos olhos dos clérigos não passam mais por vítimas de uma ilusão diabólica que convém tratar com clemência como queria o cânone Episcopi mas efetivamente por membros de uma seita diabólica que no sábá participam de um verdadeiro rito de adoração de Satã bula Vox in rama 1233 Convencidos de que a sociedade cristã está exposta a uma ofensiva de Satã sem precedente os poderes eclesiásticos monárquicos e urbanos rivalizam em zelo e desencadeiam a partir dos anos 1430 e principalmente durante a época moderna vasta perseguição em uma escala inédita contra aqueles que considera seus inimigos mortais Satã aparece então como o adversário contra o qual se funda e se reforça o poderio das instituições Acontece que Satã está sempre associado à questão do poder Ao contrário do corpo eclesial ele é também a imagem do mau poder Na época feudal Lúcifer é em geral descrito como o vassalo pronto à felonia e que quer igualarse a seu senhor em vez de lhe prestar obediência É sobretudo a partir do século XIV que se manifesta a majestade de Satã mesmo se suas primícias teológicas já são encontradas em Tomás de Aquino Este admite com efeito a existência de uma ordem e de um poder de comando no mundo demoníaco o céu e o inferno não se opõem mais então como dois contrários ordem versus desordem mas como duas ordens estruturalmente idênticas mas inversas ordem boa versus ordem má A iconografia pode então acentuar o poderio de Satã sublinhando sua autoridade por meio de uma posição frontal e sentada por meio das insígnias de seu poder trono cetro coroa e por meio do respeito que ele impõe à corte dos demônios A majestade de Satã aparece assim ao mesmo tempo como a figura extrema do mau poder tirânico e como o inverso das formas legítimas dos poderes monárquico e pontifício que então se reforçam Assim ao longo de toda a Idade Média Satã amplia sua presença e seu poderio ameaçador Mas esse fenômeno não poderia ser compreendido sem considerar ao mesmo tempo as potências que o controlam figuras divinas e santas instituição eclesial e autoridades monárquicas que afirmam seu poder crescente no combate vitorioso que travam contra o mal absoluto Diante de um poderio incessantemente mais temível são necessários protetores cada vez mais eficazes De seu afrontamento resulta uma tensão mais viva uma polarização mais intensa que parece característica do sistema religioso do fim da Idade 386 Jérôme Baschet Média A dramatização criada pelo reforço da soberania de Satã traduz sem dúvida uma situação de crise mas essa tensão contribui também para tornar mais urgente o recurso às figuras protetoras e à mediação da Igreja A majestade temerária do príncipe das trevas é exatamente o inverso das instituições que se esforçam aqui embaixo para manter ou reforçar sua dominação De resto tal lógica não deixa de ter eco em nossas sociedades contemporâneas nas quais se observa como o poder encontra sua justificativa no mal do qual ele protege a ponto de ter interesse em pôr em cena ou mesmo em produzir a imagem do Satã sobre o qual ele pretende triunfar a União Soviética como império do mal para os Estados Unidos e viceversa os Estados Unidos como Grande Satã para os islamitas radicais os terroristas e a delinquência para as potências ocidentais desamparadas pelo desaparecimento do espectro soviético O AQUI EMBAIXO E O ALÉM UMA DUALIDADE QUE SE CONSOLIDA Doutrina e relatos do além É um traço próprio do cristianismo estabelecer como centro ativo de suas representações uma dualidade radical do além Ao contrário a Grécia antiga e o judaísmo primitivo reagrupavam todos os mortos em um universo subterrâneo no essencial unificado Hades ou Sheol Mesmo se nestas duas civilizações operase uma progressiva diferenciação dos destinos postmortem esta não atinge a clareza brutal da partilha moral profetizada por Cristo O Juízo Final anunciado pelo Evangelho de Mateus e pelo Apocalipse tido por são Paulo como um elemento de fé fundamental Heb 6 12 e integrado em todas as versões do Credo traça a perspectiva no final dos tempos da segunda vinda de Cristo que separa os bodes e as ovelhas enviando os maus para o fogo eterno da danação e convidando os justos a se elevarem até o reino dos céus Mat 25 A mensagem evangélica ampliada pelos Padres da Igreja funda então a crença em um além dual que divide a humanidade em dois destinos radicalmente opostos a glória celeste do paraíso para uns o castigo eterno do inferno para outros Prevalece então o que nomearemos uma lógica da inversão o destino no além é consequência do comportamento aqui embaixo e produz sua exata reversão Como mostra exemplarmente a parábola de Lázaro e do mau rico Luc 16 aquele que vive no prazer sobre a terra deverá padecer as penas do outro mundo enquanto aquele que sofre aqui embaixo conhecerá a felicidade alémtúmulo A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 387 Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr P 358386 020 J L Copiadora Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL Do ano mil à colonização da América tradução Marcelo Rede Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense prefácio Jacques Le Goff EDITORA GLOBO nação da vida humana O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações mundanas e desejando atingir sua pátria celeste o lugar do Pai divino a fim de gozar da estabilidade da morada eterna santo Agostinho Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento cujo ideal é a estabilidade local conceba a vida terrestre como um deslocamento e o homem como um viajante um