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25 A Lei 1063903 e o movimento negro aspectos da luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil Amilcar Araujo Pereira Resumo O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos da história do movimento social negro no Brasil que nos permitam observar como temas relacionados à importância da educação e da luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil foram importantes para o próprio processo de constituição deste movimento social e para a criação da Lei 10639 de 2003 que tornou obrigatório o ensino de História e cultura afro brasileira nas escolas de todo o país Este artigo tem como base duas pesquisas complementares a pesquisa sobre a história do movimento negro no Brasil que resultou em minha tese de doutorado intitulada O mundo negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 1970 1995 defendida em 2010 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF e a pesquisa intitulada História e cultura afrobrasileiras nos currículos e nas salas de aula até onde vai a Lei 1063903 no estado do Rio de Janeiro por mim coordenada a partir de outubro de 2010 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Palavraschave Ensino de História História e cultura afrobrasileira Educação Movimento negro A Lei 1063903 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro brasileiras nas escolas de todo o país veio de repente de cima para baixo Teria sido este instrumento legal que complexifica ainda mais o ensino de História no Brasil simplesmente uma imposição do governo aos professores e às escolas Questões como essas continuam sendo ouvidas com frequência entre professores de História em nosso país mesmo após terem se passado mais de oito anos desde a sanção presidencial à referida lei Isto se dá muito em função do ainda pequeno número de pesquisas e do pouco conhecimento produzido e estudado sobre as histórias das lutas dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional Talvez com um maior número de pesquisas e uma maior produção de conhecimentos para serem estudados sobre essas histórias estaríamos contribuindo como determina a lei para o resgate da contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense UFF Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ 26 26 pertinentes à História do Brasil1 A Lei 1063903 é fruto dessas histórias ainda pouco pesquisadas e portanto pouco conhecidas e pouco estudadas em nossas escolas Se essa lei não pode ser pensada como uma construção realizada a partir de uma simples relação de causa consequência como formador de professores de História atuando em cursos de formação inicial e continuada acredito que para melhor entendermos e contextualizarmos o processo de construção dessa lei seja fundamental conhecer a história do movimento negro organizado no Brasil republicano2 Creio ser fundamental como parte da formação de professores de História buscar a compreensão do processo histórico de formação da república brasileira em toda a sua complexidade cotejando as diversas disputas e as diferentes lutas sociais e políticoculturais entre as quais se encontra a luta contra o racismo e a própria constituição do movimento social negro no Brasil Como exemplo dessas lutas dos movimentos sociais que apresentavam várias reivindicações na segunda metade do século XX e especialmente a partir dos anos 1970 em meio ao processo de abertura política durante a ditadura militar podemos encontrar a Carta de Princípios escrita em 1978 pelas lideranças do então recémcriado Movimento Negro Unificado MNU que já reivindicava entre outras coisas a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e a valorização da cultura negra Durante o processo de construção do regime democrático em nosso país na década de 1980 o próprio texto da chamada Constituição cidadã de 1988 já refletia algumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram contemplados na construção dos currículos escolares de História como se pode observar no parágrafo 1º do Art 242 da Constituição que já determinava que O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro Segundo Martha Abreu e Hebe Mattos 1 Como determina o texto da Lei 1063903 no 1º do Artigo 26A O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos a luta dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política pertinentes à História do Brasil 2 Considero o movimento negro organizado como um movimento social que tem como particularidade a atuação em relação à questão racial Sua formação é complexa e engloba o conjunto de entidades organizações e indivíduos que lutam contra o racismo e por melhores condições de vida para a população negra seja através de práticas culturais de estratégias políticas de iniciativas educacionais etc o que faz da diversidade e pluralidade características deste movimento social Amilcar Araújo Pereira 27 27 desde o final da década de 1990 as noções de cultura e diversidade cultural assim como de identidades e relações étnicoraciais começaram a se fazer presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio especialmente na área de história Isso não aconteceu por acaso É na verdade um dos sinais mais significativos de um novo lugar político e social conquistado pelos chamados movimentos negros e antiracistas no processo político brasileiro e no campo educacional em especial ABREU MATTOS 2008 p 6 Podemos identificar portanto a Lei 10639 sancionada em 9 de janeiro de 2003 pelo recémempossado Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva como um dos resultados desse novo lugar político e social e das várias reivindicações dos movimentos negros ao longo das últimas décadas3 O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos da história do movimento social negro no Brasil que nos permitam observar como temas relacionados à importância da educação e à luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil foram importantes para o próprio processo de constituição deste movimento social O presente trabalho tem como base duas pesquisas complementares a pesquisa sobre a história do movimento negro no Brasil que resultou em minha tese de doutorado intitulada O Mundo Negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 defendida em 2010 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF e a pesquisa intitulada História e cultura afrobrasileiras nos currículos e nas salas de aula até onde vai a Lei 1063903 no estado do Rio de Janeiro desenvolvida a partir de outubro de 2010 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ4 O movimento negro e suas lutas pela educação no Século XX Ainda no início do período conhecido como pósabolição antes mesmo da criação da Frente Negra Brasileira FNB que foi a maior organização do movimento social negro na primeira metade do Século XX em 1931 na cidade de São Paulo a questão da educação de pessoas negras já despontava como um tema de grande 3 Vale lembrar que após a mobilização dos movimentos indígenas a Lei 11645 de 10 de março de 2008 tornou ainda mais complexa a discussão sobre os currículos de História no Brasil ao alterar a Lei no 9394 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional de 20 de dezembro de 1996 já modificada pela Lei no 10639 de 9 de janeiro de 2003 para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira e Indígena 4 Ambas as pesquisas receberam apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq a primeira por meio de bolsa de estudos durante o curso de doutorado e a segunda por meio de auxílio financeiro concedido para a realização da pesquisa através do Edital MCTCNPqMECCAPES nº 022010 Ciências Humanas Sociais e Sociais Aplicadas Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 28 28 importância para as organizações de negros em nosso país Entre essas organizações o Centro Cívico Palmares criado em 1926 merece destaque pois segundo George Andrews essa organização teria sido um marco importante para a mobilização política dos negros em São Paulo justamente durante o período que antecede a Revolução de 1930 Nesse sentido o Centro Cívico Palmares viria a contribuir significativamente para a criação mais tarde da FNB também em São Paulo Havia muitos participantes em comum nas duas organizações inclusive em sua liderança já que Arlindo Veiga dos Santos havia sido presidente do Centro Cívico Palmares e fora também o primeiro presidente da FNB e alguns de seus militantes propunham inclusive uma ligação direta entre a criação de ambas as organizações como no trecho abaixo publicado na primeira página do jornal A Voz da Raça de 3 de fevereiro de 1937 A FNB surgiu no Estado de São Paulo graças à perspicácia da alma paulista que desde 1926 já havia fundado o CENTRO CÍVICO PALMARES com o mesmo objetivo da aludida organização grifos do autor George Andrews diz o seguinte sobre as origens do Centro Cívico Palmares Em 1925 O Clarim dAlvorada clamava pela criação do Congresso da Mocidade dos Homens de Côr um grande partido político composto exclusivamente de homens de côr Esses apelos não produziram resultados imediatos mas sem dúvida foram parte do impulso subjacente à fundação em 1926 do Centro Cívico Palmares Assim chamado em homenagem ao quilombo de Palmares do século XVII o centro originalmente destinavase a proporcionar uma biblioteca cooperativa para a comunidade negra A organização logo progrediu e passou a patrocinar encontros e conferências sobre questões de interesse público e em 1928 lançou uma campanha para derrubar um decreto que proibia aos negros ingressar na milícia do Estado a Guarda Civil O centro foi bem sucedido ao requerer do governador Júlio Prestes que suspendesse o decreto e depois o convenceu a derrubar uma proibição similar que impedia as crianças negras de participar de uma competição patrocinada pelo Serviço Sanitário de São Paulo para encontrar o bebê mais robusto e eugenicamente desejável do Estado ANDREWS 1998 p 227 Analisando o trecho acima podemos perceber alguns elementos comuns certas continuidades entre organizações como o Centro Cívico Palmares a Frente Negra Brasileira e mesmo organizações do movimento negro contemporâneo O primeiro seria a busca por uma atuação política e a apresentação de demandas do movimento à sociedade e aos poderes públicos estratégia essa que ganharia maior vulto com a FNB na década de 1930 e que permanece no seio do movimento negro organizado até os dias de hoje Embora os militantes do Centro Cívico Palmares tenham conseguido em 1928 a suspensão do decreto que proibia negros de entrarem na Guarda Civil do estado de Amilcar Araújo Pereira 29 29 São Paulo somente em 1932 foi que os militantes da Frente Negra conseguiram após reunião com o próprio presidente Getúlio Vargas que negros fossem contratados para a Guarda Civil como relata o sociólogo Ahyas Siss A Frente Negra Brasileira FNB obteve algumas conquistas sociais importantes como por exemplo a inclusão de afrobrasileiros nos quadros da Guarda Civil de São Paulo antiga aspiração dos negros paulistas O corpo administrativo da Guarda Civil de São Paulo era composta na sua maioria por imigrantes e negavam a admissão de afrobrasileiros aos quadros dessa instituição Recebidos em delegação pelo então Presidente da República Sr Getúlio Vargas os representantes da FNB apelaram ao Presidente no sentido de ser oferecido aos afrobrasileiros igualdade de acesso àquela instituição Vargas então ordenou à Guarda o imediato alistamento de 200 recrutas afro brasileiros Nos anos 30 cerca de 500 afrobrasileiros ingressaram nos quadros dessa instituição com um deles chegando a ocupar o posto de coronel SISS 2003 p9 Outra continuidade em relação à organização criada em 1926 é a perceptível valorização da história do quilombo dos Palmares como exemplo de luta dos negros no Brasil que ganha outra dimensão para o movimento negro nos anos 1970 como se verá abaixo A importância dada à educação e a valorização de estratégias como a organização de encontros conferências centros de estudos etc também podem ser observadas como elementos característicos do movimento negro brasileiro ao longo de todo o período republicano Um exemplo interessante nesse sentido é a própria continuidade da campanha feita pelo jornal O Clarim dAlvorada em 1929 ainda em prol da realização do primeiro Congresso da Mocidade Negra do Brasil em São Paulo Esse jornal que afirmava ter como função a Congregação da raça para a raça reiniciava a tal campanha na primeira página de sua edição de 3 de março de 1929 com o seguinte texto O Clarim dAlvorada à frente de um pugilo de moços bem intencionados lança com fé de realizar as primeiras sementes para a concretização de um antigo sonho nosso a organização do 1º Congresso da Mocidade Negra do Brasil Isto porque para tratarmos de assuntos de grandes vultos e de interesses patrióticos e raciais é nosso dever é dever de todos negros e mestiços sensatos apoiarem esta iniciativa É interessante notar que já naquele momento se via como estratégica a procura pela aglutinação de negros e mestiços em torno de assuntos de interesses raciais Fato que continua a ser buscado pelo movimento negro até os dias de hoje Assim como também é interessante perceber que a educação dos negros também já ocupava um lugar de destaque na pauta de reivindicações como se verá no trecho abaixo Esses Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 30 30 componentes da Mocidade Negra seriam segundo o jornal os pioneiros da raça heróica e menoscabada dentro de sua própria pátria E na edição de 7 de abril de 1929 o jornal continuava a campanha com o seguinte discurso Em quarenta anos de liberdade além do grande desamparo que foi dado aos nossos maiores temos a relevar com paciência a negação de certos direitos que nos assistem como legítimos filhos da grande pátria do