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Raimundo Expedito dos Santos Sousa danação da nação LEGADOS COLONIAIS E PROJETOS NACIONAIS Portugal Brasil Inglaterra Irlanda pimenta cultural Raimundo Expedito dos Santos Sousa danação da nação LEGADOS COLONIAIS E PROJETOS NACIONAIS Portugal Brasil Inglaterra Irlanda São Paulo 2023 pimenta cultural DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP SO725d Sousa Raimundo Expedito dos Santos Danação da nação legados coloniais e projetos nacionais Portugal Brasil Inglaterra Irlanda Raimundo Expedito dos Santos Sousa São Paulo Pimenta Cultural 2023 Livro em PDF ISBN 9786559397648 DOI 1031560pimentacultural202397648 1 Estudos literários 2 Discursos coloniais 3 Projeto nacional brasileiro e irlandeses 4 Feminização 5 Masculinidades I Sousa Raimundo Expedito dos Santos II Título CDD 807 Índice para catálogo sistemático I Educação pesquisa e tópicos relacionados a literatura Jéssica Oliveira Bibliotecária CRB0342023 ISBN formato impresso brochura 9786559397655 56 S U M Á R I O da rapina imperial diversas narrativas inscreverem a Irlanda como es posa afeita a bens pecuniários indica que o enfoque patrimonialista é capital para se compreender a anexação que constituía a bem dizer um enlace patrimonial Apesar das menções retóricas ao amor o patri mônio constituía a força motriz do Ato de União que Douglas Goldring bem definiu como o mais perverso dos mariages de convenance140 Parte maior da literatura tocante ao Ato ignora seu caráter generizado e mesmo quem examina o imperialismo sob esse viés identifica a feminização como dispositivo peculiar à última quadra do Dezenove talvez por localizar aí o início de novo imperialismo assentado no fracionamento da África entre metrópoles colonizado ras141 Dougherty por exemplo sustenta que após passagem do Ato a metáfora matrimonial passou do âmbito político para o cultural a partir do deslocamento de uma metáfora empregada quase ex clusivamente por homens para outra manejada sobretudo por mu lheres142 Os exemplos aqui elencados vão de encontro à ideia de deslizamento metafórico do âmbito político para o literário e do su posto remanejamento de seu emprego de homens para mulheres visto que agentes imperiais continuaram a explorar amplamente a metáfora matrimonial Tampouco havia cisão acentuada entre as es feras política e cultural como pressupõe Dougherty pois mesmo nos debates políticos stricto sensu o recurso à metáfora em textos não raro urdidos conforme protocolos de composição literária conferia força retórica à textualização de processos geopolíticos O episódio bíblico no qual a Rainha de Sabá repleta de ouro chega à corte de Salomão e oferece sua riqueza em troca de gratifi cação sexual prefigura uma genealogia de narrativas assentadas no desejo da mulher nativa pelo homem branco143 Vejase bem a propó sito o erotizado papel de ameríndias em relatos de conquista como nos casos paradigmáticos da asteca La Malinche A Puta que uma vez amante do expedicionário espanhol Hernán Cortéz teria facilitado a colonização ao atuar como sua tradutora144 e da jovem Pocahontas 57 S U M Á R I O cujo amor pelo explorador inglês John Smith a fez protegêlo com a própria vida quando capturado em missão na Virgínia145 No discurso colonial português o tema foi explorado tardia mente no apagar das luzes do século XVIII em poema de feição pas sadista do Frei Agostinho José de Santa Rita Durão Se a epopeia de Camões praticamente ignorara o Brasil sua conquista seria represen tada numa literatura épica somente quando a colônia se havia tornado rentável146 No final do Setecentos o gênero épico foi revigorado em narrativas fundantes cuja presunção monolítica se dava a ver no enalte cimento de conquistas ditas heroicas Essa revivescência foi coetânea com o fôlego final da empresa de colonização do Brasil pautado na minoração de antigas clivagens étnicas e sociais na colônia a fim de inserir o ameríndio nos projetos políticos e econômicos do império Em apologia ao domínio português na América Durão escreveu Caramuru dedicado às proezas do náufrago português Diogo Álvares Correia notadamente a conquista do recôncavo baiano Ainda que o poema épico arrolado entre as obras fundacionais da literatura brasileira147 seja concebido como gérmen da brasilidade seu caráter proselitista à colonização o torna mais legível como texto do discurso colonial148 Lavrado à maneira camoniana Caramuru é obrasíntese sobre a cons tituição do Brasil na qual o território aos Lusos confiado figura como instrumento para recobrar no Mundo o antigo Imperio149 Espécie de John Smith lusitano Diogo enaltecido porque o peito domar soube á fera gente150 conquista os índios no duplo sentido do termo e se torna Príncipe do Brazil e futuro dono151 do território na medida em que subjuga ao império todas as tribos A passividade dos índios retratados nessa epopeia de pretensão historicista contradiz o históri co de oposição ao processo de conquista ainda que sobrepujados os ameríndios não reverenciariam seu dominador visto que na cultura indígena a retaliação mobilizava os vencidos a empreenderem novas guerras porque a vingança signo de honra era medular como garantia de descanso post mortem A posse do território se concretiza quan do Paraguaçu filha de um cacique encantase por Diogo e uma vez 58 S U M Á R I O casados o europeu assume o posto de Rei do Brazil152 A heroiciza ção do português que rende as tribos nativas desposa uma princesa ameríndia e assim tornase autoridade régia sobre a sociedade local é evidente apologia ao projeto expansionista Porque no colonialismo português distintamente do anglosaxão a mestiçagem é antes praxe do que exceção o matrimônio entre o explorador e a nativa simboliza o nascimento da família brasileira e mais ainda alegoriza a coloniza ção como união amorosa em escamoteamento da violência imperial Porém o fito de celebrar a colonização faz que a narrativa mesmo estribada em registros históricos incorra na imprecisão de solucio nar querelas geopolíticas ao coroar como rei e rainha do Brasil um português e uma filha de chefe tribal Ora se o comando dos líderes indígenas na América Portuguesa se restringia aos limites jurisdicionais das respectivas tribos o fato de delegarem a Paraguaçu o posto de ra inha posição que desconheciam para que extensivamente Diogo se tornasse rei entremostra o esforço acrobático de Durão em investir de afeto a colonização e de poder o colonizador O tropo do matrimônio se enrobusteceu após a unificação administrativa tal como ocorrera entre Inglaterra e Irlanda Quando em 1815 criouse o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves que marcou nominalmente o ocaso do período colonial o Brasil aquém de nação livre além de mera colônia foi alocado em posição estatuá ria ambígua Uma vez que o casamento era então imaginado como união vitalícia resistente a toda sorte de infortúnios o discurso colo nial português à feição do inglês também representou a fusão admi nistrativa mediante abstrações jurídicas que a inscreviam em termos maritais Contudo se a Inglaterra com o Ato de União ratificou sua ingerência Portugal já depauperado encontrou na metáfora nupcial uma forma de simular domínio Essa hierarquia era explicitada em comentários tecidos por exemplo quando se debatia se o império mais lucraria em se unir à Espanha ou ao Brasil e se argumentava que mais alvissareiro seria casarse com a primeira conquanto a união se desse por via do Sacramento do matrimonio com a ressalva de que 59 S U M Á R I O sendo Portugal do genero masculino seja como he natural o marido e fique sendo cabeça de Cazal153 Como o continente americano foi desde sempre personifica do como mulher essa carga semântica era apropriada na represen tação do Brasil por vezes referido como América tal como nas peças alegóricas dedicadas à legitimação dos poderes instituídos A alego ria na clássica definição de Quintilianus como metáfora estendida continuatis translationibus154 teve grande voga na Modernidade O drama alegórico como littérature engagée acercavase do discurso político vigorante entre o fim do século XVIII e o início do XIX por se referir de forma hipostasiada a mazelas contemporâneas como o despotismo e a discórdia Uma vez que a alegoria nos remete a uma significação outra que a proferida pela linguagem literal155 as peças alegóricas favoreciam o apelo emocional graças à pujança retórica da simbologia Nesse período carimbado por turbulências políticas em Portugal o teatro constituía arena de manifestações partidárias em que segundo um crítico literário remissões políticas enlouque ciam as plateias156 Os dramas alegóricos celebravam solenidades da corte a exemplo de União Venturosa encenado no Brasil em 1811 para festejar o regime imperial157 Assinada por Antonio Bressa ne Leite Capitão Tenente da Armada Portuguesa a peça produzida quando Dom João VI assumiu o trono do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves adocica pelo grifo no afeto a acidez do ponto de inflexão das relações coloniais na primavera do século XIX Desde o título alvissareiro até o enredo que hoje prosaico conformavase à sensibilidade estética do público à época o drama escrito em versos brancos propala uma aliança lusobrasileira imprescindível em face da crescente fragilização da metrópole Quando Portugal personifi cado como homem é convidado para assistir à posse de Dom João a Discórdia tenta impedilo com seus ardis mas malfadada restalhe como ultima ratio ir ao Rio de Janeiro dissuadir a América represen tada como mulher de unirse servilmente a Portugal Para contestar essa submissão sustenta que os homens nascem livres conforme lecionaram os filósofos franceses e por isso restam incoerentes 60 S U M Á R I O os que se dobram ao duro jugo158 Em apologia à liberdade a Dis córdia expõe argumentos razoáveis numa conjuntura de efervescên cia dos ideais republicanos mas o fato de serem advogados pela vilã deveria induzir o público a rejeitar prontamente essa perspec tiva liberal A heroína em réplica evoca a lei natural da obediência assentada no fato de sermos do berço ao túmulo sujeitos à lei e lembra tragédias fomentadas pela ânsia de liberdade causadora de um mar de sangue159 Tal como a mulher deve obediência ao homem a América como entidade feminina compreende seu lugar de subserviência em relação ao seu conquistador Dado o intento de enaltecer a união entre os países mas condensála na figura do monarca o drama a despeito do título sentimental não representa Portugal e América como casal pois nesse caso seria coerente que eles próprios segundo a lógica romântica fossem coroados como rei e rainha Assim no epílogo apoteótico como cabia ao gênero Dom João junto ao trono recebe a coroa segurada de um lado por Portugal e de outro pela América Contudo a peça não prescinde da potência retórica amorosa América e Portugal embora irmãos são representados em conotação amatória unidos que são em inque brável prisão damor160 na qual a primeira chama o segundo para que com meus braços cruzar vem já teus braços e este deseja que em tão doces prisões pronto menlace161 Convertido em império o Brasil país monárquico circundado por repúblicas adquiriu independência como entidade política porém continuou preso a Portugal já que protagonista de insólito processo de emancipação162 era governado por português pertencente à dinas tia imperante na exmetrópole Com efeito os ideais de independência e unidade propalados no Brasil regido pelo filho do rei de Portugal constituíam menos o desabrochar de consciência nacional coletiva do que o consórcio entre anseios por autonomia e estabilidade das províncias163 Quando à proclamação da Independência sucedeuse período timbrado por enfrentamentos entre absolutistas e liberais Dom Pedro coroado Defensor Perpétuo do Brasil revogou a Carta de 1823 por esta não contemplar interesses lusófilos e outorgou pessoalmente 61 S U M Á R I O a primeira Constituição brasileira O príncipe regente vacilava entre a adesão efetiva ao liberalismo em curso na Europa e a aderência ao vetusto absolutismo compatível com seu gênio autocrático Ao lançar mão do poder moderador que o fazia pairar acima dos três poderes legados da Ilustração o imperador instaurou uma monarquia absolu tista travestida de Constituição164 O poder instituído temeroso de que o império se dissipasse em repúblicas autônomas à semelhança da América hispânica precisava que províncias heterogêneas acolhes sem como legítima a centralização do poder na figura do imperador Porém receavase que Dom Pedro retornasse a Portugal se tornasse rei o Brasil retrocedesse à condição de colônia e se restabelecesse o Pacto Colonial cujo exclusivismo não aprazia a elites econômicas vorazes por laissezfaire Para tanto o Estado investiu na produção de artefatos culturais cujo ideal de nacionalidade duplicava imperativos de grupos hegemônicos como se atendesse a demandas da socie dade civil As alegorias elaboradas na literatura e nas artes plásticas a serviço do Estado tinham como telos positivar a imagem de Dom Pedro Quando a Constituição intentava ratificar o compromisso do im perador com o país uma alegoria referente ao Juramento da Consti tuição o representava como guer reiro que liberta o Brasil das garras da tirania despótica Imagem 5 Na iconografia o imperador com os pés detém a hidra epítome das mazelas políticas em performática exibição de virilidade que o inscreve como o homem ideal para conduzir a nação alegorizada como amerín dia Esta vestida apenas com co car e saia de penas como que para grifar sua vulnerabilidade encontra segurança nos braços do herói e ambos se entreolham enamorados Imagem 5 União venturosa 62 S U M Á R I O em cena amorosa que oblitera tensões coloniais Uma vez que o Brasil personificado como uma mulher estaria vulnerável a potestades ma lignas o imperador seria a alternativa mais viável para a nação que à sombra de sua espada ficaria resguardada de tiranos e agitadores Logo seria imperioso entranhar essa verdade nos corações e mentes dos brasileiros por meio sobretudo dos olhos não à toa se propu nha distribuir a imagem por todo o império sob o argumento de que mais aproveita falar aos olhos do que aos ouvidos165 Daí essa alego ria embora institua Portugal e Brasil como namorados não inscrever os brasileiros como ameaça à nação como faziam as ilustrações do discurso colonial inglês a respeito dos irlandeses Aqui o perigo não advinha em princípio dos brasileiros que afinal deviam ser con quistados mas de entidade maligna abstrata remetente contudo a ameaças como a insurreição popular O Estado estabelecido legalmente pela Constituição de 1824 delegava direitos civis a um restrito quinhão de brasileiros segundo critério socioeconômico Se a Independência tecnicamente conso lidada favorecia grupos seletos mas de resto a estrutura colonial subsistia o imperador longe de arquitetar um projeto nacional in clusivo tentava legitimar um arranjo social verticalizado Para tanto as alegorias grifavam que a submissão a Portugal decorria de livre arbítrio do Brasil que imaginado como moça casadoira oferecia a Dom Pedro servidão negada a varões de menor valor Nessa lógica o juramento profissão de fé inquebrável era artifício de largo uso tal que a certa altura de pomposa aclamação a Dom Pedro relatava um jornal a alegoria do Brasil jurava ao másculo português Dons que neguei aos Tyrannos Acceita meu Defensor Submissão e fé te juro Meu Primeiro Imperador166 Entretanto à proporção que se discutia também no Brasil o ins tituto do divórcio a ruptura com Portugal era representada na lingua gem de gênero como separação causada pela ingratidão da esposa Em projeções metafóricas que invertiam o caráter doloso da coloniza ção o Brasil era imaginado como mulher gananciosa e oportunista mas lembrava Eça de Queiroz se Europa e América se desquitassem 63 S U M Á R I O e cada qual resgatasse seus bens originais esta última ficaria depau perada de signos da civilização167 Dada a opulência do império britâ nico no século XIX o discurso colonial inglês negava veementemente o divórcio em contraposição a desvalia do império lusitano se tra duzia em metáforas matrimoniais que figuravam a separação como irremediável O divórcio pressagiava um jornal seria incontornável porque o Brasil em relação a Portugal fora creado no habito de obe decerlhe mas agora havia provado da autonomia e não aceitaria ser subjugado Em todos os cazos há divorcio entre o Brazil e Portugal168 A exemplo do discurso colonial inglês também aqui a materialidade da inflexão patrimonial letimotiv da empresa colonizadora era transfigura da para a dicção conotativa por meio da metáfora matrimonial donde se podia concluir com referência à separação política que entre Por tugal e Brazil houve completa separação de bens169 102 S U M Á R I O Se a conquista anglonormanda se valeu da composição pluri cêntrica da Hibérnia fatiada em diversos reinos a empresa coloniza dora portuguesa também se beneficiou do pluricentrismo da América précabralina cujos habitantes viviam apartados em várias tribos às voltas com enfrentamentos intestinos Todavia os impérios lusitano e britânico se encontravam em patamares de maturação distintos já que o primeiro conforme o léxico imperialista chegara à virilidade ain da na Renascença e passado o seu vigor atingiria a velhice quando o segundo alcançaria o apogeu da masculinidade Essa disjunção geracional repercutia nos protocolos autoetnográficos na medida em que os ingleses se ufanavam de seu presente e os portugueses de seu passado bem como nas tecnologias de alterização visto que as práticas discursivas ibéricas deveriam contornar o constante defi nhamento do império Limiar entre as idades Média e Moderna a Era dos Descobrimentos foi balizada pela oscilação dos europeus entre as cosmovisões medieval e renascentista Nessa formação cultural os argonautas lusitanos do século XVI vacilavam entre os discursos teológico e humanista na caracterização da alteridade Quando trava ram contato com os ameríndios sua imaginação operou desde logo como engenho diligente na produção de significados sobre povos he teróclitos às suas matrizes culturais Porque concebiam o Outro a par tir dos sistemas de referências de sua própria cultura hostes imperiais viajavam predispostas à imaginação cobridora dos hiatos de seus sistemas de classificação lacunares Os exploradores impactados por narrativas precedentes como a literatura imaginativa de Marco Polo traziam a bordo um estoque de imagens préconcebidas A fic cionalização era reforçada pela especificidade da literatura de viagem gênero que implica desafio de transposição porque elaborado con forme retórica da alteridade na qual o universo representado deve ser inscrito naquele para o qual se volta particularidade que faz da nar rativa operação tradutora de uma experiência já intraduzível345 Nesse engenho de fabricação do Outro inocência e lascívia confluíam em tá ticas de feminização porque provenientes de matrizes de significação 103 S U M Á R I O que por itinerários diversos chegavam ao objetivo comum de atribuir feminilidade aos ameríndios Se no alvorecer do século XVI quando das primeiras