homo viator segundo um tema muito corrente na época É que em vista das exigências cristãs o aqui embaixo é um vale de lágrimas uma passagem transitória e exterior por oposição ao verdadeiro lugar objeto de todas as esperanças que é o além celeste Nesse sentido a única verdadeira estabilidade é encontrada junto a Deus enquanto o mundo terrestre como todo espaço exterior é associado a um deslocamento sinônimo de perigo e de insegurança de provação e de sofrimento De resto tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o movimento porque se trata de prática excepcional Na cristandade existem é verdade alguns grupos que se movimentam muito mercadores que viajam para longe e clérigos que para estudar nas universidades mais reputadas realizam longos périplos abades que visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e mais tarde frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das exigências da ordem e que praticam habitualmente a pregação itinerante Mas ainda aqui esses deslocamentos só são valorizados na medida em que se constituem como exceções e contribuem para reforçar as estruturas de dominação que garantem a stabilitas loci da imensa maioria dos produtores Além disso tais viagens obedecem a imperativos precisos diferentemente desses clérigos chamados giróvagos ou goliardos que não são vinculados a nenhuma função ou a nenhum lugar e cuja instabilidade excessiva é vigorosamente denunciada Entrase assim na categoria dos vagabundos estes escapando ao princípio da estabilidade local são incluídos por Bertoldo de Ratisbona 121072 na família do Diabo e são vítimas de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século XIV A IGREJA ARTICULAÇÃO DO LOCAL E DO UNIVERSAL Por universal designase aqui a cristandade romana tomada em sua globalidade quer dizer um universal relativo de resto não poderia ser diferente pois os valores universais nunca são mais do que a universalização de valores particulares segundo a expressão de Pierre Bourdieu O valor que essa totalidade pôde assumir através dos séculos medievais é aliás variável Nos séculos V e VI a Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses largamente autônomas Cada bispo detentor de um poder espiritual e temporal considerável é senhor em seu domínio e o bispo de Roma dispõe apenas de uma preeminência simbólica ainda mal estabelecida Depois a época carolíngia marca uma primeira afirmação da unidade cristã sob instigação do imperador e do papa Bento de Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base na regra beneditina enquanto a uniformização litúrgica difunde os hábitos romanos e eclipsa pouco a pouco as outras tradições Enfim a reforma eclesial dos séculos XI e XII e seus prolongamentos até o século XIII reforçam consideravelmente os poderes do papa bem como sua preeminência simbólica A centralização pontifícia tornase então a forma concreta assumida pela unidade da cristandade O papa é a sua encarnação e a projeta além dela mesma conclamando à cruzada ou mais tarde concedendo aos reinos ibéricos um direito de conquista garantindolhes o monopólio indispensável à exploração do Novo Mundo bula Inter caetera de Alexandre VI em 1493 Tratado de Tordesilhas em 1494 Alteração da doutrina eucarística A transformação da doutrina eucarística é ao mesmo tempo um indício e um instrumento da reorganização espacial da cristandade Nos primeiros séculos do cristianismo a celebração eucarística é concebida como um ato de memória conforme as palavras de Cristo que convida seus discípulos no momento da Última Ceia a refazer os mesmos gestos em minha memória O pão e o vinho utilizados são então apenas os símbolos do corpo e do sangue de Cristo servindo para comemorar seu sacrifício Para Agostinho Cristo está presente no sacramento como figura de modo que entre a hóstia e o corpo de Cristo existe a mesma diferença que entre um signo e a coisa que ele significa Prevalece então uma grande proximidade entre os fiéis e o altar sobretudo porque os pães utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à alimentação corrente e são oferecidos pelos membros da assistência Depois esses pães denominados oblata continuam a ser recebidos pelos clérigos mas não são mais levados para o altar e a partir do século IX são utilizados para o sacrifício pães não fermentados úzimos Essa distância em relação à realidade profana contribui para estabelecer uma separação entre os laicos e o altar é de resto um dos aspectos da divergência com o Oriente bizantino que conserva o uso do pão fermentado No século IX aparece também a primeira polêmica importante em matéria eucarística O liturgista Amalário de Metz e sobretudo Pascásio Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção simbólica do A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 359 Jérôme Baschet sacramento em vigor até então A reação é forte e clérigos como Rábano Mauro e Ratramno de Corbie batalham para manter a teoria agostiniana Mas o debate se esgota rapidamente sem dar lugar a nenhuma definição doutrinal como se tratasse de opiniões individuais que não requeriam a intervenção das autoridades eclesiásticas A polémica é retomada em meados do século XI momento em que a teologia eucarística começa verdadeiramente a se desenvolver Berengário de Tours um clérigo bem formado nas escolas da região do Loire e professor em Tours provoca por volta de 1040 uma indignação geral embora não faça mais do que reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os autores anteriores ao século IX confirmandoos com novas