·
História ·
História
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
12
A Evolução do Poder Papal na Idade Média: Poder Espiritual e Temporal
História
UFAL
8
A Civilização Feudal de 1000 à Colonização da América
História
UFAL
21
Ideia de Revolucao no Brasil 1789-1801 - Carlos Guilherme Mota - Analise Historica
História
UFAL
10
Formacao de Professores Saberes da Docencia e Identidade do Professor - Analise
História
UFAL
43
Capítulo 5: Repensando Palmares - Resistência Escrava na Colônia
História
UFAL
24
Dinâmicas de Desenvolvimento Comercial na Alta Idade Média
História
UFAL
3
Resumo Ouro da Guine e o Preste Joao 1415-1499 - Imperio Colonial Portugues
História
UFAL
23
Artigo De
História
UFAL
17
Artigo de Conclusão de Curso
História
UFAL
22
A Escola Tem Futuro: Das Promessas às Incertezas
História
UFAL
Preview text
REFORMA E CRESCENTE SACRALIZAÇÃO DA IGREJA SÉCULOS XI E XII O sistema esboçado acima não se formou nem se consolidou sem lutas por vezes violentas Ele é o resultado de um processo ao longo do qual o poderio da instituição eclesial se reforçou e do qual é necessário evocar as principais etapas Mesmo se os fenômenos descritos aqui prolongam uma dinâmica iniciada desde os séculos IV a VI tratase também em certos aspectos de uma reforma sobre bases em parte antigas Como já se disse o insucesso da tentativa carolíngia livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império que ao contrário perdurará em Bizâncio No século X a disseminação do poder de comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e à paz de Deus Ao mesmo tempo o processo de encelulamento e o estabelecimento dos senhorios obrigamna a uma viva reação para evitar tornarse prisioneira da malha senhorial e a fim de ao contrário ser sua principal ordenadora O tempo dos monges e a fraqueza das estruturas seculares No século X e inícios do século XI o poderio da Igreja anda debilitado O poder do papa continua fraco submetido aos imprevistos da política imperial e dos conflitos entre as facções da aristocracia romana Do mesmo modo os bispos encontramse entregues às pressões dos aristocratas locais Os senhores laicos apropriamse do controle das igrejas das quais nomeiam os servidores paroquiais e das quais recebem os dízimos e os rendimentos A Igreja arrisca então a ser absorvida nas novas estruturas resultantes da formação dos senhorios em posição de dependência em relação aos laicos que são seus principais beneficiários O chamado a uma paz de Deus lançado repetidamente pelos clérigos durante os decênios que circundam o ano mil aparece como um primeiro esforço para evitar tal situação e defender a posição da Igreja primeira parte capítulo 11 Mesmo se por vezes o movimento da paz de Deus mobiliza o povo contra os maus costumes dos senhores laicos seu objetivo essencial é a manutenção de uma ordem senhorial que a Igreja pretende dominar Se o conjunto da hierarquia secular é enfraquecido o século X e a primeira metade do século XI são marcados por um considerável desenvolvimento monástico do qual o sucesso e a expansão de Cluny são o melhor testemunho Fundado em 910 graças a uma doação de Guilherme duque da Aquitânia e conde de Mâcon o monastério borguinhão adota a Regra beneditina e sua vocação é levar a cabo uma reforma das práticas monásticas muitas vezes além das prescrições de são Bento Três fatores ao menos contribuem para a constituição do que os historiadores não hesitaram em chamar o império cluniacense Em primeiro lugar o monastério dedicado a são Pedro e a são Paulo é posto sob a proteção direta do papa e se beneficia em 998 de uma isenção total perante o bispo que é em seguida estendida a todos os cluniacenses onde quer que se encontrem e depois a todos os estabelecimentos dependentes de Cluny 1097 Se desde o Baixo Império e sobretudo desde a época carolíngia um dos fundamentos da autoridade eclesial estava ligado ao privilégio de imunidade que subtráia os bens da Igreja de toda intervenção dos agentes da autoridade pública essa questão não tem mais grande importância e a afirmação do poderio dos monastérios em Cluny e alhures depende doravante da imunidade que retira do bispo autoridade soberana em sua diocese toda a jurisdição e todo o direito de supervisão sobre os negócios dos monges Por outro lado a igreja cluniacense ecclesia cluniacensis adota uma estrutura muito centralizada da qual Dominique IognaPrat recentemente sublinhou as linhas mestras e o funcionamento A princípio é a título pessoal que o abade de Cluny é igualmente abade dos monastérios que fazem apelo a ele para reformar seu modo de vida e seus costumes litúrgicos Em seguida ele é um arquiabade chefe de todas as casas postas sob sua dependência abadias ou com mais frequência conventos que estão sob a responsabilidade imediata de um simples prior Formase assim não uma verdadeira ordem religiosa pois não há nem organização em províncias nem instâncias colegiadas de direção mas antes uma vasta rede de estabelecimentos que adotam os mesmos costumes monásticos e estão submetidos à autoridade única do abade de Cluny Enfim Cluny sabe perfeitamente responder às necessidades de uma sociedade dominada pela aristocracia Os monges cluniacenses são especialistas em liturgia à qual dão uma importância e um fausto consideráveis figura 13 na p 186 em particular no que diz respeito à liturgia funerária e às preces para os defuntos Os aristocratas da Borgonha e de outras regiões onde os cluniacenses estão implantados dirigemse a eles pois a liturgia dos mortos de Cluny a um só tempo inscreveos na memória dos homens e aportalhes uma ajuda preciosa em vista da salvação no além Daí as múltiplas doações sobretudo de terras e de senhorios mas também de igrejas e dízimos que convergem para o monastério e suas dependências e constituem a base principal de sua riqueza Ao mesmo tempo essas doações ordenam as relações sociais no seio da aristocracia hierarquizando os doadores em função de sua generosidade para com Cluny Assim existe uma profunda implicação cluniacense na ordem senhorial a tal ponto que Cluny aparece como o espelho da consciência aristocrática Dominique IognaPrat Mas nem por isso toda tensão entre aristocracia e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 185 2 reforma e crescente sacralização da igreja JÉRÔME BASCHET A civilização feudal do ano 1000 a colonização da América São Paulo 2006 p 1841961 clerodesaparece em torno de Cluny como o lembram os conflitos de todos os tipos e as maldições monásticas com as quais os cluniacenses e os demais monges dos séculos X e XI se esforçam por fazer escudos eficazes Ao uso das maldições é preciso associar o ritual do clamor pelo qual os monges na presença das relíquias dos santos imploram a seus protetores celestes que defendam sua comunidade e os protejam das intenções diabólicas de seus inimigos Mas o socorro dos protetores celestes nem sempre é suficiente não se hesita então em proceder a um ritual de humilhação dos santos depositando suas relíquias no solo ao pé do altar como se eles devessem fazer penitência ao mesmo tempo que os monges se prosternam a fim de que a misericórdia divina os recarregue de eficácia Patrick Geary Fortalecida pelas vantagens acima indicadas a Igreja de Cluny atinge o seu apogeu sob os abadados excepcionalmente longos de Maïeul 95494 Odilon 9941046 e Hugo de Semur 10491109 que estão entre os personagens mais eminentes de seu tempo Beneficiandose de uma sólida base senhorial local os cluniacenses logo geram rivais em toda a cristandade Eles ajudam Guilherme o Conquistador a reorganizar os monastérios da Inglaterra depois de 1066 e fazem o mesmo junto aos soberanos hispânicos da Reconquista o que lhes vale o apoio financeiro tanto dos reis da Inglaterra como dos de CastelaLeão que enviam anualmente a Cluny um censo de mil depois 2 mil moedas de ouro cobradas dos sarracenos No total em 1109 a Igreja de Cluny forma uma vasta rede de 1180 estabelecimentos espalhada nas dimensões da cristandade e até a Terra Santa Sua formidável capacidade de acumulação de riquezas lhe permite construir a partir de 1088 uma nova igreja abacial chamada Cluny III consagrada em 1130 e que com seus 187 metros de comprimento é a maior igreja do Ocidente superando todas as de Roma figura 14 na p 188 Compreendese que os cluniacenses tenham frequentemente tendido a confundir sua igreja e a Igreja universal e mesmo a identificar Cluny e Roma No século XI o coração vivo da cristandade é monástico mais do que secular tanto borguinhão como romano Cluny encarna um ideal monástico exigente mas bastante presente nos negócios do mundo Enquanto a missão dos monges durante a Alta Idade Média consistia em uma retirada para longe do mundo secular os abades e as principais figuras de Cluny são levados a participar ativamente das lutas contra os inimigos da Igreja Pedro o Venerável abade de Cluny de 1122 a 1156 engajase apoiado em tratados em todas as frentes tanto contra os heréticos como contra os judeus e os muçulmanos Essa evolução reduz a distância entre os regulares e os seculares tanto que os monges cluniacenses que quase sempre receberam o sacerdócio assumem o encargo das igrejas que lhes são confiadas A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 187 14 A igreja abacial de Cluny no fim do século XVIII litografia feita antes de sua destruição Sucedendo a dois edifícios mais modestos e construída no essencial entre 1088 e 1130 a igreja abacial denominada Cluny III é então a maior igreja da cristandade medieval com seus 187 metros de comprimento 385 metros de largura e 295 metros de altura na nave central ela continuará a sóio até a reconstrução de São Pedro do Vaticano no século XVI Realização acabada dos princípios da arquitetura românica é guarnecida com fortes torres e dotada de um duplo transepto Sua abside em andar é formada por elementos estruturalmente distintos que parecem justapostos uns aos outros O arranjo em degraus de suas elevações deixa facilmente adivinhar a organização do espaço interno nave central do coro abside principal deambulatório circundando esta última e finalmente absidiolas dotadas cada uma de seu próprio altar implantandose assim na rede paroquial e engajandose nas tarefas pastorais Isso não ocorre sem que haja afrontamentos com os seculares ao longo dos séculos XI e XII até que seja reconhecido o direito dos monges de exercer tarefas pastorais sob a condição de que eles se submetam à autorização e ao controle do bispo Entretanto o próprio sucesso de Cluny e seu engajamento nos negócios seculares começam a ser objeto de críticas a interpenetração com as linhagens aristocráticas não está isenta de inconvenientes e a dependência em relação às doações se faz sentir desde que seu ritmo começa a decair enfim a proteção direta do papa por muito tempo garantia de autonomia transformase em uma pesada tutela De fato no fim do século XI e durante o século XII aparecem novas ordens monásticas que cada qual à sua maneira se empenham em reafirmar a dimensão eremita do ideal monástico a qual sem a negar Cluny havia contrabalançado com poderosas interações com a vida secular Uma opção eremita radical é assumida pela Ordem dos Camáldulos criada por são Romualdo pelos Cônegos Regulares Premonstratenses ordem fundada por são Norberto de Xanten pela Ordem de Fontevraud criada por Roberto De Arbrissel e sobretudo pela Ordem dos Cartusianos fundada por Bruno e santo Hugo de Grenoble em 1084 e cuja organização é codificada por Guigo I Os monges cartusianos que dispõem de celas individuais no interior do monastério em vez do dormitório e do refeitório coletivos previstos pela Regra de são Bento têm a experiência de uma solidão quase total inteiramente devotada à penitência e à prece Do mesmo modo a Ordem Cisterciense fundada por Roberto de Molesmes em 1098 e cujo desenvolvimento é obra de são Bernardo de Claraval 10901153 encontrase sob vários aspectos em contraposição ao tipo monástico cluniacense mesmo se Bernardo é igualmente um dos personagens mais influentes de seu tempo e principalmente um ardente pregador da cruzada Assim os monges brancos em sinal de austeridade eles recusam a cor negra das vestes dos cluniacenses implantamse muitas vezes nas zonas mais isoladas e mais selvagens e esforçamse para evitar que os seus monastérios se tornem o centro de burgos como foi o caso de Cluny desde o fim do século X Em oposição à riqueza e ao ouro resplandecente dos rituais cluniacenses são Bernardo impõe a maior severidade à vida dos monges assim como aos edifícios em pedra nua que os abrigam proscrevendo toda escultura ou toda imagem que pudesse desviar a sua atenção da prece e da meditação piedosa Enfim os cistercienses recusam possuir igrejas e receber dízimos por respeito à função própria aos seculares e afirmam que os monges devem sobreviver graças ao seu próprio labor suscitando assim o horror dos cluniacenses que julgam tal atividade degradante e incompatível com o dever da prece É verdade que os cistercienses A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 189 logo recorrem aos irmãos conversos laicos encarregados de tarefas produtivas mas ao menos conservam a ideia de uma exploração direta de seus domínios mais do que um recurso ao quadro senhorial o que em geral lhes permite obter resultados notáveis em matéria de exploração agrícola e de produção metalúrgica Mas também nisso o sucesso a ordem tem 343 estabelecimentos quando da morte de são Bernardo e perto de seiscentos no final do século XII tem consequências paradoxais os dons acumulamse e a decocação das igrejas e dos manuscritos distanciase rapidamente dos princípios austeros do fundador Reforma secular e sacralização do clero O processo que os historiadores se habituaram a nomear reforma gregoriana a partir do nome de Gregório VII papa de 1073 a 1085 não pode ser reduzido a seus aspectos mais factuais e mais ruidosos a luta entre o papa e o imperador e a reforma moral do clero Movimento muito mais profundo e de mais ampla duração que a fase aguda dos anos 10491122 ele visa a uma reestruturação global da sociedade cristã sob a firme condução da instituição eclesial Os seus eixos principais são a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizadora do papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e clérigos Tratase de nada menos que reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio do mundo feudal Aparentemente a exigência de reforma lançada pelo papa Leão IX 104954 apresentase como um ideal de retorno à Igreja primitiva de resto durante mais de um milênio esta é a justificativa de toda intenção de transformar a Igreja conforme a lógica medieval dos renascimentos De fato tratase de restaurar a hierarquia eclesiástica liberandoa do controle dos laicos e impedindo as intervenções destes nos negócios da Igreja consideradas doravante ilegítimas Assim um dos slogans dos primeiros reformadores entre os quais Humberto da Silva Candida morto em 1061 e Pedro Damião 100772 convoca à libertas ecclesiae libertação da Igreja o que é preciso entender evidentemente como um combate pela defesa da ordem sacerdotal O imperador é o primeiro visado pois o modelo carolíngio e bizantino ainda ativo faz dele o chefe de todos os cristãos apto a este título a intervir nas questões eclesiásticas e também porque nessa época ele ainda impõe seus candidatos ao trono romano a começar pelo próprio Leão IX Sem entrar nos detalhes da luta entre o papa e o imperador que realaram a historiografia tradicional da reforma gregoriana podese indicar que ela atinge sua intensidade máxima sob Gregório VII com as excomunhões reiteradas de Henrique IV sua penitência em Canossa em 1077 com o intuito de suspender a primeira delas e em troca a tentativa imperial para depor o papa e a morte deste no exílio em Salerno Tal luta tem como implicação o confronto entre duas supremacias doravante incompatíveis como o indicam com toda a clareza os Dictatus papae o exaltado manifesto de Gregório VII É igualmente tradicional concentrar a atenção sobre a questão das investiduras dos bispos que polariza o conflito entre o papa e o imperador O problema certamente não é desprovido de importância pois os bispos estão entre os raros instrumentos da autoridade imperial e exercem ao mesmo tempo um poder temporal e um cargo espiritual Ora dandolhes investidura pelo cajado e pelo anel o imperador parece confiarlhes tanto um como outro e é isso que Gregório VII considera inadmissível Serão necessárias longas décadas de conflitos e de soluções inaplicáveis como aquela do tratado de Sutri 1111 para que o imperador Henrique V e o papa Calisto II cheguem a um compromisso viável a Concordata de Worms em 1122 Distinguirseão então os poderes temporais do bispo temporalia e seus poderes espirituais spiritualia de modo que o imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro enquanto os últimos são objeto de uma investidura pelo anel e pelo cajado que só pode ser realizada por outros clérigos Sobretudo o princípio da libertas ecclesiae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger o seu bispo o tem como efeito retirar dos laicos imperador rei ou conde o controle do recrutamento episcopal Enquanto este controle era até ali amplamente monopolizado pela alta aristocracia a nova situação favorece a pequena e a média aristocracia que prevalece nos próprios cabidos A partir disso a elevação ao episcopado constitui para seu beneficiário uma importante ascensão social o que apenas pode incitálo a exercer suas prerrogativas com maior intransigência inclusive perante os membros de sua própria parentela Essa modificação no recrutamento dos bispos revelase então propícia à defesa dos interesses da Igreja e a uma separação e uma concorrência mais marcadas entre o alto clero e a aristocracia laica o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormente Assim a aplicação do princípio de libertas ecclesia cria as condições sociais de um reforço desta mesma libertas Além dos bispos é o status do clero em seu conjunto que está em jogo Com efeito os reformadores denunciam os sacerdotes considerados indignos e incitam os fiéis a evitálos e mesmo a desobedecerlhes o que Gregório VII legitima afirmando que com a exortação e a permissão do papa os inferiores podem se tornar acusadores Multiplicamse assim os movimentos populares de oposição ao clero suscitados é verdade pela fração reformadora deste mas sempre suscetíveis de ir além de seus objetivos Tal é o caso da Pataria que a A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 191 partir de 1057 e durante duas décadas subleva os milaneses contra seu arcebispo arrogase o direito de depor os sacerdotes acusados de corrupção e de nomear seus sucessores De Leão IX até meados do século XII a condenação de dois males principais serve de palavra de ordem e de meio de ação aos reformadores a simonia definida como a aquisição ilícita de coisas sagradas por meio de bens materiais o nome vem de Simão o Mago que queria comprar de são Pedro o poder de fazer milagres e o nicolaísmo que caracteriza os clérigos casados ou que vivem em concubinato Os dois são indícios de problemas mais profundos Sob o nome simonia combatese toda forma de intervenção dos laicos dos negócios da Igreja e particularmente a posse senhorial das igrejas e dos dízimos Com efeito esta tem como consequência os clérigos receberem seus encargos sagrados das mãos impuras dos laicos enquanto estes últimos recebem uma parte substancial dos rendimentos do benefício concedido Assembleias sinodais e decisões pontifícias reclamam então a restituição das igrejas retidas pelos laicos o que beneficia os monges especialmente os cluniacenses sobretudo num primeiro momento antes que as paróquias sejam com mais frequência entregues à tutela episcopal O ritmo das restituições é bastante variável segundo as regiões mas é em geral bastante lento são raras as zonas onde resultados notáveis são atingidos no início do século XII É sobretudo na segunda metade deste século e na primeira metade do seguinte que o movimento se acelera assim na bacia parisiense os laicos não controlam mais do que 5 das igrejas por volta de 1250 mesmo se por vezes como na Normandia eles ainda detenham por volta de 1300 entre um terço e a metade das igrejas Quanto ao celibato dos clérigos ele já era reivindicado pelos concílios desde o século V mas tratase então de uma exigência moral mais do que uma norma rigorosamente imperativa Ainda no século XI ela é respeitada muito relaxadamente e vários sacerdotes são casados ou vivem em concubinato já que as designações senhoriais não favorecem absolutamente a atenção a esses critérios Mas seria errado ver nisso apenas um problema de moral pois se trata sobretudo de definir o estatuto do clero Fazendo da renúncia inapelável à sexualidade e por consequência do celibato a regra definidora do estado clerical a reforma empenhase em sacralizar os clérigos o que segundo a etimologia deste termo quer dizer colocálos à parte distinguilos radicalmente dos laicos no mesmo momento em que a Igreja estabelece para estes últimos um modelo cristão de casamento segunda parte capítulo v A obsessão da pureza do clero e o cuidado em afastar dele todo risco de mácula que poderia ser provocada por um contato intempestivo com os laicos com as riquezas materiais e com a carne estão à altura da nova sacralidade reivindicada pelos clérigos Esta se manifesta principalmente pela evolução do ritual de ordenação que afastandose da simplicidade dos séculos precedentes multiplica os símbolos da graça e do poder espiritual conferidos ao sacerdote A transformação das concepções eucarísticas segunda parte capítulo II é um outro sinal disso pois a doutrina da presença real de que o papado se apropria em meados do século XI confere ao sacerdote o poder de produzir pela sua própria boca o corpo e o sangue do Senhor segundo os termos de Gregório VII ou seja realizar a cada dia o incrível milagre de transformar o pão e o vinho em carne e sangue verdadeiro corpo de Cristo realmente presente no sacramento Esta é uma das questões centrais das transformações que afetam a Igreja durante os séculos XI e XII produzir uma sacralização máxima do clero que ao mesmo tempo reforce o seu poder espiritual e interdite aos laicos toda intervenção profanadora no domínio reservado da Igreja Sacralizar é separar Ora o movimento de reforma só procede por separação Ele distingue as spiritualia que só podem ser detidas e conferidas pelos clérigos e as temporalia às quais os laicos devem se limitar Ele impõe uma série de oposições paralelas entre o espiritual e o material entre o celibato e o casamento entre os clérigos e os laicos e esforçase para evitar toda mistura entre essas categorias que é preciso notar só é condenável no caso de contaminação do espiritual pelo material de mácula dos clérigos pela ação dos laicos a relação inversa sendo considerada ao contrário positiva Ao fim desse processo de separação Graciano pode afirmar como se viu que existem dois tipos de cristãos É o que já era anunciado quase um século antes a título de programa por Humberto da Silva Candida em seu Livro contra os simoniacos Assim como os clérigos e os laicos são separados no interior dos santuários pelos lugares e pelos ofícios eles também devem diferenciarse no exterior em função de suas respectivas tarefas Que os laicos se consagrem somente às suas tarefas os negócios mundanos e que os clérigos aos seus quer dizer os negócios da Igreja A relação entre a instituição eclesial e a comunidade cristã só pode ser profundamente transformada em decorrência e é por isso que como já se disse nos séculos XI e XII a palavra Igreja passa a significar principalmente o clero parte eminente que vale pelo todo do qual ele assegura a salvação enquanto se recorre com mais frequência à noção de christianitas para designar o conjunto da sociedade cristã ordenada sob a condução de seu chefe O poder absoluto do papa A autoridade pontifícia afirmase em estreita conjunção com os processos já mencionados Um primeiro passo consiste em garantir a autonomia graças ao decreto de 1059 pelo qual Pascal II funda o colégio dos cardeais e atribuilhe o A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 193 encargo de eleger o papa a fim de subtraíla das intervenções do imperador ou da aristocracia romana Se ao longo do século XII a história do papado ainda é marcada pela instabilidade especialmente no momento do cisma de 1130 e por uma situação financeira frágil a estabilização impõese a partir dos anos 1190 Pouco a pouco a cúria pontifícia reorganiza suas receitas e melhora suas engrenagens administrativas em particular para afirmar sua autoridade no Patrimônio de são Pedro Paralelamente suas intervenções em domínios cada vez mais numerosos estendemse ao conjunto da cristandade a tal ponto que o papado parece governar a cristandade como uma única diocese Giovanni Miccoli Doravante o papa tem jurisdição para intervir em todos os litígios eclesiásticos e suas decisões transmitidas pelos decretos papais são reunidas sob Gregório IX 122741 no Liber extra que forma junto com o Decreto de Graciano a base renovada do direito canônico quer dizer o conjunto das normas aplicáveis no seio da Igreja Além disso os bispos cuja eleição é cada vez mais controlada pelo papa são periodicamente obrigados às visitas ad limina aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo como sinal de obediência à autoridade romana E se de início os reformadores se apoiaram nos monges contra bispos excessivamente ligados aos poderes laicos uma vez a hierarquia secular retomada Roma favorece cada vez mais os bispos limitando as isenções monásticas que amputam sua autoridade e aliase a eles a fim de garantir um melhor controle das redes regulares em particular as cluniacenses Enfim numerosas decisões que antes eram da responsabilidade dos bispos ou arcebispos passam para a alçada exclusiva do papa Não há melhor exemplo da centralização pontifícia do que a transformação dos procedimentos de canonização postos em evidência por André Vauchez Se durante a Alta Idade Média e ainda no século XI a santidade se revelava geralmente pelo desenvolvimento de um culto popular reconhecido e legitimado pelo bispo pouco a pouco o papa arrogase a indispensável confirmação das canonizações e também por decorrência a possibilidade de proibir os cultos que se desenvolveram sem sua autorização Depois Inocêncio III 11981216 edita as normas obrigatórias de todo processo de canonização sendo que sua parte essencial deve ser efetuada na cúria romana Mesmo se a distinção entre santos e beatos ainda permite conceder um pouco de espaço aos cultos locais o poder de dar santos à cristandade é doravante um privilégio estritamente pontifício No geral a instituição eclesial ganha a forma de uma hierarquia bem ordenada sob autoridade absoluta do papa e os nomes de Inocêncio III e Gregório IX correspondem sem dúvida ao apogeu do poder pontifício que nesse momento é a mais poderosa das monarquias do Ocidente a mais parecida com a de Cristo Tal afirmação da autoridade do papa não pode ocorrer sem um amplo trabalho de justificação teórica e sem manifestações simbólicas ostensivas Há muito tempo o papa beneficiase de uma proeminência de honra como sucessor de são Pedro tido como o primeiro bispo de Roma Com efeito o papa é como indica seu título o vicário de Pedro seu representante na terra de onde a importância dos discursos e das imagens que sublinham a proeminência de Pedro príncipe dos apóstolos fundador da Igreja investido do poder das chaves e figurado a este título como porteiro do paraíso a partir do século XI figura 21 na p 211 Mas isso ainda é muito pouco e ao longo do século XII e sobretudo com Inocêncio III o papa se reserva o título de vicário de Cristo Proclamandose a imagem terrestre do Salvador ele manifesta o caráter monárquico de seu poder à imagem da realeza de Cristo ele se afirma como o chefe da Igreja desse corpo do qual Cristo é justamente a cabeça A identificação de Cristo e de seu representante terrestre é cada vez mais forte e Álvaro Pelayo pode afirmar em 1332 que o fiel que olha o pontífice com os olhos da fé vê o Cristo em pessoa Insígnias exclusivas vêm exprimir a natureza desse poder Durante o século XII o papa porta uma tiara em que a coroa símbolo da realeza de Cristo juntase à mitra dos bispos depois a partir de Bonifácio VIII por volta de 1300 a tiara pontifícia é ornada de três coroas como visto na figura 12 nas pp 176 e 177 Ao longo do mesmo período os rituais pontifícios assumem grandeza crescente mas como mostrou Agostino Paravicini Bagliani o caráter espiritual do poder pontifício obriga sempre diferentemente dos outros soberanos medievais a aliar fausto e humildade Do mesmo modo que Pedro Damião insiste ao exaltar a supremacia romana sobre a fragilidade humana dos pontífices e a brevidade de seus reinos numerosos rituais a começar pelo da investidura multiplicam os símbolos de rebaixamento e relembram o caráter mortal do papa como se fosse necessário enfatizar a humildade do homem para melhor exaltar a instituição É que a identificação crescente do papa com Cristo e a tendência em fazer do primeiro a encarnação verdadeira da Igreja universal impõem anteparos para evitar confundir o homem e a função O risco está longe de ser inexistente como mostra o caso de Bonifácio VIII 12941303 que pretendendo exercer um poder ainda mais absoluto do que seus predecessores chega a confundir o corpo da Igreja e seu próprio corpo pessoal a ponto de mandar pôr seu busto sobre os altares e o que lhe valerá uma acusação de magia sonha adquirir pelo consumo de ouro comestível a mesma imortalidade da instituição de que ele é temporariamente o titular Ao mesmo tempo entre os séculos XI e XIII afirmase a doutrina do primado pontifício em virtude da qual o papa se sobrepõe a todas as outras autoridades e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 195 constitui a fonte de todo poder na Igreja Já encorajada por Inocêncio III encontrase uma clara expressão sua no liturgista Guilherme Durand 1296 o papa dirige dispõe e julga todas as coisas ele pode suprimir todo direito e governar acima do direito ele próprio está acima de tudo e tem na terra a plenitude do poder Estamos longe do modelo legado por Gelásio 1 49296 que estabelecia uma partilha equilibrada entre a autoridade dos clérigos que se sobrepõe em matéria espiritual e o poder dos laicos que se impõe na esfera temporal Mas isso quer dizer que agora todos os poderes temporais concernem ao menos indiretamente ao papa A questão continuou a ser debatida sendo objeto de diversas formulações moderadas ou radicais É verdade que Gregório VII afirma que os sacerdotes de Cristo devem ser considerados os pais e senhores dos reis príncipes e de todos os fiéis e é provável que ele sonhasse em restabelecer a velha unidade do poder temporal e do poder espiritual mas dessa vez em proveito do papa e não do imperador Girolamo Arnaldi Ele afirmava de resto nos Dictatus papae que apenas o papa tinha o direito de uso das insígnias imperiais tendência que um texto dos anos 1160 a Summa perusina amplifica ainda mais enfatizandoa O papa é o verdadeiro imperador Esta pretensão a um papado imperial plena realização na terra do poder real de Cristo nem sempre é apenas teoria Assim quando ele proclama a cruzada em 1095 Urbano II usurpa manifestamente uma prerrogativa imperial e põe o papa de modo duradouro na posição de guia da cristandade em um domínio que deveria ser próprio da competência do imperador Mas no geral a cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma teocracia na qual a Igreja deteria efetivamente a soberania nos negócios temporais As afirmações mais combativas sem dúvida visavam menos a ser inteiramente postas em prática do que a consolidar o essencial a proeminência da monarquia pontifícia sobre todos os outros poderes do Ocidente e o reconhecimento do papa como guia da cristandade Ao término dos processos descritos aqui o caráter dominante da instituição eclesial está mais marcado do que nunca Esta é reformada sob a autoridade absoluta e centralizadora do papado e a dominação dos clérigos sobre os laicos é fortalecida graças a uma separação hierárquica cada vez mais vigorosa entre uma casta sacralizada e o comum dos fiéis Essa reorganização é acompanhada por numerosas transformações que afastam a cristandade ocidental de suas origens por exemplo no que concerne à associação de Constantino entre a Igreja e o Império e que não acontecem no Oriente bizantino O cisma de 1054 consumado precisamente durante o pontificado de Leão IX acompanha muito logicamente o momento em que a forma ocidental da Igreja cristã se desenha em toda a sua clareza 15 O mosteiro românico de San Pere de Roda Catalunha século XI Consagrada em 1022 a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambulatórios de sua nave terminada na segunda metade do mesmo século não é menos audaciosa Do exterior distinguemse a igreja abacial e seu campanário a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório duas outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges O mosteiro apresentase como uma cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta dominando orgulhosamente a solitude em torno SÉCULO XIII UM CRISTIANISMO COM NOVAS ENTONAÇÕES Entre os séculos XI e XIII o Ocidente transformase de modo considerável Se fosse preciso escolher um edifício para simbolizar a Europa do século XI este seria sem dúvida um mosteiro beneditino tal como o de San Pere de Roda na Catalunha com ares de fortaleza suspensa no flanco de uma colina dominando a partir de seu soberbo isolamento os campos circundantes figura 15 acima Para exprimir as realidades do século XIII seria necessário pensar ao contrário em uma catedral gótica tal como a de Bourges audacioso edifício no coração da cidade figura 16 na p 198 De um edifício a outro passase de um universo rural ainda fracamente povoado para um mundo mais densamente ocupado onde a cidade tem um papel notável ilustração VIII na p 199 Ao mesmo tempo a dominação dos monges cede terreno diante da reafirmação do clero secular A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 197 Propostas aos gurus Elaborar um resumo de cada texto contendo no máximo duas laudas cada resumo Dos arquivos que enviei Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de IAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3a reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de IAmerique ISBN 9788525041395 I Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr 5 A Igreja articulação do local e do universal BACHET Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América São Paulo 2006 pp 358370 Grupo 5 nação da vida humana O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações mundanas e desejando atingir sua pátria celeste o lugar do Pai divino a fim de gozar da estabilidade da morada eterna santo Agostinho Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento cujo ideal é a estabilidade local conceba a vida terrestre como um deslocamento e o homem como um viajante um homo viator segundo um tema muito corrente na época É que em vista das exigências cristãs o aqui embaixo é um vale de lágrimas uma passagem transitória e exterior por oposição ao verdadeiro lugar objeto de todas as esperanças que é o além celeste Nesse sentido a única verdadeira estabilidade é encontrada junto a Deus enquanto o mundo terrestre como todo espaço exterior é associado a um deslocamento sinônimo de perigo e de insegurança de provação e de sofrimento De resto tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o movimento porque se trata de prática excepcional Na cristandade existem é verdade alguns grupos que se movimentam muito mercadores que viajam para longe e clérigos que para estudar nas universidades mais reputadas realizam longos périplos abades que visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e mais tarde frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das exigências da ordem e que praticam habitualmente a pregação itinerante Mas ainda aqui esses deslocamentos só são valorizados na medida em que se constituem como exceções e contribuem para reforçar as estruturas de dominação que garantem a stabilitas loci da imensa maioria dos produtores Além disso tais viagens obedecem a imperativos precisos diferentemente desses clérigos chamados gróvagos ou golliardos que não são vinculados a nenhuma função ou a nenhum lugar e cuja instabilidade excessiva é vigorosamente denunciada Entrase assim na categoria dos vagabundos estes escapando ao princípio da estabilidade local são incluídos por Bertoldo de Ratisbona 121072 na família do Diabo e são vítimas de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século XIV A IGREJA ARTICULAÇÃO DO LOCAL E DO UNIVERSAL Por universal designase aqui a cristandade romana tomada em sua globalidade quer dizer um universal relativo de resto não poderia ser diferente pois os valores universais nunca são mais do que a universalização de valores particulares segundo a expressão de Pierre Bourdieu O valor que essa totalidade pôde assumir através dos séculos medievais é aliás variável Nos séculos V e VI a Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses largamente autônomas Cada bispo detentor de um poder espiritual e temporal considerável é senhor em seu domínio e o bispo de Roma dispõe apenas de uma proeminência simbólica ainda mal estabelecida Depois a época carolíngia marca uma primeira afirmação da unidade cristã sob instigação do imperador e do papa Bento de Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base na regra beneditina enquanto a uniformização litúrgica difunde os hábitos romanos e eclipsa pouco a pouco as outras tradições Enfim a reforma eclesial dos séculos XI e XII e seus prolongamentos até o século XIII reforçam consideravelmente os poderes do papa bem como sua proeminência simbólica A centralização pontifícia tornase então a forma concreta assumida pela unidade da cristandade O papa é a sua encarnação e a projeta além dela mesma conclamando à cruzada ou mais tarde concedendo aos reinos ibéricos um direito de conquista garantindolhes o monopólio indispensável à exploração do Novo Mundo bula Inter caetera de Alexandre VI em 1493 Tratado de Tordesilhas em 1494 Alteração da doutrina eucarística A transformação da doutrina eucarística é ao mesmo tempo um indício e um instrumento da reorganização espacial da cristandade Nos primeiros séculos do cristianismo a celebração eucarística é concebida como um ato de memória conforme as palavras de Cristo que convida seus discípulos no momento da Última Ceia a refazer os mesmos gestos em minha memória O pão e o vinho utilizados são então apenas os símbolos do corpo e do sangue de Cristo servindo para comemorar seu sacrifício Para Agostinho Cristo está presente no sacramento como figura de modo que entre a hóstia e o corpo de Cristo existe a mesma diferença que entre um signo e a coisa que ele significa Prevalece então uma grande proximidade entre os fiéis e o altar sobretudo porque os pães utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à alimentação corrente e são oferecidos pelos membros da assistência Depois esses pães denominados oblata continuam a ser recebidos pelos clérigos mas não são mais levados para o altar e a partir do século IX são utilizados para o sacrifício pães não fermentados ázimos Essa distância em relação à realidade profana contribui para estabelecer uma separação entre os laicos e o altar é de resto um dos aspectos da divergência com o Oriente bizantino que conserva o uso do pão fermentado No século IX aparece também a primeira polêmica importante em matéria eucarística O liturgista Amalário de Metz e sobretudo Pascásio Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção simbólica do A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 359 sacramento em vigor até então A reação é forte e clérigos como Rábano Mauro e Ratramno de Corbie batalham para manter a teoria agostiniana Mas o debate se esgota rapidamente sem dar lugar a nenhuma definição doutrinal como se tratasse de opiniões individuais que não requeriam a intervenção das autoridades eclesiásticas A polémica é retomada em meados do século XI momento em que a teologia eucarística começa verdadeiramente a se desenvolver Berengário de Tours um clérigo bem formado nas escolas da região do Loire e professor em Tours provoca por volta de 1040 uma indignação geral embora não faça mais do que reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os autores anteriores ao século IX confirmandoos com novas justificativas de natureza gramatical em particular uma análise profunda da fórmula central da missa hoc est corpus meum31 Numerosos autores como Lanfranc du Bec ou Guitmond de Aversa apoiados pelo papa Leão IX e Gregório VII e pelas principais figuras da reforma gregoriana opõemse então a Berengário Convocado por numerosas assembleias eclesiásticas ele é obrigado a retratarse e suas concepções são condenadas por uma bula pontifícia em 1059 Isso mostra claramente que uma ortodoxia eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então Não está mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de Cristo mas uma presença substancial do corpo de Cristo na hóstia A bula de 1059 não hesita em afirmar que o pão e o vinho são o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo eles são fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis Doravante explicase que existe uma unidade essencial entre as três formas do corpus Christi a hóstia consagrada o corpo histórico de Cristo e a Igreja Como a hóstia é assimilada ao corpo histórico de Cristo podese afirmar que Cristo está realmente presente no sacramento A hóstia não é mais então um símbolo que dá suporte a um ato de memória ela faz experimentar a presença real de Cristo presença não espiritual mas material de seu verdadeiro corpo Assim quando o sacerdote consagra a hóstia uma metamorfose se realiza um milagre diz Hugo de SaintVictor o pão e o vinho deixam de ser substancialmente pão e vinho eles se transformam e se tornam essencialmente o corpo e o sangue de Cristo mesmo se as espécies acidentais as aparências do pão e do vinho subsistam e permaneçam visíveis É essa metamorfose que é nomeada pelo termo transubstanciação atestado pela primeira vez na obra do teólogo Roberto Pullus por volta de 1140 e que insiste judiciosamente sobre a transformação da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção das aparências acidentais 31 Eis meu corpo N T 360 Jérôme Baschet Tal teoria qualificada de realismo eucarístico não tem nenhum fundamento nem nas Escrituras nem na tradição ela supõe então resolver enormes dificuldades lógicas e intelectuais Sua implantação é lenta avançando à medida que são aperfeiçoadas as argumentações lógicas que permitem contrapor as múltiplas objeções possíveis Além disso em seu esforço para impor uma doutrina sem precedente as proposições combativas do período entre 1050 e 1130 geram formulações bastante rudes que insistem muito literalmente sobre a presença material do corpo de Cristo na hóstia e sobre sua ingestão pelos fiéis Ora os autores ulteriores não tardam em perceber as dificuldades de semelhantes afirmações notadamente porque uma concepção exageradamente realista arrisca limitar Deus no tempo e no espaço Finalmente Tomás de Aquino propõe uma síntese nuançada e moderada Para ele a presença física de Cristo na hóstia realizase de uma maneira que não é material mas invisível e espiritual de modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua forma natural mas sob sua espécie sacramental O essencial não é entretanto absolutamente posto em causa a saber a transubstanciação a presença real e a identidade substancial da hóstia e do corpo histórico de Cristo Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido pelo sacramento eucarístico Assim o gesto pelo qual o sacerdote eleva a hóstia após suas palavras de consagração aparece justamente na região de Tours no século XI como que para apoiar o realismo eucarístico em face dos perigos das teorias declaradas heterodoxas de Berengário Depois entre 1198 e 1203 o bispo de Paris Eudes de Sully prescreve o uso desse gesto em sua diocese até que essa nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente Compreendese a importância desse gesto que torna sensível o efeito das palavras de consagração e sublinha o caráter extraordinário da transubstanciação que provocam A elevação exibe a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos Esse gesto tornase então tão importante que ele concentra a atenção dos fiéis a tal ponto que assistir à elevação lhes pareça um substituto aceitável da comunhão Isso não é surpreendente se for lembrado que esta última permanece rara para a maioria dos fiéis que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo Concílio de Latrão IV É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e portanto tão perigoso para o homem exposto ao pecado que é melhor não ser excessivamente zeloso Do mesmo modo assistir à elevação parece uma maneira suficiente e menos arriscada de adorar a Deus e no século XIII são conhecidos fiéis que correm de uma igreja a outra para testemunhar o maior número possível de elevações E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um sacramento eles lhe atribuem todavia uma notável virtude espiritual comparandoa à comunhão e qualificandoa de mastigação pela visão manducatio per visum Sem dúvida é para canalizar tal devoção e mais largamente para permitir o prolongamento do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao próprio sacramento eucarístico o Corpus Christi Realizada em Liège desde os anos 1240 ela é oficializada pelo papa Urbano IV em 1264 e floresce sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon Clemente V no início do século XIV No momento dessa festividade