cruzeiro Se os conspícuos patriotas desta República não cuidaram da educação dos negros o nosso congresso tratará desse máximo problema que está latente na questão nacional Para os relegados filhos e netos dos épicos e primitivos plantadores do café que foi e é a base de toda a riqueza econômica do nosso país essa é a marcha do porvir O Congresso da Mocidade Negra tem que se realizar muito embora os trânsfugas pensem que a raça não esteja preparada para o certame dentro da estabilidade essencial Porém a raça espoliada fará o seu congresso entre as angústias e as glórias do seu antepassado baseandose nas esperanças de uma nova redenção para a família negra brasileira Grifos do autor Esse Congresso da Mocidade Negra proposto pelo grupo do jornal O Clarim dAlvorada nunca aconteceu Mas a própria proposição e a campanha construída em torno dela podem ser vistas como referenciais para a realização anos mais tarde de vários congressos de negros como o I Congresso do Negro Brasileiro promovido pelo Teatro Experimental do Negro TEN sob a liderança de Abdias do Nascimento no Rio de Janeiro em 1950 como nos informa o próprio Abdias Minhas primeiras experiências de luta foram na Frente Negra Brasileira Alguns dos dirigentes da FNB desde a década de vinte se esforçavam tentando articular um movimento Houve assim um projeto de reunir o Congresso da Mocidade Negra em 1928 em São Paulo o que não chegou a se concretizar Somente em 1938 eu e outros cinco jovens negros realizamos o I Congresso AfroCampineiro e em 1950 o Teatro Experimental do Negro promoveu o I Congresso do Negro Brasileiro no Rio de Janeiro5 POERNER 1976 A trajetória política de Abdias do Nascimento sempre relacionada à questão racial no Brasil pode ser vista ela própria como um elemento de continuidade no movimento negro que se constituiu nos diferentes períodos do Brasil republicano Nascido em Franca no estado de São Paulo em 1914 Abdias participou como um jovem militante da Frente Negra Brasileira Em 1944 ele foi a principal liderança na criação do Teatro Experimental do Negro e em 1978 também participou da criação do Movimento Negro Unificado MNU em São Paulo Amauri Mendes Pereira 2008 e Petrônio Domingues 2007 identificam três diferentes fases do movimento negro brasileiro com características distintas ao longo do Século XX e Abdias do 5 Trecho do depoimento de Abdias do Nascimento Ver POERNER 1976 Amilcar Araújo Pereira 31 31 Nascimento participou de maneira ativa em todas elas a primeira do início do século até o Golpe do Estado Novo em 1937 a segunda do período que vai do processo de redemocratização em meados dos anos 1940 até o Golpe militar de 1964 e a terceira o movimento negro contemporâneo que surge na década de 1970 e ganha impulso após o início do processo de Abertura política em 1974 A primeira fase teria tido como ápice a criação e a consolidação da FNB como uma força política em âmbito nacional exemplificada na sua transformação em partido político em 1936 Essa primeira fase foi encerrada logo após a implantação do Estado Novo em 1937 pelo presidente Getúlio Vargas e o consequente fechamento da FNB juntamente com todas as outras organizações políticas no país O movimento social negro brasileiro nessa primeira fase teria como principal característica a busca pela inclusão do negro na sociedade com um caráter assimilacionista sem a busca pela transformação da ordem social outra característica era a existência de um nacionalismo declarado pela Frente Negra Brasileira e por outras organizações da época Essas duas características podem ser vislumbradas no próprio órgão de divulgação da FNB o jornal A Voz da Raça n 1 de 18 de março de 1933 que trazia o seguinte texto em sua primeira página A Nação acima de tudo E a Nação somos nós com todos os outros nossos patrícios que conosco em quatrocentos anos criaram o Brasil O Frentenegrino como o negro em geral deve estar atento nas suas reivindicações de direitos que definimos em nosso manifesto do ano passado mas para que seja digno de alcançar esses legítimos direitos no campo social econômico e político é mister cumpra os Mandamentos da Lei que definem antes de tudo os deveres do homem base da legitimidade dos direitos do homem É evidente que esse nacionalismo exacerbado não era completamente hegemônico no movimento negro da época tendo em vista por exemplo o grupo do jornal O Clarim dAlvorada que circulou entre 1924 e 1932 e que tinha como principal liderança José Correia Leite6 O movimento negro brasileiro na década de 1930 também era plural e complexo A Frente Negra sem dúvida alguma tornouse a maior expressão desse movimento em sua época até mesmo em função da dimensão nacional e do grande número de participantes que conquistou entre 1931 e 1937 que segundo depoimentos da época variavam entre 40 e até 200 mil sócios Mas além da existência 6 José Correia Leite nascido em São Paulo em 1900 foi também um dos fundadores da FNB em 1931 Contudo desligouse da FNB ainda no momento da aprovação do estatuto da entidade por divergir de sua inclinação ideológica e fundou então o Clube Negro de Cultura Social em 1932 Participou da Associação do Negro Brasileiro fundada em 1945 Em 1954 fundou em São Paulo com outros militantes a Associação Cultural do Negro ACN e em 1960 participou da fundação da revista Niger Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 32 32 de outras organizações menores e distintas houve ainda algumas dissidências da própria FNB Correia Leite também foi fundador da FNB em 1931 Porém logo durante a aprovação dos estatutos da organização ele rompeu com a Frente Negra em função de sua discordância em relação à inclinação fascista que a organização estava tomando como ele mesmo contou em seu livro Nós do grupo dO Clarim dAlvorada no dia em que foram aprovados os estatutos finais fomos combater porque não concordávamos com as idéias do Arlindo Veiga dos Santos Era um estatuto copiado do fascismo italiano Pior é que tinha um conselho de 40 membros e o presidente desse conselho era absoluto A direção executiva só podia fazer as coisas com ordem desse conselho O presidente do conselho era o Arlindo Veiga dos Santos o absoluto LEITE 1992 p 94 Como disse acima a FNB era uma organização com forte caráter nacionalista cuja estrutura lembrava a de agremiações de inclinação fascista como a Ação Integralista Brasileira AIB fundada em outubro de 1932 Seu estatuto datado de 12 de outubro de 1931 previa um grande conselho e um presidente que era a máxima autoridade e o supremo representante da Frente Negra Brasileira como alertava Correia Leite Seu jornal A Voz da Raça que circulou entre 1933 e 1937 mantinha em destaque no cabeçalho a frase Deus Pátria Raça e Família diferenciandose do principal lema integralista apenas no termo Raça Correia Leite fundou com outros militantes outra organização o Clube Negro de Cultura Social em 1º de julho de 1932 em São Paulo Ainda em 1932 foi criada também em São Paulo a Frente Negra Socialista outra dissidência da FNB Já o contemporâneo de José Correia Leite e também fundador da FNB Francisco Lucrécio lembrou em entrevista concedida a Márcio Barbosa na década de 1980 de contatos da FNB com Angola e com o movimento de Marcus Garvey Mas seu depoimento mostra que a aproximação com a África por exemplo não passava pelos planos de grande parte do movimento nos anos 1930 Acredito que seja possível que esse nacionalismo exacerbado tenha afastado afinidades com a África Como dizia Francisco Lucrécio anos depois na Frente Negra não tinha essa discussão de volta à África Tínhamos correspondência com Angola conhecíamos o movimento de Marcus Garvey mas não concordávamos Nós sempre nos afirmamos como brasileiros e assim nos posicionávamos com o pensamento de que os nossos antepassados trabalharam no Brasil se sacrificaram lutaram desde Zumbi dos Palmares Amilcar Araújo Pereira 33 33 aos abolicionistas negros então nós queríamos nos afirmaríamos sim como brasileiros7 BARBOSA 1998 p 46 A afirmação como brasileiro feita por Francisco Lucrécio reforça aqui outro aspecto importante no processo de constituição do movimento negro no Brasil da primeira metade do Século XX a luta por igualdade na sociedade brasileira Afinal de contas seriam todos brasileiros A segunda fase do movimento negro brasileiro no Século XX para Pereira e Domingues teve início no período final do Estado Novo 19371945 Petrônio Domingues 2007 cita o Teatro Experimental do Negro e a União dos Homens de Cor UHC fundada em Porto Alegre em 1943 e com ramificações em 11 estados da federação como sendo as principais organizações dessa segunda fase do movimento Antônio Sérgio Guimarães referindose ao período de redemocratização em 1945 e às organizações negras criadas naquele contexto histórico afirma que o Teatro Experimental do Negro é sem dúvida a principal dessas organizações GUIMARÃES 2002 p 141 e diz o seguinte em relação ao TEN De fato os propósitos de integração do negro na sociedade nacional e no resgate da sua autoestima foram marcas registradas do Teatro Experimental do Negro Através do teatro do psicodrama e de concursos de beleza o TEN procurou não apenas denunciar o preconceito e o estigma de que os negros eram vítimas mas acima de tudo oferecer uma via racional e politicamente construída de integração e mobilidade social dos pretos pardos e mulatos GUIMARÃES 2002 p 93 Sérgio Costa afirma que o TEN buscava inspiração no movimento Négritude que teve enorme importância nos debates intelectuais contra o racismo e o colonialismo na primeira metade do Século XX principalmente no mundo francófono e diz ainda que No Brasil o movimento articulado pelo TEN e organizado em torno de simpósios e oficinas de teatro nunca teve as características de uma organização que contasse com uma base ampla Não obstante revestiuse de enorme importância no âmbito da mobilização de intelectuais sobretudo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro COSTA 2006 p 143 Nesse sentido destacamse a realização pelo TEN da I e da II Convenção Nacional do Negro 1945 e 1946 e do I Congresso do Negro Brasileiro em 1950 Michael Hanchard 2001 afirma que o TEN foi fundado com o objetivo primário de ser uma companhia de produção teatral mas que assumiu outras funções culturais e 7 Francisco Lucrécio nascido em Campinas em 1909 foi diretor da FNB de 1934 a 1937 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 34 34 políticas logo depois que foi criado e que além de montar peças como O Imperador Jones de Eugene ONeill 1945 e Calígula de Albert Camus 1949 o TEN foi a força propulsora do jornal Quilombo 19481950 e de campanhas de alfabetização em pequena escala além de cursos e iniciação cultural entre 1944 e 1946 HANCHARD 2001 p 129 É interessante observar a própria explicação dada por Abdias do Nascimento sobre o episódio que o teria motivado a criar o Teatro Experimental do Negro Várias interrogações suscitaram ao meu espírito a tragédia daquele negro infeliz que o gênio de Eugene ONeill transformou em O Imperador Jones Isso acontecia no Teatro Municipal de Lima capital do Peru onde me encontrava com os poetas Efraín Tomás Bó Godofredo Tito Iommi e Raul Young argentinos e o brasileiro Napoleão Lopes Filho Ao próprio impacto da peça juntavase outro fato chocante o papel do herói representado por um ator branco tingido de preto Àquela época 1941 eu nada sabia de teatro economista que era e não possuía qualificação técnica para julgar a qualidade interpretativa de Hugo DEvieri Porém algo denunciava a carência daquela força passional específica requerida pelo texto e que unicamente o artista negro poderia infundir à vivência cênica desse protagonista pois o drama de Brutus Jones é o dilema a dor as chagas existenciais da pessoa de origem africana na sociedade racista das Américas Por que um branco brochado de negro Pela inexistência de um intérprete dessa raça Entretanto lembrava que em meu país onde mais de vinte milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes na época jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor Não seria então o Brasil uma verdadeira democracia racial Minhas indagações avançaram mais longe na minha pátria tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos deveria ser normal a presença do negro em cena não só em papéis secundários e grotescos conforme acontecia mas encarnando qualquer personagem Hamlet ou Antígona desde que possuísse o talento requerido NASCIMENTO 2004 p 209 Já a União dos Homens de Cor UHC tinha outra perspectiva de ação um tanto distante da do TEN que embora também oferecesse curso de alfabetização para os atores negros pautava sua atuação no campo do protesto político e cultural A UHC tinha uma perspectiva de atuação social mais próxima a da FNB no sentido da busca de integração do negro na sociedade brasileira através de sua educação e de sua inserção no mercado de trabalho Embora a FNB tenha conseguido uma dimensão muito mais significativa em termos de número de membros associados a UHC também se expandiu por várias regiões do Brasil Petrônio Domingues diz o seguinte em relação à União dos Homens de Cor Amilcar Araújo Pereira 35 35 Também intitulada Uagacê ou simplesmente UHC foi fundada por João Cabral Alves em Porto Alegre em janeiro de 1943 Já no primeiro artigo do estatuto a entidade declarava que sua finalidade central era elevar o nível econômico e intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional para tornálas aptas a ingressarem na vida social e administrativa do país em todos os setores de suas atividades A UHC era constituída de uma complexa estrutura organizativa A diretoria nacional era formada pelos fundadores e dividiase nos cargos de presidente secretáriogeral inspetor geral tesoureiro chefe dos departamentos de saúde e educação consultor jurídico e conselheiros ou diretores DOMINGUES 2007 p 108 Da mesma forma que na fase anterior como podemos perceber nos trechos citados acima a inclusão da população negra na sociedade brasileira tal como ela se apresentava continuava sendo uma característica importante do movimento Mas por outro lado a valorização de experiências vindas do exterior principalmente da África e dos Estados Unidos aparece com frequência em fontes das décadas de 1940 e 1950 O próprio episódio narrado por Abdias do Nascimento acima que o motivou a criar o TEN no Brasil se deu em solo estrangeiro e assistindo a uma peça de um autor norte americano que tratava da situação dos negros nos Estados Unidos Como Verena Alberti e eu demonstramos em artigo publicado em 2007 sobre o tema já em dezembro de 1948 o primeiro número do jornal Quilombo fundado por Abdias do Nascimento dedicou quatro parágrafos ao periódico francês Présence Africaine que tinha em sua direção o intelectual senegalês Alioune Diop8 Seguindo a mesma linha Quilombo publicou em janeiro de 1950 um resumo de Orfeu negro como ficou conhecida a introdução de Jean Paul Sartre à antologia de poetas negros de língua francesa organizada pelo senegalês Léopold Senghor em 1948 Nessa mesma época poemas de Léopold Senghor do martinicano Aimé Césaire e do guianense Léon Damas eram declamados na Associação Cultural do Negro ACN outra organização criada em 1954 por José Correia Leite em São Paulo9 ALBERTI PEREIRA 2007c p 28 José Correia Leite lembrou ainda em entrevista concedida na década de 1980 ao poeta e militante Luiz Silva conhecido como Cuti de um protesto organizado pela ACN em 1958 contra a discriminação racial na África do Sul e nos Estados Unidos Nesse evento foi sugerida a criação de um comitê de solidariedade aos povos africanos Esse protesto acabou resultando na criação de contatos entre a ACN e a principal 8 O jornal Quilombo era publicado no Rio de Janeiro e circulou entre 1948 e 1950 Ver a edição fac similar do jornal Quilombo 2003 21 9 A Associação Cultural do Negro foi criada em 1954 em resposta ao fato de nenhum negro ter sido indicado como importante para a formação da cidade de São Paulo durante as comemorações do quarto centenário da cidade mas só começou a funcionar em 1956 Ver LEITE 1992167 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 36 36 organização na luta pela libertação do colonialismo português em Angola como contou em sua entrevista Correia Leite Creio que essa proposta deve ter chegado à África portuguesa pois nós passamos a receber publicações do Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA não endereçadas à Associação mas ao Comitê de Solidariedade aos Povos Africanos10 LEITE 1992 p 175 Correia Leite sintetizou dessa forma o significado da descoberta da África para os negros brasileiros no início dos anos 1960 1960 foi considerado o ano africano Foi quando ocorreu o maior número de independências dos países da África negra Toda a atenção estava voltada para esses acontecimentos Inclusive na África portuguesa estava começando o movimento de libertação de Angola e Guiné Bissau11 Aquela movimentação deixou os negros daqui entusiasmados A África era bem desconhecida Parecia que estava sendo descoberta naquele momento LEITE 1992 p 177 É difícil estabelecer uma cronologia fechada que enquadre a constituição do movimento negro brasileiro ao longo do Século XX em fases muito definidas na medida em que entre as diferentes fases deste movimento durante todo esse período destacadas acima é possível constatar a presença de muitos elementos comuns muitas continuidades em relação às formas de atuação e estratégias adotadas por ativistas e organizações como já foi visto acima Ao mesmo tempo é possível perceber a existência de certos intercâmbios ocorridos através de militantes mais velhos e jovens que informaram e contribuíram para a construção de organizações negras em diversos momentos e regiões do Brasil Este fato torna ainda mais complexa a constituição do movimento negro brasileiro ao longo das diferentes épocas e em diferentes contextos históricos 10 O Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA foi fundado em 1956 quando foi publicado seu primeiro manifesto 11 Em Angola a luta pela independência começou no início dos anos 1960 com a participação de três organizações divergentes o MPLA de orientação marxista e prósoviético a Frente Nacional de Libertação de Angola FNLA anticomunista apoiada pelos Estados Unidos e pela República Democrática do Congo e a União Nacional para a Independência Total de Angola Unita inicialmente de orientação maoísta e depois anticomunista apoiada pelo regime sulafricano do apartheid Em 11 de novembro de 1975 o MPLA proclamou a independência e seu líder Agostinho Neto tornouse presidente da República Popular de Angola que adotou o regime socialista Em GuinéBissau a luta pela libertação começou em 1956 com a fundação do Partido para a Independência da Guiné Portuguesa e Cabo Verde PAIGC por Amilcar Cabral 19241973 O braço armado do partido desencadeou a guerra pela libertação em 1961 contra as tropas coloniais portuguesas proclamando a independência do país em 26 de setembro de 1973 Em 10 de setembro de 1974 o governo português entregou oficialmente o poder ao PAIGC Amilcar Araújo Pereira 37 37 A tradição de luta contra o racismo que contou com diferentes tipos de organizações políticas e culturais em vários setores da população negra brasileira desde o final do Século XIX foi importante para o surgimento em meio a um período de ditadura militar do movimento negro contemporâneo no Brasil no início da década de 1970 No entanto podemos encontrar várias características específicas nesse movimento contemporâneo como por exemplo o fato de que diferentemente de momentos anteriores a oposição ao chamado mito da democracia racial e a construção de identidades políticoculturais negras foram o fundamento a partir do qual se articularam as primeiras organizações Sobre a relação entre a constituição do movimento negro e a denúncia do mito da democracia racial Joel Rufino dos Santos diz o seguinte O movimento negro no sentido estrito foi na sua infância 193145 uma resposta canhestra à construção desse mito Canhestra porque sua percepção das relações raciais da sociedade global e das estratégias a serem adotadas permanecem no ventre do mito como se fosse impossível olhálo de fora e de fato historicamente provavelmente o era Para as lideranças do movimento negro catalisadas pela imprensa negra que desembocou na FNB o preconceito antinegro era com efeito residual tendendo para zero à medida em que o negro vencesse o seu complexo de inferioridade e através do estudo e da autodisciplina neutralizasse o atraso causado pela escravidão Na sua visão comprovando a eficácia do mito o preconceito era estranho à índole brasileira e enfim a miscigenação que marcou o quadro brasileiro nos livraria da segregação e do conflito que assinalavam o quadro norteamericano sendo pequeno aqui portanto o caminho a percorrer Foi só nos anos 1970 que o movimento negro brasileiro decolou para atingir a densidade e amplitude atuais SANTOS 1985 p 289 A denúncia do mito da democracia racial como um elemento fundamental para a constituição do movimento a partir da década de 1970 pode ser observada por exemplo em todos os documentos do Movimento Negro Unificado MNU criado em 1978 em São Paulo e que contou com a participação de lideranças e militantes de organizações de vários estados Desde a Carta Aberta à População divulgada no ato público de lançamento no MNU realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em 7 de julho de 1978 podemos encontrar em todos os documentos a frase por uma verdadeira democracia racial ou por uma autêntica democracia racial É importante ressaltar que o surgimento do MNU em 1978 é considerado tanto pelos próprios militantes quanto por muitos pesquisadores como o principal marco na formação do movimento negro contemporâneo no Brasil na década de 1970 Reconhecendo a criação do MNU como um marco fundamental na transformação do Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 38 38 movimento negro brasileiro em meio a um contexto históricosocial de lutas contra a ditadura militar então vigente no país e comparandoo com organizações anteriores como a FNB e o TEN Sérgio Costa afirma que o MNU se constitui como um movimento popular e democrático e acrescenta Além do caráter popular ausente no projeto do Teatro Experimental do Negro o MNU se distingue do TEN por sua crítica ao discurso nacional hegemônico Isto é enquanto o TEN defendia a plena integração simbólica dos negros na identidade nacional híbrida o MNU condena qualquer tipo de assimilação fazendo do combate à ideologia da democracia racial uma das suas principais bandeiras de luta visto que aos olhos do movimento a igualdade formal assegurada pela lei entre negros e brancos e a difusão do mito de que a sociedade brasileira não é racista teria servido para sustentar ideologicamente a opressão racial Assim os conceitos consciência e conscientização passam a ocupar desde a fundação do MNU lugar decisivo na formulação das estratégias do movimento COSTA 2006 p 144 A Carta de princípios do MNU criada nos meses seguintes ao ato público ainda em 1978 é um bom exemplo do esforço de definição do que seria um movimento negro e do que era ser negro e também nos possibilita observar algumas diferenças fundamentais em relação às tentativas anteriores de organização da população negra no Brasil Nós membros da população negra brasileira entendendo como negro todo aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça reunidos em Assembléia Nacional convencidos da existência de discriminação racial marginalização racial mito da democracia racial resolvemos juntar nossas forças e lutar pela defesa do povo negro em todos os aspectos por maiores oportunidades de emprego melhor assistência à saúde à educação à habitação pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil valorização da cultura negra extinção de todas as formas de perseguição e considerando enfim que nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem nos solidarizamos com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade brasileira e com a luta internacional contra o racismo Por uma autêntica democracia racial Pela libertação do povo negro MNU 1988 p 19 Uma característica importante do movimento negro contemporâneo articulada diretamente à questão da importância da educação para a população negra vista aqui como uma continuidade ao longo do processo de constituição do movimento ao longo do Século XX é a reivindicação pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil contida na Carta de princípios do MNU Essa foi a própria razão do surgimento de uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo brasileiro o Grupo Palmares Este Grupo foi fundado por Oliveira Silveira junto com Amilcar Araújo Pereira 39 39 outros militantes em 1971 em Porto Alegre e teve como primeiro e principal objetivo propor o 20 de novembro dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695 como a data a ser comemorada pela população negra em substituição ao 13 de maio dia da abolição da escravatura fato que engloba uma ampla discussão sobre a valorização da cultura política e identidade negras e provoca objetivamente uma reavaliação sobre o papel das populações negras na formação da sociedade brasileira na medida em que desloca propositalmente o protagonismo em relação ao processo da abolição para a esfera dos negros tendo Zumbi como referência recusando a imagem da princesa branca benevolente que teria redimido os escravos O 13 de maio passou então a ser considerado pelo movimento negro como um dia nacional de denúncia da existência de racismo e discriminação em nossa sociedade O Grupo Palmares elegeu o Quilombo dos Palmares como passagem mais importante da história do negro no Brasil e realizou ainda em 1971 o primeiro ato evocativo de celebração do 20 de Novembro Seguindo a proposição do Grupo Palmares durante a segunda Assembleia Nacional do MNU realizada no dia 4 de novembro de 1978 em Salvador foi estabelecido o 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra que hoje é feriado em mais de 200 municípios do país como podemos observar no documento divulgado ao final da Assembleia12 Nós negros brasileiros orgulhosos por descendermos de ZUMBI líder da República Negra de Palmares que existiu no estado de Alagoas de 1595 a 1695 desafiando o domínio português e até holandês nos reunimos hoje após 283 anos para declarar a todo povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data 20 de Novembro DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA Dia da morte do grande líder negro nacional ZUMBI responsável pela PRIMEIRA E ÚNICA tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática ou seja livre e em que todos negros índios brancos realizaram um grande avanço político e social Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos GONZALEZ 1982 p 51 Transcrito como no documento original Militantes professores agentes da lei à guisa de conclusão Muitas estratégias foram utilizadas por militantes negros em todo o território nacional na luta pela tão necessária reavaliação do papel do negro na História do 12 Um fato interessante em relação a essa Assembléia que nos leva a contextualizar a história do movimento negro é que a sua realização foi proibida pela polícia amparada pela Lei de Segurança Nacional que no DecretoLei nº 510 de 20 de março de 1969 determinava em seu artigo 33º a pena de detenção de 1 a 3 anos por incitar ao ódio ou à discriminação racial A Assembléia acabou sendo realizada nas instalações do Instituto Cultural BrasilAlemanha ICBA graças à intervenção de seu diretor Roland Shaffner Como o ICBA era considerado território alemão a polícia brasileira não pôde impedir a realização da Assembleia Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 40 40 Brasil Entre as estratégias bemsucedidas podemos observar a adotada desde o início da década de 1980 por Maria Raimunda Mundinha Araujo então presidenta do CCN do Maranhão13 ao atuar diretamente nas escolas não somente dando palestras e informando professores e alunos sobre as histórias dos negros no Brasil mas também produzindo material didático para este fim Mundinha Araujo e outros militantes produziram cartilhas no Maranhão que foram inclusive publicadas por exemplo no início da década de 1980 em Belo Horizonte Minas Gerais como se pode observar abaixo na reprodução da capa e contracapa de uma dessas cartilhas elaboradas por Mundinha no CCN do Maranhão Sobre a atuação direta do movimento negro nas escolas Mundinha Araujo contou em entrevista o seguinte Nós achávamos que a luta era dentro das escolas era fazendo parcerias Em 1982 nós fizemos um convênio com a Secretaria de Educação porque nós queríamos a participação dos professores Eles colocaram os professores à disposição para participarem da Semana do Negro A gente fazia assim Vamos para o bairro do João Paulo Todos os professores das escolas que ficavam no bairro do João Paulo e adjacências iam para o mesmo local E nós distribuíamos o material que a Secretaria de Educação também ajudou a rodar deu o papel e tudo E os de nós que seguravam mais eram os professores eu Carmem Lúcia a Fátima minha irmã o Carlão o Luizão 14 Foi algo que depois nós fizemos um documento e apresentamos lá no encontro da Candido Mendes no Rio de Janeiro em 1982 Me convidaram para participar de uma mesa redonda chamada Movimento negro nos anos 1980 Quando fiz o relato depois eles disseram Incrível você esteve em 1979 conversando conosco no IPCN e nós lhe demos orientação Hoje você chega aqui e mostra um movimento que ninguém está fazendo E lá no Maranhão Todo mundo ficou encantado que a gente estivesse principalmente trabalhando o aspecto da educação que a gente considerava prioridade 13 Maria Raimunda Mundinha Araújo nasceu em São Luís em 8 de janeiro de 1943 Formada em comunicação social pela Federação das Escolas Superiores do Maranhão em 1975 Mundinha Araújo como é conhecida foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN em 1979 a primeira vicepresidente da entidade de 1980 a 1982 e ocupou a presidência no mandato seguinte de 1982 a 1984 Foi diretora do Arquivo Público do Estado do Maranhão entre 1991 e 2003 A entrevista citada abaixo foi gravada em 1092004 em São Luís do Maranhão durante a realização da pesquisa História do movimento negro no Brasil constituição de acervo de entrevistas de história oral implementada por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas CPDOCFGV entre 2003 e 2007 14 Carlão é Carlos Benedito Rodrigues da Silva antropólogo militante do movimento negro doutor em ciências sociais pela PUC de São Paulo e professor da Universidade Federal do Maranhão desde 1981 E Luizão é Luiz Alves Ferreira um dos fundadores do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN em 1979 e primeiro presidente da entidade de 1980 a 1982 Médico e mestre em patologia humana pela Universidade Federal da Bahia em 1992 foi secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC regional do Maranhão Amilcar Araújo Pereira 41 41 Magno Cruz que também foi presidente do CCN de 1984 a 198815 contou em sua entrevista sobre como essa estratégia de atuação nas escolas também acabava sendo importante para a formação dos próprios militantes em função do ineditismo daquele tipo de trabalho Então como íamos para as escolas Mandávamos um ofício com antecedência e tinha uma negociação com a diretoria da escola Algumas escolas eram sensíveis a isso quando tinham uma diretora negra que entendia Porque tudo era novidade ninguém discutia a questão dos negros Então ir para a escola falar da história do negro desmistificar a história oficial não era uma coisa fácil Havia algumas barreiras Teve vez que a Mundinha fez intercâmbio com a própria Secretaria de Educação aí as coisas ficavam até oficiais No início até pela inexperiência que se tinha eu particularmente ia para essas palestras só para ouvir porque tudo era novidade para mim e tinha muitas perguntas que eu ainda não sabia responder O pessoal perguntava E 15 Magno Cruz nasceu em São Luís em 25 de maio de 1951 Engenheiro formado pela Universidade Estadual do Maranhão em 1976 é funcionário da Companhia de Água e Esgotos do Maranhão CAEMA desde 1980 Foi presidente do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN por dois mandatos consecutivos de 1984 a 1988 À época da entrevista era presidente do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e diretor de formação do Sindicato dos Urbanitários do Maranhão filiado à Central Única dos Trabalhadores CUT A entrevista citada foi gravada em 892004 em São Luís do Maranhão durante a realização da pesquisa História do movimento negro no Brasil constituição de acervo de entrevistas de história oral implementada por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas CPDOCFGV Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 42 42 na África do Sul como é o apartheid Eu não sabia Mas eu acho que era interessante porque a partir das palestras que a gente ia dar nas escolas a gente via as nossas limitações e procurava aprender e estudar Quando foi na nossa gestão a partir de 1985 nós continuamos esse trabalho E o que fizemos Nós ampliamos essas equipes chegamos a ter umas 15 20 equipes de três pessoas Geralmente tinha um que já tinha um desenvolvimento uma experiência em palestras em dar aulas e botava duas pessoas para aprender porque na realidade era uma prática também de ensinar novos militantes nesse trabalho Mas tivemos muitas barreiras Tinha escola em que a gente chegava já tinha mandado o ofício há um mês e o diretor não queria a palestra A gente tinha que ameaçar denunciar na Secretaria de Educação Não foram fáceis esses momentos Depois a coisa se tornou mais rotineira aí já tinha colégio que convidava a gente até as escolas particulares escolas como o Marista Dom Bosco que são escolas que têm pouquíssimos negros mas que chamavam a gente também A estratégia de atuar no âmbito da educação foi muito utilizada por organizações negras em vários estados brasileiros Nesse sentido a produção de cartilhas como as de Mundinha Araujo do CCN para informar não só alunos e professores nas escolas mas os próprios militantes e a sociedade como um todo foi uma prática recorrente nas organizações negras de norte a sul do Brasil E essas cartilhas circulavam nos diferentes estados em função das redes de relações estabelecidas pelos militantes de todo o país principalmente na década de 1980 E essas publicações tinham o objetivo primeiro de apresentar aspectos pouquíssimos conhecidos da história do Brasil especialmente as histórias dos negros no Brasil Os próprios títulos são bastante sugestivos nesse sentido O Caderno de descolonização da nossa história Zumbi João Cândido e os dias de hoje publicado por Amauri Mendes Pereira e Yedo Ferreira militantes negros no Rio de Janeiro e a cartilha citada do CCN do Maranhão Esta história eu não conhecia ambos de 1980 são dois exemplos emblemáticos do que se quer dizer aqui O primeiro traz relatos históricos baseados nos livros Palmares a guerra dos escravos de Décio Freitas e A Revolta da Chibata de Edmar Morel e na apresentação da cartilha os autores dizem o seguinte Juntamos os dois relatos históricos a alguns dos resultados de reflexões nossas sobre a história do Brasil e resolvemos editálos com o objetivo principal de alargar o máximo possível o conhecimento destes fatos históricos tão significativos até onde dificilmente chegam os livros Já a cartilha do CCN aliando a informação sobre a história dos negros no Brasil a uma tentativa de aumento da autoestima por parte das crianças negras adotava a seguinte estratégia uma mãe contava histórias positivas dos negros como as dos quilombos por exemplo para explicar o processo da abolição da escravatura ao menino negro que acabara de brigar Amilcar Araújo Pereira 43 43 na escola com um menino branco que havia dito a seguinte frase após a briga Negrinho Culpada disso é a princesa Isabel Essa cartilha do CCN como foi dito acima circulou em muitos estados brasileiros Da mesma forma outras cartilhas circularam e contribuíram para a própria consolidação do movimento negro no Brasil na década de 1980 A contínua luta dos militantes negros ao longo do século passado tanto no que diz respeito à importância da educação quanto à luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil tornou possível a construção de resultados visíveis para o conjunto da população brasileira nos anos recentes como por exemplo a criação e aprovação da Lei 10639 em 9 de janeiro de 2003 Acredito que ao problematizar o forte caráter eurocêntrico tão presente na construção histórica da disciplina História em nosso país e ao tornar possível a complexificação dos currículos e a inserção de diferentes histórias e culturas nos cotidianos escolares a implementação da Lei 1063903 tem potencial para promover a construção de uma prática docente que questione preconceitos e que seja pautada pelos princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças Mas para tanto se faz necessária a efetiva incorporação no cotidiano escolar de novos conteúdos e procedimentos didáticos pelas escolas e por seus professores agentes da lei Algo que tem se mostrado um verdadeiro desafio Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 44 44 The 1063903 Law and the black movement aspects of the struggle for reassessment of the role of blacks in Brazils history Abstract The aim of this paper is to present some aspects of the history of the black social movement in Brazil that allow us to observe how issues related to the importance of education and the struggle for the reevaluation of the role of black people in Brazils history were important to the constitutional process of this social movement and to the creation of the Law 1063903 which has turned mandatory teaching AfroBrazilian History and Culture in Brazils schools This article is based on two complementary research a research on the history of the black movement in Brazil which resulted in my doctoral dissertation entitled O mundo negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 defended in 2010 in the Graduate Program in History of UFF and a research project entitled AfricanBrazilians History and Culture into the curriculum and classrooms how far does Law 1063903 in the state of Rio de Janeiro go developed by me from October 2010 at the Education Department of UFRJ Keywords History teaching AfroBrazilian History and Culture education black movement Referências ALBERTI Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org Histórias do movimento negro no Brasil Rio de Janeiro Pallas 2007a ALBERT Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org O movimento negro contemporâneo In FERREIRA Jorge REIS Daniel Aarão Org Revolução e democracia 1964 Coleção As esquerdas no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007b ALBERT Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org Qual África Significados da África para o movimento negro no Brasil Estudos Históricos v39 p 2556 2007c ANDREWS George R Negros e brancos em São Paulo Bauru EDUSC 1998 BARBOSA Márcio Org Frente Negra Brasileira depoimentos São Paulo Quilombhoje 1998 COSTA Sérgio A construção sociológica da raça no Brasil Estudos Afroasiáticos Ano 24 n 1 p 3561 2002 Amilcar Araújo Pereira 45 45 COSTA Sérgio Dois Atlânticos teoria social antiracismo cosmopolitismo Belo Horizonte Editora UFMG 2006 DOMINGUES Petrônio José A insurgência de ébano a história da Frente Negra Brasileira 19311937 2005 Tese doutorado em História Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas São Paulo DOMINGUES Petrônio José Movimento Negro Brasileiro alguns apontamentos históricos Revista Tempo Universidade Federal Fluminense vol 23 p 100122 2007 GONZALEZ Lélia O Movimento Negro na última década In GONZALEZ Lélia e HASENBALG Carlos Lugar de negro Rio de Janeiro Marco Zero 1982 GUIMARÃES Antônio Sérgio A Racismo e antiracismo no Brasil Rio de Janeiro Editora 34 1999 GUIMARÃES Antônio Sérgio A Classes raças e democracia São Paulo Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo Editora 34 2002 HANCHARD Michael George Orfeu e o poder o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo 1945 1988 Rio de Janeiro Ed UERJ 2001 LEITE José Correia CUTI Luiz Silva Org E disse o velho militante José Correia Leite depoimentos e artigos São Paulo Secretaria Municipal de Cultura 1992 PEREIRA Amauri Mendes Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro Belo Horizonte Nandyala 2008 PEREIRA Amilcar A O Mundo Negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 2010 Tese doutorado em História Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro POERNER Arthur José Memórias do Exílio Lisboa Arcádia 1976 Disponível em httpwwwabdiascombrmovimentonegromovimentonegrohtm Acesso em 20012010 SANTOS Joel Rufino dos A Luta Organizada Contra o Racismo In BARBOSA Wilson do Nascimento Org Atrás do muro da noite dinâmica das culturas afro brasileiras Brasília Ministério da CulturaFundação Cultural Palmares 1994 SANTOS Joel Rufino dos O Movimento Negro e a crise brasileira Política e Administração v 2 p 287307 julset 1985 SISS Ahyas Educação Cidadania e Multiculturalismo In REUNIÃO ANUAL DA ANPED 26 2003 Poços de Caldas 26a Reunião Anual da ANPED Rio de Janeiro DPA 2003 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011
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25 A Lei 1063903 e o movimento negro aspectos da luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil Amilcar Araujo Pereira Resumo O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos da história do movimento social negro no Brasil que nos permitam observar como temas relacionados à importância da educação e da luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil foram importantes para o próprio processo de constituição deste movimento social e para a criação da Lei 10639 de 2003 que tornou obrigatório o ensino de História e cultura afro brasileira nas escolas de todo o país Este artigo tem como base duas pesquisas complementares a pesquisa sobre a história do movimento negro no Brasil que resultou em minha tese de doutorado intitulada O mundo negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 1970 1995 defendida em 2010 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF e a pesquisa intitulada História e cultura afrobrasileiras nos currículos e nas salas de aula até onde vai a Lei 1063903 no estado do Rio de Janeiro por mim coordenada a partir de outubro de 2010 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Palavraschave Ensino de História História e cultura afrobrasileira Educação Movimento negro A Lei 1063903 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro brasileiras nas escolas de todo o país veio de repente de cima para baixo Teria sido este instrumento legal que complexifica ainda mais o ensino de História no Brasil simplesmente uma imposição do governo aos professores e às escolas Questões como essas continuam sendo ouvidas com frequência entre professores de História em nosso país mesmo após terem se passado mais de oito anos desde a sanção presidencial à referida lei Isto se dá muito em função do ainda pequeno número de pesquisas e do pouco conhecimento produzido e estudado sobre as histórias das lutas dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional Talvez com um maior número de pesquisas e uma maior produção de conhecimentos para serem estudados sobre essas histórias estaríamos contribuindo como determina a lei para o resgate da contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense UFF Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ 26 26 pertinentes à História do Brasil1 A Lei 1063903 é fruto dessas histórias ainda pouco pesquisadas e portanto pouco conhecidas e pouco estudadas em nossas escolas Se essa lei não pode ser pensada como uma construção realizada a partir de uma simples relação de causa consequência como formador de professores de História atuando em cursos de formação inicial e continuada acredito que para melhor entendermos e contextualizarmos o processo de construção dessa lei seja fundamental conhecer a história do movimento negro organizado no Brasil republicano2 Creio ser fundamental como parte da formação de professores de História buscar a compreensão do processo histórico de formação da república brasileira em toda a sua complexidade cotejando as diversas disputas e as diferentes lutas sociais e políticoculturais entre as quais se encontra a luta contra o racismo e a própria constituição do movimento social negro no Brasil Como exemplo dessas lutas dos movimentos sociais que apresentavam várias reivindicações na segunda metade do século XX e especialmente a partir dos anos 1970 em meio ao processo de abertura política durante a ditadura militar podemos encontrar a Carta de Princípios escrita em 1978 pelas lideranças do então recémcriado Movimento Negro Unificado MNU que já reivindicava entre outras coisas a reavaliação do papel do negro na história do Brasil e a valorização da cultura negra Durante o processo de construção do regime democrático em nosso país na década de 1980 o próprio texto da chamada Constituição cidadã de 1988 já refletia algumas das reivindicações de diferentes grupos sociais que até então não eram contemplados na construção dos currículos escolares de História como se pode observar no parágrafo 1º do Art 242 da Constituição que já determinava que O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro Segundo Martha Abreu e Hebe Mattos 1 Como determina o texto da Lei 1063903 no 1º do Artigo 26A O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos a luta dos negros no Brasil a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social econômica e política pertinentes à História do Brasil 2 Considero o movimento negro organizado como um movimento social que tem como particularidade a atuação em relação à questão racial Sua formação é complexa e engloba o conjunto de entidades organizações e indivíduos que lutam contra o racismo e por melhores condições de vida para a população negra seja através de práticas culturais de estratégias políticas de iniciativas educacionais etc o que faz da diversidade e pluralidade características deste movimento social Amilcar Araújo Pereira 27 27 desde o final da década de 1990 as noções de cultura e diversidade cultural assim como de identidades e relações étnicoraciais começaram a se fazer presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio especialmente na área de história Isso não aconteceu por acaso É na verdade um dos sinais mais significativos de um novo lugar político e social conquistado pelos chamados movimentos negros e antiracistas no processo político brasileiro e no campo educacional em especial ABREU MATTOS 2008 p 6 Podemos identificar portanto a Lei 10639 sancionada em 9 de janeiro de 2003 pelo recémempossado Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva como um dos resultados desse novo lugar político e social e das várias reivindicações dos movimentos negros ao longo das últimas décadas3 O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos da história do movimento social negro no Brasil que nos permitam observar como temas relacionados à importância da educação e à luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil foram importantes para o próprio processo de constituição deste movimento social O presente trabalho tem como base duas pesquisas complementares a pesquisa sobre a história do movimento negro no Brasil que resultou em minha tese de doutorado intitulada O Mundo Negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 defendida em 2010 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Fluminense UFF e a pesquisa intitulada História e cultura afrobrasileiras nos currículos e nas salas de aula até onde vai a Lei 1063903 no estado do Rio de Janeiro desenvolvida a partir de outubro de 2010 na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ4 O movimento negro e suas lutas pela educação no Século XX Ainda no início do período conhecido como pósabolição antes mesmo da criação da Frente Negra Brasileira FNB que foi a maior organização do movimento social negro na primeira metade do Século XX em 1931 na cidade de São Paulo a questão da educação de pessoas negras já despontava como um tema de grande 3 Vale lembrar que após a mobilização dos movimentos indígenas a Lei 11645 de 10 de março de 2008 tornou ainda mais complexa a discussão sobre os currículos de História no Brasil ao alterar a Lei no 9394 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional de 20 de dezembro de 1996 já modificada pela Lei no 10639 de 9 de janeiro de 2003 para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura AfroBrasileira e Indígena 4 Ambas as pesquisas receberam apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq a primeira por meio de bolsa de estudos durante o curso de doutorado e a segunda por meio de auxílio financeiro concedido para a realização da pesquisa através do Edital MCTCNPqMECCAPES nº 022010 Ciências Humanas Sociais e Sociais Aplicadas Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 28 28 importância para as organizações de negros em nosso país Entre essas organizações o Centro Cívico Palmares criado em 1926 merece destaque pois segundo George Andrews essa organização teria sido um marco importante para a mobilização política dos negros em São Paulo justamente durante o período que antecede a Revolução de 1930 Nesse sentido o Centro Cívico Palmares viria a contribuir significativamente para a criação mais tarde da FNB também em São Paulo Havia muitos participantes em comum nas duas organizações inclusive em sua liderança já que Arlindo Veiga dos Santos havia sido presidente do Centro Cívico Palmares e fora também o primeiro presidente da FNB e alguns de seus militantes propunham inclusive uma ligação direta entre a criação de ambas as organizações como no trecho abaixo publicado na primeira página do jornal A Voz da Raça de 3 de fevereiro de 1937 A FNB surgiu no Estado de São Paulo graças à perspicácia da alma paulista que desde 1926 já havia fundado o CENTRO CÍVICO PALMARES com o mesmo objetivo da aludida organização grifos do autor George Andrews diz o seguinte sobre as origens do Centro Cívico Palmares Em 1925 O Clarim dAlvorada clamava pela criação do Congresso da Mocidade dos Homens de Côr um grande partido político composto exclusivamente de homens de côr Esses apelos não produziram resultados imediatos mas sem dúvida foram parte do impulso subjacente à fundação em 1926 do Centro Cívico Palmares Assim chamado em homenagem ao quilombo de Palmares do século XVII o centro originalmente destinavase a proporcionar uma biblioteca cooperativa para a comunidade negra A organização logo progrediu e passou a patrocinar encontros e conferências sobre questões de interesse público e em 1928 lançou uma campanha para derrubar um decreto que proibia aos negros ingressar na milícia do Estado a Guarda Civil O centro foi bem sucedido ao requerer do governador Júlio Prestes que suspendesse o decreto e depois o convenceu a derrubar uma proibição similar que impedia as crianças negras de participar de uma competição patrocinada pelo Serviço Sanitário de São Paulo para encontrar o bebê mais robusto e eugenicamente desejável do Estado ANDREWS 1998 p 227 Analisando o trecho acima podemos perceber alguns elementos comuns certas continuidades entre organizações como o Centro Cívico Palmares a Frente Negra Brasileira e mesmo organizações do movimento negro contemporâneo O primeiro seria a busca por uma atuação política e a apresentação de demandas do movimento à sociedade e aos poderes públicos estratégia essa que ganharia maior vulto com a FNB na década de 1930 e que permanece no seio do movimento negro organizado até os dias de hoje Embora os militantes do Centro Cívico Palmares tenham conseguido em 1928 a suspensão do decreto que proibia negros de entrarem na Guarda Civil do estado de Amilcar Araújo Pereira 29 29 São Paulo somente em 1932 foi que os militantes da Frente Negra conseguiram após reunião com o próprio presidente Getúlio Vargas que negros fossem contratados para a Guarda Civil como relata o sociólogo Ahyas Siss A Frente Negra Brasileira FNB obteve algumas conquistas sociais importantes como por exemplo a inclusão de afrobrasileiros nos quadros da Guarda Civil de São Paulo antiga aspiração dos negros paulistas O corpo administrativo da Guarda Civil de São Paulo era composta na sua maioria por imigrantes e negavam a admissão de afrobrasileiros aos quadros dessa instituição Recebidos em delegação pelo então Presidente da República Sr Getúlio Vargas os representantes da FNB apelaram ao Presidente no sentido de ser oferecido aos afrobrasileiros igualdade de acesso àquela instituição Vargas então ordenou à Guarda o imediato alistamento de 200 recrutas afro brasileiros Nos anos 30 cerca de 500 afrobrasileiros ingressaram nos quadros dessa instituição com um deles chegando a ocupar o posto de coronel SISS 2003 p9 Outra continuidade em relação à organização criada em 1926 é a perceptível valorização da história do quilombo dos Palmares como exemplo de luta dos negros no Brasil que ganha outra dimensão para o movimento negro nos anos 1970 como se verá abaixo A importância dada à educação e a valorização de estratégias como a organização de encontros conferências centros de estudos etc também podem ser observadas como elementos característicos do movimento negro brasileiro ao longo de todo o período republicano Um exemplo interessante nesse sentido é a própria continuidade da campanha feita pelo jornal O Clarim dAlvorada em 1929 ainda em prol da realização do primeiro Congresso da Mocidade Negra do Brasil em São Paulo Esse jornal que afirmava ter como função a Congregação da raça para a raça reiniciava a tal campanha na primeira página de sua edição de 3 de março de 1929 com o seguinte texto O Clarim dAlvorada à frente de um pugilo de moços bem intencionados lança com fé de realizar as primeiras sementes para a concretização de um antigo sonho nosso a organização do 1º Congresso da Mocidade Negra do Brasil Isto porque para tratarmos de assuntos de grandes vultos e de interesses patrióticos e raciais é nosso dever é dever de todos negros e mestiços sensatos apoiarem esta iniciativa É interessante notar que já naquele momento se via como estratégica a procura pela aglutinação de negros e mestiços em torno de assuntos de interesses raciais Fato que continua a ser buscado pelo movimento negro até os dias de hoje Assim como também é interessante perceber que a educação dos negros também já ocupava um lugar de destaque na pauta de reivindicações como se verá no trecho abaixo Esses Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 30 30 componentes da Mocidade Negra seriam segundo o jornal os pioneiros da raça heróica e menoscabada dentro de sua própria pátria E na edição de 7 de abril de 1929 o jornal continuava a campanha com o seguinte discurso Em quarenta anos de liberdade além do grande desamparo que foi dado aos nossos maiores temos a relevar com paciência a negação de certos direitos que nos assistem como legítimos filhos da grande pátria do cruzeiro Se os conspícuos patriotas desta República não cuidaram da educação dos negros o nosso congresso tratará desse máximo problema que está latente na questão nacional Para os relegados filhos e netos dos épicos e primitivos plantadores do café que foi e é a base de toda a riqueza econômica do nosso país essa é a marcha do porvir O Congresso da Mocidade Negra tem que se realizar muito embora os trânsfugas pensem que a raça não esteja preparada para o certame dentro da estabilidade essencial Porém a raça espoliada fará o seu congresso entre as angústias e as glórias do seu antepassado baseandose nas esperanças de uma nova redenção para a família negra brasileira Grifos do autor Esse Congresso da Mocidade Negra proposto pelo grupo do jornal O Clarim dAlvorada nunca aconteceu Mas a própria proposição e a campanha construída em torno dela podem ser vistas como referenciais para a realização anos mais tarde de vários congressos de negros como o I Congresso do Negro Brasileiro promovido pelo Teatro Experimental do Negro TEN sob a liderança de Abdias do Nascimento no Rio de Janeiro em 1950 como nos informa o próprio Abdias Minhas primeiras experiências de luta foram na Frente Negra Brasileira Alguns dos dirigentes da FNB desde a década de vinte se esforçavam tentando articular um movimento Houve assim um projeto de reunir o Congresso da Mocidade Negra em 1928 em São Paulo o que não chegou a se concretizar Somente em 1938 eu e outros cinco jovens negros realizamos o I Congresso AfroCampineiro e em 1950 o Teatro Experimental do Negro promoveu o I Congresso do Negro Brasileiro no Rio de Janeiro5 POERNER 1976 A trajetória política de Abdias do Nascimento sempre relacionada à questão racial no Brasil pode ser vista ela própria como um elemento de continuidade no movimento negro que se constituiu nos diferentes períodos do Brasil republicano Nascido em Franca no estado de São Paulo em 1914 Abdias participou como um jovem militante da Frente Negra Brasileira Em 1944 ele foi a principal liderança na criação do Teatro Experimental do Negro e em 1978 também participou da criação do Movimento Negro Unificado MNU em São Paulo Amauri Mendes Pereira 2008 e Petrônio Domingues 2007 identificam três diferentes fases do movimento negro brasileiro com características distintas ao longo do Século XX e Abdias do 5 Trecho do depoimento de Abdias do Nascimento Ver POERNER 1976 Amilcar Araújo Pereira 31 31 Nascimento participou de maneira ativa em todas elas a primeira do início do século até o Golpe do Estado Novo em 1937 a segunda do período que vai do processo de redemocratização em meados dos anos 1940 até o Golpe militar de 1964 e a terceira o movimento negro contemporâneo que surge na década de 1970 e ganha impulso após o início do processo de Abertura política em 1974 A primeira fase teria tido como ápice a criação e a consolidação da FNB como uma força política em âmbito nacional exemplificada na sua transformação em partido político em 1936 Essa primeira fase foi encerrada logo após a implantação do Estado Novo em 1937 pelo presidente Getúlio Vargas e o consequente fechamento da FNB juntamente com todas as outras organizações políticas no país O movimento social negro brasileiro nessa primeira fase teria como principal característica a busca pela inclusão do negro na sociedade com um caráter assimilacionista sem a busca pela transformação da ordem social outra característica era a existência de um nacionalismo declarado pela Frente Negra Brasileira e por outras organizações da época Essas duas características podem ser vislumbradas no próprio órgão de divulgação da FNB o jornal A Voz da Raça n 1 de 18 de março de 1933 que trazia o seguinte texto em sua primeira página A Nação acima de tudo E a Nação somos nós com todos os outros nossos patrícios que conosco em quatrocentos anos criaram o Brasil O Frentenegrino como o negro em geral deve estar atento nas suas reivindicações de direitos que definimos em nosso manifesto do ano passado mas para que seja digno de alcançar esses legítimos direitos no campo social econômico e político é mister cumpra os Mandamentos da Lei que definem antes de tudo os deveres do homem base da legitimidade dos direitos do homem É evidente que esse nacionalismo exacerbado não era completamente hegemônico no movimento negro da época tendo em vista por exemplo o grupo do jornal O Clarim dAlvorada que circulou entre 1924 e 1932 e que tinha como principal liderança José Correia Leite6 O movimento negro brasileiro na década de 1930 também era plural e complexo A Frente Negra sem dúvida alguma tornouse a maior expressão desse movimento em sua época até mesmo em função da dimensão nacional e do grande número de participantes que conquistou entre 1931 e 1937 que segundo depoimentos da época variavam entre 40 e até 200 mil sócios Mas além da existência 6 José Correia Leite nascido em São Paulo em 1900 foi também um dos fundadores da FNB em 1931 Contudo desligouse da FNB ainda no momento da aprovação do estatuto da entidade por divergir de sua inclinação ideológica e fundou então o Clube Negro de Cultura Social em 1932 Participou da Associação do Negro Brasileiro fundada em 1945 Em 1954 fundou em São Paulo com outros militantes a Associação Cultural do Negro ACN e em 1960 participou da fundação da revista Niger Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 32 32 de outras organizações menores e distintas houve ainda algumas dissidências da própria FNB Correia Leite também foi fundador da FNB em 1931 Porém logo durante a aprovação dos estatutos da organização ele rompeu com a Frente Negra em função de sua discordância em relação à inclinação fascista que a organização estava tomando como ele mesmo contou em seu livro Nós do grupo dO Clarim dAlvorada no dia em que foram aprovados os estatutos finais fomos combater porque não concordávamos com as idéias do Arlindo Veiga dos Santos Era um estatuto copiado do fascismo italiano Pior é que tinha um conselho de 40 membros e o presidente desse conselho era absoluto A direção executiva só podia fazer as coisas com ordem desse conselho O presidente do conselho era o Arlindo Veiga dos Santos o absoluto LEITE 1992 p 94 Como disse acima a FNB era uma organização com forte caráter nacionalista cuja estrutura lembrava a de agremiações de inclinação fascista como a Ação Integralista Brasileira AIB fundada em outubro de 1932 Seu estatuto datado de 12 de outubro de 1931 previa um grande conselho e um presidente que era a máxima autoridade e o supremo representante da Frente Negra Brasileira como alertava Correia Leite Seu jornal A Voz da Raça que circulou entre 1933 e 1937 mantinha em destaque no cabeçalho a frase Deus Pátria Raça e Família diferenciandose do principal lema integralista apenas no termo Raça Correia Leite fundou com outros militantes outra organização o Clube Negro de Cultura Social em 1º de julho de 1932 em São Paulo Ainda em 1932 foi criada também em São Paulo a Frente Negra Socialista outra dissidência da FNB Já o contemporâneo de José Correia Leite e também fundador da FNB Francisco Lucrécio lembrou em entrevista concedida a Márcio Barbosa na década de 1980 de contatos da FNB com Angola e com o movimento de Marcus Garvey Mas seu depoimento mostra que a aproximação com a África por exemplo não passava pelos planos de grande parte do movimento nos anos 1930 Acredito que seja possível que esse nacionalismo exacerbado tenha afastado afinidades com a África Como dizia Francisco Lucrécio anos depois na Frente Negra não tinha essa discussão de volta à África Tínhamos correspondência com Angola conhecíamos o movimento de Marcus Garvey mas não concordávamos Nós sempre nos afirmamos como brasileiros e assim nos posicionávamos com o pensamento de que os nossos antepassados trabalharam no Brasil se sacrificaram lutaram desde Zumbi dos Palmares Amilcar Araújo Pereira 33 33 aos abolicionistas negros então nós queríamos nos afirmaríamos sim como brasileiros7 BARBOSA 1998 p 46 A afirmação como brasileiro feita por Francisco Lucrécio reforça aqui outro aspecto importante no processo de constituição do movimento negro no Brasil da primeira metade do Século XX a luta por igualdade na sociedade brasileira Afinal de contas seriam todos brasileiros A segunda fase do movimento negro brasileiro no Século XX para Pereira e Domingues teve início no período final do Estado Novo 19371945 Petrônio Domingues 2007 cita o Teatro Experimental do Negro e a União dos Homens de Cor UHC fundada em Porto Alegre em 1943 e com ramificações em 11 estados da federação como sendo as principais organizações dessa segunda fase do movimento Antônio Sérgio Guimarães referindose ao período de redemocratização em 1945 e às organizações negras criadas naquele contexto histórico afirma que o Teatro Experimental do Negro é sem dúvida a principal dessas organizações GUIMARÃES 2002 p 141 e diz o seguinte em relação ao TEN De fato os propósitos de integração do negro na sociedade nacional e no resgate da sua autoestima foram marcas registradas do Teatro Experimental do Negro Através do teatro do psicodrama e de concursos de beleza o TEN procurou não apenas denunciar o preconceito e o estigma de que os negros eram vítimas mas acima de tudo oferecer uma via racional e politicamente construída de integração e mobilidade social dos pretos pardos e mulatos GUIMARÃES 2002 p 93 Sérgio Costa afirma que o TEN buscava inspiração no movimento Négritude que teve enorme importância nos debates intelectuais contra o racismo e o colonialismo na primeira metade do Século XX principalmente no mundo francófono e diz ainda que No Brasil o movimento articulado pelo TEN e organizado em torno de simpósios e oficinas de teatro nunca teve as características de uma organização que contasse com uma base ampla Não obstante revestiuse de enorme importância no âmbito da mobilização de intelectuais sobretudo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro COSTA 2006 p 143 Nesse sentido destacamse a realização pelo TEN da I e da II Convenção Nacional do Negro 1945 e 1946 e do I Congresso do Negro Brasileiro em 1950 Michael Hanchard 2001 afirma que o TEN foi fundado com o objetivo primário de ser uma companhia de produção teatral mas que assumiu outras funções culturais e 7 Francisco Lucrécio nascido em Campinas em 1909 foi diretor da FNB de 1934 a 1937 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 34 34 políticas logo depois que foi criado e que além de montar peças como O Imperador Jones de Eugene ONeill 1945 e Calígula de Albert Camus 1949 o TEN foi a força propulsora do jornal Quilombo 19481950 e de campanhas de alfabetização em pequena escala além de cursos e iniciação cultural entre 1944 e 1946 HANCHARD 2001 p 129 É interessante observar a própria explicação dada por Abdias do Nascimento sobre o episódio que o teria motivado a criar o Teatro Experimental do Negro Várias interrogações suscitaram ao meu espírito a tragédia daquele negro infeliz que o gênio de Eugene ONeill transformou em O Imperador Jones Isso acontecia no Teatro Municipal de Lima capital do Peru onde me encontrava com os poetas Efraín Tomás Bó Godofredo Tito Iommi e Raul Young argentinos e o brasileiro Napoleão Lopes Filho Ao próprio impacto da peça juntavase outro fato chocante o papel do herói representado por um ator branco tingido de preto Àquela época 1941 eu nada sabia de teatro economista que era e não possuía qualificação técnica para julgar a qualidade interpretativa de Hugo DEvieri Porém algo denunciava a carência daquela força passional específica requerida pelo texto e que unicamente o artista negro poderia infundir à vivência cênica desse protagonista pois o drama de Brutus Jones é o dilema a dor as chagas existenciais da pessoa de origem africana na sociedade racista das Américas Por que um branco brochado de negro Pela inexistência de um intérprete dessa raça Entretanto lembrava que em meu país onde mais de vinte milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes na época jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor Não seria então o Brasil uma verdadeira democracia racial Minhas indagações avançaram mais longe na minha pátria tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos deveria ser normal a presença do negro em cena não só em papéis secundários e grotescos conforme acontecia mas encarnando qualquer personagem Hamlet ou Antígona desde que possuísse o talento requerido NASCIMENTO 2004 p 209 Já a União dos Homens de Cor UHC tinha outra perspectiva de ação um tanto distante da do TEN que embora também oferecesse curso de alfabetização para os atores negros pautava sua atuação no campo do protesto político e cultural A UHC tinha uma perspectiva de atuação social mais próxima a da FNB no sentido da busca de integração do negro na sociedade brasileira através de sua educação e de sua inserção no mercado de trabalho Embora a FNB tenha conseguido uma dimensão muito mais significativa em termos de número de membros associados a UHC também se expandiu por várias regiões do Brasil Petrônio Domingues diz o seguinte em relação à União dos Homens de Cor Amilcar Araújo Pereira 35 35 Também intitulada Uagacê ou simplesmente UHC foi fundada por João Cabral Alves em Porto Alegre em janeiro de 1943 Já no primeiro artigo do estatuto a entidade declarava que sua finalidade central era elevar o nível econômico e intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional para tornálas aptas a ingressarem na vida social e administrativa do país em todos os setores de suas atividades A UHC era constituída de uma complexa estrutura organizativa A diretoria nacional era formada pelos fundadores e dividiase nos cargos de presidente secretáriogeral inspetor geral tesoureiro chefe dos departamentos de saúde e educação consultor jurídico e conselheiros ou diretores DOMINGUES 2007 p 108 Da mesma forma que na fase anterior como podemos perceber nos trechos citados acima a inclusão da população negra na sociedade brasileira tal como ela se apresentava continuava sendo uma característica importante do movimento Mas por outro lado a valorização de experiências vindas do exterior principalmente da África e dos Estados Unidos aparece com frequência em fontes das décadas de 1940 e 1950 O próprio episódio narrado por Abdias do Nascimento acima que o motivou a criar o TEN no Brasil se deu em solo estrangeiro e assistindo a uma peça de um autor norte americano que tratava da situação dos negros nos Estados Unidos Como Verena Alberti e eu demonstramos em artigo publicado em 2007 sobre o tema já em dezembro de 1948 o primeiro número do jornal Quilombo fundado por Abdias do Nascimento dedicou quatro parágrafos ao periódico francês Présence Africaine que tinha em sua direção o intelectual senegalês Alioune Diop8 Seguindo a mesma linha Quilombo publicou em janeiro de 1950 um resumo de Orfeu negro como ficou conhecida a introdução de Jean Paul Sartre à antologia de poetas negros de língua francesa organizada pelo senegalês Léopold Senghor em 1948 Nessa mesma época poemas de Léopold Senghor do martinicano Aimé Césaire e do guianense Léon Damas eram declamados na Associação Cultural do Negro ACN outra organização criada em 1954 por José Correia Leite em São Paulo9 ALBERTI PEREIRA 2007c p 28 José Correia Leite lembrou ainda em entrevista concedida na década de 1980 ao poeta e militante Luiz Silva conhecido como Cuti de um protesto organizado pela ACN em 1958 contra a discriminação racial na África do Sul e nos Estados Unidos Nesse evento foi sugerida a criação de um comitê de solidariedade aos povos africanos Esse protesto acabou resultando na criação de contatos entre a ACN e a principal 8 O jornal Quilombo era publicado no Rio de Janeiro e circulou entre 1948 e 1950 Ver a edição fac similar do jornal Quilombo 2003 21 9 A Associação Cultural do Negro foi criada em 1954 em resposta ao fato de nenhum negro ter sido indicado como importante para a formação da cidade de São Paulo durante as comemorações do quarto centenário da cidade mas só começou a funcionar em 1956 Ver LEITE 1992167 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 36 36 organização na luta pela libertação do colonialismo português em Angola como contou em sua entrevista Correia Leite Creio que essa proposta deve ter chegado à África portuguesa pois nós passamos a receber publicações do Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA não endereçadas à Associação mas ao Comitê de Solidariedade aos Povos Africanos10 LEITE 1992 p 175 Correia Leite sintetizou dessa forma o significado da descoberta da África para os negros brasileiros no início dos anos 1960 1960 foi considerado o ano africano Foi quando ocorreu o maior número de independências dos países da África negra Toda a atenção estava voltada para esses acontecimentos Inclusive na África portuguesa estava começando o movimento de libertação de Angola e Guiné Bissau11 Aquela movimentação deixou os negros daqui entusiasmados A África era bem desconhecida Parecia que estava sendo descoberta naquele momento LEITE 1992 p 177 É difícil estabelecer uma cronologia fechada que enquadre a constituição do movimento negro brasileiro ao longo do Século XX em fases muito definidas na medida em que entre as diferentes fases deste movimento durante todo esse período destacadas acima é possível constatar a presença de muitos elementos comuns muitas continuidades em relação às formas de atuação e estratégias adotadas por ativistas e organizações como já foi visto acima Ao mesmo tempo é possível perceber a existência de certos intercâmbios ocorridos através de militantes mais velhos e jovens que informaram e contribuíram para a construção de organizações negras em diversos momentos e regiões do Brasil Este fato torna ainda mais complexa a constituição do movimento negro brasileiro ao longo das diferentes épocas e em diferentes contextos históricos 10 O Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA foi fundado em 1956 quando foi publicado seu primeiro manifesto 11 Em Angola a luta pela independência começou no início dos anos 1960 com a participação de três organizações divergentes o MPLA de orientação marxista e prósoviético a Frente Nacional de Libertação de Angola FNLA anticomunista apoiada pelos Estados Unidos e pela República Democrática do Congo e a União Nacional para a Independência Total de Angola Unita inicialmente de orientação maoísta e depois anticomunista apoiada pelo regime sulafricano do apartheid Em 11 de novembro de 1975 o MPLA proclamou a independência e seu líder Agostinho Neto tornouse presidente da República Popular de Angola que adotou o regime socialista Em GuinéBissau a luta pela libertação começou em 1956 com a fundação do Partido para a Independência da Guiné Portuguesa e Cabo Verde PAIGC por Amilcar Cabral 19241973 O braço armado do partido desencadeou a guerra pela libertação em 1961 contra as tropas coloniais portuguesas proclamando a independência do país em 26 de setembro de 1973 Em 10 de setembro de 1974 o governo português entregou oficialmente o poder ao PAIGC Amilcar Araújo Pereira 37 37 A tradição de luta contra o racismo que contou com diferentes tipos de organizações políticas e culturais em vários setores da população negra brasileira desde o final do Século XIX foi importante para o surgimento em meio a um período de ditadura militar do movimento negro contemporâneo no Brasil no início da década de 1970 No entanto podemos encontrar várias características específicas nesse movimento contemporâneo como por exemplo o fato de que diferentemente de momentos anteriores a oposição ao chamado mito da democracia racial e a construção de identidades políticoculturais negras foram o fundamento a partir do qual se articularam as primeiras organizações Sobre a relação entre a constituição do movimento negro e a denúncia do mito da democracia racial Joel Rufino dos Santos diz o seguinte O movimento negro no sentido estrito foi na sua infância 193145 uma resposta canhestra à construção desse mito Canhestra porque sua percepção das relações raciais da sociedade global e das estratégias a serem adotadas permanecem no ventre do mito como se fosse impossível olhálo de fora e de fato historicamente provavelmente o era Para as lideranças do movimento negro catalisadas pela imprensa negra que desembocou na FNB o preconceito antinegro era com efeito residual tendendo para zero à medida em que o negro vencesse o seu complexo de inferioridade e através do estudo e da autodisciplina neutralizasse o atraso causado pela escravidão Na sua visão comprovando a eficácia do mito o preconceito era estranho à índole brasileira e enfim a miscigenação que marcou o quadro brasileiro nos livraria da segregação e do conflito que assinalavam o quadro norteamericano sendo pequeno aqui portanto o caminho a percorrer Foi só nos anos 1970 que o movimento negro brasileiro decolou para atingir a densidade e amplitude atuais SANTOS 1985 p 289 A denúncia do mito da democracia racial como um elemento fundamental para a constituição do movimento a partir da década de 1970 pode ser observada por exemplo em todos os documentos do Movimento Negro Unificado MNU criado em 1978 em São Paulo e que contou com a participação de lideranças e militantes de organizações de vários estados Desde a Carta Aberta à População divulgada no ato público de lançamento no MNU realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em 7 de julho de 1978 podemos encontrar em todos os documentos a frase por uma verdadeira democracia racial ou por uma autêntica democracia racial É importante ressaltar que o surgimento do MNU em 1978 é considerado tanto pelos próprios militantes quanto por muitos pesquisadores como o principal marco na formação do movimento negro contemporâneo no Brasil na década de 1970 Reconhecendo a criação do MNU como um marco fundamental na transformação do Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 38 38 movimento negro brasileiro em meio a um contexto históricosocial de lutas contra a ditadura militar então vigente no país e comparandoo com organizações anteriores como a FNB e o TEN Sérgio Costa afirma que o MNU se constitui como um movimento popular e democrático e acrescenta Além do caráter popular ausente no projeto do Teatro Experimental do Negro o MNU se distingue do TEN por sua crítica ao discurso nacional hegemônico Isto é enquanto o TEN defendia a plena integração simbólica dos negros na identidade nacional híbrida o MNU condena qualquer tipo de assimilação fazendo do combate à ideologia da democracia racial uma das suas principais bandeiras de luta visto que aos olhos do movimento a igualdade formal assegurada pela lei entre negros e brancos e a difusão do mito de que a sociedade brasileira não é racista teria servido para sustentar ideologicamente a opressão racial Assim os conceitos consciência e conscientização passam a ocupar desde a fundação do MNU lugar decisivo na formulação das estratégias do movimento COSTA 2006 p 144 A Carta de princípios do MNU criada nos meses seguintes ao ato público ainda em 1978 é um bom exemplo do esforço de definição do que seria um movimento negro e do que era ser negro e também nos possibilita observar algumas diferenças fundamentais em relação às tentativas anteriores de organização da população negra no Brasil Nós membros da população negra brasileira entendendo como negro todo aquele que possui na cor da pele no rosto ou nos cabelos sinais característicos dessa raça reunidos em Assembléia Nacional convencidos da existência de discriminação racial marginalização racial mito da democracia racial resolvemos juntar nossas forças e lutar pela defesa do povo negro em todos os aspectos por maiores oportunidades de emprego melhor assistência à saúde à educação à habitação pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil valorização da cultura negra extinção de todas as formas de perseguição e considerando enfim que nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem nos solidarizamos com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade brasileira e com a luta internacional contra o racismo Por uma autêntica democracia racial Pela libertação do povo negro MNU 1988 p 19 Uma característica importante do movimento negro contemporâneo articulada diretamente à questão da importância da educação para a população negra vista aqui como uma continuidade ao longo do processo de constituição do movimento ao longo do Século XX é a reivindicação pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil contida na Carta de princípios do MNU Essa foi a própria razão do surgimento de uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo brasileiro o Grupo Palmares Este Grupo foi fundado por Oliveira Silveira junto com Amilcar Araújo Pereira 39 39 outros militantes em 1971 em Porto Alegre e teve como primeiro e principal objetivo propor o 20 de novembro dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695 como a data a ser comemorada pela população negra em substituição ao 13 de maio dia da abolição da escravatura fato que engloba uma ampla discussão sobre a valorização da cultura política e identidade negras e provoca objetivamente uma reavaliação sobre o papel das populações negras na formação da sociedade brasileira na medida em que desloca propositalmente o protagonismo em relação ao processo da abolição para a esfera dos negros tendo Zumbi como referência recusando a imagem da princesa branca benevolente que teria redimido os escravos O 13 de maio passou então a ser considerado pelo movimento negro como um dia nacional de denúncia da existência de racismo e discriminação em nossa sociedade O Grupo Palmares elegeu o Quilombo dos Palmares como passagem mais importante da história do negro no Brasil e realizou ainda em 1971 o primeiro ato evocativo de celebração do 20 de Novembro Seguindo a proposição do Grupo Palmares durante a segunda Assembleia Nacional do MNU realizada no dia 4 de novembro de 1978 em Salvador foi estabelecido o 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra que hoje é feriado em mais de 200 municípios do país como podemos observar no documento divulgado ao final da Assembleia12 Nós negros brasileiros orgulhosos por descendermos de ZUMBI líder da República Negra de Palmares que existiu no estado de Alagoas de 1595 a 1695 desafiando o domínio português e até holandês nos reunimos hoje após 283 anos para declarar a todo povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data 20 de Novembro DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA Dia da morte do grande líder negro nacional ZUMBI responsável pela PRIMEIRA E ÚNICA tentativa brasileira de estabelecer uma sociedade democrática ou seja livre e em que todos negros índios brancos realizaram um grande avanço político e social Tentativa esta que sempre esteve presente em todos os quilombos GONZALEZ 1982 p 51 Transcrito como no documento original Militantes professores agentes da lei à guisa de conclusão Muitas estratégias foram utilizadas por militantes negros em todo o território nacional na luta pela tão necessária reavaliação do papel do negro na História do 12 Um fato interessante em relação a essa Assembléia que nos leva a contextualizar a história do movimento negro é que a sua realização foi proibida pela polícia amparada pela Lei de Segurança Nacional que no DecretoLei nº 510 de 20 de março de 1969 determinava em seu artigo 33º a pena de detenção de 1 a 3 anos por incitar ao ódio ou à discriminação racial A Assembléia acabou sendo realizada nas instalações do Instituto Cultural BrasilAlemanha ICBA graças à intervenção de seu diretor Roland Shaffner Como o ICBA era considerado território alemão a polícia brasileira não pôde impedir a realização da Assembleia Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 40 40 Brasil Entre as estratégias bemsucedidas podemos observar a adotada desde o início da década de 1980 por Maria Raimunda Mundinha Araujo então presidenta do CCN do Maranhão13 ao atuar diretamente nas escolas não somente dando palestras e informando professores e alunos sobre as histórias dos negros no Brasil mas também produzindo material didático para este fim Mundinha Araujo e outros militantes produziram cartilhas no Maranhão que foram inclusive publicadas por exemplo no início da década de 1980 em Belo Horizonte Minas Gerais como se pode observar abaixo na reprodução da capa e contracapa de uma dessas cartilhas elaboradas por Mundinha no CCN do Maranhão Sobre a atuação direta do movimento negro nas escolas Mundinha Araujo contou em entrevista o seguinte Nós achávamos que a luta era dentro das escolas era fazendo parcerias Em 1982 nós fizemos um convênio com a Secretaria de Educação porque nós queríamos a participação dos professores Eles colocaram os professores à disposição para participarem da Semana do Negro A gente fazia assim Vamos para o bairro do João Paulo Todos os professores das escolas que ficavam no bairro do João Paulo e adjacências iam para o mesmo local E nós distribuíamos o material que a Secretaria de Educação também ajudou a rodar deu o papel e tudo E os de nós que seguravam mais eram os professores eu Carmem Lúcia a Fátima minha irmã o Carlão o Luizão 14 Foi algo que depois nós fizemos um documento e apresentamos lá no encontro da Candido Mendes no Rio de Janeiro em 1982 Me convidaram para participar de uma mesa redonda chamada Movimento negro nos anos 1980 Quando fiz o relato depois eles disseram Incrível você esteve em 1979 conversando conosco no IPCN e nós lhe demos orientação Hoje você chega aqui e mostra um movimento que ninguém está fazendo E lá no Maranhão Todo mundo ficou encantado que a gente estivesse principalmente trabalhando o aspecto da educação que a gente considerava prioridade 13 Maria Raimunda Mundinha Araújo nasceu em São Luís em 8 de janeiro de 1943 Formada em comunicação social pela Federação das Escolas Superiores do Maranhão em 1975 Mundinha Araújo como é conhecida foi fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN em 1979 a primeira vicepresidente da entidade de 1980 a 1982 e ocupou a presidência no mandato seguinte de 1982 a 1984 Foi diretora do Arquivo Público do Estado do Maranhão entre 1991 e 2003 A entrevista citada abaixo foi gravada em 1092004 em São Luís do Maranhão durante a realização da pesquisa História do movimento negro no Brasil constituição de acervo de entrevistas de história oral implementada por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas CPDOCFGV entre 2003 e 2007 14 Carlão é Carlos Benedito Rodrigues da Silva antropólogo militante do movimento negro doutor em ciências sociais pela PUC de São Paulo e professor da Universidade Federal do Maranhão desde 1981 E Luizão é Luiz Alves Ferreira um dos fundadores do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN em 1979 e primeiro presidente da entidade de 1980 a 1982 Médico e mestre em patologia humana pela Universidade Federal da Bahia em 1992 foi secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC regional do Maranhão Amilcar Araújo Pereira 41 41 Magno Cruz que também foi presidente do CCN de 1984 a 198815 contou em sua entrevista sobre como essa estratégia de atuação nas escolas também acabava sendo importante para a formação dos próprios militantes em função do ineditismo daquele tipo de trabalho Então como íamos para as escolas Mandávamos um ofício com antecedência e tinha uma negociação com a diretoria da escola Algumas escolas eram sensíveis a isso quando tinham uma diretora negra que entendia Porque tudo era novidade ninguém discutia a questão dos negros Então ir para a escola falar da história do negro desmistificar a história oficial não era uma coisa fácil Havia algumas barreiras Teve vez que a Mundinha fez intercâmbio com a própria Secretaria de Educação aí as coisas ficavam até oficiais No início até pela inexperiência que se tinha eu particularmente ia para essas palestras só para ouvir porque tudo era novidade para mim e tinha muitas perguntas que eu ainda não sabia responder O pessoal perguntava E 15 Magno Cruz nasceu em São Luís em 25 de maio de 1951 Engenheiro formado pela Universidade Estadual do Maranhão em 1976 é funcionário da Companhia de Água e Esgotos do Maranhão CAEMA desde 1980 Foi presidente do Centro de Cultura Negra do Maranhão CCN por dois mandatos consecutivos de 1984 a 1988 À época da entrevista era presidente do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e diretor de formação do Sindicato dos Urbanitários do Maranhão filiado à Central Única dos Trabalhadores CUT A entrevista citada foi gravada em 892004 em São Luís do Maranhão durante a realização da pesquisa História do movimento negro no Brasil constituição de acervo de entrevistas de história oral implementada por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas CPDOCFGV Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 42 42 na África do Sul como é o apartheid Eu não sabia Mas eu acho que era interessante porque a partir das palestras que a gente ia dar nas escolas a gente via as nossas limitações e procurava aprender e estudar Quando foi na nossa gestão a partir de 1985 nós continuamos esse trabalho E o que fizemos Nós ampliamos essas equipes chegamos a ter umas 15 20 equipes de três pessoas Geralmente tinha um que já tinha um desenvolvimento uma experiência em palestras em dar aulas e botava duas pessoas para aprender porque na realidade era uma prática também de ensinar novos militantes nesse trabalho Mas tivemos muitas barreiras Tinha escola em que a gente chegava já tinha mandado o ofício há um mês e o diretor não queria a palestra A gente tinha que ameaçar denunciar na Secretaria de Educação Não foram fáceis esses momentos Depois a coisa se tornou mais rotineira aí já tinha colégio que convidava a gente até as escolas particulares escolas como o Marista Dom Bosco que são escolas que têm pouquíssimos negros mas que chamavam a gente também A estratégia de atuar no âmbito da educação foi muito utilizada por organizações negras em vários estados brasileiros Nesse sentido a produção de cartilhas como as de Mundinha Araujo do CCN para informar não só alunos e professores nas escolas mas os próprios militantes e a sociedade como um todo foi uma prática recorrente nas organizações negras de norte a sul do Brasil E essas cartilhas circulavam nos diferentes estados em função das redes de relações estabelecidas pelos militantes de todo o país principalmente na década de 1980 E essas publicações tinham o objetivo primeiro de apresentar aspectos pouquíssimos conhecidos da história do Brasil especialmente as histórias dos negros no Brasil Os próprios títulos são bastante sugestivos nesse sentido O Caderno de descolonização da nossa história Zumbi João Cândido e os dias de hoje publicado por Amauri Mendes Pereira e Yedo Ferreira militantes negros no Rio de Janeiro e a cartilha citada do CCN do Maranhão Esta história eu não conhecia ambos de 1980 são dois exemplos emblemáticos do que se quer dizer aqui O primeiro traz relatos históricos baseados nos livros Palmares a guerra dos escravos de Décio Freitas e A Revolta da Chibata de Edmar Morel e na apresentação da cartilha os autores dizem o seguinte Juntamos os dois relatos históricos a alguns dos resultados de reflexões nossas sobre a história do Brasil e resolvemos editálos com o objetivo principal de alargar o máximo possível o conhecimento destes fatos históricos tão significativos até onde dificilmente chegam os livros Já a cartilha do CCN aliando a informação sobre a história dos negros no Brasil a uma tentativa de aumento da autoestima por parte das crianças negras adotava a seguinte estratégia uma mãe contava histórias positivas dos negros como as dos quilombos por exemplo para explicar o processo da abolição da escravatura ao menino negro que acabara de brigar Amilcar Araújo Pereira 43 43 na escola com um menino branco que havia dito a seguinte frase após a briga Negrinho Culpada disso é a princesa Isabel Essa cartilha do CCN como foi dito acima circulou em muitos estados brasileiros Da mesma forma outras cartilhas circularam e contribuíram para a própria consolidação do movimento negro no Brasil na década de 1980 A contínua luta dos militantes negros ao longo do século passado tanto no que diz respeito à importância da educação quanto à luta pela reavaliação do papel do negro na história do Brasil tornou possível a construção de resultados visíveis para o conjunto da população brasileira nos anos recentes como por exemplo a criação e aprovação da Lei 10639 em 9 de janeiro de 2003 Acredito que ao problematizar o forte caráter eurocêntrico tão presente na construção histórica da disciplina História em nosso país e ao tornar possível a complexificação dos currículos e a inserção de diferentes histórias e culturas nos cotidianos escolares a implementação da Lei 1063903 tem potencial para promover a construção de uma prática docente que questione preconceitos e que seja pautada pelos princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças Mas para tanto se faz necessária a efetiva incorporação no cotidiano escolar de novos conteúdos e procedimentos didáticos pelas escolas e por seus professores agentes da lei Algo que tem se mostrado um verdadeiro desafio Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011 44 44 The 1063903 Law and the black movement aspects of the struggle for reassessment of the role of blacks in Brazils history Abstract The aim of this paper is to present some aspects of the history of the black social movement in Brazil that allow us to observe how issues related to the importance of education and the struggle for the reevaluation of the role of black people in Brazils history were important to the constitutional process of this social movement and to the creation of the Law 1063903 which has turned mandatory teaching AfroBrazilian History and Culture in Brazils schools This article is based on two complementary research a research on the history of the black movement in Brazil which resulted in my doctoral dissertation entitled O mundo negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 defended in 2010 in the Graduate Program in History of UFF and a research project entitled AfricanBrazilians History and Culture into the curriculum and classrooms how far does Law 1063903 in the state of Rio de Janeiro go developed by me from October 2010 at the Education Department of UFRJ Keywords History teaching AfroBrazilian History and Culture education black movement Referências ALBERTI Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org Histórias do movimento negro no Brasil Rio de Janeiro Pallas 2007a ALBERT Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org O movimento negro contemporâneo In FERREIRA Jorge REIS Daniel Aarão Org Revolução e democracia 1964 Coleção As esquerdas no Brasil Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2007b ALBERT Verena PEREIRA Amilcar Araujo Org Qual África Significados da África para o movimento negro no Brasil Estudos Históricos v39 p 2556 2007c ANDREWS George R Negros e brancos em São Paulo Bauru EDUSC 1998 BARBOSA Márcio Org Frente Negra Brasileira depoimentos São Paulo Quilombhoje 1998 COSTA Sérgio A construção sociológica da raça no Brasil Estudos Afroasiáticos Ano 24 n 1 p 3561 2002 Amilcar Araújo Pereira 45 45 COSTA Sérgio Dois Atlânticos teoria social antiracismo cosmopolitismo Belo Horizonte Editora UFMG 2006 DOMINGUES Petrônio José A insurgência de ébano a história da Frente Negra Brasileira 19311937 2005 Tese doutorado em História Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas São Paulo DOMINGUES Petrônio José Movimento Negro Brasileiro alguns apontamentos históricos Revista Tempo Universidade Federal Fluminense vol 23 p 100122 2007 GONZALEZ Lélia O Movimento Negro na última década In GONZALEZ Lélia e HASENBALG Carlos Lugar de negro Rio de Janeiro Marco Zero 1982 GUIMARÃES Antônio Sérgio A Racismo e antiracismo no Brasil Rio de Janeiro Editora 34 1999 GUIMARÃES Antônio Sérgio A Classes raças e democracia São Paulo Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo Editora 34 2002 HANCHARD Michael George Orfeu e o poder o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo 1945 1988 Rio de Janeiro Ed UERJ 2001 LEITE José Correia CUTI Luiz Silva Org E disse o velho militante José Correia Leite depoimentos e artigos São Paulo Secretaria Municipal de Cultura 1992 PEREIRA Amauri Mendes Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro Belo Horizonte Nandyala 2008 PEREIRA Amilcar A O Mundo Negro a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil 19701995 2010 Tese doutorado em História Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro POERNER Arthur José Memórias do Exílio Lisboa Arcádia 1976 Disponível em httpwwwabdiascombrmovimentonegromovimentonegrohtm Acesso em 20012010 SANTOS Joel Rufino dos A Luta Organizada Contra o Racismo In BARBOSA Wilson do Nascimento Org Atrás do muro da noite dinâmica das culturas afro brasileiras Brasília Ministério da CulturaFundação Cultural Palmares 1994 SANTOS Joel Rufino dos O Movimento Negro e a crise brasileira Política e Administração v 2 p 287307 julset 1985 SISS Ahyas Educação Cidadania e Multiculturalismo In REUNIÃO ANUAL DA ANPED 26 2003 Poços de Caldas 26a Reunião Anual da ANPED Rio de Janeiro DPA 2003 Cadernos de História Belo Horizonte v12 n 17 2º sem 2011