justificativas de natureza gramatical em particular uma análise profunda da fórmula central da missa hoc est corpus meum31 Numerosos autores como Lanfranc du Bec ou Guitmond de Aversa apoiados pelo papa Leão IX e Gregório VII e pelas principais figuras da reforma gregoriana opõemse então a Berengário Convocado por numerosas assembleias eclesiásticas ele é obrigado a retratarse e suas concepções são condenadas por uma bula pontifícia em 1059 Isso mostra claramente que uma ortodoxia eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então Não está mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de Cristo mas uma presença substancial do corpo de Cristo na hóstia A bula de 1059 não hesita em afirmar que o pão e o vinho são o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo eles são fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis Doravante explicase que existe uma unidade essencial entre as três formas do corpus Christi a hóstia consagrada o corpo histórico de Cristo e a Igreja Como a hóstia é assimilada ao corpo histórico de Cristo podese afirmar que Cristo está realmente presente no sacramento A hóstia não é mais então um símbolo que dá suporte a um ato de memória ela faz experimentar a presença real de Cristo presença não espiritual mas material de seu verdadeiro corpo Assim quando o sacerdote consagra a hóstia uma metamorfose se realiza um milagre diz Hugo de SaintVictor o pão e o vinho deixam de ser substancialmente pão e vinho eles se transformam e se tornam essencialmente o corpo e o sangue de Cristo mesmo se as espécies acidentais as aparências do pão e do vinho subsistam e permaneçam visíveis É essa metamorfose que é nomeada pelo termo transubstanciação atestado pela primeira vez na obra do teólogo Roberto Pullus por volta de 1140 e que insiste judiciosamente sobre a transformação da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção das aparências acidentais 31 Eis meu corpo NT 360 Jérôme Baschet Tal teoria qualificada de realismo eucarístico não tem nenhum fundamento nem nas Escrituras nem na tradição ela supõe então resolver enormes dificuldades lógicas e intelectuais Sua implantação é lenta avançando à medida que são aperfeiçoadas as argumentações lógicas que permitem contrapor as múltiplas objeções possíveis Além disso em seu esforço para impor uma doutrina sem precedente as proposições combativas do período entre 1050 e 1130 geram formulações bastante rudes que insistem muito literalmente sobre a presença material do corpo de Cristo na hóstia e sobre sua ingestão pelos fiéis Ora os autores ulteriores não tardam em perceber as dificuldades de semelhantes afirmações notadamente porque uma concepção exageradamente realista arrisca limitar Deus no tempo e no espaço Finalmente Tomás de Aquino propõe uma síntese nuançada e moderada Para ele a presença física de Cristo na hóstia realizase de uma maneira que não é material mas invisível e espiritual de modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua forma natural mas sob sua espécie sacramental O essencial não é entretanto absolutamente posto em causa a saber a transubstanciação a presença real e a identidade substancial da hóstia e do corpo histórico de Cristo Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido pelo sacramento eucarístico Assim o gesto pelo qual o sacerdote eleva a hóstia após suas palavras de consagração aparece justamente na região de Tours no século XI como que para apoiar o realismo eucarístico em face dos perigos das teorias declaradas heterodoxas de Berengário Depois entre 1198 e 1203 o bispo de Paris Eudês de Sully prescreve o uso desse gesto em sua diocese até que essa nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente Compreendese a importância desse gesto que torna sensível o efeito das palavras de consagração e sublinha o carácter extraordinário da transubstanciação que provocam A elevação exibe a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos Esse gesto tornase então tão importante que ele concentra a atenção dos fiéis a tal ponto que assistir à elevação lhes pareça um substituto aceitável da comunhão Isso não é surpreendente se for lembrado que esta última permanece rara para a maioria dos fiéis que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo Concílio de Latrão IV É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e portanto tão perigoso para o homem exposto ao pecado que é melhor não ser excessivamente zeloso Do mesmo modo assistir à elevação parece uma maneira suficiente e menos arriscada de adorar a Deus e no século XIII são conhecidos fiéis que correm de uma igreja a outra para testemunhar o maior número possível de elevações E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um sacramento eles lhe atribuem todavia uma notável virtude espiritual comparandoa à comunhão e qualificandoa de mastigação pela visão manducatio per visum Sem dúvida é para canalizar tal devoção e mais largamente para permitir o prolongamento do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao próprio sacramento eucarístico o Corpus Christi Realizada em Liège desde os anos 1240 ela é oficializada pelo papa Urbano IV em 1264 e floresce sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon Clemente V no início do século XIV No momento dessa festividade solene a hóstia consagrada exibida em um ostensório transparente e assim tornada visível a todos os fiéis é levada em procissão sob um pálio através da cidade depois é celebrado um ofício especial chamado Corpus Christi cuja redação é devida