solene a hóstia consagrada exibida em um ostensório transparente e assim tornada visível a todos os fiéis é levada em procissão sob um pálio através da cidade depois é celebrado um ofício especial chamado Corpus Christi cuja redação é devida a Tomás de Aquino A procissão que faz sair o objeto sagrado de seu próprio lugar o que não deixa de ser perigoso exibe o poder sacralizado do clero que toma posse do espaço urbano graças à deambulação de seu emblema maior a hóstia Nos últimos séculos da Idade Média a devoção eucarística adquire incessantemente importância crescente cujo reverso é o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia Frequentes a partir do século XIII elas são comumente utilizadas contra os judeus que são acusados assim de repetir contra o sacramento o crime cometido contra Jesus mas sobretudo afiançam o realismo eucarístico que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que sangra De resto fora as narrativas de profanação milagres cada vez mais frequentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico assim o Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação como na visão do rei Eduardo o Confessor relatada por Mateus Paris no século XIII como vista na figura 31 na p 363 a não ser que a hóstia sangre acima do altar ou se transforme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote Enfim entre os simples fiéis o desejo de ver a hóstia não se enfraquece concorrendo sempre com a prática da comunhão A eucaristia tornase assim nos três últimos séculos da Idade Média um supersacramento superior a todos os outros pois permite o contato de maneira repetida com a presença corporal de Cristo Miri Rubin Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos XI e XII Podese sem muita dificuldade sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse mesmo período o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e laicos Com toda a evidência a doutrina da presença real ressalta a eminência do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada Ela atribui então um poder simbólico ampliado ao sacerdote capaz de realizar um ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em sangue A um só tempo fora do domínio do natural ou contranatureza diz o teólogo Simão de Tournai e indispensável à salvação de todos a operação realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que separa 31 Cristo aparece miraculosamente na hóstia c 125560 abadia de SaintAlbans ou Westminster História do santo rei Eduardo Cambridge University Library Ee359 p 37fl 27 Celebrando a missa o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia É então que segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris o santo rei Eduardo o Confessor teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote no lugar da hóstia Esse tipo de milagre mencionado em vários relatos a partir do século XII é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real Com efeito como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote clérigos e laicos Podemos então afirmar a existência de um laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da eucaristia Miri Rubin Isso é tornado ainda mais claro pelo fato de que no século XII no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico o cálice é salvo casos excepcionais retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies A distância entre clérigos e laicos é marcada assim por uma diferença ritual bem visível e uma reivindicação dos 362 Jérôme Baschet radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicação progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosa enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz 363 a civilização feudal partidários de Hus no século XV é que ela seja abolida e que se restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies De maneira ainda mais clara a maior parte dos hereges notadamente os cátaros e os lolardos e depois os reformados contesta radicalmente a doutrina da presença real transformada no fundamento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal Realismo eucarístico lugar sagrado e comunhão eclesial Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicos contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal Com efeito a presença real valoriza o ritual local que se realiza em cada igreja sobre cada altar ali naquele exato lugar está verdadeiramente presente o corpo de Cristo Ora um evento tão extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar fortemente sacralizado vigorosamente extraído do espaço terrestre normal É por isso que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamentação nas Escrituras ou na Patrística como bem demonstrou Dominique IognaPrat Nos primeiros séculos do cristianismo a questão do lugar onde seria realizada a celebração tem pouca importância ela é quase sem interesse e qualquer mesa por mais modesta que seja pode servir de altar A reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas de culto domina então Michel Lauwers e Agostinho faz ainda esta pergunta irônica São os muros que fazem os cristãos Uma primeira transformação intervém no fim do século IV quando a presença de relíquias no altar é julgada útil e mais tarde em 401 considerada indispensável para a celebração da missa santo Ambrósio explica que do mesmo modo que as almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse os corpos dos santos devem se encontrar sob o altar terrestre O lugar deixa de ser indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer durante a Alta Idade Média os grandes santuários perfumados e rutilantes em meio a um mundo mal iluminado e malcheiroso aparecem como fragmentos de paraíso Peter Brown A prática conserva entretanto certa maleabilidade e na época carolíngia é necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relembrar a indispensável presença das relíquias no altar É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de uma justificativa precisa tornada necessária pela contestação dos hereges Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras em 1205 e os discípulos de Pedro de Bruis no século seguinte pretendem voltar à prática antiga e negam radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicação progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosas enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz 364 Jérôme Baschet a civilização feudal entrar assim na comunhão da Igreja universal terrestre e celeste Não se pode com efeito ignorar que a expressão corpo de Cristo designa ao mesmo tempo a hóstia consagrada e a Igreja segunda parte capítulo iv Tornar realmente presente o corpo de Cristo na hóstia é então fazer existir a Igreja como corpo e como comunidade universal Incorporando o corpo de Cristo a hóstia os fiéis incorporamse ao corpo de Cristo a Igreja Então o sacramento eucarístico valorizado ao extremo pela presença real manifesta ritualmente a unidade da cristandade A partir daí todas as igrejas onde advém a presença real de Cristo podem aparecer seja como centros seja como microcosmos à imagem do macrocosmo da cristandade e em estreita conjunção com ele Mas a articulação do local e do universal manifestase também por uma dualidade entre as relíquias associadas a uma figura santa que remete em geral a uma inserção local e à hóstia que como corpo de Cristo assume um valor sobretudo universal Se o altar é o lugar dessa dupla inserção o edifício eclesial o é igualmente pois ao mesmo tempo é associado ao santo que é o seu titular e à Igreja celeste do qual é a imagem No coração de cada paróquia se observa então o seguinte complexo no centro do centro o altar associado tanto ao corporelíquia de um santo como ao corpohóstia de Cristo depois o lugar eclesial sacralizado reproduzindo no mais das vezes a forma do corpo crucificado de Jesus enfim o cemitério consagrado lugar dos corposmortos É esse dispositivo concêntrico de corpos associados que assegura a polarização do espaço local e a estabilidade dos seres vivos que o ocupam ao mesmo tempo que põe cada lugar particular em comunhão com o corpoIgreja da cristandade e em correspondência com a Igreja celeste A instituição eclesial consegue assim por um jogo de articulações e remissões associar a comunidade restrita a paróquia e a comunidade ampla a cristandade reforçando a coesão tanto de uma como de outra A imagem concêntrica do mundo Não se pode concluir este capítulo sem extravasar as fronteiras da cristandade e evocar brevemente as concepções da terra e do universo Estas prolongam de resto a visão concêntrica do espaço analisada até aqui Devese de início relembrar a importância das margens da cristandade zonas de conquista e de integração tardia tanto em direção ao Norte e Leste como na Península Ibérica Para além estendese o mundo não cristão aquele dos conflitos e das trocas com os muçulmanos e mais longe a África profunda e o Extremo Oriente Essas paragens não são totalmente ignoradas desde antes da exploração metó 366 Jérôme Baschet dica das costas africanas pelos portugueses o prestígio ameaçador dos tártaros nos anos 1220 e desde a estabilização do Império Mongol a esperança de obter a conversão de seu chefe o Grande Khan suscita uma notável corrente de viajantes e de trocas que se esgota somente por volta de 1400 O papado envia uma dezena de embaixadas em particular a dos franciscanos João do Plan Carpin em 1245 e Guilherme de Rubrouck em 1253 Procuramse os discípulos de são Tomás suposto apóstolo das Índias e algumas conversões são obtidas Os irmãos Polo ao mesmo tempo movidos por seus negócios e embaixadores da cristandade chegam à China pela primeira vez em 1266 de onde trazem uma mensagem de Kubilai solicitando ao papa pregadores da fé católica depois em 1275 dessa vez com o jovem Marco autor do Livro das maravilhas ficando dezesseis anos a serviço do Grande Khan voltando depois para Veneza via Sumatra e Índia Embora os relatos desses viajantes tragam novas informações sobre um mundo do qual sublinham a ordem e a riqueza eles não impedem absolutamente que o Oriente continue sendo o domínio do imaginário e do maravilhoso o conhecimento adquirido em campo aglutinase às lendas preexistentes mais do que as substitui Paul Zumthor Lá vivem povos monstruosos que são já descritos pelos autores antigos como Plínio e Solino e que Isidoro de Sevilha e Rábano Mauro fazem entrar no saber compartilhado pelos clérigos medievais inclusive pelos mais doutos como Alberto o Grande ou Roger Bacon os cincofálos homens com cabeça de cachorro que se comunicam latindo os panócios bizarramente dotados de orelhas gigantescas os ciapodos com um único pé tão grande que eles o utilizam para se proteger do sol os homens sem cabeça que têm o rosto no tronco os opistópodes que têm os pés invertidos com os calcanhares virados para a frente sem falar nos ciclopes nos pigmeus e outros gigantes figura 32 na p 368 Lá ainda na Grande Muralha da China são prisioneiros Gog e Magog os povos que se abaterão sobre a cristandade no final dos tempos Na Ásia igualmente ou na Etiópia encontrase o Preste João soberano de um reino cristão onde reinam a justiça a paz e a abundância A carta que se supõe que ele endereçou ao imperador de Bizâncio circula no Ocidente a partir do século xiii e conhece difusão crescente até o século xvi O papa Alexandre III envialhe uma mensagem em 1177 numerosos príncipes sonham selar uma aliança com ele e todos os viajantes que se aventuram no Oriente esforçamse para localizar o mítico reino de João Mesmo se o saber geográfico é objeto de maior atenção a partir do século xii e sobretudo a partir do fim do século xiii com o aperfeiçoamento dos portugueses cartas costeiras fundadas sobre a observação e uma estimativa das distâncias as mappae mundi representações do mundo mais do que mapas só podiam ser extremamente esquemáticas e no essencial fantásticas Assim a A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 367 14 32 Os povos lendários dos confins segundo as miniaturas do Livro das maravilhas 141112 Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 2810 fls 29v e 76v Este manuscrito do Livro das maravilhas compilação de relatos de viagem foi encomendado pelo duque de Borgonha João Sem Medo a fim de oferecêlo a seu tio o duque João de Berry O relato notadamente o de Marco Polo foi abundantemente ilustrado muitas vezes forçando sua dimensão maravilhosa Aqui o iluminador o mestre de Boucicaut mostra os cincofálos das ilhas Adamá enquanto Marco Polo menciona somente homens tão feios que se pareciam com cachorros Do mesmo modo quando o texto evoca as raças extremamente selvagens da Sibéria a pintura as traduz recorrendo ao repertório clássico dos povos lendários um homem sem cabeça com o rosto no tronco um ciapodo protegendose do sol com seu enorme pé e um ciclopes O fundo da miniatura mostra esboços de paisagens características do início do século xv 33 Mappa mundi de Ebstorf c 123035 BaixaSaxônia obra destruída Este vasto mapamúndi de três metros e meio de diâmetro foi realizado pelo monastério beneditino de Ebstorf Ele retoma adaptandoo o esquema clássico dos mapas em T a Ásia na metade superior a Europa no quarto inferior esquerdo a África embaixo à direita o conjunto formando um círculo cercado pelo oceano Os dois últimos continentes são separados pela principal zona marítima de cor escura que corresponde ao Mediterrâneo As diferentes regiões são indicadas umas ao lado das outras sem preocupação com a forma dos territórios O mapamúndi é entretanto saturado de informações Jerusalém ao centro edifícios emblemáticos dos diferentes povos conhecidos monstros e espécies dos confins da terra por exemplo Gog e Magog além da Muralha da China O mundo é circular e uno à imagem de Cristo cuja cabeça aparece a leste os pés a oeste e as mãos ao norte e ao sul 15 mappa mundi de Ebstorf gigantesca imagem de três metros e meio de diâmetro realizada em um monastério beneditino de Luxemburgo por volta de 1235 retoma como a maior parte das representações medievais o esquema em T que divide o disco terrestre em três partes no alto a Ásia embaixo à direita a África embaixo à esquerda a Europa figura 33 na p 369 Jerusalém ocupa o umbigo do mundo ao mesmo tempo que aquele do corpo de Cristo cuja cabeça as mãos e os pés aparecem nos quatro pontos cardeais A terracorpo de Cristo forma um vasto e único continente drenado por uma densa rede de rios entre os quais o Ganges na Índia e o Nilo na África e mares estreitos Aqui o mundo terrestre é uno porque ele é o Cristo e sua periferia é ocupada pelo oceano Reencontrase assim na escala do mundo a visão concêntrica que ordena os espaços da cristandade um centro espaços cada vez mais distantes todavia soldados pela metáfora corporal depois a periferia da periferia o oceano imensidão líquida bem adequada para marcar o desconhecido supremo e a exterioridade radical para um mundo fundado sobre o vínculo com a terra Tal imagem é unanimemente partilhada independentemente do fato de que se conceba a Terra como sendo plana ou esférica As duas ideias coexistiram durante a Idade Média dando lugar muitas vezes a misturas mais ou menos coerentes William Randles Para os partidários da Terra plana como Cosmas Indicopleustas e Isidoro de Sevilha o oceano marca o limite do disco terrestre habitado de um só lado Em revanche João de Mandeville cujo Livro redigido em 1356 e destinado a grande sucesso fornece uma espécie de síntese do saber geográfico medieval admitindo na sequência de autores como Beda o Venerável Guilherme de Conches ou Brunetto Latini 1250 o caráter esférico da Terra inteiramente redonda como uma maçã Não sem contradições ele afirma que o mundo é habitado em todas as suas partes e estima ser possível explorar todos os mares do globo a despeito dos riscos de tal empresa A concepção esférica do mundo é confirmada pela redescoberta de Ptolomeu autor grego do século II cuja obra é traduzida e transformada em mapas em Florença 1409 depois em Augsburgo 1482 Se desde o século xiii a esfericidade ganha terreno entre a maioria de autores ela se torna ao longo dos séculos seguintes a concepção unânime dos homens de saber Assim por volta de 1410 é um mundo esférico que é descrito pela Imago Mundi do cardeal Pedro de Ailly uma obra sobre a qual Cristóvão Colombo meditará e anotará abundantemente Mas a oposição entre as formas plana e esférica da Terra não é talvez a mais determinante sem dúvida porque este ponto é indiferente em relação à representação concêntrica do espaço então dominante A questão principal que ocupa os espíritos no final da Idade Média consiste principalmente em avaliar os riscos em que se incorre ao se afastar do mundo habitado conhecido o ecúmeno e se lançar na imensidão do oceano que a bordeja problema desta feita extremamente dependente da percepção concêntrica e da oposição interiorexterior Para todos tratandose de zonas eminentemente periféricas o perigo só pode ser considerável E como se disse a força de Cristóvão Colombo não está em sua opção em favor da forma esférica pouco singular e não desprovida de ambiguidade mas no fato de estar convencido em decorrência de erros de cálculos que acentuavam os de Ptolomeu e contra a opinião corrente partilhada especialmente pela comissão encarregada de avaliar o seu projeto que entre o Ocidente e a Ásia havia apenas um mar estreito reduzindo consideravelmente assim a exterioridade ameaçadora do desconhecido oceânico Enfim a concepção do universo projeta na escala cósmica a representação concêntrica do espaço Ela se funda com efeito sobre o modelo grego das esferas celestes formulado notadamente por Aristóteles No centro encontrase a Terra cercada de esferas ocupadas pelos diferentes astros conhecidos começando pela Lua e pelo Sol seguidos pelos planetas como Marte e Vênus A Idade Média prolonga com frequência essa imagem de esferas celestes dispondo no céu império a hierarquia das nove ordens angélicas Assim o universo inteiro organizase segundo uma lógica concêntrica de modo que macrocosmo e microcosmo se correspondem conforme a lógica cristã das correspondências Até o fim da Idade Média a possibilidade de pensar um universo infinito debatida pelos teólogos do século xiv permanece marginal o franciscano Tomás Bradwardine mestre em Oxford é a exceção e sem verdadeiro alcance Ainda será preciso esperar três séculos para que desabem as esferas celestes que mantinham unido o belo cosmo de Aristóteles Alexandre Koyré Desde 1584 Giordano Bruno lança entretanto afirmações tão contrárias à lógica do espaço polarizado medieval que elas acabam por lhe valer a fogueira Não existem pontos no espaço que possam formar polos definidos e determinados para a nossa Terra da mesma maneira esta não forma um polo definido e determinado para nenhum outro ponto do espaço A partir de pontos de vista diferentes todos podem ser vistos como centro ou como pontos da circunferência A Terra não é o centro do universo ela só é central em relação ao nosso próprio espaço circundante Desde que suponhamos um corpo de tamanho ínfimo devese renunciar a lhe atribuir um centro ou uma periferia De linfinito universo e mundi 370 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 371 Conclusão Dominância espacial na Idade Média dominância temporal hoje A partir daqui é possível contar entre as características fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade a articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à cristandade assim como a articulação entre stabilitas loci e mobilidade tratandose deste último ponto é possível distinguir de uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo distanciamentos positivos a deambulação penitencial e depois a peregrinação e a cruzada e distanciamentos negativos a vagabundagem e o banimento Três elementos ao menos concorrem para tal resultado Em primeiro lugar a criação da malha paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo edifício cultual sagrado e o cemitério consagrado tendo em seu coração o altar e suas relíquias onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal Em segundo lugar o desenvolvimento sistemático da oposição interiorexterior notadamente pela prática de peregrinação associa as experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar protetor e familiar Enfim o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e hierarquizado polarizado pelos santos e suas relíquias Esta organização que assegura o máximo de estabilidade possível ao mesmo tempo que permite as trocas necessárias e que fixa os homens na região de conhecimento ao mesmo passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal sugere quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisiva Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas as reducciones e congregaciones que criam novas aldeias cujo centro é evidentemente uma igreja no caso de Bartolomeu de Las Casas por exemplo notase desde seus primeiros projetos de colonização pacífica em 1551 e 1520 uma verdadeira obsessão para organizar os índios em aldeias Como fruto de sua secular experiência na congregatio hominum da Europa Ocidental a Igreja sabe que o controle das populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo Tal é em todo caso o princípio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e igualmente ao que parece do feudalismo dependente implantado no Novo Mundo Se o feudalismo é caracterizado por uma dominação espacial isso não ocorre mais hoje No mundo contemporâneo é o tempo que parece constituir o ponto nodal da organização social pois com base no assalariamento e no cálculo do tempo de trabalho forma sempre dominante das relações de produção desenvolveramse consequências múltiplas para seres apressados submetidos à tiranía dos relógios e à compulsão de saber que horas são Uma regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida tempo é dinheiro Inversamente na sociedade medieval o coração da organização social e das relações de produção dependia da relação com o espaço a primeira condição do funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens ao solo sua integração com uma célula espacial restrita na qual se entrelaçam sem se sobrepor poder senhorial comunidade aldeã e quadro paroquial uma célula na qual deviam ser batizados quitar as obrigações eclesiais e senhoriais e por fim ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos ancestrais Hoje quando o lugar está em via de não ser mais percebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos quando as manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do globo estamos em via de perder esse sentido da localização Nós vivemos é verdade o paradoxo de uma globalização fragmentada que multiplica as fronteiras exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial desigual Entretanto o mercado prolonga nos domínios que o favorecem sua obra de homogeneização e de banalização espaciais iniciada no século XVIII a tal ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam por vezes a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência humana a qual não poderia existir a não ser estando aí em algum lugar No momento em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos custosa poderseia dizer que a deslocalização tornase uma característica geral do mundo contemporâneo na medida em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia seja a prisão privação de liberdade e entrada à capacidade de deslocamento localização forçada por decorrência Na Idade Média a prisão era uma pena muito acessória enquanto o banimento era ao contrário essencial Hannah Zaremska Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar o exílio era uma quase morte social pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures Nesta sociedade de honra vale mais ser um homem morto que um homem ultrajado De certo modo o exílio é pior que a morte Claude Gauvard Ao inverso do princípio de stabilitas loci o banimento constituía uma obrigação de deslocamento deslocalização forçada ou seja o exato inverso do castigo carcerário Coerção principalmente espacial de um lado coerção essencialmente temporal do outro aí está dito de modo muito esquemático uma das marcas de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo cede esse direito submetendoo entretanto à aprovação de seu bispo que termina por opor sua recusa em 1181 Excomungado Valdo prega então fora da Igreja fazendo adeptos que difundem sua palavra no Sul da França e no Norte da Itália A hostilidade das autoridades e as perseguições radicalizam suas críticas contra o clero de modo que se atribui finalmente aos valdenses concepções semelhantes àquelas que Pedro o Venerável denuncia em Pedro de Bruis Entretanto o procedimento inicial de Valdo não difere em absoluto daquele de Francisco de Assis como este ele é um laico à procura de uma vida espiritual fundada na pobreza e em um retorno sem mediação ao Evangelho No mais num primeiro momento ele é encorajado a pregar pelo arcebispo de Lyon que vê em sua mensagem de reforma uma vantagem no conflito que o opõe a seus cônegos Mas nessa época os movimentos populares que os reformadores do século anterior não deixavam de encorajar não são mais correntes A pregação com conteúdo evangélico é agora uma opção com dois gumes ela é tanto reculada pela Igreja e integrada em seu seio sem promotor tornase então um fundador venerado como rejeitada evoluindo para um radicalismo anticlerical que converte seus adeptos em hereges perseguidos No entanto a principal preocupação dos clérigos é a heresia que eles nomeiam cátara o termo deriva do grego puro mas os clérigos inventam para ele etimologias negativas das quais a principal se refere ao gato cattus animal associado ao bestiário diabólico As primeiras menções a essa heresia datam dos anos 1140 o socorro de são Bernardo é requerido em Colônia em 1143 e depois na região de Toulouse em 1145 Ao longo da segunda metade do século XII a Igreja organiza sua resposta nas três regiões em que a heresia parece mais desenvolvida o Languedoc a Itália do Norte e a Renânia Na verdade nossos conhecimentos sobre os cátaros são bastante hipotéticos e os trabalhos impulsionados por Monique Zerner incitam à mais extrema prudência Atribuise aos heréticos o esboço de uma organização estruturada falase mas a verdade do fato é discutida de uma reunião cátara em São Félix de Caraman em 1167 por ocasião da visita de um emissário oriental de nome Nicetas ou Niquinta e durante a qual teria se procedido à organização de dioceses e à ordenação de bispos Quanto às crenças dos cátaros é particularmente difícil extraílas das diatribes dos clérigos que interpretam os movimentos contemporâneos projetando sobre eles as categorias e as descrições das heresias fornecidas por santo Agostinho Uwe Brunn Não se sabe muito bem se é pertinente distinguir no seio do catarismo como se tem o costume de fazer um dualismo radical e um dualismo moderado O primeiro professaria a existência de duas divindades um Deus do bem que criou unicamente os anjos e as almas e um Deus do mal ao qual se imputa a criação do mundo material e dos corpos De tal cosmogênese decorre que estes últimos são inteiramente maléficos e não podem ser objeto de nenhuma redenção A Encarnação de Cristo é então impensável Deus não pode se encarnar pois isso seria entregarse ao mal e a salvação pode ser atingida somente pela alma de onde a negação da ressurreição dos corpos através de uma rejeição de todo contato com a matéria e ao termo de um ciclo de reencarnações concebidas como purificações progressivas Enquanto o dualismo radical nega os próprios fundamentos do cristianismo o dualismo moderado aproximase mais dele Ele parece admitir a ideia de um Deus único sendo que a criação do mundo passa a ser imputada a um anjo decaído inferior a Deus mas dotado de autonomia maior que na doutrina cristã Nos dois casos entretanto a recusa do casamento e da procriação carnal é total e a crítica à Igreja é extrema os clérigos são lobos rapaces e os sacramentos podem ser conferidos pelos laicos De fato os cátaros parecem atribuir verdadeiro valor a um só sacramento o consolamentum ritual de imposição das mãos que distingue os perfeitos que assumem uma vida totalmente pura dos simples crentes Os clérigos reagem de início pela palavra São organizadas reuniões como em Lomberes perto de Castres em 1165 ou 1176 nas quais as opiniões dos cátaros são discutidas pelos bispos de Toulouse e de Albi O arcebispo da Narbônia organiza uma controvérsia com os valdenses em 1189 que dá lugar a um tratado redigido por Bernardo de Fontcaude no mesmo momento em que aparecem outras obras refutando cátaros e valdenses A pregação também se torna mais eficaz a partir do momento em que é confiada aos cistercienses e sobretudo aos dominicanos ela tem alguns sucessos obtendo o arrependimento de vários grupos dissidentes Mas a repressão se faz igualmente sentir Após Lúcio III que acentua as sanções contra os heréticos em 1184 decretal Ad abolendam é sobretudo Inocêncio III quem elabora os instrumentos jurídicos indispensáveis a uma política repressiva vigorosa Em 1199 ele assimila a heresia a um crime de lesamajestade divina o que implica o mais extremo rigor em sua perseguição e seu castigo Durante o seu pontificado o Concilio de Latrão IV precisa o arsenal repressivo contra os hereges que devem ser excomungados assim como todos aqueles que os protegem ou têm relações com eles Por fim Gregório IX organiza os tribunais da Inquisição cujo nome deriva do procedimento inquisitório que põem em prática Como já se viu a queixa de uma vítima não é mais necessária nesse momento para abrir um processo e o juiz pode decidir por si próprio lançar uma diligência baseado em um rumor ou uma suspeita E uma vez que não há mais queixosos para justificar a diligência a obtenção de uma confissão do acusado tornase indispensável se necessário pela tortura tida como um meio legítimo para fazer aparecer a verdade É preciso ressaltar ainda que então a Inquisição não é mais que um tribunal assu Firmar que a Igreja é a instituição dominante da sociedade feudal não quer dizer que ela não se defronte com nenhuma contestação nem que seu poder seja ilimitado Ao contrário além das tensões internas que a animam a instituição eclesial afronta em sua obra de dominação hostilidades silenciosas e rebeliões abertas Convém então analisar conjuntamente o exercício sempre mais amplo de sua dominação e as resistências com as quais ela se depara Percebese que toda ordem tem necessidade de contestações e de desordens para melhor impor sua legitimidade a ponto de forjálas se não as encontra à sua altura Nesse sentido não é surpreendente que o processo de reforma da instituição eclesial e de reforço da coesão da sociedade cristã nos séculos XI e XII seja acompanhado de um ressurgimento das contestações especialmente heréticas e de uma intensificação das formas de exclusão Ordenar e excluir segundo a expressão de Dominique IognaPrat são as duas faces indissociáveis de uma mesma dinâmica As ofensivas heréticas e a reação da Igreja A heresia não existe em si e nada mais é do que aquilo que a autoridade eclesiástica definiu como tal A própria noção de heresia etimologicamente escolha só adquire sentido na medida em que a Igreja se transforma em uma instituição preocupada em fixar a doutrina que fundamenta sua organização e seu domínio sobre a sociedade O problema da heresia emergiu então apenas na medida em que a Igreja se transformou em uma instituição preocupada em definir os dogmas que baseavam sua organização e seu domínio sobre a sociedade De fato é durante o século que vai de Constantino a Agostinho que explode uma primeira crise doutrinal maior que leva à elaboração da ortodoxia trinitária e cristológica e à rejeição de um conjunto de heresias das quais a principal é o arianismo Agostinho pode então fazer uma lista de 88 heresias que servirá de reservatório de argumentos e de prisma deformador para todos os autores ulteriores que trataram da heresia Com raras exceções as heresias medievais só são conhecidas através dos textos dos clérigos que as condenam de modo que é muito difícil separar os amálgamas e os exageros ligados às necessidades da polêmica e da repressão A abordagem da heresia medieval permanece inseparável da atitude da Igreja em relação a ela No Ocidente alguns episódios isolados e de fraco alcance mas significativos pela sua concomitância indicam o ressurgimento da questão herética pouco depois do ano mil Em 1022 uma dezena de clérigos da catedral de Orleans é acusada de negar a eficácia dos sacramentos e queimada por ordem do rei da França Em 1205 uma comunidade de laicos obrigada a comparecer diante do Sínodo de Arras parece tratada com clemência pelo bispo e convencida a abandonar suas críticas contra as práticas da Igreja Por volta de 1028 no castelo de Monteforte no Piemonte um grupo de homens e de mulheres que optaram por uma forma de vida comunitária casta e penitente é interrogado pelo arcebispo de Milão e depois condenado à fogueira sob a instigação dos aristocratas da cidade A esses primeiros sintomas de contestação da instituição eclesial sucede um tempo de latência em matéria de heresia Isso se dá sem dúvida porque a partir de meados do século XI a Igreja é absorvida pelo processo de reforma e consegue integrar uma parte notável das ofensivas de evangelismo em benefício de sua luta contra a fração conservadora do clero De resto ela não hesita em caracterizar como heréticos os simoníacos os nicolaitas e todos aqueles que se opõem a ela o papado afirma sem rodeios que aquele que não reconhece as decisões da Sé Apostólica deve ser tido por herege Nos anos 112040 o ressurgimento herético e a reação da Igreja tomam formas e proporções novas O primeiro testemunho notável é o tratado de Pedro o Venerável redigido em 113940 contra o herético Pedro de Bruis e seus discípulos Dominique IognaPrat Originário dos Alpes ocidentais este parece ter pregado na Provença nos anos 1120 profanando as igrejas e queimando cruzes até morrer queimado na fogueira de cruzes que ele próprio havia acendido perto da abadia de SaintGilles du Gard Pedro o Venerável atribuilhe assim como a seu comparsa Henrique de Lausanne iniciador de uma insurreição em Mans em 1116 cinco teses heréticas a recusa do batismo das crianças pelo motivo de que é preciso ser capaz de crer para ser salvo a rejeição aos lugares de culto consagrados pois a igreja é comunidade dos fiéis e não os muros que a abrigam o menosprezo pela cruz tida por um instrumento de tortura a impossibilidade de reiterar o sacrifício eucarístico sendo a missa apenas um símbolo a inutilidade da liturgia funerária e das preces para os mortos já que estes estão salvos ou condenados desde o seu traspasse diz Henrique Tantas práticas que uma referência exclusiva e literal ao Evangelho seria suficiente para pôr em causa mas que são transformadas em fundamentos da instituição eclesial e muito particularmente de sua ponta de lança cluniacense Mais importante ainda por seu impacto durável é a figura de Pedro Valdès ou Valdo um mercador de Lyon que se converte em 1174 abandona seus bens faz traduzir a Bíblia e decide pregar segundo o Evangelho O papa lhe con mido por um bispo ou confiado a frades mendicantes dotado de meios limitados e que funciona nas ações antiheréticas levadas a cabo até o início do século xiv com relativa moderação Tratase sobretudo de obter uma confissão e uma retratação que permite ao acusado ser reintegrado à comunidade eclesial após a satisfação de uma penitência é somente em caso de obstinação ou de recidiva que ele é entregue ao braço secular para ser castigado Estáse ainda longe da Inquisição dos Reis Católicos transformada em um órgão da monarquia e daquela da época moderna engajada em um processo de exterminação maciça de feiticeiros e feiticeiras A Idade Média apenas lançou as bases de um princípio repressivo do qual o Renascimento e os Tempos Modernos se encarregarão de tirar todas as consequências A ofensiva militar contra os cátaros é igualmente uma iniciativa de Inocêncio iii Após diversas manobras infrutíferas o assassinato de Pedro de Castelnau legado pontifício provoca o apelo à cruzada contra os albigenses Os nobres do norte do reino que responderam a ele formam fileiras sob as ordens de um deles Simão de Montfort e a cruzada começa em 1209 com o saque de Béziers talvez 20 mil mortos uma carnificina em meio à qual o legado do papa teria pronunciado esta frase cuja autenticidade é discutida Mataios todos Deus reconhecerá os seus Os castelos controlados pelos cátaros ou que os protegi am são destruídos até o último Montségur que cai em 1229 O Tratado de Paris celebra então o esmagamento dos heréticos e consagra o domínio da autoridade real sobre o Sudoeste da França A heresia se apaga mesmo se ela se mantém sob formas parcialmente atenuadas nas regiões montanhosas tais como os Pireneus onde o bispo de Pamiers Jacques Fournier a desembosca ainda na aldeia de Montaillou no início do século xiv Emmanuel Le Roy Ladurie As heresias cátara e valdense cujos perigos a Igreja e o rei da França tinham provavelmente interesse em amplificar e cujos adeptos jamais foram muitos numerosos raramente mais que 5 da população das cidades do Languedoc deixaram então de ser uma preocupação séria No geral podese com algum artifício distinguir diferentes fases nas manifestações heréticas De início elas são uma expressão do evangelismo dos laicos desejosos de um retorno à simplicidade e à pobreza das origens do cristianismo o que é apenas uma maneira mais ou menos forte de criticar o que a instituição eclesial se tornou principalmente na sequência das transformações dos séculos xi e xii Mas o evangelismo de resto presente nas temáticas dos reformadores gregorianos desemboca facilmente se ele se radicaliza um pouco em um questionamento da mediação clerical Chegase assim à crítica dos sacramentos ou mais exatamente de uma concepção que liga sua eficácia aos gestos realizados pelo sacerdote e não à participação dos fiéis das práticas litúrgicas relativamente recentes a liturgia dos mortos e dos lugares e objetos nos quais se encarna a instituição igrejas cemitérios imagens e cruzes O aguilhão parcialmente assimilável do evangelismo tornase então uma crítica frontal e é todo o edifício construído pelo clero que é desse modo posto em causa tanto sua pretensão a ser o mediador obrigatório para a salvação como suas intervenções estratégicas na organização social Enfim uma terceira fase ilustrada somente pelo catarismo radical consistiria de uma negação da doutrina fundamental defendida pela Igreja mito da Gênese Encarnação de Cristo ressurreição final dos corpos Mas ele teve realmente adeptos no Ocidente Temos alguns motivos para pensar que essa perspectiva foi exagerada sob o efeito da lógica do amálgama polêmico e de um olhar clerical convencido de encontrar a verdade e a coerência de todas as heresias em Agostinho Seja como for é sem dúvida o evangelismo radicalizado até a crítica dos sacramentos e o anticlericalismo levado até a recusa da mediação sacerdotal que constituem o pivô das atitudes dissidentes e o perigo maior contra o qual a Igreja teve de reagir atribuindo a seus adversários se necessário as concepções mais aptas a desqualificálos Não haveria nenhum sentido em se perguntar como quer um velho tema historiográfico se as heresias constituem um fenômeno social ou um fato religioso Seria igualmente absurdo negar que se trata de um fenômeno social sob o pretexto de que o catarismo se expandiu finalmente em todos os meios mas ao menos em sua fase crítica ele é sobretudo característico de uma parte das elites urbanas aristocráticas e mercantis É necessário com efeito lembrar que a Igreja é na Idade Média a própria forma de organização social e a instituição que a domina Atacar a Igreja e solapar os fundamentos de sua posição como fazem as correntes heréticas é uma questão que não é nem social nem religiosa porque ela é indissociavelmente social e religiosa Atingindo sua intensidade máxima aproximadamente entre 1140 e 1250 o fenômeno dito herético a um só tempo dissidência real e construção dos clérigos pode ser tido por uma consequência da reformulação da instituição eclesial e da sociedade feudal ao longo do século anterior As temáticas evangélicas estavam presentes no próprio seio do projeto reformador e o papado não hesitou em dirigir o povo contra a fração julgada corrompida do clero contribuindo sem dúvida para excitar o anticlericalismo popular Sobretudo a reforma conduziu a uma reafirmação da autoridade sagrada e dos privilégios dos clérigos a uma subordinação crescente dos laicos postos à margem dos negócios da Igreja e tornados os objetos passivos de uma eficácia sacramental inteiramente manipulada pelos sacerdotes O anticlericalismo laico só podia encontrarse exacerbado sob suas formas decretadas heréticas ou somente rebeldes como no caso A CIVILIZAÇAO FEUDAL 227 226 Jérôme Baschet de Arnaldo de Brescia que pregando contra o clero e suas riquezas levanta as massas romanas contra o papa e os cardeais em 1145 Assim as dissidências qualificadas de heréticas aparecem como formas de resistência laica em face da acentuação do poder sacerdotal e da posição incessantemente mais dominadora da instituição eclesial As superstições e a cultura folclórica Os clérigos não devem apenas afrontar a contestação aberta dos hereges As práticas de numerosos fiéis que a Igreja não expele para fora dos quadros da ortodoxia fornecem igualmente algumas preocupações É necessário quando elas são julgadas inconvenientes ou desviantes eliminálas como a gramínea que pode estragar o cereal É uma tarefa certamente muito mais complexa que a aniquilação dos focos heréticos relativamente circunscritos No mais uma vez que a vitória foi assegurada nas heresias ela mantém os clérigos ocupados por um tempo maior em particular os inquisidores Como qualificar essas práticas e crenças A noção de religião popular foi objeto de diversas críticas e seria mais satisfatório evocar uma cultura folclórica mesmo se ela não constituía um conjunto coerente e autônomo e sabendo que essa expressão engloba práticas diversas relativas ao mundo camponês e à aristocracia aos meios urbanos mas também à parte menos instruída do baixo clero Michel Lauwers De fato o que dá à cultura folclórica uma unidade suscetível de justificar esta noção é a distância que a separa da cultura clerical ainda que se trate menos de uma confrontação dual do que de múltiplas interações complexas entre realidades múltiplas Talvez fosse melhor então conceber a cultura folclórica como um polo dominado o que não quer dizer necessariamente passivo ou desprovido de criatividade no campo das representações sociais no seio do qual a cultura clerical ocupa uma posição tão hegemônica que pretende ocupálo ou controlálo inteiramente Assim para delimitar as práticas e as crenças aqui evocadas não é sem pertinência como propôs JeanClaude Schmitt recorrer ao termo pelo qual os clérigos medievais as designavam superstições Para a Igreja este termo é ao mesmo tempo uma explicação dos fenômenos que convém expurgar são sobrevivências do paganismo segundo o próprio sentido do latim superstitio e uma condenação são inspiradas pelo diabo Retomar esta palavra dotada de uma pesada carga depreciativa não deveria significar que se adira ao ponto de vista da Igreja Sua vantagem para nós é de lembrar que as práticas e as crenças evocadas aqui não são dissociáveis do olhar reprovador que a Igreja lança sobre elas e que esta em seu empreendimento de dominação batalha sempre na frente das sobrevivências e dos erros que pretende fazer recuar O cristianismo foi confrontado a paganismos bem reais ao longo da evangelização do Ocidente estendida tardiamente para suas margens orientais e nórdicas Praticado em larga escala a destruição dos templos e lugares de culto pagãos certamente não fez desaparecer em um dia práticas como a veneração das árvores sagradas e os ritos que podiam lhes estar associados Ainda em 1002 o Corrector do bispo Buchard de Worms estabelece um quadro de numerosas práticas condenáveis rituais de proteção culto dos astros crença nos lobisomens rituais de fecundidade etc Mas a continuidade com o paganismo já parecia cada vez mais duvidosa e é doravante na relação com a realidade cristã contemporânea que convém interpretar tais práticas E se o século xii pôde ser considerado um momento privilegiado de interação permitindo que numerosas concepções folclóricas aflorassem inclusive nos textos clericais o estabelecimento durante o século xiii de novos instrumentos como a confissão e a Inquisição relança a perseguição às superstições fazendo com que os clérigos especialmente os frades mendicantes entrevejam a amplitude da tarefa que lhes cabe Um exemplo que se tornou paradigmático pelo estudo de JeanClaude Schmitt é aquele de Guineforte o santo cão de caça cujo culto é descoberto pelo dominicano Estevão de Bourbon não longe de Lyon onde ele oficia como pregador e inquisidor Segundo a lenda que Estevão recolhe junto aos habitantes do lugar o cão teria sido injustamente morto pelo seu dono logo após ter acabado de salvar um recémnascido dos ataques de uma serpente sendo depois enterrado com remorsos até se tornar objeto de veneração sob o nome de Guineforte por um processo complexo de assimilação com um mártir romano do século iii O culto deste santo verdadeiramente muito especial consiste em expor as crianças fracas ou doentes perto de sua tumba situada na floresta Reputados serem changelins criaturas que o diabo deixa após ter se apoderado das verdadeiras crianças22 eles são expostos sós entre velas e oferendas sendo depois mergulhados no riacho gelado Ao termo desse rito de seleção os que resistiram são reintegrados à comunidade segura de ter obtido graças ao santo cão a cura e o fim do malefício diabólico Horrorizado pela prática dessas mães infanticidas o dominicano procede à destruição da tumba e do sítio ritual exorta os fiéis a abandonarem tal superstição e inflige penas moderadas como a confiscação dos bens de certos adeptos do culto o que não impedirá que ele seja ainda atestado sob formas atenuadas no início do século xx Entretanto o conjunto bastante coerente do rito e do mito descobertos por Estevão de Bourbon não remonta absolutamente a uma religiosidade imemorial 22 Daí a designação desses seres fabulosos ser formada a partir do verbo changer trocar mudar substituir N T A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 229 228 Jérôme Baschet e é provável que ele tenha se constituído no decorrer do século xii em conformidade com as necessidades das comunidades rurais então em formação Um outro conjunto importante testemunha a preocupação camponesa com a fertilidade e a suficiência de alimentos O teólogo Guilherme de Auvergne menciona a crença em um espírito feminino denominado Senhora Abundia que traz a abundância às casas que ela visita desde que seja aí bem acolhida e que tenham sido dispostos para ela alimentos e bebidas suficientes Um pouco mais tarde por volta de 1275 o Romance da Rosa de João de Meung ataca aqueles que dizem ser levados em um voo noturno com Senhora Abundia enquanto outros testemunhos associam crenças comparáveis à atividade de espíritos denominados Boas Coisas Expressão de uma mesma preocupação o ritual nupcial que consiste em jogar grãos de trigo sobre os esposos gritando Abundância Abundância é descrito e condenado por Jacques de Vitry Podese então perceber através de uma série de testemunhos pontuais a existência de um conjunto de crenças e de rituais destinados a captar a benevolência de forças positivas a fim de assegurar a boa marcha da vida camponesa e sobretudo a fertilidade e a renovação anual dos produtos da terra São igualmente rituais de fertilidade bastante bem estruturados que os registros da Inquisição permitem ver no Frioul do século xvi Carlo Ginzburg Aos bênandanti homens investidos de poderes excepcionais de tipo xamanístico são reputadas viagens espirituais ao outro mundo em momentos precisos do ciclo agrário Lá lutam contra os espíritos hostis e assistem ao desfile das almas dos mortos cujas forças devem ser captadas a fim de assegurar à comunidade dos vivos as benesses e a fertilidade de que ela tem necessidade Sob uma forma ou outra é provável que os rituais camponeses de fertilidade tenham tido grande importância nas zonas rurais do Ocidente feudal em particular no momento dos solstícios pontos capitais do ciclo solar calendas de janeiro e São João Sem dúvida também não cessaram de se transformar de se deslocar e de se recompor especialmente em função da reorganização senhorial e comunitária dos campos e sob o efeito da pressão da Igreja Dispondo de instrumentos de controle mais eficazes esta consegue a partir do século xiii perseguilos metodicamente lançandoos cada vez mais no domínio das superstições e logo começando a demonizálos As margens e a subversão integrada dos valores O poderio da instituição eclesial é tal que ela parece na maior parte do tempo capaz de controlar a zona fronteiriça onde se entrechocam a ordem normal das coisas e as desordens da subversão ou mesmo de integrála ao funcionamento regular da sociedade O Carnaval é o exemplo mais claro disso Mais do que uma repetição das festas pagãs podese ver nele uma inovação da cidade medieval principalmente a partir do século xii JeanClaude Schmitt Com efeito ele permanece totalmente integrado ao ciclo do ano cristão e é impossível captar seu significado sem partir da tensão estabelecida entre o Carnaval e a Quaresma da qual a Igreja reforça progressivamente a importância especialmente estabelecendo a partir do século ix quarenta dias de jejum contínuo antes da Páscoa O próprio nome dado ao Carnaval derivado sem dúvida de carne vale ou carne levare defineo como o tempo antes da Quaresma durante o qual ainda é lícito comer carne Mais amplamente ele é um tempo de transgressão autorizada e de liberação dos impulsos antes da retenção penitencial da Quaresma ele só tem legitimidade porque precede a ela e exalta por contraste sua significação É nesse quadro que a oposição paganismocristianismo pode se integrar à análise do Carnaval não porque este seria efetivamente uma reminiscência das saturnais ou das lupercais pagãs mas na medida em que ele explora figuras ou imagens associadas ao paganismo para pôr em cena esse momento de inversão de valores e de liberação de forças diabólicas sobre as quais o cristianismo finalmente triunfa Os transbordamentos festivos e notadamente os prazeres da gula e da luxúria são assim destinados a preparar e a reforçar a vitória ulterior da penitência e da ordem cristãs Enfim o Carnaval possui um outro aspecto essencial ligado ao calendário festa de primavera ele corresponde ao momento da saída do urso após sua longa hibernação e marca o fim do inverno nas concepções camponesas As forças da fertilidade devem então acordar para se pôr em ação e o Carnaval pelo seu transbordamento de energias sexuais e festivas é uma maneira de chamar essas forças vitais a exercerem o seu papel fecundador Além disso as máscaras que têm um papel central no Carnaval assim como no charivari figura 22 na p 232 são certamente uma materialização dos espíritos dos mortos dotados do poder de influenciar positiva ou negativamente o curso das potências naturais e que convêm acolher a fim de assegurar sua ação benévolente O Carnaval integra então uma preocupação com a fertilidade e os ciclos naturais que interessa particularmente aos aldeãos mas também o conjunto das populações inclusive urbanas de um mundo estreitamente ligado aos ritmos da produção agrária Aceito esse momento de inversão generalizada dos valores o Carnaval dura apenas um tempo limitado e bem circunscrito antes que seja reestabelecido o curso normal das coisas sob a forma acentuada das privações da Quaresma Ele é então uma escapatória que permite integrar as forças da desordem na organização e na estabilização da ordem social Podese dizer o mesmo da Festa dos Loucos que embora recupere alguns aspectos dos ritos das calendas de janeiro A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 231 230 Jérôme Baschet 22 Danças e máscaras do charivari c 1318 Romance de Fauvel Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 146 fl 34 O ritual do charivari se desenvolve no início do século XIV apesar da firme oposição da Igreja Através de danças em que se misturam gozões e algazarra a comunidade urbana ou aldeã manifesta sua oposição a um casamento que lesa seus interesses ou afronta suas tradições casamento de uma viúva ou de um viúvo casamento de um homem idoso com uma mulher jovem ausência de festividades públicas etc A miniatura mostra as posturas agitadas dos dançadores que podem chegar até a desnudar os seus traseiros ela permite escutar a gritaria do charivari tambores sinos címbalos pratos e outros instrumentos de cozinha Vários personagens têm máscaras de animais ou figuras com caretas quando não se trata de uma fantasia completa do corpo Assim como durante o Carnaval é provável que as máscaras do charivari estejam ligadas aos espíritos dos mortos também eles protestam contra um casamento que transgride os costumes talvez seja este o caso particularmente do cônjuge defunto 23 Encontro amoroso nas margens de um livro de horas iluminado em Gand c 132030 Bodleian Library Oxford ms Douce 6 fl 160 v Como muitos manuscritos dos séculos XII e XIV geralmente destinados à aristocracia as ilustrações das margens contrastam fortemente com o texto Aqui este último indica as preces que os laicos devotos devem recitar a cada uma das horas canônicas que dão ritmo ao dia enquanto a cena da margem mostra sem pudor o leito onde se unem dois amantes Michael Camille sugeriu uma ligação possível com o primeiro verso desta página que evoca as portas do inferno ad portas inferi e que o iluminador teria parodiado em metáfora sexual Seja como for falta dar conta desta coabitação desconcertante entre a exigência de uma piedosa recitação e uma imaginação ao contrário mundana co faz curiosamente alusão à Virgem com o Menino As margens parecem ser também o lugar privilegiado da expressão do baixo corpo caro a Mikhaïl Bakhtin sob as espirituais preces das horas canônicas podese ver um personagem defecando e oferecendo à sua amada o resultado de seus esforços ou ainda outras cenas com conteúdo sexual alusivo ou explícito Nos edifícios religiosos as gárgulas e as partes altas multiplicam as criaturas monstruosas e diabólicas ao passo que os modilhões são ornados de um homem ou uma mulher exibindo órgãos genitais desproporcionais quando não se trata de um casal em pleno coito No coro das igrejas as estalas onde se sentam os cônegos são muitas vezes decoradas com cenas de que se encontra por vezes o eco nos fabliaux dos trovadores e nas quais a obscenidade e a virulência das relações entre os sexos são cruelmente mostradas Dessa vez não se trata mais de imagens marginais pois elas se encontram no centro do edifício na parte reservada aos clérigos Mas essas decorações só são visíveis quando as cadeiras estão desocupadas quando os cônegos se reúnem as cadeiras giram e as esculturas desaparecem sob seus traseiros Um modo de dizer que o clero sabe dominar as trivialidades do mundo laico Todas essas representações em particular as surpreendentes margens dos manuscritos de devoção não podem ser entendidas sem levar em conta o valor do lugar preciso em que elas aparecem Com efeito uma tensão é estabelecida entre o centro valorizado do edifício ou do manuscrito e as margens locais secundários e depreciados A exuberância desrespeitosa das margens pode então desenvolverse porque ela aparece em posição de inferioridade e em dependência hierárquica em relação às imagens principais o que está em conformidade com os valores clericais Entretanto a despeito do ordenamento que essa dialética do centro e da periferia assegura a capacidade de juntar em uma mesma página o sagrado e o profano não deixa de intrigar nosso olhar atual No entanto é necessário ver nisso menos uma mistura do sagrado e do profano que um estabelecimento de contato visando criar tensão entre eles como entre os dois polos de uma pilha Entre os séculos XII e XV a Igreja assume embora com reticência cada vez maior os riscos de tal procedimento Quer se trate do Carnaval ou das imagens marginais ela admite no seio da ordem que controla a possibilidade de sua inversão regulamentada quer dizer limitada a um tempo breve ou a uma localização pouco valorizada A Idade Média é o tempo dessas junções do sagrado e do profano assumidas ainda que perigosas pois a polarização hierárquica pode sempre se degradar em uma mistura indevida É assim que se pode evocar uma cultura da ambiguidade aceitando pôr os contrários em contato e que é então partilhada pelos laicos e pelos clérigos Bruno Roy No século XIII o distanciamento acentuase e o Concílio de Latrão IV prescreve o uso de vestimentas distintivas para os judeus justificadas principalmente pela necessidade de evitar que os cristãos fossem induzidos por ignorância a uniões carnais ilícitas O esforço para converter os judeus redobra especialmente sob o impulso de Raimundo de Peñafort Organizamse disputas públicas como em Barcelona em 1263 enquanto os judeus são obrigados a escutar sermões pronunciados por pregadores cristãos em suas sinagogas As atitudes de segregação e a violência antijudaica acentuamse ainda mais durante o século XIV Quando são acusados de ter causado a peste de 1348 envenenando os poços é a ideia de um complô generalizado contra a cristandade que ganha forma e se compreende que logo apareçam os primeiros pogroms23 tais como aqueles de 1391 em Castela e em Aragão A expulsão definitiva dos judeus decidida pelos Reis Católicos em 1492 logo seguida por outros soberanos é o resultado de um processo de exclusão crescente ao final do qual a população judaica se torna apenas residual na Europa Ocidental Durante muito tempo considerouse que a Idade Média conheceu apenas o antijudaísmo que se aplicava aos judeus como assassinos do Cristo e cegos à verdadeira fé diferentemente do antissemitismo moderno ideologia laica fundada sobre um critério racial Ao que tudo indica a Idade Média ignora a noção de raça tal qual ela é formada no século XIX e é antes a constituição da cristandade como totalidade unificada que leva então à rejeição dos judeus enquanto não cristãos e não como povo julgado inferior De fato uma conversão ao cristianismo torna possível sua integração social mesmo se permanece sempre algo da antiga condição que a conversão não chega jamais a abolir completamente JeanClaude Schmitt De fato este traço indelével pesa cada vez mais até que a obsessão da pureza de sangue limpieza de sangre na Espanha moderna conduz à perseguição dos judeus convertidos e de seus descendentes conversos Entretanto se a distinção entre antijudaísmo e antissemitismo é útil é necessário admitir sem dúvida que a Idade Média avançou além do que geralmente se reconhece sem entretanto chegar a elaborar uma teoria antissemita articulada Dominique IognaPrat Desde o século XII Pedro o Venerável cuja virulência certamente não é partilhada por todos os clérigos de seu tempo perguntase é verdade que de modo parcialmente retórico se os judeus da época atormentados pelas aberrações do Talmude são realmente homens ou bestas que perderam todo acesso à verdade original de sua própria fé Ao mesmo tempo os adversários do papa Anacleto II um dos dois eleitos no cisma de 1130 fusti23 Termo de origem russa cuja tradução literal é destruir inteiramente que indica um movimento popular de violência contra os judeus N T 238 Jérôme Baschet gam este papa judeu como se a conversão de seu bisavó não tivesse sido suficiente para apagar a mancha de suas origens Logo são atribuídos aos judeus traços físicos específicos feiura e nariz recurvado que as imagens não deixam de representar figura 43 na p 437 e alguns autores não hesitam em afirmar que eles têm menstruação como as mulheres No geral a exclusão crescente dos judeus aparece como uma consequência da afirmação da cristandade e de sua ordenação sob a dominação da Igreja acessoriamente e de maneira ainda não sistemática o processo que os proscreve da sociedade cristã lhes confere traços que tendem a negar que pertencam à verdadeira humanidade encarnada por Cristo e seus fiéis Com maior violência ainda do que contra os judeus a cristandade logo se engaja em uma luta mortífera contra a feitiçaria Como já se disse a caça às bruxas é um fenômeno essencialmente moderno e será evocada então apenas a sua lenta gênese medieval A feitiçaria da qual é questão aqui é na verdade uma concentração de elementos diversos cujo estereótipo é forjado pela instituição eclesial Podese distinguir seus componentes e indicar as etapas de sua conjunção Desde a época de Agostinho os clérigos condenam as práticas destinadas a dirigir as forças sobrenaturais com o intuito de provocar doença ou impotência de atrair tempestades que destruam as colheitas ou de prejudicar o gado Ao longo de toda a Idade Média atos de magia tais como sortilégios encantamentos amarrações ou feitiços com imagens são bem atestados mas aqueles que os praticam nas zonas rurais são tanto curandeiros e desfazedores de feitiços como feiticeiros ocupados em lançar malefícios sobre suas vítimas Há aí um conjunto de práticas que visam prever o futuro dispensar cuidados especialmente pelo uso de plantas ou ainda proteger animais e colheitas que a Igreja recusa considerar positivamente e que são assim remetidas para o campo da magia fora do sagrado eclesiástico Não se trata unicamente de atitudes populares pois a adivinhação ou a evocação dos espíritos são também até os últimos séculos da Idade Média obra de letrados em geral de clérigos e por vezes mesmo de universitários JeanPatrice Boudet Em segundo lugar as práticas folclóricas consideradas inaceitáveis pela Igreja tendem a ser igualmente integradas ao estereótipo da feitiçaria É o caso da crença no voo noturno na companhia da Senhora Abundia de Diana ou de outros espíritos ou ainda dos ritos xamanísticos dos quais Carlo Ginzburg delimitou para além do exemplo dos benandanti as manifestações no conjunto do continente eurasíatico cujo coração seria a viagem extática para o mundo dos mortos e o combate pela fertilidade No entanto nada disso teria sido suficiente para criar a imagem do sabá dos feiticeiros Isso é tão verdadeiro que de início a Igreja adota uma atitude prudente em relação às crenças mágicas No início do século X o cânone A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 239 Episcopi retomado ainda no Decreto de Graciano considera que aqueles que se entregam à evocação dos espíritos maléficos são os ludibriados por ilusões provocadas pelo diabo e que a crença no voo noturno nada mais é que uma fantasia que o Maligno incute nos sonhos em cuja realidade os indivíduos creem erroneamente quando acordam Mágicos e feiticeiros são então vítimas a quem convém ajudar para que abandonem suas falsas crenças mais do que perigosos servidores de Satã que seria preciso eliminar Depois a atitude da Igreja começa a mudar no contexto da luta contra as heresias no século XII e sobretudo no século XIII Multiplicamse então as narrativas que demonizam os hereges e que serão mais tarde aplicadas aos feiticeiros Os clérigos começam a afirmar que o diabo preside às reuniões dos hereges e até mesmo que estes consideram Lúcifer o verdadeiro deus injustamente expulso do céu bula Vox in rama de Gregório IX de 1233 Pouco a pouco os hereges são transformados pela Igreja em seitas de adoradores do diabo Norman Cohn Paralelamente para lutar contra a heresia estabelecese o dispositivo repressivo Inquisição procedimento inquisitório tortura que terá um papel determinante no estopim e na ampliação da caça às bruxas O deslocamento da repressão da heresia para a feitiçaria é de resto preparado desde 1258 quando o papa Alexandre IV confia aos inquisidores o cuidado de se interessar igualmente por sortilégios e adivinhações que tenham ares de heresia Ao mesmo tempo os teólogos do século XIII definem com maior precisão o controle das potências maléficas e Tomás de Aquino estabelece a noção de pacto voluntário com o diabo que será em seguida aplicada aos feiticeiros Duas etapas ulteriores podem ser evocadas No primeiro quartel do século XIV aparece uma série de casos judiciários de caráter eminentemente político nos quais intervêm acusações de magia e de malefício processo póstumo contra Bonifácio VIII sob instigação do rei Filipe o Belo acusação de Guichardo bispo de Troyes condenação dos Templários e supressão de sua ordem Outros processos ocorrem ao longo do século salvo durante os anos 134070 mas o fenômeno conserva uma amplitude limitada e as acusações permanecem circunscritas ao malefício lançado contra uma outra pessoa Depois os anos 1430 são marcados por várias transformações substanciais e pelo início de uma verdadeira perseguição de que as regiões alpinas são o epicentro Aparece então pela primeira vez a ideia de que os feiticeiros não agem isoladamente mas formam uma seita que prepara um complô para destruir a cristandade assim sobre eles são transferidas as acusações lançadas contra os leprosos especialmente em 1321 e contra os judeus notadamente em 1348 Os primeiros tratados especificamente consagrados à feitiçaria são então redigidos tal como o Formicarius do dominicano João Nider de 1437 em que aparecem os temas do assassinato 240 Jérôme Baschet 24 Uma cena do sabá dos feiticeiros e feiticeiras c 1460 Johannes Tinctoris Tratado do crime de Vauderie Biblioteca Real Bruxelas ms 11209 fl 3 Muitos manuscritos do tratado de Johannes Tinctoris teólogo que escreve em Tournai por volta de 1460 foram iluminados para altos personagens da corte de Borgonha Nele encontramse as primeiras representações iconográficas do sabá e de seu imaginário delirante ao mesmo tempo que feiticeiros e feiticeiras voam montados em criaturas monstruosas para chegar ao local da cerimônia a cena principal mostra a adoração de Satã sob a forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus ritual das crianças e do canibalismo nas reuniões de feiticeiros a obra contribui para assentar uma visão claramente feminina da feitiçaria enquanto nas primeiras fases as perseguições visam quase igualmente a homens e mulheres Deslocase então da queixa de malefício para a acusação de pacto e de adoração do diabo Doravante o estereótipo da feitiçaria é corrente atribuise a feiticeiros e feiticeiras a prática do voo noturno para participar de reuniões secretas que são nomeadas sinagogas até que o termo saiba vinha a se impor utilizado pela primeira vez por Petrus Mamor por volta de 1490 nelas eles adoram Satã presente sob a forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus entregamse a orgias e queimam crianças das quais eles consomem as cinzas figura 24 na p 241 A interpretação tradicional do cânone Episcopi é então completamente aniquilada Assim segundo o Martelo das feiticeiras dos dominicanos Jabobus Sprenger e Henricus Insistor 1486 verdadeira suma na matéria de feitiçaria que a imprensa transforma em bestseller o voo noturno e todos os atos imundos do sabá não têm nada de ilusão são realidades que exprimem o verdadeiro poder do diabo e que então exigem os mais severos castigos A evolução no decorrer da Idade Média é clara Certa de estar sendo perseguida por uma seita de cúmplices de Satã a Igreja tende finalmente a crer na realidade do que ela antes considerava va ilusão diabólica Ela forja então o conceito cumulativo de feitiçaria Brian Levack através de um amálgama entre práticas mágicas e divinatórias tais como o malefício superstições cobrindo sem dúvida ritos xamanísticos de fertilidade acusações anteriormente aplicadas aos hereges e enfim o fantasma do sabá como ritual de adoração do diabo Diante de uma ameaça tão absoluta todas as autoridades da cristandade são convidadas a reagir com vigor e a luta contra a feitiçaria dá lugar em breve a uma competição de zelo repressivo a uma escalada de ortodoxia entre a Igreja as monarquias e os poderes locais JeanPatrice Boudet E se a Idade Média apenas começa a dar corpo a essa obsessão enviando para a morte algumas centenas de feiticeiros tudo já está estabelecido para a perseguição em grande escala que a modernidade dos séculos XVI e XVII exibirá 40 mil vítimas de acordo com as estimativas mais moderadas Em direção à sociedade de perseguição No geral em todos os domínios evocados a atitude da Igreja se faz cada vez mais excludente e repressiva Isso foi constatado em relação aos hereges às superstições e às formas integradas de expressão dos valores de oposição aos judeus e mais tarde aos feiticeiros e seria possível dizer o mesmo de outros grupos marginas e discriminados tais como os leprosos e os homossexuais É por isso que reunindo o conjunto desses fenômenos e reparando neles o efeito de uma lógica única Robert Moore pôde ressaltar a formação de uma sociedade de perseguição na Europa a partir dos séculos XI a XIII Por vezes também se apresentou esse processo como um aumento da intolerância mas é preciso assinalar que o par tolerânciaintolerância do qual é verdade temos dificuldade de escapar é uma armadilha Com efeito mesmo em sua fase menos repressiva a Idade Média não poderia dar lugar a uma verdadeira tolerância entendida como aceitação das diferenças e pleno reconhecimento da alteridade No melhor dos casos ela pode tolerar o outro no sentido em que ela suporta sua presença sob a condição de que sua submissão seja clara e mais frequentemente para poder se vangloriar de ter triunfado sobre o mal que ele representa Entretanto é preciso marcar a diferença entre uma situação inicial que se degrada pouco a pouco e os picos de fúria repressiva e de obsessão de pureza atingidos durante a época moderna se se compara é tentador evocar uma relativa tolerância da Idade Média Mas os séculos medievais devem este traço ao fato de que eles não foram até o limite da lógica que os anima de que eles ainda não esquadrinharam totalmente o campo das realidades a serem excluídas e dão provas por consequência de uma certa maleabilidade notadamente por sua capacidade de assumir situações em que o bem e o mal embora separados estejam em contato um com o outro A presença conjunta e separada do espiritual e do material ou de outros pares de oposição permanece aceitável e mesmo utilmente explorável durante a Idade Média enquanto a época moderna preferirá proceder a uma dissociação ainda mais radical e se preocupará em preservar com um zelo infalível a absoluta pureza dos valores e dos lugares positivos Mas o essencial é sem dúvida associar a formação da sociedade de perseguição à dominação incessantemente mais marcada da instituição eclesial O fato de que os processos analisados começam a se manifestar no momento da reforma gregoriana da Igreja e das primeiras cruzadas autoriza a estabelecer uma ligação entre institucionalização e exclusão A estruturação da cristandade pensada como uma comunidade homogênea sob a direção de uma instituição eclesial reforçada produz com efeito um duplo movimento de integração para os fiéis ajustados e de exclusão para os não cristãos e os desviantes Dominique IognaPrat A constituição ocidental da sociedade de perseguição é então um fenômeno cuja origem é possível situar nos séculos XI e XII e que se amplia regularmente do século XIII ao século XV e mesmo além A institucionalização cria a exclusão e é a própria Igreja que molda os inimigos sobre os quais ela se dá por tarefa triunfar Por consequência deveria ser possível medir o poderio da instituição eclesial ou ao menos o seu desejo de poderio e seus esforços para A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 243 constitui a fonte de todo poder na Igreja Já encorajada por Inocêncio III encontrase uma clara expressão sua no liturgista Guilherme Durand 1296 o papa dirige dispõe e julga todas as coisas ele pode suprimir todo direito e governar acima do direito ele próprio está acima de tudo e tem na terra a plenitude do poder Estamos longe do modelo legado por Gelásio I 49296 que estabelece uma partilha equilibrada entre a autoridade dos clérigos que se sobrepõe em matéria espiritual e o poder dos laicos que se impõe na esfera temporal Mas isso quer dizer que agora todos os poderes temporais concernem ao menos indiretamente ao papa A questão continuou a ser debatida sendo objeto de diversas formulações moderadas ou radicais É verdade que Gregório VII afirma que os sacerdotes de Cristo devem ser considerados os pais e senhores dos reis príncipes e de todos os fiéis e é provável que ele sonhasse em restabelecer a velha unidade do poder temporal e do poder espiritual mas dessa vez em proveito do papa e não do imperador Girolamo Arnaldi Ele afirmava de resto nos Dictatus papae que apenas o papa tinha o direito de uso das insígnias imperiais tendência que um texto dos anos 1160 a Summa perusina amplifica ainda mais enfatizando a O papa é o verdadeiro imperador Esta pretensão a um papado imperial plena realização na terra do poder real de Cristo nem sempre é apenas teoria Assim quando ele proclama a cruzada em 1095 Urbano II usurpa manifestamente uma prerrogativa imperial e põe o papa de modo duradouro na posição de guia da cristandade em um domínio que deveria ser próprio da competência do imperador Mas no geral a cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma teocracia na qual a Igreja detería efetivamente a soberania nos negócios temporais As afirmações mais combativas sem dúvida visavam menos a ser inteiramente postas em prática do que a consolidar o essencial a proeminência da monarquia pontifícia sobre todos os outros poderes do Ocidente e o reconhecimento do papa como guia da cristandade Ao término dos processos descritos aqui o caráter dominante da instituição eclesial está mais marcado do que nunca Esta é reformada sob a autoridade absoluta e centralizadora do papado e a dominação dos clérigos sobre os laicos é fortalecida graças a uma separação hierárquica cada vez mais vigorosa entre uma casta sacralizada e o comum dos fiéis Essa reorganização é acompanhada por numerosas transformações que afastam a cristandade ocidental de suas origens por exemplo no que concerne à associação de Constantino entre a Igreja e o Império e que não acontecem no Oriente bizantino O cisma de 1054 consumado precisamente durante o pontificado de Leão IX acompanha muito logicamente o momento em que a forma ocidental da Igreja cristã se desenha em toda a sua clareza 15 O mosteiro românico de San Pere de Roda Catalunha século XI Consagrada em 1022 a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambulatório s e sua nave terminada na segunda metade do mesmo século não é menos audaciosa Do exterior distinguemse a igreja abacial e seu campanário a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório duas outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges O mosteiro apresentase como uma cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta dominando orgulhosamente a solitude em torno SÉCULO XIII UM CRISTIANISMO COM NOVAS ENTONAÇÕES Entre os séculos XI e XIII o Ocidente transformase de modo considerável Se fosse preciso escolher um edifício para simbolizar a Europa do século XI este seria sem dúvida um mosteiro beneditino tal como o de San Pere de Roda na Catalunha com ares de fortaleza suspensa no flanco de uma colina dominando a partir de seu soberbo isolamento os campos circundantes figura 15 acima Para exprimir as realidades do século XIII seria necessário pensar ao contrário em uma catedral gótica tal como a de Bourges audacioso edifício no coração da cidade figura 16 na p 198 De um edifício a outro passase de um universo rural ainda fracamente povoado para um mundo mais densamente ocupado onde a cidade tem um papel notável ilustração VIII na p 199 Ao mesmo tempo a dominação dos monges cede terreno diante da reafirmação do clero secular 3 Século XIII um cristianismo com novas entonações FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA DA UNESP BARÃO DO RIO BRANCO ERICH HAEGH 1977 Ano 1000 A CIVILIZAÇÃO FEUDAL da América São a colonização Grupo 3 Sao Paulo 2006 pp 196 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 197 16 No coração da cidade a catedral gótica de Bourges primeira metade do século XIII A catedral enaltecida pela arte gótica inscrevese no coração do tecido urbano que ela domina a partir de sua massa quase esmagadora Dedicada a santo Estevão a catedral de Bourges foi iniciada em 1195 e terminada no essencial em meados do século seguinte Ela se caracteriza pelas dimensões particularmente imponentes 125 metros de comprimento 50 metros de largura 375 metros de altura e pela notável homogeneidade sensível em seu plano ilustração X na p 202 Percebese à direita a série de arcobotantes que sustentam a alta nave central desde a fachada até a abside sem que nenhum transepto interrompa a regularidade Projeção de uma embarcação com cinco naves a ampla fachada é inteiramente articulada pelos cinco portais cujos pêsdreitos se juntam uns aos outros VIII Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que ela substitui Em Leão os trabalhos empreendidos no século XIX permitiram revelar as fundações do edifício românico situado sob a construção gótica que o substituiu o caso de Salamanca permite ao contrário observar uma situação excepcional pois a catedral gótica é construída ao lado daquela de época românica sinal bastante raro de respeito por um edifício anterior O edifício românico consagrado em 1073 comporta três naves terminadas cada uma por uma abside semicircular Um século mais tarde a construção de uma nova catedral é iniciada pelo bispo Manrique de Lara 11811205 com o apoio do rei Alfonso IX Interrompidos os trabalhos são retomados durante o episcopado de Martín Fernández 125489 que leva a cabo a edificação dos portais da fachada ocidental A nova catedral multiplica de modo considerável o espaço interno utilizável sinal ao mesmo tempo do crescimento urbano e da vontade de poderio da Igreja CATEDRAL DE LEON PLANTA DE LA ANTIGUA YGLESIA ROMÁNICA RELACIONADA CON LA ACTUAL ESCALA DE DOSS 5 Corte y alzado por A W Seccion por K L Corte y alzado por C A Corte y alzado por MS Seccion por ZF a uu Corte por F Corte por FC Corte por XL Corte por AR VIII A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 199 17 A nave em berço da igreja abacial de Conques segunda metade do século XI Realizada em grande parte na época do abade Odolrico morto em 1065 a abadia beneditina de Conques parece ter sido terminada quando o abade Begon III 10871107 manda edificar a claustra beneditina românica clássica os arcos são em pleno cimbre e repousam sobre pilares colunas ou semicolunas geralmente ornados de capitéis como se vê aqui nas partes altas da nave principal A abóbada central de berço reforçada por arcos cruzeiros prolonga a mesma forma semicircular A luz penetra apenas indiretamente na nave central inclusive na parte superior onde as tribunas andar sobreposto às naves secundárias contrabalançam o repouso exercido pela abóbada central Do mesmo modo a abside onde aparece o altar principal é vazada apenas por janelas estreitas somente o cruzeiro do transepto encimado por uma torre ortogonal que data do século XIV é mais vivamente iluminado Em uma nave românica os contrastes de sombra e luz são fortemente marcados Do românico ao gótico De um edifício a outro passase da arte românica à arte gótica o que é bem mais do que uma simples questão de estilo Do românico ao gótico é o mundo que muda e com ele a maneira de conceber a função social e ideológica da arquitetura Da arte românica retémse geralmente o arco de pleno cimbre e a abóbada de berço em pedra ou seja um avanço notável pois a maior parte das igrejas anteriores à imagem das basílicas antigas construções civis que serviram de modelo aos primeiros edifícios de culto cristão eram cobertas por um vigamento em madeira muito exposta ao risco de incêndio Mas a abóbada de berço repousa seu peso ao longo dos muros laterais que a sustentam de modo que estes só podem ser fendidos por janelas estreitas que destilam uma luz parcimoniosa e irregular figura 17 na p 200 Em uma igreja românica as zonas de sombra e de luz contrastam vigorosamente e entrecortam o espaço interior Essa impressão de fragmentação é ainda acentuada pela heterogeneidade das formas arquitetônicas e pela ausência de módulo comum às diferentes partes do edifício de modo que nave naves secundárias transepto tribunas coros e cúpulas deambulatórios e capelas laterais parecem mais elementos autônomos agregados uns aos outros ilustração IX na p 202 De outro lado a arte românica é uma arte da parede e da superfície ela sublinha a importância de amplas superfícies de muralhas espessas e densas cuja constituição em pedra é diretamente visível no exterior ou reproduzida por um estuque pintado no interior As necessidades técnicas combinamse aqui aos móveis ideológicos pois à imagem da instituição de que ela é símbolo a igreja quer ser uma fortaleza que se defende contra o mundo exterior e então não pode simbolicamente deixálo penetrar em seu seio a não ser com prudência É preciso que ela exalte esses muros que a protegem assim como as torres de campanários que enquandram então maciçamente a fachada para dar exatamente o sentido da vigilância da cidadela divina É assim que a igreja românica aparece como uma cidade santa fortificada prefiguração terrestre da Jerusalém celeste exibindo suas muralhas de pedras preciosas ilha de pureza espiritual em meio à ameaçadora confusão do mundo Para qualificar a arquitetura gótica enumeramse geralmente o arco ogival a abóbada sobre cruzeiro de ogivas e o arcobotante mas dos três somente o último talvez seja uma invenção gótica uma vez que o cruzeiro de ogivas havia se estabelecido desde o fim do século XI no domínio anglonormando em particular na catedral de Durham O que revela bem mais a especificidade do gótico é uma combinação desses três elementos a serviço de um projeto técnicoideológico novo Mesmo se sem dúvida convém temperar o papel inaugural IX Planta de um edifício românico da primeira metade do século XII NotreDameduPort em ClermontFerrand NotreDameduPort oferece o exemplo típico de um edifício em cruz latina Identificase a nave central flanqueada por duas naves secundárias sobrepostas por tribunas o corpo ocidental associado à fachada o transepto cujo cruzeiro é coberto de uma cúpula o coro cercado por um deambulatório com suas absidiolas Notase que nenhum desses elementos utiliza um módulo de medida em comum não há nem mesmo relação métrica entre a largura da nave central e aquela das naves secundárias como também não há entre o comprimento do vão da nave e o do transepto X Planta de um edifício gótico da primeira metade do século XIII a catedral de Santo Estevão em Bourges A catedral de Bourges leva ao extremo a busca gótica de homogeneização do lugar sagrado e de uniformização construtiva A nave central é flanqueada de quatro naves secundárias e completada por um duplo deambulatório As capelas que se abrem sobre o deambulatório são tão pouco profundas que se inscrevem na largura dos contrafortes e o transepto foi suprimido nos lados da nave as capelas laterais são acréscimos posteriores Principalmente o mesmo módulo de medida é utilizado de uma ponta a outra do edifício um abobadado das naves secundárias equivalendo a um quarto do vão da nave central Do mesmo modo todos os elementos tais como moduras colunetas e capitéis têm a mesma dimensão em todas as partes da igreja A unidade do projeto arquitetônico foi então definida desde o início da construção por volta de 1195 e mantida ao longo da segunda campanha iniciada por volta de 1225 até o seu término em meados do mesmo século Os dois planos estão em escalas muito diferentes e levarseá em conta o fato de que a catedral de Bourges é mais de duas vezes maior que a de NotreDameduPort 18 Abóbadas sobre cruzeiro de ogivas e amplas vidraçarias o coro e a nave da catedral de Leão segunda metade do século XIII A catedral de Leão mostra a realização da busca do gótico da qual a abóbada sobre cruzeiro de ogivas é um dos instrumentos técnicos privilegiados Graças a este formado por duas nervuras cuja interseção é reforçada por uma chave de abóbada as forças criadas pelo peso do abobadado concentramse nos pilares laterais escorados no exterior pelos arcobotantes e seus contrafortes As tribunas podem assim ser suprimidas e os muros laterais substituídos por imensos vitrais rutilantes de cores e saturados de iconografia Sob as altas vidraçarias aparece o trifório série de arcaturas diante de vidraçarias menores e mais abaixo os arcos quebrados que dão sobre as naves secundárias Poderíamos considerar a arquitetura gótica uma ambiciosa combinação de pilares de sustentação e de paredes em vidro o que a catedral de Leão com seus 1800 m2 de vitrais exprime claramente Não causará surpresa então que as vanguardas arquitetônicas do início do século XX começando por Bauhaus tenham podido reivindicar o gótico como uma das prefigurações de suas próprias buscas 19 São Francisco renunciando aos bens paternos c 12901304 afrescos de Giotto na basílica de Assis Este é o episódio crucial da conversão em um ato teatral Francisco se desnuda e abandona as vestimentas que obtivera de seu pai para significar sua renúncia à herança familiar O bispo o cobre publicamente com o seu manto em um gesto carregado de um simbolismo de adoção transposto aqui para o plano espiritual Se a conversão se apresenta como um jogo textil das vestimentas do pai ao manto do bispo ela é sobretudo uma questão de parentesco Francisco rompe com seus pais carnais para fazer prevalecer o parentesco espiritual que une os membros da Igreja enquanto seu gesto de prece aponta para a mão abençoadora do Pai divino Um de seus biógrafos lhe atribui de resto estas palavras ditas neste preciso momento Em toda a liberdade daqui por diante eu poderei dizer Nosso pai que estás no céu Pedro Bernadone não é mais meu pai Quanto a Giotto ele dá ao sistema de parentesco medieval a forma de uma perfeita geometria parentesco carnal parentesco espiritual parentesco divino Deus que entretanto só poderia ser atingida pelo rude caminho da penitência Essas características fizeram frequentemente comparar Francisco e seus companheiros ao quais ele recomenda ter o semblante sorridente ao jogral ofício por muito tempo condenado pela Igreja Elas se exprimem também no famoso Cântico do irmão Sol em que Francisco faz o elogio da natureza e do prazer que ela proporciona ao homem Ai está uma das tensões constitutivas do personagem a conjunção da penitência e do júbilo ou mais precisamente a escolha de uma penitência extrema que não leva à fuga do mundo mas ao amor a ele Os habitantes de Assis que veem Francisco andar hirsuto e em trapos perguntam se não há nele alguma loucura e é um pouco isso que exprime o seu apelido Poverello19 Mas este exemplo vivo de pobreza e de penitência lhe vale também um renome cada vez maior que atrai para junto dele discípulos em número crescente Logo Francisco encontrase à frente de uma pequena comunidade que a instituição eclesial poderia julgar perigosa e incontrolável como indica a primeira reação de Inocêncio III Ela no entanto faz a escolha inversa e em 1209 o papa é convencido embora com reservas a aprovar o modo de vida proposto por Francisco e a lhe conceder o direito de pregar Mas o desejo de enquadrar essa experiência e de lhe dar formas compatíveis com as estruturas de poder em vigor na Igreja conduz Honório III a exigir a redação de uma regra formal a de 1221 é recusada Regula non bullata até que novas modificações atenuando ainda mais o radicalismo do projeto inicial permitam finalmente sua aprovação em 1223 Regula bullata À medida que a comunidade cresce Francisco afastase das necessidades impostas pela direção espiritual e material de uma ordem Em breve renuncia a ser o seu chefe e escolhe viver como eremita no monte La Verna Penitências e privações extremas acentuamse em um esforço para aproximarse ainda mais de Deus até o ponto em que Francisco doente parece não ser mais do que uma ferida viva É nesse momento em 1224 que a tradição situa o milagre da estigmatização cuja descrição toma forma ao longo das sucessivas biografias de Francisco como demonstrou Chiara Frugoni Segundo a Legenda maior que Boaventura superiorgeral da ordem franciscana redige em 1263 e impõe como a única versão autorizada a ponto de ordenar a destruição das narrativas anteriores em particular as duas Vidas redigidas por Tomás de Celano Francisco teria tido uma visão divina sob a forma híbrida de um serafim e de Cristo na cruz cujas cinco chagas da Paixão teriam sido impressas em seu corpo ainda visíveis quando de sua morte figura 20 na p 209 Tal milagre totalmente inédito e reconhecido pelo papado somente em 1237 provoca 19 Em italiano pobrezinho coitado N T 208 Jérôme Baschet 20 A estigmatização de são Francisco relicário esmaltado contendo relíquias do santo c 1228 Museu do Louvre Paris No reverso deste relicário lentes de cristal permitem ver as relíquias do santo recentemente canonizado No lado visível aqui uma decoração em esmalte campeão técnica altamente apreciada para a decoração dos objetos litúrgicos mostra uma das primeiras representações da estigmatização de Francisco A aparição é a de um serafim mais do que a de Cristo na cruz mas os pés e as mãos portando as chagas da Paixão são bem visíveis A impressão dos estigmas não está materializada por raios ligando o corpo do Cristoserafim e aquele do santo como Giotto terá a ideia por volta de 1290 mas Francisco de braços afastados e inclinado como para se oferecer aos efeitos da aparição carrega no seu próprio corpo as marcas do sacrifício de Cristo vivas polêmicas Muitos contemporâneos permanecem incrédulos ou mesmo hostis a uma inovação quase escandalosa que põe Francisco excessivamente alto a seus olhos até o momento em que outros santos a começar pela dominicana Catarina de Siena imitam seu exemplo e reduzem assim o seu excessivo privilégio É que o alcance da estigmatização não deixa dúvidas a ninguém para Boaventura e os franciscanos que se constituíram em promotores do milagre ele transformava Francisco em um santo perfeito quase angélico e era a realização lógica de uma vida devotada à imitação de Cristo Recebendo as marcas mais eminentes do sacrifício divino Francisco identificavase em sua própria carne com o Salvador Ele se tornava um segundo Cristo vivendo novamente entre os homens um outro Cristo segundo a expressão de Boaventura Em um prazo particularmente breve dois anos depois de sua morte ocorrida em 1224 Francisco de Assis era canonizado Durante a sua vida Francisco não cessará de tomar as instituições e os costumes de seu tempo a contrapelo Fundador de uma ordem se bem que ele continue um laico um dos raros que a autoridade eclesial autorizou a pregar próximo dos pobres a ponto de permanecer um dos seus apesar do sucesso de seu empreendimento sempre opondo o dever da penitência às necessidades institucionais ele evita entretanto atacar frontalmente a hierarquia nesse sentido poderíamos definilo como um rebelde integrado Ele é portador de uma mensagem que de um lado corresponde às aspirações de seu tempo a insistência sobre a Encarnação e a Imitação de Cristo mas cujo radicalismo evangélico é em parte inassimilável pela Igreja Era então lógico que a história da Ordem Franciscana fosse marcada ao menos durante um século por violentos conflitos entre uma corrente espiritual partidária de uma fidelidade rigorosa ao fundador e os conventuais defensores de uma acomodação com as regras da instituição eclesial A interpretação da vida de Francisco imposta por Boaventura é uma clara vitória dos últimos antes mesmo que a disputa se concentre sobre a questão da pobreza exigência absoluta para os espirituais que argumentam que Cristo jamais havia possuído algo No entanto no início do século XIV foilhes necessário ou aceitar uma maior moderação para se manter na comunidade da ordem ou derivar para a heresia como fazem os fraticelle Ao final desse processo tumultuoso a figura de Francisco terá sido então integrada à instituição eclesial e finalmente posta a seu serviço Evocarseá mais brevemente Domingo de Guzmán nascido por volta de 1170 em Caleruega Castela em uma família da pequena aristocracia Ele opta por uma carreira eclesiástica tradicional e tornase cônego da catedral de Osma Acompanhando seu bispo no Sul da França ele descobre o impacto do catarismo e decide consagrarse à luta contra a heresia Ele começa a pregar na região 210 Jérôme Baschet 21 O Triunfo da Igreja e dos dominicanos 136668 afrescos de Andrea di Bonaiuto capela dos Espanhóis Santa Maria Novella Florença Fazendo face à representação do Triunfo de São Tomás adequadamente localizado na sala capitular de um convento dominicano esta vasta alegoria da Igreja põe o acento sobre práticas que se tornaram essenciais durante os últimos séculos da Idade Média especialmente a pregação e a confissão Embaixo à esquerda um imponente edifício eclesial é associado à hierarquia clerical reunida em torno do papa À direita os dominicanos têm o papel principal eles pregam e combatem os heréticos enquanto cães devoradores lembram que sua missão está inscrita em seu nome domini canes Acima quase no centro do afresco um sacerdote recebe a confissão de um fiel ajoelhado diante dele o confessionário não existe durante a Idade Média A confissão está no cruzamento dos caminhos aqueles que recorrem a ela são convidados por São Domingo a avançarem para o paraíso Tais como almas puras vestidas com túnicas imaculadas eles são ali acolhidos por São Pedro símbolo da instituição eclesial e guardião da porta do céu Uma vez transposto esse limiar os eleitos gozam da visão beatífica quer dizer da contemplação da essência divina que aparece em meio a uma corte de anjos Tal é a recompensa suprema à qual os cristãos chegam seguindo os ensinamentos da Igreja e recebendo graças a ela os sacramentos salvadores Assim o afresco sobrepõe notavelmente os três sentidos da palavra igreja o edifício a instituição clerical e a comunidade dos fiéis chamada a se reunir na glória celeste de Fanjeaux logo acompanhado por alguns discípulos que levam uma vida evangélica depois funda um primeiro convento em Toulouse Em 1217 o papa aprova a nova ordem posta sob a regra de santo Agostinho Domingo vê na pregação apoiada pelo estudo e pela penitência uma arma indispensável contra os inimigos da Igreja Os novos conventos daqueles que são chamados justamente de frades pregadores multiplicamse rapidamente e Domingo morre à frente de uma ordem poderosa em 1221 sua canonização ocorre em 1234 O per é logo de início estreitamente ligado à instituição eclesiástica e em particular à luta contra a heresia De resto os dominicanos tornarseão especialistas nas tarefas inquisitoriais e assumirão com orgulho essa função considerandose os cães do Senhor domini canes de acordo com um jogo de palavras que o seu nome permite em latim figura 21 na p 211 Os dominicanos também orientam imediatamente suas atividades para o estudo e o esforço intelectual indispensável para argumentar ao serviço da Igreja Eles multiplicam então os studia destinados à formação de seus membros enquanto os primeiros franciscanos procuram formas mais simples e mais imediatas de contato com Deus Entretanto a despeito dessas diferenças iniciais a evolução das duas ordens as aproxima e muito em breve estarão ao mesmo tempo unidas por objetivos e práticas bastante semelhantes e opostas por uma intensa rivalidade O sucesso das duas ordens que são chamadas de mendicantes pois elas querem em seus inícios nada possuir e viver apenas de dons de caridade estendese logo a toda a cristandade Os frades pregadores caracterizados pela sua vestimenta branca recoberta por um manto negro são cerca de 7 mil por volta de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII enquanto os franciscanos também chamados frades menores em razão de sua humildade vestidos com um hábito de lã crua ou bege nem pintado nem embranquecido e reconhecidos como Francisco pela simples corda com um nó atada à sua cintura são talvez 2500 por volta de 1250 e se repartem em cerca de 1600 estabelecimentos meio século mais tarde Outras ordens mendicantes de menor importância também surgem mas o Concílio de Lyon II 1274 limita seu número a quatro além dos franciscanos e dos dominicanos tratase dos carmelitas ordem fundada em 1247 e dos eremitas de santo Agostinho ordem criada em 1256 Cada ordem sob direção de um superiorgeral e de responsáveis provinciais é dotada de uma coesão muito mais forte que as redes monásticas anteriores Cada uma delas conta além de seu ramo masculino com um componente feminino como a Ordem das Clarissas fundada por santa Clara de Assis associada aos franciscanos e uma ordem terceira na qual são acolhidos os laicos que desejam viver devotadamente O ideal de pobreza associado à humildade e à penitência é a característica primeira das ordens mendicantes Mas como todas as outras aventuras monásticas anteriores esbarra no paradoxo do sucesso que leva à multiplicação dos dons e à acumulação dos bens Se as ordens tradicionais impunham que cada monge não possuísse nada a título individual mas aceitavam as doações feitas à instituição as ordens mendicantes preocupadas em dar sentido ao ideal de pobreza recusam essa opção Mas logo precisam forjar a teoria segundo a qual os bens recebidos por elas são propriedades do papa e que a ordem tem apenas o seu uso o que os franciscanos espirituais não deixam de denunciar como uma ficção hipócrita A contribuição das ordens mendicantes tem a ver ainda mais com uma concepção original do papel do clero regular Mesmo aceitando uma regra de vida comunitária e ascética os mendicantes não optam por uma fuga do mundo Mesmo quando se referem idealmente ao exemplo dos eremitas do deserto Alain Boureau assumem na prática viver em meio aos fiéis para pregar pela palavra e pelo exemplo na verdade essa vocação pastoral caracteriza somente os ramos masculinos das ordens as mulheres permanecem confinadas em uma clausura tradicional o que sem dúvida favorece o desabrochar particularmente entre as dominicanas de uma intensa devoção mística que vem compensar a sua exclusão das tarefas assumidas pelos frades O século XII já havia visto certa aproximação entre regulares e seculares mas os mendicantes dão o passo suplementar instalandose no coração das cidades estes estranhos regulares urbanos e pregadores são de resto chamados de frades não de monges As ordens mendicantes aportam assim uma contribuição decisiva à Igreja de seu tempo assumindo um enquadramento e uma atividade pastoral adaptados aos meios urbanos Agindo assim intervêm em um terreno que é normalmente do clero secular e os conflitos entre mendicantes e seculares não faltam por exemplo no seio da Universidade de Paris e mais amplamente nas cidades onde os bispos veem com desconfiança esses pregadores extremamente bem preparados cujos sermões têm mais sucesso que aqueles dos seculares e que captam para suas vastas igrejas os dons dos fiéis O laço entre ordens mendicantes e fenômeno urbano é de resto tão claro que se pôde estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número de conventos mendicantes que elas abrigam Jacques Le Goff Em todas as cidades da Europa sua implantação se faz segundo uma mesma lógica tendo necessidade de um amplo terreno os conventos mendicantes se estabelecem nos limites da zona construída e considerando a concorrência existente entre eles o mais longe possível uns dos outros segundo uma geometria bastante regular Se uma cidade abriga dois conventos mendicantes o meio da linha que os liga é ocupado pelos edifícios principais da cidade se eles são três o centro urbano ocupa aproximadamente o ponto central do triângulo formado por eles 212 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 213 Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo nº 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Como sugeriu vigorosamente Alain Guerreau só se tem a ganhar em considerar a Igreja a garantia da unidade da sociedade feudal sua coluna vertebral e o fermento de seu dinamismo OS FUNDAMENTOS DO PODER ECLESIAL Unidade e diversidade da instituição eclesial Dizse que a Igreja é a instituição dominante do feudalismo ela se reproduz com sucesso como instituição mas sem que as posições em seu interior sejam transmitidas de maneira principalmente genealógica como é habitual para uma classe social É verdade que se pode considerar o alto clero como a fração superior do grupo dominante embora ele não forme enquanto clero uma classe propriamente dita Aliás as relações entre o clero e a aristocracia são ambivalentes Esses dois grupos são ainda mais próximos pelo fato de que os filhos da aristocracia monopolizam o essencial dos cargos do alto clero mesmo se não existe nenhuma exclusividade nessa questão Entretanto a integração à Igreja rompe na teoria e em boa parte na prática os laços que unem o clérigo à sua parentela Por vezes um abade ou um bispo poderá obter mais facilmente de seus parentes que permaneceram seculares concessões em favor da Igreja ou inversamente porém com mais frequência a diferença de posição faz prevalecer os contrastes de interesses entre clérigos e laicos Clero e aristocracia são assim cúmplices na obra de dominação aliados perante os dominados mas também são concorrentes como indica uma infinidade de conflitos notadamente pelo controle das terras e dos direitos que estruturam a organização dos senhorios tanto laicos como eclesiásticos As numerosas críticas que os clérigos lançam contra os cavaleiros tirânicos e rapaces acusados de maus costumes são frequentemente e em especial durante a fase mais aguda do processo de encluamento um meio de defender as prerrogativas da Igreja e de seus próprios senhorios Existe então uma rivalidade entre os dois polos do grupo dominante mas que permanece submetida ao adequado exercício de sua superioridade sobre os dominados A própria instituição eclesial não é homogênea Além das contradições de interesse ou dos conflitos doutrinais que podem opor em seu interior diferentes tendências existem importantes dualidades institucionais Uma é hierárquica e bastante simplificada quando se opõem ao alto e ao baixo cleros mas pelo menos nos lembra uma importante distância entre os grandes dignitários aba des bispos arcebispos cardeais e papas alguns dos quais estão entre os príncipes mais poderosos de sua época e simples monges e sacerdotes cujo poder e prestígio permanecem em geral circunscritos ao quadro local Se bem que ela se modifique sensivelmente no decorrer dos séculos a diferença de posição entre os clérigos regulares e os clérigos seculares não é de menor importância Entrando em uma ordem monástica da qual eles aceitam a Regra os primeiros escolhem a fuga ao mundo e o isolamento penitencial consagrandose ao serviço de Deus pela prece pelo estudo e por vezes pela atividade manual Quanto aos últimos que se conservam na vida secular em meio ao mundo e em contato com os laicos eles têm por missão o cuidado das almas cura animarum de onde o nome dado aos curas responsáveis pelas paróquias cuja rede está se formando então através da administração dos sacramentos e do ensinamento da palavra divina Mesmo se alguns podem combinar as duas filiações ou passar de uma a outra e mesmo se entre os séculos XI e XIII as missões dos regulares e dos seculares se imbricam cada vez mais tratase de duas concepções diferentes do mundo cuja fortuna se modifica e de duas hierarquias paralelas a primeira aberta parcialmente às mulheres a segunda estritamente reservada aos homens entre as quais a competição é muitas vezes rude Entretanto apesar de numerosas diferenças internas a Igreja existe como unidade definida a um só tempo institucional e liturgicamente A dualidade que separa clérigos e laicos é a esse respeito fundamental mesmo se existe uma zona intermediária e relativamente fluida na fronteira destes dois status Assim indivíduos podem permanecer laicos mesmo integrandose ou aproximandose do modo de vida monástico os conversos de Cluny são integrados à comunidade monástica embora em posição subalterna enquanto entre os cistercienses eles são mantidos a distância dos monges e encarregados de tarefas manuais assinalemos ainda os membros das ordens terceiras mendicantes e as beguinas do fim da Idade Média mulheres laicas que vivem na cidade à maneira das monjas Além disso alguns receberam apenas as ordens menores do clero ostiário leitor exorcista acólito ou somente a tonsura que conferida pelo bispo dá o status de clérigo o que é geralmente requerido para seguir um ensino universitário A ligação com o clero parece então de uma dupla modalidade a tonsura e as ordens menores são suficientes para conferir o status de clérigo mas apenas o acesso às ordens maiores subdiácono diácono sacerdote ou a entrada na ordem monástica investem de um verdadeiro poder simbólico e impõem um modo de vida fora do comum marcado pela abstinência sexual É por isso que na França da Idade Média um terço dos clérigos pode sem contradição dizerse casado pois eles receberam apenas as ordens menores ou a tonsura Entretanto essas situações intermediárias não diminuem em nada a importância fundamental da dualidade clérigoslaicos de resto é da natureza de toda realidade social ser um continuum de situações concretas de modo que a delimitação dos grupos sociais é sempre secundária em relação à identificação das polaridades que estruturam o espaço social Como afirma com todo o vigor necessário por volta de 113050 o Decreto atribuído a Graciano obra fundadora do direito canônico existem dois tipos de cristãos os clérigos e os laicos O modo de vida dos primeiros se caracteriza pela renúncia ao casamento ao trabalho na terra e a toda posse privada Graciano salienta ainda que o estatuto destes é marcado pela tonsura sinal de escolha divina e de realeza dos clérigos uma realeza evidentemente espiritual pois o corte dos cabelos significa também a renúncia às coisas materiais Tratase igualmente de uma distinção de estatuto jurídico pois os clérigos beneficiandose do privilégio do foro eclesiástico não podem ser julgados pelos laicos mas somente por um tribunal eclesiástico principalmente o do bispo Que a simples tonsura permita reivindicar este privilégio e que os tribunais devam por vezes cassar os falsos clérigos que tentam arrogálo indevidamente não põe absolutamente em causa essa dualidade Tais disputas mostram ao contrário a sua força para além das dificuldades de classificação das pessoas No geral o clero constitui um grupo privilegiado e investido de um prestígio sagrado que engloba segundo toda verossimilhança mesmo incluindo nele suas margens inferiores bem menos de um décimo da população medieval Acumulação material e poder espiritual O poder material da Igreja repousa em primeiro lugar sobre uma excepcional capacidade de acumulação de terras e de bens O processo iniciase desde o século IV quando os cristãos começam a fazer doações à Igreja especialmente nas vésperas do trespasse a fim de assegurar a salvação de suas almas no além Este fenômeno prolongase durante a Idade Média e as doações piedosas que os príncipes e os senhores fazem aos monastérios são particularmente abundantes no decorrer dos séculos XI e XII figura 11 na p 172 Eles também fundam novos estabelecimentos monásticos que dotam dos bens necessários ao seu funcionamento de modo a assegurar o apoio material e espiritual de amigos poderosos tanto daqui debaixo como do além É verdade que os dons em terras são por vezes menos generosos do que parecem podem tratarse na verdade da restituição de um bem usurpado da compensação de uma outra vantagem ou ainda de uma troca Entretanto para evitar que eles sejam contestados pelos herdeiros do doador adotase a fórmula da laudatio parentum que desde logo associa os parentes ao ato de doação e lhes permite compartilhar seus benefícios espirituais O resultado é eloquente Desde o século VIII a Igreja possui cerca de um terço das terras cultivadas na França porcentagem que continua idêntica no século XIII mas que parece baixar para 10 no Norte da Itália Na Inglaterra a Igreja concentra um quarto das terras em 1066 e 31 em 1279 Sem multiplicar ainda mais os números podese reter que segundo os lugares e as épocas a Igreja em geral possui entre um quarto e um terço das terras Isso quer dizer que as diversas autoridades episcopais ou monásticas que a compõem são poderosos senhores feudais De fato por ter sido objeto de uma doação piedosa numerosos senhorios talvez um terço deles têm em seu comando uma instituição da Igreja um monastério e seu abade um cabido de catedral ou um bispo que faz pesar sobre os dependentes os pagamentos e as obrigações associados ao poder senhorial inclusive o exercício da justiça sem falar dos casos de cossenhorios partilhadas entre um laico e um monastério Enfim a situação particularmente vantajosa da Igreja apenas se consolida pois se recebe muito não transmite nada Diferentemente dos bens aristocráticos com frequência divididos e submetidos aos imprevistos dos destinos biológicos das linhagens tudo o que chega à instituição eclesial permanece em sua posse Na teoria o patrimônio da Igreja não pode ser diminuído e os doadores muitas vezes enfatizam que seu bem lhe é dado de maneira perpétua não podendo ser nem cedido nem mesmo trocado Entretanto os períodos de turbulência favorecem a usurpação dos bens da Igreja pelos laicos e o conluio entre o alto clero e a aristocracia pode apresentar algumas desvantagens por exemplo quando um bispo desonesto concede bens diocesanos como feudo aos membros de sua própria família E mesmo se a Igreja deve arcar com despesas importantes que podem eventualmente obrigála a ceder algumas terras ou a penhorar bens móveis sua posição é tal que ela se beneficia de uma capacidade de acumulação desigual no seio da sociedade feudal Além das terras é preciso incluir entre os bens da Igreja os edifícios tais como os monastérios as catedrais as dependências e os palácios episcopais A maior parte é rica em objetos preciosos decorações murais e tapeçarias vestes litúrgicas retábulos e estátuas altares e poltronas livros e cruzes cálices vasos e relicários muitas vezes feitos de ouro ou de prata e incrustados de pedras preciosas todos dotados de um grande valor espiritual e material Esses objetos por vezes também dons dos laicos constituem o tesouro de cada igreja é assim que se nomeia na época a coleção de seus relicários livros e objetos mais preciosos veja as figuras 20 e 48 nas pp 209 e 489 Tal tesouro onde o material e o espiritual se misturam indissoluvelmente é o melhor meio de 11 Uma cena de doação simbolizada pela entrega de uma igreja em miniatura primeiro quartel do século XII capitel da catedral de São Lázaro em Autun Sobre este capitel hoje no museu um laico à esquerda e um clérigo com seu cajado cuja extremidade está quebrada seguram um modelo de igreja em miniatura símbolo de uma fundação nova ou de um bem eclesial sendo objeto de uma doação Os braços estendidos do primeiro personagem indicam provavelmente que o laico oferece a igreja enquanto o clérigo a recebe tendo o braço dobrado Epa toda caso um anjo sai da nuvem e parece aceitar o dom ou ao menos benzêlo É o sinal de que as doações piedosas estão associadas a um sistema triangular Deus ou os santos são seus verdadeiros destinatários e os clérigos simples depositários aumentar ainda mais os rendimentos de uma igreja pois eles atraem os peregrinos que não economizam suas dádivas para um santo prestigioso e para sua casa na esperança de graças no futuro ou em agradecimento àquelas já recebidas Mas tais objetos também são os primeiros a ser pilhados e tratandose de vasos litúrgicos os primeiros a ser vendidos ou cedidos em penhor nos períodos difíceis Enfim lembremos que Carlos Magno tornou obrigatório o dízimo que consiste em média em um décimo da colheita ou do produto das outras atividades produtivas e que é destinado em teoria ao sustento dos clérigos que se encarregam das almas pois estes não podem trabalhar a terra nem produzir com suas próprias mãos o que os faria decair para a ordem inferior da sociedade Como se verá ao longo dos séculos X e XI os dízimos são com frequência desviados pelos senhores laicos ou pelos monges uma vez recuperados cerca da metade ou um terço do montante volta para o eclesiástico servidor da paróquia o restante sendo devido ao bispo e consagrado ao sustento dos pobres Além de sua destinação prática o dízimo é também a garantia de um reconhecimento do poder dos clérigos ele é o sinal da dominação universal da Igreja segundo a expressão do papa Inocêncio III toda forma de resistência contra o clero é então marcada logicamente por uma recusa ou ao menos por uma reticência ao pagamento dessa obrigação Tudo o que precede seria incompreensível sem o poder espiritual associado à própria função dos oratores Seu ofício consiste em orar e em realizar ritos não apenas para eles mesmos mas para o conjunto dos cristãos que podem assim sem nem mesmo pensar que outros se encarregam pela sua salvação dedicarse às atividades próprias à sua ordem combater ou produzir figuras 12 pp 176 e 177 Os especialistas da prece e da liturgia que são clérigos oficiam para todos os seres vivos e mais ainda para os mortos o que se torna uma grande especialidade monástica sobretudo nos séculos X a XII As doações pro remedio animae para o apaziguamento da alma permitem a inclusão entre os familiares da comunidade monástica em favor dos quais ela dirige suas preces e celebra missas ou mesmo ver seu nome incluído no livro da vida ou necrologia do mosteiro a fim de que sua memória seja periodicamente evocada Além da prece para os mortos os clérigos assumem duas funções principais em virtude do poder sagrado conferido pelo ritual de ordenação sacerdotal transmitir o ensinamento e a palavra de Deus e conferir os sacramentos sem os quais a sociedade cristã não poderia se reproduzir Tratase em primeiro lugar do batismo que de uma só vez abre a promessa de salvação por isso ele é chamado de porta do céu e dá acesso à comunidade cristã e em consequência à vida em sociedade não existe forma de registro de existência social independente da Igreja antes do aparecimento do registro civil em fins do século XVIII O ritual eucarístico não é menos fundamental Golpe de mestre do cristianismo pelo qual o sacrifício do deus supera definitivamente o sacrifício ao deus a missa durante a qual se oferece o deus a ele próprio segundo a expressão de Marcel Mauss reafirma constantemente a coesão da sociedade cristã Pela reiteração do sacrifício redentor de Cristo ela garante a incorporação dos fiéis à comunidade eclesial e enquanto sacrifício oferecido por esta assegura a circulação das graças na esperança de salvação dos justos Na segunda parte retornaremos aos sacramentos e particularmente ao casamento os que já foram citados formam com a confissão a crisma a extremauncão e a ordenação o septenário que se constitui no século XII Mas desde já constatase claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a coesão da sociedade cristã assim como o desenvolvimento de cada vida individual em seu seio Eles marcam suas etapas principais nascimento casamento e morte e autorizam por si sós a esperança de salvação no outro mundo sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão Ora todos esses ritos só podem ser realizados pelos sacerdotes por vezes discutese se um laico pode em caso de urgência proceder a um batismo mas tratase de um casolimite que não tem nenhum efeito prático e não põe em causa a regra fundamental Assim os clérigos especialistas do sagrado e dispensadores exclusivos dos sacramentos necessários a toda vida cristã dispõem de um monopólio decisivo não se pode nem viver em cristandade nem realizar sua salvação sem o seu concurso Os fiéis não podem se beneficiar da graça divina sem fazer apelo à mediação dos clérigos sem recorrer aos gestos que a ordenação sacerdotal dota de um poder sagrado O clero é um intermediário obrigatório entre os homens e Deus Seria absurdo mas bem em conformidade com nossos hábitos de pensamento separar a parte material e a parte espiritual do poder da Igreja Na lógica do sistema medieval tal divisão não tem sentido pois a Igreja se define nela pelo fato de ser ao mesmo tempo uma instituição encarnada fundada sobre bases materiais bastante sólidas e uma entidade espiritual sagrada mesmo se a maneira de articular estas duas dimensões esteja longe de não apresentar dificuldades como veremos Ela não teria nenhum poder material se não lhe fosse reconhecido um imenso poder espiritual nenhuma doação de terras ou de bens ocorreria sem o arrependimento que nasce ao termo de uma vida sobre a qual pesa a reprovação dos clérigos sem a preocupação de salvação da alma e sem a ideia de que a Igreja pode ajudar os defuntos no além Além disso não se faz um dom à Igreja para que ela acumule mas para que por sua vez ela também doe uma ajuda material aos pobres e aos enfermos graças espirituais aos doadores e a seus próximos Convém então retificar a expressão utilizada acima A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 175 174 Jérôme Baschet 12 A procissão do papa Gregório o Grande estanca a peste que assola Roma c 1413 Riquíssimas horas do duque de Berry Museu Conde Chantilly 65 fls 71v72 Esta suntuosa miniatura habilmente disposta às margens de salmos penitenciais e de litanias põe em cena um milagre atribuído a Gregório o Grande em 590 o arcanjo Gabriel lhe aparece acima do castelo de SantÂngelo embainhando sua espada para indicar o fim da epidemia de peste chamada de Justiniano Claramente a imagem tem pouco a ver com as realidades do século VI e evoca mais o fausto da igreja romana do fim da Idade Média Roma aparece como uma cidade gótica e a hierarquia clerical é representada de maneira cuidadosamente ordenada sob a autoridade do papa que porta a tiara e está associado ao colégio dos cardeais A abundância dos objetos litúrgicos é impressionante cruzes e estandartes de procissão incensórios e aspersórios livros ornados de pesadas encadernações ostensórios e relicários A imagem mostra além disso uma forma frequente de prática litúrgica do espaço a deambulação processional em torno das muralhas que fortifica simbolicamente a delimitação entre interior e exterior a fim de preservar a cidade das ameaças que pesam sobre ela se a Igreja é dotada de uma excepcional capacidade de acumular terras e riquezas é porque se lhe reconhece uma força distributiva ainda maior é porque ela está apta a garantir uma circulação generalizada das benesses materiais e espirituais A circulação generalizada dos bens e das graças Desde o início do século xx adquiriuse o hábito de considerar que os fiéis dão à Igreja bens materiais em troca de graças recebidas ou esperadas proteção cura salvação referindose de maneira mais ou menos precisa à lógica do dom e contradom analisada por Marcel Mauss a qual não supõe absolutamente um jogo de resultado nulo entre participantes situados em um plano de igualdade Vários estudos recentes nos convidam a modificar essa leitura Com efeito ao menos quatro polos intervêm além dos clérigos e dos doadores é preciso integrar os pobres encarnações do próximo e duplos de Cristo aos quais é destinada uma parte dos dons feitos à Igreja e sobretudo não esquecer de incluir Deus e os santos únicos dispensadores possíveis da graça espiritual e verdadeiros destinatários das doações que os monges recebem em seu nome figura 11 na p 172 Além disso a operação que ocorre aqui é bem mais coletiva do que parece conforme a lógica da laudatio parentum as doações engajam igualmente a parentela e os atos especificam que elas são feitas para servir de amparo não somente à alma do doador mas também às almas de seus próximos e se seguirmos Michel Lauwers talvez principalmente às de seus ancestrais a isso podemos acrescentar que se as preces dos monges mencionam especificamente o nome dos doadores elas visam ao mesmo tempo assegurar a salvação de toda a cristandade Enfim numerosos traços escapam à lógica do dom e contradom aquele que doa não é necessariamente o que recebe de modo que ninguém pode estar seguro do que receberá os clérigos não poderiam comprometer de modo infalível o TodoPoderoso que é o único a conceder a salvação o que dá é de fato aquele que já recebeu os clérigos insistem sobre o fato de que os doadores apenas restituem uma parte dos bens dados por Deus o que se recebe nunca é direta e proporcionalmente ligado ao que foi dado pois em toda graça espiritual intervém de modo determinante o tesouro dos méritos acumulados pelos santos e os efeitos favoráveis de sua intercessão permanente junto a Deus assim como a totalidade das oferendas eucarísticas realizadas no conjunto da cristandade É verdade que os aristocratas que doam terras esperam que esse gesto lhes valha a eles e a seus ancestrais graças espirituais e em primeiro lugar a salvação no além Mas mais do que uma lógica do domcontradom tratase através da doação aos santos e a Deus de operar uma espiritualização dos bens oferecidos que os transforme em realidades espirituais mais úteis que os bens materiais enquanto a incorporação dos doadores em uma comunidade monástica lhes assegura a ajuda de uma vasta rede de amigos piedosos e espiritualmente poderosos Dominique IognaPrat Sobretudo a prática do dom na sociedade cristã não pode ser analisada sem se considerar a noção fundamental de caridade caritas que designa o amor puro do qual o Criador é a fonte e em virtude do qual o homem ama não apenas Deus mas também o seu próximo pelo amor por Deus segunda parte capítulo V Anita GuerreauJalabert demonstrou que a partir de tais bases não poderia existir senão um sistema de troca generalizada excluindo toda a reciprocidade estreita e exclusiva Nesse quadro não se poderia dar para receber em troca só existe dom válido se ele é gratuito realizado sem nada esperar por amor a Deus assim como o próprio Deus se entregou gratuitamente à morte para a salvação da humanidade O dom interessado que espera algo em troca é denunciado como sinal de vaidade e de cupidez de modo que há interesse em ser desinteressado sem que seja possível ser desinteressado por interesse Na cristandade e a despeito da aparênci a de comércio de que se pode revestir a relação com as figuras sobrenaturais em certas narrativas de milagres por exemplo nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso o Sábio doase e recebese mas não se poderia dar para receber e sobretudo não se recebe porque se doou Devese dar para contribuir para o grande tesouro a um só tempo material e espiritualizado pelo dom que cabe à Igreja gerir E recebese pois existe esse grande tesouro de graças espirituais conversíveis em graças materiais O dom gratuito feito a Deus e aos santos é então uma maneira privilegiada de se integrar à rede de troca generalizada dos bens e das graças de contribuir para seu bom funcionamento na esperança de que este acabará por difundir para o indivíduo e seus parentes algumas de suas benesses tanto aqui embaixo como no além ao inverso o avaro culpado de entesourar e todos aqueles que se mostram negligentes nas exigências do dom excluemse dessa rede e expõemse a pesadas consequências No centro desse sistema inegavelmente encontrase a Igreja operadora decisiva da transmutação do material em espiritual e intermediária obrigatória nas trocas entre os homens e Deus Pois é preciso ainda acrescentar que o sacrifício eucarístico é o motor indispensável para a circulação das graças É essencialmente pelas missas que os clérigos celebram que os bens materiais oferecidos pelos doadores transformamse em benesses para as almas Mais amplamente é pela missa sacrifício ao deus que só tem sentido porque ele é sacrifício do deus que são garantidas a um só tempo a coesão A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 179 178 Jérôme Baschet do corpo social e a circulação em seu seio da graça divina Finalmente é por que ela ocupa essa posição de operadora decisiva e de intermediária obrigatória na troca generalizada que a Igreja dispõe de tantos bens materiais que os laicos oferecem a Deus e aos santos e confiam a seus cuidados perpetuamente Não podemos terminar este primeiro esboço da organização da Igreja essencialmente fundado sobre sua capacidade de assegurar a coesão do corpo social sem evocar a parte coercitiva de seu poder À capacidade de incluir os fiéis na unidade da comunidade terrestre e potencialmente na glória da Igreja celeste corresponde um temível poder de exclusão detido pelos clérigos A excomunhão consiste com efeito em rejeitar o pecador deixandoo fora da sociedade cristã interditandolhe o acesso aos sacramentos particularmente à comunhão a qual aparece como sinal tangível da integração social e negandolhe a possibilidade de ser enterrado na terra consagrada do cemitério cristão É verdade que a excomunhão é somente uma pena terrestre que não é assimilada à danação eterna mas privando o culpado dos meios indispensáveis de salvação que são os sacramentos fazendolhe correr o risco de morrer em estado de pecado mortal não confesso ela o põe perigosamente sob a ameaça das chamas do inferno Aliás o anátema é uma forma particular de excomunhão que é associada à maldição eterna dos culpados Durante os primeiros séculos da Igreja ele era pronunciado contra os hereges tais como os discípulos de Árius aos quais o abandono da verdadeira fé não deixava mais chances de salvação do que aos que não tinham sido batizados Em seguida ele é utilizado contra todos os inimigos da Igreja em particular durante os séculos X e XI época em que se constatam também frequentes recursos às maldições monásticas pelas quais os monges não hesitam em enviar seus adversários ao castigo eterno do inferno Lester Little Além de seu uso contra os desvios heréticos a excomunhão e em certa medida o anátema são armas que a Igreja utiliza em suas lutas contra a aristocracia e os príncipes por exemplo contra o imperador Henrique IV nos anos 1070 ou Filipe I rei da França entre 1094 e 1099 Os simples laicos são frequentemente afetados por tais medidas pois a excomunhão de um grande personagem pode ser acompanhada pela interdição lançada sobre seu domínio ou seu reino os clérigos recebem então ordem de suspender ali toda celebração litúrgica fazendo pairar assim um risco de morte espiritual sobre toda a população Nessas condições não há nenhum príncipe que possa se manter muito tempo no estado de excomunhão e que não procure a reconciliação com a Igreja indispensável para suspender uma sentença tão pesada para ele e tão incômoda ao exercício de sua autoridade 47 O monopólio da escrita e da transmissão da palavra divina A Igreja não se contenta em ter no coração da ordem social o papel decisivo que acabamos de analisar Ela estrutura quase todos os quadros importantes da vida em sociedade e contribui de maneira decisiva para a sua reprodução como se verá na segunda parte Ela tem a hospitalidade entre seus deveres em geral pesada para os monastérios notadamente os beneditinos abertos por princípio a essa exigência e com frequência o único refúgio dos peregrinos e dos viajantes assim como a assistência aos pobres e doentes uma das principais justificativas dos bens possuídos pela Igreja De fato os cuidados que as técnicas limitadas da medicina medieval tornam possíveis são quase exclusivamente dispensados nos estabelecimentos que dependem do clero o HotelDeus associado a uma catedral ou a uma colegiada18 e que combina nem sempre os distinguindo a assistência aos pobres e o cuidado com os doentes os estabelecimentos da Ordem dos Hospitalários de santo Antônio criada em 1095 para acolher especialmente as vítimas do mal dos ardentes ou fogo de santo Antônio provocado pelo esporão do centeio ou ainda os estabelecimentos para cuidar dos leprosos Limitarseá aqui a evocar o quase monopólio que os clérigos exercem sobre a escrita e a transmissão da palavra divina É verdade que durante a Alta Idade Média e até o século XI a escrita tem apenas um lugar restrito na sociedade A manutenção da escrita é então uma exclusividade dos clérigos a tal ponto que a oposição entre letrados litterati e iletrados illitterati recorta exatamente a divisão entre clérigos e laicos Isso é ainda mais reforçado pelo divórcio consagrado na época carolíngia entre as línguas faladas que evoluem para formar as línguas vernáculas europeias e o latim que na impossibilidade de ser restabelecido em sua pureza clássica é mais ou menos estabilizado O latim tão pouco entendido que desde o século IX é recomendado que os sermões sejam traduzidos para a língua vulgar ganha então o status de língua da Igreja própria aos clérigos e de língua sagrada veículo exclusivo e esotérico do texto bíblico A oposição latimlíngua vernácula redobra então a dualidade litteratiillitterati constitutiva do poder sagrado dos clérigos Somente estes últimos têm acesso à Bíblia fundamento da ordem cristã eles são especialistas incontestáveis da escrita e todos os livros copiados são feitos nos scriptoria dos monastérios A partir dos séculos XI e XII os usos da escrita transformamse e diversificamse A produção de manuscritos aumenta de modo considerável na França do Norte ela é quadruplicada entre o século XI e o século XII e ainda dobra durante o século XIII época em que essa atividade é partilhada por ateliês laicos urbanos que utilizam métodos de cópia em série aumentando o ritmo de produção e diminuindo sensivelmente o preço dos livros Os monastérios redigem atos chartes cada vez mais numerosos logo copiados e reunidos nos cartulários ao passo que se multiplicam as cartas e decisões emitidas pelas chancelarias episcopais e pontifícias mas também principescas e reais onde geralmente são os clérigos que manuseiam a pena e ocupam o cargo de chanceler Sobretudo por volta de 1100 ocorre uma novidade notável que rompe com o sistema descrito anteriormente em particular com a quase equivalência estabelecida entre escritura latim e Igreja Com efeito as cortes aristocráticas onde se havia desenvolvido uma importante literatura oral em língua vulgar conseguem em geral com a ajuda dos clérigos fazer com que esta seja posta por escrito num primeiro momento canções de gesta tal como a Canção de Rolando e poesias líricas a despeito do menosprezo dos letrados por línguas tidas até ali como indignas de ser confiadas à escritura Por mais notáveis que sejam tais evoluções permanecem limitadas Apesar da crescente utilização da escrita a oralidade e os gestos rituais continuam a dominar a vida social Mesmo se as obras literárias são conservadas por escrito continuam essencialmente feitas para ser contadas ou cantadas a voz predomina sempre sobre a letra Paul Zumthor O de costume é dito oralmente na aldeia durante um ritual anual enquanto as decisões importantes são anunciadas na cidade pelos arautos A voz e o ouvido continuam a ser os canais essenciais do verbo uma carta para ser bem entendida será ouvida mais do que lida e mesmo a leitura não pode ser feita sem se pronunciar ao menos em voz baixa o texto que os olhos percorrem a leitura silenciosa que nos parece tão evidente só faz sua aparição tardia e timidamente No mais entre os séculos XI e XIII a educação dos laicos urbanos e dos aristocratas melhora sensivelmente e muitos dentre eles são ao menos semialfabetizados tendo aprendido a ler mesmo sem saber escrever Os manuscritos são sinal de prestígio tanto quanto instrumentos de leitura É posto então o problema do acesso dos laicos à Bíblia Embora a Igreja proíba com extrema severidade a posse do texto bíblico pelos laicos em particular quando confrontada com focos de heresia geralmente se esforça para restringir o acesso ao texto sagrado mais do que impedilo totalmente Assim muitas vezes os laicos possuem certos livros bíblicos em particular o de salmos no qual se aprende a ler mas não a Bíblia completa Sobretudo para eles os clérigos prescrevem o recurso a versões glosadas do texto bíblico quer dizer dotadas da interpretação julgada correta A partir da segunda metade do século XII aparecem as traduções adaptadas da Bíblia em língua vulgar mas tratase na verdade de histórias bíblicas recompostas tais como a História escolástica que retoma o princípio da Historia Scholastica de Pedro Comestor traduzida por Herman de Valenciennes ou a Bíblia Historial de Guiart des Moulins um século mais tarde Será somente na segunda metade do século XIV sob o impulso de soberanos como Carlos V da França ou de Venceslau da Boêmia que aparecerão as traduções literais e completas da Bíblia No geral mais do que opor o escrito ao oral é preciso insistir sobre suas imbricações Anita GuerreauJalabert indica que isso é de resto o modelo fornecido pela dupla natureza do verbo divino que se manifesta sob as duas formas das Escrituras e da palavra O cristianismo medieval é tanto uma religião do Livro como da palavra e o controle dos clérigos é exercido tanto através de seu acesso privilegiado às Sagradas Escrituras como pela transmissão exclusiva da palavra divina A interação entre o escrito e o oral ocorre em todos os domínios desde os prazeres da corte até as liturgias da igreja O oral é escrito o escrito procura ser uma imagem do oral Paul Zumthor A Bíblia é lida em voz alta nos monastérios e durante a missa os livros litúrgicos servem ao bom exercício da palavra e dos gestos sacramentais enquanto os sermões consignados em coletâneas cada vez mais numerosas e sofisticadas são destinados a ser pregados Enfim não poderíamos encontrar melhor exemplo dessa imbricação do que a prática do juramento que constitui um dos fundamentos das relações sociais no mundo medieval Validação indispensável a todo compromisso importante a começar pela fidelidade vassálica o juramento geralmente prestado sobre a Bíblia ou o Evangelho a menos que se recorram às relíquias tira sua força do elo formado entre a sacralidade do Livro e o peso das palavras pronunciadas Assim a escrita dotada de uma sacralidade ainda maior porque é rara e conferindo um prestígio ainda mais notável àqueles que sabem manuseála só tem sentido porque é associada a práticas sociais em que a palavra exerce papel determinante E se os clérigos perdem entre os séculos XI e XIII o monopólio da escrita conservam o essencial do domínio do dispositivo que articula a escrita e o oral Eles podem não ser mais os únicos a ler a Bíblia desde que mantenham o monopólio de sua interpretação legítima e do ensino das disciplinas encarregadas de estabelecêla como se verá a seguir Mais do que o controle absoluto da escrita o que lhes interessa sem dúvida é sobretudo o direito exclusivo de difundir a palavra de Deus como indicam a estrita vigilância em relação a toda tentativa de pregação laica e o papel estratégico dessa questão na deflagração das heresias
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
12
A Evolução do Poder Papal na Idade Média: Poder Espiritual e Temporal
História
UFAL
8
A Civilização Feudal de 1000 à Colonização da América
História
UFAL
21
Ideia de Revolucao no Brasil 1789-1801 - Carlos Guilherme Mota - Analise Historica
História
UFAL
10
Formacao de Professores Saberes da Docencia e Identidade do Professor - Analise
História
UFAL
43
Capítulo 5: Repensando Palmares - Resistência Escrava na Colônia
História
UFAL
24
Dinâmicas de Desenvolvimento Comercial na Alta Idade Média
História
UFAL
3
Resumo Ouro da Guine e o Preste Joao 1415-1499 - Imperio Colonial Portugues
História
UFAL
23
Artigo De
História
UFAL
17
Artigo de Conclusão de Curso
História
UFAL
22
A Escola Tem Futuro: Das Promessas às Incertezas
História
UFAL
Preview text
REFORMA E CRESCENTE SACRALIZAÇÃO DA IGREJA SÉCULOS XI E XII O sistema esboçado acima não se formou nem se consolidou sem lutas por vezes violentas Ele é o resultado de um processo ao longo do qual o poderio da instituição eclesial se reforçou e do qual é necessário evocar as principais etapas Mesmo se os fenômenos descritos aqui prolongam uma dinâmica iniciada desde os séculos IV a VI tratase também em certos aspectos de uma reforma sobre bases em parte antigas Como já se disse o insucesso da tentativa carolíngia livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império que ao contrário perdurará em Bizâncio No século X a disseminação do poder de comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e à paz de Deus Ao mesmo tempo o processo de encelulamento e o estabelecimento dos senhorios obrigamna a uma viva reação para evitar tornarse prisioneira da malha senhorial e a fim de ao contrário ser sua principal ordenadora O tempo dos monges e a fraqueza das estruturas seculares No século X e inícios do século XI o poderio da Igreja anda debilitado O poder do papa continua fraco submetido aos imprevistos da política imperial e dos conflitos entre as facções da aristocracia romana Do mesmo modo os bispos encontramse entregues às pressões dos aristocratas locais Os senhores laicos apropriamse do controle das igrejas das quais nomeiam os servidores paroquiais e das quais recebem os dízimos e os rendimentos A Igreja arrisca então a ser absorvida nas novas estruturas resultantes da formação dos senhorios em posição de dependência em relação aos laicos que são seus principais beneficiários O chamado a uma paz de Deus lançado repetidamente pelos clérigos durante os decênios que circundam o ano mil aparece como um primeiro esforço para evitar tal situação e defender a posição da Igreja primeira parte capítulo 11 Mesmo se por vezes o movimento da paz de Deus mobiliza o povo contra os maus costumes dos senhores laicos seu objetivo essencial é a manutenção de uma ordem senhorial que a Igreja pretende dominar Se o conjunto da hierarquia secular é enfraquecido o século X e a primeira metade do século XI são marcados por um considerável desenvolvimento monástico do qual o sucesso e a expansão de Cluny são o melhor testemunho Fundado em 910 graças a uma doação de Guilherme duque da Aquitânia e conde de Mâcon o monastério borguinhão adota a Regra beneditina e sua vocação é levar a cabo uma reforma das práticas monásticas muitas vezes além das prescrições de são Bento Três fatores ao menos contribuem para a constituição do que os historiadores não hesitaram em chamar o império cluniacense Em primeiro lugar o monastério dedicado a são Pedro e a são Paulo é posto sob a proteção direta do papa e se beneficia em 998 de uma isenção total perante o bispo que é em seguida estendida a todos os cluniacenses onde quer que se encontrem e depois a todos os estabelecimentos dependentes de Cluny 1097 Se desde o Baixo Império e sobretudo desde a época carolíngia um dos fundamentos da autoridade eclesial estava ligado ao privilégio de imunidade que subtráia os bens da Igreja de toda intervenção dos agentes da autoridade pública essa questão não tem mais grande importância e a afirmação do poderio dos monastérios em Cluny e alhures depende doravante da imunidade que retira do bispo autoridade soberana em sua diocese toda a jurisdição e todo o direito de supervisão sobre os negócios dos monges Por outro lado a igreja cluniacense ecclesia cluniacensis adota uma estrutura muito centralizada da qual Dominique IognaPrat recentemente sublinhou as linhas mestras e o funcionamento A princípio é a título pessoal que o abade de Cluny é igualmente abade dos monastérios que fazem apelo a ele para reformar seu modo de vida e seus costumes litúrgicos Em seguida ele é um arquiabade chefe de todas as casas postas sob sua dependência abadias ou com mais frequência conventos que estão sob a responsabilidade imediata de um simples prior Formase assim não uma verdadeira ordem religiosa pois não há nem organização em províncias nem instâncias colegiadas de direção mas antes uma vasta rede de estabelecimentos que adotam os mesmos costumes monásticos e estão submetidos à autoridade única do abade de Cluny Enfim Cluny sabe perfeitamente responder às necessidades de uma sociedade dominada pela aristocracia Os monges cluniacenses são especialistas em liturgia à qual dão uma importância e um fausto consideráveis figura 13 na p 186 em particular no que diz respeito à liturgia funerária e às preces para os defuntos Os aristocratas da Borgonha e de outras regiões onde os cluniacenses estão implantados dirigemse a eles pois a liturgia dos mortos de Cluny a um só tempo inscreveos na memória dos homens e aportalhes uma ajuda preciosa em vista da salvação no além Daí as múltiplas doações sobretudo de terras e de senhorios mas também de igrejas e dízimos que convergem para o monastério e suas dependências e constituem a base principal de sua riqueza Ao mesmo tempo essas doações ordenam as relações sociais no seio da aristocracia hierarquizando os doadores em função de sua generosidade para com Cluny Assim existe uma profunda implicação cluniacense na ordem senhorial a tal ponto que Cluny aparece como o espelho da consciência aristocrática Dominique IognaPrat Mas nem por isso toda tensão entre aristocracia e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 185 2 reforma e crescente sacralização da igreja JÉRÔME BASCHET A civilização feudal do ano 1000 a colonização da América São Paulo 2006 p 1841961 clerodesaparece em torno de Cluny como o lembram os conflitos de todos os tipos e as maldições monásticas com as quais os cluniacenses e os demais monges dos séculos X e XI se esforçam por fazer escudos eficazes Ao uso das maldições é preciso associar o ritual do clamor pelo qual os monges na presença das relíquias dos santos imploram a seus protetores celestes que defendam sua comunidade e os protejam das intenções diabólicas de seus inimigos Mas o socorro dos protetores celestes nem sempre é suficiente não se hesita então em proceder a um ritual de humilhação dos santos depositando suas relíquias no solo ao pé do altar como se eles devessem fazer penitência ao mesmo tempo que os monges se prosternam a fim de que a misericórdia divina os recarregue de eficácia Patrick Geary Fortalecida pelas vantagens acima indicadas a Igreja de Cluny atinge o seu apogeu sob os abadados excepcionalmente longos de Maïeul 95494 Odilon 9941046 e Hugo de Semur 10491109 que estão entre os personagens mais eminentes de seu tempo Beneficiandose de uma sólida base senhorial local os cluniacenses logo geram rivais em toda a cristandade Eles ajudam Guilherme o Conquistador a reorganizar os monastérios da Inglaterra depois de 1066 e fazem o mesmo junto aos soberanos hispânicos da Reconquista o que lhes vale o apoio financeiro tanto dos reis da Inglaterra como dos de CastelaLeão que enviam anualmente a Cluny um censo de mil depois 2 mil moedas de ouro cobradas dos sarracenos No total em 1109 a Igreja de Cluny forma uma vasta rede de 1180 estabelecimentos espalhada nas dimensões da cristandade e até a Terra Santa Sua formidável capacidade de acumulação de riquezas lhe permite construir a partir de 1088 uma nova igreja abacial chamada Cluny III consagrada em 1130 e que com seus 187 metros de comprimento é a maior igreja do Ocidente superando todas as de Roma figura 14 na p 188 Compreendese que os cluniacenses tenham frequentemente tendido a confundir sua igreja e a Igreja universal e mesmo a identificar Cluny e Roma No século XI o coração vivo da cristandade é monástico mais do que secular tanto borguinhão como romano Cluny encarna um ideal monástico exigente mas bastante presente nos negócios do mundo Enquanto a missão dos monges durante a Alta Idade Média consistia em uma retirada para longe do mundo secular os abades e as principais figuras de Cluny são levados a participar ativamente das lutas contra os inimigos da Igreja Pedro o Venerável abade de Cluny de 1122 a 1156 engajase apoiado em tratados em todas as frentes tanto contra os heréticos como contra os judeus e os muçulmanos Essa evolução reduz a distância entre os regulares e os seculares tanto que os monges cluniacenses que quase sempre receberam o sacerdócio assumem o encargo das igrejas que lhes são confiadas A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 187 14 A igreja abacial de Cluny no fim do século XVIII litografia feita antes de sua destruição Sucedendo a dois edifícios mais modestos e construída no essencial entre 1088 e 1130 a igreja abacial denominada Cluny III é então a maior igreja da cristandade medieval com seus 187 metros de comprimento 385 metros de largura e 295 metros de altura na nave central ela continuará a sóio até a reconstrução de São Pedro do Vaticano no século XVI Realização acabada dos princípios da arquitetura românica é guarnecida com fortes torres e dotada de um duplo transepto Sua abside em andar é formada por elementos estruturalmente distintos que parecem justapostos uns aos outros O arranjo em degraus de suas elevações deixa facilmente adivinhar a organização do espaço interno nave central do coro abside principal deambulatório circundando esta última e finalmente absidiolas dotadas cada uma de seu próprio altar implantandose assim na rede paroquial e engajandose nas tarefas pastorais Isso não ocorre sem que haja afrontamentos com os seculares ao longo dos séculos XI e XII até que seja reconhecido o direito dos monges de exercer tarefas pastorais sob a condição de que eles se submetam à autorização e ao controle do bispo Entretanto o próprio sucesso de Cluny e seu engajamento nos negócios seculares começam a ser objeto de críticas a interpenetração com as linhagens aristocráticas não está isenta de inconvenientes e a dependência em relação às doações se faz sentir desde que seu ritmo começa a decair enfim a proteção direta do papa por muito tempo garantia de autonomia transformase em uma pesada tutela De fato no fim do século XI e durante o século XII aparecem novas ordens monásticas que cada qual à sua maneira se empenham em reafirmar a dimensão eremita do ideal monástico a qual sem a negar Cluny havia contrabalançado com poderosas interações com a vida secular Uma opção eremita radical é assumida pela Ordem dos Camáldulos criada por são Romualdo pelos Cônegos Regulares Premonstratenses ordem fundada por são Norberto de Xanten pela Ordem de Fontevraud criada por Roberto De Arbrissel e sobretudo pela Ordem dos Cartusianos fundada por Bruno e santo Hugo de Grenoble em 1084 e cuja organização é codificada por Guigo I Os monges cartusianos que dispõem de celas individuais no interior do monastério em vez do dormitório e do refeitório coletivos previstos pela Regra de são Bento têm a experiência de uma solidão quase total inteiramente devotada à penitência e à prece Do mesmo modo a Ordem Cisterciense fundada por Roberto de Molesmes em 1098 e cujo desenvolvimento é obra de são Bernardo de Claraval 10901153 encontrase sob vários aspectos em contraposição ao tipo monástico cluniacense mesmo se Bernardo é igualmente um dos personagens mais influentes de seu tempo e principalmente um ardente pregador da cruzada Assim os monges brancos em sinal de austeridade eles recusam a cor negra das vestes dos cluniacenses implantamse muitas vezes nas zonas mais isoladas e mais selvagens e esforçamse para evitar que os seus monastérios se tornem o centro de burgos como foi o caso de Cluny desde o fim do século X Em oposição à riqueza e ao ouro resplandecente dos rituais cluniacenses são Bernardo impõe a maior severidade à vida dos monges assim como aos edifícios em pedra nua que os abrigam proscrevendo toda escultura ou toda imagem que pudesse desviar a sua atenção da prece e da meditação piedosa Enfim os cistercienses recusam possuir igrejas e receber dízimos por respeito à função própria aos seculares e afirmam que os monges devem sobreviver graças ao seu próprio labor suscitando assim o horror dos cluniacenses que julgam tal atividade degradante e incompatível com o dever da prece É verdade que os cistercienses A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 189 logo recorrem aos irmãos conversos laicos encarregados de tarefas produtivas mas ao menos conservam a ideia de uma exploração direta de seus domínios mais do que um recurso ao quadro senhorial o que em geral lhes permite obter resultados notáveis em matéria de exploração agrícola e de produção metalúrgica Mas também nisso o sucesso a ordem tem 343 estabelecimentos quando da morte de são Bernardo e perto de seiscentos no final do século XII tem consequências paradoxais os dons acumulamse e a decocação das igrejas e dos manuscritos distanciase rapidamente dos princípios austeros do fundador Reforma secular e sacralização do clero O processo que os historiadores se habituaram a nomear reforma gregoriana a partir do nome de Gregório VII papa de 1073 a 1085 não pode ser reduzido a seus aspectos mais factuais e mais ruidosos a luta entre o papa e o imperador e a reforma moral do clero Movimento muito mais profundo e de mais ampla duração que a fase aguda dos anos 10491122 ele visa a uma reestruturação global da sociedade cristã sob a firme condução da instituição eclesial Os seus eixos principais são a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizadora do papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e clérigos Tratase de nada menos que reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio do mundo feudal Aparentemente a exigência de reforma lançada pelo papa Leão IX 104954 apresentase como um ideal de retorno à Igreja primitiva de resto durante mais de um milênio esta é a justificativa de toda intenção de transformar a Igreja conforme a lógica medieval dos renascimentos De fato tratase de restaurar a hierarquia eclesiástica liberandoa do controle dos laicos e impedindo as intervenções destes nos negócios da Igreja consideradas doravante ilegítimas Assim um dos slogans dos primeiros reformadores entre os quais Humberto da Silva Candida morto em 1061 e Pedro Damião 100772 convoca à libertas ecclesiae libertação da Igreja o que é preciso entender evidentemente como um combate pela defesa da ordem sacerdotal O imperador é o primeiro visado pois o modelo carolíngio e bizantino ainda ativo faz dele o chefe de todos os cristãos apto a este título a intervir nas questões eclesiásticas e também porque nessa época ele ainda impõe seus candidatos ao trono romano a começar pelo próprio Leão IX Sem entrar nos detalhes da luta entre o papa e o imperador que realaram a historiografia tradicional da reforma gregoriana podese indicar que ela atinge sua intensidade máxima sob Gregório VII com as excomunhões reiteradas de Henrique IV sua penitência em Canossa em 1077 com o intuito de suspender a primeira delas e em troca a tentativa imperial para depor o papa e a morte deste no exílio em Salerno Tal luta tem como implicação o confronto entre duas supremacias doravante incompatíveis como o indicam com toda a clareza os Dictatus papae o exaltado manifesto de Gregório VII É igualmente tradicional concentrar a atenção sobre a questão das investiduras dos bispos que polariza o conflito entre o papa e o imperador O problema certamente não é desprovido de importância pois os bispos estão entre os raros instrumentos da autoridade imperial e exercem ao mesmo tempo um poder temporal e um cargo espiritual Ora dandolhes investidura pelo cajado e pelo anel o imperador parece confiarlhes tanto um como outro e é isso que Gregório VII considera inadmissível Serão necessárias longas décadas de conflitos e de soluções inaplicáveis como aquela do tratado de Sutri 1111 para que o imperador Henrique V e o papa Calisto II cheguem a um compromisso viável a Concordata de Worms em 1122 Distinguirseão então os poderes temporais do bispo temporalia e seus poderes espirituais spiritualia de modo que o imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro enquanto os últimos são objeto de uma investidura pelo anel e pelo cajado que só pode ser realizada por outros clérigos Sobretudo o princípio da libertas ecclesiae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger o seu bispo o tem como efeito retirar dos laicos imperador rei ou conde o controle do recrutamento episcopal Enquanto este controle era até ali amplamente monopolizado pela alta aristocracia a nova situação favorece a pequena e a média aristocracia que prevalece nos próprios cabidos A partir disso a elevação ao episcopado constitui para seu beneficiário uma importante ascensão social o que apenas pode incitálo a exercer suas prerrogativas com maior intransigência inclusive perante os membros de sua própria parentela Essa modificação no recrutamento dos bispos revelase então propícia à defesa dos interesses da Igreja e a uma separação e uma concorrência mais marcadas entre o alto clero e a aristocracia laica o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormente Assim a aplicação do princípio de libertas ecclesia cria as condições sociais de um reforço desta mesma libertas Além dos bispos é o status do clero em seu conjunto que está em jogo Com efeito os reformadores denunciam os sacerdotes considerados indignos e incitam os fiéis a evitálos e mesmo a desobedecerlhes o que Gregório VII legitima afirmando que com a exortação e a permissão do papa os inferiores podem se tornar acusadores Multiplicamse assim os movimentos populares de oposição ao clero suscitados é verdade pela fração reformadora deste mas sempre suscetíveis de ir além de seus objetivos Tal é o caso da Pataria que a A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 191 partir de 1057 e durante duas décadas subleva os milaneses contra seu arcebispo arrogase o direito de depor os sacerdotes acusados de corrupção e de nomear seus sucessores De Leão IX até meados do século XII a condenação de dois males principais serve de palavra de ordem e de meio de ação aos reformadores a simonia definida como a aquisição ilícita de coisas sagradas por meio de bens materiais o nome vem de Simão o Mago que queria comprar de são Pedro o poder de fazer milagres e o nicolaísmo que caracteriza os clérigos casados ou que vivem em concubinato Os dois são indícios de problemas mais profundos Sob o nome simonia combatese toda forma de intervenção dos laicos dos negócios da Igreja e particularmente a posse senhorial das igrejas e dos dízimos Com efeito esta tem como consequência os clérigos receberem seus encargos sagrados das mãos impuras dos laicos enquanto estes últimos recebem uma parte substancial dos rendimentos do benefício concedido Assembleias sinodais e decisões pontifícias reclamam então a restituição das igrejas retidas pelos laicos o que beneficia os monges especialmente os cluniacenses sobretudo num primeiro momento antes que as paróquias sejam com mais frequência entregues à tutela episcopal O ritmo das restituições é bastante variável segundo as regiões mas é em geral bastante lento são raras as zonas onde resultados notáveis são atingidos no início do século XII É sobretudo na segunda metade deste século e na primeira metade do seguinte que o movimento se acelera assim na bacia parisiense os laicos não controlam mais do que 5 das igrejas por volta de 1250 mesmo se por vezes como na Normandia eles ainda detenham por volta de 1300 entre um terço e a metade das igrejas Quanto ao celibato dos clérigos ele já era reivindicado pelos concílios desde o século V mas tratase então de uma exigência moral mais do que uma norma rigorosamente imperativa Ainda no século XI ela é respeitada muito relaxadamente e vários sacerdotes são casados ou vivem em concubinato já que as designações senhoriais não favorecem absolutamente a atenção a esses critérios Mas seria errado ver nisso apenas um problema de moral pois se trata sobretudo de definir o estatuto do clero Fazendo da renúncia inapelável à sexualidade e por consequência do celibato a regra definidora do estado clerical a reforma empenhase em sacralizar os clérigos o que segundo a etimologia deste termo quer dizer colocálos à parte distinguilos radicalmente dos laicos no mesmo momento em que a Igreja estabelece para estes últimos um modelo cristão de casamento segunda parte capítulo v A obsessão da pureza do clero e o cuidado em afastar dele todo risco de mácula que poderia ser provocada por um contato intempestivo com os laicos com as riquezas materiais e com a carne estão à altura da nova sacralidade reivindicada pelos clérigos Esta se manifesta principalmente pela evolução do ritual de ordenação que afastandose da simplicidade dos séculos precedentes multiplica os símbolos da graça e do poder espiritual conferidos ao sacerdote A transformação das concepções eucarísticas segunda parte capítulo II é um outro sinal disso pois a doutrina da presença real de que o papado se apropria em meados do século XI confere ao sacerdote o poder de produzir pela sua própria boca o corpo e o sangue do Senhor segundo os termos de Gregório VII ou seja realizar a cada dia o incrível milagre de transformar o pão e o vinho em carne e sangue verdadeiro corpo de Cristo realmente presente no sacramento Esta é uma das questões centrais das transformações que afetam a Igreja durante os séculos XI e XII produzir uma sacralização máxima do clero que ao mesmo tempo reforce o seu poder espiritual e interdite aos laicos toda intervenção profanadora no domínio reservado da Igreja Sacralizar é separar Ora o movimento de reforma só procede por separação Ele distingue as spiritualia que só podem ser detidas e conferidas pelos clérigos e as temporalia às quais os laicos devem se limitar Ele impõe uma série de oposições paralelas entre o espiritual e o material entre o celibato e o casamento entre os clérigos e os laicos e esforçase para evitar toda mistura entre essas categorias que é preciso notar só é condenável no caso de contaminação do espiritual pelo material de mácula dos clérigos pela ação dos laicos a relação inversa sendo considerada ao contrário positiva Ao fim desse processo de separação Graciano pode afirmar como se viu que existem dois tipos de cristãos É o que já era anunciado quase um século antes a título de programa por Humberto da Silva Candida em seu Livro contra os simoniacos Assim como os clérigos e os laicos são separados no interior dos santuários pelos lugares e pelos ofícios eles também devem diferenciarse no exterior em função de suas respectivas tarefas Que os laicos se consagrem somente às suas tarefas os negócios mundanos e que os clérigos aos seus quer dizer os negócios da Igreja A relação entre a instituição eclesial e a comunidade cristã só pode ser profundamente transformada em decorrência e é por isso que como já se disse nos séculos XI e XII a palavra Igreja passa a significar principalmente o clero parte eminente que vale pelo todo do qual ele assegura a salvação enquanto se recorre com mais frequência à noção de christianitas para designar o conjunto da sociedade cristã ordenada sob a condução de seu chefe O poder absoluto do papa A autoridade pontifícia afirmase em estreita conjunção com os processos já mencionados Um primeiro passo consiste em garantir a autonomia graças ao decreto de 1059 pelo qual Pascal II funda o colégio dos cardeais e atribuilhe o A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 193 encargo de eleger o papa a fim de subtraíla das intervenções do imperador ou da aristocracia romana Se ao longo do século XII a história do papado ainda é marcada pela instabilidade especialmente no momento do cisma de 1130 e por uma situação financeira frágil a estabilização impõese a partir dos anos 1190 Pouco a pouco a cúria pontifícia reorganiza suas receitas e melhora suas engrenagens administrativas em particular para afirmar sua autoridade no Patrimônio de são Pedro Paralelamente suas intervenções em domínios cada vez mais numerosos estendemse ao conjunto da cristandade a tal ponto que o papado parece governar a cristandade como uma única diocese Giovanni Miccoli Doravante o papa tem jurisdição para intervir em todos os litígios eclesiásticos e suas decisões transmitidas pelos decretos papais são reunidas sob Gregório IX 122741 no Liber extra que forma junto com o Decreto de Graciano a base renovada do direito canônico quer dizer o conjunto das normas aplicáveis no seio da Igreja Além disso os bispos cuja eleição é cada vez mais controlada pelo papa são periodicamente obrigados às visitas ad limina aos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo como sinal de obediência à autoridade romana E se de início os reformadores se apoiaram nos monges contra bispos excessivamente ligados aos poderes laicos uma vez a hierarquia secular retomada Roma favorece cada vez mais os bispos limitando as isenções monásticas que amputam sua autoridade e aliase a eles a fim de garantir um melhor controle das redes regulares em particular as cluniacenses Enfim numerosas decisões que antes eram da responsabilidade dos bispos ou arcebispos passam para a alçada exclusiva do papa Não há melhor exemplo da centralização pontifícia do que a transformação dos procedimentos de canonização postos em evidência por André Vauchez Se durante a Alta Idade Média e ainda no século XI a santidade se revelava geralmente pelo desenvolvimento de um culto popular reconhecido e legitimado pelo bispo pouco a pouco o papa arrogase a indispensável confirmação das canonizações e também por decorrência a possibilidade de proibir os cultos que se desenvolveram sem sua autorização Depois Inocêncio III 11981216 edita as normas obrigatórias de todo processo de canonização sendo que sua parte essencial deve ser efetuada na cúria romana Mesmo se a distinção entre santos e beatos ainda permite conceder um pouco de espaço aos cultos locais o poder de dar santos à cristandade é doravante um privilégio estritamente pontifício No geral a instituição eclesial ganha a forma de uma hierarquia bem ordenada sob autoridade absoluta do papa e os nomes de Inocêncio III e Gregório IX correspondem sem dúvida ao apogeu do poder pontifício que nesse momento é a mais poderosa das monarquias do Ocidente a mais parecida com a de Cristo Tal afirmação da autoridade do papa não pode ocorrer sem um amplo trabalho de justificação teórica e sem manifestações simbólicas ostensivas Há muito tempo o papa beneficiase de uma proeminência de honra como sucessor de são Pedro tido como o primeiro bispo de Roma Com efeito o papa é como indica seu título o vicário de Pedro seu representante na terra de onde a importância dos discursos e das imagens que sublinham a proeminência de Pedro príncipe dos apóstolos fundador da Igreja investido do poder das chaves e figurado a este título como porteiro do paraíso a partir do século XI figura 21 na p 211 Mas isso ainda é muito pouco e ao longo do século XII e sobretudo com Inocêncio III o papa se reserva o título de vicário de Cristo Proclamandose a imagem terrestre do Salvador ele manifesta o caráter monárquico de seu poder à imagem da realeza de Cristo ele se afirma como o chefe da Igreja desse corpo do qual Cristo é justamente a cabeça A identificação de Cristo e de seu representante terrestre é cada vez mais forte e Álvaro Pelayo pode afirmar em 1332 que o fiel que olha o pontífice com os olhos da fé vê o Cristo em pessoa Insígnias exclusivas vêm exprimir a natureza desse poder Durante o século XII o papa porta uma tiara em que a coroa símbolo da realeza de Cristo juntase à mitra dos bispos depois a partir de Bonifácio VIII por volta de 1300 a tiara pontifícia é ornada de três coroas como visto na figura 12 nas pp 176 e 177 Ao longo do mesmo período os rituais pontifícios assumem grandeza crescente mas como mostrou Agostino Paravicini Bagliani o caráter espiritual do poder pontifício obriga sempre diferentemente dos outros soberanos medievais a aliar fausto e humildade Do mesmo modo que Pedro Damião insiste ao exaltar a supremacia romana sobre a fragilidade humana dos pontífices e a brevidade de seus reinos numerosos rituais a começar pelo da investidura multiplicam os símbolos de rebaixamento e relembram o caráter mortal do papa como se fosse necessário enfatizar a humildade do homem para melhor exaltar a instituição É que a identificação crescente do papa com Cristo e a tendência em fazer do primeiro a encarnação verdadeira da Igreja universal impõem anteparos para evitar confundir o homem e a função O risco está longe de ser inexistente como mostra o caso de Bonifácio VIII 12941303 que pretendendo exercer um poder ainda mais absoluto do que seus predecessores chega a confundir o corpo da Igreja e seu próprio corpo pessoal a ponto de mandar pôr seu busto sobre os altares e o que lhe valerá uma acusação de magia sonha adquirir pelo consumo de ouro comestível a mesma imortalidade da instituição de que ele é temporariamente o titular Ao mesmo tempo entre os séculos XI e XIII afirmase a doutrina do primado pontifício em virtude da qual o papa se sobrepõe a todas as outras autoridades e A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 195 constitui a fonte de todo poder na Igreja Já encorajada por Inocêncio III encontrase uma clara expressão sua no liturgista Guilherme Durand 1296 o papa dirige dispõe e julga todas as coisas ele pode suprimir todo direito e governar acima do direito ele próprio está acima de tudo e tem na terra a plenitude do poder Estamos longe do modelo legado por Gelásio 1 49296 que estabelecia uma partilha equilibrada entre a autoridade dos clérigos que se sobrepõe em matéria espiritual e o poder dos laicos que se impõe na esfera temporal Mas isso quer dizer que agora todos os poderes temporais concernem ao menos indiretamente ao papa A questão continuou a ser debatida sendo objeto de diversas formulações moderadas ou radicais É verdade que Gregório VII afirma que os sacerdotes de Cristo devem ser considerados os pais e senhores dos reis príncipes e de todos os fiéis e é provável que ele sonhasse em restabelecer a velha unidade do poder temporal e do poder espiritual mas dessa vez em proveito do papa e não do imperador Girolamo Arnaldi Ele afirmava de resto nos Dictatus papae que apenas o papa tinha o direito de uso das insígnias imperiais tendência que um texto dos anos 1160 a Summa perusina amplifica ainda mais enfatizandoa O papa é o verdadeiro imperador Esta pretensão a um papado imperial plena realização na terra do poder real de Cristo nem sempre é apenas teoria Assim quando ele proclama a cruzada em 1095 Urbano II usurpa manifestamente uma prerrogativa imperial e põe o papa de modo duradouro na posição de guia da cristandade em um domínio que deveria ser próprio da competência do imperador Mas no geral a cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma teocracia na qual a Igreja deteria efetivamente a soberania nos negócios temporais As afirmações mais combativas sem dúvida visavam menos a ser inteiramente postas em prática do que a consolidar o essencial a proeminência da monarquia pontifícia sobre todos os outros poderes do Ocidente e o reconhecimento do papa como guia da cristandade Ao término dos processos descritos aqui o caráter dominante da instituição eclesial está mais marcado do que nunca Esta é reformada sob a autoridade absoluta e centralizadora do papado e a dominação dos clérigos sobre os laicos é fortalecida graças a uma separação hierárquica cada vez mais vigorosa entre uma casta sacralizada e o comum dos fiéis Essa reorganização é acompanhada por numerosas transformações que afastam a cristandade ocidental de suas origens por exemplo no que concerne à associação de Constantino entre a Igreja e o Império e que não acontecem no Oriente bizantino O cisma de 1054 consumado precisamente durante o pontificado de Leão IX acompanha muito logicamente o momento em que a forma ocidental da Igreja cristã se desenha em toda a sua clareza 15 O mosteiro românico de San Pere de Roda Catalunha século XI Consagrada em 1022 a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambulatórios de sua nave terminada na segunda metade do mesmo século não é menos audaciosa Do exterior distinguemse a igreja abacial e seu campanário a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório duas outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges O mosteiro apresentase como uma cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta dominando orgulhosamente a solitude em torno SÉCULO XIII UM CRISTIANISMO COM NOVAS ENTONAÇÕES Entre os séculos XI e XIII o Ocidente transformase de modo considerável Se fosse preciso escolher um edifício para simbolizar a Europa do século XI este seria sem dúvida um mosteiro beneditino tal como o de San Pere de Roda na Catalunha com ares de fortaleza suspensa no flanco de uma colina dominando a partir de seu soberbo isolamento os campos circundantes figura 15 acima Para exprimir as realidades do século XIII seria necessário pensar ao contrário em uma catedral gótica tal como a de Bourges audacioso edifício no coração da cidade figura 16 na p 198 De um edifício a outro passase de um universo rural ainda fracamente povoado para um mundo mais densamente ocupado onde a cidade tem um papel notável ilustração VIII na p 199 Ao mesmo tempo a dominação dos monges cede terreno diante da reafirmação do clero secular A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 197 Propostas aos gurus Elaborar um resumo de cada texto contendo no máximo duas laudas cada resumo Dos arquivos que enviei Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo n 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de IAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3a reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de IAmerique ISBN 9788525041395 I Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr 5 A Igreja articulação do local e do universal BACHET Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América São Paulo 2006 pp 358370 Grupo 5 nação da vida humana O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações mundanas e desejando atingir sua pátria celeste o lugar do Pai divino a fim de gozar da estabilidade da morada eterna santo Agostinho Poderia parecer paradoxal que o mundo do encelulamento cujo ideal é a estabilidade local conceba a vida terrestre como um deslocamento e o homem como um viajante um homo viator segundo um tema muito corrente na época É que em vista das exigências cristãs o aqui embaixo é um vale de lágrimas uma passagem transitória e exterior por oposição ao verdadeiro lugar objeto de todas as esperanças que é o além celeste Nesse sentido a única verdadeira estabilidade é encontrada junto a Deus enquanto o mundo terrestre como todo espaço exterior é associado a um deslocamento sinônimo de perigo e de insegurança de provação e de sofrimento De resto tanto a peregrinação como a cruzada valorizam o movimento porque se trata de prática excepcional Na cristandade existem é verdade alguns grupos que se movimentam muito mercadores que viajam para longe e clérigos que para estudar nas universidades mais reputadas realizam longos périplos abades que visitam os estabelecimentos postos sob sua autoridade e mais tarde frades mendicantes enviados de um convento a outro ao sabor das exigências da ordem e que praticam habitualmente a pregação itinerante Mas ainda aqui esses deslocamentos só são valorizados na medida em que se constituem como exceções e contribuem para reforçar as estruturas de dominação que garantem a stabilitas loci da imensa maioria dos produtores Além disso tais viagens obedecem a imperativos precisos diferentemente desses clérigos chamados gróvagos ou golliardos que não são vinculados a nenhuma função ou a nenhum lugar e cuja instabilidade excessiva é vigorosamente denunciada Entrase assim na categoria dos vagabundos estes escapando ao princípio da estabilidade local são incluídos por Bertoldo de Ratisbona 121072 na família do Diabo e são vítimas de uma repressão cada vez mais rigorosa a partir do século XIV A IGREJA ARTICULAÇÃO DO LOCAL E DO UNIVERSAL Por universal designase aqui a cristandade romana tomada em sua globalidade quer dizer um universal relativo de resto não poderia ser diferente pois os valores universais nunca são mais do que a universalização de valores particulares segundo a expressão de Pierre Bourdieu O valor que essa totalidade pôde assumir através dos séculos medievais é aliás variável Nos séculos V e VI a Igreja aparece essencialmente como uma coleção de dioceses largamente autônomas Cada bispo detentor de um poder espiritual e temporal considerável é senhor em seu domínio e o bispo de Roma dispõe apenas de uma proeminência simbólica ainda mal estabelecida Depois a época carolíngia marca uma primeira afirmação da unidade cristã sob instigação do imperador e do papa Bento de Aniana unifica o movimento monástico ocidental com base na regra beneditina enquanto a uniformização litúrgica difunde os hábitos romanos e eclipsa pouco a pouco as outras tradições Enfim a reforma eclesial dos séculos XI e XII e seus prolongamentos até o século XIII reforçam consideravelmente os poderes do papa bem como sua proeminência simbólica A centralização pontifícia tornase então a forma concreta assumida pela unidade da cristandade O papa é a sua encarnação e a projeta além dela mesma conclamando à cruzada ou mais tarde concedendo aos reinos ibéricos um direito de conquista garantindolhes o monopólio indispensável à exploração do Novo Mundo bula Inter caetera de Alexandre VI em 1493 Tratado de Tordesilhas em 1494 Alteração da doutrina eucarística A transformação da doutrina eucarística é ao mesmo tempo um indício e um instrumento da reorganização espacial da cristandade Nos primeiros séculos do cristianismo a celebração eucarística é concebida como um ato de memória conforme as palavras de Cristo que convida seus discípulos no momento da Última Ceia a refazer os mesmos gestos em minha memória O pão e o vinho utilizados são então apenas os símbolos do corpo e do sangue de Cristo servindo para comemorar seu sacrifício Para Agostinho Cristo está presente no sacramento como figura de modo que entre a hóstia e o corpo de Cristo existe a mesma diferença que entre um signo e a coisa que ele significa Prevalece então uma grande proximidade entre os fiéis e o altar sobretudo porque os pães utilizados para o ritual são idênticos àqueles destinados à alimentação corrente e são oferecidos pelos membros da assistência Depois esses pães denominados oblata continuam a ser recebidos pelos clérigos mas não são mais levados para o altar e a partir do século IX são utilizados para o sacrifício pães não fermentados ázimos Essa distância em relação à realidade profana contribui para estabelecer uma separação entre os laicos e o altar é de resto um dos aspectos da divergência com o Oriente bizantino que conserva o uso do pão fermentado No século IX aparece também a primeira polêmica importante em matéria eucarística O liturgista Amalário de Metz e sobretudo Pascásio Radberto introduzem noções que se distanciam da concepção simbólica do A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 359 sacramento em vigor até então A reação é forte e clérigos como Rábano Mauro e Ratramno de Corbie batalham para manter a teoria agostiniana Mas o debate se esgota rapidamente sem dar lugar a nenhuma definição doutrinal como se tratasse de opiniões individuais que não requeriam a intervenção das autoridades eclesiásticas A polémica é retomada em meados do século XI momento em que a teologia eucarística começa verdadeiramente a se desenvolver Berengário de Tours um clérigo bem formado nas escolas da região do Loire e professor em Tours provoca por volta de 1040 uma indignação geral embora não faça mais do que reafirmar as concepções tradicionais de Agostinho e de todos os autores anteriores ao século IX confirmandoos com novas justificativas de natureza gramatical em particular uma análise profunda da fórmula central da missa hoc est corpus meum31 Numerosos autores como Lanfranc du Bec ou Guitmond de Aversa apoiados pelo papa Leão IX e Gregório VII e pelas principais figuras da reforma gregoriana opõemse então a Berengário Convocado por numerosas assembleias eclesiásticas ele é obrigado a retratarse e suas concepções são condenadas por uma bula pontifícia em 1059 Isso mostra claramente que uma ortodoxia eucarística inteiramente nova está em vigor a partir de então Não está mais em questão uma evocação simbólica e espiritual de Cristo mas uma presença substancial do corpo de Cristo na hóstia A bula de 1059 não hesita em afirmar que o pão e o vinho são o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo eles são fisicamente tomados e verdadeiramente comidos pelos fiéis Doravante explicase que existe uma unidade essencial entre as três formas do corpus Christi a hóstia consagrada o corpo histórico de Cristo e a Igreja Como a hóstia é assimilada ao corpo histórico de Cristo podese afirmar que Cristo está realmente presente no sacramento A hóstia não é mais então um símbolo que dá suporte a um ato de memória ela faz experimentar a presença real de Cristo presença não espiritual mas material de seu verdadeiro corpo Assim quando o sacerdote consagra a hóstia uma metamorfose se realiza um milagre diz Hugo de SaintVictor o pão e o vinho deixam de ser substancialmente pão e vinho eles se transformam e se tornam essencialmente o corpo e o sangue de Cristo mesmo se as espécies acidentais as aparências do pão e do vinho subsistam e permaneçam visíveis É essa metamorfose que é nomeada pelo termo transubstanciação atestado pela primeira vez na obra do teólogo Roberto Pullus por volta de 1140 e que insiste judiciosamente sobre a transformação da substância sem fazer um prejulgamento acerca da manutenção das aparências acidentais 31 Eis meu corpo N T 360 Jérôme Baschet Tal teoria qualificada de realismo eucarístico não tem nenhum fundamento nem nas Escrituras nem na tradição ela supõe então resolver enormes dificuldades lógicas e intelectuais Sua implantação é lenta avançando à medida que são aperfeiçoadas as argumentações lógicas que permitem contrapor as múltiplas objeções possíveis Além disso em seu esforço para impor uma doutrina sem precedente as proposições combativas do período entre 1050 e 1130 geram formulações bastante rudes que insistem muito literalmente sobre a presença material do corpo de Cristo na hóstia e sobre sua ingestão pelos fiéis Ora os autores ulteriores não tardam em perceber as dificuldades de semelhantes afirmações notadamente porque uma concepção exageradamente realista arrisca limitar Deus no tempo e no espaço Finalmente Tomás de Aquino propõe uma síntese nuançada e moderada Para ele a presença física de Cristo na hóstia realizase de uma maneira que não é material mas invisível e espiritual de modo que o corpo do Salvador é comido não sob sua forma natural mas sob sua espécie sacramental O essencial não é entretanto absolutamente posto em causa a saber a transubstanciação a presença real e a identidade substancial da hóstia e do corpo histórico de Cristo Práticas inéditas manifestam o brilho recentemente adquirido pelo sacramento eucarístico Assim o gesto pelo qual o sacerdote eleva a hóstia após suas palavras de consagração aparece justamente na região de Tours no século XI como que para apoiar o realismo eucarístico em face dos perigos das teorias declaradas heterodoxas de Berengário Depois entre 1198 e 1203 o bispo de Paris Eudes de Sully prescreve o uso desse gesto em sua diocese até que essa nova prática termina por se difundir em todo o Ocidente Compreendese a importância desse gesto que torna sensível o efeito das palavras de consagração e sublinha o caráter extraordinário da transubstanciação que provocam A elevação exibe a presença real de Cristo e a submete à adoração de todos Esse gesto tornase então tão importante que ele concentra a atenção dos fiéis a tal ponto que assistir à elevação lhes pareça um substituto aceitável da comunhão Isso não é surpreendente se for lembrado que esta última permanece rara para a maioria dos fiéis que não têm razões para ir além da obrigação anual fixada pelo Concílio de Latrão IV É que a eucaristia é um objeto tão sagrado e portanto tão perigoso para o homem exposto ao pecado que é melhor não ser excessivamente zeloso Do mesmo modo assistir à elevação parece uma maneira suficiente e menos arriscada de adorar a Deus e no século XIII são conhecidos fiéis que correm de uma igreja a outra para testemunhar o maior número possível de elevações E se os teólogos sublinham que a visão da hóstia não é um sacramento eles lhe atribuem todavia uma notável virtude espiritual comparandoa à comunhão e qualificandoa de mastigação pela visão manducatio per visum Sem dúvida é para canalizar tal devoção e mais largamente para permitir o prolongamento do triunfo da presença real que a Igreja instaura uma nova festa dedicada ao próprio sacramento eucarístico o Corpus Christi Realizada em Liège desde os anos 1240 ela é oficializada pelo papa Urbano IV em 1264 e floresce sobretudo sob o estímulo do papa de Avignon Clemente V no início do século XIV No momento dessa festividade solene a hóstia consagrada exibida em um ostensório transparente e assim tornada visível a todos os fiéis é levada em procissão sob um pálio através da cidade depois é celebrado um ofício especial chamado Corpus Christi cuja redação é devida a Tomás de Aquino A procissão que faz sair o objeto sagrado de seu próprio lugar o que não deixa de ser perigoso exibe o poder sacralizado do clero que toma posse do espaço urbano graças à deambulação de seu emblema maior a hóstia Nos últimos séculos da Idade Média a devoção eucarística adquire incessantemente importância crescente cujo reverso é o horror suscitado pelas narrativas de profanação da hóstia Frequentes a partir do século XIII elas são comumente utilizadas contra os judeus que são acusados assim de repetir contra o sacramento o crime cometido contra Jesus mas sobretudo afiançam o realismo eucarístico que prova da presença real é melhor do que uma hóstia que sangra De resto fora as narrativas de profanação milagres cada vez mais frequentes concorrem para exacerbar o culto eucarístico assim o Menino Jesus aparece nas mãos do sacerdote no momento da elevação como na visão do rei Eduardo o Confessor relatada por Mateus Paris no século XIII como vista na figura 31 na p 363 a não ser que a hóstia sangre acima do altar ou se transforme em carvão ardente na boca de um mau sacerdote Enfim entre os simples fiéis o desejo de ver a hóstia não se enfraquece concorrendo sempre com a prática da comunhão A eucaristia tornase assim nos três últimos séculos da Idade Média um supersacramento superior a todos os outros pois permite o contato de maneira repetida com a presença corporal de Cristo Miri Rubin Por que uma doutrina eucarística tão nova é formulada entre os séculos XI e XII Podese sem muita dificuldade sustentar que essa revolução doutrinal está em estreita relação com duas transformações sociais maiores desse mesmo período o encelulamento e a acentuação da separação entre clérigos e laicos Com toda a evidência a doutrina da presença real ressalta a eminência do ritual eucarístico e lhe confere uma sacralidade espetacular reforçada Ela atribui então um poder simbólico ampliado ao sacerdote capaz de realizar um ato tão extraordinário como a transmutação do pão em carne e do vinho em sangue A um só tempo fora do domínio do natural ou contranatureza diz o teólogo Simão de Tournai e indispensável à salvação de todos a operação realizada pelo sacerdote reforça sua sacralidade e justifica a distância que separa 31 Cristo aparece miraculosamente na hóstia c 125560 abadia de SaintAlbans ou Westminster História do santo rei Eduardo Cambridge University Library Ee359 p 37fl 27 Celebrando a missa o sacerdote faz o gesto característico da elevação da hóstia É então que segundo o relato por vezes atribuído a Mateus Paris o santo rei Eduardo o Confessor teria tido a visão do Menino Jesus nas mãos do sacerdote no lugar da hóstia Esse tipo de milagre mencionado em vários relatos a partir do século XII é uma maneira de confirmação exemplar da doutrina da transubstanciação e da presença real Com efeito como fazer entender de melhor modo que a hóstia se torna realmente o corpo de Cristo e que este se torna realmente presente pelas palavras e pelos gestos do sacerdote clérigos e laicos Podemos então afirmar a existência de um laço fundamental entre o reforço do poder clerical e o desenvolvimento da nova teologia da eucaristia Miri Rubin Isso é tornado ainda mais claro pelo fato de que no século XII no mesmo momento em que é instaurado o realismo eucarístico o cálice é salvo casos excepcionais retirado dos laicos e o sacerdote passa a ser o único a comungar sob as duas espécies A distância entre clérigos e laicos é marcada assim por uma diferença ritual bem visível e uma reivindicação dos 362 Jérôme Baschet radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicação progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosa enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz 363 a civilização feudal partidários de Hus no século XV é que ela seja abolida e que se restitua aos laicos a comunhão sob as duas espécies De maneira ainda mais clara a maior parte dos hereges notadamente os cátaros e os lolardos e depois os reformados contesta radicalmente a doutrina da presença real transformada no fundamento do poder exorbitante reivindicado pela casta sacerdotal Realismo eucarístico lugar sagrado e comunhão eclesial Se o realismo eucarístico responde às necessidades de uma sociedade fundada sobre a separação radical entre clérigos e laicos contribui igualmente para o ordenamento espacial do sistema feudal Com efeito a presença real valoriza o ritual local que se realiza em cada igreja sobre cada altar ali naquele exato lugar está verdadeiramente presente o corpo de Cristo Ora um evento tão extraordinário como a presença real do Salvador não pode se produzir senão em um lugar fortemente sacralizado vigorosamente extraído do espaço terrestre normal É por isso que o realismo eucarístico está estreitamente ligado à nova doutrina do lugar eclesiástico estabelecida no mesmo momento e igualmente desprovida de fundamentação nas Escrituras ou na Patrística como bem demonstrou Dominique IognaPrat Nos primeiros séculos do cristianismo a questão do lugar onde seria realizada a celebração tem pouca importância ela é quase sem interesse e qualquer mesa por mais modesta que seja pode servir de altar A reticência em relação ao enraizamento espacial das práticas de culto domina então Michel Lauwers e Agostinho faz ainda esta pergunta irônica São os muros que fazem os cristãos Uma primeira transformação intervém no fim do século IV quando a presença de relíquias no altar é julgada útil e mais tarde em 401 considerada indispensável para a celebração da missa santo Ambrósio explica que do mesmo modo que as almas dos mártires aparecem sob o altar celeste do Apocalipse os corpos dos santos devem se encontrar sob o altar terrestre O lugar deixa de ser indiferente e a geografia sagrada de que falamos começa a se estabelecer durante a Alta Idade Média os grandes santuários perfumados e rutilantes em meio a um mundo mal iluminado e malcheiroso aparecem como fragmentos de paraíso Peter Brown A prática conserva entretanto certa maleabilidade e na época carolíngia é necessário condenar a celebração da eucaristia nas residências privadas e relembrar a indispensável presença das relíquias no altar É somente nos séculos XI e XII que o uso de um lugar sagrado é objeto de uma justificativa precisa tornada necessária pela contestação dos hereges Aqueles que são interrogados pelo Sínodo de Arras em 1205 e os discípulos de Pedro de Bruis no século seguinte pretendem voltar à prática antiga e negam radicalmente a necessidade do edifício cultual Tratase a seus olhos de uma realidade material desprovida de todo valor enquanto somente a reunião dos fiéis e seu engajamento espiritual no ato da prece deveriam importar Diante desse ataque que visando à igrejaedifício ameaça a Igrejainstituição os clérigos são obrigados a reagir e afirmar uma doutrina do lugar eclesial enfatizando seu caráter necessário e sua sacralidade Assim embora seja necessário reconhecer com Agostinho que Deus está em todo lugar e não aprisionado em algum lugar é possível afirmar a necessidade de um lugar especial onde Deus esteja mais presente do que alhures Atos de Arras de um lugar próprio que é a morada privilegiada de Deus e o quadro das preces mais eficazes Pedro o Venerável Se todas as justificativas sublinham que o edifício cultual só tem sentido porque abriga a assembleia dos fiéis não é menos claro que ele seja o símbolo da instituição sacerdotal e de seu poder sagrado Toda religião demanda um lugar onde os objetos do culto são venerados e onde as pessoas se ligam de modo mais íntimo àquilo que foi instituído diz ainda o abade de Cluny Doravante o lugar sagrado é bem constituído pelo seu coração o altar e seu duplo invólucro a igreja consagrada por um ritual de dedicação progressivamente fundamentado e o cemitério também ele objeto de uma consagração Do ponto de vista dos clérigos o lugar sagrado assim definido é o único onde se opera de maneira ao mesmo tempo tão permanente e tão intensa o contato entre os homens e Deus todavia ele pode se produzir alhures em situações excepcionais até mesmo miraculosas enquanto a simples prece em qualquer lugar é dotada de uma eficácia mais limitada Além disso o lugar de culto consiste de uma conjunção particular do espiritual e do material segunda parte capítulo IV Ele é feito de pedras e um corpo material inscrevese em seu coração a relíquia mas e é isso que os contestadores não querem nem ouvir ele é espiritualizado pelo ritual da consagração que o transforma em imagem da Jerusalém celeste É por isso que nesse lugar e através do sacrifício ritual que nele se desenrola uma comunicação privilegiada pode se estabelecer entre a terra e o céu entre os homens e o divino Assim o realismo eucarístico junto com a doutrina do lugar eucarístico que o acompanha aporta uma contribuição decisiva para a valorização do centro de cada entidade paroquial e então para a polarização do espaço feudal Mas o sacramento eucarístico não se contenta em exaltar e exigir ao mesmo tempo a dignidade do lugar sagrado onde ele se realiza ele introduz igualmente à dimensão universal da Igreja Como toda refeição a eucaristia é um rito comunitário e como aquele que é oferecido em sacrifício é o próprio Senhor faz a provação ritual não somente da comunidade de indivíduos presentes mas da comunidade de todos os cristãos vivos ou mortos A refeição eucarística faz 364 Jérôme Baschet a civilização feudal entrar assim na comunhão da Igreja universal terrestre e celeste Não se pode com efeito ignorar que a expressão corpo de Cristo designa ao mesmo tempo a hóstia consagrada e a Igreja segunda parte capítulo iv Tornar realmente presente o corpo de Cristo na hóstia é então fazer existir a Igreja como corpo e como comunidade universal Incorporando o corpo de Cristo a hóstia os fiéis incorporamse ao corpo de Cristo a Igreja Então o sacramento eucarístico valorizado ao extremo pela presença real manifesta ritualmente a unidade da cristandade A partir daí todas as igrejas onde advém a presença real de Cristo podem aparecer seja como centros seja como microcosmos à imagem do macrocosmo da cristandade e em estreita conjunção com ele Mas a articulação do local e do universal manifestase também por uma dualidade entre as relíquias associadas a uma figura santa que remete em geral a uma inserção local e à hóstia que como corpo de Cristo assume um valor sobretudo universal Se o altar é o lugar dessa dupla inserção o edifício eclesial o é igualmente pois ao mesmo tempo é associado ao santo que é o seu titular e à Igreja celeste do qual é a imagem No coração de cada paróquia se observa então o seguinte complexo no centro do centro o altar associado tanto ao corporelíquia de um santo como ao corpohóstia de Cristo depois o lugar eclesial sacralizado reproduzindo no mais das vezes a forma do corpo crucificado de Jesus enfim o cemitério consagrado lugar dos corposmortos É esse dispositivo concêntrico de corpos associados que assegura a polarização do espaço local e a estabilidade dos seres vivos que o ocupam ao mesmo tempo que põe cada lugar particular em comunhão com o corpoIgreja da cristandade e em correspondência com a Igreja celeste A instituição eclesial consegue assim por um jogo de articulações e remissões associar a comunidade restrita a paróquia e a comunidade ampla a cristandade reforçando a coesão tanto de uma como de outra A imagem concêntrica do mundo Não se pode concluir este capítulo sem extravasar as fronteiras da cristandade e evocar brevemente as concepções da terra e do universo Estas prolongam de resto a visão concêntrica do espaço analisada até aqui Devese de início relembrar a importância das margens da cristandade zonas de conquista e de integração tardia tanto em direção ao Norte e Leste como na Península Ibérica Para além estendese o mundo não cristão aquele dos conflitos e das trocas com os muçulmanos e mais longe a África profunda e o Extremo Oriente Essas paragens não são totalmente ignoradas desde antes da exploração metó 366 Jérôme Baschet dica das costas africanas pelos portugueses o prestígio ameaçador dos tártaros nos anos 1220 e desde a estabilização do Império Mongol a esperança de obter a conversão de seu chefe o Grande Khan suscita uma notável corrente de viajantes e de trocas que se esgota somente por volta de 1400 O papado envia uma dezena de embaixadas em particular a dos franciscanos João do Plan Carpin em 1245 e Guilherme de Rubrouck em 1253 Procuramse os discípulos de são Tomás suposto apóstolo das Índias e algumas conversões são obtidas Os irmãos Polo ao mesmo tempo movidos por seus negócios e embaixadores da cristandade chegam à China pela primeira vez em 1266 de onde trazem uma mensagem de Kubilai solicitando ao papa pregadores da fé católica depois em 1275 dessa vez com o jovem Marco autor do Livro das maravilhas ficando dezesseis anos a serviço do Grande Khan voltando depois para Veneza via Sumatra e Índia Embora os relatos desses viajantes tragam novas informações sobre um mundo do qual sublinham a ordem e a riqueza eles não impedem absolutamente que o Oriente continue sendo o domínio do imaginário e do maravilhoso o conhecimento adquirido em campo aglutinase às lendas preexistentes mais do que as substitui Paul Zumthor Lá vivem povos monstruosos que são já descritos pelos autores antigos como Plínio e Solino e que Isidoro de Sevilha e Rábano Mauro fazem entrar no saber compartilhado pelos clérigos medievais inclusive pelos mais doutos como Alberto o Grande ou Roger Bacon os cincofálos homens com cabeça de cachorro que se comunicam latindo os panócios bizarramente dotados de orelhas gigantescas os ciapodos com um único pé tão grande que eles o utilizam para se proteger do sol os homens sem cabeça que têm o rosto no tronco os opistópodes que têm os pés invertidos com os calcanhares virados para a frente sem falar nos ciclopes nos pigmeus e outros gigantes figura 32 na p 368 Lá ainda na Grande Muralha da China são prisioneiros Gog e Magog os povos que se abaterão sobre a cristandade no final dos tempos Na Ásia igualmente ou na Etiópia encontrase o Preste João soberano de um reino cristão onde reinam a justiça a paz e a abundância A carta que se supõe que ele endereçou ao imperador de Bizâncio circula no Ocidente a partir do século xiii e conhece difusão crescente até o século xvi O papa Alexandre III envialhe uma mensagem em 1177 numerosos príncipes sonham selar uma aliança com ele e todos os viajantes que se aventuram no Oriente esforçamse para localizar o mítico reino de João Mesmo se o saber geográfico é objeto de maior atenção a partir do século xii e sobretudo a partir do fim do século xiii com o aperfeiçoamento dos portugueses cartas costeiras fundadas sobre a observação e uma estimativa das distâncias as mappae mundi representações do mundo mais do que mapas só podiam ser extremamente esquemáticas e no essencial fantásticas Assim a A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 367 14 32 Os povos lendários dos confins segundo as miniaturas do Livro das maravilhas 141112 Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 2810 fls 29v e 76v Este manuscrito do Livro das maravilhas compilação de relatos de viagem foi encomendado pelo duque de Borgonha João Sem Medo a fim de oferecêlo a seu tio o duque João de Berry O relato notadamente o de Marco Polo foi abundantemente ilustrado muitas vezes forçando sua dimensão maravilhosa Aqui o iluminador o mestre de Boucicaut mostra os cincofálos das ilhas Adamá enquanto Marco Polo menciona somente homens tão feios que se pareciam com cachorros Do mesmo modo quando o texto evoca as raças extremamente selvagens da Sibéria a pintura as traduz recorrendo ao repertório clássico dos povos lendários um homem sem cabeça com o rosto no tronco um ciapodo protegendose do sol com seu enorme pé e um ciclopes O fundo da miniatura mostra esboços de paisagens características do início do século xv 33 Mappa mundi de Ebstorf c 123035 BaixaSaxônia obra destruída Este vasto mapamúndi de três metros e meio de diâmetro foi realizado pelo monastério beneditino de Ebstorf Ele retoma adaptandoo o esquema clássico dos mapas em T a Ásia na metade superior a Europa no quarto inferior esquerdo a África embaixo à direita o conjunto formando um círculo cercado pelo oceano Os dois últimos continentes são separados pela principal zona marítima de cor escura que corresponde ao Mediterrâneo As diferentes regiões são indicadas umas ao lado das outras sem preocupação com a forma dos territórios O mapamúndi é entretanto saturado de informações Jerusalém ao centro edifícios emblemáticos dos diferentes povos conhecidos monstros e espécies dos confins da terra por exemplo Gog e Magog além da Muralha da China O mundo é circular e uno à imagem de Cristo cuja cabeça aparece a leste os pés a oeste e as mãos ao norte e ao sul 15 mappa mundi de Ebstorf gigantesca imagem de três metros e meio de diâmetro realizada em um monastério beneditino de Luxemburgo por volta de 1235 retoma como a maior parte das representações medievais o esquema em T que divide o disco terrestre em três partes no alto a Ásia embaixo à direita a África embaixo à esquerda a Europa figura 33 na p 369 Jerusalém ocupa o umbigo do mundo ao mesmo tempo que aquele do corpo de Cristo cuja cabeça as mãos e os pés aparecem nos quatro pontos cardeais A terracorpo de Cristo forma um vasto e único continente drenado por uma densa rede de rios entre os quais o Ganges na Índia e o Nilo na África e mares estreitos Aqui o mundo terrestre é uno porque ele é o Cristo e sua periferia é ocupada pelo oceano Reencontrase assim na escala do mundo a visão concêntrica que ordena os espaços da cristandade um centro espaços cada vez mais distantes todavia soldados pela metáfora corporal depois a periferia da periferia o oceano imensidão líquida bem adequada para marcar o desconhecido supremo e a exterioridade radical para um mundo fundado sobre o vínculo com a terra Tal imagem é unanimemente partilhada independentemente do fato de que se conceba a Terra como sendo plana ou esférica As duas ideias coexistiram durante a Idade Média dando lugar muitas vezes a misturas mais ou menos coerentes William Randles Para os partidários da Terra plana como Cosmas Indicopleustas e Isidoro de Sevilha o oceano marca o limite do disco terrestre habitado de um só lado Em revanche João de Mandeville cujo Livro redigido em 1356 e destinado a grande sucesso fornece uma espécie de síntese do saber geográfico medieval admitindo na sequência de autores como Beda o Venerável Guilherme de Conches ou Brunetto Latini 1250 o caráter esférico da Terra inteiramente redonda como uma maçã Não sem contradições ele afirma que o mundo é habitado em todas as suas partes e estima ser possível explorar todos os mares do globo a despeito dos riscos de tal empresa A concepção esférica do mundo é confirmada pela redescoberta de Ptolomeu autor grego do século II cuja obra é traduzida e transformada em mapas em Florença 1409 depois em Augsburgo 1482 Se desde o século xiii a esfericidade ganha terreno entre a maioria de autores ela se torna ao longo dos séculos seguintes a concepção unânime dos homens de saber Assim por volta de 1410 é um mundo esférico que é descrito pela Imago Mundi do cardeal Pedro de Ailly uma obra sobre a qual Cristóvão Colombo meditará e anotará abundantemente Mas a oposição entre as formas plana e esférica da Terra não é talvez a mais determinante sem dúvida porque este ponto é indiferente em relação à representação concêntrica do espaço então dominante A questão principal que ocupa os espíritos no final da Idade Média consiste principalmente em avaliar os riscos em que se incorre ao se afastar do mundo habitado conhecido o ecúmeno e se lançar na imensidão do oceano que a bordeja problema desta feita extremamente dependente da percepção concêntrica e da oposição interiorexterior Para todos tratandose de zonas eminentemente periféricas o perigo só pode ser considerável E como se disse a força de Cristóvão Colombo não está em sua opção em favor da forma esférica pouco singular e não desprovida de ambiguidade mas no fato de estar convencido em decorrência de erros de cálculos que acentuavam os de Ptolomeu e contra a opinião corrente partilhada especialmente pela comissão encarregada de avaliar o seu projeto que entre o Ocidente e a Ásia havia apenas um mar estreito reduzindo consideravelmente assim a exterioridade ameaçadora do desconhecido oceânico Enfim a concepção do universo projeta na escala cósmica a representação concêntrica do espaço Ela se funda com efeito sobre o modelo grego das esferas celestes formulado notadamente por Aristóteles No centro encontrase a Terra cercada de esferas ocupadas pelos diferentes astros conhecidos começando pela Lua e pelo Sol seguidos pelos planetas como Marte e Vênus A Idade Média prolonga com frequência essa imagem de esferas celestes dispondo no céu império a hierarquia das nove ordens angélicas Assim o universo inteiro organizase segundo uma lógica concêntrica de modo que macrocosmo e microcosmo se correspondem conforme a lógica cristã das correspondências Até o fim da Idade Média a possibilidade de pensar um universo infinito debatida pelos teólogos do século xiv permanece marginal o franciscano Tomás Bradwardine mestre em Oxford é a exceção e sem verdadeiro alcance Ainda será preciso esperar três séculos para que desabem as esferas celestes que mantinham unido o belo cosmo de Aristóteles Alexandre Koyré Desde 1584 Giordano Bruno lança entretanto afirmações tão contrárias à lógica do espaço polarizado medieval que elas acabam por lhe valer a fogueira Não existem pontos no espaço que possam formar polos definidos e determinados para a nossa Terra da mesma maneira esta não forma um polo definido e determinado para nenhum outro ponto do espaço A partir de pontos de vista diferentes todos podem ser vistos como centro ou como pontos da circunferência A Terra não é o centro do universo ela só é central em relação ao nosso próprio espaço circundante Desde que suponhamos um corpo de tamanho ínfimo devese renunciar a lhe atribuir um centro ou uma periferia De linfinito universo e mundi 370 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 371 Conclusão Dominância espacial na Idade Média dominância temporal hoje A partir daqui é possível contar entre as características fundamentais do feudalismo a tensão entre fragmentação e unidade a articulação entre encelulamento paroquial e o fato de pertencer à cristandade assim como a articulação entre stabilitas loci e mobilidade tratandose deste último ponto é possível distinguir de uma parte e outra da norma social de vínculo ao solo distanciamentos positivos a deambulação penitencial e depois a peregrinação e a cruzada e distanciamentos negativos a vagabundagem e o banimento Três elementos ao menos concorrem para tal resultado Em primeiro lugar a criação da malha paroquial ordena cada célula em torno de um polo formado pelo edifício cultual sagrado e o cemitério consagrado tendo em seu coração o altar e suas relíquias onde a eucaristia faz ocorrer a presença de Cristo e realiza a unidade da Igreja universal Em segundo lugar o desenvolvimento sistemático da oposição interiorexterior notadamente pela prática de peregrinação associa as experiências da exterioridade ao perigo e reforça o vínculo com o próprio lugar protetor e familiar Enfim o estabelecimento de uma geografia sagrada estrutura um espaço heterogêneo e hierarquizado polarizado pelos santos e suas relíquias Esta organização que assegura o máximo de estabilidade possível ao mesmo tempo que permite as trocas necessárias e que fixa os homens na região de conhecimento ao mesmo passo que afirma o fato de pertencerem a uma entidade tida como universal sugere quanto a contribuição da Igreja ao ordenamento da sociedade feudal é decisiva Não é surpreendente que uma das contribuições maiores da Igreja à organização das colônias americanas tenha consistido de uma prática sistemática de deslocamentos e reagrupamentos das populações indígenas as reducciones e congregaciones que criam novas aldeias cujo centro é evidentemente uma igreja no caso de Bartolomeu de Las Casas por exemplo notase desde seus primeiros projetos de colonização pacífica em 1551 e 1520 uma verdadeira obsessão para organizar os índios em aldeias Como fruto de sua secular experiência na congregatio hominum da Europa Ocidental a Igreja sabe que o controle das populações passa por seu reagrupamento e sua fixação ao solo Tal é em todo caso o princípio indispensável ao funcionamento da sociedade feudal ocidental e igualmente ao que parece do feudalismo dependente implantado no Novo Mundo Se o feudalismo é caracterizado por uma dominação espacial isso não ocorre mais hoje No mundo contemporâneo é o tempo que parece constituir o ponto nodal da organização social pois com base no assalariamento e no cálculo do tempo de trabalho forma sempre dominante das relações de produção desenvolveramse consequências múltiplas para seres apressados submetidos à tiranía dos relógios e à compulsão de saber que horas são Uma regra faz sentir seus efeitos sobre todos os aspectos da vida tempo é dinheiro Inversamente na sociedade medieval o coração da organização social e das relações de produção dependia da relação com o espaço a primeira condição do funcionamento do sistema feudal era a fixação dos homens ao solo sua integração com uma célula espacial restrita na qual se entrelaçam sem se sobrepor poder senhorial comunidade aldeã e quadro paroquial uma célula na qual deviam ser batizados quitar as obrigações eclesiais e senhoriais e por fim ser enterrados para se juntar na morte à comunidade dos ancestrais Hoje quando o lugar está em via de não ser mais percebido como uma dimensão necessária dos seres e dos eventos quando as manifestações da mercadoria podem ocorrer indiferentemente em qualquer ponto do globo estamos em via de perder esse sentido da localização Nós vivemos é verdade o paradoxo de uma globalização fragmentada que multiplica as fronteiras exacerba sangrentas loucuras de identidade e requer um desenvolvimento mundial desigual Entretanto o mercado prolonga nos domínios que o favorecem sua obra de homogeneização e de banalização espaciais iniciada no século XVIII a tal ponto que a uniformização mercantil mina sorrateiramente a especificidade dos lugares e que as possibilidades técnicas de mobilidade e de comunicação levam por vezes a esquecer a espacialidade como dimensão intrínseca da existência humana a qual não poderia existir a não ser estando aí em algum lugar No momento em que as fábricas e os escritórios são incessantemente deslocados em busca de uma mão de obra menos custosa poderseia dizer que a deslocalização tornase uma característica geral do mundo contemporâneo na medida em que a extensão sem limites do mercado tende a eclipsar a dimensão espacial e a fazer desaparecer a relação com o próprio lugar como traço fundamental da experiência humana É sintomático que o principal castigo imposto pelas justiças modernas fora a pena de morte e apesar do recurso à proibição de moradia seja a prisão privação de liberdade e entrada à capacidade de deslocamento localização forçada por decorrência Na Idade Média a prisão era uma pena muito acessória enquanto o banimento era ao contrário essencial Hannah Zaremska Ruptura do laço entre o indivíduo e seu lugar o exílio era uma quase morte social pois os banidos tinham grande dificuldade para refazer sua vida alhures Nesta sociedade de honra vale mais ser um homem morto que um homem ultrajado De certo modo o exílio é pior que a morte Claude Gauvard Ao inverso do princípio de stabilitas loci o banimento constituía uma obrigação de deslocamento deslocalização forçada ou seja o exato inverso do castigo carcerário Coerção principalmente espacial de um lado coerção essencialmente temporal do outro aí está dito de modo muito esquemático uma das marcas de distinção radical entre o mundo medieval e o mundo contemporâneo cede esse direito submetendoo entretanto à aprovação de seu bispo que termina por opor sua recusa em 1181 Excomungado Valdo prega então fora da Igreja fazendo adeptos que difundem sua palavra no Sul da França e no Norte da Itália A hostilidade das autoridades e as perseguições radicalizam suas críticas contra o clero de modo que se atribui finalmente aos valdenses concepções semelhantes àquelas que Pedro o Venerável denuncia em Pedro de Bruis Entretanto o procedimento inicial de Valdo não difere em absoluto daquele de Francisco de Assis como este ele é um laico à procura de uma vida espiritual fundada na pobreza e em um retorno sem mediação ao Evangelho No mais num primeiro momento ele é encorajado a pregar pelo arcebispo de Lyon que vê em sua mensagem de reforma uma vantagem no conflito que o opõe a seus cônegos Mas nessa época os movimentos populares que os reformadores do século anterior não deixavam de encorajar não são mais correntes A pregação com conteúdo evangélico é agora uma opção com dois gumes ela é tanto reculada pela Igreja e integrada em seu seio sem promotor tornase então um fundador venerado como rejeitada evoluindo para um radicalismo anticlerical que converte seus adeptos em hereges perseguidos No entanto a principal preocupação dos clérigos é a heresia que eles nomeiam cátara o termo deriva do grego puro mas os clérigos inventam para ele etimologias negativas das quais a principal se refere ao gato cattus animal associado ao bestiário diabólico As primeiras menções a essa heresia datam dos anos 1140 o socorro de são Bernardo é requerido em Colônia em 1143 e depois na região de Toulouse em 1145 Ao longo da segunda metade do século XII a Igreja organiza sua resposta nas três regiões em que a heresia parece mais desenvolvida o Languedoc a Itália do Norte e a Renânia Na verdade nossos conhecimentos sobre os cátaros são bastante hipotéticos e os trabalhos impulsionados por Monique Zerner incitam à mais extrema prudência Atribuise aos heréticos o esboço de uma organização estruturada falase mas a verdade do fato é discutida de uma reunião cátara em São Félix de Caraman em 1167 por ocasião da visita de um emissário oriental de nome Nicetas ou Niquinta e durante a qual teria se procedido à organização de dioceses e à ordenação de bispos Quanto às crenças dos cátaros é particularmente difícil extraílas das diatribes dos clérigos que interpretam os movimentos contemporâneos projetando sobre eles as categorias e as descrições das heresias fornecidas por santo Agostinho Uwe Brunn Não se sabe muito bem se é pertinente distinguir no seio do catarismo como se tem o costume de fazer um dualismo radical e um dualismo moderado O primeiro professaria a existência de duas divindades um Deus do bem que criou unicamente os anjos e as almas e um Deus do mal ao qual se imputa a criação do mundo material e dos corpos De tal cosmogênese decorre que estes últimos são inteiramente maléficos e não podem ser objeto de nenhuma redenção A Encarnação de Cristo é então impensável Deus não pode se encarnar pois isso seria entregarse ao mal e a salvação pode ser atingida somente pela alma de onde a negação da ressurreição dos corpos através de uma rejeição de todo contato com a matéria e ao termo de um ciclo de reencarnações concebidas como purificações progressivas Enquanto o dualismo radical nega os próprios fundamentos do cristianismo o dualismo moderado aproximase mais dele Ele parece admitir a ideia de um Deus único sendo que a criação do mundo passa a ser imputada a um anjo decaído inferior a Deus mas dotado de autonomia maior que na doutrina cristã Nos dois casos entretanto a recusa do casamento e da procriação carnal é total e a crítica à Igreja é extrema os clérigos são lobos rapaces e os sacramentos podem ser conferidos pelos laicos De fato os cátaros parecem atribuir verdadeiro valor a um só sacramento o consolamentum ritual de imposição das mãos que distingue os perfeitos que assumem uma vida totalmente pura dos simples crentes Os clérigos reagem de início pela palavra São organizadas reuniões como em Lomberes perto de Castres em 1165 ou 1176 nas quais as opiniões dos cátaros são discutidas pelos bispos de Toulouse e de Albi O arcebispo da Narbônia organiza uma controvérsia com os valdenses em 1189 que dá lugar a um tratado redigido por Bernardo de Fontcaude no mesmo momento em que aparecem outras obras refutando cátaros e valdenses A pregação também se torna mais eficaz a partir do momento em que é confiada aos cistercienses e sobretudo aos dominicanos ela tem alguns sucessos obtendo o arrependimento de vários grupos dissidentes Mas a repressão se faz igualmente sentir Após Lúcio III que acentua as sanções contra os heréticos em 1184 decretal Ad abolendam é sobretudo Inocêncio III quem elabora os instrumentos jurídicos indispensáveis a uma política repressiva vigorosa Em 1199 ele assimila a heresia a um crime de lesamajestade divina o que implica o mais extremo rigor em sua perseguição e seu castigo Durante o seu pontificado o Concilio de Latrão IV precisa o arsenal repressivo contra os hereges que devem ser excomungados assim como todos aqueles que os protegem ou têm relações com eles Por fim Gregório IX organiza os tribunais da Inquisição cujo nome deriva do procedimento inquisitório que põem em prática Como já se viu a queixa de uma vítima não é mais necessária nesse momento para abrir um processo e o juiz pode decidir por si próprio lançar uma diligência baseado em um rumor ou uma suspeita E uma vez que não há mais queixosos para justificar a diligência a obtenção de uma confissão do acusado tornase indispensável se necessário pela tortura tida como um meio legítimo para fazer aparecer a verdade É preciso ressaltar ainda que então a Inquisição não é mais que um tribunal assu Firmar que a Igreja é a instituição dominante da sociedade feudal não quer dizer que ela não se defronte com nenhuma contestação nem que seu poder seja ilimitado Ao contrário além das tensões internas que a animam a instituição eclesial afronta em sua obra de dominação hostilidades silenciosas e rebeliões abertas Convém então analisar conjuntamente o exercício sempre mais amplo de sua dominação e as resistências com as quais ela se depara Percebese que toda ordem tem necessidade de contestações e de desordens para melhor impor sua legitimidade a ponto de forjálas se não as encontra à sua altura Nesse sentido não é surpreendente que o processo de reforma da instituição eclesial e de reforço da coesão da sociedade cristã nos séculos XI e XII seja acompanhado de um ressurgimento das contestações especialmente heréticas e de uma intensificação das formas de exclusão Ordenar e excluir segundo a expressão de Dominique IognaPrat são as duas faces indissociáveis de uma mesma dinâmica As ofensivas heréticas e a reação da Igreja A heresia não existe em si e nada mais é do que aquilo que a autoridade eclesiástica definiu como tal A própria noção de heresia etimologicamente escolha só adquire sentido na medida em que a Igreja se transforma em uma instituição preocupada em fixar a doutrina que fundamenta sua organização e seu domínio sobre a sociedade O problema da heresia emergiu então apenas na medida em que a Igreja se transformou em uma instituição preocupada em definir os dogmas que baseavam sua organização e seu domínio sobre a sociedade De fato é durante o século que vai de Constantino a Agostinho que explode uma primeira crise doutrinal maior que leva à elaboração da ortodoxia trinitária e cristológica e à rejeição de um conjunto de heresias das quais a principal é o arianismo Agostinho pode então fazer uma lista de 88 heresias que servirá de reservatório de argumentos e de prisma deformador para todos os autores ulteriores que trataram da heresia Com raras exceções as heresias medievais só são conhecidas através dos textos dos clérigos que as condenam de modo que é muito difícil separar os amálgamas e os exageros ligados às necessidades da polêmica e da repressão A abordagem da heresia medieval permanece inseparável da atitude da Igreja em relação a ela No Ocidente alguns episódios isolados e de fraco alcance mas significativos pela sua concomitância indicam o ressurgimento da questão herética pouco depois do ano mil Em 1022 uma dezena de clérigos da catedral de Orleans é acusada de negar a eficácia dos sacramentos e queimada por ordem do rei da França Em 1205 uma comunidade de laicos obrigada a comparecer diante do Sínodo de Arras parece tratada com clemência pelo bispo e convencida a abandonar suas críticas contra as práticas da Igreja Por volta de 1028 no castelo de Monteforte no Piemonte um grupo de homens e de mulheres que optaram por uma forma de vida comunitária casta e penitente é interrogado pelo arcebispo de Milão e depois condenado à fogueira sob a instigação dos aristocratas da cidade A esses primeiros sintomas de contestação da instituição eclesial sucede um tempo de latência em matéria de heresia Isso se dá sem dúvida porque a partir de meados do século XI a Igreja é absorvida pelo processo de reforma e consegue integrar uma parte notável das ofensivas de evangelismo em benefício de sua luta contra a fração conservadora do clero De resto ela não hesita em caracterizar como heréticos os simoníacos os nicolaitas e todos aqueles que se opõem a ela o papado afirma sem rodeios que aquele que não reconhece as decisões da Sé Apostólica deve ser tido por herege Nos anos 112040 o ressurgimento herético e a reação da Igreja tomam formas e proporções novas O primeiro testemunho notável é o tratado de Pedro o Venerável redigido em 113940 contra o herético Pedro de Bruis e seus discípulos Dominique IognaPrat Originário dos Alpes ocidentais este parece ter pregado na Provença nos anos 1120 profanando as igrejas e queimando cruzes até morrer queimado na fogueira de cruzes que ele próprio havia acendido perto da abadia de SaintGilles du Gard Pedro o Venerável atribuilhe assim como a seu comparsa Henrique de Lausanne iniciador de uma insurreição em Mans em 1116 cinco teses heréticas a recusa do batismo das crianças pelo motivo de que é preciso ser capaz de crer para ser salvo a rejeição aos lugares de culto consagrados pois a igreja é comunidade dos fiéis e não os muros que a abrigam o menosprezo pela cruz tida por um instrumento de tortura a impossibilidade de reiterar o sacrifício eucarístico sendo a missa apenas um símbolo a inutilidade da liturgia funerária e das preces para os mortos já que estes estão salvos ou condenados desde o seu traspasse diz Henrique Tantas práticas que uma referência exclusiva e literal ao Evangelho seria suficiente para pôr em causa mas que são transformadas em fundamentos da instituição eclesial e muito particularmente de sua ponta de lança cluniacense Mais importante ainda por seu impacto durável é a figura de Pedro Valdès ou Valdo um mercador de Lyon que se converte em 1174 abandona seus bens faz traduzir a Bíblia e decide pregar segundo o Evangelho O papa lhe con mido por um bispo ou confiado a frades mendicantes dotado de meios limitados e que funciona nas ações antiheréticas levadas a cabo até o início do século xiv com relativa moderação Tratase sobretudo de obter uma confissão e uma retratação que permite ao acusado ser reintegrado à comunidade eclesial após a satisfação de uma penitência é somente em caso de obstinação ou de recidiva que ele é entregue ao braço secular para ser castigado Estáse ainda longe da Inquisição dos Reis Católicos transformada em um órgão da monarquia e daquela da época moderna engajada em um processo de exterminação maciça de feiticeiros e feiticeiras A Idade Média apenas lançou as bases de um princípio repressivo do qual o Renascimento e os Tempos Modernos se encarregarão de tirar todas as consequências A ofensiva militar contra os cátaros é igualmente uma iniciativa de Inocêncio iii Após diversas manobras infrutíferas o assassinato de Pedro de Castelnau legado pontifício provoca o apelo à cruzada contra os albigenses Os nobres do norte do reino que responderam a ele formam fileiras sob as ordens de um deles Simão de Montfort e a cruzada começa em 1209 com o saque de Béziers talvez 20 mil mortos uma carnificina em meio à qual o legado do papa teria pronunciado esta frase cuja autenticidade é discutida Mataios todos Deus reconhecerá os seus Os castelos controlados pelos cátaros ou que os protegi am são destruídos até o último Montségur que cai em 1229 O Tratado de Paris celebra então o esmagamento dos heréticos e consagra o domínio da autoridade real sobre o Sudoeste da França A heresia se apaga mesmo se ela se mantém sob formas parcialmente atenuadas nas regiões montanhosas tais como os Pireneus onde o bispo de Pamiers Jacques Fournier a desembosca ainda na aldeia de Montaillou no início do século xiv Emmanuel Le Roy Ladurie As heresias cátara e valdense cujos perigos a Igreja e o rei da França tinham provavelmente interesse em amplificar e cujos adeptos jamais foram muitos numerosos raramente mais que 5 da população das cidades do Languedoc deixaram então de ser uma preocupação séria No geral podese com algum artifício distinguir diferentes fases nas manifestações heréticas De início elas são uma expressão do evangelismo dos laicos desejosos de um retorno à simplicidade e à pobreza das origens do cristianismo o que é apenas uma maneira mais ou menos forte de criticar o que a instituição eclesial se tornou principalmente na sequência das transformações dos séculos xi e xii Mas o evangelismo de resto presente nas temáticas dos reformadores gregorianos desemboca facilmente se ele se radicaliza um pouco em um questionamento da mediação clerical Chegase assim à crítica dos sacramentos ou mais exatamente de uma concepção que liga sua eficácia aos gestos realizados pelo sacerdote e não à participação dos fiéis das práticas litúrgicas relativamente recentes a liturgia dos mortos e dos lugares e objetos nos quais se encarna a instituição igrejas cemitérios imagens e cruzes O aguilhão parcialmente assimilável do evangelismo tornase então uma crítica frontal e é todo o edifício construído pelo clero que é desse modo posto em causa tanto sua pretensão a ser o mediador obrigatório para a salvação como suas intervenções estratégicas na organização social Enfim uma terceira fase ilustrada somente pelo catarismo radical consistiria de uma negação da doutrina fundamental defendida pela Igreja mito da Gênese Encarnação de Cristo ressurreição final dos corpos Mas ele teve realmente adeptos no Ocidente Temos alguns motivos para pensar que essa perspectiva foi exagerada sob o efeito da lógica do amálgama polêmico e de um olhar clerical convencido de encontrar a verdade e a coerência de todas as heresias em Agostinho Seja como for é sem dúvida o evangelismo radicalizado até a crítica dos sacramentos e o anticlericalismo levado até a recusa da mediação sacerdotal que constituem o pivô das atitudes dissidentes e o perigo maior contra o qual a Igreja teve de reagir atribuindo a seus adversários se necessário as concepções mais aptas a desqualificálos Não haveria nenhum sentido em se perguntar como quer um velho tema historiográfico se as heresias constituem um fenômeno social ou um fato religioso Seria igualmente absurdo negar que se trata de um fenômeno social sob o pretexto de que o catarismo se expandiu finalmente em todos os meios mas ao menos em sua fase crítica ele é sobretudo característico de uma parte das elites urbanas aristocráticas e mercantis É necessário com efeito lembrar que a Igreja é na Idade Média a própria forma de organização social e a instituição que a domina Atacar a Igreja e solapar os fundamentos de sua posição como fazem as correntes heréticas é uma questão que não é nem social nem religiosa porque ela é indissociavelmente social e religiosa Atingindo sua intensidade máxima aproximadamente entre 1140 e 1250 o fenômeno dito herético a um só tempo dissidência real e construção dos clérigos pode ser tido por uma consequência da reformulação da instituição eclesial e da sociedade feudal ao longo do século anterior As temáticas evangélicas estavam presentes no próprio seio do projeto reformador e o papado não hesitou em dirigir o povo contra a fração julgada corrompida do clero contribuindo sem dúvida para excitar o anticlericalismo popular Sobretudo a reforma conduziu a uma reafirmação da autoridade sagrada e dos privilégios dos clérigos a uma subordinação crescente dos laicos postos à margem dos negócios da Igreja e tornados os objetos passivos de uma eficácia sacramental inteiramente manipulada pelos sacerdotes O anticlericalismo laico só podia encontrarse exacerbado sob suas formas decretadas heréticas ou somente rebeldes como no caso A CIVILIZAÇAO FEUDAL 227 226 Jérôme Baschet de Arnaldo de Brescia que pregando contra o clero e suas riquezas levanta as massas romanas contra o papa e os cardeais em 1145 Assim as dissidências qualificadas de heréticas aparecem como formas de resistência laica em face da acentuação do poder sacerdotal e da posição incessantemente mais dominadora da instituição eclesial As superstições e a cultura folclórica Os clérigos não devem apenas afrontar a contestação aberta dos hereges As práticas de numerosos fiéis que a Igreja não expele para fora dos quadros da ortodoxia fornecem igualmente algumas preocupações É necessário quando elas são julgadas inconvenientes ou desviantes eliminálas como a gramínea que pode estragar o cereal É uma tarefa certamente muito mais complexa que a aniquilação dos focos heréticos relativamente circunscritos No mais uma vez que a vitória foi assegurada nas heresias ela mantém os clérigos ocupados por um tempo maior em particular os inquisidores Como qualificar essas práticas e crenças A noção de religião popular foi objeto de diversas críticas e seria mais satisfatório evocar uma cultura folclórica mesmo se ela não constituía um conjunto coerente e autônomo e sabendo que essa expressão engloba práticas diversas relativas ao mundo camponês e à aristocracia aos meios urbanos mas também à parte menos instruída do baixo clero Michel Lauwers De fato o que dá à cultura folclórica uma unidade suscetível de justificar esta noção é a distância que a separa da cultura clerical ainda que se trate menos de uma confrontação dual do que de múltiplas interações complexas entre realidades múltiplas Talvez fosse melhor então conceber a cultura folclórica como um polo dominado o que não quer dizer necessariamente passivo ou desprovido de criatividade no campo das representações sociais no seio do qual a cultura clerical ocupa uma posição tão hegemônica que pretende ocupálo ou controlálo inteiramente Assim para delimitar as práticas e as crenças aqui evocadas não é sem pertinência como propôs JeanClaude Schmitt recorrer ao termo pelo qual os clérigos medievais as designavam superstições Para a Igreja este termo é ao mesmo tempo uma explicação dos fenômenos que convém expurgar são sobrevivências do paganismo segundo o próprio sentido do latim superstitio e uma condenação são inspiradas pelo diabo Retomar esta palavra dotada de uma pesada carga depreciativa não deveria significar que se adira ao ponto de vista da Igreja Sua vantagem para nós é de lembrar que as práticas e as crenças evocadas aqui não são dissociáveis do olhar reprovador que a Igreja lança sobre elas e que esta em seu empreendimento de dominação batalha sempre na frente das sobrevivências e dos erros que pretende fazer recuar O cristianismo foi confrontado a paganismos bem reais ao longo da evangelização do Ocidente estendida tardiamente para suas margens orientais e nórdicas Praticado em larga escala a destruição dos templos e lugares de culto pagãos certamente não fez desaparecer em um dia práticas como a veneração das árvores sagradas e os ritos que podiam lhes estar associados Ainda em 1002 o Corrector do bispo Buchard de Worms estabelece um quadro de numerosas práticas condenáveis rituais de proteção culto dos astros crença nos lobisomens rituais de fecundidade etc Mas a continuidade com o paganismo já parecia cada vez mais duvidosa e é doravante na relação com a realidade cristã contemporânea que convém interpretar tais práticas E se o século xii pôde ser considerado um momento privilegiado de interação permitindo que numerosas concepções folclóricas aflorassem inclusive nos textos clericais o estabelecimento durante o século xiii de novos instrumentos como a confissão e a Inquisição relança a perseguição às superstições fazendo com que os clérigos especialmente os frades mendicantes entrevejam a amplitude da tarefa que lhes cabe Um exemplo que se tornou paradigmático pelo estudo de JeanClaude Schmitt é aquele de Guineforte o santo cão de caça cujo culto é descoberto pelo dominicano Estevão de Bourbon não longe de Lyon onde ele oficia como pregador e inquisidor Segundo a lenda que Estevão recolhe junto aos habitantes do lugar o cão teria sido injustamente morto pelo seu dono logo após ter acabado de salvar um recémnascido dos ataques de uma serpente sendo depois enterrado com remorsos até se tornar objeto de veneração sob o nome de Guineforte por um processo complexo de assimilação com um mártir romano do século iii O culto deste santo verdadeiramente muito especial consiste em expor as crianças fracas ou doentes perto de sua tumba situada na floresta Reputados serem changelins criaturas que o diabo deixa após ter se apoderado das verdadeiras crianças22 eles são expostos sós entre velas e oferendas sendo depois mergulhados no riacho gelado Ao termo desse rito de seleção os que resistiram são reintegrados à comunidade segura de ter obtido graças ao santo cão a cura e o fim do malefício diabólico Horrorizado pela prática dessas mães infanticidas o dominicano procede à destruição da tumba e do sítio ritual exorta os fiéis a abandonarem tal superstição e inflige penas moderadas como a confiscação dos bens de certos adeptos do culto o que não impedirá que ele seja ainda atestado sob formas atenuadas no início do século xx Entretanto o conjunto bastante coerente do rito e do mito descobertos por Estevão de Bourbon não remonta absolutamente a uma religiosidade imemorial 22 Daí a designação desses seres fabulosos ser formada a partir do verbo changer trocar mudar substituir N T A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 229 228 Jérôme Baschet e é provável que ele tenha se constituído no decorrer do século xii em conformidade com as necessidades das comunidades rurais então em formação Um outro conjunto importante testemunha a preocupação camponesa com a fertilidade e a suficiência de alimentos O teólogo Guilherme de Auvergne menciona a crença em um espírito feminino denominado Senhora Abundia que traz a abundância às casas que ela visita desde que seja aí bem acolhida e que tenham sido dispostos para ela alimentos e bebidas suficientes Um pouco mais tarde por volta de 1275 o Romance da Rosa de João de Meung ataca aqueles que dizem ser levados em um voo noturno com Senhora Abundia enquanto outros testemunhos associam crenças comparáveis à atividade de espíritos denominados Boas Coisas Expressão de uma mesma preocupação o ritual nupcial que consiste em jogar grãos de trigo sobre os esposos gritando Abundância Abundância é descrito e condenado por Jacques de Vitry Podese então perceber através de uma série de testemunhos pontuais a existência de um conjunto de crenças e de rituais destinados a captar a benevolência de forças positivas a fim de assegurar a boa marcha da vida camponesa e sobretudo a fertilidade e a renovação anual dos produtos da terra São igualmente rituais de fertilidade bastante bem estruturados que os registros da Inquisição permitem ver no Frioul do século xvi Carlo Ginzburg Aos bênandanti homens investidos de poderes excepcionais de tipo xamanístico são reputadas viagens espirituais ao outro mundo em momentos precisos do ciclo agrário Lá lutam contra os espíritos hostis e assistem ao desfile das almas dos mortos cujas forças devem ser captadas a fim de assegurar à comunidade dos vivos as benesses e a fertilidade de que ela tem necessidade Sob uma forma ou outra é provável que os rituais camponeses de fertilidade tenham tido grande importância nas zonas rurais do Ocidente feudal em particular no momento dos solstícios pontos capitais do ciclo solar calendas de janeiro e São João Sem dúvida também não cessaram de se transformar de se deslocar e de se recompor especialmente em função da reorganização senhorial e comunitária dos campos e sob o efeito da pressão da Igreja Dispondo de instrumentos de controle mais eficazes esta consegue a partir do século xiii perseguilos metodicamente lançandoos cada vez mais no domínio das superstições e logo começando a demonizálos As margens e a subversão integrada dos valores O poderio da instituição eclesial é tal que ela parece na maior parte do tempo capaz de controlar a zona fronteiriça onde se entrechocam a ordem normal das coisas e as desordens da subversão ou mesmo de integrála ao funcionamento regular da sociedade O Carnaval é o exemplo mais claro disso Mais do que uma repetição das festas pagãs podese ver nele uma inovação da cidade medieval principalmente a partir do século xii JeanClaude Schmitt Com efeito ele permanece totalmente integrado ao ciclo do ano cristão e é impossível captar seu significado sem partir da tensão estabelecida entre o Carnaval e a Quaresma da qual a Igreja reforça progressivamente a importância especialmente estabelecendo a partir do século ix quarenta dias de jejum contínuo antes da Páscoa O próprio nome dado ao Carnaval derivado sem dúvida de carne vale ou carne levare defineo como o tempo antes da Quaresma durante o qual ainda é lícito comer carne Mais amplamente ele é um tempo de transgressão autorizada e de liberação dos impulsos antes da retenção penitencial da Quaresma ele só tem legitimidade porque precede a ela e exalta por contraste sua significação É nesse quadro que a oposição paganismocristianismo pode se integrar à análise do Carnaval não porque este seria efetivamente uma reminiscência das saturnais ou das lupercais pagãs mas na medida em que ele explora figuras ou imagens associadas ao paganismo para pôr em cena esse momento de inversão de valores e de liberação de forças diabólicas sobre as quais o cristianismo finalmente triunfa Os transbordamentos festivos e notadamente os prazeres da gula e da luxúria são assim destinados a preparar e a reforçar a vitória ulterior da penitência e da ordem cristãs Enfim o Carnaval possui um outro aspecto essencial ligado ao calendário festa de primavera ele corresponde ao momento da saída do urso após sua longa hibernação e marca o fim do inverno nas concepções camponesas As forças da fertilidade devem então acordar para se pôr em ação e o Carnaval pelo seu transbordamento de energias sexuais e festivas é uma maneira de chamar essas forças vitais a exercerem o seu papel fecundador Além disso as máscaras que têm um papel central no Carnaval assim como no charivari figura 22 na p 232 são certamente uma materialização dos espíritos dos mortos dotados do poder de influenciar positiva ou negativamente o curso das potências naturais e que convêm acolher a fim de assegurar sua ação benévolente O Carnaval integra então uma preocupação com a fertilidade e os ciclos naturais que interessa particularmente aos aldeãos mas também o conjunto das populações inclusive urbanas de um mundo estreitamente ligado aos ritmos da produção agrária Aceito esse momento de inversão generalizada dos valores o Carnaval dura apenas um tempo limitado e bem circunscrito antes que seja reestabelecido o curso normal das coisas sob a forma acentuada das privações da Quaresma Ele é então uma escapatória que permite integrar as forças da desordem na organização e na estabilização da ordem social Podese dizer o mesmo da Festa dos Loucos que embora recupere alguns aspectos dos ritos das calendas de janeiro A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 231 230 Jérôme Baschet 22 Danças e máscaras do charivari c 1318 Romance de Fauvel Bibliothèque Nationale de France Paris ms fr 146 fl 34 O ritual do charivari se desenvolve no início do século XIV apesar da firme oposição da Igreja Através de danças em que se misturam gozões e algazarra a comunidade urbana ou aldeã manifesta sua oposição a um casamento que lesa seus interesses ou afronta suas tradições casamento de uma viúva ou de um viúvo casamento de um homem idoso com uma mulher jovem ausência de festividades públicas etc A miniatura mostra as posturas agitadas dos dançadores que podem chegar até a desnudar os seus traseiros ela permite escutar a gritaria do charivari tambores sinos címbalos pratos e outros instrumentos de cozinha Vários personagens têm máscaras de animais ou figuras com caretas quando não se trata de uma fantasia completa do corpo Assim como durante o Carnaval é provável que as máscaras do charivari estejam ligadas aos espíritos dos mortos também eles protestam contra um casamento que transgride os costumes talvez seja este o caso particularmente do cônjuge defunto 23 Encontro amoroso nas margens de um livro de horas iluminado em Gand c 132030 Bodleian Library Oxford ms Douce 6 fl 160 v Como muitos manuscritos dos séculos XII e XIV geralmente destinados à aristocracia as ilustrações das margens contrastam fortemente com o texto Aqui este último indica as preces que os laicos devotos devem recitar a cada uma das horas canônicas que dão ritmo ao dia enquanto a cena da margem mostra sem pudor o leito onde se unem dois amantes Michael Camille sugeriu uma ligação possível com o primeiro verso desta página que evoca as portas do inferno ad portas inferi e que o iluminador teria parodiado em metáfora sexual Seja como for falta dar conta desta coabitação desconcertante entre a exigência de uma piedosa recitação e uma imaginação ao contrário mundana co faz curiosamente alusão à Virgem com o Menino As margens parecem ser também o lugar privilegiado da expressão do baixo corpo caro a Mikhaïl Bakhtin sob as espirituais preces das horas canônicas podese ver um personagem defecando e oferecendo à sua amada o resultado de seus esforços ou ainda outras cenas com conteúdo sexual alusivo ou explícito Nos edifícios religiosos as gárgulas e as partes altas multiplicam as criaturas monstruosas e diabólicas ao passo que os modilhões são ornados de um homem ou uma mulher exibindo órgãos genitais desproporcionais quando não se trata de um casal em pleno coito No coro das igrejas as estalas onde se sentam os cônegos são muitas vezes decoradas com cenas de que se encontra por vezes o eco nos fabliaux dos trovadores e nas quais a obscenidade e a virulência das relações entre os sexos são cruelmente mostradas Dessa vez não se trata mais de imagens marginais pois elas se encontram no centro do edifício na parte reservada aos clérigos Mas essas decorações só são visíveis quando as cadeiras estão desocupadas quando os cônegos se reúnem as cadeiras giram e as esculturas desaparecem sob seus traseiros Um modo de dizer que o clero sabe dominar as trivialidades do mundo laico Todas essas representações em particular as surpreendentes margens dos manuscritos de devoção não podem ser entendidas sem levar em conta o valor do lugar preciso em que elas aparecem Com efeito uma tensão é estabelecida entre o centro valorizado do edifício ou do manuscrito e as margens locais secundários e depreciados A exuberância desrespeitosa das margens pode então desenvolverse porque ela aparece em posição de inferioridade e em dependência hierárquica em relação às imagens principais o que está em conformidade com os valores clericais Entretanto a despeito do ordenamento que essa dialética do centro e da periferia assegura a capacidade de juntar em uma mesma página o sagrado e o profano não deixa de intrigar nosso olhar atual No entanto é necessário ver nisso menos uma mistura do sagrado e do profano que um estabelecimento de contato visando criar tensão entre eles como entre os dois polos de uma pilha Entre os séculos XII e XV a Igreja assume embora com reticência cada vez maior os riscos de tal procedimento Quer se trate do Carnaval ou das imagens marginais ela admite no seio da ordem que controla a possibilidade de sua inversão regulamentada quer dizer limitada a um tempo breve ou a uma localização pouco valorizada A Idade Média é o tempo dessas junções do sagrado e do profano assumidas ainda que perigosas pois a polarização hierárquica pode sempre se degradar em uma mistura indevida É assim que se pode evocar uma cultura da ambiguidade aceitando pôr os contrários em contato e que é então partilhada pelos laicos e pelos clérigos Bruno Roy No século XIII o distanciamento acentuase e o Concílio de Latrão IV prescreve o uso de vestimentas distintivas para os judeus justificadas principalmente pela necessidade de evitar que os cristãos fossem induzidos por ignorância a uniões carnais ilícitas O esforço para converter os judeus redobra especialmente sob o impulso de Raimundo de Peñafort Organizamse disputas públicas como em Barcelona em 1263 enquanto os judeus são obrigados a escutar sermões pronunciados por pregadores cristãos em suas sinagogas As atitudes de segregação e a violência antijudaica acentuamse ainda mais durante o século XIV Quando são acusados de ter causado a peste de 1348 envenenando os poços é a ideia de um complô generalizado contra a cristandade que ganha forma e se compreende que logo apareçam os primeiros pogroms23 tais como aqueles de 1391 em Castela e em Aragão A expulsão definitiva dos judeus decidida pelos Reis Católicos em 1492 logo seguida por outros soberanos é o resultado de um processo de exclusão crescente ao final do qual a população judaica se torna apenas residual na Europa Ocidental Durante muito tempo considerouse que a Idade Média conheceu apenas o antijudaísmo que se aplicava aos judeus como assassinos do Cristo e cegos à verdadeira fé diferentemente do antissemitismo moderno ideologia laica fundada sobre um critério racial Ao que tudo indica a Idade Média ignora a noção de raça tal qual ela é formada no século XIX e é antes a constituição da cristandade como totalidade unificada que leva então à rejeição dos judeus enquanto não cristãos e não como povo julgado inferior De fato uma conversão ao cristianismo torna possível sua integração social mesmo se permanece sempre algo da antiga condição que a conversão não chega jamais a abolir completamente JeanClaude Schmitt De fato este traço indelével pesa cada vez mais até que a obsessão da pureza de sangue limpieza de sangre na Espanha moderna conduz à perseguição dos judeus convertidos e de seus descendentes conversos Entretanto se a distinção entre antijudaísmo e antissemitismo é útil é necessário admitir sem dúvida que a Idade Média avançou além do que geralmente se reconhece sem entretanto chegar a elaborar uma teoria antissemita articulada Dominique IognaPrat Desde o século XII Pedro o Venerável cuja virulência certamente não é partilhada por todos os clérigos de seu tempo perguntase é verdade que de modo parcialmente retórico se os judeus da época atormentados pelas aberrações do Talmude são realmente homens ou bestas que perderam todo acesso à verdade original de sua própria fé Ao mesmo tempo os adversários do papa Anacleto II um dos dois eleitos no cisma de 1130 fusti23 Termo de origem russa cuja tradução literal é destruir inteiramente que indica um movimento popular de violência contra os judeus N T 238 Jérôme Baschet gam este papa judeu como se a conversão de seu bisavó não tivesse sido suficiente para apagar a mancha de suas origens Logo são atribuídos aos judeus traços físicos específicos feiura e nariz recurvado que as imagens não deixam de representar figura 43 na p 437 e alguns autores não hesitam em afirmar que eles têm menstruação como as mulheres No geral a exclusão crescente dos judeus aparece como uma consequência da afirmação da cristandade e de sua ordenação sob a dominação da Igreja acessoriamente e de maneira ainda não sistemática o processo que os proscreve da sociedade cristã lhes confere traços que tendem a negar que pertencam à verdadeira humanidade encarnada por Cristo e seus fiéis Com maior violência ainda do que contra os judeus a cristandade logo se engaja em uma luta mortífera contra a feitiçaria Como já se disse a caça às bruxas é um fenômeno essencialmente moderno e será evocada então apenas a sua lenta gênese medieval A feitiçaria da qual é questão aqui é na verdade uma concentração de elementos diversos cujo estereótipo é forjado pela instituição eclesial Podese distinguir seus componentes e indicar as etapas de sua conjunção Desde a época de Agostinho os clérigos condenam as práticas destinadas a dirigir as forças sobrenaturais com o intuito de provocar doença ou impotência de atrair tempestades que destruam as colheitas ou de prejudicar o gado Ao longo de toda a Idade Média atos de magia tais como sortilégios encantamentos amarrações ou feitiços com imagens são bem atestados mas aqueles que os praticam nas zonas rurais são tanto curandeiros e desfazedores de feitiços como feiticeiros ocupados em lançar malefícios sobre suas vítimas Há aí um conjunto de práticas que visam prever o futuro dispensar cuidados especialmente pelo uso de plantas ou ainda proteger animais e colheitas que a Igreja recusa considerar positivamente e que são assim remetidas para o campo da magia fora do sagrado eclesiástico Não se trata unicamente de atitudes populares pois a adivinhação ou a evocação dos espíritos são também até os últimos séculos da Idade Média obra de letrados em geral de clérigos e por vezes mesmo de universitários JeanPatrice Boudet Em segundo lugar as práticas folclóricas consideradas inaceitáveis pela Igreja tendem a ser igualmente integradas ao estereótipo da feitiçaria É o caso da crença no voo noturno na companhia da Senhora Abundia de Diana ou de outros espíritos ou ainda dos ritos xamanísticos dos quais Carlo Ginzburg delimitou para além do exemplo dos benandanti as manifestações no conjunto do continente eurasíatico cujo coração seria a viagem extática para o mundo dos mortos e o combate pela fertilidade No entanto nada disso teria sido suficiente para criar a imagem do sabá dos feiticeiros Isso é tão verdadeiro que de início a Igreja adota uma atitude prudente em relação às crenças mágicas No início do século X o cânone A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 239 Episcopi retomado ainda no Decreto de Graciano considera que aqueles que se entregam à evocação dos espíritos maléficos são os ludibriados por ilusões provocadas pelo diabo e que a crença no voo noturno nada mais é que uma fantasia que o Maligno incute nos sonhos em cuja realidade os indivíduos creem erroneamente quando acordam Mágicos e feiticeiros são então vítimas a quem convém ajudar para que abandonem suas falsas crenças mais do que perigosos servidores de Satã que seria preciso eliminar Depois a atitude da Igreja começa a mudar no contexto da luta contra as heresias no século XII e sobretudo no século XIII Multiplicamse então as narrativas que demonizam os hereges e que serão mais tarde aplicadas aos feiticeiros Os clérigos começam a afirmar que o diabo preside às reuniões dos hereges e até mesmo que estes consideram Lúcifer o verdadeiro deus injustamente expulso do céu bula Vox in rama de Gregório IX de 1233 Pouco a pouco os hereges são transformados pela Igreja em seitas de adoradores do diabo Norman Cohn Paralelamente para lutar contra a heresia estabelecese o dispositivo repressivo Inquisição procedimento inquisitório tortura que terá um papel determinante no estopim e na ampliação da caça às bruxas O deslocamento da repressão da heresia para a feitiçaria é de resto preparado desde 1258 quando o papa Alexandre IV confia aos inquisidores o cuidado de se interessar igualmente por sortilégios e adivinhações que tenham ares de heresia Ao mesmo tempo os teólogos do século XIII definem com maior precisão o controle das potências maléficas e Tomás de Aquino estabelece a noção de pacto voluntário com o diabo que será em seguida aplicada aos feiticeiros Duas etapas ulteriores podem ser evocadas No primeiro quartel do século XIV aparece uma série de casos judiciários de caráter eminentemente político nos quais intervêm acusações de magia e de malefício processo póstumo contra Bonifácio VIII sob instigação do rei Filipe o Belo acusação de Guichardo bispo de Troyes condenação dos Templários e supressão de sua ordem Outros processos ocorrem ao longo do século salvo durante os anos 134070 mas o fenômeno conserva uma amplitude limitada e as acusações permanecem circunscritas ao malefício lançado contra uma outra pessoa Depois os anos 1430 são marcados por várias transformações substanciais e pelo início de uma verdadeira perseguição de que as regiões alpinas são o epicentro Aparece então pela primeira vez a ideia de que os feiticeiros não agem isoladamente mas formam uma seita que prepara um complô para destruir a cristandade assim sobre eles são transferidas as acusações lançadas contra os leprosos especialmente em 1321 e contra os judeus notadamente em 1348 Os primeiros tratados especificamente consagrados à feitiçaria são então redigidos tal como o Formicarius do dominicano João Nider de 1437 em que aparecem os temas do assassinato 240 Jérôme Baschet 24 Uma cena do sabá dos feiticeiros e feiticeiras c 1460 Johannes Tinctoris Tratado do crime de Vauderie Biblioteca Real Bruxelas ms 11209 fl 3 Muitos manuscritos do tratado de Johannes Tinctoris teólogo que escreve em Tournai por volta de 1460 foram iluminados para altos personagens da corte de Borgonha Nele encontramse as primeiras representações iconográficas do sabá e de seu imaginário delirante ao mesmo tempo que feiticeiros e feiticeiras voam montados em criaturas monstruosas para chegar ao local da cerimônia a cena principal mostra a adoração de Satã sob a forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus ritual das crianças e do canibalismo nas reuniões de feiticeiros a obra contribui para assentar uma visão claramente feminina da feitiçaria enquanto nas primeiras fases as perseguições visam quase igualmente a homens e mulheres Deslocase então da queixa de malefício para a acusação de pacto e de adoração do diabo Doravante o estereótipo da feitiçaria é corrente atribuise a feiticeiros e feiticeiras a prática do voo noturno para participar de reuniões secretas que são nomeadas sinagogas até que o termo saiba vinha a se impor utilizado pela primeira vez por Petrus Mamor por volta de 1490 nelas eles adoram Satã presente sob a forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus entregamse a orgias e queimam crianças das quais eles consomem as cinzas figura 24 na p 241 A interpretação tradicional do cânone Episcopi é então completamente aniquilada Assim segundo o Martelo das feiticeiras dos dominicanos Jabobus Sprenger e Henricus Insistor 1486 verdadeira suma na matéria de feitiçaria que a imprensa transforma em bestseller o voo noturno e todos os atos imundos do sabá não têm nada de ilusão são realidades que exprimem o verdadeiro poder do diabo e que então exigem os mais severos castigos A evolução no decorrer da Idade Média é clara Certa de estar sendo perseguida por uma seita de cúmplices de Satã a Igreja tende finalmente a crer na realidade do que ela antes considerava va ilusão diabólica Ela forja então o conceito cumulativo de feitiçaria Brian Levack através de um amálgama entre práticas mágicas e divinatórias tais como o malefício superstições cobrindo sem dúvida ritos xamanísticos de fertilidade acusações anteriormente aplicadas aos hereges e enfim o fantasma do sabá como ritual de adoração do diabo Diante de uma ameaça tão absoluta todas as autoridades da cristandade são convidadas a reagir com vigor e a luta contra a feitiçaria dá lugar em breve a uma competição de zelo repressivo a uma escalada de ortodoxia entre a Igreja as monarquias e os poderes locais JeanPatrice Boudet E se a Idade Média apenas começa a dar corpo a essa obsessão enviando para a morte algumas centenas de feiticeiros tudo já está estabelecido para a perseguição em grande escala que a modernidade dos séculos XVI e XVII exibirá 40 mil vítimas de acordo com as estimativas mais moderadas Em direção à sociedade de perseguição No geral em todos os domínios evocados a atitude da Igreja se faz cada vez mais excludente e repressiva Isso foi constatado em relação aos hereges às superstições e às formas integradas de expressão dos valores de oposição aos judeus e mais tarde aos feiticeiros e seria possível dizer o mesmo de outros grupos marginas e discriminados tais como os leprosos e os homossexuais É por isso que reunindo o conjunto desses fenômenos e reparando neles o efeito de uma lógica única Robert Moore pôde ressaltar a formação de uma sociedade de perseguição na Europa a partir dos séculos XI a XIII Por vezes também se apresentou esse processo como um aumento da intolerância mas é preciso assinalar que o par tolerânciaintolerância do qual é verdade temos dificuldade de escapar é uma armadilha Com efeito mesmo em sua fase menos repressiva a Idade Média não poderia dar lugar a uma verdadeira tolerância entendida como aceitação das diferenças e pleno reconhecimento da alteridade No melhor dos casos ela pode tolerar o outro no sentido em que ela suporta sua presença sob a condição de que sua submissão seja clara e mais frequentemente para poder se vangloriar de ter triunfado sobre o mal que ele representa Entretanto é preciso marcar a diferença entre uma situação inicial que se degrada pouco a pouco e os picos de fúria repressiva e de obsessão de pureza atingidos durante a época moderna se se compara é tentador evocar uma relativa tolerância da Idade Média Mas os séculos medievais devem este traço ao fato de que eles não foram até o limite da lógica que os anima de que eles ainda não esquadrinharam totalmente o campo das realidades a serem excluídas e dão provas por consequência de uma certa maleabilidade notadamente por sua capacidade de assumir situações em que o bem e o mal embora separados estejam em contato um com o outro A presença conjunta e separada do espiritual e do material ou de outros pares de oposição permanece aceitável e mesmo utilmente explorável durante a Idade Média enquanto a época moderna preferirá proceder a uma dissociação ainda mais radical e se preocupará em preservar com um zelo infalível a absoluta pureza dos valores e dos lugares positivos Mas o essencial é sem dúvida associar a formação da sociedade de perseguição à dominação incessantemente mais marcada da instituição eclesial O fato de que os processos analisados começam a se manifestar no momento da reforma gregoriana da Igreja e das primeiras cruzadas autoriza a estabelecer uma ligação entre institucionalização e exclusão A estruturação da cristandade pensada como uma comunidade homogênea sob a direção de uma instituição eclesial reforçada produz com efeito um duplo movimento de integração para os fiéis ajustados e de exclusão para os não cristãos e os desviantes Dominique IognaPrat A constituição ocidental da sociedade de perseguição é então um fenômeno cuja origem é possível situar nos séculos XI e XII e que se amplia regularmente do século XIII ao século XV e mesmo além A institucionalização cria a exclusão e é a própria Igreja que molda os inimigos sobre os quais ela se dá por tarefa triunfar Por consequência deveria ser possível medir o poderio da instituição eclesial ou ao menos o seu desejo de poderio e seus esforços para A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 243 constitui a fonte de todo poder na Igreja Já encorajada por Inocêncio III encontrase uma clara expressão sua no liturgista Guilherme Durand 1296 o papa dirige dispõe e julga todas as coisas ele pode suprimir todo direito e governar acima do direito ele próprio está acima de tudo e tem na terra a plenitude do poder Estamos longe do modelo legado por Gelásio I 49296 que estabelece uma partilha equilibrada entre a autoridade dos clérigos que se sobrepõe em matéria espiritual e o poder dos laicos que se impõe na esfera temporal Mas isso quer dizer que agora todos os poderes temporais concernem ao menos indiretamente ao papa A questão continuou a ser debatida sendo objeto de diversas formulações moderadas ou radicais É verdade que Gregório VII afirma que os sacerdotes de Cristo devem ser considerados os pais e senhores dos reis príncipes e de todos os fiéis e é provável que ele sonhasse em restabelecer a velha unidade do poder temporal e do poder espiritual mas dessa vez em proveito do papa e não do imperador Girolamo Arnaldi Ele afirmava de resto nos Dictatus papae que apenas o papa tinha o direito de uso das insígnias imperiais tendência que um texto dos anos 1160 a Summa perusina amplifica ainda mais enfatizando a O papa é o verdadeiro imperador Esta pretensão a um papado imperial plena realização na terra do poder real de Cristo nem sempre é apenas teoria Assim quando ele proclama a cruzada em 1095 Urbano II usurpa manifestamente uma prerrogativa imperial e põe o papa de modo duradouro na posição de guia da cristandade em um domínio que deveria ser próprio da competência do imperador Mas no geral a cristandade medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma teocracia na qual a Igreja detería efetivamente a soberania nos negócios temporais As afirmações mais combativas sem dúvida visavam menos a ser inteiramente postas em prática do que a consolidar o essencial a proeminência da monarquia pontifícia sobre todos os outros poderes do Ocidente e o reconhecimento do papa como guia da cristandade Ao término dos processos descritos aqui o caráter dominante da instituição eclesial está mais marcado do que nunca Esta é reformada sob a autoridade absoluta e centralizadora do papado e a dominação dos clérigos sobre os laicos é fortalecida graças a uma separação hierárquica cada vez mais vigorosa entre uma casta sacralizada e o comum dos fiéis Essa reorganização é acompanhada por numerosas transformações que afastam a cristandade ocidental de suas origens por exemplo no que concerne à associação de Constantino entre a Igreja e o Império e que não acontecem no Oriente bizantino O cisma de 1054 consumado precisamente durante o pontificado de Leão IX acompanha muito logicamente o momento em que a forma ocidental da Igreja cristã se desenha em toda a sua clareza 15 O mosteiro românico de San Pere de Roda Catalunha século XI Consagrada em 1022 a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambulatório s e sua nave terminada na segunda metade do mesmo século não é menos audaciosa Do exterior distinguemse a igreja abacial e seu campanário a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório duas outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges O mosteiro apresentase como uma cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta dominando orgulhosamente a solitude em torno SÉCULO XIII UM CRISTIANISMO COM NOVAS ENTONAÇÕES Entre os séculos XI e XIII o Ocidente transformase de modo considerável Se fosse preciso escolher um edifício para simbolizar a Europa do século XI este seria sem dúvida um mosteiro beneditino tal como o de San Pere de Roda na Catalunha com ares de fortaleza suspensa no flanco de uma colina dominando a partir de seu soberbo isolamento os campos circundantes figura 15 acima Para exprimir as realidades do século XIII seria necessário pensar ao contrário em uma catedral gótica tal como a de Bourges audacioso edifício no coração da cidade figura 16 na p 198 De um edifício a outro passase de um universo rural ainda fracamente povoado para um mundo mais densamente ocupado onde a cidade tem um papel notável ilustração VIII na p 199 Ao mesmo tempo a dominação dos monges cede terreno diante da reafirmação do clero secular 3 Século XIII um cristianismo com novas entonações FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA DA UNESP BARÃO DO RIO BRANCO ERICH HAEGH 1977 Ano 1000 A CIVILIZAÇÃO FEUDAL da América São a colonização Grupo 3 Sao Paulo 2006 pp 196 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 197 16 No coração da cidade a catedral gótica de Bourges primeira metade do século XIII A catedral enaltecida pela arte gótica inscrevese no coração do tecido urbano que ela domina a partir de sua massa quase esmagadora Dedicada a santo Estevão a catedral de Bourges foi iniciada em 1195 e terminada no essencial em meados do século seguinte Ela se caracteriza pelas dimensões particularmente imponentes 125 metros de comprimento 50 metros de largura 375 metros de altura e pela notável homogeneidade sensível em seu plano ilustração X na p 202 Percebese à direita a série de arcobotantes que sustentam a alta nave central desde a fachada até a abside sem que nenhum transepto interrompa a regularidade Projeção de uma embarcação com cinco naves a ampla fachada é inteiramente articulada pelos cinco portais cujos pêsdreitos se juntam uns aos outros VIII Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que ela substitui Em Leão os trabalhos empreendidos no século XIX permitiram revelar as fundações do edifício românico situado sob a construção gótica que o substituiu o caso de Salamanca permite ao contrário observar uma situação excepcional pois a catedral gótica é construída ao lado daquela de época românica sinal bastante raro de respeito por um edifício anterior O edifício românico consagrado em 1073 comporta três naves terminadas cada uma por uma abside semicircular Um século mais tarde a construção de uma nova catedral é iniciada pelo bispo Manrique de Lara 11811205 com o apoio do rei Alfonso IX Interrompidos os trabalhos são retomados durante o episcopado de Martín Fernández 125489 que leva a cabo a edificação dos portais da fachada ocidental A nova catedral multiplica de modo considerável o espaço interno utilizável sinal ao mesmo tempo do crescimento urbano e da vontade de poderio da Igreja CATEDRAL DE LEON PLANTA DE LA ANTIGUA YGLESIA ROMÁNICA RELACIONADA CON LA ACTUAL ESCALA DE DOSS 5 Corte y alzado por A W Seccion por K L Corte y alzado por C A Corte y alzado por MS Seccion por ZF a uu Corte por F Corte por FC Corte por XL Corte por AR VIII A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 199 17 A nave em berço da igreja abacial de Conques segunda metade do século XI Realizada em grande parte na época do abade Odolrico morto em 1065 a abadia beneditina de Conques parece ter sido terminada quando o abade Begon III 10871107 manda edificar a claustra beneditina românica clássica os arcos são em pleno cimbre e repousam sobre pilares colunas ou semicolunas geralmente ornados de capitéis como se vê aqui nas partes altas da nave principal A abóbada central de berço reforçada por arcos cruzeiros prolonga a mesma forma semicircular A luz penetra apenas indiretamente na nave central inclusive na parte superior onde as tribunas andar sobreposto às naves secundárias contrabalançam o repouso exercido pela abóbada central Do mesmo modo a abside onde aparece o altar principal é vazada apenas por janelas estreitas somente o cruzeiro do transepto encimado por uma torre ortogonal que data do século XIV é mais vivamente iluminado Em uma nave românica os contrastes de sombra e luz são fortemente marcados Do românico ao gótico De um edifício a outro passase da arte românica à arte gótica o que é bem mais do que uma simples questão de estilo Do românico ao gótico é o mundo que muda e com ele a maneira de conceber a função social e ideológica da arquitetura Da arte românica retémse geralmente o arco de pleno cimbre e a abóbada de berço em pedra ou seja um avanço notável pois a maior parte das igrejas anteriores à imagem das basílicas antigas construções civis que serviram de modelo aos primeiros edifícios de culto cristão eram cobertas por um vigamento em madeira muito exposta ao risco de incêndio Mas a abóbada de berço repousa seu peso ao longo dos muros laterais que a sustentam de modo que estes só podem ser fendidos por janelas estreitas que destilam uma luz parcimoniosa e irregular figura 17 na p 200 Em uma igreja românica as zonas de sombra e de luz contrastam vigorosamente e entrecortam o espaço interior Essa impressão de fragmentação é ainda acentuada pela heterogeneidade das formas arquitetônicas e pela ausência de módulo comum às diferentes partes do edifício de modo que nave naves secundárias transepto tribunas coros e cúpulas deambulatórios e capelas laterais parecem mais elementos autônomos agregados uns aos outros ilustração IX na p 202 De outro lado a arte românica é uma arte da parede e da superfície ela sublinha a importância de amplas superfícies de muralhas espessas e densas cuja constituição em pedra é diretamente visível no exterior ou reproduzida por um estuque pintado no interior As necessidades técnicas combinamse aqui aos móveis ideológicos pois à imagem da instituição de que ela é símbolo a igreja quer ser uma fortaleza que se defende contra o mundo exterior e então não pode simbolicamente deixálo penetrar em seu seio a não ser com prudência É preciso que ela exalte esses muros que a protegem assim como as torres de campanários que enquandram então maciçamente a fachada para dar exatamente o sentido da vigilância da cidadela divina É assim que a igreja românica aparece como uma cidade santa fortificada prefiguração terrestre da Jerusalém celeste exibindo suas muralhas de pedras preciosas ilha de pureza espiritual em meio à ameaçadora confusão do mundo Para qualificar a arquitetura gótica enumeramse geralmente o arco ogival a abóbada sobre cruzeiro de ogivas e o arcobotante mas dos três somente o último talvez seja uma invenção gótica uma vez que o cruzeiro de ogivas havia se estabelecido desde o fim do século XI no domínio anglonormando em particular na catedral de Durham O que revela bem mais a especificidade do gótico é uma combinação desses três elementos a serviço de um projeto técnicoideológico novo Mesmo se sem dúvida convém temperar o papel inaugural IX Planta de um edifício românico da primeira metade do século XII NotreDameduPort em ClermontFerrand NotreDameduPort oferece o exemplo típico de um edifício em cruz latina Identificase a nave central flanqueada por duas naves secundárias sobrepostas por tribunas o corpo ocidental associado à fachada o transepto cujo cruzeiro é coberto de uma cúpula o coro cercado por um deambulatório com suas absidiolas Notase que nenhum desses elementos utiliza um módulo de medida em comum não há nem mesmo relação métrica entre a largura da nave central e aquela das naves secundárias como também não há entre o comprimento do vão da nave e o do transepto X Planta de um edifício gótico da primeira metade do século XIII a catedral de Santo Estevão em Bourges A catedral de Bourges leva ao extremo a busca gótica de homogeneização do lugar sagrado e de uniformização construtiva A nave central é flanqueada de quatro naves secundárias e completada por um duplo deambulatório As capelas que se abrem sobre o deambulatório são tão pouco profundas que se inscrevem na largura dos contrafortes e o transepto foi suprimido nos lados da nave as capelas laterais são acréscimos posteriores Principalmente o mesmo módulo de medida é utilizado de uma ponta a outra do edifício um abobadado das naves secundárias equivalendo a um quarto do vão da nave central Do mesmo modo todos os elementos tais como moduras colunetas e capitéis têm a mesma dimensão em todas as partes da igreja A unidade do projeto arquitetônico foi então definida desde o início da construção por volta de 1195 e mantida ao longo da segunda campanha iniciada por volta de 1225 até o seu término em meados do mesmo século Os dois planos estão em escalas muito diferentes e levarseá em conta o fato de que a catedral de Bourges é mais de duas vezes maior que a de NotreDameduPort 18 Abóbadas sobre cruzeiro de ogivas e amplas vidraçarias o coro e a nave da catedral de Leão segunda metade do século XIII A catedral de Leão mostra a realização da busca do gótico da qual a abóbada sobre cruzeiro de ogivas é um dos instrumentos técnicos privilegiados Graças a este formado por duas nervuras cuja interseção é reforçada por uma chave de abóbada as forças criadas pelo peso do abobadado concentramse nos pilares laterais escorados no exterior pelos arcobotantes e seus contrafortes As tribunas podem assim ser suprimidas e os muros laterais substituídos por imensos vitrais rutilantes de cores e saturados de iconografia Sob as altas vidraçarias aparece o trifório série de arcaturas diante de vidraçarias menores e mais abaixo os arcos quebrados que dão sobre as naves secundárias Poderíamos considerar a arquitetura gótica uma ambiciosa combinação de pilares de sustentação e de paredes em vidro o que a catedral de Leão com seus 1800 m2 de vitrais exprime claramente Não causará surpresa então que as vanguardas arquitetônicas do início do século XX começando por Bauhaus tenham podido reivindicar o gótico como uma das prefigurações de suas próprias buscas 19 São Francisco renunciando aos bens paternos c 12901304 afrescos de Giotto na basílica de Assis Este é o episódio crucial da conversão em um ato teatral Francisco se desnuda e abandona as vestimentas que obtivera de seu pai para significar sua renúncia à herança familiar O bispo o cobre publicamente com o seu manto em um gesto carregado de um simbolismo de adoção transposto aqui para o plano espiritual Se a conversão se apresenta como um jogo textil das vestimentas do pai ao manto do bispo ela é sobretudo uma questão de parentesco Francisco rompe com seus pais carnais para fazer prevalecer o parentesco espiritual que une os membros da Igreja enquanto seu gesto de prece aponta para a mão abençoadora do Pai divino Um de seus biógrafos lhe atribui de resto estas palavras ditas neste preciso momento Em toda a liberdade daqui por diante eu poderei dizer Nosso pai que estás no céu Pedro Bernadone não é mais meu pai Quanto a Giotto ele dá ao sistema de parentesco medieval a forma de uma perfeita geometria parentesco carnal parentesco espiritual parentesco divino Deus que entretanto só poderia ser atingida pelo rude caminho da penitência Essas características fizeram frequentemente comparar Francisco e seus companheiros ao quais ele recomenda ter o semblante sorridente ao jogral ofício por muito tempo condenado pela Igreja Elas se exprimem também no famoso Cântico do irmão Sol em que Francisco faz o elogio da natureza e do prazer que ela proporciona ao homem Ai está uma das tensões constitutivas do personagem a conjunção da penitência e do júbilo ou mais precisamente a escolha de uma penitência extrema que não leva à fuga do mundo mas ao amor a ele Os habitantes de Assis que veem Francisco andar hirsuto e em trapos perguntam se não há nele alguma loucura e é um pouco isso que exprime o seu apelido Poverello19 Mas este exemplo vivo de pobreza e de penitência lhe vale também um renome cada vez maior que atrai para junto dele discípulos em número crescente Logo Francisco encontrase à frente de uma pequena comunidade que a instituição eclesial poderia julgar perigosa e incontrolável como indica a primeira reação de Inocêncio III Ela no entanto faz a escolha inversa e em 1209 o papa é convencido embora com reservas a aprovar o modo de vida proposto por Francisco e a lhe conceder o direito de pregar Mas o desejo de enquadrar essa experiência e de lhe dar formas compatíveis com as estruturas de poder em vigor na Igreja conduz Honório III a exigir a redação de uma regra formal a de 1221 é recusada Regula non bullata até que novas modificações atenuando ainda mais o radicalismo do projeto inicial permitam finalmente sua aprovação em 1223 Regula bullata À medida que a comunidade cresce Francisco afastase das necessidades impostas pela direção espiritual e material de uma ordem Em breve renuncia a ser o seu chefe e escolhe viver como eremita no monte La Verna Penitências e privações extremas acentuamse em um esforço para aproximarse ainda mais de Deus até o ponto em que Francisco doente parece não ser mais do que uma ferida viva É nesse momento em 1224 que a tradição situa o milagre da estigmatização cuja descrição toma forma ao longo das sucessivas biografias de Francisco como demonstrou Chiara Frugoni Segundo a Legenda maior que Boaventura superiorgeral da ordem franciscana redige em 1263 e impõe como a única versão autorizada a ponto de ordenar a destruição das narrativas anteriores em particular as duas Vidas redigidas por Tomás de Celano Francisco teria tido uma visão divina sob a forma híbrida de um serafim e de Cristo na cruz cujas cinco chagas da Paixão teriam sido impressas em seu corpo ainda visíveis quando de sua morte figura 20 na p 209 Tal milagre totalmente inédito e reconhecido pelo papado somente em 1237 provoca 19 Em italiano pobrezinho coitado N T 208 Jérôme Baschet 20 A estigmatização de são Francisco relicário esmaltado contendo relíquias do santo c 1228 Museu do Louvre Paris No reverso deste relicário lentes de cristal permitem ver as relíquias do santo recentemente canonizado No lado visível aqui uma decoração em esmalte campeão técnica altamente apreciada para a decoração dos objetos litúrgicos mostra uma das primeiras representações da estigmatização de Francisco A aparição é a de um serafim mais do que a de Cristo na cruz mas os pés e as mãos portando as chagas da Paixão são bem visíveis A impressão dos estigmas não está materializada por raios ligando o corpo do Cristoserafim e aquele do santo como Giotto terá a ideia por volta de 1290 mas Francisco de braços afastados e inclinado como para se oferecer aos efeitos da aparição carrega no seu próprio corpo as marcas do sacrifício de Cristo vivas polêmicas Muitos contemporâneos permanecem incrédulos ou mesmo hostis a uma inovação quase escandalosa que põe Francisco excessivamente alto a seus olhos até o momento em que outros santos a começar pela dominicana Catarina de Siena imitam seu exemplo e reduzem assim o seu excessivo privilégio É que o alcance da estigmatização não deixa dúvidas a ninguém para Boaventura e os franciscanos que se constituíram em promotores do milagre ele transformava Francisco em um santo perfeito quase angélico e era a realização lógica de uma vida devotada à imitação de Cristo Recebendo as marcas mais eminentes do sacrifício divino Francisco identificavase em sua própria carne com o Salvador Ele se tornava um segundo Cristo vivendo novamente entre os homens um outro Cristo segundo a expressão de Boaventura Em um prazo particularmente breve dois anos depois de sua morte ocorrida em 1224 Francisco de Assis era canonizado Durante a sua vida Francisco não cessará de tomar as instituições e os costumes de seu tempo a contrapelo Fundador de uma ordem se bem que ele continue um laico um dos raros que a autoridade eclesial autorizou a pregar próximo dos pobres a ponto de permanecer um dos seus apesar do sucesso de seu empreendimento sempre opondo o dever da penitência às necessidades institucionais ele evita entretanto atacar frontalmente a hierarquia nesse sentido poderíamos definilo como um rebelde integrado Ele é portador de uma mensagem que de um lado corresponde às aspirações de seu tempo a insistência sobre a Encarnação e a Imitação de Cristo mas cujo radicalismo evangélico é em parte inassimilável pela Igreja Era então lógico que a história da Ordem Franciscana fosse marcada ao menos durante um século por violentos conflitos entre uma corrente espiritual partidária de uma fidelidade rigorosa ao fundador e os conventuais defensores de uma acomodação com as regras da instituição eclesial A interpretação da vida de Francisco imposta por Boaventura é uma clara vitória dos últimos antes mesmo que a disputa se concentre sobre a questão da pobreza exigência absoluta para os espirituais que argumentam que Cristo jamais havia possuído algo No entanto no início do século XIV foilhes necessário ou aceitar uma maior moderação para se manter na comunidade da ordem ou derivar para a heresia como fazem os fraticelle Ao final desse processo tumultuoso a figura de Francisco terá sido então integrada à instituição eclesial e finalmente posta a seu serviço Evocarseá mais brevemente Domingo de Guzmán nascido por volta de 1170 em Caleruega Castela em uma família da pequena aristocracia Ele opta por uma carreira eclesiástica tradicional e tornase cônego da catedral de Osma Acompanhando seu bispo no Sul da França ele descobre o impacto do catarismo e decide consagrarse à luta contra a heresia Ele começa a pregar na região 210 Jérôme Baschet 21 O Triunfo da Igreja e dos dominicanos 136668 afrescos de Andrea di Bonaiuto capela dos Espanhóis Santa Maria Novella Florença Fazendo face à representação do Triunfo de São Tomás adequadamente localizado na sala capitular de um convento dominicano esta vasta alegoria da Igreja põe o acento sobre práticas que se tornaram essenciais durante os últimos séculos da Idade Média especialmente a pregação e a confissão Embaixo à esquerda um imponente edifício eclesial é associado à hierarquia clerical reunida em torno do papa À direita os dominicanos têm o papel principal eles pregam e combatem os heréticos enquanto cães devoradores lembram que sua missão está inscrita em seu nome domini canes Acima quase no centro do afresco um sacerdote recebe a confissão de um fiel ajoelhado diante dele o confessionário não existe durante a Idade Média A confissão está no cruzamento dos caminhos aqueles que recorrem a ela são convidados por São Domingo a avançarem para o paraíso Tais como almas puras vestidas com túnicas imaculadas eles são ali acolhidos por São Pedro símbolo da instituição eclesial e guardião da porta do céu Uma vez transposto esse limiar os eleitos gozam da visão beatífica quer dizer da contemplação da essência divina que aparece em meio a uma corte de anjos Tal é a recompensa suprema à qual os cristãos chegam seguindo os ensinamentos da Igreja e recebendo graças a ela os sacramentos salvadores Assim o afresco sobrepõe notavelmente os três sentidos da palavra igreja o edifício a instituição clerical e a comunidade dos fiéis chamada a se reunir na glória celeste de Fanjeaux logo acompanhado por alguns discípulos que levam uma vida evangélica depois funda um primeiro convento em Toulouse Em 1217 o papa aprova a nova ordem posta sob a regra de santo Agostinho Domingo vê na pregação apoiada pelo estudo e pela penitência uma arma indispensável contra os inimigos da Igreja Os novos conventos daqueles que são chamados justamente de frades pregadores multiplicamse rapidamente e Domingo morre à frente de uma ordem poderosa em 1221 sua canonização ocorre em 1234 O per é logo de início estreitamente ligado à instituição eclesiástica e em particular à luta contra a heresia De resto os dominicanos tornarseão especialistas nas tarefas inquisitoriais e assumirão com orgulho essa função considerandose os cães do Senhor domini canes de acordo com um jogo de palavras que o seu nome permite em latim figura 21 na p 211 Os dominicanos também orientam imediatamente suas atividades para o estudo e o esforço intelectual indispensável para argumentar ao serviço da Igreja Eles multiplicam então os studia destinados à formação de seus membros enquanto os primeiros franciscanos procuram formas mais simples e mais imediatas de contato com Deus Entretanto a despeito dessas diferenças iniciais a evolução das duas ordens as aproxima e muito em breve estarão ao mesmo tempo unidas por objetivos e práticas bastante semelhantes e opostas por uma intensa rivalidade O sucesso das duas ordens que são chamadas de mendicantes pois elas querem em seus inícios nada possuir e viver apenas de dons de caridade estendese logo a toda a cristandade Os frades pregadores caracterizados pela sua vestimenta branca recoberta por um manto negro são cerca de 7 mil por volta de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII enquanto os franciscanos também chamados frades menores em razão de sua humildade vestidos com um hábito de lã crua ou bege nem pintado nem embranquecido e reconhecidos como Francisco pela simples corda com um nó atada à sua cintura são talvez 2500 por volta de 1250 e se repartem em cerca de 1600 estabelecimentos meio século mais tarde Outras ordens mendicantes de menor importância também surgem mas o Concílio de Lyon II 1274 limita seu número a quatro além dos franciscanos e dos dominicanos tratase dos carmelitas ordem fundada em 1247 e dos eremitas de santo Agostinho ordem criada em 1256 Cada ordem sob direção de um superiorgeral e de responsáveis provinciais é dotada de uma coesão muito mais forte que as redes monásticas anteriores Cada uma delas conta além de seu ramo masculino com um componente feminino como a Ordem das Clarissas fundada por santa Clara de Assis associada aos franciscanos e uma ordem terceira na qual são acolhidos os laicos que desejam viver devotadamente O ideal de pobreza associado à humildade e à penitência é a característica primeira das ordens mendicantes Mas como todas as outras aventuras monásticas anteriores esbarra no paradoxo do sucesso que leva à multiplicação dos dons e à acumulação dos bens Se as ordens tradicionais impunham que cada monge não possuísse nada a título individual mas aceitavam as doações feitas à instituição as ordens mendicantes preocupadas em dar sentido ao ideal de pobreza recusam essa opção Mas logo precisam forjar a teoria segundo a qual os bens recebidos por elas são propriedades do papa e que a ordem tem apenas o seu uso o que os franciscanos espirituais não deixam de denunciar como uma ficção hipócrita A contribuição das ordens mendicantes tem a ver ainda mais com uma concepção original do papel do clero regular Mesmo aceitando uma regra de vida comunitária e ascética os mendicantes não optam por uma fuga do mundo Mesmo quando se referem idealmente ao exemplo dos eremitas do deserto Alain Boureau assumem na prática viver em meio aos fiéis para pregar pela palavra e pelo exemplo na verdade essa vocação pastoral caracteriza somente os ramos masculinos das ordens as mulheres permanecem confinadas em uma clausura tradicional o que sem dúvida favorece o desabrochar particularmente entre as dominicanas de uma intensa devoção mística que vem compensar a sua exclusão das tarefas assumidas pelos frades O século XII já havia visto certa aproximação entre regulares e seculares mas os mendicantes dão o passo suplementar instalandose no coração das cidades estes estranhos regulares urbanos e pregadores são de resto chamados de frades não de monges As ordens mendicantes aportam assim uma contribuição decisiva à Igreja de seu tempo assumindo um enquadramento e uma atividade pastoral adaptados aos meios urbanos Agindo assim intervêm em um terreno que é normalmente do clero secular e os conflitos entre mendicantes e seculares não faltam por exemplo no seio da Universidade de Paris e mais amplamente nas cidades onde os bispos veem com desconfiança esses pregadores extremamente bem preparados cujos sermões têm mais sucesso que aqueles dos seculares e que captam para suas vastas igrejas os dons dos fiéis O laço entre ordens mendicantes e fenômeno urbano é de resto tão claro que se pôde estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número de conventos mendicantes que elas abrigam Jacques Le Goff Em todas as cidades da Europa sua implantação se faz segundo uma mesma lógica tendo necessidade de um amplo terreno os conventos mendicantes se estabelecem nos limites da zona construída e considerando a concorrência existente entre eles o mais longe possível uns dos outros segundo uma geometria bastante regular Se uma cidade abriga dois conventos mendicantes o meio da linha que os liga é ocupado pelos edifícios principais da cidade se eles são três o centro urbano ocupa aproximadamente o ponto central do triângulo formado por eles 212 Jérôme Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 213 Copyright 2004 by Éditions Flammarion Copyright da tradução 2005 by Editora Globo SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma seja mecânico ou eletrônico fotocópia gravação etc nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Decreto Legislativo nº 54 de 1995 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Valquíria Della Pozza Maria Sylvia Corrêa Índice remissivo Luciano Marchiori Capa Ettore Bottini sobre iluminuras de Les très riches heures du Duc de Berry 141016 dos irmãos Limbourg Musée Condé Château de Chantilly 3ª reimpressão 2011 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Baschet Jérôme A civilização feudal do ano 1000 à colonização da América Jérôme Baschet tradução Marcelo Rede prefácio Jacques Le Goff São Paulo Globo 2006 Título original La civilization féodale de lan mil à la colonization de lAmerique ISBN 9788525041395 1 Civilização medieval 2 Europa História medieval 3 Idade Média I Le Goff Jacques II Título 061863 CDD9401 Índice para catálogo sistemático 1 Civilização medieval História 9401 Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S A Av Jaguaré 1485 05346902 São Paulo SP wwwglobolivroscombr Como sugeriu vigorosamente Alain Guerreau só se tem a ganhar em considerar a Igreja a garantia da unidade da sociedade feudal sua coluna vertebral e o fermento de seu dinamismo OS FUNDAMENTOS DO PODER ECLESIAL Unidade e diversidade da instituição eclesial Dizse que a Igreja é a instituição dominante do feudalismo ela se reproduz com sucesso como instituição mas sem que as posições em seu interior sejam transmitidas de maneira principalmente genealógica como é habitual para uma classe social É verdade que se pode considerar o alto clero como a fração superior do grupo dominante embora ele não forme enquanto clero uma classe propriamente dita Aliás as relações entre o clero e a aristocracia são ambivalentes Esses dois grupos são ainda mais próximos pelo fato de que os filhos da aristocracia monopolizam o essencial dos cargos do alto clero mesmo se não existe nenhuma exclusividade nessa questão Entretanto a integração à Igreja rompe na teoria e em boa parte na prática os laços que unem o clérigo à sua parentela Por vezes um abade ou um bispo poderá obter mais facilmente de seus parentes que permaneceram seculares concessões em favor da Igreja ou inversamente porém com mais frequência a diferença de posição faz prevalecer os contrastes de interesses entre clérigos e laicos Clero e aristocracia são assim cúmplices na obra de dominação aliados perante os dominados mas também são concorrentes como indica uma infinidade de conflitos notadamente pelo controle das terras e dos direitos que estruturam a organização dos senhorios tanto laicos como eclesiásticos As numerosas críticas que os clérigos lançam contra os cavaleiros tirânicos e rapaces acusados de maus costumes são frequentemente e em especial durante a fase mais aguda do processo de encluamento um meio de defender as prerrogativas da Igreja e de seus próprios senhorios Existe então uma rivalidade entre os dois polos do grupo dominante mas que permanece submetida ao adequado exercício de sua superioridade sobre os dominados A própria instituição eclesial não é homogênea Além das contradições de interesse ou dos conflitos doutrinais que podem opor em seu interior diferentes tendências existem importantes dualidades institucionais Uma é hierárquica e bastante simplificada quando se opõem ao alto e ao baixo cleros mas pelo menos nos lembra uma importante distância entre os grandes dignitários aba des bispos arcebispos cardeais e papas alguns dos quais estão entre os príncipes mais poderosos de sua época e simples monges e sacerdotes cujo poder e prestígio permanecem em geral circunscritos ao quadro local Se bem que ela se modifique sensivelmente no decorrer dos séculos a diferença de posição entre os clérigos regulares e os clérigos seculares não é de menor importância Entrando em uma ordem monástica da qual eles aceitam a Regra os primeiros escolhem a fuga ao mundo e o isolamento penitencial consagrandose ao serviço de Deus pela prece pelo estudo e por vezes pela atividade manual Quanto aos últimos que se conservam na vida secular em meio ao mundo e em contato com os laicos eles têm por missão o cuidado das almas cura animarum de onde o nome dado aos curas responsáveis pelas paróquias cuja rede está se formando então através da administração dos sacramentos e do ensinamento da palavra divina Mesmo se alguns podem combinar as duas filiações ou passar de uma a outra e mesmo se entre os séculos XI e XIII as missões dos regulares e dos seculares se imbricam cada vez mais tratase de duas concepções diferentes do mundo cuja fortuna se modifica e de duas hierarquias paralelas a primeira aberta parcialmente às mulheres a segunda estritamente reservada aos homens entre as quais a competição é muitas vezes rude Entretanto apesar de numerosas diferenças internas a Igreja existe como unidade definida a um só tempo institucional e liturgicamente A dualidade que separa clérigos e laicos é a esse respeito fundamental mesmo se existe uma zona intermediária e relativamente fluida na fronteira destes dois status Assim indivíduos podem permanecer laicos mesmo integrandose ou aproximandose do modo de vida monástico os conversos de Cluny são integrados à comunidade monástica embora em posição subalterna enquanto entre os cistercienses eles são mantidos a distância dos monges e encarregados de tarefas manuais assinalemos ainda os membros das ordens terceiras mendicantes e as beguinas do fim da Idade Média mulheres laicas que vivem na cidade à maneira das monjas Além disso alguns receberam apenas as ordens menores do clero ostiário leitor exorcista acólito ou somente a tonsura que conferida pelo bispo dá o status de clérigo o que é geralmente requerido para seguir um ensino universitário A ligação com o clero parece então de uma dupla modalidade a tonsura e as ordens menores são suficientes para conferir o status de clérigo mas apenas o acesso às ordens maiores subdiácono diácono sacerdote ou a entrada na ordem monástica investem de um verdadeiro poder simbólico e impõem um modo de vida fora do comum marcado pela abstinência sexual É por isso que na França da Idade Média um terço dos clérigos pode sem contradição dizerse casado pois eles receberam apenas as ordens menores ou a tonsura Entretanto essas situações intermediárias não diminuem em nada a importância fundamental da dualidade clérigoslaicos de resto é da natureza de toda realidade social ser um continuum de situações concretas de modo que a delimitação dos grupos sociais é sempre secundária em relação à identificação das polaridades que estruturam o espaço social Como afirma com todo o vigor necessário por volta de 113050 o Decreto atribuído a Graciano obra fundadora do direito canônico existem dois tipos de cristãos os clérigos e os laicos O modo de vida dos primeiros se caracteriza pela renúncia ao casamento ao trabalho na terra e a toda posse privada Graciano salienta ainda que o estatuto destes é marcado pela tonsura sinal de escolha divina e de realeza dos clérigos uma realeza evidentemente espiritual pois o corte dos cabelos significa também a renúncia às coisas materiais Tratase igualmente de uma distinção de estatuto jurídico pois os clérigos beneficiandose do privilégio do foro eclesiástico não podem ser julgados pelos laicos mas somente por um tribunal eclesiástico principalmente o do bispo Que a simples tonsura permita reivindicar este privilégio e que os tribunais devam por vezes cassar os falsos clérigos que tentam arrogálo indevidamente não põe absolutamente em causa essa dualidade Tais disputas mostram ao contrário a sua força para além das dificuldades de classificação das pessoas No geral o clero constitui um grupo privilegiado e investido de um prestígio sagrado que engloba segundo toda verossimilhança mesmo incluindo nele suas margens inferiores bem menos de um décimo da população medieval Acumulação material e poder espiritual O poder material da Igreja repousa em primeiro lugar sobre uma excepcional capacidade de acumulação de terras e de bens O processo iniciase desde o século IV quando os cristãos começam a fazer doações à Igreja especialmente nas vésperas do trespasse a fim de assegurar a salvação de suas almas no além Este fenômeno prolongase durante a Idade Média e as doações piedosas que os príncipes e os senhores fazem aos monastérios são particularmente abundantes no decorrer dos séculos XI e XII figura 11 na p 172 Eles também fundam novos estabelecimentos monásticos que dotam dos bens necessários ao seu funcionamento de modo a assegurar o apoio material e espiritual de amigos poderosos tanto daqui debaixo como do além É verdade que os dons em terras são por vezes menos generosos do que parecem podem tratarse na verdade da restituição de um bem usurpado da compensação de uma outra vantagem ou ainda de uma troca Entretanto para evitar que eles sejam contestados pelos herdeiros do doador adotase a fórmula da laudatio parentum que desde logo associa os parentes ao ato de doação e lhes permite compartilhar seus benefícios espirituais O resultado é eloquente Desde o século VIII a Igreja possui cerca de um terço das terras cultivadas na França porcentagem que continua idêntica no século XIII mas que parece baixar para 10 no Norte da Itália Na Inglaterra a Igreja concentra um quarto das terras em 1066 e 31 em 1279 Sem multiplicar ainda mais os números podese reter que segundo os lugares e as épocas a Igreja em geral possui entre um quarto e um terço das terras Isso quer dizer que as diversas autoridades episcopais ou monásticas que a compõem são poderosos senhores feudais De fato por ter sido objeto de uma doação piedosa numerosos senhorios talvez um terço deles têm em seu comando uma instituição da Igreja um monastério e seu abade um cabido de catedral ou um bispo que faz pesar sobre os dependentes os pagamentos e as obrigações associados ao poder senhorial inclusive o exercício da justiça sem falar dos casos de cossenhorios partilhadas entre um laico e um monastério Enfim a situação particularmente vantajosa da Igreja apenas se consolida pois se recebe muito não transmite nada Diferentemente dos bens aristocráticos com frequência divididos e submetidos aos imprevistos dos destinos biológicos das linhagens tudo o que chega à instituição eclesial permanece em sua posse Na teoria o patrimônio da Igreja não pode ser diminuído e os doadores muitas vezes enfatizam que seu bem lhe é dado de maneira perpétua não podendo ser nem cedido nem mesmo trocado Entretanto os períodos de turbulência favorecem a usurpação dos bens da Igreja pelos laicos e o conluio entre o alto clero e a aristocracia pode apresentar algumas desvantagens por exemplo quando um bispo desonesto concede bens diocesanos como feudo aos membros de sua própria família E mesmo se a Igreja deve arcar com despesas importantes que podem eventualmente obrigála a ceder algumas terras ou a penhorar bens móveis sua posição é tal que ela se beneficia de uma capacidade de acumulação desigual no seio da sociedade feudal Além das terras é preciso incluir entre os bens da Igreja os edifícios tais como os monastérios as catedrais as dependências e os palácios episcopais A maior parte é rica em objetos preciosos decorações murais e tapeçarias vestes litúrgicas retábulos e estátuas altares e poltronas livros e cruzes cálices vasos e relicários muitas vezes feitos de ouro ou de prata e incrustados de pedras preciosas todos dotados de um grande valor espiritual e material Esses objetos por vezes também dons dos laicos constituem o tesouro de cada igreja é assim que se nomeia na época a coleção de seus relicários livros e objetos mais preciosos veja as figuras 20 e 48 nas pp 209 e 489 Tal tesouro onde o material e o espiritual se misturam indissoluvelmente é o melhor meio de 11 Uma cena de doação simbolizada pela entrega de uma igreja em miniatura primeiro quartel do século XII capitel da catedral de São Lázaro em Autun Sobre este capitel hoje no museu um laico à esquerda e um clérigo com seu cajado cuja extremidade está quebrada seguram um modelo de igreja em miniatura símbolo de uma fundação nova ou de um bem eclesial sendo objeto de uma doação Os braços estendidos do primeiro personagem indicam provavelmente que o laico oferece a igreja enquanto o clérigo a recebe tendo o braço dobrado Epa toda caso um anjo sai da nuvem e parece aceitar o dom ou ao menos benzêlo É o sinal de que as doações piedosas estão associadas a um sistema triangular Deus ou os santos são seus verdadeiros destinatários e os clérigos simples depositários aumentar ainda mais os rendimentos de uma igreja pois eles atraem os peregrinos que não economizam suas dádivas para um santo prestigioso e para sua casa na esperança de graças no futuro ou em agradecimento àquelas já recebidas Mas tais objetos também são os primeiros a ser pilhados e tratandose de vasos litúrgicos os primeiros a ser vendidos ou cedidos em penhor nos períodos difíceis Enfim lembremos que Carlos Magno tornou obrigatório o dízimo que consiste em média em um décimo da colheita ou do produto das outras atividades produtivas e que é destinado em teoria ao sustento dos clérigos que se encarregam das almas pois estes não podem trabalhar a terra nem produzir com suas próprias mãos o que os faria decair para a ordem inferior da sociedade Como se verá ao longo dos séculos X e XI os dízimos são com frequência desviados pelos senhores laicos ou pelos monges uma vez recuperados cerca da metade ou um terço do montante volta para o eclesiástico servidor da paróquia o restante sendo devido ao bispo e consagrado ao sustento dos pobres Além de sua destinação prática o dízimo é também a garantia de um reconhecimento do poder dos clérigos ele é o sinal da dominação universal da Igreja segundo a expressão do papa Inocêncio III toda forma de resistência contra o clero é então marcada logicamente por uma recusa ou ao menos por uma reticência ao pagamento dessa obrigação Tudo o que precede seria incompreensível sem o poder espiritual associado à própria função dos oratores Seu ofício consiste em orar e em realizar ritos não apenas para eles mesmos mas para o conjunto dos cristãos que podem assim sem nem mesmo pensar que outros se encarregam pela sua salvação dedicarse às atividades próprias à sua ordem combater ou produzir figuras 12 pp 176 e 177 Os especialistas da prece e da liturgia que são clérigos oficiam para todos os seres vivos e mais ainda para os mortos o que se torna uma grande especialidade monástica sobretudo nos séculos X a XII As doações pro remedio animae para o apaziguamento da alma permitem a inclusão entre os familiares da comunidade monástica em favor dos quais ela dirige suas preces e celebra missas ou mesmo ver seu nome incluído no livro da vida ou necrologia do mosteiro a fim de que sua memória seja periodicamente evocada Além da prece para os mortos os clérigos assumem duas funções principais em virtude do poder sagrado conferido pelo ritual de ordenação sacerdotal transmitir o ensinamento e a palavra de Deus e conferir os sacramentos sem os quais a sociedade cristã não poderia se reproduzir Tratase em primeiro lugar do batismo que de uma só vez abre a promessa de salvação por isso ele é chamado de porta do céu e dá acesso à comunidade cristã e em consequência à vida em sociedade não existe forma de registro de existência social independente da Igreja antes do aparecimento do registro civil em fins do século XVIII O ritual eucarístico não é menos fundamental Golpe de mestre do cristianismo pelo qual o sacrifício do deus supera definitivamente o sacrifício ao deus a missa durante a qual se oferece o deus a ele próprio segundo a expressão de Marcel Mauss reafirma constantemente a coesão da sociedade cristã Pela reiteração do sacrifício redentor de Cristo ela garante a incorporação dos fiéis à comunidade eclesial e enquanto sacrifício oferecido por esta assegura a circulação das graças na esperança de salvação dos justos Na segunda parte retornaremos aos sacramentos e particularmente ao casamento os que já foram citados formam com a confissão a crisma a extremauncão e a ordenação o septenário que se constitui no século XII Mas desde já constatase claramente que esses ritos são indispensáveis para assegurar a coesão da sociedade cristã assim como o desenvolvimento de cada vida individual em seu seio Eles marcam suas etapas principais nascimento casamento e morte e autorizam por si sós a esperança de salvação no outro mundo sem o que a vida terrestre seria privada de sentido cristão Ora todos esses ritos só podem ser realizados pelos sacerdotes por vezes discutese se um laico pode em caso de urgência proceder a um batismo mas tratase de um casolimite que não tem nenhum efeito prático e não põe em causa a regra fundamental Assim os clérigos especialistas do sagrado e dispensadores exclusivos dos sacramentos necessários a toda vida cristã dispõem de um monopólio decisivo não se pode nem viver em cristandade nem realizar sua salvação sem o seu concurso Os fiéis não podem se beneficiar da graça divina sem fazer apelo à mediação dos clérigos sem recorrer aos gestos que a ordenação sacerdotal dota de um poder sagrado O clero é um intermediário obrigatório entre os homens e Deus Seria absurdo mas bem em conformidade com nossos hábitos de pensamento separar a parte material e a parte espiritual do poder da Igreja Na lógica do sistema medieval tal divisão não tem sentido pois a Igreja se define nela pelo fato de ser ao mesmo tempo uma instituição encarnada fundada sobre bases materiais bastante sólidas e uma entidade espiritual sagrada mesmo se a maneira de articular estas duas dimensões esteja longe de não apresentar dificuldades como veremos Ela não teria nenhum poder material se não lhe fosse reconhecido um imenso poder espiritual nenhuma doação de terras ou de bens ocorreria sem o arrependimento que nasce ao termo de uma vida sobre a qual pesa a reprovação dos clérigos sem a preocupação de salvação da alma e sem a ideia de que a Igreja pode ajudar os defuntos no além Além disso não se faz um dom à Igreja para que ela acumule mas para que por sua vez ela também doe uma ajuda material aos pobres e aos enfermos graças espirituais aos doadores e a seus próximos Convém então retificar a expressão utilizada acima A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 175 174 Jérôme Baschet 12 A procissão do papa Gregório o Grande estanca a peste que assola Roma c 1413 Riquíssimas horas do duque de Berry Museu Conde Chantilly 65 fls 71v72 Esta suntuosa miniatura habilmente disposta às margens de salmos penitenciais e de litanias põe em cena um milagre atribuído a Gregório o Grande em 590 o arcanjo Gabriel lhe aparece acima do castelo de SantÂngelo embainhando sua espada para indicar o fim da epidemia de peste chamada de Justiniano Claramente a imagem tem pouco a ver com as realidades do século VI e evoca mais o fausto da igreja romana do fim da Idade Média Roma aparece como uma cidade gótica e a hierarquia clerical é representada de maneira cuidadosamente ordenada sob a autoridade do papa que porta a tiara e está associado ao colégio dos cardeais A abundância dos objetos litúrgicos é impressionante cruzes e estandartes de procissão incensórios e aspersórios livros ornados de pesadas encadernações ostensórios e relicários A imagem mostra além disso uma forma frequente de prática litúrgica do espaço a deambulação processional em torno das muralhas que fortifica simbolicamente a delimitação entre interior e exterior a fim de preservar a cidade das ameaças que pesam sobre ela se a Igreja é dotada de uma excepcional capacidade de acumular terras e riquezas é porque se lhe reconhece uma força distributiva ainda maior é porque ela está apta a garantir uma circulação generalizada das benesses materiais e espirituais A circulação generalizada dos bens e das graças Desde o início do século xx adquiriuse o hábito de considerar que os fiéis dão à Igreja bens materiais em troca de graças recebidas ou esperadas proteção cura salvação referindose de maneira mais ou menos precisa à lógica do dom e contradom analisada por Marcel Mauss a qual não supõe absolutamente um jogo de resultado nulo entre participantes situados em um plano de igualdade Vários estudos recentes nos convidam a modificar essa leitura Com efeito ao menos quatro polos intervêm além dos clérigos e dos doadores é preciso integrar os pobres encarnações do próximo e duplos de Cristo aos quais é destinada uma parte dos dons feitos à Igreja e sobretudo não esquecer de incluir Deus e os santos únicos dispensadores possíveis da graça espiritual e verdadeiros destinatários das doações que os monges recebem em seu nome figura 11 na p 172 Além disso a operação que ocorre aqui é bem mais coletiva do que parece conforme a lógica da laudatio parentum as doações engajam igualmente a parentela e os atos especificam que elas são feitas para servir de amparo não somente à alma do doador mas também às almas de seus próximos e se seguirmos Michel Lauwers talvez principalmente às de seus ancestrais a isso podemos acrescentar que se as preces dos monges mencionam especificamente o nome dos doadores elas visam ao mesmo tempo assegurar a salvação de toda a cristandade Enfim numerosos traços escapam à lógica do dom e contradom aquele que doa não é necessariamente o que recebe de modo que ninguém pode estar seguro do que receberá os clérigos não poderiam comprometer de modo infalível o TodoPoderoso que é o único a conceder a salvação o que dá é de fato aquele que já recebeu os clérigos insistem sobre o fato de que os doadores apenas restituem uma parte dos bens dados por Deus o que se recebe nunca é direta e proporcionalmente ligado ao que foi dado pois em toda graça espiritual intervém de modo determinante o tesouro dos méritos acumulados pelos santos e os efeitos favoráveis de sua intercessão permanente junto a Deus assim como a totalidade das oferendas eucarísticas realizadas no conjunto da cristandade É verdade que os aristocratas que doam terras esperam que esse gesto lhes valha a eles e a seus ancestrais graças espirituais e em primeiro lugar a salvação no além Mas mais do que uma lógica do domcontradom tratase através da doação aos santos e a Deus de operar uma espiritualização dos bens oferecidos que os transforme em realidades espirituais mais úteis que os bens materiais enquanto a incorporação dos doadores em uma comunidade monástica lhes assegura a ajuda de uma vasta rede de amigos piedosos e espiritualmente poderosos Dominique IognaPrat Sobretudo a prática do dom na sociedade cristã não pode ser analisada sem se considerar a noção fundamental de caridade caritas que designa o amor puro do qual o Criador é a fonte e em virtude do qual o homem ama não apenas Deus mas também o seu próximo pelo amor por Deus segunda parte capítulo V Anita GuerreauJalabert demonstrou que a partir de tais bases não poderia existir senão um sistema de troca generalizada excluindo toda a reciprocidade estreita e exclusiva Nesse quadro não se poderia dar para receber em troca só existe dom válido se ele é gratuito realizado sem nada esperar por amor a Deus assim como o próprio Deus se entregou gratuitamente à morte para a salvação da humanidade O dom interessado que espera algo em troca é denunciado como sinal de vaidade e de cupidez de modo que há interesse em ser desinteressado sem que seja possível ser desinteressado por interesse Na cristandade e a despeito da aparênci a de comércio de que se pode revestir a relação com as figuras sobrenaturais em certas narrativas de milagres por exemplo nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso o Sábio doase e recebese mas não se poderia dar para receber e sobretudo não se recebe porque se doou Devese dar para contribuir para o grande tesouro a um só tempo material e espiritualizado pelo dom que cabe à Igreja gerir E recebese pois existe esse grande tesouro de graças espirituais conversíveis em graças materiais O dom gratuito feito a Deus e aos santos é então uma maneira privilegiada de se integrar à rede de troca generalizada dos bens e das graças de contribuir para seu bom funcionamento na esperança de que este acabará por difundir para o indivíduo e seus parentes algumas de suas benesses tanto aqui embaixo como no além ao inverso o avaro culpado de entesourar e todos aqueles que se mostram negligentes nas exigências do dom excluemse dessa rede e expõemse a pesadas consequências No centro desse sistema inegavelmente encontrase a Igreja operadora decisiva da transmutação do material em espiritual e intermediária obrigatória nas trocas entre os homens e Deus Pois é preciso ainda acrescentar que o sacrifício eucarístico é o motor indispensável para a circulação das graças É essencialmente pelas missas que os clérigos celebram que os bens materiais oferecidos pelos doadores transformamse em benesses para as almas Mais amplamente é pela missa sacrifício ao deus que só tem sentido porque ele é sacrifício do deus que são garantidas a um só tempo a coesão A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 179 178 Jérôme Baschet do corpo social e a circulação em seu seio da graça divina Finalmente é por que ela ocupa essa posição de operadora decisiva e de intermediária obrigatória na troca generalizada que a Igreja dispõe de tantos bens materiais que os laicos oferecem a Deus e aos santos e confiam a seus cuidados perpetuamente Não podemos terminar este primeiro esboço da organização da Igreja essencialmente fundado sobre sua capacidade de assegurar a coesão do corpo social sem evocar a parte coercitiva de seu poder À capacidade de incluir os fiéis na unidade da comunidade terrestre e potencialmente na glória da Igreja celeste corresponde um temível poder de exclusão detido pelos clérigos A excomunhão consiste com efeito em rejeitar o pecador deixandoo fora da sociedade cristã interditandolhe o acesso aos sacramentos particularmente à comunhão a qual aparece como sinal tangível da integração social e negandolhe a possibilidade de ser enterrado na terra consagrada do cemitério cristão É verdade que a excomunhão é somente uma pena terrestre que não é assimilada à danação eterna mas privando o culpado dos meios indispensáveis de salvação que são os sacramentos fazendolhe correr o risco de morrer em estado de pecado mortal não confesso ela o põe perigosamente sob a ameaça das chamas do inferno Aliás o anátema é uma forma particular de excomunhão que é associada à maldição eterna dos culpados Durante os primeiros séculos da Igreja ele era pronunciado contra os hereges tais como os discípulos de Árius aos quais o abandono da verdadeira fé não deixava mais chances de salvação do que aos que não tinham sido batizados Em seguida ele é utilizado contra todos os inimigos da Igreja em particular durante os séculos X e XI época em que se constatam também frequentes recursos às maldições monásticas pelas quais os monges não hesitam em enviar seus adversários ao castigo eterno do inferno Lester Little Além de seu uso contra os desvios heréticos a excomunhão e em certa medida o anátema são armas que a Igreja utiliza em suas lutas contra a aristocracia e os príncipes por exemplo contra o imperador Henrique IV nos anos 1070 ou Filipe I rei da França entre 1094 e 1099 Os simples laicos são frequentemente afetados por tais medidas pois a excomunhão de um grande personagem pode ser acompanhada pela interdição lançada sobre seu domínio ou seu reino os clérigos recebem então ordem de suspender ali toda celebração litúrgica fazendo pairar assim um risco de morte espiritual sobre toda a população Nessas condições não há nenhum príncipe que possa se manter muito tempo no estado de excomunhão e que não procure a reconciliação com a Igreja indispensável para suspender uma sentença tão pesada para ele e tão incômoda ao exercício de sua autoridade 47 O monopólio da escrita e da transmissão da palavra divina A Igreja não se contenta em ter no coração da ordem social o papel decisivo que acabamos de analisar Ela estrutura quase todos os quadros importantes da vida em sociedade e contribui de maneira decisiva para a sua reprodução como se verá na segunda parte Ela tem a hospitalidade entre seus deveres em geral pesada para os monastérios notadamente os beneditinos abertos por princípio a essa exigência e com frequência o único refúgio dos peregrinos e dos viajantes assim como a assistência aos pobres e doentes uma das principais justificativas dos bens possuídos pela Igreja De fato os cuidados que as técnicas limitadas da medicina medieval tornam possíveis são quase exclusivamente dispensados nos estabelecimentos que dependem do clero o HotelDeus associado a uma catedral ou a uma colegiada18 e que combina nem sempre os distinguindo a assistência aos pobres e o cuidado com os doentes os estabelecimentos da Ordem dos Hospitalários de santo Antônio criada em 1095 para acolher especialmente as vítimas do mal dos ardentes ou fogo de santo Antônio provocado pelo esporão do centeio ou ainda os estabelecimentos para cuidar dos leprosos Limitarseá aqui a evocar o quase monopólio que os clérigos exercem sobre a escrita e a transmissão da palavra divina É verdade que durante a Alta Idade Média e até o século XI a escrita tem apenas um lugar restrito na sociedade A manutenção da escrita é então uma exclusividade dos clérigos a tal ponto que a oposição entre letrados litterati e iletrados illitterati recorta exatamente a divisão entre clérigos e laicos Isso é ainda mais reforçado pelo divórcio consagrado na época carolíngia entre as línguas faladas que evoluem para formar as línguas vernáculas europeias e o latim que na impossibilidade de ser restabelecido em sua pureza clássica é mais ou menos estabilizado O latim tão pouco entendido que desde o século IX é recomendado que os sermões sejam traduzidos para a língua vulgar ganha então o status de língua da Igreja própria aos clérigos e de língua sagrada veículo exclusivo e esotérico do texto bíblico A oposição latimlíngua vernácula redobra então a dualidade litteratiillitterati constitutiva do poder sagrado dos clérigos Somente estes últimos têm acesso à Bíblia fundamento da ordem cristã eles são especialistas incontestáveis da escrita e todos os livros copiados são feitos nos scriptoria dos monastérios A partir dos séculos XI e XII os usos da escrita transformamse e diversificamse A produção de manuscritos aumenta de modo considerável na França do Norte ela é quadruplicada entre o século XI e o século XII e ainda dobra durante o século XIII época em que essa atividade é partilhada por ateliês laicos urbanos que utilizam métodos de cópia em série aumentando o ritmo de produção e diminuindo sensivelmente o preço dos livros Os monastérios redigem atos chartes cada vez mais numerosos logo copiados e reunidos nos cartulários ao passo que se multiplicam as cartas e decisões emitidas pelas chancelarias episcopais e pontifícias mas também principescas e reais onde geralmente são os clérigos que manuseiam a pena e ocupam o cargo de chanceler Sobretudo por volta de 1100 ocorre uma novidade notável que rompe com o sistema descrito anteriormente em particular com a quase equivalência estabelecida entre escritura latim e Igreja Com efeito as cortes aristocráticas onde se havia desenvolvido uma importante literatura oral em língua vulgar conseguem em geral com a ajuda dos clérigos fazer com que esta seja posta por escrito num primeiro momento canções de gesta tal como a Canção de Rolando e poesias líricas a despeito do menosprezo dos letrados por línguas tidas até ali como indignas de ser confiadas à escritura Por mais notáveis que sejam tais evoluções permanecem limitadas Apesar da crescente utilização da escrita a oralidade e os gestos rituais continuam a dominar a vida social Mesmo se as obras literárias são conservadas por escrito continuam essencialmente feitas para ser contadas ou cantadas a voz predomina sempre sobre a letra Paul Zumthor O de costume é dito oralmente na aldeia durante um ritual anual enquanto as decisões importantes são anunciadas na cidade pelos arautos A voz e o ouvido continuam a ser os canais essenciais do verbo uma carta para ser bem entendida será ouvida mais do que lida e mesmo a leitura não pode ser feita sem se pronunciar ao menos em voz baixa o texto que os olhos percorrem a leitura silenciosa que nos parece tão evidente só faz sua aparição tardia e timidamente No mais entre os séculos XI e XIII a educação dos laicos urbanos e dos aristocratas melhora sensivelmente e muitos dentre eles são ao menos semialfabetizados tendo aprendido a ler mesmo sem saber escrever Os manuscritos são sinal de prestígio tanto quanto instrumentos de leitura É posto então o problema do acesso dos laicos à Bíblia Embora a Igreja proíba com extrema severidade a posse do texto bíblico pelos laicos em particular quando confrontada com focos de heresia geralmente se esforça para restringir o acesso ao texto sagrado mais do que impedilo totalmente Assim muitas vezes os laicos possuem certos livros bíblicos em particular o de salmos no qual se aprende a ler mas não a Bíblia completa Sobretudo para eles os clérigos prescrevem o recurso a versões glosadas do texto bíblico quer dizer dotadas da interpretação julgada correta A partir da segunda metade do século XII aparecem as traduções adaptadas da Bíblia em língua vulgar mas tratase na verdade de histórias bíblicas recompostas tais como a História escolástica que retoma o princípio da Historia Scholastica de Pedro Comestor traduzida por Herman de Valenciennes ou a Bíblia Historial de Guiart des Moulins um século mais tarde Será somente na segunda metade do século XIV sob o impulso de soberanos como Carlos V da França ou de Venceslau da Boêmia que aparecerão as traduções literais e completas da Bíblia No geral mais do que opor o escrito ao oral é preciso insistir sobre suas imbricações Anita GuerreauJalabert indica que isso é de resto o modelo fornecido pela dupla natureza do verbo divino que se manifesta sob as duas formas das Escrituras e da palavra O cristianismo medieval é tanto uma religião do Livro como da palavra e o controle dos clérigos é exercido tanto através de seu acesso privilegiado às Sagradas Escrituras como pela transmissão exclusiva da palavra divina A interação entre o escrito e o oral ocorre em todos os domínios desde os prazeres da corte até as liturgias da igreja O oral é escrito o escrito procura ser uma imagem do oral Paul Zumthor A Bíblia é lida em voz alta nos monastérios e durante a missa os livros litúrgicos servem ao bom exercício da palavra e dos gestos sacramentais enquanto os sermões consignados em coletâneas cada vez mais numerosas e sofisticadas são destinados a ser pregados Enfim não poderíamos encontrar melhor exemplo dessa imbricação do que a prática do juramento que constitui um dos fundamentos das relações sociais no mundo medieval Validação indispensável a todo compromisso importante a começar pela fidelidade vassálica o juramento geralmente prestado sobre a Bíblia ou o Evangelho a menos que se recorram às relíquias tira sua força do elo formado entre a sacralidade do Livro e o peso das palavras pronunciadas Assim a escrita dotada de uma sacralidade ainda maior porque é rara e conferindo um prestígio ainda mais notável àqueles que sabem manuseála só tem sentido porque é associada a práticas sociais em que a palavra exerce papel determinante E se os clérigos perdem entre os séculos XI e XIII o monopólio da escrita conservam o essencial do domínio do dispositivo que articula a escrita e o oral Eles podem não ser mais os únicos a ler a Bíblia desde que mantenham o monopólio de sua interpretação legítima e do ensino das disciplinas encarregadas de estabelecêla como se verá a seguir Mais do que o controle absoluto da escrita o que lhes interessa sem dúvida é sobretudo o direito exclusivo de difundir a palavra de Deus como indicam a estrita vigilância em relação a toda tentativa de pregação laica e o papel estratégico dessa questão na deflagração das heresias