fricçõesficções étnicas agentes imperiais forjaram o mito da inocência aborígine como projeção do desejo de conquista embaraços à empresa colonizadora logo os convenceram de que ao contrário os gentios eram viciosos Agentes imperiais como Manuel da Nóbrega e Gabriel Soares de Sousa estabeleciam que os brasis são tão movidos por inclinações e apetites sensuais346 que não ha peccado de luxuria que não cometam347 Coube porém a um belga o poeta Caspar Barlæus cunhar o adágio que compendiaria o caráter heterodoxo dos códigos sexuais brasílicos ultra aequinoctialem non peccavi não existe pecado abaixo do Equador348 Se no patriarcado metropolitano o pater familiæ tem sua hombri dade franqueada pela autocracia os brasis não seriam propriamente homens por habitarem espaço de anomia cuja inversão de gênero seria patente no servilismo ao belprazer das amazonas Haveria na América portuguesa mulheres que imittam os homẽs ſeguẽ ſeus officios como ſe nam foſſem femeas tal que à revelia da estética fe minina manteriam a aparência à feição dos homens junto aos quais tomariam parte na caça e na guerra349 Essas mulheres supunhase eram sucedâneas das amazonas figuras cuja menção como prece dente histórico conferia veridicidade aos relatos Dotadas de uma só teta lutariam como homens dos quais viveriam apartadas como se diz das amazonas350 Longe de submissas aos homens de fato os comandariam conforme salientou Frei Gaspar de Carvajal ao descre ver que tinham os índios como súditos lutavam diante deles como capitãs351 e cada qual fazia tanta guerra como dez índios352 Tais mulheres viveriam isoladas do grupo masculino mas quando lhes vêm aquela vontade guerreiam contra os vizinhos trazemnos à força para seus domínios onde os mantêm até se enjoarem ficam prenhes e os devolvem para sua terra353 Finda a gravidez se parem filho o matam e o enviam ao pai e se filha criamna e a obrigam às coisas de guerra354 Essa figuração da feminilidade prodigiosa dá 104 S U M Á R I O mostras da dimensão do maravilhoso no imaginário atlântico infor mado por reminiscências da literatura fantástica como forma de expli cação do agenciamento de ameríndias numa episteme ocidental que concebia o feminino como desprovido de verve gerencial De todo modo a sexualização das nativas tinha como escopo feminizar os homens pela indicação de imperar na colônia absoluta desordem dos papéis masculino e feminino inclusive nas práticas sexuais Noutros casos o enfoque na licenciosidade das mulheres fazia confluir o selvagem e o feminino num discurso colonial que conjugava etnofobia e ginofobia André Thevet monge franciscano que tomou parte na fundação da França Antártica projeto francês de coloniza ção da Baía de Guanabara definiu o povo dali como muito luxu rioso com o cuidado de destacar especialmente as mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres355 Não é de admirar a ênfase no dualismo entre passividade masculina e agência feminina como traço das relações brasílicas pois tal contraste insinuaria a efeminação dos homens Que da atividade nas práticas sexuais de que se esperaria imposição masculina go zariam desde meninas em botão a senhoras vetustas indicava Gabriel Soares de Sousa ao relatar que meninos de muito pouca idade eram acossados por velhotas que já sem apelo junto aos adultos ensi namlhes a fazer o que elles não sabem e não os deixam de dia nem de noite356 Dessa agência feminina é reveladora uma passagem das Quatuor Navigationes de Amerigo Vespucci Na epístola em que dá conta de sua terceira viagem ao território que receberia seu nome o cosmógrafo narra embuste no qual os ameríndios em vez de rece berem os expedicionários europeus enviaramlhes coorte de mulhe res Logo que desembarcou o europeu designado para recebêlas meteuse entre elas que rodeandoo tocavamno e apalpavamno como que deslumbradas por ele relatava o argonauta mas da mul tidão surgiu uma mulher que armada de colossal estaca acercouse do rapaz e pelas costas meteulhe tamanho golpe que incontinenti ele desabou morto ao chão357 Numa das edições epistolográficas de 105 S U M Á R I O Vespucci a suposta emboscada tem versão imagética na xilogravu ra em que nativas distraem o eu ropeu com prospecto de gratifica ção sexual para que num coup de théâtre uma outra armada com maça arvorese em atacálo pelas costas Imagem 10 Essa imagem chama atenção sobretudo pelo modo europeizado como as ame ríndias são desenhadas já que no mais das vezes as ilustrações das narrativas de viagem eram la vradas por desenhistas que igno ravam o Brasil senão a partir de descrições redigidas pelos autores Numa Renascença balizada pela redescoberta do corpo segundo a estética clássica os ilustradores incumbidos de transformar em criação visual descrições recebidas desenhavam ameríndias possuidoras de corpos esculturais para os parâmetros estéticos vigentes numa perspectiva pictórica herdada do classicismo Raminelli em apreço dessa imagem argumenta que o realce conferido às mulheres se devia em parte à misoginia im perante na Europa quinhentista sobretudo no mundo luterano haja vista as representações iconográficas aproximarem as ameríndias de estereótipos femininos como a feiticeira a sereia e a amazona358 Não lhe ocorre que a exrotização do feminino entremostra conjuntividade entre imperialismo e patriarquismo em que a sustentação da virilidade imperial dependia do domínio sobre ameaçador espaçocorpo femi nizado Iconografias como essa dão mostras da ambivalência do dis curso colonial cindidos entre a fantasia megalomaníaca de domina ção planetária e o temor persecutório de serem tragados os europeus tomavam o corpo das ameríndias como tela sobre a qual projetavam Imagem 10 Alegres Trópicos 106 S U M Á R I O tanto angústias quanto desejos recalcados a partir de representa ções condenatórias que não os comprometiam frente ao parágonos de masculinidade metropolitanos Também eram pródigas as glosas sobre a conduta sexual dos homens para indicar sua natureza efeminada inequívoca no abandono aos impulsos e por conseguinte sua incapacidade de autogoverno Pero de Magalhães Gandavo identificou no alfabeto a selvageria dos brasis ao notar ausência de três consoantes no léxico indígena Ca rece de tres letras conuem a ſaber nam ſe acha nella f nem l nẽ R couſa digna despanto porq aſsi nam tem Fé nem Ley nem Rey359 A falta concreta de consoantes aludia a uma falta outra de ordem abstrata que inscrevia os nativos sob o signo do feminino e destarte da dependência do falo imperial O relevo conferido à sensualida de constituía no limite um dispositivo de feminização que ao alijar do campo da racionalidade os homens do Novo Mundo sinalizaria sua falta de hombridade Viue nelles tão apagada a luz da rezaõ explanava Padre Simão de Vasconcelos quafi como nas mefmas fe ras360 Porque aquém da condição humana e por extensão mascu lina os gentios seriam heteróclitos ao padrão másculo que tinha na racionalidade sua coluna vertebral por se abandonarem aos vícios como ſe nelles nam ouuera razam de homẽs361 A essa efeminação moral se somaria a emasculação física na medida em que amiúde a rendição aos impulsos carnais faria morrer seu pênis expressão me tonímica da masculinidade Amerigo Vespucci na epístola Mundus novus narrava que as ameríndias fazem inchar o membro de seus maridos por meio de certo artifício e mordedura de uns bichos venenosos por cujo motivo muitos o perdem e ficam como eunu cos362 Outros agentes imperiais acresceriam que o animal adotado por homens desejosos de converter seu cano em algo medonha mente disforme de grosso363 se tratava de taturana peluda repou sada sobre o membro que se excita em veemente e ardente luxúria e incha e três dias depois apodrece364 Sobre a instrumentalidade 107 S U M Á R I O do gênero em estereótipos raciais Hall conclui apressadamente que os negros ao contrário dos orientais tidos como efeminados seriam excessivamente masculinizados365 Nessa senda Weigman obser va que a castração simbólica depende paradoxalmente de intensa masculinização da figura do homem negro366 Essas análises não observam que a incontinência signo do desgoverno de si era índice antes de efeminação do que de virilidade Há que considerar sob quais circunstâncias se deu a emergência ou mutação de um con ceito e que relações de poder ele franqueava A efeminação temos visto possuía mais amplitude e complexidade significacional do que presumem esses críticos Supostamente manobrados pela impudicícia os ameríndios mutilariam não apenas seu corpo mas sobretudo os de outrem em práticas nas quais o apetite carnal assumia seu duplo sentido sexual e nutricional Na aurora da Modernidade tanto a literatura quanto a cartografia divulgavam ignotas ilhas ao longo do Atlântico entre as quais o Paraíso Terreal tropo tomado pelos europeus como parâ metro na caracterização das terras devassadas Nesse panorama a Terra Brasilis deveria saciar a esperança de reconquista do horto edênico de que a humanidade fora banida Entretanto numa das primeiras referências escriturárias à América Portuguesa o Auto da Barca do Purgatório 1518 de Gil Vicente a colônia é mencionada de passagem vilipendiosamente quando a regateira Marta Gil assedia da pelo Diabo para acompanhálo ao inferno roga a Deus que me livre do Brasil367 Numa peça impactada pela cristandade tardome dieval a menção à América portuguesa como metáfora do Inferno é sintomática da má reputação dessa terra de degredo no imaginário português quando depositária de refugos humanos varridos da me trópole como indigentes prostitutas e delinquentes O início efetivo da colonização implicou nova concepção de América não mais ima ginada como o Paraíso perdido mas antes como o Inferno na terra pois à edenização inicial logo se sobreporia a representação do Brasil como uma ilha povoada por canibais sanguissedentos368 108 S U M Á R I O A alegada prática canibalística desmentia o presságio caminia no de que a conquista seria facilmente exequível Já em meados do Quinhentos Manuel da Nóbrega alertava ser preciso dar fim a essa causa maior da insujeição dos ameríndios Desta maneira ale gava o jesuíta cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa369 Restritos pela ótica monocular eurocêntrica missionários tomavam a antropofa gia por canibalismo sem se aperceberem da dimensão ritualística que diferençava a deglutição de carne humana por gulodice da cerimônia de ingestão da vítima como introjeção de suas virtudes A criação da figura do canibal que se refestelava à farta com carne humana visava chancelar o canibalismo cultural empreendido pelos europeus median te projeção dos seus próprios apetites370 Assim em face do malogro catequético o padre José de Anchieta podia propalar sem infringir os cânones católicos a substituição do cetro cruciforme pelo gládio ao sentenciar que para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro371 Comentários sobre práticas cani bais reduziam os ameríndios à animalidade estatuto que os apartaria da condição humana e por extensão masculina Andre Thevet em viagem pelo Brasil quinhentista comentava que não há bestafera tão cruel a que apeteça tão ardentemente o sangue humano quan to esse povo selvagem372 Pero de Magalhães Gandavo confirmava que os ameríndios uma vez apoderados de um inimigo não apenas o matam cruelmente mas também lhe comem todos a carne me diante cruezas tam diabólicas que excedem aos brutos animaes373 Ignorantes de que na cadeia alimentar o animal ingerido deveria ser inferior ao seu consumidor os gentios brasílicos seriam desumanos ou mais precisamente não humanos já que inaptos a distinguir as categorias em que o mundo natural fora racionado374 Ironicamente a mesma acusação de canibalismo que negava a humanidade do Outro a comprovava pois o pertencimento à espécie era requisito para o consumidor de carne humana ser considerado canibal375 109 S U M Á R I O A partir dos anos 1970 o crescente interesse acadêmico pe las noções de corpo e representação revigorou de tal forma nos es tudos sobre o canibalismo que esse tropo do discurso colonial se situa na nervura das reflexões atuais sobre identidade e diferença376 Se bem que ainda no século XVI Michel de Montaigne ponderasse que a clivagem entre o civilizado e o selvagem era um engodo porque o canibal habitava menos as selvas do que as cidades europeias377 era imperioso o investimento discursivo na sexualidade canibalesca como degrau para legitimação de valores europeus378 São bem co nhecidas por exemplo as ilustrações de Theodor de Bry celebrizado por suas representações das primeiras viagens de europeus ao Novo Mundo Suas figurações da América fartamente difundidas numa Europa cujo analfabetismo tornava o texto icônico mais legível do que o escrito impactaram o modo como o olhar estrangeiro interpretaria o continente A semiótica do canibalismo era valioso dispositivo de feminização porquanto a figura do canibal além de operatória na de marcação dos limites do humano punha em questão a masculinidade dos nativos Em imagens lavradas ao estilo maneirista em voga na Alta Renascença379 rituais gastronômicos retratados pelo belga indicavam correlação entre os desejos de saciedade estomacal e genital ambos satisfeitos no ato de comer o europeu em banquetes cujo artificialismo e exagero maneiristas de expressões e gestuais acentuavam o deleite do canibal em devorar a carne masculina dominante em sua dieta car nívora com o cuidado de empalar o ânus para que nada se perdesse Por vezes o homem autóctone era estigmatizado de forma análoga como canibal e sodomita condição que o colocava para além das bordas do humano e do masculino ao indicar sua dupla incompreen são de que outros seres humanos não eram seu alimento natural e de que seres do mesmo sexo não eram seus parceiros sexuais380 A acusação de sodomia autenticava a violência colonizadora contra ho mens nativos tal como numa chacina ocorrida em 1513 quando o espanhol Vasco Núñez de Balboa matou cerca de quarenta ameríndios 110 S U M Á R I O alegadamente sodomitas O episódio foi representado por Theodor de Bry numa ilustração em que quatro vítimas que simbolizam as quaren ta são estupradas por uma matilha incitada por Balboa Imagem 11 Nessa iconografia que confunde homoerotismo e bestialidade e bor ra limites entre as acepções sexual e gastronômica do verbo comer os homens do Novo Mundo possuidores de feições femininas estão deitados languidamente em posições que sugerem cópula alguns são beijados com lascívia pelos cães e um mantém o braço em torno do pescoço canino em gestual tipicamente amatório tudo isso obser vado por olhares voyeuristas dos homens europeus Embora ocorrido no Panamá não no Brasil o episódio diz sobre o imaginário europeu a respeito dos ameríndios tout cout Em que pese o argumento de que as diferentes procedências dos europeus distinguiriam suas for mas de representação dos americanos381 tais diferenças eram sobre determinadas pelas distinções mais acentuadas entre EuOutro Imagem 11 Sodoma e Gomorra tropical 111 S U M Á R I O civilizadoselvagem e colonizadorcolonizado Afinal nos séculos XVI e XVII os europeus com propósitos homogeneístas referiamse aos ameríndios de forma genérica não obstante disparidades etnogeográ ficas382 Especificamente no Brasil colônia cujas relações de gênero seguiriam na contracorrente do mundo civilizado mulheres masculi nizadas teriam como contraparte homens efeminados que contava Gabriel Soares de Sousa são mui afeiçoados ao peccado nefando prática tão bem aceita que alguns deles tem tenda publica a quantos os querem como mulheres publicas383 Entre os indígenas homens efeminados gozariam de tamanha aquiescência que são as meretri zes desta nação384 Se é verdade que esses textos verbais imagéticos ou multimodais são os primeiros registros do modus vivendi autóctone não é menos verdadeiro que revelam antes sobre os observadores do que sobre os observados Invenções da alteridade encerravam menos esforço de conhecer o Outro do que ânsia de autoafirmação visàvis sua exterioridade constitutiva SOTURNO SATURNO Nas mulheres o que denominamos matriz ou útero é um animal que vive dentro delas e tem avidez por gerar filhos E quando a despeito da idade propícia permanece por um longo tempo sem produzir fruto ele se inquieta pois suporta mal esse estado Revoltoso erra por toda parte do corpo obstrui os canais do fôlego impede a respiração produz desconfor tos extremos e morbidades de toda sorte Plátōn Timeu Certas patologias são investidas de potência simbólica na inven ção da alteridade graças ao seu impacto no imaginário notadamente aquelas associadas ao risco de colapso social donde o uso ordinário de metáforas como câncer AIDS cancro e gangrena invocadas para designar agentes degeneradores como prostitutas homossexuais 112 S U M Á R I O anarquistas imigrantes e colonizados385 No imperialismo moderno a bifrontalidade entre patologização da raça e racialização da patologia imputava a homens nativos morbidades contagiosas a fim de intimidar amalgamações raciais entre colonos e colonizados386 Já a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a in tervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermí nio Como veremos os discursos coloniais se valeram da constelação semântica de duas maladias femininas a melancolia e a histeria para atribuílas respectivamente aos brasileiros e aos irlandeses Tais acha ques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Sucedânea da acídia medieval a melancolia designava na Mo dernidade quadro clínico cujos sintomas correspondiam a predicados femininos como indolência e languidez Conforme a teoria humoral consolidada como explanação hegemônica para os estados de saúde e enfermidade entre os séculos IV aC e XVIII dC haveria quatro tipos fisiológicos quais sejam sanguíneo fleumático colérico e melancóli co Tais tipos seriam constituídos a partir de fluidos corporais sangue fleuma bile amarela e bile negra que procederiam respectivamente de quatro órgãos coração cérebro fígado e baço e teriam cada qual duas qualidades primárias o sangue seria quente e úmido a fleuma fria e úmida a bile amarela quente e seca e a bile negra fria e seca Da harmonia entre os fluidos dependeria a saúde do indivíduo ao passo que o predomínio de um sobre os demais desencadearia achaques diversos387 Irrompida pela bile negra a melancolia designava confor me o influente The Anatomy of Melancholy de Robert Burton um tipo de loucura sem febre que tem como companheiros ordinários o medo e a tristeza sem qualquer razão aparente388 A atribuição irracionali dade à moléstia reverberaria já no século XX em conhecida propo sição de Freud distintamente do luto a melancolia seria processo in consciente pois o paciente não saberia o que perdera equivocidade 113 S U M Á R I O que o impediria de dar termo à elaboração da perda e de retomar a conexão com o mundo389 Distintamente de Benjamin cuja tese sobre a origem do drama trágico alemão vincula a melancolia ao dilema existencial do homem barroco390 eu a interpreto em seu coeficiente discursivo como aparato de alterização Fosse sintoma social seria referida antes genericamente do que como apanágio masculino em seu viés filosófico ou como alteri zação de gênero classe e raça em seu prisma patológico Com efeito a melancolia era generizada de tal sorte que na Inglaterra elizabetana sua etiologia era creditada ao gênio imaginativo no homem e ao desequilí brio emocional na mulher de sorte que os personagens shakespearia nos Hamlet e Ophelia seriam respectivos epítomes do herói melancólico e da mulher desvairada391 À melancolia masculina relacionada à ex periência de desencantamento ou desconcerto do homem letrado su cederia no Romantismo o que René de Chateaubriant denominaria Mal du siècle e Baudelaire chamaria de spleen392 À melancolia feminina por sua vez sucederiam quadros clínicos psiquiátricos como a depres são e a histeria393 A melanco lia tanto era imaginada como quadro patológico feminino que se a antropomorfizava como mulher vide a conheci da tela em cobre Melencolia I datada de 1514 do alemão Albrecht Dürer Imagem 12 que Benjamin examina mas passa ao largo do seu cará ter generizado Em cenário mórbido se não macabro a construção incompleta suge re que há trabalho por fazer e a areia da ampulheta já pela metade indicia o quanto de tempo se tem gasto em vão Alheia ao trabalho inconcluso Imagem 12 Radiografia de uma doença feminina 114 S U M Á R I O a Melancolia se mantém como que anestesiada em completa inação A faculdade imaginativa indicada pela posse de asas parece esterili zada pelo desânimo evidente na cabeça recostada sobre a mão e no braço apoiado sobre a perna A figura prosopopeica tem à disposição ferramentas para trabalho manual e intelectual porém não as utiliza vis to que mal tem ânimo para cuidar de si a julgar pelo desmazelo com que mantém as vestes e os cabelos Atrás do plano frontal repousa o mar convidativo à viagem mas a Melancolia cujo olhar fita o nada está ensimesmada em estoica acedia Seu marasmo doentio é reforçado ainda pelos companheiros de cena o putto igualmente alado mira o vazio tal qual a mulher o cão animal vulnerável à raiva pela degenera ção do baço está encolhido em posição fetal com aspecto enfermo remetente à consternação do melancólico e o morcego que sustenta o dístico Melencolia simboliza a morbidez O Brasil era comumente descrito como terra melancólica394 ou seja soturna aziaga e lacrimosa traços personalizados que traduziam minudências geográficas como as matas sombrias o clima úmido e a abastança de rios caudalosos A analogia entre as idiossincrasias climáticas e topográficas da colônia e o humor melancólico decorria de abundâncias fluviais e pluviais que lembravam o estereótipo do des tempero feminino A terra é algum tanto melancólica regada de muitas águas assim de rios caudais como do céu e chove muito nela395 Categorizar a América portuguesa como melancólica favorecia o ar gumento de que sua gente por influência do meio era acometida de mesmo achaque Não por acaso o mesmo José de Anchieta que atri buía essa moléstia à terra considerava os ameríndios igualmente me lancólicos396 A patologização do brasílico pelo abatimento colidia porém com sua paralela mitificação como povo ledo e festivo A essa contradição agentes imperiais respondiam com equivocidade que o registrava como alegre apesar de triste como fez o padre Fernão Car dim ao relatar que os nativos ainda que são melancólicos folgam se com jogos músicas e danças397 Aos brasílicos se imputava mes mo a tristeza crônica em descrições que os feminizavam como gente que sempre fala em voz baixa tem acento lastimoso nas palavras 115 S U M Á R I O e raramente se anima398 Essa debilidade emocional os tornaria vul neráveis às advinhas da sorte porque incapazes de suportar prova ções cairiam prostrados diante do primeiro obstáculo Por isso se riam inaptos a governarem extenso território cujos perigos insondáveis abateriam homens de estrutura mental tão abalável que emagreciam com qualqr desgoſto399 A constelação sintomatológica da melancolia abarcava predi cados como a indolência arrolada entre as faltas capitais pela Igreja e pelo Estado instâncias de poder conjuradas no imperialismo portu guês Fixados no paradigma extrativista eurocêntrico os agentes im periais frisavam a disjunção entre a natureza ofertante e a indiferença patológica dos brasílicos usufrutuários de suas benesses apenas para fins de subsistência Viuem todos muy deſcanſados ſem terẽ outros penſamentos ſenam de comer beber matar gẽte desaprovava Pero de Magalhães Gandavo e por iſſo engordão muito400 A pre guiça atrelada à afecção melancólica confirmava a categorização dos indígenas como raça efeminada cuja lassidão a incapacitaria de explorar a terra Sua indolência seria tal que os colonos portugueses recolheriam na África mão de obra para trabalho inicialmente infligi do aos povos ab origine Contudo numa colonização marcada pela miscigenação o caldeamento racial teria neutralizado qualidades su periores do europeu e redundado em mestiços também efeminados É sintomático que o geólogo Louis Agassiz tenha considerado como corolário da amalgamação racial no Brasil um mestiço deficiente em energia física e mental401 e em seu inventário sobre predicados físi cos e mentais dos tipos raciais brasileiros tenha categorizado o ma meluco híbrido entre branco e índio como pálido efeminado fraco preguiçoso e bastante obstinado402 Numa episteme que tomava a noção de virilidade como métron de ajuizamento dos povos julgavase como indolência inclusive um costume pelo qual os homens indíge nas tentavam tomar para si a nuclearidade na reprodução por meio de rituais imitativos dos processos de gestação parturição e pósparto Entre os tupinambás a parturiente seguiria rotina como se não hou vesse concebido e o esposo acamado recebia visitas e regalos403 116 S U M Á R I O Numa curiosa inversão de papéis a mulher faz muitos mimos ao es poso que está parido impedido de qualquer esforço opostamente às mães porque os homens alegavam segundo Gabriel Soares de Sousa que o rebento saiu dos lombos do pai e elas não põem da sua parte mais que terem guardada a semente no ventre onde se cria a criança404 Sintoma dos mais graves a insanidade tornaria a melancolia achaque indicador da incapacidade dos gentios se manterem à pró pria custa nos marcos civilizatórios consolidados na Europa Pouco ativos mas muito contemplativos os brasis inventados pelo discurso colonial não agiam porque acometidos de melancolia congênita des dobrada em quadros como a hipocondria De nenhũa couſa tem tanto medo como da agoa do lodo ſe acertão de molharſe ou enlodarſe entrão logo em malenconia fazem eſgares eſpantos ridiculos405 Sua fantasia beiraria as raias da alucinação de tal maneira que relatava Gandavo pode nelles tanto a imaginaçam q ſe algũ deſeja a morte ou alguẽ lhes mete em cabeça q ha de morrer tal dia ou tal noite nam paſſa daqlle termo q nã morra406 Afinado com a episteme imperial o historiador interpreta como autossugestão mórbida um corolário da violência material e simbólica perpetrada contra os nativos qual seja o elevado índice de suicídios entre os ameríndios no Brasil407 Portugal argumenta Santos não circunscreveu bem suas fron teiras coloniais e tal condição teria conferido à sua cultura acentrismo traduzível numa dificuldade de diferenciação face ao exterior e numa dificuldade de identificação no interior de si mesma408 A excepciona lidade atribuída ao império condensada no que o sociólogo denomi na Prospero calibanizado implica equivocidade por associar o es tatuto periférico à flexibilidade na alterização das colônias de modo a não haver uma distinção clara entre a identidade do colonizador e a do colonizado pois o outro colonizado pelo colonizador não é totalmente outro em relação ao outro colonizado do colonizador409 Nesse imperialismo anômalo em relação ao inglês não há um ou tro insiste o sociólogo pois a alteridade reside em ambos os lados É por isso também que ali o estereótipo do colonizado jamais teve 117 S U M Á R I O o fechamento que lhe foi atribuído no Império Britânico ou pelo me nos o seu fechamento foi sempre mais inconsequente e transitó rio410 Ao presumir indistinção entre o império e suas colônias essa análise ignora o engenho discursivo com que Portugal fez do Brasil sua alteridade constitutiva Como demonstrei nas seções dedicadas à feminização do Brasil e dos brasileiros o discurso colonial portu guês tanto foi incisivo nessa empresa que se valeu de tecnologias de representação as mais diversas Embora se considerasse desde a Grécia Antiga que o feminino era regido pelas paixões esse estereótipo recrudesceu com o advento de especialidades médicas como a sexologia a obstetrícia e a gineco logia numa era vitoriana cuja idée fixe pelo controle pulsional suscitava obsessão paranoide em doenças do sistema nervoso e estimulava candente debate na classe médica qual seja o nexo causal entre a constituição psicofisiológica da mulher e sua propensão à insanidade Cativas de esquema fisiológico cíclico vinculado às funções reproduti vas menstruação gravidez parto e menopausa as mulheres seriam segundo o discurso médico mais suscetíveis à doença mental a for tiori se transgredissem balizas de gênero afinal a energia despendida em ocupações intelectuais faltaria ao aparelho reprodutor e redundaria em colapso por exaustão nervosa O impasse taxonômico de inscre ver a histeria numa categorização patológica inequívoca se tornava conveniente na medida em que essa categoria imprecisa podia ser usada em diferentes circunstâncias como para patologizar condutas dissidentes não imputáveis facilmente a outros distúrbios mentais Em regime binário que vinculava o masculino ao logos e o feminino ao pathos a histeria ou furor uterinus constituía antes de tudo sintoma de crise cultural em que se tentava frear a marcha célere da suffraget te sisterhood mediante histerização de condutas transgressivas que deveriam ser contidas pelo terrorismo das admoestações profiláticas pela aplicação de drogas potentes pela internação em regime de con finamento e mesmo pela amputação critoridiana411 187 S U M Á R I O biopolítico operacionalizado conforme testemunho do escritor John Banville por um estado totalitário desmilitarizado no qual a vida dos cidadãos seria controlada não por um sistema de força coercitiva e policiamento secreto mas por uma espécie de aplicada paralisia espi ritual a ser mantida por uma federação não oficial entre o clero cató lico o judiciário o serviço civil e os políticos672 O prognóstico de que uma nação edênica sucederia à guerra se cumpria ao revés e aqueles que haviam lutado juntos pela descolonização agora se digladiavam em batalhas internas pela hegemonia política Nessa arena de lutas fra tricidas o legado colonial se mantinha entesourado na perpetuação de tecnologias de controle imperialistas recicladas por autocracias locais Dificilmente se encontrarão no universo duas raças que tão cor dialmente se detestem673 Essa fina ironia sumariava a falsa aparência de vínculo amical lusobrasileiro Desde logo as relações entre Brasil e Portugal foram balizadas por malquerenças externadas de modo in sidioso na tão falada amizade entre os povos Essa discórdia amistosa tanto mais se agravava quanto mais se apercebia do escopo feminiza dor subjacente às pretensas benfeitorias do processo civilizatório Ante a colonização do imaginário pretendida pela cristianização brasílicos ponderavam que interposições evangelizadoras os emasculavam e em tribos arredias à catequese os quantos aderissem à mansuetude cristã eram estigmatizados pelos pares como fracos e efeminados por se deixarem amansar674 A acepção de virilidade como métron universal que temos visto dimensionava o gradiente civilizatório dos povos também informaria o projeto de nação no Brasil quando já es tabelecida uma elite letrada Se parte dessa intelligentsia celebrava com ufanismo a virilidade dos brasileiros conforme vimos no último capítulo outra parte admitia que estes se encontravam emasculados em decorrência de uma colonização que fizera do país uma nação escrava e anestesiada Um lethargo sem fim entorpecia o povo Cruel desolação reinava em torno a nós Degenerando sempre á luz do Mundo Novo Esse sangue viril de intrepidos avós675 188 S U M Á R I O A teleologia do progresso fundante do projeto de nação e ins crita na própria bandeira nacional era ameaçada pela feminização À guisa de alerta Rui Barbosa trouxe à baila o caso da Bélgica país que ao perder a virilidade mudou de sexo porque aos povos emasculados resta somente a tutela como a mulher ou o eunuco676 Sob esse prisma analítico a gente brasileira carente de animo viril dava mostras de também ser uma raça emasculada677 Conquan to atribuíssem feminilidade aos brasileiros os ideólogos nacionalistas iteravam o discurso colonial apenas parcialmente pois tomavam suas proposições menos como conclusão do que como ponto de partida e desta feita consideravam o quadro reversível porque não determinado biologicamente Assim os debates sobre a formação da nacionalida de tinham na linha de frente o imperativo de virilização da raça como expunha um jornalista É precizo que cada brasileiro seja um homem completo678 pois temos aparência de homens mas não o somos679 Dadas as assimetrias entre o regime feudal de cujo colapso despontou o Estado Absolutista na Europa e o sistema colonial de cujo desmonte aflorou o Estado nacional na América latina o lega do colonial de espoliação econômica e mutilação cultural era tomado como motor da emasculação brasileira Segundo o articulista Julio Ve rim em artigo cujo título Tristes legados itera minha defesa da abor dagem póscolonial devido ao impacto do legado colonialista sobre o imaginário intelectual brasileiro o Brasil herdara vícios organicos que obstavam sua independência efetiva Em verdade os horrores dos tempos coloniaes as atrocidades da escravidão e o machiavelismo do imperio não podiam lavrar a face ridente do nosso paiz sem a deixar eivada dos maiores malefícios680 Graça Aranha na sua mag num opus questionou a celebrada noção de Independência nacional na ponderação de um personagem O Brasil é e tem sido sempre colonia argumentava para enfileirar uma plêiade de argumentos re metentes à herança colonial e ao neocolonialismo empreendido pelo capitalismo mercantil É ou não o regimen colonial com o nome disfar çado de nação livre681 As escaras da colonização estariam incrustra das na personalidade dos brasileiros sob a forma de predicados ditos 189 S U M Á R I O femininos como apatia e timidez Em nosso sangue circulam mole culas do despotismo colonial do servilismo escravista e da corrupção imperial de que são marcas essa apathia atrophiante e essa timidez ingenua682 Donde o prognóstico desalentador de que teremos de passar ainda um bom lapso de tempo antes da regeneração total do nosso caracter que quatro seculos de vida vegetativa tornaram acanha do e tímido683 Expoente desse prisma hermenêutico Manoel Bomfim contestava a explicação biológica para a colonização ao argumentar de encontro com o axioma da assimetria natural entre colonizadores e colonizados que os ameríndios não foram vencidos por serem ho mens fracos como julgava o discurso colonial mas porque os portu gueses tinham mais poderio bélico tal que os livros de história elucida riam mais a supremacia ocidental do que os tratados de biologia684 Em inversão da lógica imperialista que estereotipava os brasileiros como efeminados o médico e historiador creditava a emasculação ao pró prio legado colonial Uma vez que a herança constitui antes imposição do que escolha685 ao receber em fatalidade de herança elementos culturais portugueses o país teve que herdar mecanismos gestio nários que arruinariam a vida nacional brasileira Depois de ter sido durante quase dois séculos carne viva para a varejeira lusitana o Bra sil acabou incluindo em sua vida o próprio Estado que de lá emigrara na plenitude da ignomínia bragantina686 Se empregarmos o que um crítico denomina colonialidade do poder para designar a operacio nalidade do legado colonial como forma totalitária de modernidade687 veremos que no Brasil a colonialidade do poder foi acentuada pela especificidade de uma independência que manteve o país vinculado formalmente à antiga metrópole até pelo menos a proclamação da República Corolário da presença bragantina a rapinagem imperial se tornou estruturante da sociedade brasileira pois à espoliação colonial se sucedeu a exploração patronal exercida por classes dirigentes lo cais incapazes de vencer o peso dessa herança688 Essa técnica de gestão do legado colonial ilustra o que Chatterjee denomina discurso derivativo para sustentar que a indecidibilidade do colonizado entre a abrogação e a introjeção de métodos imperialistas resulta em grupos 190 S U M Á R I O hegemônicos que reproduzem relações de poder herdadas do regime colonial enquanto sucedâneos de sua congênere metropolitana689 Que grupos dirigentes constituem metástase da gestão colonial porque in formados pela sua episteme Paulo Freire observaria ao ponderar que oprimidos idealizam ser homens porém devido às contradições em que vivem ser homens é ser opressores690 Se queremos que tudo permaneça como está é preciso que tudo mude sentencia Tancredi em Il Gattopardo691 A célebre passa gem lembra o modo de gestão do legado colonial pelas classes diri gentes brasileiras cuja alteração do regime de governança preservou antigos expedientes como se visasse a rigor manter tudo como dan tes Na Irlanda e no Brasil sucedeu o que Frazegnies chamou noutro contexto de modernização tradicionalista para designar um projeto nacional pretensamente modernizador mas fincado em paradigmas passadistas cuja continuidade obsta o acesso a direitos civis Cati vo dessa contradição fundante tal projeto propala melhorias sociais políticas e culturais porém se sustenta sobre o andaime de estru turas autoritárias patrimonialistas e excludentes692 A acomodação de certos paradigmas intelectuais europeus resulta no que Schwarz denomina ideias fora de lugar porque deslocadas no Brasil já que originalmente fincadas em princípios universalistas de democracia e transplantadas para uma organização social assentada em princípios particularistas de plutocracia Embora o liberalismo não se afinasse com o arranjo socioeconômico brasileiro a oligarquia escravagista o adotou como signo da modernidade a que aspirava porque essa ideologia política moderna lhe fornecia o senso de correção tão ca racterístico dos autoritários693 Por isso nihil novi sub sole quando se constata o peso da herança colonial sobre a organização sóciopo líticocultural brasileira erigida sobre alicerce ideológico herdado de tradição ibérica hierárquica e autoritária monopolizada por homens letrados distribuídos em três domínios na formulação do poder no exercício do poder e no usufruto de benesses do poder694 Uma vez que os oprimidos há muito habituados com o opressor acabam por hospedálo dentro de si próprios695 quando egresso o colonizador 191 S U M Á R I O suas heranças como o patrimonialismo mantiveram vivas as nervu ras da colonização Como sabemos Max Weber ao discriminar o Es tado moderno corolário de processos gradativos de racionalização societária em relação a formatos gestionários precedentes chamou os últimos de patrimonialistas porque balizados pela indistinção entre o público e o privado e no limite pela supressão do primeiro pelo se gundo696 Na esteira do sociólogo alemão Sérgio Buarque de Holan da considerava que a herança ibérica tinha como conceitosíntese o homem cordial que bem compreendido lançaria um facho de luz sobre o funcionamento do poder na sociedade brasileira cuja chave interpretativa consistia a seu ver no legado colonial Ao caráter aven tureiro do português instilado pela ânsia por lucro imediato e sem esforço bastou a monocultura latifundiária assentada na exploração predatória dos recursos naturais em regime escravagista Como as classes sociais se limitavam ao binarismo senhorescravo a estrutura familiar patriarcal calcada em mandonismo e servilismo alicerçou a vita societatis brasileira na qual imperaria o homem cordial que ao transcender os limites do oikos e se impor na pólis encarnaria a co lonização do público pelo privado Essa equivocidade entre esferas resultaria no uso privado de recursos da ordem pública e em contra partida na atuação pública conforme valores do foro privado don de a prevalência de escopos particulares ao preço do bem comum Corolário da indissociação entre as esferas o mecanismo do favo recimento engendraria dependências que escamoteavam a negação de direitos já que o favor possui cunho pessoal e o direito caráter universal Em face de arranjo sociopolítico assentado em modelos personalistas típicos do patriarcado rural no lugar de sociedade civil organizada em torno da impessoalidade estatal Sergio Buarque con siderava a desagregação da herança colonial passo mandatório para a consolidação do republicanismo no país697 Vejase que a feminiza ção como legado colonial é aqui pressuposta mesmo que não refe rida textualmente Não é preciso digressão lexical para depreender o substrato feminizante desse paradigma de homem que regido antes por pathos do que por logos pensa com o coração e para o bem e 192 S U M Á R I O para o mal é passional no amor e no ódio na piedade e na crueza e pode oscilar ex nihilo de um estado anímico a outro O brasileiro substitue nos seus julgamentos a razão pelo sentimento explanava um crítico para sentenciar Julgamos com o coração698 Se Portugal deveria ser proscrito na artesania da identidade brasileira o mesmo não se aplicava a países cujos padrões de mas culinidade se coadunavam com os propósitos da agenda nacionalis ta Em pleno vigor da proposição ciceriana de história como Magistra Vitæ o establishment intelectual brasileiro vasculhava as gavetas do passado no encalço de exemplos inspiradores para tornarem máscu los seus homens eunucoides Enquanto na Irlanda os modelos deve riam ser buscados apenas na própria cultura no Brasil a incorporação do elemento estrangeiro parecia forçosa para a virilização Como o país era alegadamente jovem e por isso pouco sortido em acervo de heróis tais exemplos deveriam ser emulados conforme prescrevia Sylvio Romero dos atributos das nações viris699 Na vitrine dos po vos os europeus envelhecidos lembravam um pretérito esclerosa do ao passo que os Estados Unidos despontavam como paradigma de nação que divisava um horizonte de futuro Não é por outro motivo que lideranças políticas brasileiras vislumbravam na cultura estadu nidense alternativa de ruptura com o legado colonial e alinhamento ao concerto das nações másculas Porque o Brasil deveria se espe lhar nesse masculo espirito de invenção e progresso700 os artífices do republicanismo tomaram de empréstimo sua moldura identitária para formarenformar a nação brasileira que seria inicialmente de nominada Estados Unidos do Brasil teria sua primeira Constituição republicana inspirada na estadunidense e ganharia como bandeira provisória variante auriverde do Stars and Stripes com 20 estrelas sobre quadrado azul701 Se os Estados Unidos constituíam uma na ção digna de ser emulada seus homens por extensão analógica também o seriam Um métron de aferição da virilidade brasileira seria o cinema e com ele os padrões estadunidenses de estética mas culina O cinema tem servido de test para a avaliação da belesa 193 S U M Á R I O masculina do nosso tempo constatava um cronista ao arrazoar que após a curta voga de atores romanticos e efeminados como Rodol fo Valentino veiu a reação moderna da virilidade na qual os artistas mais populares como Clark Gable si não eram bonitos eram fortes e masculos702 Sob influxo da cultura estadunidense o contato com paradigmas de hombridade hollywoodianos tornava mais ostensiva a suposta efeminação do brasileiro As salas de cinema descortinavam uma tela de masculinidades hiperbólicas que acentuavam por con traste a aparente emasculação dos homens locais Monteiro Lobato exemplificava essa invirilidade com a desilusão de mocinhas que nas sessões de cinema namoram heróis belos e fortes porém suspiram de decepção piedosa quando fóra da tela os Chiquinhos Lulus e Pedrocas côr de cuia sem peito sem ombros sem musculos sem masculinidade aproximamse para um corte de namoro703 O intervalo de meados do Oitocentos até a vigência dos regi mes fascistas e estadonovistas foi balizado pela floração dos proje tos nacionais modernos Não à toa nesse mesmo espaço de tempo o discurso racial se consolidou nos centros europeus e se espraiou para zonas periféricas do globo onde nacionalismos anticoloniais imaginavam a nação como ficção étnica porque subscrita pelo mes mo quadro de referências que as identidades raciais Numa formação discursiva em que nação e raça se confundiam porque esta dimen sionava o patamar evolutivo daquela a questão racial se tornou eixo identitário tanto para a consolidação das nações imperiais quanto para a formação das póscoloniais Não por acaso nos idos de 1844 um concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasi leiro com vistas a criar uma narrativa para a nação foi vencido por uma teoria racial O vitorioso Karl Friedrich Philipp von Martius um naturalista alemão inaugurou o mito de que o Brasil seria constituí do por três raças cor de cobre ameríndia branca caucasiana e preta etíope numa tese cuja originalidade consistia na defesa de que a mestiçagem brasileira longe de danosa teria competido para a formação do país uma vez que as raças inferiores seriam 194 S U M Á R I O assimiladas pela branca possante rio que absorveria os pequenos confluentes indígena e negro704 A simbiose raçanação se fazia ver na transversalidade entre diversos campos discursivos do cientí fico ao literário convergentes na produção de uma nacionalidade viril Essa virilidade por evidente prescindia do elemento negro No interior de um projeto nacional que propalava autonomia e emanci pação teorias deterministas raciais fomentavam a estratificação pela diferença705 Num mesmo Brasil onde de um lado propalavase a democracia e de outro beiravase as raias do apartheid social o influente médico baiano Raimundo Nina Rodrigues em proposição lombrosiana de que a mestiçagem desencadeava predisposição à criminalidade defendia em tom segregacionista que as assimetrias civilizacionais entre as raças no Brasil eram de tal ordem que afrodes cendentes não poderiam ser julgados pelo sistema jurídico ordinário e recomendava diferentes códigos penais para diferentes grupos ra ciais706 Se não alvitrava extermínio de grupos alegadamente dege nerados707 a eugenia brasileira pautada no cromatismo epidérmico confiava que o sangue branco depuraria dissolveria e finalmente eli minaria o negro como esperava o cientista João Batista Lacerda di fusor dessa tese no Premier Congrès universel des races em 1911708 Entre os idealizadores do branqueamento havia expectativa de que em três gerações para os mais otimistas ou três séculos para os mais realistas a população seria plenamente branca709 Sob influxo do preceito nacionalista do Rissorgimento italiano que descortinara um horizonte para povos sob jugo estrangeiro projetavase uma raça máscula num futuro hipotético como se iniciada ex nihilo Surgiria no porvir cujo arcano descérro Exhibindo gloriosa ao seculo vindou ro uma raça viril de intelligencias de ouro de caractéres de aço e musculos de ferro710 No mais das vezes contudo os literatos teciam comentários de salentadores É sintomático um texto sobre a crise de homens viris ao modo concretista no formato de um pênis vertido para baixo O signifi cante do pênis impotente como indicação de declínio do falo era ima gem contundente o bastante para denunciar a invirilidade dos homens 195 S U M Á R I O brasileiros Imagem 21 O pavor da emasculação encontrava ex pressão na ficção científica em que aporias projetadas num fu turo distante refletiam anseios de uma República que engatinhava Berilo Neves pioneiro desse gê nero no Brasil explorou a angús tia da feminização em sugestivo conto O exhomem no qual um cientista procede ao experimento de introduzir no próprio corpo ex tracto de ovario fresco e assim feminizase a olhos vistos até que a aplicação de hormônio masculi no reverte o quadro degenerativo e sua hombridade é recobrada711 Naquela formação discursiva a noção de exhomem seria mesmo ficção pois para boa parte dos letrados de extração catastrofista o brasileiro ainda inexistia como homem A julgar pelo propositivo A virili zação da raça de Mário Pinto Serva a missão de formar homens seria tão penosa quanto urgente pois sentenciava o autor o Brasil está feito é preciso agora fazer o brasileiro712 A esperança de salvação da nação repousava prospectivamente sobre os ombros de homens ainda por serem formados Não temos homens diagnosticava um comentador Havendo homens pensavamos nós tudo se transfor mará no Brazil713 Diante da vã expectativa urgia formar verdadeiros homens para salvar a nação O nexo entre mestiçagem e feminização se abrandou na me dida em que nas primeiras décadas do XX a atenção da biopolítica se alargou da questão racial para a sanitária714 A essa altura sobres saía no país medicina menos curativa do que preventiva calcada no enfrentamento pasteuriano de micróbios e bactérias por meio de Imagem 21 Um pênis cabisbaixo 196 S U M Á R I O profilaxia com enfoque higiêni co715 As campanhas sanitaristas capitaneadas por Oswaldo Cruz no princípio do século e por Beli sário Penna em 1918 visavam for tificar uma gente degenerada para responder aos ditames do discur so nacionalista716 pois a popula ção saudável seria condição basi lar para a vitória da nação Com a maior parte de seus habitantes imbecilisados pelo soffrimento brutalisada pela dôr embrutecida pela necessidade e desvairada pela doença nunca uma nação será rica nem bella nem forte717 Por isso a biopolítica intervinha no corpo de cada indivíduo mas mesmo ela era alvo de escárnio vide a ilustração de capa do periódico O Malho na qual Oswaldo Cruz é representado com trejeitos e feições efeminados Imagem 22 CIVILIZAÇÃO E SIBILIZAÇÃO Die Entarteten sind nicht immer Verbrecher Prostituierte Anarchis ten und erklärte Wahnsinnige Sie sind manchmal Schriftsteller und Künstler Aber diese weisen dieselben geistigen und meist auch lei blichen Züge auf wie diejenigen Mitglieder der nämlichen anthro pologischen Familie die ihre ungesunden Triebe mit dem Messer des Meuchelmörder oder der Patrone des Dynamitgesellen statt mit der Feder oder mit dem Pinsel befriedigen Max Nordau Entartung Imagem 22 A cruz de Oswaldo Cruz Na colonização particularmente nos casos da Irlanda e do Brasil é possível observar uma analogia entre imperialismo e casamento A feminização das nações colonizadas e a metáfora matrimonial agiram como parte integrante da anexação exemplificada na Irlanda Obras literárias que exaltam a colonização portuguesa no Brasil consideram o casamento simbólico como elemento central como é possível observar na representação das mulheres indígenas em La Malinche e Pocahontas No período colonial a feminização da América atua como uma estratégia retórica na construção da identidade nacional brasileira logo a sexualização das nativas e a inversão dos papéis de gênero partem desse imaginário atlântico Sobre essa representação das mulheres brasileiras como licenciosas e a associação entre o selvagem e o feminino os relatos de viajantes europeus os reiteram ao descrever as práticas sexuais e comportamentos dos indígenas ressaltando a ênfase na dualidade entre passividade masculina e agência feminina Thevet tece observações sobre o luxo dos povos especialmente das mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres Thevet apud Souza p 104 Representações visuais revelam a ambivalência do discurso colonial que oscila entre a fantasia de dominação e o medo de serem subjugados Além disso na conduta sexual dos homens indígenas há a identificação da feminização moral e física associada à suposta falta de controle sobre os impulsos sexuais A representação patológica dos brasileiros também se associa à melancolia onde o Brasil é descrito como sendo uma terra melancólica Essa patologia simbólica reforça a alterização e feminização dos nativos sendo relacionada à indolência e à incapacidade de explorar a terra de acordo com a perspectiva colonial Pesquisadores sugerem que a melancolia é usada como um dispositivo para marginalizar e categorizar os habitantes nativos do Brasil perpetuando estereótipos e hierarquias coloniais Houve uma grande persistência do estereótipo que associa o feminino às paixões particularmente destacando o papel das especialidades médicas como obstetrícia e ginecologia durante a era vitoriana Nesse contexto a constituição psicofisiológica da mulher era discutida em relação à propensão à insanidade principalmente quando transgrediamse as normas de gênero A histeria considerada um sintoma de crise era utilizada para patologizar comportamentos dissidentes reforçando um binarismo entre masculino e feminino a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a intervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermínio Tais achaques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Souza p 112 Outra dinâmica colonial no contexto brasileiro está relacionada à associação entre virilidade à formação da nacionalidade em teoria a imagética figura emasculada dos brasileiros se deu devido à colonização O discurso sobre a virilidade também abrange debates sobre a formação da nacionalidade a influência da cultura estadunidense e a questão racial A interseção se fazia até mesmo entre questões raciais e discursos sobre saúde e higiene evidenciando como as campanhas sanitárias buscavam fortificar a população brasileira como parte do discurso nacionalista A biopolítica se faz um instrumento para moldar a saúde da população e fortalecer a nação no entanto também são apontadas contradições à biopolítica exemplificadas na representação caricatural de líderes sanitários como Oswaldo Cruz Por fim a ideia de civilização e sibilização exploradas como concepções de degeneração eram aplicadas não apenas a criminosos e doentes mentais mas também a escritores e artistas que eram vistos como portadores de traços indesejáveis para a sociedade Havia uma necessidade de uma ampliação do escopo das teorias de degeneração mostrando como concepções preconcebidas eram aplicadas indiscriminadamente inclusive a figuras do mundo artístico e intelectual Na colonização particularmente nos casos da Irlanda e do Brasil é possível observar uma analogia entre imperialismo e casamento A feminização das nações colonizadas e a metáfora matrimonial agiram como parte integrante da anexação exemplificada na Irlanda Obras literárias que exaltam a colonização portuguesa no Brasil consideram o casamento simbólico como elemento central como é possível observar na representação das mulheres indígenas em La Malinche e Pocahontas No período colonial a feminização da América atua como uma estratégia retórica na construção da identidade nacional brasileira logo a sexualização das nativas e a inversão dos papéis de gênero partem desse imaginário atlântico Sobre essa representação das mulheres brasileiras como licenciosas e a associação entre o selvagem e o feminino os relatos de viajantes europeus os reiteram ao descrever as práticas sexuais e comportamentos dos indígenas ressaltando a ênfase na dualidade entre passividade masculina e agência feminina Thevet tece observações sobre o luxo dos povos especialmente das mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres Thevet apud Souza p 104 Representações visuais revelam a ambivalência do discurso colonial que oscila entre a fantasia de dominação e o medo de serem subjugados Além disso na conduta sexual dos homens indígenas há a identificação da feminização moral e física associada à suposta falta de controle sobre os impulsos sexuais A representação patológica dos brasileiros também se associa à melancolia onde o Brasil é descrito como sendo uma terra melancólica Essa patologia simbólica reforça a alterização e feminização dos nativos sendo relacionada à indolência e à incapacidade de explorar a terra de acordo com a perspectiva colonial Pesquisadores sugerem que a melancolia é usada como um dispositivo para marginalizar e categorizar os habitantes nativos do Brasil perpetuando estereótipos e hierarquias coloniais Houve uma grande persistência do estereótipo que associa o feminino às paixões particularmente destacando o papel das especialidades médicas como obstetrícia e ginecologia durante a era vitoriana Nesse contexto a constituição psicofisiológica da mulher era discutida em relação à propensão à insanidade principalmente quando transgrediamse as normas de gênero A histeria considerada um sintoma de crise era utilizada para patologizar comportamentos dissidentes reforçando um binarismo entre masculino e feminino a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a intervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermínio Tais achaques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Souza p 112 Outra dinâmica colonial no contexto brasileiro está relacionada à associação entre virilidade à formação da nacionalidade em teoria a imagética figura emasculada dos brasileiros se deu devido à colonização O discurso sobre a virilidade também abrange debates sobre a formação da nacionalidade a influência da cultura estadunidense e a questão racial A interseção se fazia até mesmo entre questões raciais e discursos sobre saúde e higiene evidenciando como as campanhas sanitárias buscavam fortificar a população brasileira como parte do discurso nacionalista A biopolítica se faz um instrumento para moldar a saúde da população e fortalecer a nação no entanto também são apontadas contradições à biopolítica exemplificadas na representação caricatural de líderes sanitários como Oswaldo Cruz Por fim a ideia de civilização e sibilização exploradas como concepções de degeneração eram aplicadas não apenas a criminosos e doentes mentais mas também a escritores e artistas que eram vistos como portadores de traços indesejáveis para a sociedade Havia uma necessidade de uma ampliação do escopo das teorias de degeneração mostrando como concepções preconcebidas eram aplicadas indiscriminadamente inclusive a figuras do mundo artístico e intelectual

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Raimundo Expedito dos Santos Sousa danação da nação LEGADOS COLONIAIS E PROJETOS NACIONAIS Portugal Brasil Inglaterra Irlanda pimenta cultural Raimundo Expedito dos Santos Sousa danação da nação LEGADOS COLONIAIS E PROJETOS NACIONAIS Portugal Brasil Inglaterra Irlanda São Paulo 2023 pimenta cultural DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP SO725d Sousa Raimundo Expedito dos Santos Danação da nação legados coloniais e projetos nacionais Portugal Brasil Inglaterra Irlanda Raimundo Expedito dos Santos Sousa São Paulo Pimenta Cultural 2023 Livro em PDF ISBN 9786559397648 DOI 1031560pimentacultural202397648 1 Estudos literários 2 Discursos coloniais 3 Projeto nacional brasileiro e irlandeses 4 Feminização 5 Masculinidades I Sousa Raimundo Expedito dos Santos II Título CDD 807 Índice para catálogo sistemático I Educação pesquisa e tópicos relacionados a literatura Jéssica Oliveira Bibliotecária CRB0342023 ISBN formato impresso brochura 9786559397655 56 S U M Á R I O da rapina imperial diversas narrativas inscreverem a Irlanda como es posa afeita a bens pecuniários indica que o enfoque patrimonialista é capital para se compreender a anexação que constituía a bem dizer um enlace patrimonial Apesar das menções retóricas ao amor o patri mônio constituía a força motriz do Ato de União que Douglas Goldring bem definiu como o mais perverso dos mariages de convenance140 Parte maior da literatura tocante ao Ato ignora seu caráter generizado e mesmo quem examina o imperialismo sob esse viés identifica a feminização como dispositivo peculiar à última quadra do Dezenove talvez por localizar aí o início de novo imperialismo assentado no fracionamento da África entre metrópoles colonizado ras141 Dougherty por exemplo sustenta que após passagem do Ato a metáfora matrimonial passou do âmbito político para o cultural a partir do deslocamento de uma metáfora empregada quase ex clusivamente por homens para outra manejada sobretudo por mu lheres142 Os exemplos aqui elencados vão de encontro à ideia de deslizamento metafórico do âmbito político para o literário e do su posto remanejamento de seu emprego de homens para mulheres visto que agentes imperiais continuaram a explorar amplamente a metáfora matrimonial Tampouco havia cisão acentuada entre as es feras política e cultural como pressupõe Dougherty pois mesmo nos debates políticos stricto sensu o recurso à metáfora em textos não raro urdidos conforme protocolos de composição literária conferia força retórica à textualização de processos geopolíticos O episódio bíblico no qual a Rainha de Sabá repleta de ouro chega à corte de Salomão e oferece sua riqueza em troca de gratifi cação sexual prefigura uma genealogia de narrativas assentadas no desejo da mulher nativa pelo homem branco143 Vejase bem a propó sito o erotizado papel de ameríndias em relatos de conquista como nos casos paradigmáticos da asteca La Malinche A Puta que uma vez amante do expedicionário espanhol Hernán Cortéz teria facilitado a colonização ao atuar como sua tradutora144 e da jovem Pocahontas 57 S U M Á R I O cujo amor pelo explorador inglês John Smith a fez protegêlo com a própria vida quando capturado em missão na Virgínia145 No discurso colonial português o tema foi explorado tardia mente no apagar das luzes do século XVIII em poema de feição pas sadista do Frei Agostinho José de Santa Rita Durão Se a epopeia de Camões praticamente ignorara o Brasil sua conquista seria represen tada numa literatura épica somente quando a colônia se havia tornado rentável146 No final do Setecentos o gênero épico foi revigorado em narrativas fundantes cuja presunção monolítica se dava a ver no enalte cimento de conquistas ditas heroicas Essa revivescência foi coetânea com o fôlego final da empresa de colonização do Brasil pautado na minoração de antigas clivagens étnicas e sociais na colônia a fim de inserir o ameríndio nos projetos políticos e econômicos do império Em apologia ao domínio português na América Durão escreveu Caramuru dedicado às proezas do náufrago português Diogo Álvares Correia notadamente a conquista do recôncavo baiano Ainda que o poema épico arrolado entre as obras fundacionais da literatura brasileira147 seja concebido como gérmen da brasilidade seu caráter proselitista à colonização o torna mais legível como texto do discurso colonial148 Lavrado à maneira camoniana Caramuru é obrasíntese sobre a cons tituição do Brasil na qual o território aos Lusos confiado figura como instrumento para recobrar no Mundo o antigo Imperio149 Espécie de John Smith lusitano Diogo enaltecido porque o peito domar soube á fera gente150 conquista os índios no duplo sentido do termo e se torna Príncipe do Brazil e futuro dono151 do território na medida em que subjuga ao império todas as tribos A passividade dos índios retratados nessa epopeia de pretensão historicista contradiz o históri co de oposição ao processo de conquista ainda que sobrepujados os ameríndios não reverenciariam seu dominador visto que na cultura indígena a retaliação mobilizava os vencidos a empreenderem novas guerras porque a vingança signo de honra era medular como garantia de descanso post mortem A posse do território se concretiza quan do Paraguaçu filha de um cacique encantase por Diogo e uma vez 58 S U M Á R I O casados o europeu assume o posto de Rei do Brazil152 A heroiciza ção do português que rende as tribos nativas desposa uma princesa ameríndia e assim tornase autoridade régia sobre a sociedade local é evidente apologia ao projeto expansionista Porque no colonialismo português distintamente do anglosaxão a mestiçagem é antes praxe do que exceção o matrimônio entre o explorador e a nativa simboliza o nascimento da família brasileira e mais ainda alegoriza a coloniza ção como união amorosa em escamoteamento da violência imperial Porém o fito de celebrar a colonização faz que a narrativa mesmo estribada em registros históricos incorra na imprecisão de solucio nar querelas geopolíticas ao coroar como rei e rainha do Brasil um português e uma filha de chefe tribal Ora se o comando dos líderes indígenas na América Portuguesa se restringia aos limites jurisdicionais das respectivas tribos o fato de delegarem a Paraguaçu o posto de ra inha posição que desconheciam para que extensivamente Diogo se tornasse rei entremostra o esforço acrobático de Durão em investir de afeto a colonização e de poder o colonizador O tropo do matrimônio se enrobusteceu após a unificação administrativa tal como ocorrera entre Inglaterra e Irlanda Quando em 1815 criouse o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves que marcou nominalmente o ocaso do período colonial o Brasil aquém de nação livre além de mera colônia foi alocado em posição estatuá ria ambígua Uma vez que o casamento era então imaginado como união vitalícia resistente a toda sorte de infortúnios o discurso colo nial português à feição do inglês também representou a fusão admi nistrativa mediante abstrações jurídicas que a inscreviam em termos maritais Contudo se a Inglaterra com o Ato de União ratificou sua ingerência Portugal já depauperado encontrou na metáfora nupcial uma forma de simular domínio Essa hierarquia era explicitada em comentários tecidos por exemplo quando se debatia se o império mais lucraria em se unir à Espanha ou ao Brasil e se argumentava que mais alvissareiro seria casarse com a primeira conquanto a união se desse por via do Sacramento do matrimonio com a ressalva de que 59 S U M Á R I O sendo Portugal do genero masculino seja como he natural o marido e fique sendo cabeça de Cazal153 Como o continente americano foi desde sempre personifica do como mulher essa carga semântica era apropriada na represen tação do Brasil por vezes referido como América tal como nas peças alegóricas dedicadas à legitimação dos poderes instituídos A alego ria na clássica definição de Quintilianus como metáfora estendida continuatis translationibus154 teve grande voga na Modernidade O drama alegórico como littérature engagée acercavase do discurso político vigorante entre o fim do século XVIII e o início do XIX por se referir de forma hipostasiada a mazelas contemporâneas como o despotismo e a discórdia Uma vez que a alegoria nos remete a uma significação outra que a proferida pela linguagem literal155 as peças alegóricas favoreciam o apelo emocional graças à pujança retórica da simbologia Nesse período carimbado por turbulências políticas em Portugal o teatro constituía arena de manifestações partidárias em que segundo um crítico literário remissões políticas enlouque ciam as plateias156 Os dramas alegóricos celebravam solenidades da corte a exemplo de União Venturosa encenado no Brasil em 1811 para festejar o regime imperial157 Assinada por Antonio Bressa ne Leite Capitão Tenente da Armada Portuguesa a peça produzida quando Dom João VI assumiu o trono do Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves adocica pelo grifo no afeto a acidez do ponto de inflexão das relações coloniais na primavera do século XIX Desde o título alvissareiro até o enredo que hoje prosaico conformavase à sensibilidade estética do público à época o drama escrito em versos brancos propala uma aliança lusobrasileira imprescindível em face da crescente fragilização da metrópole Quando Portugal personifi cado como homem é convidado para assistir à posse de Dom João a Discórdia tenta impedilo com seus ardis mas malfadada restalhe como ultima ratio ir ao Rio de Janeiro dissuadir a América represen tada como mulher de unirse servilmente a Portugal Para contestar essa submissão sustenta que os homens nascem livres conforme lecionaram os filósofos franceses e por isso restam incoerentes 60 S U M Á R I O os que se dobram ao duro jugo158 Em apologia à liberdade a Dis córdia expõe argumentos razoáveis numa conjuntura de efervescên cia dos ideais republicanos mas o fato de serem advogados pela vilã deveria induzir o público a rejeitar prontamente essa perspec tiva liberal A heroína em réplica evoca a lei natural da obediência assentada no fato de sermos do berço ao túmulo sujeitos à lei e lembra tragédias fomentadas pela ânsia de liberdade causadora de um mar de sangue159 Tal como a mulher deve obediência ao homem a América como entidade feminina compreende seu lugar de subserviência em relação ao seu conquistador Dado o intento de enaltecer a união entre os países mas condensála na figura do monarca o drama a despeito do título sentimental não representa Portugal e América como casal pois nesse caso seria coerente que eles próprios segundo a lógica romântica fossem coroados como rei e rainha Assim no epílogo apoteótico como cabia ao gênero Dom João junto ao trono recebe a coroa segurada de um lado por Portugal e de outro pela América Contudo a peça não prescinde da potência retórica amorosa América e Portugal embora irmãos são representados em conotação amatória unidos que são em inque brável prisão damor160 na qual a primeira chama o segundo para que com meus braços cruzar vem já teus braços e este deseja que em tão doces prisões pronto menlace161 Convertido em império o Brasil país monárquico circundado por repúblicas adquiriu independência como entidade política porém continuou preso a Portugal já que protagonista de insólito processo de emancipação162 era governado por português pertencente à dinas tia imperante na exmetrópole Com efeito os ideais de independência e unidade propalados no Brasil regido pelo filho do rei de Portugal constituíam menos o desabrochar de consciência nacional coletiva do que o consórcio entre anseios por autonomia e estabilidade das províncias163 Quando à proclamação da Independência sucedeuse período timbrado por enfrentamentos entre absolutistas e liberais Dom Pedro coroado Defensor Perpétuo do Brasil revogou a Carta de 1823 por esta não contemplar interesses lusófilos e outorgou pessoalmente 61 S U M Á R I O a primeira Constituição brasileira O príncipe regente vacilava entre a adesão efetiva ao liberalismo em curso na Europa e a aderência ao vetusto absolutismo compatível com seu gênio autocrático Ao lançar mão do poder moderador que o fazia pairar acima dos três poderes legados da Ilustração o imperador instaurou uma monarquia absolu tista travestida de Constituição164 O poder instituído temeroso de que o império se dissipasse em repúblicas autônomas à semelhança da América hispânica precisava que províncias heterogêneas acolhes sem como legítima a centralização do poder na figura do imperador Porém receavase que Dom Pedro retornasse a Portugal se tornasse rei o Brasil retrocedesse à condição de colônia e se restabelecesse o Pacto Colonial cujo exclusivismo não aprazia a elites econômicas vorazes por laissezfaire Para tanto o Estado investiu na produção de artefatos culturais cujo ideal de nacionalidade duplicava imperativos de grupos hegemônicos como se atendesse a demandas da socie dade civil As alegorias elaboradas na literatura e nas artes plásticas a serviço do Estado tinham como telos positivar a imagem de Dom Pedro Quando a Constituição intentava ratificar o compromisso do im perador com o país uma alegoria referente ao Juramento da Consti tuição o representava como guer reiro que liberta o Brasil das garras da tirania despótica Imagem 5 Na iconografia o imperador com os pés detém a hidra epítome das mazelas políticas em performática exibição de virilidade que o inscreve como o homem ideal para conduzir a nação alegorizada como amerín dia Esta vestida apenas com co car e saia de penas como que para grifar sua vulnerabilidade encontra segurança nos braços do herói e ambos se entreolham enamorados Imagem 5 União venturosa 62 S U M Á R I O em cena amorosa que oblitera tensões coloniais Uma vez que o Brasil personificado como uma mulher estaria vulnerável a potestades ma lignas o imperador seria a alternativa mais viável para a nação que à sombra de sua espada ficaria resguardada de tiranos e agitadores Logo seria imperioso entranhar essa verdade nos corações e mentes dos brasileiros por meio sobretudo dos olhos não à toa se propu nha distribuir a imagem por todo o império sob o argumento de que mais aproveita falar aos olhos do que aos ouvidos165 Daí essa alego ria embora institua Portugal e Brasil como namorados não inscrever os brasileiros como ameaça à nação como faziam as ilustrações do discurso colonial inglês a respeito dos irlandeses Aqui o perigo não advinha em princípio dos brasileiros que afinal deviam ser con quistados mas de entidade maligna abstrata remetente contudo a ameaças como a insurreição popular O Estado estabelecido legalmente pela Constituição de 1824 delegava direitos civis a um restrito quinhão de brasileiros segundo critério socioeconômico Se a Independência tecnicamente conso lidada favorecia grupos seletos mas de resto a estrutura colonial subsistia o imperador longe de arquitetar um projeto nacional in clusivo tentava legitimar um arranjo social verticalizado Para tanto as alegorias grifavam que a submissão a Portugal decorria de livre arbítrio do Brasil que imaginado como moça casadoira oferecia a Dom Pedro servidão negada a varões de menor valor Nessa lógica o juramento profissão de fé inquebrável era artifício de largo uso tal que a certa altura de pomposa aclamação a Dom Pedro relatava um jornal a alegoria do Brasil jurava ao másculo português Dons que neguei aos Tyrannos Acceita meu Defensor Submissão e fé te juro Meu Primeiro Imperador166 Entretanto à proporção que se discutia também no Brasil o ins tituto do divórcio a ruptura com Portugal era representada na lingua gem de gênero como separação causada pela ingratidão da esposa Em projeções metafóricas que invertiam o caráter doloso da coloniza ção o Brasil era imaginado como mulher gananciosa e oportunista mas lembrava Eça de Queiroz se Europa e América se desquitassem 63 S U M Á R I O e cada qual resgatasse seus bens originais esta última ficaria depau perada de signos da civilização167 Dada a opulência do império britâ nico no século XIX o discurso colonial inglês negava veementemente o divórcio em contraposição a desvalia do império lusitano se tra duzia em metáforas matrimoniais que figuravam a separação como irremediável O divórcio pressagiava um jornal seria incontornável porque o Brasil em relação a Portugal fora creado no habito de obe decerlhe mas agora havia provado da autonomia e não aceitaria ser subjugado Em todos os cazos há divorcio entre o Brazil e Portugal168 A exemplo do discurso colonial inglês também aqui a materialidade da inflexão patrimonial letimotiv da empresa colonizadora era transfigura da para a dicção conotativa por meio da metáfora matrimonial donde se podia concluir com referência à separação política que entre Por tugal e Brazil houve completa separação de bens169 102 S U M Á R I O Se a conquista anglonormanda se valeu da composição pluri cêntrica da Hibérnia fatiada em diversos reinos a empresa coloniza dora portuguesa também se beneficiou do pluricentrismo da América précabralina cujos habitantes viviam apartados em várias tribos às voltas com enfrentamentos intestinos Todavia os impérios lusitano e britânico se encontravam em patamares de maturação distintos já que o primeiro conforme o léxico imperialista chegara à virilidade ain da na Renascença e passado o seu vigor atingiria a velhice quando o segundo alcançaria o apogeu da masculinidade Essa disjunção geracional repercutia nos protocolos autoetnográficos na medida em que os ingleses se ufanavam de seu presente e os portugueses de seu passado bem como nas tecnologias de alterização visto que as práticas discursivas ibéricas deveriam contornar o constante defi nhamento do império Limiar entre as idades Média e Moderna a Era dos Descobrimentos foi balizada pela oscilação dos europeus entre as cosmovisões medieval e renascentista Nessa formação cultural os argonautas lusitanos do século XVI vacilavam entre os discursos teológico e humanista na caracterização da alteridade Quando trava ram contato com os ameríndios sua imaginação operou desde logo como engenho diligente na produção de significados sobre povos he teróclitos às suas matrizes culturais Porque concebiam o Outro a par tir dos sistemas de referências de sua própria cultura hostes imperiais viajavam predispostas à imaginação cobridora dos hiatos de seus sistemas de classificação lacunares Os exploradores impactados por narrativas precedentes como a literatura imaginativa de Marco Polo traziam a bordo um estoque de imagens préconcebidas A fic cionalização era reforçada pela especificidade da literatura de viagem gênero que implica desafio de transposição porque elaborado con forme retórica da alteridade na qual o universo representado deve ser inscrito naquele para o qual se volta particularidade que faz da nar rativa operação tradutora de uma experiência já intraduzível345 Nesse engenho de fabricação do Outro inocência e lascívia confluíam em tá ticas de feminização porque provenientes de matrizes de significação 103 S U M Á R I O que por itinerários diversos chegavam ao objetivo comum de atribuir feminilidade aos ameríndios Se no alvorecer do século XVI quando das primeiras fricçõesficções étnicas agentes imperiais forjaram o mito da inocência aborígine como projeção do desejo de conquista embaraços à empresa colonizadora logo os convenceram de que ao contrário os gentios eram viciosos Agentes imperiais como Manuel da Nóbrega e Gabriel Soares de Sousa estabeleciam que os brasis são tão movidos por inclinações e apetites sensuais346 que não ha peccado de luxuria que não cometam347 Coube porém a um belga o poeta Caspar Barlæus cunhar o adágio que compendiaria o caráter heterodoxo dos códigos sexuais brasílicos ultra aequinoctialem non peccavi não existe pecado abaixo do Equador348 Se no patriarcado metropolitano o pater familiæ tem sua hombri dade franqueada pela autocracia os brasis não seriam propriamente homens por habitarem espaço de anomia cuja inversão de gênero seria patente no servilismo ao belprazer das amazonas Haveria na América portuguesa mulheres que imittam os homẽs ſeguẽ ſeus officios como ſe nam foſſem femeas tal que à revelia da estética fe minina manteriam a aparência à feição dos homens junto aos quais tomariam parte na caça e na guerra349 Essas mulheres supunhase eram sucedâneas das amazonas figuras cuja menção como prece dente histórico conferia veridicidade aos relatos Dotadas de uma só teta lutariam como homens dos quais viveriam apartadas como se diz das amazonas350 Longe de submissas aos homens de fato os comandariam conforme salientou Frei Gaspar de Carvajal ao descre ver que tinham os índios como súditos lutavam diante deles como capitãs351 e cada qual fazia tanta guerra como dez índios352 Tais mulheres viveriam isoladas do grupo masculino mas quando lhes vêm aquela vontade guerreiam contra os vizinhos trazemnos à força para seus domínios onde os mantêm até se enjoarem ficam prenhes e os devolvem para sua terra353 Finda a gravidez se parem filho o matam e o enviam ao pai e se filha criamna e a obrigam às coisas de guerra354 Essa figuração da feminilidade prodigiosa dá 104 S U M Á R I O mostras da dimensão do maravilhoso no imaginário atlântico infor mado por reminiscências da literatura fantástica como forma de expli cação do agenciamento de ameríndias numa episteme ocidental que concebia o feminino como desprovido de verve gerencial De todo modo a sexualização das nativas tinha como escopo feminizar os homens pela indicação de imperar na colônia absoluta desordem dos papéis masculino e feminino inclusive nas práticas sexuais Noutros casos o enfoque na licenciosidade das mulheres fazia confluir o selvagem e o feminino num discurso colonial que conjugava etnofobia e ginofobia André Thevet monge franciscano que tomou parte na fundação da França Antártica projeto francês de coloniza ção da Baía de Guanabara definiu o povo dali como muito luxu rioso com o cuidado de destacar especialmente as mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres355 Não é de admirar a ênfase no dualismo entre passividade masculina e agência feminina como traço das relações brasílicas pois tal contraste insinuaria a efeminação dos homens Que da atividade nas práticas sexuais de que se esperaria imposição masculina go zariam desde meninas em botão a senhoras vetustas indicava Gabriel Soares de Sousa ao relatar que meninos de muito pouca idade eram acossados por velhotas que já sem apelo junto aos adultos ensi namlhes a fazer o que elles não sabem e não os deixam de dia nem de noite356 Dessa agência feminina é reveladora uma passagem das Quatuor Navigationes de Amerigo Vespucci Na epístola em que dá conta de sua terceira viagem ao território que receberia seu nome o cosmógrafo narra embuste no qual os ameríndios em vez de rece berem os expedicionários europeus enviaramlhes coorte de mulhe res Logo que desembarcou o europeu designado para recebêlas meteuse entre elas que rodeandoo tocavamno e apalpavamno como que deslumbradas por ele relatava o argonauta mas da mul tidão surgiu uma mulher que armada de colossal estaca acercouse do rapaz e pelas costas meteulhe tamanho golpe que incontinenti ele desabou morto ao chão357 Numa das edições epistolográficas de 105 S U M Á R I O Vespucci a suposta emboscada tem versão imagética na xilogravu ra em que nativas distraem o eu ropeu com prospecto de gratifica ção sexual para que num coup de théâtre uma outra armada com maça arvorese em atacálo pelas costas Imagem 10 Essa imagem chama atenção sobretudo pelo modo europeizado como as ame ríndias são desenhadas já que no mais das vezes as ilustrações das narrativas de viagem eram la vradas por desenhistas que igno ravam o Brasil senão a partir de descrições redigidas pelos autores Numa Renascença balizada pela redescoberta do corpo segundo a estética clássica os ilustradores incumbidos de transformar em criação visual descrições recebidas desenhavam ameríndias possuidoras de corpos esculturais para os parâmetros estéticos vigentes numa perspectiva pictórica herdada do classicismo Raminelli em apreço dessa imagem argumenta que o realce conferido às mulheres se devia em parte à misoginia im perante na Europa quinhentista sobretudo no mundo luterano haja vista as representações iconográficas aproximarem as ameríndias de estereótipos femininos como a feiticeira a sereia e a amazona358 Não lhe ocorre que a exrotização do feminino entremostra conjuntividade entre imperialismo e patriarquismo em que a sustentação da virilidade imperial dependia do domínio sobre ameaçador espaçocorpo femi nizado Iconografias como essa dão mostras da ambivalência do dis curso colonial cindidos entre a fantasia megalomaníaca de domina ção planetária e o temor persecutório de serem tragados os europeus tomavam o corpo das ameríndias como tela sobre a qual projetavam Imagem 10 Alegres Trópicos 106 S U M Á R I O tanto angústias quanto desejos recalcados a partir de representa ções condenatórias que não os comprometiam frente ao parágonos de masculinidade metropolitanos Também eram pródigas as glosas sobre a conduta sexual dos homens para indicar sua natureza efeminada inequívoca no abandono aos impulsos e por conseguinte sua incapacidade de autogoverno Pero de Magalhães Gandavo identificou no alfabeto a selvageria dos brasis ao notar ausência de três consoantes no léxico indígena Ca rece de tres letras conuem a ſaber nam ſe acha nella f nem l nẽ R couſa digna despanto porq aſsi nam tem Fé nem Ley nem Rey359 A falta concreta de consoantes aludia a uma falta outra de ordem abstrata que inscrevia os nativos sob o signo do feminino e destarte da dependência do falo imperial O relevo conferido à sensualida de constituía no limite um dispositivo de feminização que ao alijar do campo da racionalidade os homens do Novo Mundo sinalizaria sua falta de hombridade Viue nelles tão apagada a luz da rezaõ explanava Padre Simão de Vasconcelos quafi como nas mefmas fe ras360 Porque aquém da condição humana e por extensão mascu lina os gentios seriam heteróclitos ao padrão másculo que tinha na racionalidade sua coluna vertebral por se abandonarem aos vícios como ſe nelles nam ouuera razam de homẽs361 A essa efeminação moral se somaria a emasculação física na medida em que amiúde a rendição aos impulsos carnais faria morrer seu pênis expressão me tonímica da masculinidade Amerigo Vespucci na epístola Mundus novus narrava que as ameríndias fazem inchar o membro de seus maridos por meio de certo artifício e mordedura de uns bichos venenosos por cujo motivo muitos o perdem e ficam como eunu cos362 Outros agentes imperiais acresceriam que o animal adotado por homens desejosos de converter seu cano em algo medonha mente disforme de grosso363 se tratava de taturana peluda repou sada sobre o membro que se excita em veemente e ardente luxúria e incha e três dias depois apodrece364 Sobre a instrumentalidade 107 S U M Á R I O do gênero em estereótipos raciais Hall conclui apressadamente que os negros ao contrário dos orientais tidos como efeminados seriam excessivamente masculinizados365 Nessa senda Weigman obser va que a castração simbólica depende paradoxalmente de intensa masculinização da figura do homem negro366 Essas análises não observam que a incontinência signo do desgoverno de si era índice antes de efeminação do que de virilidade Há que considerar sob quais circunstâncias se deu a emergência ou mutação de um con ceito e que relações de poder ele franqueava A efeminação temos visto possuía mais amplitude e complexidade significacional do que presumem esses críticos Supostamente manobrados pela impudicícia os ameríndios mutilariam não apenas seu corpo mas sobretudo os de outrem em práticas nas quais o apetite carnal assumia seu duplo sentido sexual e nutricional Na aurora da Modernidade tanto a literatura quanto a cartografia divulgavam ignotas ilhas ao longo do Atlântico entre as quais o Paraíso Terreal tropo tomado pelos europeus como parâ metro na caracterização das terras devassadas Nesse panorama a Terra Brasilis deveria saciar a esperança de reconquista do horto edênico de que a humanidade fora banida Entretanto numa das primeiras referências escriturárias à América Portuguesa o Auto da Barca do Purgatório 1518 de Gil Vicente a colônia é mencionada de passagem vilipendiosamente quando a regateira Marta Gil assedia da pelo Diabo para acompanhálo ao inferno roga a Deus que me livre do Brasil367 Numa peça impactada pela cristandade tardome dieval a menção à América portuguesa como metáfora do Inferno é sintomática da má reputação dessa terra de degredo no imaginário português quando depositária de refugos humanos varridos da me trópole como indigentes prostitutas e delinquentes O início efetivo da colonização implicou nova concepção de América não mais ima ginada como o Paraíso perdido mas antes como o Inferno na terra pois à edenização inicial logo se sobreporia a representação do Brasil como uma ilha povoada por canibais sanguissedentos368 108 S U M Á R I O A alegada prática canibalística desmentia o presságio caminia no de que a conquista seria facilmente exequível Já em meados do Quinhentos Manuel da Nóbrega alertava ser preciso dar fim a essa causa maior da insujeição dos ameríndios Desta maneira ale gava o jesuíta cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa369 Restritos pela ótica monocular eurocêntrica missionários tomavam a antropofa gia por canibalismo sem se aperceberem da dimensão ritualística que diferençava a deglutição de carne humana por gulodice da cerimônia de ingestão da vítima como introjeção de suas virtudes A criação da figura do canibal que se refestelava à farta com carne humana visava chancelar o canibalismo cultural empreendido pelos europeus median te projeção dos seus próprios apetites370 Assim em face do malogro catequético o padre José de Anchieta podia propalar sem infringir os cânones católicos a substituição do cetro cruciforme pelo gládio ao sentenciar que para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro371 Comentários sobre práticas cani bais reduziam os ameríndios à animalidade estatuto que os apartaria da condição humana e por extensão masculina Andre Thevet em viagem pelo Brasil quinhentista comentava que não há bestafera tão cruel a que apeteça tão ardentemente o sangue humano quan to esse povo selvagem372 Pero de Magalhães Gandavo confirmava que os ameríndios uma vez apoderados de um inimigo não apenas o matam cruelmente mas também lhe comem todos a carne me diante cruezas tam diabólicas que excedem aos brutos animaes373 Ignorantes de que na cadeia alimentar o animal ingerido deveria ser inferior ao seu consumidor os gentios brasílicos seriam desumanos ou mais precisamente não humanos já que inaptos a distinguir as categorias em que o mundo natural fora racionado374 Ironicamente a mesma acusação de canibalismo que negava a humanidade do Outro a comprovava pois o pertencimento à espécie era requisito para o consumidor de carne humana ser considerado canibal375 109 S U M Á R I O A partir dos anos 1970 o crescente interesse acadêmico pe las noções de corpo e representação revigorou de tal forma nos es tudos sobre o canibalismo que esse tropo do discurso colonial se situa na nervura das reflexões atuais sobre identidade e diferença376 Se bem que ainda no século XVI Michel de Montaigne ponderasse que a clivagem entre o civilizado e o selvagem era um engodo porque o canibal habitava menos as selvas do que as cidades europeias377 era imperioso o investimento discursivo na sexualidade canibalesca como degrau para legitimação de valores europeus378 São bem co nhecidas por exemplo as ilustrações de Theodor de Bry celebrizado por suas representações das primeiras viagens de europeus ao Novo Mundo Suas figurações da América fartamente difundidas numa Europa cujo analfabetismo tornava o texto icônico mais legível do que o escrito impactaram o modo como o olhar estrangeiro interpretaria o continente A semiótica do canibalismo era valioso dispositivo de feminização porquanto a figura do canibal além de operatória na de marcação dos limites do humano punha em questão a masculinidade dos nativos Em imagens lavradas ao estilo maneirista em voga na Alta Renascença379 rituais gastronômicos retratados pelo belga indicavam correlação entre os desejos de saciedade estomacal e genital ambos satisfeitos no ato de comer o europeu em banquetes cujo artificialismo e exagero maneiristas de expressões e gestuais acentuavam o deleite do canibal em devorar a carne masculina dominante em sua dieta car nívora com o cuidado de empalar o ânus para que nada se perdesse Por vezes o homem autóctone era estigmatizado de forma análoga como canibal e sodomita condição que o colocava para além das bordas do humano e do masculino ao indicar sua dupla incompreen são de que outros seres humanos não eram seu alimento natural e de que seres do mesmo sexo não eram seus parceiros sexuais380 A acusação de sodomia autenticava a violência colonizadora contra ho mens nativos tal como numa chacina ocorrida em 1513 quando o espanhol Vasco Núñez de Balboa matou cerca de quarenta ameríndios 110 S U M Á R I O alegadamente sodomitas O episódio foi representado por Theodor de Bry numa ilustração em que quatro vítimas que simbolizam as quaren ta são estupradas por uma matilha incitada por Balboa Imagem 11 Nessa iconografia que confunde homoerotismo e bestialidade e bor ra limites entre as acepções sexual e gastronômica do verbo comer os homens do Novo Mundo possuidores de feições femininas estão deitados languidamente em posições que sugerem cópula alguns são beijados com lascívia pelos cães e um mantém o braço em torno do pescoço canino em gestual tipicamente amatório tudo isso obser vado por olhares voyeuristas dos homens europeus Embora ocorrido no Panamá não no Brasil o episódio diz sobre o imaginário europeu a respeito dos ameríndios tout cout Em que pese o argumento de que as diferentes procedências dos europeus distinguiriam suas for mas de representação dos americanos381 tais diferenças eram sobre determinadas pelas distinções mais acentuadas entre EuOutro Imagem 11 Sodoma e Gomorra tropical 111 S U M Á R I O civilizadoselvagem e colonizadorcolonizado Afinal nos séculos XVI e XVII os europeus com propósitos homogeneístas referiamse aos ameríndios de forma genérica não obstante disparidades etnogeográ ficas382 Especificamente no Brasil colônia cujas relações de gênero seguiriam na contracorrente do mundo civilizado mulheres masculi nizadas teriam como contraparte homens efeminados que contava Gabriel Soares de Sousa são mui afeiçoados ao peccado nefando prática tão bem aceita que alguns deles tem tenda publica a quantos os querem como mulheres publicas383 Entre os indígenas homens efeminados gozariam de tamanha aquiescência que são as meretri zes desta nação384 Se é verdade que esses textos verbais imagéticos ou multimodais são os primeiros registros do modus vivendi autóctone não é menos verdadeiro que revelam antes sobre os observadores do que sobre os observados Invenções da alteridade encerravam menos esforço de conhecer o Outro do que ânsia de autoafirmação visàvis sua exterioridade constitutiva SOTURNO SATURNO Nas mulheres o que denominamos matriz ou útero é um animal que vive dentro delas e tem avidez por gerar filhos E quando a despeito da idade propícia permanece por um longo tempo sem produzir fruto ele se inquieta pois suporta mal esse estado Revoltoso erra por toda parte do corpo obstrui os canais do fôlego impede a respiração produz desconfor tos extremos e morbidades de toda sorte Plátōn Timeu Certas patologias são investidas de potência simbólica na inven ção da alteridade graças ao seu impacto no imaginário notadamente aquelas associadas ao risco de colapso social donde o uso ordinário de metáforas como câncer AIDS cancro e gangrena invocadas para designar agentes degeneradores como prostitutas homossexuais 112 S U M Á R I O anarquistas imigrantes e colonizados385 No imperialismo moderno a bifrontalidade entre patologização da raça e racialização da patologia imputava a homens nativos morbidades contagiosas a fim de intimidar amalgamações raciais entre colonos e colonizados386 Já a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a in tervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermí nio Como veremos os discursos coloniais se valeram da constelação semântica de duas maladias femininas a melancolia e a histeria para atribuílas respectivamente aos brasileiros e aos irlandeses Tais acha ques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Sucedânea da acídia medieval a melancolia designava na Mo dernidade quadro clínico cujos sintomas correspondiam a predicados femininos como indolência e languidez Conforme a teoria humoral consolidada como explanação hegemônica para os estados de saúde e enfermidade entre os séculos IV aC e XVIII dC haveria quatro tipos fisiológicos quais sejam sanguíneo fleumático colérico e melancóli co Tais tipos seriam constituídos a partir de fluidos corporais sangue fleuma bile amarela e bile negra que procederiam respectivamente de quatro órgãos coração cérebro fígado e baço e teriam cada qual duas qualidades primárias o sangue seria quente e úmido a fleuma fria e úmida a bile amarela quente e seca e a bile negra fria e seca Da harmonia entre os fluidos dependeria a saúde do indivíduo ao passo que o predomínio de um sobre os demais desencadearia achaques diversos387 Irrompida pela bile negra a melancolia designava confor me o influente The Anatomy of Melancholy de Robert Burton um tipo de loucura sem febre que tem como companheiros ordinários o medo e a tristeza sem qualquer razão aparente388 A atribuição irracionali dade à moléstia reverberaria já no século XX em conhecida propo sição de Freud distintamente do luto a melancolia seria processo in consciente pois o paciente não saberia o que perdera equivocidade 113 S U M Á R I O que o impediria de dar termo à elaboração da perda e de retomar a conexão com o mundo389 Distintamente de Benjamin cuja tese sobre a origem do drama trágico alemão vincula a melancolia ao dilema existencial do homem barroco390 eu a interpreto em seu coeficiente discursivo como aparato de alterização Fosse sintoma social seria referida antes genericamente do que como apanágio masculino em seu viés filosófico ou como alteri zação de gênero classe e raça em seu prisma patológico Com efeito a melancolia era generizada de tal sorte que na Inglaterra elizabetana sua etiologia era creditada ao gênio imaginativo no homem e ao desequilí brio emocional na mulher de sorte que os personagens shakespearia nos Hamlet e Ophelia seriam respectivos epítomes do herói melancólico e da mulher desvairada391 À melancolia masculina relacionada à ex periência de desencantamento ou desconcerto do homem letrado su cederia no Romantismo o que René de Chateaubriant denominaria Mal du siècle e Baudelaire chamaria de spleen392 À melancolia feminina por sua vez sucederiam quadros clínicos psiquiátricos como a depres são e a histeria393 A melanco lia tanto era imaginada como quadro patológico feminino que se a antropomorfizava como mulher vide a conheci da tela em cobre Melencolia I datada de 1514 do alemão Albrecht Dürer Imagem 12 que Benjamin examina mas passa ao largo do seu cará ter generizado Em cenário mórbido se não macabro a construção incompleta suge re que há trabalho por fazer e a areia da ampulheta já pela metade indicia o quanto de tempo se tem gasto em vão Alheia ao trabalho inconcluso Imagem 12 Radiografia de uma doença feminina 114 S U M Á R I O a Melancolia se mantém como que anestesiada em completa inação A faculdade imaginativa indicada pela posse de asas parece esterili zada pelo desânimo evidente na cabeça recostada sobre a mão e no braço apoiado sobre a perna A figura prosopopeica tem à disposição ferramentas para trabalho manual e intelectual porém não as utiliza vis to que mal tem ânimo para cuidar de si a julgar pelo desmazelo com que mantém as vestes e os cabelos Atrás do plano frontal repousa o mar convidativo à viagem mas a Melancolia cujo olhar fita o nada está ensimesmada em estoica acedia Seu marasmo doentio é reforçado ainda pelos companheiros de cena o putto igualmente alado mira o vazio tal qual a mulher o cão animal vulnerável à raiva pela degenera ção do baço está encolhido em posição fetal com aspecto enfermo remetente à consternação do melancólico e o morcego que sustenta o dístico Melencolia simboliza a morbidez O Brasil era comumente descrito como terra melancólica394 ou seja soturna aziaga e lacrimosa traços personalizados que traduziam minudências geográficas como as matas sombrias o clima úmido e a abastança de rios caudalosos A analogia entre as idiossincrasias climáticas e topográficas da colônia e o humor melancólico decorria de abundâncias fluviais e pluviais que lembravam o estereótipo do des tempero feminino A terra é algum tanto melancólica regada de muitas águas assim de rios caudais como do céu e chove muito nela395 Categorizar a América portuguesa como melancólica favorecia o ar gumento de que sua gente por influência do meio era acometida de mesmo achaque Não por acaso o mesmo José de Anchieta que atri buía essa moléstia à terra considerava os ameríndios igualmente me lancólicos396 A patologização do brasílico pelo abatimento colidia porém com sua paralela mitificação como povo ledo e festivo A essa contradição agentes imperiais respondiam com equivocidade que o registrava como alegre apesar de triste como fez o padre Fernão Car dim ao relatar que os nativos ainda que são melancólicos folgam se com jogos músicas e danças397 Aos brasílicos se imputava mes mo a tristeza crônica em descrições que os feminizavam como gente que sempre fala em voz baixa tem acento lastimoso nas palavras 115 S U M Á R I O e raramente se anima398 Essa debilidade emocional os tornaria vul neráveis às advinhas da sorte porque incapazes de suportar prova ções cairiam prostrados diante do primeiro obstáculo Por isso se riam inaptos a governarem extenso território cujos perigos insondáveis abateriam homens de estrutura mental tão abalável que emagreciam com qualqr desgoſto399 A constelação sintomatológica da melancolia abarcava predi cados como a indolência arrolada entre as faltas capitais pela Igreja e pelo Estado instâncias de poder conjuradas no imperialismo portu guês Fixados no paradigma extrativista eurocêntrico os agentes im periais frisavam a disjunção entre a natureza ofertante e a indiferença patológica dos brasílicos usufrutuários de suas benesses apenas para fins de subsistência Viuem todos muy deſcanſados ſem terẽ outros penſamentos ſenam de comer beber matar gẽte desaprovava Pero de Magalhães Gandavo e por iſſo engordão muito400 A pre guiça atrelada à afecção melancólica confirmava a categorização dos indígenas como raça efeminada cuja lassidão a incapacitaria de explorar a terra Sua indolência seria tal que os colonos portugueses recolheriam na África mão de obra para trabalho inicialmente infligi do aos povos ab origine Contudo numa colonização marcada pela miscigenação o caldeamento racial teria neutralizado qualidades su periores do europeu e redundado em mestiços também efeminados É sintomático que o geólogo Louis Agassiz tenha considerado como corolário da amalgamação racial no Brasil um mestiço deficiente em energia física e mental401 e em seu inventário sobre predicados físi cos e mentais dos tipos raciais brasileiros tenha categorizado o ma meluco híbrido entre branco e índio como pálido efeminado fraco preguiçoso e bastante obstinado402 Numa episteme que tomava a noção de virilidade como métron de ajuizamento dos povos julgavase como indolência inclusive um costume pelo qual os homens indíge nas tentavam tomar para si a nuclearidade na reprodução por meio de rituais imitativos dos processos de gestação parturição e pósparto Entre os tupinambás a parturiente seguiria rotina como se não hou vesse concebido e o esposo acamado recebia visitas e regalos403 116 S U M Á R I O Numa curiosa inversão de papéis a mulher faz muitos mimos ao es poso que está parido impedido de qualquer esforço opostamente às mães porque os homens alegavam segundo Gabriel Soares de Sousa que o rebento saiu dos lombos do pai e elas não põem da sua parte mais que terem guardada a semente no ventre onde se cria a criança404 Sintoma dos mais graves a insanidade tornaria a melancolia achaque indicador da incapacidade dos gentios se manterem à pró pria custa nos marcos civilizatórios consolidados na Europa Pouco ativos mas muito contemplativos os brasis inventados pelo discurso colonial não agiam porque acometidos de melancolia congênita des dobrada em quadros como a hipocondria De nenhũa couſa tem tanto medo como da agoa do lodo ſe acertão de molharſe ou enlodarſe entrão logo em malenconia fazem eſgares eſpantos ridiculos405 Sua fantasia beiraria as raias da alucinação de tal maneira que relatava Gandavo pode nelles tanto a imaginaçam q ſe algũ deſeja a morte ou alguẽ lhes mete em cabeça q ha de morrer tal dia ou tal noite nam paſſa daqlle termo q nã morra406 Afinado com a episteme imperial o historiador interpreta como autossugestão mórbida um corolário da violência material e simbólica perpetrada contra os nativos qual seja o elevado índice de suicídios entre os ameríndios no Brasil407 Portugal argumenta Santos não circunscreveu bem suas fron teiras coloniais e tal condição teria conferido à sua cultura acentrismo traduzível numa dificuldade de diferenciação face ao exterior e numa dificuldade de identificação no interior de si mesma408 A excepciona lidade atribuída ao império condensada no que o sociólogo denomi na Prospero calibanizado implica equivocidade por associar o es tatuto periférico à flexibilidade na alterização das colônias de modo a não haver uma distinção clara entre a identidade do colonizador e a do colonizado pois o outro colonizado pelo colonizador não é totalmente outro em relação ao outro colonizado do colonizador409 Nesse imperialismo anômalo em relação ao inglês não há um ou tro insiste o sociólogo pois a alteridade reside em ambos os lados É por isso também que ali o estereótipo do colonizado jamais teve 117 S U M Á R I O o fechamento que lhe foi atribuído no Império Britânico ou pelo me nos o seu fechamento foi sempre mais inconsequente e transitó rio410 Ao presumir indistinção entre o império e suas colônias essa análise ignora o engenho discursivo com que Portugal fez do Brasil sua alteridade constitutiva Como demonstrei nas seções dedicadas à feminização do Brasil e dos brasileiros o discurso colonial portu guês tanto foi incisivo nessa empresa que se valeu de tecnologias de representação as mais diversas Embora se considerasse desde a Grécia Antiga que o feminino era regido pelas paixões esse estereótipo recrudesceu com o advento de especialidades médicas como a sexologia a obstetrícia e a gineco logia numa era vitoriana cuja idée fixe pelo controle pulsional suscitava obsessão paranoide em doenças do sistema nervoso e estimulava candente debate na classe médica qual seja o nexo causal entre a constituição psicofisiológica da mulher e sua propensão à insanidade Cativas de esquema fisiológico cíclico vinculado às funções reproduti vas menstruação gravidez parto e menopausa as mulheres seriam segundo o discurso médico mais suscetíveis à doença mental a for tiori se transgredissem balizas de gênero afinal a energia despendida em ocupações intelectuais faltaria ao aparelho reprodutor e redundaria em colapso por exaustão nervosa O impasse taxonômico de inscre ver a histeria numa categorização patológica inequívoca se tornava conveniente na medida em que essa categoria imprecisa podia ser usada em diferentes circunstâncias como para patologizar condutas dissidentes não imputáveis facilmente a outros distúrbios mentais Em regime binário que vinculava o masculino ao logos e o feminino ao pathos a histeria ou furor uterinus constituía antes de tudo sintoma de crise cultural em que se tentava frear a marcha célere da suffraget te sisterhood mediante histerização de condutas transgressivas que deveriam ser contidas pelo terrorismo das admoestações profiláticas pela aplicação de drogas potentes pela internação em regime de con finamento e mesmo pela amputação critoridiana411 187 S U M Á R I O biopolítico operacionalizado conforme testemunho do escritor John Banville por um estado totalitário desmilitarizado no qual a vida dos cidadãos seria controlada não por um sistema de força coercitiva e policiamento secreto mas por uma espécie de aplicada paralisia espi ritual a ser mantida por uma federação não oficial entre o clero cató lico o judiciário o serviço civil e os políticos672 O prognóstico de que uma nação edênica sucederia à guerra se cumpria ao revés e aqueles que haviam lutado juntos pela descolonização agora se digladiavam em batalhas internas pela hegemonia política Nessa arena de lutas fra tricidas o legado colonial se mantinha entesourado na perpetuação de tecnologias de controle imperialistas recicladas por autocracias locais Dificilmente se encontrarão no universo duas raças que tão cor dialmente se detestem673 Essa fina ironia sumariava a falsa aparência de vínculo amical lusobrasileiro Desde logo as relações entre Brasil e Portugal foram balizadas por malquerenças externadas de modo in sidioso na tão falada amizade entre os povos Essa discórdia amistosa tanto mais se agravava quanto mais se apercebia do escopo feminiza dor subjacente às pretensas benfeitorias do processo civilizatório Ante a colonização do imaginário pretendida pela cristianização brasílicos ponderavam que interposições evangelizadoras os emasculavam e em tribos arredias à catequese os quantos aderissem à mansuetude cristã eram estigmatizados pelos pares como fracos e efeminados por se deixarem amansar674 A acepção de virilidade como métron universal que temos visto dimensionava o gradiente civilizatório dos povos também informaria o projeto de nação no Brasil quando já es tabelecida uma elite letrada Se parte dessa intelligentsia celebrava com ufanismo a virilidade dos brasileiros conforme vimos no último capítulo outra parte admitia que estes se encontravam emasculados em decorrência de uma colonização que fizera do país uma nação escrava e anestesiada Um lethargo sem fim entorpecia o povo Cruel desolação reinava em torno a nós Degenerando sempre á luz do Mundo Novo Esse sangue viril de intrepidos avós675 188 S U M Á R I O A teleologia do progresso fundante do projeto de nação e ins crita na própria bandeira nacional era ameaçada pela feminização À guisa de alerta Rui Barbosa trouxe à baila o caso da Bélgica país que ao perder a virilidade mudou de sexo porque aos povos emasculados resta somente a tutela como a mulher ou o eunuco676 Sob esse prisma analítico a gente brasileira carente de animo viril dava mostras de também ser uma raça emasculada677 Conquan to atribuíssem feminilidade aos brasileiros os ideólogos nacionalistas iteravam o discurso colonial apenas parcialmente pois tomavam suas proposições menos como conclusão do que como ponto de partida e desta feita consideravam o quadro reversível porque não determinado biologicamente Assim os debates sobre a formação da nacionalida de tinham na linha de frente o imperativo de virilização da raça como expunha um jornalista É precizo que cada brasileiro seja um homem completo678 pois temos aparência de homens mas não o somos679 Dadas as assimetrias entre o regime feudal de cujo colapso despontou o Estado Absolutista na Europa e o sistema colonial de cujo desmonte aflorou o Estado nacional na América latina o lega do colonial de espoliação econômica e mutilação cultural era tomado como motor da emasculação brasileira Segundo o articulista Julio Ve rim em artigo cujo título Tristes legados itera minha defesa da abor dagem póscolonial devido ao impacto do legado colonialista sobre o imaginário intelectual brasileiro o Brasil herdara vícios organicos que obstavam sua independência efetiva Em verdade os horrores dos tempos coloniaes as atrocidades da escravidão e o machiavelismo do imperio não podiam lavrar a face ridente do nosso paiz sem a deixar eivada dos maiores malefícios680 Graça Aranha na sua mag num opus questionou a celebrada noção de Independência nacional na ponderação de um personagem O Brasil é e tem sido sempre colonia argumentava para enfileirar uma plêiade de argumentos re metentes à herança colonial e ao neocolonialismo empreendido pelo capitalismo mercantil É ou não o regimen colonial com o nome disfar çado de nação livre681 As escaras da colonização estariam incrustra das na personalidade dos brasileiros sob a forma de predicados ditos 189 S U M Á R I O femininos como apatia e timidez Em nosso sangue circulam mole culas do despotismo colonial do servilismo escravista e da corrupção imperial de que são marcas essa apathia atrophiante e essa timidez ingenua682 Donde o prognóstico desalentador de que teremos de passar ainda um bom lapso de tempo antes da regeneração total do nosso caracter que quatro seculos de vida vegetativa tornaram acanha do e tímido683 Expoente desse prisma hermenêutico Manoel Bomfim contestava a explicação biológica para a colonização ao argumentar de encontro com o axioma da assimetria natural entre colonizadores e colonizados que os ameríndios não foram vencidos por serem ho mens fracos como julgava o discurso colonial mas porque os portu gueses tinham mais poderio bélico tal que os livros de história elucida riam mais a supremacia ocidental do que os tratados de biologia684 Em inversão da lógica imperialista que estereotipava os brasileiros como efeminados o médico e historiador creditava a emasculação ao pró prio legado colonial Uma vez que a herança constitui antes imposição do que escolha685 ao receber em fatalidade de herança elementos culturais portugueses o país teve que herdar mecanismos gestio nários que arruinariam a vida nacional brasileira Depois de ter sido durante quase dois séculos carne viva para a varejeira lusitana o Bra sil acabou incluindo em sua vida o próprio Estado que de lá emigrara na plenitude da ignomínia bragantina686 Se empregarmos o que um crítico denomina colonialidade do poder para designar a operacio nalidade do legado colonial como forma totalitária de modernidade687 veremos que no Brasil a colonialidade do poder foi acentuada pela especificidade de uma independência que manteve o país vinculado formalmente à antiga metrópole até pelo menos a proclamação da República Corolário da presença bragantina a rapinagem imperial se tornou estruturante da sociedade brasileira pois à espoliação colonial se sucedeu a exploração patronal exercida por classes dirigentes lo cais incapazes de vencer o peso dessa herança688 Essa técnica de gestão do legado colonial ilustra o que Chatterjee denomina discurso derivativo para sustentar que a indecidibilidade do colonizado entre a abrogação e a introjeção de métodos imperialistas resulta em grupos 190 S U M Á R I O hegemônicos que reproduzem relações de poder herdadas do regime colonial enquanto sucedâneos de sua congênere metropolitana689 Que grupos dirigentes constituem metástase da gestão colonial porque in formados pela sua episteme Paulo Freire observaria ao ponderar que oprimidos idealizam ser homens porém devido às contradições em que vivem ser homens é ser opressores690 Se queremos que tudo permaneça como está é preciso que tudo mude sentencia Tancredi em Il Gattopardo691 A célebre passa gem lembra o modo de gestão do legado colonial pelas classes diri gentes brasileiras cuja alteração do regime de governança preservou antigos expedientes como se visasse a rigor manter tudo como dan tes Na Irlanda e no Brasil sucedeu o que Frazegnies chamou noutro contexto de modernização tradicionalista para designar um projeto nacional pretensamente modernizador mas fincado em paradigmas passadistas cuja continuidade obsta o acesso a direitos civis Cati vo dessa contradição fundante tal projeto propala melhorias sociais políticas e culturais porém se sustenta sobre o andaime de estru turas autoritárias patrimonialistas e excludentes692 A acomodação de certos paradigmas intelectuais europeus resulta no que Schwarz denomina ideias fora de lugar porque deslocadas no Brasil já que originalmente fincadas em princípios universalistas de democracia e transplantadas para uma organização social assentada em princípios particularistas de plutocracia Embora o liberalismo não se afinasse com o arranjo socioeconômico brasileiro a oligarquia escravagista o adotou como signo da modernidade a que aspirava porque essa ideologia política moderna lhe fornecia o senso de correção tão ca racterístico dos autoritários693 Por isso nihil novi sub sole quando se constata o peso da herança colonial sobre a organização sóciopo líticocultural brasileira erigida sobre alicerce ideológico herdado de tradição ibérica hierárquica e autoritária monopolizada por homens letrados distribuídos em três domínios na formulação do poder no exercício do poder e no usufruto de benesses do poder694 Uma vez que os oprimidos há muito habituados com o opressor acabam por hospedálo dentro de si próprios695 quando egresso o colonizador 191 S U M Á R I O suas heranças como o patrimonialismo mantiveram vivas as nervu ras da colonização Como sabemos Max Weber ao discriminar o Es tado moderno corolário de processos gradativos de racionalização societária em relação a formatos gestionários precedentes chamou os últimos de patrimonialistas porque balizados pela indistinção entre o público e o privado e no limite pela supressão do primeiro pelo se gundo696 Na esteira do sociólogo alemão Sérgio Buarque de Holan da considerava que a herança ibérica tinha como conceitosíntese o homem cordial que bem compreendido lançaria um facho de luz sobre o funcionamento do poder na sociedade brasileira cuja chave interpretativa consistia a seu ver no legado colonial Ao caráter aven tureiro do português instilado pela ânsia por lucro imediato e sem esforço bastou a monocultura latifundiária assentada na exploração predatória dos recursos naturais em regime escravagista Como as classes sociais se limitavam ao binarismo senhorescravo a estrutura familiar patriarcal calcada em mandonismo e servilismo alicerçou a vita societatis brasileira na qual imperaria o homem cordial que ao transcender os limites do oikos e se impor na pólis encarnaria a co lonização do público pelo privado Essa equivocidade entre esferas resultaria no uso privado de recursos da ordem pública e em contra partida na atuação pública conforme valores do foro privado don de a prevalência de escopos particulares ao preço do bem comum Corolário da indissociação entre as esferas o mecanismo do favo recimento engendraria dependências que escamoteavam a negação de direitos já que o favor possui cunho pessoal e o direito caráter universal Em face de arranjo sociopolítico assentado em modelos personalistas típicos do patriarcado rural no lugar de sociedade civil organizada em torno da impessoalidade estatal Sergio Buarque con siderava a desagregação da herança colonial passo mandatório para a consolidação do republicanismo no país697 Vejase que a feminiza ção como legado colonial é aqui pressuposta mesmo que não refe rida textualmente Não é preciso digressão lexical para depreender o substrato feminizante desse paradigma de homem que regido antes por pathos do que por logos pensa com o coração e para o bem e 192 S U M Á R I O para o mal é passional no amor e no ódio na piedade e na crueza e pode oscilar ex nihilo de um estado anímico a outro O brasileiro substitue nos seus julgamentos a razão pelo sentimento explanava um crítico para sentenciar Julgamos com o coração698 Se Portugal deveria ser proscrito na artesania da identidade brasileira o mesmo não se aplicava a países cujos padrões de mas culinidade se coadunavam com os propósitos da agenda nacionalis ta Em pleno vigor da proposição ciceriana de história como Magistra Vitæ o establishment intelectual brasileiro vasculhava as gavetas do passado no encalço de exemplos inspiradores para tornarem máscu los seus homens eunucoides Enquanto na Irlanda os modelos deve riam ser buscados apenas na própria cultura no Brasil a incorporação do elemento estrangeiro parecia forçosa para a virilização Como o país era alegadamente jovem e por isso pouco sortido em acervo de heróis tais exemplos deveriam ser emulados conforme prescrevia Sylvio Romero dos atributos das nações viris699 Na vitrine dos po vos os europeus envelhecidos lembravam um pretérito esclerosa do ao passo que os Estados Unidos despontavam como paradigma de nação que divisava um horizonte de futuro Não é por outro motivo que lideranças políticas brasileiras vislumbravam na cultura estadu nidense alternativa de ruptura com o legado colonial e alinhamento ao concerto das nações másculas Porque o Brasil deveria se espe lhar nesse masculo espirito de invenção e progresso700 os artífices do republicanismo tomaram de empréstimo sua moldura identitária para formarenformar a nação brasileira que seria inicialmente de nominada Estados Unidos do Brasil teria sua primeira Constituição republicana inspirada na estadunidense e ganharia como bandeira provisória variante auriverde do Stars and Stripes com 20 estrelas sobre quadrado azul701 Se os Estados Unidos constituíam uma na ção digna de ser emulada seus homens por extensão analógica também o seriam Um métron de aferição da virilidade brasileira seria o cinema e com ele os padrões estadunidenses de estética mas culina O cinema tem servido de test para a avaliação da belesa 193 S U M Á R I O masculina do nosso tempo constatava um cronista ao arrazoar que após a curta voga de atores romanticos e efeminados como Rodol fo Valentino veiu a reação moderna da virilidade na qual os artistas mais populares como Clark Gable si não eram bonitos eram fortes e masculos702 Sob influxo da cultura estadunidense o contato com paradigmas de hombridade hollywoodianos tornava mais ostensiva a suposta efeminação do brasileiro As salas de cinema descortinavam uma tela de masculinidades hiperbólicas que acentuavam por con traste a aparente emasculação dos homens locais Monteiro Lobato exemplificava essa invirilidade com a desilusão de mocinhas que nas sessões de cinema namoram heróis belos e fortes porém suspiram de decepção piedosa quando fóra da tela os Chiquinhos Lulus e Pedrocas côr de cuia sem peito sem ombros sem musculos sem masculinidade aproximamse para um corte de namoro703 O intervalo de meados do Oitocentos até a vigência dos regi mes fascistas e estadonovistas foi balizado pela floração dos proje tos nacionais modernos Não à toa nesse mesmo espaço de tempo o discurso racial se consolidou nos centros europeus e se espraiou para zonas periféricas do globo onde nacionalismos anticoloniais imaginavam a nação como ficção étnica porque subscrita pelo mes mo quadro de referências que as identidades raciais Numa formação discursiva em que nação e raça se confundiam porque esta dimen sionava o patamar evolutivo daquela a questão racial se tornou eixo identitário tanto para a consolidação das nações imperiais quanto para a formação das póscoloniais Não por acaso nos idos de 1844 um concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasi leiro com vistas a criar uma narrativa para a nação foi vencido por uma teoria racial O vitorioso Karl Friedrich Philipp von Martius um naturalista alemão inaugurou o mito de que o Brasil seria constituí do por três raças cor de cobre ameríndia branca caucasiana e preta etíope numa tese cuja originalidade consistia na defesa de que a mestiçagem brasileira longe de danosa teria competido para a formação do país uma vez que as raças inferiores seriam 194 S U M Á R I O assimiladas pela branca possante rio que absorveria os pequenos confluentes indígena e negro704 A simbiose raçanação se fazia ver na transversalidade entre diversos campos discursivos do cientí fico ao literário convergentes na produção de uma nacionalidade viril Essa virilidade por evidente prescindia do elemento negro No interior de um projeto nacional que propalava autonomia e emanci pação teorias deterministas raciais fomentavam a estratificação pela diferença705 Num mesmo Brasil onde de um lado propalavase a democracia e de outro beiravase as raias do apartheid social o influente médico baiano Raimundo Nina Rodrigues em proposição lombrosiana de que a mestiçagem desencadeava predisposição à criminalidade defendia em tom segregacionista que as assimetrias civilizacionais entre as raças no Brasil eram de tal ordem que afrodes cendentes não poderiam ser julgados pelo sistema jurídico ordinário e recomendava diferentes códigos penais para diferentes grupos ra ciais706 Se não alvitrava extermínio de grupos alegadamente dege nerados707 a eugenia brasileira pautada no cromatismo epidérmico confiava que o sangue branco depuraria dissolveria e finalmente eli minaria o negro como esperava o cientista João Batista Lacerda di fusor dessa tese no Premier Congrès universel des races em 1911708 Entre os idealizadores do branqueamento havia expectativa de que em três gerações para os mais otimistas ou três séculos para os mais realistas a população seria plenamente branca709 Sob influxo do preceito nacionalista do Rissorgimento italiano que descortinara um horizonte para povos sob jugo estrangeiro projetavase uma raça máscula num futuro hipotético como se iniciada ex nihilo Surgiria no porvir cujo arcano descérro Exhibindo gloriosa ao seculo vindou ro uma raça viril de intelligencias de ouro de caractéres de aço e musculos de ferro710 No mais das vezes contudo os literatos teciam comentários de salentadores É sintomático um texto sobre a crise de homens viris ao modo concretista no formato de um pênis vertido para baixo O signifi cante do pênis impotente como indicação de declínio do falo era ima gem contundente o bastante para denunciar a invirilidade dos homens 195 S U M Á R I O brasileiros Imagem 21 O pavor da emasculação encontrava ex pressão na ficção científica em que aporias projetadas num fu turo distante refletiam anseios de uma República que engatinhava Berilo Neves pioneiro desse gê nero no Brasil explorou a angús tia da feminização em sugestivo conto O exhomem no qual um cientista procede ao experimento de introduzir no próprio corpo ex tracto de ovario fresco e assim feminizase a olhos vistos até que a aplicação de hormônio masculi no reverte o quadro degenerativo e sua hombridade é recobrada711 Naquela formação discursiva a noção de exhomem seria mesmo ficção pois para boa parte dos letrados de extração catastrofista o brasileiro ainda inexistia como homem A julgar pelo propositivo A virili zação da raça de Mário Pinto Serva a missão de formar homens seria tão penosa quanto urgente pois sentenciava o autor o Brasil está feito é preciso agora fazer o brasileiro712 A esperança de salvação da nação repousava prospectivamente sobre os ombros de homens ainda por serem formados Não temos homens diagnosticava um comentador Havendo homens pensavamos nós tudo se transfor mará no Brazil713 Diante da vã expectativa urgia formar verdadeiros homens para salvar a nação O nexo entre mestiçagem e feminização se abrandou na me dida em que nas primeiras décadas do XX a atenção da biopolítica se alargou da questão racial para a sanitária714 A essa altura sobres saía no país medicina menos curativa do que preventiva calcada no enfrentamento pasteuriano de micróbios e bactérias por meio de Imagem 21 Um pênis cabisbaixo 196 S U M Á R I O profilaxia com enfoque higiêni co715 As campanhas sanitaristas capitaneadas por Oswaldo Cruz no princípio do século e por Beli sário Penna em 1918 visavam for tificar uma gente degenerada para responder aos ditames do discur so nacionalista716 pois a popula ção saudável seria condição basi lar para a vitória da nação Com a maior parte de seus habitantes imbecilisados pelo soffrimento brutalisada pela dôr embrutecida pela necessidade e desvairada pela doença nunca uma nação será rica nem bella nem forte717 Por isso a biopolítica intervinha no corpo de cada indivíduo mas mesmo ela era alvo de escárnio vide a ilustração de capa do periódico O Malho na qual Oswaldo Cruz é representado com trejeitos e feições efeminados Imagem 22 CIVILIZAÇÃO E SIBILIZAÇÃO Die Entarteten sind nicht immer Verbrecher Prostituierte Anarchis ten und erklärte Wahnsinnige Sie sind manchmal Schriftsteller und Künstler Aber diese weisen dieselben geistigen und meist auch lei blichen Züge auf wie diejenigen Mitglieder der nämlichen anthro pologischen Familie die ihre ungesunden Triebe mit dem Messer des Meuchelmörder oder der Patrone des Dynamitgesellen statt mit der Feder oder mit dem Pinsel befriedigen Max Nordau Entartung Imagem 22 A cruz de Oswaldo Cruz Na colonização particularmente nos casos da Irlanda e do Brasil é possível observar uma analogia entre imperialismo e casamento A feminização das nações colonizadas e a metáfora matrimonial agiram como parte integrante da anexação exemplificada na Irlanda Obras literárias que exaltam a colonização portuguesa no Brasil consideram o casamento simbólico como elemento central como é possível observar na representação das mulheres indígenas em La Malinche e Pocahontas No período colonial a feminização da América atua como uma estratégia retórica na construção da identidade nacional brasileira logo a sexualização das nativas e a inversão dos papéis de gênero partem desse imaginário atlântico Sobre essa representação das mulheres brasileiras como licenciosas e a associação entre o selvagem e o feminino os relatos de viajantes europeus os reiteram ao descrever as práticas sexuais e comportamentos dos indígenas ressaltando a ênfase na dualidade entre passividade masculina e agência feminina Thevet tece observações sobre o luxo dos povos especialmente das mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres Thevet apud Souza p 104 Representações visuais revelam a ambivalência do discurso colonial que oscila entre a fantasia de dominação e o medo de serem subjugados Além disso na conduta sexual dos homens indígenas há a identificação da feminização moral e física associada à suposta falta de controle sobre os impulsos sexuais A representação patológica dos brasileiros também se associa à melancolia onde o Brasil é descrito como sendo uma terra melancólica Essa patologia simbólica reforça a alterização e feminização dos nativos sendo relacionada à indolência e à incapacidade de explorar a terra de acordo com a perspectiva colonial Pesquisadores sugerem que a melancolia é usada como um dispositivo para marginalizar e categorizar os habitantes nativos do Brasil perpetuando estereótipos e hierarquias coloniais Houve uma grande persistência do estereótipo que associa o feminino às paixões particularmente destacando o papel das especialidades médicas como obstetrícia e ginecologia durante a era vitoriana Nesse contexto a constituição psicofisiológica da mulher era discutida em relação à propensão à insanidade principalmente quando transgrediamse as normas de gênero A histeria considerada um sintoma de crise era utilizada para patologizar comportamentos dissidentes reforçando um binarismo entre masculino e feminino a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a intervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermínio Tais achaques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Souza p 112 Outra dinâmica colonial no contexto brasileiro está relacionada à associação entre virilidade à formação da nacionalidade em teoria a imagética figura emasculada dos brasileiros se deu devido à colonização O discurso sobre a virilidade também abrange debates sobre a formação da nacionalidade a influência da cultura estadunidense e a questão racial A interseção se fazia até mesmo entre questões raciais e discursos sobre saúde e higiene evidenciando como as campanhas sanitárias buscavam fortificar a população brasileira como parte do discurso nacionalista A biopolítica se faz um instrumento para moldar a saúde da população e fortalecer a nação no entanto também são apontadas contradições à biopolítica exemplificadas na representação caricatural de líderes sanitários como Oswaldo Cruz Por fim a ideia de civilização e sibilização exploradas como concepções de degeneração eram aplicadas não apenas a criminosos e doentes mentais mas também a escritores e artistas que eram vistos como portadores de traços indesejáveis para a sociedade Havia uma necessidade de uma ampliação do escopo das teorias de degeneração mostrando como concepções preconcebidas eram aplicadas indiscriminadamente inclusive a figuras do mundo artístico e intelectual Na colonização particularmente nos casos da Irlanda e do Brasil é possível observar uma analogia entre imperialismo e casamento A feminização das nações colonizadas e a metáfora matrimonial agiram como parte integrante da anexação exemplificada na Irlanda Obras literárias que exaltam a colonização portuguesa no Brasil consideram o casamento simbólico como elemento central como é possível observar na representação das mulheres indígenas em La Malinche e Pocahontas No período colonial a feminização da América atua como uma estratégia retórica na construção da identidade nacional brasileira logo a sexualização das nativas e a inversão dos papéis de gênero partem desse imaginário atlântico Sobre essa representação das mulheres brasileiras como licenciosas e a associação entre o selvagem e o feminino os relatos de viajantes europeus os reiteram ao descrever as práticas sexuais e comportamentos dos indígenas ressaltando a ênfase na dualidade entre passividade masculina e agência feminina Thevet tece observações sobre o luxo dos povos especialmente das mulheres que inventam e empregam todos os meios para arrastar o homem aos prazeres Thevet apud Souza p 104 Representações visuais revelam a ambivalência do discurso colonial que oscila entre a fantasia de dominação e o medo de serem subjugados Além disso na conduta sexual dos homens indígenas há a identificação da feminização moral e física associada à suposta falta de controle sobre os impulsos sexuais A representação patológica dos brasileiros também se associa à melancolia onde o Brasil é descrito como sendo uma terra melancólica Essa patologia simbólica reforça a alterização e feminização dos nativos sendo relacionada à indolência e à incapacidade de explorar a terra de acordo com a perspectiva colonial Pesquisadores sugerem que a melancolia é usada como um dispositivo para marginalizar e categorizar os habitantes nativos do Brasil perpetuando estereótipos e hierarquias coloniais Houve uma grande persistência do estereótipo que associa o feminino às paixões particularmente destacando o papel das especialidades médicas como obstetrícia e ginecologia durante a era vitoriana Nesse contexto a constituição psicofisiológica da mulher era discutida em relação à propensão à insanidade principalmente quando transgrediamse as normas de gênero A histeria considerada um sintoma de crise era utilizada para patologizar comportamentos dissidentes reforçando um binarismo entre masculino e feminino a atribuição de doenças incapacitantes visava conforme o contexto justificar a intervenção colonizadora a expropriação territorial ou mesmo o extermínio Tais achaques relacionados no imaginário ocidental ao estereótipo da mulher louca eram usados para acentuar a heteronomia dos colonizados Souza p 112 Outra dinâmica colonial no contexto brasileiro está relacionada à associação entre virilidade à formação da nacionalidade em teoria a imagética figura emasculada dos brasileiros se deu devido à colonização O discurso sobre a virilidade também abrange debates sobre a formação da nacionalidade a influência da cultura estadunidense e a questão racial A interseção se fazia até mesmo entre questões raciais e discursos sobre saúde e higiene evidenciando como as campanhas sanitárias buscavam fortificar a população brasileira como parte do discurso nacionalista A biopolítica se faz um instrumento para moldar a saúde da população e fortalecer a nação no entanto também são apontadas contradições à biopolítica exemplificadas na representação caricatural de líderes sanitários como Oswaldo Cruz Por fim a ideia de civilização e sibilização exploradas como concepções de degeneração eram aplicadas não apenas a criminosos e doentes mentais mas também a escritores e artistas que eram vistos como portadores de traços indesejáveis para a sociedade Havia uma necessidade de uma ampliação do escopo das teorias de degeneração mostrando como concepções preconcebidas eram aplicadas indiscriminadamente inclusive a figuras do mundo artístico e intelectual

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