a Tomás de Aquino A procissão que faz sair o objeto sagrado de seu próprio lugar o que não deixa de ser perigoso exibe o poder sacralizado do clero que toma posse do espaço urbano graças à deambulação de seu emblema maior a hóstia Nos últimos séculos da Idade Média a devoção eucarística adquire incessantemente importância crescente cujo reverso é o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia Frequentes a partir do século XIII elas são comumente utilizadas contra os judeus que são acusados assim de repetir contra o sacramento o crime cometido contra Jesus mas sobretudo afiançam o realismo eucarístico que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que sangra De resto fora as narrativas de profanação milagres cada vez mais frequentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico assim o Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação como na visão do rei Eduardo o Confessor relatada por Mateus Paris no século XIII como vista na figura 31 na p 363 a não ser que a hóstia sangre acima do altar ou se transforme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote Enfim entre os simples fiéis o desejo de ver a hóstia não se enfraquece concorrendo sempre com a prática da comunhão A eucaristia tornase assim nos três últimos séculos da Idade Média um supersacramento superior a todos os outros pois permite o contato de maneira repetida com a presença corporal de Cristo Miri Rubin Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos XI e XII Podese sem muita dificuldade sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse mesmo período o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e laicos Com toda a evidência a doutrina da presença real ressalta a eminência do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada Ela atribui então um poder simbólico ampliado ao sacerdote capaz de realizar um ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em sangue A um só tempo fora do domínio do natural ou contranatureza diz o teólogo Simão de Tournai e indispensável à salvação de todos a operação realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que separa 362 Jérôme Baschet 31 Cristo aparece miraculosamente na hóstia c 125560 abadia de SaintAlbans ou Westminster História do santo rei Eduardo Cambridge University Library Ee359 p 37fl 27 Celebrando a missa o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia É então que segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris o santo rei Eduardo o Confessor teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote no lugar da hóstia Este tipo de milagre mencionado em vários relatos a partir do século XII é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real Com efeito como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote clérigos e laicos Podemos então afirmar a existência de um laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da eucaristia Miri Rubin Isso é tornado ainda mais claro pelo fato de que no século XII no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico o cálice é salvo casos excepcionais retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies A distância entre clérigos e laicos é marcada assim por uma diferença ritual bem visível e uma reivindicação dos A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 363 partidários de Hus no século XV é que ela seja abolida e que se restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies De maneira ainda mais clara a maior parte dos hereges notadamente os cátaros e os lolardos e depois os reformados contesta radicalmente a doutrina da presença real transformada no fundamento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal Realismo eucarístico lugar sagrado e comunhão eclesial Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicos contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal Com efeito a presença real valoriza o ritual local que se realiza em cada igreja sobre cada altar ali naquele exato lugar está verdadeiramente presente o corpo de Cristo Ora um evento tão extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar fortemente sacralizado vigorosamente extraído do espaço terrestre normal É por isso que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamentação nas Escrituras ou na Patrística como bem demonstrou Dominique IognaPrat Nos primeiros séculos do cristianismo a questão do lugar onde seria realizada a celebração tem pouca importância ela é quase sem interesse e qualquer mesa por mais modesta que seja pode servir de altar A reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas de culto domina então Michel Lauwers e Agostinho faz ainda esta pergunta irônica São os muros que fazem os cristãos Uma primeira transformação intervém no fim do século IV quando a presença de relíquias no altar é julgada útil e mais tarde em 401 considerada indispensável para a celebração da missa santo Ambrósio explica que do mesmo modo que as almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse os corpos dos santos devem se encontrar sob o altar terrestre O lugar deixa de ser indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer durante a Alta Idade Média os grandes santuários perfumados e rutilantes em meio a um mundo mal iluminado e malcheiroso aparecem como fragmentos de paraíso Peter Brown A prática conserva entretanto certa maleabilidade e na época carolíngia é necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relembrar a indispensável presença das relíquias no altar É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de uma justificativa precisa tornada necessária pela contestação dos hereges Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras em 1205 e os discípulos de Pedro de Bruis no século seguinte pretendem voltar à prática antiga e negam radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembléia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicacão progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosas enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 365 CONCLUSÃO DOMINÂNCIA ESPACIAL NA IDADE MÉDIA DOMINÂNCIA TEMPORAL HOJE A partir daqui é possível contar entre as características fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade a articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à cristandade assim como a articulação entre stabilitas loci e mobilidade tratandose deste último ponto é possível distinguir de uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo distanciamentos positivos a deambulação penitencial e depois a peregrinação e a cruzada e distanciamentos negativos a vagabundagem e o banimento Três elementos ao menos concorrem para tal resultado Em primeiro lugar a criação da malha paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo edifício cultual sacralizado e o cemitério consagrado tendo em seu coração o altar e suas relíquias onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal Em segundo lugar o desenvolvimento sistemático da oposição interiorexterior notadamente pela prática de peregrinação associa as experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar protetor e familiar Enfim o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e hierarquizado polarizado pelos santos e suas relíquias Esta organização que assegura o máximo de estabilidade possível ao mesmo tempo que permite as trocas necessárias e que fixa os homens na região de conhecimento ao mesmo passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal sugere quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisiva Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas as reducciones e congregaciones que criam novas aldeias cujo centro é evidentemente uma igreja no caso de Bartolomeu de Las Casas por exemplo notase desde seus primeiros projetos de colonização pacífica em 1551 e 1520 uma verdadeira obsessão para organizar os índios em aldeias Como fruto de sua secular experiência na congregatio hominum da Europa Ocidental a Igreja sabe que o controle das populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo Tal é em todo caso o princípio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e igualmente ao que parece do feudalismo dependente implantado no Novo Mundo Se o feudalismo é caracterizado por uma dominação espacial isso não ocorre mais hoje No mundo contemporâneo é o tempo que parece constituir o ponto nodal da organização social pois com base no assalariamento e no cálculo do tempo de trabalho forma sempre dominante das relações de produção desenvolveramse consequências múltiplas para seres apressados submetidos à tirania dos relógios e à compulsão de saber que horas são Uma regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida tempo é dinheiro Inversamente na sociedade medieval o coração da organização social e das relações de produção dependia da relação com o espaço a primeira condição do funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens ao solo sua integração com uma célula espacial restrita na qual se entrelaçam sem se sobrepor poder senhorial comunidade aldeã e quadro paroquial uma célula na qual deviam ser batizados quitar as obrigações eclesiais e senhoriais e por fim ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos ancestrais Hoje quando o lugar está em via de não ser mais percebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos quando as manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do globo estamos em via de perder esse sentido da localização Nós vivemos é verdade o paradoxo de uma globalização fragmentada que multiplica as fronteiras exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial desigual Entretanto o mercado prolonga nos domínios que o favorecem sua obra de homogeneização e de banalização espaciais iniciada no século XVIII a tal ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam por vezes a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência humana a qual não poderia existir a não ser estando aí em algum lugar No momento em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos custosa poderseia dizer que a deslocalização tornase uma característica geral do mundo contemporâneo na medida em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia seja a prisão privação de liberdade e entrava à capacidade de deslocamento localização forçada por decorrência Na Idade Média a prisão era uma pena muito acessória enquanto o banimento era ao contrário essencial Hannah Zaremzka Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar o exílio era uma quase morte social pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures Nesta sociedade de honra vale mais ser um homem morto que um homem ultrajado De certo modo o exílio é pior que a morte Claude Gauvard Ao inverso do princípio de stabilitas loci o banimento constituía uma obrigação de deslocamento deslocalização forçada ou seja o exato inverso do castigo carcerário Coerção principalmente espacial de um lado coerção essencialmente temporal do outro aí está dito de modo muito esquemático uma das marcas de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo