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THOMAS HOBBES DE MALMESBURY LEVIATÃ ou MATÉRIA FORMA E PODER DE UM ESTADO ECLESIÁSTICO E CIVIL Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva ÍNDICE PRIMEIRA PARTE DO HOMEM Introdução CAP I Da sensação CAP II Da imaginação Memória Sonhos Aparições ou visões Entendimento 15 C AP III Da conseqüência ou cadeia das imaginações Cadeia dos pensamentos não orientados Cadeia dos pensamentos regulados Lembrança Prudência Sinais Conjetura do tempo passado CAP IV Da linguagem Origem da linguagem 0 uso da linguagem Abusos da linguagem Nomes próprios e comuns Universais Necessidade das definições Objeto dos nomes Uso dos nomes positivos Nomes negativos e seus usos Palavras insignificantes Entendimento Nomes inconstantes CAP V Da razão e da ciência 0 que é a razão Definição de razão Onde está a reta razão 0 uso da razão Do erro e do absurdo Causas do absurdo Ciência Prudência e sapiência e diferença entre ambas Sinais da ciência CAP VI Da origem interna dos movimentos voluntários vulgarmente chamados paixões e da linguagem que os exprime Movimento vital e animal 0 esforço 0 apetite 0 desejo A fome A sede A aversão 0 amor 0 ódio 0 desprezo 0 bem 0 mal 0 pulchrum 0 turpe 0 delicioso 0 proveitoso 0 desagradável 0 inaproveitável 0 deleite 0 desprazer 0 prazer A ofensa Os prazeres dos sentidos Os prazeres do espírito A alegria A dor A tristeza A esperança 0 desespero 0 medo A coragem A cólera A confiança A desconfiança A indignação A benevolência A bondade natural A cobiça A ambição A pusilanimidade A magnanimidade A valentia A liberalidade A mesquinhez A amabilidade A concupiscência natural A luxúria A paixão do amor 0 ciúme A vingança A curiosidade A religião A superstição A verdadeira religião 0 terror pânico A admiração A glorificação A vanglória 0 desalento 0 entusiasmo súbito 0 riso 0 desalento súbito 0 choro A vergonha 0 rubor A imprudência A piedade A crueldade A emulação A inveja A deliberação A vontade As formas de linguagem na paixão 0 bem e o mal aparentes A felicidade 0 louvor A exaltação CAP VII Dos fins ou resoluções do discurso 0 juízo ou sentença final A dúvida A ciência A opinião A consciência A crença A fé CAP VIII Das virtudes vulgarmente chamadas intelectuais e dos defeitos contrários a estas Definição da virtude intelectual 0 talento natural ou adquirido 0 talento natural 0 bom talento ou imaginação 0 bom juízo A discrição A prudência A habilidade 0 talento adquirido A leviandade A loucura A raiva A melancolia A linguagem insignificante CAP IX Dos diferentes objetos do conhecimento CAP X Do poder valor dignidade honra e merecimento 0 poder 0 valor A dignidade Honrar e desonrar Honroso Desonroso Os escudos Os títulos de honra 0 merecimento A aptidão CAP XI Das diferenças de costumes 0 que aqui se entende por costumes Um Irrequieto desejo de poder em todos os homens 0 gosto pela disputa derivado do gosto pela competição A obediência civil derivada do gosto pelo copo farto Derivado do medo da morte ou dos ferimentos E do amor dos artes 0 amor à virtude derivado do amor à lisoqja 0 ódio derivado da dificuldade de obter grandes bengilcios E da consciência de merecer ser odiado A tendência para ferir derivada do medo E da desconfiança no próprio talento Os empreendimentos vãos derivados da vanglória A ambição derivada da opinião de suficiência A irresolução derivada do exagero da importância das pequenas coisas A confiança nos outros derivada da ignorância dos sinais da sabedoria e da bondade E da ignorância das causas naturais E da falta de entendimento A aceitação dos costumes derivada da ignorância da natureza do bem e do mal A aceitação dos indivíduos derivada da Ignorância das causas da paz A credulidade derivada da ignorância da natureza A curiosidade de saber derivada da preocupação com o tempo futuro A religião natural da mesma CAP XII Da religião A religião só no homem Primeiro a partir de seu desejo de conhecer as causas A partir da consideração do Início das coisas A partir de sua observação das seqüelas das coisas A causa natural da religião a ansiedade quanto aos tempos vindouros 0 que os faz temer o poder das coisas invisíveis E sapo ias incorpóreas Mas sem conhecer a maneira como elas gretam alguma coisa Mas venerálas tal como veneram os homens E atribuirlhes toda espécie de acontecimentos extraordinários Quatro corsas as sementes naturais da religião Tornadas diferentes pelo cultivo A absurda opinião do gentilismo Os desígnios dos autores da religião dos pagãos A verdadeira religião o mesmo que as leis do reino de Deus As causas de mudança na religião A imposição de crenças impossíveis Agir contrariamente d religião que estabelecem Falta de testemunhos dos milagres CAP XIII Da condição natural da humanidade relativamente a sua felicidade e miséria Os homens iguais por natureza Da igualdade deriva a desconfiança Da desconfiança a geena Fora dos estados civis há sempre guerra de todos contra todos Os inconvenientes de uma tal geena Numa tal guerra nada é injusto As paixões que levam os homens a tender para a paz CAP XIV Da primeira e segunda leis naturais e dos contratos 0 que é o direito de natureza 0 que é a Liberdade 0 que é uma lei de natureza Diferença entre direito e et Naturalmente todo homem tem direito a tudo A lei fundamental de natureza A segunda lei de natureza 0 que é abandonar um direito 0 que é renunciar a um direito 0 que é transferir o direito A obrigação 0 dever A injustiça todos os direitos são alienáveis 0 que é um contrato 0 que é um pacto A doação Sinais expressos de contrato Sinais de contrato por referência A doação feita através de palavras do presente ou do passado Os sinais do contrato são palavras tanto do passado e do presente como do futuro 0 que é o mérito Os pactos de confiança mútua quando são inválidos 0 direito aos fins contém o direito aos meios Não há pactos com os animais Nem com Deus sem revelação especial S6 há pacto a respeito do possível e do futuro Como os pactos se tornam nulos Os pactos extorquidos pelo medo são válidos 0 pacto anterior torna nulo o pacto posterior feito com outros 0 pacto no sentido de alguém não se defender é nulo Ninguém pode ser obrigado a acusarse a st mesmo A finalidade do juramento A forma do juramento Só a Deus se faz juramento O juramento nada acrescenta à obrigação CAP XV De outras leis de natureza A terceira lei de natureza a justiça 0 que são a justiça e a injustiça A justiça e a propriedade têm início com a constituição do Estado A justiça não é contrária à razão Os pactos não são anulados pelo vício da pessoa com quem são celebrados 0 que é a justiça dos homens e a justiça das ações A justiça dos costumes e a justiça das ações 0 que é feito a alguém com seu próprio consentimento não é injúria A justiça comutativa e a distributiva A quarta lei de natureza a gratidão A quinta a acomodação mútua ou complacência A sexta facilidade em perdoar A sétima que nas vinganças se considere apenas o bem futuro A oitava contra a insolência A nona contra o orgulho A décima contra a arrogância A décima primeira a eqüidade A décima segunda uso igual das corsas comuns A décima terceira da divisão A décima quarta da primo genitura e da primeira posse A décima quinta dos mediadores A décima sexta da submissão à arbitragem A décima sétima ninguém pode ser seu próprio juiz A décima oitava ninguém pode ser juiz quando tem alguma causa natural de parcialidade A décima nona do testemunho Uma regra através da qual é fácil examinar as leis de natureza As leis de natureza são sempre obrigatórias em consciência mas só o são com efeito quando há segurança As leis de natureza são eternas mas são acessíveis A ciência destas leis é a verdadeira filosofo ia moral CAP XVI Das pessoas autores e coisas personificadas 0 que é uma pessoa Pessoa natural e artificial De onde vem a palavra pessoa Ator autor autoridade Os pactos por autoridade obrigam o autor Mas não o ator A autoridade deve ser mostrada As coisas personificadas inanimadas Irracionais falsos deuses o verdadeiro Deus Como uma multidão de homem é uma pessoa Cada um é autor Um ator podem ser muitos homens feitos um só por pluralidade de votos Os representantes são improfícuos quando em número par 0 voto negativo SEGUNDA PARTE DO ESTADO CAP XVII Das causas geração e definição de um Estado Da finalidade do Estado a segurança pessoal que não pode vir da lei de natureza nem da conjunção de uns poucos homens ou famílias nem de uma grande multidão se não for dirigida por um s6 julgamento e assim sucessivamente Por que certas criaturas destituídas de razão apesar disso vivem em sociedade sem qualquer poder coercitivo A geração de um Estado A definição de um Estado 0 que são o soberano e o súdito CAP XVIII Dos direitos dos soberanos por instituição 0 que é o ato de instituição de um Estado As conseqüências dessa instituição 1 Os súditos não podem mudar a forma de governo 7 0 soberano não pode ser privado de seu poder 3 Ninguém pode sem injustiça protestar contra a instituição do soberano declarada pela maioria 4 As ações do soberano não podem ser justamente acusadas pelo súdito S Nada do que o soberano faz pode ser punido pelo súdito 6 0 soberano é o juiz de tudo 0 que é necessário para a paz e a defesa de seus súditos E julga quais as doutrinas próprias para lhes serem ensinadas 7 0 direito de elaborar regras pelas quais cada súdito possa saber o que é seu e que nenhum outro súdito pode sem injustiça lhe tirar 8 Também a ele pertence o direito de toda judicatura e decisão de controvérsias 9 E de fazer a guerra e a paz da maneira que melhor lhe parecer 10E de escolher todos os conselheiros e ministros tanto na paz como na geena 11E de recompensar e castigar e quando nenhuma lei anterior for estabelecido uma medida o arbitrário 12E o da honra e ordem Estes direitos são indivisíveis E por nenhuma outorga podem ser transferidos sem direta renúncia do poder soberano 0 poder e honra dos súditos se desvanecem na presença do soberano poder 0 poder soberano é menos prejudicial do que sua ausência e o prejuízo deriva em sua maior parte da falta de uma pronta submissão a um prejuízo menor CAP XIX Das diversas espécies de governo por instituição e da sucessão do poder soberano As diferentes formas de governo são apenas três Tirania e oligarquia não passam de nomes diferentes da monarquia e da aristocracia Os perigos dos representantes subordinados Comparação da monarquia com as assembléias soberanas Do direito de sucessão 0 monarca atual tem o direito de decidir a sucessão A sucessão realizada mediante palavras expressas ou pela ausência de controle de um costume ou pela suposição de uma afeição natural Decidir da sucessão mesmo em favor do rei de outra nação não é ilegítimo CAP XX Do domínio paterno e despótico 0 Estado por aquisição Em que difere do Estado por instituição Os direitos da soberania são em ambos os mesmos Como se chega ao domínio paterno Não por geração mas por contrato ou educação ou anterior sujeição de um dos pais ao outro 0 direito de sucessão seguese das regras da posse Como se chega ao domínio despótico Não pela vitória mas pelo consentimento dos vencidos Diferença entre uma família e um reino Os direitos da monarquia tirados das Escrituras Em todos os Estados o poder soberano deve ser absoluto CAP XXI Da liberdade dos súditos 0 que é a liberdade 0 que é ser livre 0 medo e a liberdade são compatíveis A liberdade e a necessidade são compatíveis Os laços artificiais ou convenções A liberdade dos súditos consiste na liberdade em relação às convenções A liberdade do súdito é compatível com o poder ilimitado do soberano A liberdade louvada pêlos autores é a liberdade dos soberanos não a dos particulares Como medirse a liberdade dos súditos Os súditos têm a liberdade de defender seus próprios corpos mesmo contra aqueles que legitimamente os atacam não podem ser obrigados a prejudicarse a si mesmos não podem ser obrigados a fazer a guerra a não ser que voluntariamente o aceitem A maior liberdade dos súditos depende do silêncio da lei Em que casos os súditos estão dispensados da obediência a seu soberano Em caso de cativeiro Caso o soberano renuncie ao governo para si próprio e seus herdeiros Em caso de banimento Caso o soberano se torne súdito de um outro CAP XXII Dos sistemas sujeitos políticos e privados Os diversos tipos de sistemas de pessoas Em todos os corpos políticos o poder do representante é limitado Por cartas de patente e pelas leis Quando o representante é um só homem seus atos não autorizados são apenas seus Quando é uma assembléia é apenas o ato dos que assentiram Quando o representante é um só homem se tiver dinheiro emprestado ou uma dívida por contrato só ele é vinculado não os membros Quando é uma assembléia só são vinculados os que assentiram Se o credor pertencer à assembléia só o corpo fica submetido à obrigação 0 protesto contra os decretos dos corpos políticos é por vezes legítimo mas nunca o é contra o poder soberano Os corpos políticos para governo de uma província colônia ou cidade Os corpos políticos para a regulação do comércio Um corpo político para conselho a ser dado ao soberano Um corpo privado regular legítimo como uma família Corpos privados regulares mas ilegítimos Sistemas irregulares tais como as ligas privadas Facções relativas ao governo CAP XXIII Dos ministros públicos do poder soberano Quem é ministro público Ministros para administração geral Para administração especial como para a economia Para a instrução do povo Para a administração da justiça Para a execução Os conselheiros cuja única função é de assessoria não são ministros públicos CAP XXIV Da nutrição e procriação de um Estado 0 alimento de um Estado consiste nos bens do mar e da terra e em sua correta distribuição Toda propriedade privada da terra deriva originariamente da distribuição arbitrária pelo soberano A propriedade de um súdito não exclui o domínio do soberano mas apenas o dos outros súditos 0 poder público não deve ter uma propriedade delimitada Os lugares e objetos do comércio exterior dependem quanto à sua distribuição do soberano As leis de transferência da propriedade também competem ao soberano 0 dinheiro é o sangue do Estado A conduta e regulação do dinheiro para uso público As colônias são os filhos do Estado CAP XXV Do conselho 0 que é o conselho Diferenças entre ordem e conselho 0 que são a exortação e a dissuasão Diferenças entre conselheiros adequados e inadequados CAP XXVI Das leis civis 0 que é a lei civil 0 soberano é legislador E não está sujeito à lei civil 0 costume é lei não em virtude do tempo mas do consentimento do soberano A lei de natureza e a lei civil incluemse reciprocamente As leis provinciais não são feitas pêlos costumes mas pelo poder soberano Algumas insensatas opiniões dos juristas relativamente à feitura das leis Sir Edward Coke Sobre Littleton Liv2 Cap 6 Fl 97 b A lei que é feita sem ser tornada conhecida não é lei Todas as leis não escritas são leis de natureza Não há lei quando o legislador não pode ser conhecido Diferença entre verificar e autorizar A lei verificada pelo juiz subordinado Pêlos registros públicos Por cartas patentes e selo público A interpretação da lei depende do poder soberano Todas as leis precisam de interpretação A autêntica interpretação da lei não é a dos autores 0 intérprete da lei é o juiz dando sentença viva você em cada caso particular A sentença de um juiz não 0 obriga nem a outro juiz a dar sentença idêntica em todos os casos futuros A diferença entre a letra e a sentença da lei As aptidões necessárias num juiz Divisões da lei Outra divisão da lei Como a lei positiva divina é conhecida como lei Outra divisão das leis 0 que é uma lei fundamental Diferença entre lei e direito e entre urna lei e uma carta CAP XXVII Dos crimes desculpas e atenuantes 0 que é o pecado 0 que é um crime Onde não há lei civil não há crime A ignorância da lei civil às vezes constitui desculpa A ignorância do soberano não constitui desculpa A ignorância da pena não constitui desculpa As punições declaradas antes do fato constituem desculpa para maiores punições depois dele Nada pode ser tornado crime por uma lei feita depois do fato Os falsos princípios do bem e do mal como causas do crime Falsos mestres interpretando erradamente a lei de natureza e falsas inferências feitas pêlos mestres a partir de princípios verdadeiros Por suas paixões presunção de riqueza e amigos sabedoria Ódio concupiscência ambição cobiça como causas do crime 0 medo é às vezes causa do crime como por exemplo quando o perigo não é presente bem corpóreo Nem todos os crimes são iguais Desculpas totais Desculpas contra o autor A presunção de poder constitui uma agravante Os maus mestres constituem uma atenuante Os exemplos de impunidade são atenuantes A premeditação é uma agravante A aprovação tácita do soberano é urna atenuante Comparação dos crimes por seus efeitos Lesamajestade Suborno e falso testemunho Fraude Contrafação da autoridade Comparação dos crimes contra os particulares 0 que são os crimes públicos C AP XXVIII Das penas e das recompensas Definição depena De onde deriva o direito de punir As injúrias privadas e vinganças não são penas nem a negação de preferências nem a pena infligida sem audiência pública nem a pena infligida pelo poder usurpado nem a pena infligida sem respeito pelo bem futuro As más e consequencias naturais não são penas 0 dano infligido se for menor que o beneficio resultante da transgressão não é pena Quando a pena está incluída na lei um dano maior não é pena e sim hostilidade 0 dano infligido por um fato anterior à lei não é pena 0 representante do Estado não pode ser punido 0 dano infligido a súditos revoltados é o por direito de guerra não na qualidade de pena Penas corporais Capitais Ignomínia Prisão Exílio A punição de súditos inocentes é contrária à lei de natureza Mas o dano infligido durante a guerra a inocentes não o é nem aquele que é infligido por rebeldes declarados A recompensa pode ser salário ou graça Os benefícios concedidos por medo não são recompensas Salários fixos e ocasionais CAP XXIX Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado A dissolução dos Estados deriva de sua instituição imperfeita Falta de poder absoluto Julgamento privado do bem e do mal Consciência errônea Pretensão à inspiração Sujeição do poder soberano às leis civis Atribuição de propriedade absoluta aos súditos Divisão do poder soberano Imitação das nações vizinhas Imitação dos gregos e dos romanos Governo misto Falta de dinheiro Monopólios e abusos dos publicanos Homens populares Excessivo tamanho de uma cidade multiplicação das corporações Liberdade de disputar contra o poder soberano Dissolução do Estado CAP XXX Do cargo do soberano representante Procurar conseguir o bem do povo Pela instrução e pelas leis Contra o dever do soberano renunciar a qualquer direito essencial da soberania ou não fazer que se ensinem ao povo seus fundamentos Objeção dos que dizem que não há princípios de razão para a soberania absoluta Objeção baseada na incapacidade do vulgo Os súditos devem ser ensinados e não afetar as mudanças de governo nem prestar adesão contra o soberano a homens populares nem disputar contra o poder soberano devem ter dias destinados à aprendizagem de seu dever e honrar seus pais E evitar a prática de injúrias e fazer tudo sinceramente e de coração 0 uso das Universidades Igualdade dos impostos Caridade pública Prevenção da ociosidade 0 que são as boas leis As que são necessárias As que são evidentes Penas Recompensas Conselheiros Comandos Militares CAP XXXI Do Reino de Deus por natureza Objetivo dos capítulos seguintes Quem são os súditos do Reino de Deus Uma tripla palavra de Deus razão revelação e profecia Um duplo Reino de Deus natural e profético 0 direito de soberania de Deus é derivado de sua onipotência 0 pecado não é a causa de toda aflição As leis divinas 0 que são a honra e a veneração Diversos sinais de honra Adoração natural e arbitrária Adoração ordenada e livre Adoração pública e privada Finalidade da adoração Atributos da honra divina Ações que são sinais da honra divina A adoração pública consiste na uniformidade Todos os atributos dependem das leis civis Nem todas as ações Punições naturais Conclusão da segunda parte TERCEIRA PARTE DO ESTADO CRISTÃO CAP XXXII Dos princípios da política cristã A palavra de Deus transmitida pêlos Profetas é o princípio mais importante da política cristã Mas não deve renunciarse à razão natural 0 que é cativar o entendimento Como Deus fala aos homens Através de que sinais são conhecidos os profetas Os sinais de um profeta na antiga lei são os milagres e a doutrina conforme à lei Cessando os milagres cessam também os profetas e as Escrituras tomam seu lugar CAP XXXIII Do número antiguidade alcance autoridade e intérpretes dos livros das Sagradas Escrituras Dos livros das Sagradas Escrituras Sua antiguidade 0 Pentateuco não foi escrito por Moisés 0 livro de Josué foi escrito depois de seu tempo Os livros dos Juízes e de Rute foram escritos muito depois do cativeiro 0 mesmo ocorreu com os livros de Samuel Os livros dos Reis e as Crônicas Esdras e Neemias Ester Jó Os Salmos Os provérbios 0 Eclesiastes e os Cânticos Os Profetas 0 Novo Testamento Formulação do problema da autoridade das Escrituras Sua autoridade e interpretação CAP XXXIV Do significado de espírito anjo e inspiração nos livros das Sagradas Escrituras 0 sentido de corpo e espírito nas Escrituras 0 Espírito de Deus tear nas Escrituras às vezes o sentido de um vento um hálito Em segundo lugar o de extraordinários dons de entendimento Em terceiro lugar o de extraordinários sentimentos Em quarto lugar o de dons de predição por intermédio de sonhos e visões Em quinto lugar o de vida Em sexto lugar o de subordinação à autoridade Em sétimo lugar o de corpos aéreos 0 que é um anjo 0 que é a inspiração CAP XXXV Do significado de Reino de Deus Santo Sagrado e Sacramento nas Escrituras 0 Reino de Deus é entendido pêlos religiosos em sentido metafísico e pelas Escrituras em sentido próprio A origem do Reino de Deus Que o Reino de Deus é propriamente sua soberania civil sobre um determinado povo mediante um pacto 0 que é Santo 0 que é Sagrado Graus de santidade Sacramento CAP XXXVI Da palavra de Deus e dos Profetas 0 que é palavra Tanto as pala uras proferidas por Deus quanto as palavras relativas a Deus são chamadas palavras de Deus nas Escrituras A palavra de Deus foi usada metaforicamente em primeiro lugar para significar os decretos e o poder de Deus Em segundo lugar para significar os efeitos de sua palavra Em terceiro lugar para significar as palavras de razão e eqüidade Diversas acepções da palavra profeta A predição de eventos futuros nem sempre é profecia A maneira como Deus falou aos profetas Aos profetas extraordinários do Antigo Testamento falou através de sonhos e visões Aos profetas de vocação perpétua e supremos Deus falou no Antigo Testamento desde a sede de sua clemência de uma maneira não indicada nas Escrituras Aos profetas de vocação perpétua mas subalternos Deus falou através do Espírito Por vezes Deus falou através de sortes Todo homem deve examinar a probabilidade de uma pretensa vocação de profeta Toda profecia a não ser a do Soberano Profeta deve ser examinada por todo súdito CAP XXXVII Dos milagres e seu uso Um milagre é uma obra que causa admiração E deve portanto ser rara e não ter causa conhecida 0 que a um homem parece um milagre pode a outro não parecêlo A finalidade dos milagres Definição de um milagre Que os homens tendem a deixarse enganar por falsos milagres Cuidados contra a impostura dos milagres CAP XXXVIII Do significado da Vida Eterna Inferno Salvação Mundo Vindouro e Redenção nas Escrituras 0 lugar da eternidade de Adão se não tivesse pecado teria sido o Paraíso Terrestre Textos respeitantes ao lugar da vida eterna para os crentes Ascensão ao céu Lugar que ocuparão depois do julgamento os que nunca pertenceram ao Reino de Deus ou que lhe pertenceram e foram expulsos 0 Tártaro A congregação dos gigantes 0 lago do fogo As trevas absolutas Gehena e Tophet Do sentido literal das Escrituras a respeito do inferno Satanás e Diabo não são propriamente nomes mas apelativos Tormentos do inferno As alegrias da vida eterna e a salvação são a mesma coisa A salvação do pecado e da miséria são uma só 0 lugar da salvação eterna A redenção CAP XXXIX Do significado da palavra Igreja nas Escrituras Igreja casa do Senhor 0 que é propriamente Ecclesia Em que sentido a Igreja é uma pessoa Definição de Igreja Estado Cristão e Igreja são uma coisa só CAP XL Dos direitos do Reino de Deus em Abraão Moisés nos Sumos Sacerdotes e nos Reis de Judá Os direitos soberanos de Abraão Abraão tinha o poder exclusivo para ordenar a religião de seu próprio povo Nenhuma pretensão de espírito privado contra a religião de Abraão Abraão único juiz e intérprete do que Deus manifestou Em que assentava a autoridade de Moisés Moisés foi abaixo de Deus soberano dos judeus durante toda a vida embora Aarão exercesse o sacerdócio Todos os espíritos estavam subordinados ao espírito de Moisés Depois de Moisés a soberania pertence ao Sumo Sacerdote Do poder soberano entre a época de Josué e a de Saul Dos direitos dos reis de Israel A prática da supremacia na religião não existia na época dos reis segundo o direito à mesa Depois do cativeiro os judeus não tiveram um Estado estabelecido CAP XLI Da missão do Nosso Abençoado Salvador As três partes da missão de Cristo Sua missão como redentor 0 Reino de Cristo não é deste mundo A finalidade da vinda de Cristo era renovar o pacto do Reino de Deus e persuadir os eleitos a abraçálo o que constituía a segunda parte de sua missão A pregação de Cristo não era contrária à lei dos judeus nem à de César A terceira parte de sua missão era ser rei abaixo de seu Pai dos eleitos A autoridade de Cristo no Reino de Deus é subordinada à de seu Pai Um e mesmo Deus a pessoa representada por Moisés e por Cristo CAP XLII Do poder eclesiástico Do Espírito Santo que desceu sobre os apóstolos Da Trindade 0 poder eclesiástico é apenas o poder de ensinar Um argumento em favor disto é o poder do próprio Cristo do nome de regeneração de sua comparação com a pesca a levedura e a semeadura Da natureza da fé da autoridade que Cristo conferiu aos príncipes civis 0 que os cristãos podem fazer para evitar a perseguição Dos mártires Argumento baseado nos pontos de sua missão Da pregação E do ensino Batizar e perdoar e reter os pecados Da excomunhão 0 uso da excomunhão sem poder civil não tem efeito algum sobre um apóstata Mas apenas sobre os fiéis Quais asfaltas que incorrem em excomunhão Das pessoas sujeitas a excomunhão Do intérprete das Escrituras antes de os soberanos civis se tornarem cristãos Do poder de transformar as Escrituras em lei Dos dez Mandamentos Da lei judicial e da lei levítica A segunda lei Quando o Antigo Testamento se tornou canônico 0 Novo Testamento começou a ser canônico com os soberanos cristãos Do poder dos Concílios para transformar as Escrituras em lei Do direito de instituir funcionários eclesiásticos no tempo dos apóstolos Matias instituído como apóstolo pela congregação Paulo e Barnabé instituídos como apóstolos pela congregação Paulo e Barnabé instituídos como apóstolos pela igreja de Antioquia Quais os cargos da Igreja que são magisteriais Ordenação de mestres Que são os ministros da Igreja e como são escolhidos Dos rendimentos eclesiásticos sob a lei de Moisés Na época de nosso Salvador e depois Os ministros do Evangelho viviam da benevolência de seus rebanhos Que o soberano civil sendo cristão tem o direito de designar pastores Somente a autoridade pastoral dos soberanos é de jure divina e a dos outros pastores é jure civili Os reis cristãos têm poder para desempenhar toda espécie de funções pastorais Se o soberano civil for cristão será cabeça da Igreja em seus próprios domínios Exame do livro De Summo Pontífice do cardeal Belarmino 0 primeiro livro 0 segundo livro 0 terceiro livro 0 quarto livro Os textos sobre a infalibilidade dos juízos dos Papas em pontos de fé Textos sobre o mesmo em matéria de costumes 0 problema da superioridade entre o Papa e outros bispos Do poder temporal dos Papas CAP XLIII Do que é necessário para alguém entrar no Reino dos Céus A dificuldade de obedecer ao mesmo tempo a Deus e ao homem não é nada para quem distingue entre o que é e o que não é necessário para a salvação Tudo o que é necessário para a salvação está contido na fé e na obediência Que obediência é necessária e a que leis Nafé do cristão qual é a pessoa em que se acredita As causas da fé cristã A fé adquirese ouvindo D único artigo necessário da fé cristã provado pêlos propósitos dos evangelistas pêlos sermões dos apóstolos pela facilidade da doutrina por textos formais e claros Pelo falo de ser o fundamento de todos os outros artigos Em que sentido outros artigos podem ser considerados necessários Que tanto a fé como a obediência são necessárias para a salvação Com que cada uma delas contribui para tal A obediência a Deus e ao soberano civil não são incompatíveis quer seja cristão quer seja infiel QUARTA PARTE DO REINO DAS TREVAS CAP XLIV Das trevas espirituais resultantes da má interpretação das Escrituras 0 que é o reino das trevas A Igreja ainda não está totalmente livre das trevas Quatro causas das trevas espirituais Erros derivados de má interpretação das Escrituras relativamente ao Reino de Deus Como que o Reino de Deus é a atual Igreja e que o Papa é seu vigário geral e que os pastores são seu clero Erros derivados da confusão entre consagração e conjuração Encantamento nas cerimônias de batismo E no casamento na visitação dos doentes e na consagração de lugares Erros derivados da confusão entre vida eterna e morte para sempre como a doutrina do purgatório e os exorcismos e a invocação dos santos Os textos apresentados em apoio das doutrinas acima referidas já tinham sido refutados Réplica ao texto em que Beza se apoia para inferir que o Reino de Cristo começou com a ressurreição Explicação da passagem em Marcos 9 Abuso de alguns outros textos em defesa do poder do Papa 0 ritual da consagração nas Escrituras não incluía exorcismos As Escrituras não provam que a imortalidade da alma humana seja da natureza e sim da graça 0 que são os tormentos eternos Réplica aos textos apresentados como prova do purgatório Réplica às passagens do Novo Testamento apresentadas como prova do purgatório Como deve ser entendido o batismo dos mortos CAP XLV Da demonologia e outros vestígios da religião dos gentios A origem da demonologia 0 que eram os demônios dos antigos Como se espalhou essa doutrina Até que ponto foi aceite pêlos judeus Por que nosso Salvador não a controlou As Escrituras não ensinam que os espíritos sejam incorpóreos 0 poder de expulsar os demônios não é o mesma que era na Igreja primitiva Outro vestígio do gentilismo a adoração das imagens foi deixada na Igreja não implantada nela Réplica a certos textos que parecem justificar as imagens 0 que é o culto Distinção entre culto divino e culto civil D que é uma imagem Fantasmas Ficções Imagens materiais 0 que é a idolatria Escandalosa adoração das imagens Réplica ao argumento dos querubins e da serpente de bronze A pintura de seres fantásticos não é idolatria mas éo seu abuso no culto religioso Como a idolatria foi deixada na Igreja Canonização dos santos 0 nome de Pontifex Procissão de imagens Velas de ceias e tochas acesas CAP XLVI Das trevas resultantes de vã filosofia e das tradições fabulosas 0 que é filosofia A prudência não faz parte da filosofia Nenhuma doutrina falsa faz parte da filosofia nem tampouco a revelação sobrenatural nem o saber adquirido pela aceitação dos autores Dos inícios e progresso da filosofia Das escolas de filosofia entre os atenienses Das escolas dos judeus As escolas dos gregos são improfícuas As escolas dos judeus são improfícuas 0 que é a Universidade Erros introduzidos na religião pela metafísica de Aristóteles Erros relativos às essências abstratas Nunc stans Um corpo em diversos lugares e diversos corpos em um s6 lugar ao mesmo tempo Absurdos da filosofia natural como a gravidade tomada como causa do peso A quantidade posta no corpo já feito Infusão das almas Ubiqúidade de aparição A vontade como causa do querer A ignorância é uma causa oculta Uma faz coisas incongruentes e outra a incongruência 0 apetite pessoal é a regra do bem público e de que o matrimônio legítimo seja falta de castidade e todo governo fora o popular seja tirania que o governo não seja de homens mas das leis Leis acima da consciência Interpretações pessoais da lei A linguagem dos clérigos das Escolas Erros derivados da tradição Supressão da razão CAP XLVII Do beneficio resultante de tais trevas e a quem aproveita Aquele que recebeu o beneficio de um fato deve ser considerado seu autor Que a Igreja militante é o Reino de Deus como primeiramente foi ensinado pela Igreja de Roma E conservado também pelo presbitério Infalibilidade Sujeição aos bispos Isenções do clero Os nomes de sacerdotes e sacrifícios 0 sacramento do matrimônio 0 celibato sacerdotal A confissão auricular A canonização dos Santos e a declaração dos mártires Transubstanciação penitência absolvição Purgatório indulgências obras externas Demonologia e exorcismo A teologia das Escolas Quem são os autores das trevas espirituais Comparação do Papado com o reino das fadas Revisão e Conclusão AO MEU MUI ESTIMADO AMIGO Sr francis Godolphin De Godolphin Estimado Senhor Aprouve a vosso mui merecedor irmão Sr Sidney Godolphin quando era ainda vivo considerar dignos de atenção a meus estudos e além disso privilegiarme conforme sabeis com testemunhos efetivos de sua boa opinião testemunhos que em si mesmos já eram grandes e maiores eram ainda dado o merecimento de sua pessoa Pois de todas as virtudes que a homem é dado ter seja a serviço de Deus seja a serviço de seu país da sociedade civil ou da amizade particular nenhuma deixava de manifestamente se revelar em sua conversação não que fossem adquiridas por necessidade ou constituíssem uma afetação de momento mas porque lhe eram inerentes e rebrilhavam na generosa constituição de sua natureza É portanto em sinal de honra e gratidão para com ele e de devoção para convosco que humildemente vos dedico este meu discurso sobre o Estado Ignoro como o mundo irá recebêlo ou como poderá refletirse naqueles que parecem serlhe favoráveis Pois apertado entre aqueles que de um lado se batem por uma excessiva liberdade e do outro por uma excessiva autoridade é difícil passar sem ferimento por entre as lanças de ambos os lados No entanto creio que o esforço para aprimorar o poder civil não deverá ser pelo poder civil condenado nem pode suporse que os particulares ao repreendêlo declarem julgar demasiado grande esse poder Além do mais não é dos homens no poder que falo e sim em abstrato da sede do poder tal como aquelas simples e imparciais criaturas no Capitólio de Roma que com seu ruído defendiam os que lá dentro estavam não porque fossem quem eram mas apenas porque lá se encontravam sem ofender ninguém creio a não ser os de fora ou os de dentro se de tal espécie os houver que lhes sejam favoráveis O que talvez possa ser tomado como ofensa são certos textos das Sagradas Escrituras por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada Mas filo com a devida submis são e também dado meu assunto porque tal era necessário Pois eles são as fortificações avançadas do inimigo de onde este ameaça o poder civil E se apesar disto verificardes que meu trabalho é atacado por todos talvez vos apraza desculparme dizendo que sou um homem que ama suas próprias opiniões que acredito em tudo o que digo que honrei vosso irmão como vos honro a vós e nisso me apoiei para assumir o título sem vosso conhecimento de ser como sou Senhor Vosso mui humilde e mui obediente servidor THO HOBBES Paris 1525 de abril de 1651 Introdução Do mesmo modo que tantas outras coisas a natureza a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo é imitada pela arte dos homens também nisto que lhe é possível fazer um animal artificial Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento dos membros cujo início ocorre em alguma parte principal interna por que não poderíamos dizer que todos os autômatos máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas tal como um relógio possuem uma vida artificial Pois o que é o corarão senão uma mola e os nervos senão outras tantas cordas e as juntas senão outras tantas rodas imprimindo movimento ao corpo inteiro tal como foi projetado pelo Artífice E a arte vai mais longe ainda imitando aquela criatura racional a mais excelente obra da natureza o Homem Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado ou Cidade em latim Civitas que não é senão um homem artificial embora de maior estatura e força do que o homem natural para cuja proteção e defesa foi projetado E no qual a soberania é uma alma artificial pois dá vida e movimento ao corpo inteiro os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos juntas artificiais a recompensa e o castigo pêlos quais ligados ao trono da soberania todas as juntas e membros são levados a cumprir seu dever são os nervos que fazem o mesmo no corpo natural a riqueza e prosperidade de todos os membros individuais são a força Salus Populi a segurança do povo é seu objetivo os conselheiros através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas são a memória a justiça e as leis uma razão e uma vontade artificiais a concórdia é a saúde a sedição é a doença e a guerra civil é a morte Por último os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas reunidas e unificadas assemelhamse àquele Fiat ao Façamos o homem proferido por Deus na Criação Para descrever a natureza deste homem artificial examinarei Primeiro sua matéria e seu artífice ambos os quais são o homem Segundo como e através de que convenções é feito quais são os direitos e o justo poder ou autoridade de um soberano e o que o preserva e o desagrega Terceiro o que é um Estado Cristão Quarto o que é o Reino das Trevas Relativamente ao primeiro aspecto há um ditado que ultimamente tem sido muito usado que a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros mas do homem Em conseqüência do que aquelas pessoas que regra geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria comprazemse em mostrar o que pensam ter lido nos homens através de impiedosas censuras que fazem umas às outras por trás das costas Mas há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a lerse uns aos outros se se dessem ao trabalho de fazêlo isto é Nosce te ipsum Lête a ti mesmo O que não pretendia ter sentido atualmente habitual de pôr cobro à bárbara conduta dos detentores do poder para com seus inferiores ou de levar homens de baixa estirpe a um comportamento insolente para com seus superiores Pretendia ensinarnos que a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes homens quem quer que olhe para dentro de si mesmo e examine o que faz quando pensa opina raciocina espera receia etc e por que motivos o faz poderá por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os outros homens em circunstâncias idênticas Refirome à semelhança das paixões que são as mesmas em todos os homens desejo medo esperança etc e não à semelhança dos objetos das paixões que são as coisas desejadas temidas esperadas etc Quanto a estas últimas a constituição individual e a educação de cada um são tão variáveis e são tão fáceis de ocultar a nosso conhecimento que os caracteres do coração humano emaranhados e confusos como são devido à dissimulação à mentira ao fingimento e às doutrinas errôneas só se tornam legíveis para quem investiga os corações E embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações tentar fazêlo sem comparálas com as nossas distinguindo todas as circunstâncias capazes de alterar o caso é o mesmo que decifrar sem ter uma chave e deixarse as mais das vezes enganar quer por excesso de confiança ou por excesso de desconfiança conforme aquele que lê seja um bom ou um mau homem Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através de suas ações isso servirlheá apenas com seus conhecidos que são muito poucos Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler em si mesmo não este ou aquele indivíduo em particular mas o gênero humano O que é coisa difícil mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência mas ainda assim depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria leitura o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram o mesmo em si próprios Pois esta espécie de doutrina não admite outra demonstração PRIMEIRA PARTE DO HOMEM CAPÍTULO I Da sensação No que se refere aos pensamentos do homem considerálosei primeiro isoladamente e depois em cadeia ou dependentes uns dos outros Isoladamente cada um deles é uma representação ou aparência de alguma qualidade ou outro acidente de um corpo exterior a nós o que comumente se chama um objeto O qual objeto atua nos olhos nos ouvidos e em outras partes do corpo do homem e pela forma diversa como atua produz aparências diversas A origem de todas elas é aquilo que denominamos sensação pois não há nenhuma concepção no espírito do homem que primeiro não tenha sido originada total ou parcialmente nos órgãos dos sentidos O resto deriva daquela origem Para o que agora nos ocupa não é muito necessário conhecer a causa natural da sensação e escrevi largamente sobre o assunto em outro lugar Contudo para preencher cada parte do meu presente método repetirei aqui rapidamente o que foi dito A causa da sensação é o corpo exterior ou objeto que pressiona o órgão próprio de cada sentido ou de forma imediata como no gosto e tato ou de forma mediata como na vista no ouvido e no cheiro a qual pressão pela mediação dos nervos e outras cordas e membranas do corpo prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração causa ali uma resistência ou contrapressão ou esforço do coração para se transmitir cujo esforço porque para fora parece ser de algum modo exterior E é a esta aparência ou ilusão que os homens chamam sensação e consiste no que se refere à visão numa luz ou cor figurada em relação ao ouvido num som em relação ao olfato num cheiro em relação à língua e paladar num sabor e em relação ao resto do corpo em frio calor dureza macieza e outras qualidades tantas quantas discernimos pelo sentir Todas estas qualidades denominadas sensíveis estão no objeto que as causa mas são muitos os movimentos da matéria que pressionam nossos órgãos de maneira diversa Também em nós que somos pressionados elas nada mais são do que movimentos diversos pois o movimento nada produz senão o movimento Mas sua aparência para nós é ilusão quer guando estamos acordados quer quando estamos sonhando E do mesmo modo que pressionar esfregar ou bater nos olhos nos faz supor uma luz e pressionar o ouvido produz um som também os corpos que vemos ou ouvimos produzem o mesmo efeito pela sua ação forte embora n observada Porque se essas cores e sons estivessem nos corpos ou objetos que os causam não podiam ser separados deles como nos espelhos e nos ecos por reflexão vemos que eles são nos quais sabemos que a coisa que vemos está num lugar e a aparência em outro E muito embora a uma certa distância o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós mesmo assim o objeto é uma coisa e a imagem ou ilusão uma outra De tal modo que em todos os casos a sensação nada mais é do que a ilusão originária causada como disse pela pressão isto é pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos ouvidos e outros órgãos a isso determinados Mas as escolas de Filosofia em todas as Universidades da Cristandade baseadas em certos textos de Aristóteles ensinam outra doutrina e dizem a respeito da causa da visão que a coisa vista envia em todas as direções uma species visível ou traduzindo uma exibição aparição ou aspecto visível ou um ser visto cuja recepção nos olhos é a visão E quanto à causa da audição dizem que a coisa ouvida envia uma species audível isto é um aspecto audível ou um ser audível o qual entrando na orelha faz a audição Também no que se refere à causa do entendimento dizem que a coisa compreendida emite uma species inteligível isto é um ser inteligível o qual entrando no entendimento nos faz entender Não digo isto para criticar o uso das Universidades mas porque devendo mais adiante falar em seu papel no Estado tenho de mostrar em todas as ocasiões em que isso vier a propósito que coisas devem nelas ser corrigidas entre as quais temos de incluir a freqüência do discurso destituído de significado CAPÍTULO II Da imaginação Nenhum homem duvida da verdade da seguinte afirmação quando uma coisa está imóvel permanecerá imóvel para sempre a menos que algo a agite Mas não é tão fácil aceitar esta outra que quando uma coisa está em movimento permanecerá eternamente em movimento a menos que algo a pare muito embora a razão seja a mesma a saber que nada pode mudar por si só Porque os homens avaliam não apenas os outros homens mas todas as outras coisas por si mesmos e porque depois do movimento se acham sujeitos à dor e ao cansaço pensam que todo o resto se cansa do movimento e procura naturalmente o repouso sem meditarem se não consiste em qualquer outro movimento esse desejo de repouso que encontram em si próprios Daí se segue que as escolas afirmam que os corpos pesados caem para baixo por falta de um desejo para o repouso e para conservação da sua natureza naquele lugar que é mais adequado para eles atribuindo de maneira absurda a coisas inanimadas o desejo e o conhecimento do que é bom para sua conservação o que é mais do que o homem possui Quando um corpo está em movimento movese eternamente a menos que algo o impeça e seja o que for que o faça não o pode extinguir totalmente num só instante mas apenas com o tempo e gradualmente como vemos que acontece com a água pois muito embora o vento deixe de soprar as ondas continuam a rolar durante muito tempo ainda O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem quando ele vê sonha etc pois após a desaparição do objeto ou quando os olhos estão fechados conservamos ainda a imagem da coisa vista embora mais obscura do que quando a vemos E é a isto que os latinos chamam imaginação por causa da imagem criada pela visão e aplicam o mesmo termo ainda que indevidamente a todos os outros sentidos Mas os gregos chamamlhe fantasia que significa aparência e é tão adequado a um sentido como a outro A imaginação nada mais é portanto senão uma sensação diminuída e encontrase nos homens tal como em muitos outros seres vivos quer estejam adormecidos quer estejam despertos A diminuição da sensação nos homens acordados não é a diminuição do movimento feito na sensação mas seu obscurecimento um pouco à maneira como a luz do sol obscurece a luz das estrelas as quais nem por isso deixam de exercer a virtude pela qual são visíveis durante o dia menos do que à noite Mas porque entre as muitas impressões que os nossos olhos ouvidos e outros órgão recebem dos corpos exteriores só é sensível a impressão predominante assim também sendo a luz do sol predominante não somos afetados pela ação das estrelas E quando qualquer objeto e afastado dos nossos olhos muito embora permaneça a impressão que fez em nós outros objetos mais presentes sucedemse e atuam em nós e a imaginação do passado fica obscurecida e enfraquecida tal como a voz de um homem no ruído diário Daqui se segue que quanto mais tempo decorrer desde a visão ou sensação de qualquer objeto tanto mais fraca é a imaginação Pois a contínua mudança do corpo do homem destrói com o tempo as partes que foram agitadas na sensação de tal modo que a distância no tempo e no espaço têm ambas o mesmo efeito em nós Pois tal como à distância no espaço os objetos para que olhamos nos aparecem minúsculos e indistintos em seus pormenores e as vozes se tornam fracas e inarticuladas assim também depois de uma grande distância de tempo a nossa imaginação do passado é fraca e perdemos por exemplo muitos pormenores das cidades que vimos das ruas e muitas circunstâncias das ações Esta sensação diminuída quando queremos exprimir a própria coisa isto é a própria ilusão denominase imaginação como já disse anteriormente mas quando queremos exprimir a diminuição e significar que a sensação é evanescente antiga e passada denominase memória Assim a imaginação e a memória são uma e a mesma coisa que por razões várias tem nomes diferentes Muita memória ou a memória de muitas coisas chamase experiência A imaginação diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação ou de uma só vez ou por partes em várias vezes A primeira que consiste em imaginar o objeto em sua totalidade tal como ele se apresentou na sensação é a imaginação simples como quando imaginamos um homem ou um cavalo que vimos antes a outra é composta como quando a partir da visão de um homem num determinado momento e de um cavalo em outro momento concebemos no nosso espírito um centauro Assim quando alguém compõe a imagem de sua própria pessoa com a imagem das ações de outro homem como quando alguém se imagina um Hércules ou um Alexandre o que freqüentemente acontece àqueles que lêem muitos romances tratase de uma imaginação composta e na verdade nada mais é do que uma ficção do espírito Existem também outras imagens que surgem nos homens ainda que em estado de vigília devido a uma forte impressão feita na sensação como acontece quando depois de olharmos fixamente para o Sol permanece diante dos nossos olhos uma imagem do Sol que se conserva durante muito tempo depois ou quando depois de atentar longa e fixamente para figuras geométricas o homem ainda que em estado de vigília tem no escuro as imagens de linhas e ângulos diante de seus olhos Este tipo de ilusão não tem nenhum nome especial por ser uma coisa que não aparece comumente no discurso dos homens As imaginações daqueles que se encontram adormecidos denominamse sonhos E também estas tal como as outras imaginações estiveram anteriormente ou em sua totalidade ou parcialmente na sensação E porque na sensação o cérebro e os nervos que constituem os órgãos necessários da sensação estão de tal modo entorpecidos que não são facilmente agitados pela ação dos objetos externos não pode haver no sono qualquer imaginação ou sonho que não provenha da agitação das partes internas do corpo do homem Estas partes internas pela conexão que têm com o cérebro e outros órgãos quando estão agitadas mantêm os mesmos em movimento Donde se segue que as imaginações ali anteriormente formadas surgem como se o homem estivesse acordado com a ressalva que estando agora os órgãos dos sentidos entorpecidos a ponto de nenhum novo objeto os poder dominar e obscurecer com uma impressão mais vigorosa um sonho tem de ser mais claro em meio a este silêncio da sensação do que nossos pensamentos quando despertos E daqui se segue que é uma questão difícil e talvez mesmo impossível estabelecer uma distinção clara entre sensação e sonho No que me diz respeito quando observo que nos sonhos não penso muitas vezes nem constantemente nas mesmas pessoas lugares objetos ações que ocupam o meu pensamento quando estou acordado e que não recordo uma tão longa cadeia de pensamentos coerentes sonhando como em outros momentos e porque acordado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos mas nunca sonho com os absurdos de meus pensamentos despertos contentome com saber que estando desperto não sonho muito embora quando sonho me julgue acordado E dado que os sonhos são causados pela perturbação de algumas das parte internas do corpo perturbações diversas têm de causar sonhos diversos E daqui se segue que estar deitado com frio provoca sonhos de terror e faz surgir o pensamento e a imagem de alguns objetos temerosos sendo recíprocos o movimento do cérebro para as partes internas e das partes internas para o cérebro E que do mesmo modo que a cólera provoca quando estamos acordados calor em alugas partes do corpo assim também quando estamos dormindo o excesso de calor de algumas das partes provoca a cólera e faz surgir no cérebro a imaginação de um inimigo Da mesma maneira tal como a bondade natural causa deseje quando estamos despertos e o desejo provoca calor em certas outras partes do corpo assim também o excesso de calor nessas partes enquanto dormimos faz surgir no cérebro uma imaginação de alguma bondade manifestada Em suma nossos sonhos são o reverso de nossas imaginações despertas iniciandose o movimento por um lado quando estamos acordados e por outro quando sonhamos Observase a maior dificuldade em discernir o sonho dos pensamentos despertos quando por qualquer razão nos apercebemos de que não dormimos o que é fácil de acontecer a um homem cheio de pensamentos terríveis e cuja consciência se encontra muito perturbada e dorme sem mesmo ir para a cama ou tirar a roupa como alguém que cabeceia numa cadeira Pois aquele que se esforça por dormir e cuidadosamente se deita para adormecer no caso de lhe aparecer alguma ilusão inesperada e extravagante só a pode pensar como um sonho Lemos acerca de Marcos Bruto aquele a quem a vida foi concedida por Júlio César e que foi também o seu valido e que apesar disso o matou de que maneira em Filipi na noite antes da batalha contra César Augusto viu uma tremenda aparição que é freqüentemente narrada pelos historiadores como uma visão mas consideradas as circunstâncias podemos facilmente ajuizar que nada mais foi do que um curto sonho Pois estando em sua tenda pensativo e perturbado com o horror de seu ato temerário não lhe foi difícil ao dormitar no frio sonhar com aquilo que mais o atemorizava e esse temor assim como gradualmente o fez acordar também gradualmente deve ter feito a aparição desaparecer E não tendo nenhuma certeza de ter dormido não podia ter qualquer razão para pensála como um sonho ou qualquer outra coisa que não fosse uma visão E isto não acontece raramente pois mesmo aqueles que estão perfeitamente acordados se foram temerosos e supersticiosos se se encontrarem possuídos por contos de horror e estiverem sozinhos no escuro estão sujeitos a tais ilusões e julgam ver espíritos e fantasmas de pessoas mortas passeando nos cemitérios quando ou é apenas ilusão deles ou então a velhacaria de algumas pessoas que se servem desse temor supersticioso para andar disfarçados de noite a caminho de lugares que não gostariam que se soubesse serem por elas freqüentados Desta ignorância quanto à distinção entre os sonhos e outras ilusões fortes e a visão e a sensação surgiu no passado a maior parte da religião dos gentios os quais adoravam sátiros faunos ninfas e outros seres semelhantes e nos nossos dias a opinião que a gente grosseira tem das fadas fantasmas e gnomos e do poder das feiticeiras Pois no que se refere às feiticeiras não penso que sua feitiçaria seja algum poder verdadeiro mas contudo elas são justamente punidas pela falsa crença que possuem acrescentada ao seu objetivo de a praticarem se puderem estando sua atividade mais próxima de uma nova religião do que de uma arte ou uma ciência E quanto às fadas e fantasmas ambulantes a idéia deles foi penso com o objetivo ou expresso ou não refutado de manter o uso do exorcismo das cruzes da água benta e outras tantas invenções de homens religiosos Contudo não há dúvida de que Deus pode provocar aparições não naturais mas não é questão de dogma na fé cristã que ele as provoque com tanta freqüência que os homens as devam temer mais do que temem a permanência ou a modificação do curso da Natureza que ele também pode deter e mudar Mas homens perversos com o pretexto de que Deus nada pode fazer levam a sua ousadia ao ponto de afirmarem seja o que for que lhes convenha muito embora saibam que é mentira Cabe ao homem sensato só acreditar naquilo que a justa razão lhe apontar como crível Se desaparecesse este temor supersticioso dos espíritos e com ele os prognósticos tirados dos sonhos as falsas profecias e muitas outras coisas dele decorrentes graças às quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples os homens estariam muito mais bem preparados do que agora para a obediência civil E esta devia ser a tarefa das Escolas mas elas pelo contrário alimentam tal doutrina Pois ignorando o que seja a imaginação ou a sensação aquilo que recebem ensinam uns dizendo que as imaginações surgem deles mesmos e não têm causa outros afirmando que elas surgem mais comumente da vontade e que os bons pensamentos são insuflados inspirados no homem por Deus e os maus pensamentos pelo Diabo Ou então que os bons pensamentos são despejados infundidos no homem por Deus e os maus pensamentos pelo Diabo Alguns dizem que os sentidos recebem as espécies das coisas e as transmitem ao sentido comum e o sentido comum as transmite por sua vez à fantasia e a fantasia à memória e a memória ao juízo tal como coisas passando de mão em mão com muitas palavras que nada ajudam à compreensão A imaginação que surge no homem ou qualquer outra criatura dotada da faculdade de imaginar pelas palavras ou quaisquer outros sinais voluntários é o que vulgarmente chamamos entendimento e é comum ao homem e aos outros animais Pois um cão treinado entenderá o chamamento ou a reprimenda do dono e o mesmo acontece com outros animais Aquele entendimento que é próprio do homem é o entendimento não só de sua vontade mas também de suas concepções e pensamentos pela seqüência e contextura dos nomes das coisas em afirmações negações e outras formas de discurso e deste tipo de entendimentos falarei mais adiante CAPÍTULO III Da conseqüência ou cadeia de imaginações Por conseqüência ou cadeia de pensamentos entendo aquela sucessão de um pensamento a outro que se denomina para se distinguir do discurso em palavras discurso mental Quando o homem pensa seja no que for o pensamento que se segue não é tão fortuito como poderia parecer Não é qualquer pensamento que se segue indiferentemente a um pensamento Mas assim como não temos uma imaginação da qual não tenhamos tido antes uma sensação na sua totalidade ou em parte do mesmo modo não temos passagem de uma imaginação para outra se não tivermos tido previamente o mesmo nas nossas sensações A razão disto é a seguinte todas as ilusões são movimentos dentro de nós vestígios daqueles que foram feitos na sensação e aqueles movimentos que imediatamente se sucedem uns aos outros na sensação continuam também juntos depois da sensação Assim aparecendo novamente o primeiro e sendo predominante o outro segueo por coerência da matéria movida à maneira da água sobre uma mesa lisa que quando se empurra uma parte com o dedo o resto segue também Mas porque na sensação de uma mesma coisa percebida ora se sucede uma coisa ora outra acontece no tempo que ao imaginarmos alguma coisa não há certeza do que imaginaremos em seguida Só temos a certeza de que será alguma coisa que antes num ou noutro momento se sucedeu àquela Esta cadeia de pensamentos ou discurso mental é de dois tipos O primeiro é livre sem desígnio e inconstante Como quando não há um pensamento apaixonado para governar e dirigir aqueles que se lhe seguem como fim ou meta de algum desejo ou outra paixão Neste caso dizse que os pensamentos vagueiam e parecem impertinentes uns aos outros como acontece no sonho Assim são comumente os pensamentos dos homens que não só estão sem companhia mas também sem quaisquer preocupações embora mesmo então seus pensamentos estejam tão ocupados como em qualquer outro momento mas desta vez sem harmonia como o som de um alaúde fora de tom ou mesmo dentro do tom tocado por alguém que não saiba tocar E contudo nesta selvagem disposição de espírito o homem pode muitas vezes perceber o seu curso e a dependência de um pensamento em relação a outro Pois num discurso da nossa atual guerra civil que coisa pareceria mais impertinente do que perguntar como efetivamente aconteceu qual era o valor de um dinheiro romano Contudo para mim a coerência era assaz manifesta pois o pensamento da guerra trouxe o pensamento da entrega do rei aos seus inimigos este pensamento trouxe o pensamento da entrega de Cristo e este por sua vez o pensamento dos trinta dinheiro que foram o preço da traição e daí facilmente se seguiu aquela pergunta maliciosa E tudo isto num breve momento pois o pensamento é célere A segunda é mais constante por ser regulada por algum desejo ou desígnio Pois a impressão feita por aquelas coisas que desejamos ou receamos é forte e permanente ou quando cessa por alguns momentos de rápido retorno É por vezes tão forte que impede e interrompe nosso sono Do desejo surge o pensa mento de algum meio que vimos produzir algo de semelhante àquilo que almejamos e do pensamento disso o pensamento de meios para aquele meio e assim sucessivamente até chegarmos a algum início dentre de nosso próprio poder E porque o fim pela grandeza da impressão vem muitas vezes ao espírito no caso de nossos pensamentos começarem a divagar eles são rapidamente trazidos de novo ao caminho certo O que observado por um dos sete sábios o levou a dar aos homens o seguinte preceito que hoje está esquecido Respice finem o que significa que em todas as nossas ações devemos olhar muitas vezes para aquilo que queremos ter pois deste modo concentramos todos os nossos pensamentos na forma de o atingir A cadeia dos pensamentos regulados é de duas espécies uma quando a partir de um efeito imaginado procuramos as causas ou meios que o produziram e esta espécie é comum ao homem e aos outros animais a outra é quando imaginando seja o que for procuramos todos os possíveis efeitos que podem por essa coisa ser produzidos ou por outras palavras imaginamos o que podemos fazer com ela quando a tivermos Desta espécie só tenho visto indícios no homem pois se trata de uma curiosidade pouco provável na natureza de qualquer ser vivo que não tenha outras paixões além das sensuais como por exemplo a fome a sede a lascívia e a cólera Em suma o discurso do espírito quando é governado pelo desígnio nada mais é do que procura ou a capacidade de invenção que os latinos denominaram sagacitas e solertia uma busca das causas de algum efeito presente ou passado ou dos efeitos de alguma causa passada ou presente Umas vezes o homem procura aquilo que perdeu e daquele lugar e tempo em que sentiu a sua falta o seu espírito volta atrás de lugar em lugar de momento em momento a fim de encontrar onde e quando o tinha ou por outras palavras para encontrar algum momento e lugar certo e limitado no qual possa começar um método de procura Mais uma vez daí os seus pensamentos percorrem os mesmos lugares e momentos a fim de descobrir que ação ou outra ocasião o podem ter feito perder A isto chamamos recordarão ou o ato de trazer ao espírito os latinos chamavamlhe reminiscentia por se tratar de um reconhecimento das nossas ações passadas Às vezes o homem conhece um lugar determinado no âmbito do qual ele deve procurar e então seus pensamentos acorrem de todos os lados para ali como quando alguém varre uma sala para encontrar uma jóia ou quando um cachorro percorre um campo para encontrar um rastro ou quando um homem percorre o alfabeto para iniciar uma rima Às vezes o homem deseja conhecer o acontecimento de uma ação e então pensa em alguma ação semelhante no passado e os acontecimentos dela uns após os outros supondo que acontecimentos semelhantes se devem seguir a ações semelhantes Como aquele que prevê o que acontecerá a um criminoso reconhece aquilo que ele viu seguirse de crimes semelhantes no passado tendo esta ordem de pensamentos o crime o oficial de justiça a prisão o juiz e as galés A este tipo de pensamentos se chama previsão e prudência ou providência e algumas vezes sabedoria embora tal conjetura devido à dificuldade de observar todas as circunstâncias seja muito falaciosa Mas isto é certo quanto mais experiência das coisas passadas tiver um homem tanto mais prudente é e suas previsões raramente falham Só o presente tem existência na natureza as coisas passadas têm existência apenas na memória mas as coisas que estão para vir não têm existência alguma sendo o futuro apenas uma ficção do espírito aplicando as conseqüências das ações passadas às ações que são presentes o que é feito com muita certeza por aquele que tem mais experiência mas não com a certeza suficiente E muito embora se denomine prudência quando o acontecimento corresponde a nossa expectativa contudo em sua própria natureza nada mais é do que suposição Poisa previsão das coisas que estão para vir que é providência só compete àquele por cuja vontade as coisas devem acontecer Dele apenas e sobrenaturalmente deriva a profecia O melhor profeta naturalmente é o melhor adivinho e o melhor adivinho aquele que é mais versado e erudito nas questões que adivinha pois ele tem maior número de sinais pelos quais se guiar Um sinal é o evento antecedente do conseqüente e contrariamente o conseqüente do antecedente quando conseqüências semelhantes foram anteriormente observadas E quanto mais vezes tiverem sido observadas menos incerto é o sinal E portanto aquele que possuir mais experiência em qualquer tipo de assunto tem maior número de sinais por que se guiar para adivinhar os tempos futuros e consequentemente é o mais prudente E muito mais prudente do que aquele que é novato nesse assunto desde que não seja igualado por qualquer vantagem de uma sabedoria natural e extemporária muito embora os jovens possam pensar o contrário Contudo não é a prudência que distingue o homem dos outros animais Há animais que com um ano observam mais e alcançam aquilo que é bom para eles de uma maneira mais prudente do que jamais alguma criança poderia fazer com dez anos Do mesmo modo que a prudência é uma suposição do futuro tirada da experiência dos tempos passados também há uma suposição das coisas passadas tirada de outras coisas não futuras mas também passadas Pois aquele que tiver visto por que graus e fases um Estado florescente primeiro entra em guerra civil e depois chega à ruína ao observar as ruínas de qualquer outro Estado pressuporá uma guerra semelhante e fases semelhantes ali também Mas esta conjetura tem quase a mesma incerteza que a conjetura do futuro sendo ambas baseadas apenas na experiência Não há qualquer outro ato do espírito humano que eu possa lembrar naturalmente implantado nele que exija alguma coisa mais além do fato de ter nascido homem e de ter vivido com o uso de seus cinco sentidos Aquelas outras faculdades das quais falarei a pouco e pouco e que parecem características apenas do homem são adquiridas e aumentadas com o estudo e a indústria e são aprendidas pelo homem através da instrução e da disciplina e procedem todas da invenção das palavras e do discurso Pois além da sensação e dos pensamentos e da cadeia de pensamentos o espírito do homem não tem qualquer outro movimento muito embora com a ajuda do discurso e do método as mesmas faculdades possam ser desenvolvidas a tal ponto que distinguem os homens de todos os outros seres vivos Seja o que for que imaginemos é finito Portanto não existe qualquer idéia ou concepção de algo que denominamos infinito Nenhum homem pode ter em seu espírito uma imagem de magnitude infinita nem conceber uma velocidade infinita um tempo infinito ou uma força infinita ou um poder infinito Quando dizemos que alguma coisa é infinita queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada não tendo concepção da coisa mas de nossa própria incapacidade Portanto o nome de Deus é usado não para nos fazer concebêlo pois ele é incompreensível e sua grandeza e poder são inconcebíveis mas para que o possamos venerar Também porque como disse antes seja o que for que concebamos foi primeiro percebido pela sensação quer tudo de uma vez quer por partes O homem não pode ter um pensamento representando alguma coisa que não esteja sujeita à sensação Nenhum homem portanto pode conceber uma coisa qualquer mas tem de a conceber em algum lugar e dotada de uma determinada magnitude e suscetível de ser dividida em partes Que alguma coisa está toda neste lugar e toda em outro lugar ao mesmo tempo que duas ou mais coisas podem estar num e no mesmo lugar ao mesmo tempo nenhuma destas coisas jamais ocorreu ou pode ocorrer na sensação mas são discursos absurdos aceitos pela autoridade sem qualquer significação de filósofos iludidos e de escolásticos iludidos ou iludidores CAPÍTULO IV Da linguagem A invenção da imprensa conquanto engenhosa comparada com a invenção das letras é coisa de somenos importância Mas ignorase quem pela primeira vez descobriu o uso das letras Dizse que o primeiro que as trouxe para a Grécia foi Cadmus filho de Agenor rei da Fenícia Uma invenção fecunda para prolongar a memória dos tempos passados e estabelecer a conjunção da humanidade dispersa por tantas e tão distantes regiões da Terra e com dificuldade como se vê pela cuidadosa observação dos diversos movimentos da língua palato lábios e outros órgãos da fala em estabelecer tantas diferenças de caracteres quantas as necessárias para recordar Mas a mais nobre e útil de todas as invenções foi a da linguagem que consiste em nomes ou apelações e em suas conexões pelas quais os homens registram seus pensamentos os recordam depois de passarem e também os usam entre si para a utilidade e conversa recíprocas sem o que não haveria entre os homens nem Estado nem sociedade nem contrato nem paz tal como não existem entre os leões os ursos e os lobos O primeiro autor da linguagem foi o próprio Deus que ensinou a Adão a maneira de designar aquelas criaturas que colocava à sua vista pois as Escrituras nada mais dizem a este respeito Mas isto foi suficiente para leválo a acrescentar mais nomes à medida que a experiência e o convívio com as criaturas lhe forneciam ocasião para isso e para ligálos gradualmente de modo a fazerse compreender E assim com o passar do tempo pôde ser encontrada toda aquela linguagem para a qual ele descobriu uma utilidade embora não fosse tão abundante como aquela de que necessita o orador ou o filósofo Pois nada encontrei nas Escrituras que pudesse afirmar direta ou indiretamente que a Adão foram ensinados os nomes de todas as figuras números medidas cores sons ilusões relações e muito menos os nomes de palavras e de discursos como geral especial afirmativo negativo interrogativo optativo infinitivo as quais são todas úteis e muito menos os de entidade intencionalidade qüididade e outras insignificantes palavras das Escolas Mas toda esta linguagem adquirida e aumentada por Adão e sua posteridade foi novamente perdida na torre de Babel quando pela mão de Deus todos os homens foram punidos devido a sua rebelião com o esquecimento de sua primitiva linguagem E sendo depois disso forçados a dispersaremse pelas várias partes do mundo resultou necessariamente que a diversidade de línguas que hoje existe proveio gradualmente dessa separação à medida que a necessidade a mãe de todas as invenções os foi ensinando e com o passar dos tempos tornaramse por toda a parte mais abundantes O uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um discurso verbal ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia de palavras E isto com duas utilidades uma das quais consiste em registrar as conseqüências de nossos pensamentos os quais podendo escapar de nossa memória e levarnos deste modo a um novo trabalho podem ser novamente recordados por aquelas palavras com que foram marcados De maneira que a primeira utilização dos nomes consiste em servirem de marcas ou notas de lembrança Uma outra utilização consiste em significar quando muitos usam as mesmas palavras pela sua conexão e ordem uns aos outros aquilo que concebem ou pensam de cada assunto e também aquilo que desejam temem ou aquilo por que experimentam alguma paixão E devido a esta utilização são chamados sinais Os usos especiais da linguagem são os seguintes em primeiro lugar registrar aquilo que por cogitação descobrimos ser a causa de qualquer coisa presente ou passada e aquilo que achamos que as coisas presentes ou passadas podem produzir ou causar o que em suma é adquirir artes Em segundo lugar para mostrar aos outros aquele conhecimento que atingimos ou seja aconselhar e ensinar uns aos outros Em terceiro lugar para darmos a conhecer aos outros nossas vontades e objetivos a fim de podermos obter sua ajuda Em quarto lugar para agradar e para nos deliciarmos e aos outros jogando com as palavras por prazer e ornamento de maneira inocente A estes usos correspondem quatro abusos Primeiro quando os homens registram erradamente seus pensamentos pela inconstância da significação de suas palavras com as quais registram por suas concepções aquilo que nunca conceberam e deste modo se enganam Em segundo lugar quando usam palavras de maneira metafórica ou seja com um sentido diferente daquele que lhes foi atribuído e deste modo enganam os outros Em terceiro lugar quando por palavras declaram ser sua vontade aquilo que não é Em quarto lugar quando as usam para se ofenderem uns aos outros pois dado que a natureza armou os seres vivos uns com dentes outros com chifres e outros com mãos para atacarem o inimigo nada mais é do que um abuso da linguagem ofendêlo com a língua a menos que se trate de alguém que somos obrigados a governar mas então não é ofender e sim corrigir e punir A linguagem serve para a recordação das conseqüências de causas e efeitos através da imposição de nomes e da conexão destes Alguns dos nomes são próprios e singulares a uma só coisa como Pedro João este homem esta árvore e alguns são comuns a muitas coisas como homem cavalo árvore cada um dos quais apesar de ser um só nome é contudo o nome de várias coisas particulares em relação às quais em conjunto se denomina um universal nada havendo no mundo universal além de nomes pois as coisas nomeadas são cada uma delas individuais e singulares Um nome universal é atribuído a muitas coisas devido a sua semelhança em alguma qualidade ou outro acidente e enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas os universais recordam qualquer dessas muitas coisas E dos nomes universais uns são de maior e outros de menor extensão os mais amplos compreendendo os menos amplos e alguns de igual extensão compreendendose uns aos outros reciprocamente Como por exemplo o nome corpo tem maior significação do que a palavra homem e a compreende e os nomes homem e racional são de igual extensão compreendendose um ao outro mutuamente Mas aqui devemos chamar a atenção para o fato de por um nome não se entender sempre como na gramática uma só palavra mas às vezes por circunlocução muitas palavras juntas pois todas estas palavras aquele que em suas ações observa as leis do seu país constituem um só nome equivalente a esta simples palavra justo Por esta imposição de nomes uns mais amplos outros de significação mais restrita transformamos o cálculo das conseqüências de coisas imaginadas no espírito num cálculo das conseqüências de apelações Por exemplo um homem que não possui qualquer uso da linguagem como aquele que nasceu e permaneceu completamente surdo e mudo se tiver diante dos olhos um triângulo e também dois ângulos retos como os dos cantos de um quadrado pode através de medição comparar e descobrir que os três ângulos daquele triângulo são iguais àqueles dois ângulos retos que estão ao lado Mas se lhe for mostrado um outro triângulo diferente do primeiro na forma ele não pode saber sem um novo trabalho se os três ângulos desse triângulo são também iguais ao mesmo Mas aquele que tem o uso das palavras quando observa que tal igualdade era conseqüente não do comprimento dos lados nem de qualquer outro aspecto particular do triângulo mas apenas do fato de os lados serem retos e os ângulos três e de isso ser aquilo que o levava a denominar tal figura um triângulo não hesitará em concluir universalmente que tal igualdade dos ângulos existe em todos os triângulos sejam eles quais forem e em registrar sua invenção nestes termos gerais Todo triângulo tem seus três ângulos iguais a dois ângulos retos E assim a conseqüência descoberta num caso particular passa a ser registrada e recordada como uma regra universal e alivia nosso cálculo mental do espaço e do tempo e libertanos de todo o trabalho do espírito economizando o primeiro e faz que aquilo que se descobriu ser verdade aqui e agora seja verdade em todos os tempos e lugares Mas o uso de palavras para registrar nossos pensamentos não é tão evidente como na numeração Um louco natural que nunca conseguisse aprender de cor a ordem das palavras numerais como um dois três pode observar cada pancada de um relógio e acompanhar com a cabeça ou dizer um um um mas nunca pode saber que horas estão batendo E parece que houve uma época em que esses nomes de números não estavam em uso e os homens contentavamse em utilizar os dedos de uma ou das duas mãos para aquelas coisas que desejavam contar e daí resultou que hoje as nossas palavras numerais só são dez em qualquer nação e em algumas só são cinco caso em que se recomeça de novo E aquele que sabe contar dez se os recitar fora de ordem perderseá e não saberá o que esteve a fazer E muito menos será capaz de adicionar e subtrair e realizar todas as outras operações da aritmética De modo que sem palavras não há qualquer possibilidade de reconhecer os números e muito menos as grandezas a velocidade a força e outras coisas cujo cálculo é necessário à existência ou ao bemestar da humanidade Quando dois nomes estão ligados numa conseqüência ou afirmação como por exemplo O homem é um ser vivo ou esta outra Se ele for um homem é um ser vivo se o último nome ser vivo significar tudo o que o primeiro nome homem significa então a afirmação ou conseqüência é verdadeira de outro modo é falsa Pois o verdadeiro e o falso são atributos da linguagem e não das coisas E onde não houver linguagem não há nem verdade nem falsidade Pode haver erro como quando esperamos algo que não acontece ou quando suspeitamos algo que não aconteceu mas em nenhum destes casos se pode acusar um homem de inveracidade Vendo então que a verdade consiste na adequada ordenação de nomes em nossas afirmações um homem que procurar a verdade rigorosa deve lembrarse que coisa substitui cada palavra de que se serve e colocála de acordo com isso de outro modo verseá enredado em palavras como uma ave em varas enviscadas quanto mais lutar mais se fere E portanto em geometria que é a única ciência que prouve a Deus conceder à humanidade os homens começam por estabelecer as significações de suas palavras e a esse estabelecimento de significações chamam definições e colocamnas no início de seu cálculo Por aqui se vê como é necessário a qualquer pessoa que aspire a um conhecimento verdadeiro examinar as definições dos primeiros autores ou para corrigilas quando tiverem sido estabelecidas de maneira negligente ou para apresentar as suas próprias Pois os erros de definições se multiplicam à medida que o cálculo avança e conduzem os homens a absurdos que finalmente descobrem mas que não conseguem evitar sem calcular de novo desde o princípio no que reside a base de seus erros De onde se segue que aqueles que acreditam nos livros procedem como aqueles que somam muitas pequenas somas numa maior sem atentarem se essas pequenas somas foram ou não corretamente somadas e finalmente encontrando o erro visível e não duvidando das suas primeiras bases não sabem que caminho seguir para se esclarecerem mas gastam tempo azafamandose em torno de seus livros como aves que entrando numa chaminé e vendose fechadas num quarto adejam em torno da enganadora luz de uma janela por não possuírem a sabedoria suficiente para atentarem por que caminho entraram De tal modo que na correta definição de nomes reside o primeiro uso da linguagem o qual consiste na aquisição de ciência e na incorreta definição ou na ausência de definições reside o primeiro abuso do qual resultam todas as doutrinas falsas e destituídas de sentido o que torna aqueles homens que tiram sua instrução da autoridade dos livros e não de sua própria meditação tão inferiores à condição dos ignorantes quanto são superiores a estes os homens revestidos de uma verdadeira ciência Pois entre a verdadeira ciência e as doutrinas errôneas situase a ignorância A sensação e a imaginação naturais não estão sujeitas a absurdos A natureza em si não pode errar e à medida que os homens vão adquirindo uma abundância de linguagem vãose tornando mais sábios ou mais loucos do que habitualmente Nem é possível sem letras que algum homem se torne ou extraordinariamente sábio ou amenos que sua memória seja atacada por doença ou deficiente constituição dos órgãos extraordinariamente louco Pois as palavras são os calculadores dos sábios que só com elas calculam mas constituem a moeda dos loucos que a avaliam pela autoridade de um Aristóteles de um Cícero ou de um Tomás ou de qualquer outro doutor que nada mais é do que um homem Sujeito aos nomes é tudo aquilo que pode entrar ou ser considerado num cálculo e ser acrescentado um ao outro para fazer uma soma ou subtraído um do outro e deixar um resto Os latinos chamavam aos cômputos de moeda rationes e ao cálculo ratiocinatio e àquilo que nós em contas ou livros de cálculo denominamos itens chamavam nomina isto é nomes e daí parece resultar a extensão da palavra ratio à faculdade de contar em todas as outras coisas Os gregos têm uma só palavra lógos para linguagem e razão não que eles pensassem que não havia linguagem sem razão mas sim que não havia raciocínio sem linguagem E ao ato de raciocinar chamaram silogismo o que significa somar as conseqüências de uma proposição a outra E porque as mesmas coisas podem entrar em cômputo para diversos acidentes seus nomes são para mostrar essa diversidade diversamente deturpados e diversificados Esta diversidade dos nomes pode ser reduzida a quatro grupos gerais Em primeiro lugar uma coisa pode entrar em conta para matéria ou corpo como vivo sensível racional quente frio movido parado com todos os quais nomes a palavra matéria ou corpo é entendida sendo todos eles nomes de matéria Segundo pode entrar em conta ou ser considerada para algum acidente ou qualidade que concebemos estar nela como para ser movido ser tão longo ser quente etc e então do nome da própria coisa por uma pequena mudança ou alteração fazemos um nome para aquele acidente que consideramos e para vivo fazemos vida para movido movimento para quente calor para comprido comprimento e assim sucessivamente E todos esses nomes são os nomes dos acidentes e propriedades pelos quais a matéria e o corpo se distinguem um do outro A estes nomes chamase nomes abstratos porque separados não da matéria mas do cálculo da matéria Em terceiro lugar consideramos as propriedades de nossos próprios corpos mediante as quais estabelecemos distinções como quando alguma coisa é vista por nós nós contamos não a própria coisa mas a visão a cor a idéia dela na fantasia e quando alguma coisa é ouvida não a contamos mas a audição ou o som apenas que é nossa fantasia ou concepção dela pelo ouvido e estes são nomes de fantasia Em quarto lugar levamos em conta consideramos e denominamos os próprios nomes e discursos pois geral universal especial equívoco são nomes de nomes E afirmação interrogarão ordem narração silogismo sermão oração e tantos outros são nomes de discursos E esta é toda a variedade de nomes positivos que são usados para marcar algo que existe na natureza ou que pode ser concebido pelo espírito do homem como corpos que existem ou que podem ser concebidos como existentes ou corpos cujas propriedades são ou podem ser concebidas ou palavras e discursos Há também outros nomes chamados negativos que são notas para significar que uma palavra não é o nome da coisa em questão como estas palavras nada ninguém infinito indizível três não são quatro e outras semelhantes que contudo se usam no cômputo ou na correção do cômputo e trazem ao espírito nossas cogitações passadas muito embora não sejam nomes de coisa alguma porque nos fazem recusar admitir nomes que não são adequadamente usados Todos os outros nomes nada mais são do que sons insignificantes e estes são de duas espécies Uma delas quando são novos e o seu sentido ainda não foi explicado por uma definição e desta espécie existem muitos inventados pelos homens das Escolas e pelos filósofos confusos Uma outra espécie quando se faz de dois nomes um só nome muito embora suas significações sejam contraditórias e inconsistentes como por exemplo este nome corpo incorpóreo ou o que é o mesmo substância incorpórea e um grande número de outros como estes Pois sempre que qualquer afirmação seja falsa os dois nomes pelos quais é composta postos lado a lado e tornados num só não significam absolutamente nada Por exemplo se for uma afirmação falsa dizer um quadrângulo é redondo a expressão quadrângulo redondo nada significa e é um simples som Do mesmo modo se for falso dizer que a virtude pode ser infundida ou insuflada e retirada as expressões virtude infundida virtude insuflada são tão absurdas e insignificantes como um quadrângulo redondo E portanto dificilmente encontraremos uma palavra destituída de sentido e insignificante que não seja formada por alguns nomes latinos ou gregos Um francês raras vezes ouve chamar nosso Salvador pelo nome Palavra mas muitas vezes pelo nome de Verbo e contudo Verbo e Palavra em nada mais diferem senão no fato de uma ser latina e outra francesa Quando um homem ao ouvir qualquer discurso tem aqueles pensamentos para os quais as palavras desse discurso e a sua conexão foram ordenadas e constituídas então dizemos que ele o compreendeu não sendo o entendimento outra coisa senão a concepção causada pelo discurso E portanto se a linguagem é peculiar ao homem como pelo que sei deve ser então também o entendimento lhe é peculiar E portanto não pode haver compreensão de afirmações absurdas e falsas no caso de serem universais muito embora muitos julguem que compreendem quando nada mais fazem do que repetir tranqüilamente as palavras ou graválas em seu espírito Quando falar das paixões falarei dos tipos de discurso que significam os apetites as aversões e as paixões do espírito do homem e também de seu uso e abuso Os nomes daquelas coisas que nos afetam isto é que nos agradam e desagradam porque todos os homens não são igualmente afetados pelas mesmas coisas nem o mesmo homem em todos os momentos são nos discursos comuns dos homens de significação inconstante Pois dado que todos os nomes são impostos para significar nossas concepções e todas as nossas afeições nada mais são do que concepções quando concebemos as mesmas coisas de forma diferente dificilmente podemos evitar denominálas de forma diferente também Pois muito embora a natureza do que concebemos seja a mesma contudo a diversidade de nossa recepção dela no que se refere às diferentes constituições do corpo e aos preconceitos da opinião dá a tudo a coloração de nossas diferentes paixões Portanto ao raciocinar o homem tem de tomar cautela com as palavras que além da significação daquilo que imaginamos de sua natureza também possuem uma significação da natureza disposição e interesse do locutor Assim são os nomes de virtudes e vícios pois um homem chama sabedoria àquilo que outro homem chama temor crueldade o que para outro é justiça prodigalidade o que para outro é magnanimidade gravidade o que para outro é estupidez etc E portanto tais nomes nunca podem ser verdadeiras bases de qualquer raciocínio Como também não o podem ser as metáforas e os tropos do discurso más estes são menos perigosos pois ostentam sua inconstância ao passo que os outros não o fazem CAPÍTULO V Da razão e da ciência Quando alguém raciocina nada mais faz do que conceber uma soma total a partir da adição de parcelas ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra o que se for feito com palavras é conceber da conseqüência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte E muito embora em algumas coisas como nos números além de adicionar e subtrair os homens nomeiem outras operações como multiplicar e dividir contudo são as mesmas pois a multiplicação nada mais é do que a adição conjunta de coisas iguais e a divisão a subtração de uma coisa tantas vezes quantas for possível Estas operações não são características apenas dos números mal também de toda a espécie de coisas que podem ser somadas juntas e tiradas umas das outras Pois do mesmo modo que os aritméticos ensinam a adicionar e a subtrair com números também os geômetras ensinam o mesmo com linhas figuras sólidas e superficiais ângulos proporções tempos graus de velocidade força poder e outras coisas semelhantes Os lógicos ensinam o mesmo com conseqüências de palavras somando juntos dois nomes para fazer uma afirmação e duas afirmações para fazer um silogismo e muitos silogismos para fazer uma demonstração e da soma ou conclusão de um silogismo subtraem uma proposição para encontrar a outra Os escritores de política adicionam em conjunto pactos para descobrir os deveres dos homens e os juristas leis e fatos para descobrir o que é certo e errado nas ações dos homens privados Em suma seja em que matéria for que houver lugar para a adição e para a subtração há também lugar para a razão e onde aquelas não tiverem o seu lugar também a razão nada tem a fazer A partir do que podemos definir isto é determinar que coisa é significada pela palavra razão quando a contamos entre as faculdades do espírito Pois razão neste sentido nada mais é do que cálculo isto é adição e subtração das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos Digo marcar quando calculamos para nós próprios e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos para os outros homens E tal como na aritmética os homens sem prática e mesmo professores podem muitas vezes errar e contar falso também em qualquer outro tema de raciocínio os homens mais capazes mais atentos e mais práticos se podem enganar e inferir falsas conclusões Não porque a razão em si própria não seja sempre uma ruão certa tal como a aritmética é uma arte infalível e certa Mas a razão de nenhum homem nem a razão de seja que número for de homens constitui a certeza tal como nenhum cômputo é bem feito porque um grande número de homens o aprovou unanimemente E portanto tal como quando há uma controvérsia a propósito de um cálculo as partes têm de por acordo mútuo recorrer a uma razão certa à razão de algum árbitro ou juiz a cuja sentença se submetem a menos que sua controvérsia se desfaça e permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída pela natureza o mesmo acontece em todos os debates sejam de que natureza forem E quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem uma razão certa para juiz nada mais procuram senão que as coisas sejam determinadas não pela razão de outros homens mas pela sua própria É tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo uma vez escolhido o trunfo usar como trunfo em todas as ocasiões aquela série de que se tem mais cartas na mão Pois nada mais fazem do que tomar cada uma de suas paixões à medida que vão surgindo neles pela certa razão e isto em suas próprias controvérsias revelando sua falta de justa razão com a exigência que fazem dela O uso e finalidade da razão não é descobrir a soma e a verdade de uma ou várias conseqüências afastadas das primeiras definições e das estabelecidas significações de nomes mas começar por estas e seguir de uma conseqüência para outra Pois não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de todas aquelas afirmações e negações nas quais se baseou e das quais foi inferida Como quando um chefe de família ao fazer uma conta adiciona as somas de todas as notas de despesa numa só soma e não considerando de que modo cada nota foi feita por aqueles que lhe apresentaram a conta nem aquilo que está pagando procede como se aceitasse a conta total confiando na habilidade e na honestidade dos contadores do mesmo modo no raciocínio de todas as outras coisas aquele que tira conclusões confiado em autores e não as examina desde os primeiros itens em cada cálculo os quais são as significações de nomes estabelecidas por definições perde o seu esforço e nada fica sabendo apenas julga que sabe Quando alguém calcula sem o uso de palavras o que pode ser feito em casos especiais como quando ao ver qualquer coisa conjeturamos o que provavelmente a precedeu ou o que provavelmente se lhe seguirá se aquilo que julgou provável que se seguisse não se seguir ou se aquilo que julgou provável que tivesse precedido não tiver precedido isto chamase erro ao qual estão sujeitos mesmo os homens mais prudentes Mas quando raciocinamos com palavras de significação geral e chegamos a uma inferência geral que é falsa muito embora seja comumente denominada erro é na verdade um absurdo ou um discurso sem sentido Pois o erro é apenas uma ilusão ao presumir que algo aconteceu ou está para acontecer acerca do que muito embora não tivesse acontecido não existe contudo nenhuma impossibilidade aparente Mas quando fazemos uma asserção geral a menos que seja uma asserção verdadeira sua possibilidade é inconcebível E as palavras com as quais nada mais concebemos senão o som são as que denominamos absurdas insignificantes e sem sentido E portanto se alguém me falasse de um quadrângulo redondo ou dos acidentes do pão no queijo ou de substâncias imateriais ou de um sujeito livre livre arbítrio ou qualquer coisa livre mas livre de ser impedida por oposição não diria que estava em erro mas que as suas palavras eram destituídas de sentido ou seja absurdas Disse anteriormente no segundo capítulo que o homem na verdade supera todos os outros animais nesta faculdade que quando ele concebe seja o que for é capaz de inquirir as conseqüências disso e que efeitos pode obter com isso E agora acrescento este outro grau da mesma faculdade que ele sabe com as palavras reduzir as conseqüências que descobre a regras gerais chamadas teoremas ou aforismos isto é sabe raciocinar ou calcular não apenas com números mas com todas as outras coisas que se podem adicionar ou subtrair umas às outras Mas este privilégio é acompanhado de um outro que é o privilégio do absurdo ao qual nenhum ser vivo está sujeito exceto o homem E entre os homens aqueles que professam a filosofia são de todos os que lhe estão mais sujeitos Pois é bem verdade aquilo que Cícero disse algures a seu respeito que nada há mais absurdo do que aquilo que se encontra nos livros de filosofia E a razão disto é manifesta Pois não há um só que comece seus raciocínios com definições ou explicações dos nomes que irá usar o que é um método que só tem sido usado em geometria cujas conclusões foram assim tornadas indiscutíveis Atribuo a primeira causa das conclusões absurdas à falta de método pelo fato de não começarem seu raciocínio com definições isto é com estabelecidas significações de suas palavras como se pudessem contar sem conhecer o valor das palavras numerais um dois e três E atendendo a que todos os corpos entram em conta sob diversas considerações que mencionei no capítulo precedente sendo estas considerações designadas de maneira diferente vários absurdos decorrem da confusão e da inadequada conexão de seus nomes em asserções E portanto A segunda causa das asserções absurdas é por mim atribuída ao fato de se darem aos acidentes nomes de corpos ou aos corpos nomes de acidentes como fazem aqueles que dizem a fé é infundida ou inspirada quando nada pode ser infundido ou insuflado a não ser no corpo ou os que dizem que a extensão é corpo e que os fantasmas são espíritos etc Atribuo a terceira ao fato de se darem nomes de acidentes de corpos exteriores a nós a acidentes de nossos próprios corpos como fazem aqueles que dizem a cor está no corpo o som está no ar etc A quarta ao fato de se darem nomes de corpos a nomes ou discursos como fazem aqueles que dizem que há coisas universais que uma criatura viva é gênero ou uma coisa geral etc A quinta ao fato de se darem nomes de acidentes a nomes e discursos como fazem aqueles que dizem a natureza de uma coisa é sua definição a autoridade de um homem é sua vontade e outras coisas semelhantes A sexta ao uso de metáforas tropos e outras figuras de retórica em vez das palavras próprias Pois embora seja licito dizer por exemplo na linguagem comum o caminho vai ou conduz aqui e ali o provérbio diz isto ou aquilo quando os caminhos não vão nem os provérbios falam contudo no cálculo e na procura da verdade tais discursos não podem ser admitidos A sétima aos nomes que nada significam mas que se tomam e aprendem por hábito nas escolas como hipostático transubstanciar consubstanciar eternoagora e outras semelhantes cantilenas dos escolásticos Para aquele que sabe evitar estas coisas não é fácil cair em qualquer absurdo a menos que seja pela extensão do cálculo no qual pode talvez esquecer o que ficou para trás Pois todos os homens por natureza raciocinam de forma semelhante e bem quando têm bons princípios Quem é tão estúpido a ponto não só de cometer erros em geometria como também de persistir neles quando outra pessoa lhos aponta Por aqui se vê que a razão não nasce conosco como a sensação e a memória nem é adquirida apeias pela experiência como a prudência mas obtida com esforço primeiro através de uma adequada imposição de nomes e em segundo lugar através de um método bom e ordenado de passar dos elementos que são nomes a asserções feitas por conexão de um deles com o outro e daí para os silogismos que são as conexões de uma asserção com outra até chegarmos a um conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão e é a isto que os homens chamam ciência E enquanto a sensação e a memória apenas são conhecimento de fato o que é uma coisa passada e irrevogável a ciência é o conhecimento das conseqüências e a dependência de um fato em relação a outro pelo que a partir daquilo que presentemente sabemos fazer sabemos como fazer qualquer outra coisa quando quisermos ou também em outra ocasião Porque quando vemos como qualquer coisa acontece devido a que causas e por que maneira quando causas semelhantes vierem ao nosso poder sabemos como fazêlas produzir os mesmos efeitos As crianças portanto não são dotadas de nenhuma razão até que atinjam o uso da linguagem mas são denominadas seres racionais devido à aparente possibilidade de terem o uso da razão na sua devida altura E a maior parte dos homens muito embora tenham o uso da razão em certos casos como em contar até certo grau contudo servelhes pouco na vida comum na qual se governam uns melhor outros pior segundo suas diferentes experiências rapidez de memória e inclinações para vários fins mas especialmente segundo a boa ou má fortuna e os erros de uns em relação aos outros Pois no que se refere à ciência ou a certas regras de suas ações estão tão afastados dela que nem sabem que coisa é Consideram a geometria como magia mas em relação às outras ciências aqueles a quem não foram ensinados os fundamentos nem algum progresso nelas a fim de poderem ver como foram adquiridas e geradas são neste ponto como crianças que não fazendo qualquer idéia da geração são levadas pelas mulheres a acreditar que seus irmãos e irmãs não nasceram mas foram encontrados no jardim Contudo aqueles que não possuem qualquer ciência encontramse numa condição melhor e mais nobre com sua natural prudência do que os homens que por raciocinarem mal ou por confiarem na incorreta razão caem em regras gerais falsas e absurdas Porque a ignorância das causas e das regras não afasta tanto os homens de seu caminho como a confiança em falsas regras e o fato de tomarem como causas daquilo a que aspiram causas que o não são mas sim causas do contrário Para finalizar a luz dos espíritos humanos são as palavras perspícuas mas primeiro limpas por meio de exatas definições e purgadas de toda ambigüidade A razão é o passo o aumento da ciência o caminho e o beneficio dá humanidade o fim Pelo contrário as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido são como ignes fatui e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre inúmeros absurdos e o seu fim é a disputa a sedição ou a desobediência Assim como a muita experiência é prudência também a muita ciência é sapiência Pois muito embora só tenhamos o nome de sabedoria para as duas contudo os latinos efetivamente distinguiram entre prudência e sapiência ligando a primeira à experiência e a segunda à ciência Mas para que a diferença entre elas apareça de maneira mais clara suponhamos um homem dotado de um excelente uso natural e dexteridade em mexer os braços e um outro que acrescentou a essa dexteridade uma ciência adquirida acerca do lugar onde pode ferir ou ser ferido pelo seu adversário em todas as possíveis posturas e guardas A habilidade do primeiro estaria para a habilidade do segundo assim como a prudência para a sapiência ambas úteis mas a segunda infalível Mas aqueles que acreditando apenas na autoridade dos livros vão cegamente atrás dos cegos são como aquele que acreditando nas falsas regras de um mestre de esgrima presunçosamente se aventura contra um adversário que ou o mata ou o desgraça Os sinais da ciência são uns certos e infalíveis outros incertos Certos quando aquele que aspira à ciência de alguma coisa sabe ensinar a mesma isto é demonstrar sua verdade de maneira perspícua a alguém Incertos quando apenas alguns eventos particulares correspondem a sua pretensão e em muitas ocasiões se revelam da maneira que ele diz que deviam acontecer Os sinais de prudência são todos incertos porque observar pela experiência e lembrar todas as circunstâncias que podem alterar o sucesso é impossível Mas em qualquer assunto em que o homem não tenha uma infalível ciência pela qual se guiar é sinal de loucura e geralmente desprezado com o nome de pedantismo abandonar o próprio juízo natural para se deixar conduzir por sentenças gerais lidas em autores e sujeitas a muitas exceções E mesmo aqueles homens que nos Conselhos do Estado gostam de ostentar suas leituras de política e de história raramente o fazem em seus negócios privados quando se trata de seus interesses particulares possuindo a prudência suficiente para seus negócios privados mas nos negócios públicos preocupamse mais com a reputação de sua própria sabedoria do que com o sucesso dos negócios alheios CAPÍTULO VI Da origem interna dos movimentos voluntários vulgarmente chamados paixões e da linguagem que os exprime Há nos animais dois tipos de movimento que lhes são peculiares Um deles chamase vital começa com a geração e continua sem interrupção durante toda a vida Deste tipo são a circulação do sangue o pulso a respiração a digestão a nutrição a excreção etc Para estes movimentos não é necessária a ajuda da imaginação O outro tipo é o dos movimentos animais também chamados movimentos voluntários como andar falar mover qualquer dos membros da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente A sensação é o movimento provocado nos órgãos e partes inferiores do corpo do homem pela ação das coisas que vemos ouvimos etc e a imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento que permanece depois da sensação conforme já se disse no primeiro e segundo capítulos E dado que andar falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior de como onde e o que é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários E embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível ou quando o espaço onde ela é movida devido a sua pequenez é insensível não obstante esses movimentos existem Porque um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja movido num espaço maior do qual o espaço pequeno faz parte não deva primeiro ser movido neste último Estes pequenos inícios do movimento no interior do corpo do homem antes de se manifestarem no andar na fala na luta e outras ações visíveis chamamse geralmente esforço Este esforço quando vai em direção de algo que o causa chamase apetite ou desejo sendo o segundo o nome mais geral e o primeiro freqüentemente limitado a significar o desejo de alimento nomeadamente a fome e a sede Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chamase geralmente aversão As palavras apetite e aversão vêm do latim e ambas designam movimentos um de aproximação e o outro de afastamento Também os gregos tinham palavras para exprimir o mesmo hormé e aphormé A própria natureza impõe aos homens certas verdades com as quais depois eles vão chocar quando procuram alguma coisa fora da natureza Pois as Escolas não encontram no simples apetite de mexer ou moverse qualquer espécie de movimento real mas como são obrigados a reconhecer alguma espécie de movimento chamam lhe movimento metafórico o que não passa de uma definição absurda porque só as palavras podem ser chamadas metafóricas não os corpos e os movimentos Do que os homens desejam se diz também que o amam e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão De modo que o desejo e o amor são a mesma coisa salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala em amor geralmente se quer indicar a presença do mesmo Também por aversão se significa a ausência e quando se fala de ódio pretendese indicar a presença do objeto Dos apetites e aversões alguns nascem com o homem como o apetite pela comida o apetite de excreção e exoneração que podem também e mais propriamente ser chamados aversões em relação a algo que se sente dentro do corpo e alguns outros apetites mas não muitos Os restantes são apetites de coisas particulares e derivam da experiência e comprovação de seus efeitos sobre si mesmo ou sobre os outros homens Porque das coisas que inteiramente desconhecemos ou em cuja existência não acreditamos não podemos ter outro desejo que não o de provar e tentar Mas temos aversão não apenas por coisas que sabemos teremnos causado dano mas também por aquelas que não sabemos se podem ou não causarnos dano Das coisas que não desejamos nem odiamos se diz que as desprezamos Não sendo o desprezo outra coisa senão uma imobilidade ou contumácia do coração ao resistir à ação de certas coisas A qual deriva do fato de o coração estar já estimulado de maneira diferente por objetos mais potentes ou da falta de experiência daquelas coisas Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões e muito menos é possível que todos os homens coincidam no desejo de um só e mesmo objeto Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem esse objeto é aquele a que cada um chama bom ao objeto de seu ódio e aversão chama mau e ao de seu desprezo chama vil e indigno Pois as palavras bom mau e desprezível são sempre usadas em relação à pessoa que as usa Não há nada que o seja simples e absolutamente nem há qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos Ela só pode ser tirada da pessoa de cada um quando não há Estado ou então num Estado da pessoa que representa cada um ou também de um árbitro ou juiz que pessoas discordantes possam instituir por consentimento concordando que sua sentença seja aceite como regra A língua latina tem duas palavras cuja significação se aproxima das de bom e mau mas que não são exatamente as mesmas e são as palavras pulchrum e turpe Significando a primeira aquilo que por quaisquer sinais aparentes promete o bem e a segunda aquilo que promete o mal Mas em nossa língua não temos homens suficientemente gerais para exprimir essas idéias Para traduzir pulchrum a respeito de algumas coisas usamos belo de outras lindo ou bonito assim como galante honrado adequado amigável Para traduzir turpe usamos repugnante disforme feio baixo nauseante e termos semelhantes conforme seja exigido pelo objeto Todas estas palavras em sua significação própria indicam apenas o aspecto ou disposição que promete o bem e o mal Assim há três espécies de bem o bem na promessa que é pulchrum o bem no efeito como fim desejado que se chama jucundum delicioso e o bem como meio que se chama utile ou proveitoso E outras tantas espécies de mal pois o mal na promessa é o que se chama turpe o mal no efeito e no fim é molestum desagradável perturbador é o mal como meio inutil e inaproveitável prejudicial Tal como na sensação aquilo que realmente está dentro de nós é apenas movimento como acima já disse provocado pela ação dos objetos externos mas em aparência para a vista a luz e a cor para o ouvido o som para o olfato o odor etc assim também quando a ação do mesmo objeto se prolonga a partir dos olhos dos ouvidos e outros órgãos até o coração o efeito aí realmente produzido não passa de movimento e esforço que consiste em apetite ou aversão em relação ao objeto Mas a aparência ou sensação desse movimento é o que se chama deleite ou então perturbação do espírito Este movimento a que se chama apetite notadamente em sua manifestação como deleite e prazer parece constituir uma corroboração do movimento vital e uma ajuda prestada a este Portanto as coisas que provocam deleite eram com toda a propriedade chamadas jucunda à juvando porque ajudavam e fortaleciam e eram chamadas molesta ofensivas as que impediam e perturbavam o movimento vital Portanto o prazer ou deleite é a aparência ou sensação do bem e desprazer ou desagrado é a aparência ou sensação do mal Consequentemente todo apetite desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor e todo ódio e aversão por um desprazer e ofensa maior ou menor Alguns dos prazeres ou deleites derivam da sensação de um objeto presente e a eles pode chamarse prazeres dos sentidos a palavra sensual tal como é usada apenas por aqueles que condenam esses prazeres só tem lugar depois de existirem leis Desta espécie são todas as onerações e exonerações do corpo além de tudo quanto é agradável à vista ao ouvido ao olfato ao gosto e ao tato Há outros que derivam da expectativa provocada pela previsão do fim ou conseqüências das coisas quer essas coisas agradem ou desagradem aos sentidos que são os prazeres do espírito daquele que tira essas conseqüências e geralmente recebem o nome de alegria De maneira semelhante alguns dos desprazeres residem na sensação e chamaselhes dor outros residem na expectativa de conseqüências e chamaselhes tristeza Estas paixões simples chamadas apetite desejo amor aversão ódio alegria e tristeza recebem nomes diversos conforme a maneira como são consideradas Em primeiro lugar quando uma sucede à outra são designadas de maneiras diversas conforme a opinião que os homens têm da possibilidade de conseguirem os que desejam Em segundo lugar do objeto amado ou odiado Em terceiro lugar da consideração de muitas delas em conjunto E em quarto lugar da alteração da própria sucessão O apetite ligado à crença de conseguir chamase esperança O mesmo sem essa crença chamase desespero A opinião ligada à crença de dano proveniente do objeto chamase medo A coragem súbita chamase cólera A esperança constante chamase confiança em si mesmo O desespero constante chamase desconfiança em si mesmo A cólera perante um grande dano feito a outrem quando pensamos que este foi feito por injúria chamase indignação O desejo do bem dos outros chamase benevolência boa vontade caridade Se for do bem do homem em geral chamase bondade natural O desejo de riquezas chamase cobiça palavra que é sempre usada em tom de censura porque os homens que lutam por elas vêem com desagrado que os outros as consigam embora o desejo em si mesmo deva ser censurado ou permitido conforme a maneira como se procura conseguir essas riquezas O desejo de cargos ou de preeminência chamase ambição nome usado também no pior sentido pela razão acima referida O desejo de coisas que só contribuem um pouco para nossos fins e o medo das coisas que constituem apenas um pequeno impedimento chamase pusilanimidade O desprezo pelas pequenas ajudas e impedimentos chamase magnanimidade A magnanimidade em perigo de morte ou ele ferimentos chamase coragem ou valentia A magnanimidade no uso das riquezas chamase liberalidade A pusilanimidade quanto ao mesmo chamase mesquinhez e tacanhez ou parcimônia conforme dela se goste ou não O amor pelas pessoas sob o aspecto da convivência social chamase amabilidade O amor pelas pessoas apenas sob o aspecto dos prazeres tios sentidos chamase concupiscência natural O amor pelas pessoas adquirido por reminiscência obsessiva isto é por imaginação do prazer passado chamase luxúria O amor por uma só pessoa junto ao desejo de ser amado com exclusividade chamase a paixão do amor O mesmo junto com o receio de que o amor não seja recíproco chamase ciúme O desejo de causar dano a outrem á fim de leválo a 1àmentar qualquer de seus atos chamase ânsia de vingança O desejo de saber o porquê e o como chamase curiosidade e não existe em qualquer criatura viva a não ser rio homem Assim não é só por sua razão que o homem se distingue dos outros animais mas também por esta singular paixão Nos outros animais o apetite pelo alimento e outros prazeres dos sentidos predominam de modo tal que impedem toda preocupação com o conhecimento das causas o qual é um desejo do espírito que devido à persistência do deleite na contínua e infatigável produção do conhecimento supera a fugaz veemência de qualquer prazer carnal O medo dos poderes invisíveis inventados feio espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos chamese religião quando esses não são permitidos chamase superstição Quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos chamase verdadeira religião O medo sem se saber por que ou de que chamase terror pânico nome que lhe vem das fábulas que faziam de Pan seu autor Na verdade existe sempre em quem primeiro sente esse medo uma certa compreensão da causa embora os restantes fujam devido ao exemplo cada um supondo que seu companheiro sabe pior quê Portanto esta paixão só ocorre numa turba ou multidão de pessoas A alegria ao saber de uma novidade chamase admiração é própria do homem porque desperta o apetite de conhecer a causa A alegria proveniente da imaginação do próprio poder e capacidade é aquela exultação do espírito a que se chama glorificação A qual quando baseada na experiência de suas próprias ações anteriores é o mesmo que a confiança Mas quando se baseia na lisonja dos outros ou é apenas suposta pelo próprio para deleitarse com suas conseqüências chamase vanglória Nome muito apropriado porque uma confiança bem fundada leva à eficiência ao passo que a suposição do poder não leva ao mesmo resultado e é portanto justamente chamada vã A tristeza devida à convicção da falta de poder chamase desalento A vanglória que consiste na invenção ou suposição de capacidades que se sabe não se possuir é extremamente freqüente nos jovens e é alimentada pelas narrativas verdadeiras ou fictícias de feitos heróicos Muitas vezes é corrigida pela idade e pela ocupação O entusiasmo súbito é a paixão que provoca aqueles trejeitos a que se chama riso Este é provocado ou por um ato repentino de nós mesmos que nos diverte ou pela visão de alguma coisa deformada em outra pessoa devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos Isto acontece mais com aqueles que têm consciência de menor capacidade em si mesmos e são obrigados a reparar nas imperfeições dos outros para poderem continuar sendo a favor de si próprios Portanto um excesso de riso perante os defeitos dos outros é sinal de pusilanimidade Porque o que é próprio dos grandes espíritos é ajudar os outros a evitar o escárnio e compararse apenas com os mais capazes Pelo contrário o desalento súbito é a paixão que provoca o choro o qual é provocado por aqueles acidentes que bruscamente vêm tirar uma esperança veemente ou por um fracasso do próprio poder E os que lhe estão mais sujeitos são os que contam sobretudo com ajudas externas como as mulheres e as crianças Assim alguns choram porque perderam os amigos outros por causa da falta de amabilidade destes últimos e outros pela brusca paralisação de seus pensamentos de vingança provocada pela reconciliação Mas em todos os casos tanto o riso como o choro são movimentos repentinos e o hábito a ambos faz desaparecer Pois ninguém ri de piadas velhas nem chora por causa de uma velha calamidade A tristeza devida à descoberta de alguma falta de capacidade é a vergonha a paixão que se revela através do rubor Consiste ela na compreensão de uma coisa desonrosa Nos jovens é sinal de amor à boa reputação e é louvável Nos velhos é sinal do mesmo mas como já chega tarde demais não é louvável O desprezo pela boa reputação chamase imprudência A tristeza perante a desgraça alheia chamase piedade e surge do imaginar que a mesma desgraça poderia acontecer a nós mesmos Por isso é também chamada compaixão ou então na expressão atualmente em voga sentimento de companheirismo Assim por calamidades provocadas por uma grande maldade os melhores homens são os que sentem menos piedade e pela mesma calamidade os que sentem menos piedade são os que se consideram menos sujeitos à mesma O desprezo ou pouca preocupação com a desgraça alheia é o que os homens chamam crueldade que deriva da segurança da própria fortuna Pois considero inconcebível que alguém possa tirar prazer dos grandes prejuízos alheios sem que tenha um interesse pessoal no caso A tristeza causada pelo sucesso de um competidor em riqueza honra ou outros bens se se lhe juntar o esforço para aumentar nossas próprias capacidades a fim de igualálo ou superálo chamase emulação Quando ligada ao esforço para suplantar ou levantar obstáculos ao competidor chamase inveja Quando surgem alternadamente no espírito humano apetites e aversões esperanças e medos relativamente a uma mesma coisa quando passam sucessivamente pelo pensamento as diversas conseqüências boas ou más de uma ação ou de evitar uma ação de modo tal que às vezes se sente um apetite em relação a ela e às vezes uma aversão às vezes a esperança de ser capaz de praticála e às vezes o desespero ou medo de empreendêla todo o conjunto de desejos aversões esperanças e medos que se vão desenrolando até que a ação seja praticada ou considerada impossível leva o nome de deliberação Portanto é impossível haver deliberação quanto às coisas passadas pois é manifestamente impossível que estas sejam mudadas nem de coisas que se sabe serem impossíveis porque os homens sabem ou supõem que tal deliberação seria vã Mas é possível deliberar sobre coisas impossíveis quando as supomos possíveis sem saber que será em vão E o nome deliberação vem de ela consistir em pôr fim à liberdade que antes tínhamos de praticar ou evitar a ação conformemente a nosso apetite ou aversão Esta sucessão alternada de apetites aversões esperanças e medos não é maior no homem do que nas outras criaturas vivas consequentemente os animais também deliberam Dizse então que toda deliberação chega ao fim quando aquilo sobre que se deliberava foi feito ou considerado impossível pois até esse momento conservase a liberdade de fazêlo ou evitálo conformemente aos próprios apetites ou aversões Na deliberação o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou à omissão desta é o que se chama vontade o ato não a faculdade de querer Os animais dado que são capazes de deliberações devem necessariamente ter também vontade A definição da vontade vulgarmente dada pelas Escolas como apetite racional não é aceitável Porque se assim fosse não poderia haver atos voluntários contra a razão Pois um ato voluntário é aquele que deriva da vontade e nenhum outro Mas se em vez de dizermos que é um apetite racional dissermos que é um apetite resultante de uma deliberação anterior neste caso a definição será a mesma que aqui apresentei Portanto a vontade é o último apetite na deliberação Embora na linguagem comum se diga que um homem teve uma vez vontade de fazer uma coisa que não obstante evitou fazer isto é propriamente apenas uma inclinação que não constitui uma ação voluntária pois a ação não depende dela e sim da última inclinação ou apetite Porque se todos os apetites intervenientes fizessem de uma ação uma ação voluntária então pela mesma razão todas as aversões intervenientes deveriam fazer da mesma ação uma ação involuntária e assim uma mesma ação seria ao mesmo tempo voluntária e involuntária Fica assim manifesto que as ações voluntárias não são apenas as ações que têm origem na cobiça na ambição na concupiscência e outros apetites em relação à coisa proposta mas também aquelas que têm origem na aversão ou no medo das conseqüências decorrentes da omissão da ação As formas de linguagem através das quais se exprimem as paixões são em parte as mesmas e em parte diferentes daquelas pelas quais se exprimem os pensamentos Em primeiro lugar todas as paixões podem de maneira geral ser expressas no Indicativo como por exemplo amo temo alegrome delibero quero ordeno mas algumas delas têm expressões que lhes são peculiares e todavia não são afirmações a não ser para fazer outras inferências além da inferência da paixão de onde deriva a expressão A deliberação se exprime pelo Subjuntivo que é o modo próprio para significar suposições e suas conseqüências como por exemplo em Se isto for feito esta será a conseqüência Não difere da linguagem do raciocínio salvo que o raciocínio se exprime através de termos gerais e a deliberação se refere sobretudo a casos particulares A linguagem do desejo e da aversão é Imperativa como por exemplo em Fazer isto ou Evita aquilo Quando o outro é obrigado a fazer para evitar essa linguagem é uma ordem caso contrário é um pedido ou então um conselho A linguagem da vanglória ou da indignação da piedade e da vingança é Optativa mas para o desejo de conhecer há uma expressão peculiar a que se lhama Interrogativa como por exemplo em O que é isso Quando será isso Como se faz isso e Por que isso Não conheço mais nenhuma linguagem das paixões porque as maldições juras e insultos e coisas semelhantes são significam enquanto linguagem mas enquanto ações de um linguajar habitual Estas formas de linguagem são expressões ou significações voluntárias de nossas paixões Mas determinados sinais não o são pois podem ser usados arbitrariamente quer aqueles que os usam tenham ou não tais paixões Os melhores sinais das paixões atuais residem na atitude nos movimentos do corpo nas ações e nos fins e objetivos que por outro lado sabemos que a pessoa tem Dado que na deliberação os apetites e aversões são suscitados pela previsão das boas ou más conseqüências e seqüelas da ação sobre a qual se delibera os bons ou maus efeitos dessa ação dependem da previsão de uma extensa cadeia de conseqüências cujo fim muito poucas vezes qualquer pessoa é capaz de ver Mas até o ponto em que se consiga ver que o bem dessas conseqüências é superior ao mal o conjunto da cadeia é aquilo que os autores chamam bem manifesto ou aparente Pelo contrário quando o mal é maior do que o bem o conjunto chamase mal manifesto ou aparente De modo que quem possuir graças à experiência ou à razão a maior e mais segura capacidade de prever as conseqüências é quem melhor é capaz de deliberar e é quem mais é capa quando quer de dar aos outros os melhores conselhos O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos a tempos os homens desejam quer dizer o prosperar constante é aquilo a que os homens chamam felicidade refirome à felicidade nesta vida Pois não existe uma perpétua tranqüilidade de espírito enquanto aqui vivemos porque a própria vida não passa de movimento e jamais pode deixar de haver desejo ou medo tal como não pode deixar de haver sensação Que espécie de felicidade Deus reservou àqueles que devotamente o veneram é coisa que ninguém saberá antes de gozála Pois são alegrias que agora são tão incompreensíveis quanto a expressão visão beatífica usada pelos Escolásticos é ininteligível A forma de linguagem através da qual os homens exprimem sua opinião da excelência de alguma coisa chamase louvor Aquela pela qual exprimem o poder e grandeza de alguma coisa é a exaltação E aquela pela qual exprimem a opinião que têm da felicidade de um homem era pelos gregos chamada makarismós palavra para a qual não existe tradução em nossa língua E isto é quanto basta dizer sobre as paixões para o objetivo do momento CAPÍTULO VII Dos fins ou resoluções do discurso Para todo discurso governado pelo desejo de conhecimento existe pelo menos um fim quer seja para conseguir ou para evitar alguma coisa E onde quer que a cadeia do discurso seja interrompida existe um fim provisório Se o discurso for apenas mental consistirá em pensamentos de que uma coisa será ou não de que ela foi ou não foi alternadamente De modo que onde quer que interrompamos a cadeia do discurso de alguém deixamolo na suposição de que algo será ou não será de que foi ou não foi Tudo isto é opinião E tudo quanto é apetite alternado na deliberação relativa ao bem e ao mal é também opinião alternada na investigação da verdade sobre o passado e o futuro E tal como o último apetite na deliberação se chama vontade assim também a última opinião na busca da verdade sobre o passado e o futuro se chama juízo ou sentença final e decisiva daquele que discursa E tal como o conjunto da cadeia de apetites alternados quanto ao problema do bem e do mal se chama deliberação assim também o conjunto da cadeia de opiniões alternadas quanto ao problema da verdade e da falsidade se chama dúvida Nenhuma espécie de discurso pode terminar no conhecimento absoluto dos fatos passados ou vindouros Porque para o conhecimento dos fatos é necessária primeiro a sensação e depois disso a memória e o conhecimento das conseqüências que acima já disse chamarse ciência não é absoluto mas condicional Ninguém pode chegar a saber através do discurso que isto ou aquilo é foi ou será o que equivale a conhecer absolutamente É possível apenas saber que se isto é aquilo também é que se isto foi aquilo também foi e que se isto será aquilo também será o que equivale a conhecer condicionalmente E não se trata de conhecer as conseqüências de uma coisa para outra e sim as do nome de uma coisa para outro nome da mesma coisa Portanto quando o discurso é exprimido através da linguagem começa pela definição das palavras e procede mediante a conexão das mesmas em afirmações gerais e destas por sua vez em silogismos o fim ou soma total é chamado conclusão e o pensamento por esta significado é aquele conhecimento condicional ou conhecimento das conseqüências das palavras a que geralmente se chama ciência Mas se o primeiro terreno desse discurso não forem as definições ou se as definições não forem corretamente ligadas em silogismos nesse caso o fim ou conclusão volta a ser opinião acerca da verdade de algo afirmado embora às vezes em palavras absurdas e destituídas de sentido sem possibilidade de serem compreendidas Quando duas ou mais pessoas conhecem um e o mesmo fato dizse de cada uma delas que está consciente do fato em relação à outra o que equivale a conhecer conjuntamente E como cada urna delas é para a outra ou para uma terceira a melhor testemunha de tais fatos tem sido e sempre será considerado um ato extremamente perverso que qualquer um fale contra sua consciência ou induza ou force outrem a fazêlo É por isso que o testemunho de consciência tem sido sempre atendido com a maior diligência em todos os tempos Depois passouse a usar metaforicamente a mesma palavra indicando o conhecimento dos fatos secretos e pensamentos secretos de cada um sendo portanto retoricamente que se diz que a consciência equivale a mil testemunhas E finalmente os homens veementemente apaixonados por suas novas opiniões por mais absurdas que fossem e obstinadamente decididos a mantêlas deram também a essas opiniões o reverenciado nome de consciência como se pretendessem considerar ilegítimo mudalas ou falar contra elas e assim pretendem saber que estão certos quando no máximo sabem que pensam estálo Quando o discurso de alguém não começa por definições ou começa por qualquer outra contemplação de si próprio e neste caso continua chamandose opinião ou começa com qualquer afirmação alheia de alguém de cuja capacidade para conhecer a verdade e de cuja honestidade e sinceridade não duvida e neste caso o discurso diz menos respeito à coisa do que à pessoa E à resolução se chama crença e fé Temse fé na pessoa e acreditase tanto a pessoa como a verdade do que ela diz De modo que na crença há duas opiniões uma relativa ao que a pessoa diz e outra relativa a sua virtude Acreditar ter fé em ou confiar em alguém tudo isto significa a mesma coisa a opinião da veracidade de uma pessoa Mas acreditar o que é dito significa apenas uma opinião da verdade da coisa dita Mas deve observarse que a frase creio em como também no latim credo in ou no grego pisteuo eis só é usada nas obras dos teólogos Em vez disso nos outros escritos põese acreditoo ou tenho fé nele ou confio nele em latim credo illi ou fido illi e em grego pisteuo autôi Esta singularidade do uso eclesiástico da palavra deu origem a numerosas disputas relativas ao verdadeiro objeto da fé cristã Mas crer em como no Credo não significa confiar na pessoa e sim uma confissão e aceitação da doutrina Porque não apenas os cristãos mas toda espécie de homens acreditam de tal modo em Deus que aceitam como verdade tudo o que o ouvem dizer quer o compreendam quer não O que é o máximo de fé e confiança que é possível encontrar em qualquer pessoa mas nem todos aceitam a doutrina do Credo De onde pode concluirse que quando acreditamos que qualquer espécie de afirmação é verdadeira com base em argumentos que não são tirados da própria coisa nem dos princípios da razão natural mas são tirados da autoridade e da opinião favorável que temos acerca de quem fez essa afirmação neste caso o objeto de nossa fé é o orador ou a pessoa em quem acreditamos ou em quem confiamos e cuja palavra aceitamos e a honra feita ao acreditar é feita apenas a essa pessoa Consequentemente quando acreditamos que as Escrituras são a palavra de Deus sem ter recebido qualquer revelação imediata do próprio Deus o objeto de nossa crença fé e confiança é a Igreja cuja palavra aceitamos e à qual aquiescemos E aqueles que acreditam naquilo que um profeta lhes diz em nome de Deus aceitam a palavra do profeta honramno e nele confiam e crêem aceitando a verdade do que ele diz quer se trate de um verdadeiro ou de um falso profeta O mesmo se passa também com a outra História Pois se eu não acreditasse tudo o que foi escrito pelos historiadores sobre os feitos gloriosos de Alexandre ou de César não creio que o fantasma de Alexandre ou de César tivesse qualquer motivo justo para ofenderse nem ninguém a não ser o historiador Se Tito Lívio afirma que uma vez os deuses fizeram uma vaca falar e não o acreditamos não estamos com isso retirando nossa confiança a Deus mas a Tito Lívio De modo que é evidente que seja o que for que acreditarmos tendo como única razão para tal a que deriva apenas da autoridade dos homens e de seus escritos quer eles tenham ou não sido enviados por Deus nossa fé será apenas fé nos homens CAPÍTULO VIII Das virtudes vulgarmente chamadas intelectuais e dos defeitos contrários a estas Geralmente a virtude em toda espécie de assuntos é algo que é estimado por sua eminência e consiste na comparação Pois se todas as coisas fossem iguais em todos os homens nada seria apreciado Por virtudes intelectuais sempre se entendem aquelas capacidades do espírito que os homens elogiam valorizam e desejariam possuir em si mesmos e vulgarmente recebem o nome de talento natural embora a mesma palavra talento também seja usada para distinguir das outras uma certa capacidade Estas virtudes são de duas espécies naturais e adquiridas Por naturais não entendo as que um homem possui de nascença pois isso á apenas sensação pela qual os homens diferem tão pouco uns dos outros assim pomo dos animais que não merece ser incluída entre as virtudes Quero referirme àquele talento que se adquire apenas através da prática e da experiência sem método cultura ou instrução Este talento natural consiste principalmente em duas coisas celeridade da imaginação isto é rapidez na passagem de um pensamento a outro e firmeza de direção para um fim escolhido Pelo contrário uma imaginação denta constitui aquele defeito ou falha do espírito a que vulgarmente se chama imbecilidade estupidez e às vezes outros nomes que significam lentidão de movimentos ou dificuldade em moverse Esta diferença de rapidez é causada pela diferença das paixões dos homens que gostam e detestam uns de uma coisa outros de outra Em conseqüência do que os pensamentos de alguns homens seguem uma direção e os de outros outra e retêm e observam diversamente as coisas que passam pela imaginação de cala um E enquanto nesta sucessão dos pensamentos dos homens nada há a observar nas coisas em que eles pensam a não ser aquilo em que elas são idênticas umas às outras ou aquilo em que são diferentes ou então para que servem ou como servem para tal fim daqueles que observam suas semelhanças caso sejam daquelas que raramente são observadas pelos outros dizse que têm um bom talento natural com o que nesta circunstância se pretende identificar uma boi imaginação Mas daqueles que observam suas diferenças e dissimilitudes ao que se chama distinguir discernir e julgar entre coisas diversas nos casos em que tal discernimento não seja fácil dizse que têm um bom juízo e sobretudo em questões de conversação e negócios onde é preciso discernir momentos lugares e pessoas esta virtude chamase discrição A primeira isto é a imaginação quando não é acompanhada de juízo não se recomenda como virtudes nas a última que é o juízo e discrição recomendase por si mesma sem a ajuda da imaginação Além da discrição de momentos lugares e pessoas necessária para uma viva imaginação é necessária também uma freqüente aplicação dos pensamentos a seu fim quer dizer ao uso que deles pode ser feito Feito isto aquele que possui esta virtude facilmente encontrará semelhanças capazes de agradar não apenas como ilustrações de seu discurso adornandoo com metáforas novas e adequadas mas também pela raridade de sua invenção Mas sem firmeza e direção para um fim determinado uma grande imaginação é uma espécie de loucura como acontece com aqueles que iniciando um novo discurso se deixam desviar de seu objetivo por qualquer coisa que lhes passe pelo pensamento para longas digressões e parênteses até que inteiramente se perdem Gênero de loucura para o qual não conheço nenhum nome especial mas cuja causa é às vezes a falta de experiência devido à qual uma coisa pode parecer a alguém nova e rara quando aos outros assim não parece e outras vezes é a pusilanimidade devido à qual lhe parece uma grande coisa aquilo que outros consideram uma ninharia E tudo o que é novo ou grande portanto considerado merecedor de ser dito vai gradualmente afastandoo do caminho inicial de seu discurso Num bom poema quer seja épico ou dramático assim como também nos sonetos epigramas e outras outras obras é necessário tanto o juízo como a imaginação Mas a imaginação deve ser a mais eminente pois tais obras devem agradar por sua extravagância mas não devem desagradar por indiscrição Num bom livro de história o juízo deve ser predominante porque a excelência da obra consiste no método e na verdade assim como na escolha das ações que é mais proveitoso conhecer A imaginação não tem aqui lugar a não ser para ornamentar estilo Nas orações laudatórias e nas invectivas a imaginação é predominante porque o objetivo não é a verdade mas a honra ou a desonra o que é feito mediante nobres ou vis comparações O juízo se limita a sugerir quais as circunstâncias que tornam uma ação louvável ou condenável Nas exortações e discursos em tribunal conforme a verdade ou a simulação sirva melhor o objetivo em vista assim também o juízo ou a imaginação é a qualidade mais necessária Na demonstração no conselho e em toda busca rigorosa da verdade o juízo faz tudo A não ser que por vezes o entendimento tenha que ser ajudado por uma semelhança adequada havendo nesse caso um uso da imaginação Quanto às metáforas neste caso estão completamente excluídas Pois sabendo que elas abertamente professam a simulação admitilas no conselho e no raciocínio seria manifesta loucura Em qualquer espécie de discurso se a falta de discrição for visível por mais extravagante que a imaginação possa ser o discurso inteiro não deixará de ser tomado como um sinal de falta de talento o que nunca acontecerá quando a discrição for manifesta mesmo que a imaginação seja muito medíocre Os pensamentos secretos de cada homem percorrem todas as coisas sagradas ou profanas limpas ou obscenas sérias ou frívolas sem vergonha ou censura Coisa que o discurso verbal não pode fazer limitado pela aprovação do juízo quanto ao momento ao lugar e à pessoa Um anatomista ou físico pode falar ou escrever sua opinião sobre um assunto pouco limpo porque nesse caso não se trata de agradar e sim de ser útil Mas se um outro homem escrevesse suas extravagantes e frívolas fantasias sobre o mesmo assunto seria o mesmo que alguém apresentarse numa reunião depois de terse espojado na lama E é na falta de discrição que reside a diferença Por outro lado em casos de deliberada dissipação do espírito e dentro do círculo familiar é licito jogar com os sons e com as significações equivocas das palavras coisa que muitas vezes não é sinal de extraordinária fantasia Mas num sermão ou em público ou diante de pessoas desconhecidas ou às quais se deva reverência nenhum jogo de palavras deixará de ser considerado insensatez e a diferença reside apenas na falta de discrição De modo que quando há falta de talento não é a imaginação que falta mas a discrição Portanto o juízo sem imaginação é talento mas a imaginação sem juízo não o é Quando os pensamentos de alguém que tem um objetivo em vista ao percorrerem uma grande quantidade de coisas o levam a reparar que elas o conduzem a seu objetivo ou a que objetivo elas podem conduzir caso essa observação não seja das que são fáceis e usuais esse seu talento chamase prudência E depende de muita experiência e memória de coisas idênticas e de suas conseqüências até o momento No que não há tanta diferença entre os homens como quanto à imaginação e ao juízo porque a experiência de homens da mesma idade não é tão desigual quanto à quantidade mas varia conforme as diferentes ocasiões dado que cada um tem seus objetivos pessoais Governar bem uma família ou um reino não corresponde a diferentes graus de prudência mas a diferentes espécies de ocupação do mesmo modo que desenhar um quadro em pequeno ou em grande ou em tamanho maior que o natural não corresponde a diferentes graus de arte Um simples marido é mais prudente nas questões de sua própria casa do que um conselheiro privado nas questões de um outro homem Se à prudência se acrescentar o uso de meios injustos ou desonestos como aqueles a que os homens são levados pelo medo e pela necessidade temos aquele perverso talento a que se chama astúcia e é um sinal de pusilanimidade Porque a magnanimidade é o desprezo pelos expedientes injustos ou desonestos E aquilo a que os latinos chamavam Versutia que se traduz por versatilidade e consiste no afastamento de um perigo ou incomodidade presente mediante a passagem a um ainda maior como quando se rouba um homem para pagar a outro é apenas uma astúcia de vistas curtas que se chama Versutia a partir de Versura que significa aceitar dinheiro com usura pelo presente pagamento dos juros Quanto ao talento adquirido ou seja adquirido por método e instrução o único que existe é a razão que assenta no uso correto da linguagem e da qual derivam as ciências Mas da razão e da ciência já falei no quinto e sexto capítulos As causas destas diferenças de talento residem nas paixões e a diferença das paixões deriva em parte da diferente constituição do corpo e em parte das diferenças de educação Porque se a diferença proviesse da têmpera do cérebro e dos órgãos dos sentidos quer externos quer internos não haveria menor diferença entre os homens quanto à vista o ouvido e os outros sentidos do que quanto a sua imaginação e discrição Portanto ela deriva das paixões que são diferentes não apenas por causa das diferenças de constituição dos homens mas também por causa das diferenças de costumes e de educação entre estes As paixões que provocam de maneira mais decisiva as diferenças de talento são principalmente o maior ou menor desejo de poder de riqueza de saber e de honra Todas as quais podem ser reduzidas à primeira que é o desejo de poder Porque a riqueza o saber e a honra não são mais do que diferentes formas de poder Portanto um homem que não tenha grande paixão por qualquer destas coisas sendo como se costuma dizer indiferente embora possa ser uma boa pessoa incapaz de prejudicar os outros mesmo assim é impossível que tenha uma grande imaginação ou grande capacidade de juízo Porque os pensamentos são para os desejos como batedores ou espias que vão ao exterior procurar o caminho para as coisas desejadas e é daí que provém toda firmeza do movimento do espírito assim como toda rapidez do mesmo Porque assim como não ter nenhum desejo é o mesmo 4ue estar morto também ter paixões fracas é debilidade e ter paixões indiferentemente por todas as coisas é leviandade e distração E ter por qualquer loisa paixões mais fortes e veementes do que geralmente se verifica nos outros é aquilo a que os homens chamam loucura Da qual existem quase tantas espécies como as das próprias paixões Por vezes uma paixão extraordinária e extravagante deriva da má constituição dos órgãos do corpo ou de um dano a eles causado e outras vezes o dano e indisposição dos órgãos são causados pela veemência ou pelo extremo prolongamento da paixão Mas em ambos os casos a loucura é de uma só e mesma natureza A paixão cuja violência ou prolongamento provoca à loucura ou é uma grande vanglória a que vulgarmente se chama orgulho ou autoestima um grande desalento de espírito O orgulho torna os homens sujeitos à cólera cujo excesso é a loucura chamada raiva ou fúria E assim ocorre que o excessivo desejo de vingança quando se torna habitual prejudica os órgãos e se transforma em raiva e que o amor excessivo junto ao ciúme também se transforma em raiva o conceito exagerado de si mesmo quanto à sabedoria ao saber às maneiras e coisas semelhantes se transforma em distração e leviandade e a mesma junta à inveja se transforma em raiva a veemente convicção da verdade de alguma coisa quando contrariada pelos outros também se transforma em raiva O abatimento provoca no homem receios infundados o que constitui uma loucura vulgarmente chamada melancolia que sé manifesta em diversas condutas frequentação de cemitérios e lugares solitários atos de superstição e medo de alguém ou de alguma coisa determinada Em suma todas as paixões que provocam comportamentos estranhos e invulgares são designadas pelo nome geral de loucura Mas quem quiser darse ao trabalho de enumerar as várias espécies de loucura poderia contar uma multidão delas E se os excessos são loucura não resta dúvida de que as próprias paixões quando tendem para o mal constituem outros tantos graus da mesma Por exemplo embora os efeitos da loucura em quem está possuído pela convicção de que é inspirado nem sempre sejam visíveis dor qualquer ação extravagante derivada dessa paixão quando muitos deles se conjugam a raiva cré uma multidão inteira é bastante visível Pois que melhor prova de loucura poda haver do que increpar bater e lapidar nossos melhores amigos Mas isto é um pouco menos do que uma tal multidão é capaz de fazer pois ela é capaz de increpar combater e destruir aqueles por quem durante toda a sua vida foi protegida e defendida de injúrias E se isto é loucura numa multidão o mesmo é também em cada indivíduo particular Pois tal como no meio do mar embota não se ouça o ruído da parte da água mais próxima de nós mesmo assim estamos certos de que essa parte contribui tanto para o rugido das ondas c6mo qualquer outra parte da mesma quantidade assim também embora não percebamos grande inquietação em um ou dois homens mesmo assim podemos estar certos de que suas paixões individuais fazem parte do rugido sedicioso de uma nação conturbada È mesmo que nada mais denunciasse sua loucura o próprio fato de se arrogarem essa inspiração constitui prova suficiente Se algum habitante de Bedlam conversasse conosco em termos sóbrios e ao despedirmonos quiséssemos saber quem ele é para mais tarde corresponder a sua atenção e ele rios dissesse ser Deus Pai creio que não seria necessário esperar qualquer ação extravagante como prava de sua loucura Esta convicção de inspiração vulgarmente chamada espírito particular começa muitas vezes com a descoberta feliz de um erro geralmente cometido pelos outros E sem saberem ou lembrarem mediante que conduta da razão chegaram a uma verdade tão singular conforme eles pensam embora muitas vezes seja apenas uma inverdade passam a admirarse a si mesmos coiro sendo uma graça especial de Deus todo poderoso que tal lhes teria revelado sobrenaturalmente por intermédio de seu Espírito Por outro lado que a loucura não é mais do que um excesso de manifestação da paixão é coisa que pode verificarse nos efeitos do vinho que são idênticos aos da má disposição dos órgãos Porque a variedade da conduta dos homens que bebem demais é a mesma que a dos loucos uns enraivecendosé3 outros amando outros rindo tudo isso de maneira extravagante mas conformemente às várias paixões dominantes Porque os efeitos do vinho limitamse a eliminar a dissimulação ao mesmo tempo que ocultam do próprio a deformidade de suas paixões Porque segundo creio os homens mais sóbrios não gostariam que a futilidade e extravagância de seus pensamentos nos momentos em que andam sozinhos dando rédea solta a sua imaginação fossem tornadas públicas o que vem confirmar que as paixões sem guia não passam em sua maioria de simples loucura Tanto nos tempos antigas como nos modernos tem havido duas opiniões comuns relativamente às causas da loucura Uns atribuindoa às paixões outros a demônios e espíritos tanto bons como maus que supunham capazes de penetrar num homem e possuílo movendo seus órgãos da maneira estranha e inconsiderada que é habitual nos loucos Assim os primeiros chamam loucos a esses homens mas os segundos às vezes chamamlhes endemoninhados ou seja possessos dos espíritos outras vezes energúmenos isto é agitados ou movidos pelos espíritos e hoje na Itália são chamados não apenas pazzi loucos mas também spiritati isto é possessos Houve uma vez uma grande afluência de gente em Abdera cidade da Grécia por causa da representação da tragédia de Andrômeda num dia extremamente quente Em resultado disso uma grande parte dos espectadores foi acometida de febres sendo este acidente devido ao calor e à tragédia conjuntamente e os doentes limitavamse a recitar jâmbicos com os nomes de Perseu e Andrômeda O que foi curado juntamente com a febre pela chegada do inverno Esta loucura foi atribuída às paixões suscitadas pela tragédia Fato semelhante foi uma epidemia de loucura que grassou em outra cidade grega que atacou apenas as jovens donzelas levando muitas delas a enforcarse Tal fato foi por muitos considerado obra do diabo Mas houve um que suspeitou que esse desprezo pela vida provinha de alguma paixão do espírito e supondo que elas não desprezariam também sua honra aconselhou os magistrados a despirem as que se enforcavam e a expôlas nuas publicamente A estória diz que isto curou essa loucura Por outro lado os mesmos gregos atribuíam muitas vezes a loucura à intervenção das Eumênides ou Fúrias e outras vezes a Ceres Febo e outros deuses os homens atribuíam muitas coisas a fantasmas considerandoos corpos aéreos vivos e geralmente chamavamlhes espíritos E tal como nisto os romanos tinham a mesma opinião que os gregos o mesmo acontecia com os judeus que chamavam aos profetas loucos ou endemoninhados conforme consideravam os espíritos bons ou maus alguns deles chamavam loucos tanto aos profetas como aos endemoninhados e alguns chamavam ao mesmo homem tanto endemoninhado como louco Quanto aos gentios isto não é de estranhar porque as doenças e a saúde os vícios e as virtudes assim como muitos acidentes naturais eram assim denominados e venerados como demônios E identificavase como demônio tanto às vezes uma febre como um diabo Mas é bastante estranho que os judeus tivessem tal opinião Pois nem Moisés nem Abraão pretendiam profetizar graças à posse por um espírito mas graças à voz de Deus ou a uma visão ou sonho Nem há nada em suas leis sua moral ou seus rituais que lhes ensinasse haver tal entusiasmo ou tal posse Quando se diz que Deus Núm 1125 tomou o espírito que estava em Moisés e o deu aos setenta anciãos não se diz que o Espírito de Deus entendido como a substância de Deus estivesse dividido O Espírito de Deus no homem é entendido pelas Escrituras como um espírito humano que tende para o divino E quando se diz Êx 283 aqueles em quem infundi o espírito da sabedoria para que fizessem roupas para Aarão não se pretende referir um espírito colocado neles capaz de fazer roupas mas a sabedoria de seus próprios espíritos nesse tipo de trabalho Em sentido semelhante se chama vulgarmente um espírito impuro ao espírito do homem quando este pratica ações impuras e assim se fala também de outros espíritos embora nem sempre mas todas as vezes que a virtude ou vício assim denominada é extraordinária e predominante Também os outros profetas do Antigo Testamento não tinham pretensões de entusiasmo ou de que Deus falasse através deles mas apenas a eles por meio de voz visão ou sonho e o fardo de Deus não era posse mas ordem Como terá então sido possível que os judeus caíssem nessa opinião Não consigo imaginar razão alguma a não ser a que é comum a todos os homens nomeadamente a falta de curiosidade para procurar as causas naturais e a identificação da felicidade como gozo dos grosseiros prazeres dos sentidos e das coisas que mais diretamente a eles conduzem Porque quem vê no espírito de um homem qualquer aptidão ou defeito invulgar ou estranho a menos que se dê conta da causa de onde provavelmente derivou dificilmente pode considerálo natural Não sendo natural é inevitável que o considerem sobrenatural e então que pode ele ser senão a presença nele de Deus ou do Diabo Daí que quando nosso Salvador Mc 321 se encontrava rodeado pela multidão os da casa suspeitaram que ele era louco e saíram para agarrálo mas os escribas disseram que ele tinha Belzebu e que era através dele que expulsava os demônios como se o louco maior inspirasse o menor E alguns disseram JO 1020 ele tem o diabo e é louco enquanto outros que o consideravam um profeta disseram Essas não são as palavras de alguém que tem o diabo Assim no Antigo Testamento aquele que veio ungir a Jeú 2 Rs 911 era um profeta mas um dos presentes perguntou Jeú que veio o louco aqui fazer Em resumo é manifesto que quem se comportasse de maneira invulgar era considerado pelos judeus como possesso quer por Deus quer por um espírito maligno Com exceção dos saduceus que erravam tanto no sentido oposto que não acreditavam na existência de quaisquer espíritos o que está muito próximo do ateísmo declarado e talvez por isso ainda mais instigavam os outros a chamarem endemoninhados a esses homens em vez de loucos Mas por que motivo nosso Salvador procedeu para curálos como se estivessem possessos e não como se estivessem loucos Ao que não posso dar outro tipo de resposta senão aquela que é dada aos que de maneira semelhante usam as Escrituras contra a crença no movimento da Terra As Escrituras foram escritas para mostrar aos homens o reino de Deus e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes deixando o mundo e a filosofia a ele referente às disputas dos homens pelo exercício de sua razão natural Que o dia e a noite provenham do movimento da Terra ou do Sol ou que as ações exorbitantes dos homens derivem da paixão ou do diabo desde que não adoremos a este último nenhuma diferença faz quanto a nossa obediência e sujeição a Deus todopoderoso que é o fim para que se escreveram as Escrituras Quanto ao fato de nosso Salvador falar à doença como se falasse a uma pessoa esse é o procedimento habitual daqueles que curam apenas pela palavra como Cristo fazia e os encantadores pretendem fazer quer falem a um diabo ou não Pois não se diz que Cristo Mt 826 increpou também os ventos E não se diz que ele Lc 439 increpou também uma febre Todavia isto não prova que uma febre seja um diabo E quando se diz que muitos desses diabos se confessaram a Cristo não é necessário interpretar essas passagens a não ser no sentido de que esses loucos se lhe confessaram E quando nosso Salvador Mt 1243 falou de um espírito impuro que tendo saído de um homem vai errando pelos lugares secos procurando repouso sem nunca encontrálo e volta para o mesmo homem juntamente com sete outros espíritos piores do que ele isto é manifestamente uma parábola que se refere a um homem que depois de um pequeno esforço para libertarse de seus desejos é vencido pela força deles e se torna sete fezes pior do que era Assim nada vejo nas Escrituras que exija acreditar que os endemoninhados eram outra coisa senão loucos Há ainda uma outra falha nos discursos de alguns homens a qual pode também contarse entre as várias espécies de loucura Nomeadamente aquele abuso de palavras que acima referi no quinto capítulo sob o nome de absurdo O qual ocorre quando os homens proferem palavras que reunidas umas às outras não possuem significação alguma não obstante o que alguns que as encontram compreendendo mal as palavras que 6uviram as repetem rotineiramente ao passo que outros as usam com a intenção de enganar por meio da obscuridade E isto só acontece com aqueles que discutem sobre questões incompreensíveis como os escolásticos ou sobre questões de abstrusa filosofia O comum dos homens raramente fala sem significado e por esse motivo são por essas egrégias pessoas tidos por idiotas Mas para ter a certeza de que suas palavras não correspondem a nada no espírito seriam necessários alguns exemplos Se alguém os quiser tome uris escolástico por sua conta e veja se ele é capaz de traduzir qualquer capítulo referente a uma questão difícil como a Trindade a Divindade a natureza de Cristo a Transubstanciação o livre arbítrio etc para qualquer das línguas modernas de maneira a tornar o mesmo inteligível Ou então para um latim tolerável como o que era conhecido por todos os que viviam na época em que o latim era a língua vulgar Qual é o significado destas palavras A primeira causa não insufla necessariamente alguma coisa na segunda por força da subordinação essencial das causas segundas pela qual pode ser levada a atuar Elas são a tradução do título do sexto capítulo do primeiro livro de Suárez Do Concurso Movimento e Ajuda de Deus Quando alguém escreve volumes inteiros cheios de tais coisas é porque está louco ou porque pretende enlouquecer os outros E particularmente quanto ao problema da transubstanciação aqueles que dizem depois de pronunciar certas palavras que a brancura a redondez a magnitude a qualidade a corruptibilidade todas as duais são incorpóreas etc passam da hóstia para o Corpo de nosso abençoado Salvador não estarão eles fazendo desses Liras Ezes Tudes e Dades outros tantos espíritos possuindo o corpo Porque por espíritos sempre entendem coisas quê sendo incorpóreas podem contudo ser movidas de um lugar para outro Assim este tipo de absurdo pode legitimamente ser contado entre as muitas espécies de loucura E todo o tempo em que guiados por pensamentos claros de suai paixões mundanas se abstêm de discutir ou escrever assim não é mais do que um intervalo de lucidez E tanto basta quanto às virtudes e defeitos intelectuais CAPÍTULO IX Dos diferentes objetos do conhecimento Há duas espécies de conhecimento um dos quais é o conhecimento dos fatos e o outro o conhecimento das conseqüências de uma afirmação para outra O primeiro está limitado aos sentidos e à memória e é um conhecimento absoluto como quando vejo um fato ter lugar ou recordo que ele teve lugar é este o conhecimento necessário para uma testemunha Ao segundo chamase ciência e é condicional como quando sabemos que se a figura apresentada for um círculo nesse caso qualquer linha reta que passe por seu centro dividila em duas partes iguais Este é o conhecimento necessário para um filósofo isto é para àquele que pretende raciocinar O registro do conhecimento dos fados chamase história Da qual há duas espécies uma chamada história natural fique é a história daqueles fatos ou efeitos da natureza que não dependem da vontade do homem tais são as histórias dos metais plantas animais regiões e assim por diante A outra é a história civil que é a história das ações voluntárias praticadas pelos homens nos Estados Os registros da ciência são aqueles livros que encerram as demonstrações das conseqüências de uma afirmação para outra e são vulgarmente chamados livros de filosofia Dos quais há muitas espécies conforme a diversidade do assunto que podem ser divididas da maneira como as dividi na tábua que se segue CAPÍTULO X Do poder valor dignidade honra e merecimento O poder de um homem universalmente considerado consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro Pode ser original ou instrumental O poder natural é a eminência das faculdades do corpo ou do espírito extraordinária força beleza prudência capacidade eloqüência liberalidade ou nobreza Os poderes instrumentais são os que se adquirem mediante os anteriores ou pelo acaso e constituem meios e instrumentos para adquirir mais como a riqueza a reputação os amigos e os secretos desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte Porque a natureza do poder é neste ponto idêntica à da fama dado que cresce à medida que progride ou à do movimento dos corpos pesados que quanto mais longe vão mais rapidamente se movem O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens unidos por consentimento numa só pessoa natural ou civil que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade é o caso do poder de um Estado Ou na dependência da vontade de cada indivíduo é o caso do poder de uma facção ou de várias facções coligadas Consequentemente ter servidores é poder e ter amigos é poder porque são forças unidas Também a riqueza aliada à liberalidade é poder porque consegue amigos e servidores Sem a liberdade não o é porque neste caso a riqueza não protege mas expõe o homem como presa à inveja A reputação do poder é poder pois com ela se consegue a adesão daqueles que necessitam proteção Também o é pela mesma razão a reputação de amor da nação de um homem à qual se chama popularidade Da mesma maneira qualquer qualidade que torna um homem amado ou temido por muitos é poder porque constitui um meio para adquirir a ajuda e o serviço de muitos O sucesso é poder porque traz reputação de sabedoria ou boa sorte o que faz os homens recearem ou confiarem em quem o consegue A afabilidade dos homens que já estão no poder é aumento de poder porque atrai amor A reputação de prudência na conduta da paz ou da guerra é poder porque confiamos o governo de nós mesmos de melhor grado aos homens prudentes do que aos outros A nobreza é poder não em todos os lugares mas somente naqueles Estados onde goza de privilégios pois é nesses privilégios que consiste seu poder A eloqüência é poder porque se assemelha à prudência A beleza é poder pois sendo uma promessa de Deus recomenda os homens ao favor das mulheres e dos estranhos As ciências são um pequeno poder porque não são eminentes e consequentemente não são reconhecidas por todos E só são algum poder em muito poucos e mesmo nestes apenas em poucas coisas Porque é da natureza da ciência que só podem compreendêla aqueles que em boa medida já a alcançaram As artes de utilidade pública como a fortificação o fabrico de máquinas e outros instrumentos de guerra são poder porque facilitam a defesa e conferem a vitória Embora sua verdadeira mãe seja a ciência nomeadamente a matemática mesmo assim dado que são dadas à lua pela mão do artífice são consideradas neste caso para o vulgo a parteira passa por mãe como seu produto O valor de um homem tal como o de todas as outras coisas é seu preço isto é tanto quanto seria dado pelo uso de seu poder Portanto não absoluto mas algo que depende da necessidade e julgamento de outrem Um hábil condutor de soldados é de alto preço em tempo de guerra presente ou iminente mas não o é em tempo de paz Um juiz douto e incorruptível é de grande valor em tempo de paz mas não o é tanto em tempo de guerra E tal como nas outras coisas também no homem não é o vendedor mas o comprador quem determina o preço Porque mesmo que um homem coro muitos fazem atribua a si mesmo o mais alto valor possível apesar disso seu verdadeiro valor não será superior ao que lhe for atribuído pelos outros A manifestação do valor que mutuamente nos atribuímos é o que vulgarmente se chama honra e desonra Atribuir a um homem um alto valor é honrálo e um baixo valor é desonrálo Mas neste caso alto e baixo devem ser entendidos em comparação com o valor que cada homem se atribui a si próprio O valor público de um homem aquele que lhe é atribuído pelo Estado é o que os homens vulgarmente chamam dignidade E esta sua avaliação pelo Estado se exprimo através de cargos de direção funções judiciais e empregos públicos ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor Elogiar um outro por qualquer tipo de ajuda é honrar porque é sinal de que em nossa opinião ele tem poder para auxiliar E quanto mais difícil é a ajuda maior é a honra Obedecer é honrar porque ninguém obedece a quem não julga capaz de ajudálo ou prejudicálo Consequentemente desobedecer é desonrar Oferecer grandes presentes a um homem é honrálo porque é compra de proteção e reconhecimento de poder Oferecer pequenos presentes é desonrar porque não passa de esmola e significa a idéia da necessidade de pequenos auxílios Ser solicito em promover o bem dá outro assim como adular é honrar como sinal de que pretendemos proteção ou ajuda Negligenciar é desonrar Ceder o passo ou o lugar a outrem em qualquer questão é honrar porque equivale a admitir um poder superior Fazer frente é desonrar Dar qualquer sinal de amor ou de medo do outro é honrar porque tanto amar como temer implicam apreço Suprimir o amor ou o medo ou dar menos do que o outro espera é desonrar porque é subestimar Louvar exaltar ou felicitar é honrar pois nada é mais prezado do que a bondade o poder e a felicidade Depreciar troçar ou compadecerse é desonrar Falar ao outro com consideração aparecer diante dele com decência e humildade é honrálo como sinal de receio de ofendêlo Falarlhe asperamente comportarse perante ele de maneira obscena reprovável ou impudente é desonrálo Acreditar confiar apoiarse no outro é honrálo como sinal de reconhecimento de sua virtude e poder Desconfiar ou não acreditar é desonrar Solicitar de um homem seu conselho ou um discurso de qualquer tipo é honrar em sinal de que o consideramos sábio ou eloqüente ou sagaz Dormir afastarse ou falar quando ele fala é desonrálo Fazer ao outro as coisas que ele considera sinais de honra ou que assim o sejam pela lei ou pelo costume é honrar porque ao aprovar a honra feita por outros se reconhece o poder que os outros reconhecem Recusar fazêlas é desonrar Concordar com a opinião do outro é honrar pois é sinal de aprovação de seu julgamento e sabedoria Discordar é desonrar e acusar o outro de erre e se a discordância atinge muitas coisas de insensatez Imitar é honrar pois equivale a uma veemente aprovação Imitar o inimigo do outro é desonrar Honrar aquele a quem outro honra é honrar este também como sinal de aprovação de seu discernimento Honrar seus inimigos é desonrálo Pedir conselho ou colaboração em ações difíceis é honrar como sinal de apreço pela sabedoria ou outro poder do outro Recusar a colaboração dos que a oferecem é desonrar Todas estas maneiras de honrar são naturais tanto nos Estados como fora deles Mas nos Estados onde aquele ou aqueles que detêm a suprema autoridade podem instituir os sinais de honra que lhes aprouver existem outras honras Um soberano pode honrar um súdito com qualquer título ou cargo ou emprego ou ação que ele próprio haja estabelecido como sinal de sua vontade de honrálo O rei da Pérsia honrou a Mordecai quando decidiu que ele seria conduzido pelas ruas envergando as vestimentas reais montado num dos cavalos do rei com uma coroa na cabeça e um príncipe adiante dele proclamando Assim será feito àquele que o rei quiser honrar E um outro rei da Pérsia ou o mesmo em outra ocasião a um súdito que pedia por qualquer grande serviço permissão para usar as roupas do rei outorgou o que ele pedia mas acrescentando que deveria usálas como seu bobo e neste caso era desonra Portanto a fonte de toda honra civil reside na pessoa do Estado e depende da vontade do soberano Consequentemente é temporária e chamase honra civil É o caso da magistratura dos cargos públicos e dos títulos e em alguns lugares dos uniformes e emblemas Os homens honram a quem os possui porque são outros tantos sinais do favor do Estado este favor é poder Honrosa é qualquer espécie de posse ação ou qualidade que constitui argumento e sinal de poder Por conseguinte ser honrado amado ou temido por muitos é honroso e prova de poder Ser honrado por poucos ou nenhum é desonroso O domínio e a vitória são honrosos porque se adquirem pelo poder a servidão que vem da necessidade ou do medo é desonrosa A boa sorte quando duradoura é honrosa como sinal do favor de Deus A má sorte e a desgraça são desonrosas A riqueza é honrosa porque é poder A pobreza é desonrosa A magnanimidade a liberalidade a esperança a coragem e a confiança são honrosas porque derivam da consciência do poder A pusilanimidade a parcimônia o medo e a desconfiança são desonrosos A decisão ou resolução oportuna do que se precisa fazer é honrosa pois implica desprezo pelas pequenas dificuldades e perigos A irresolução é desonrosa como sinal de excessiva valorização de pequenos impedimentos e pequenas vantagens Porque quando um homem ponderou as coisas tanto quanto o tempo permite e não se decidiu a diferença de ponderação é ínfima logo se ele não se decide é porque sobrevaloriza pequenas coisas o que é pusilanimidade Todas as ações e palavras que derivam ou parecem derivar de muita experiência ciência discrição ou sagacidade são honrosas pois todas estas últimas são poderes As ações ou palavras que derivem do erro da ignorância ou da insensatez são desonrosas A gravidade na medida em que pareça proceder de um espírito ocupado com outras coisas é honrosa porque a ocupação é sinal de poder Mas se parecer que procede do propósito de aparentar gravidade é desonrosa Porque a gravidade do primeiro é como a firmeza de um navio carregado de mercadoria mas a do segundo é como a firmeza de um navio que leva um lastro de areia ou qualquer outra carga inútil Ser ilustre ou seja ser conhecido pela riqueza cargos grandes ações ou qualquer bem eminente é honroso como sinal do poder que faz alguém ser ilustre Pelo contrário a obscuridade é desonrosa Descender de pais ilustres é honroso porque assim mais facilmente se conseguem a ajuda e os amigos dos antecessores Pelo contrário descender de pais obscuros é desonroso As ações que derivam da eqüidade e são acompanhadas de perdas são honrosas como sinais de magnanimidade porque a magnanimidade é um sinal de poder Pelo contrário a astúcia o uso de expedientes e a falta de eqüidade são desonrosos A cobiça de grandes riquezas e a ambição de grandes honras são honrosas como sinais do poder para obtêlas A cobiça e a ambição de pequenos lucros ou preeminências é desonrosa Não altera o caso da honra que uma ação por maior e mais difícil que seja e consequentemente sinal de muito poder seja justa ou injusta porque a honra consiste apenas na opinião de poder Por isso os antigos pagãos não pensavam que desonravam mas que grandemente honravam os deuses quando os introduziam em seus poemas cometendo violações roubos e outras grandes mas injustas e pouco limpas ações Por nada é Júpiter tão celebrado como por seus adultérios ou como Mercúrio por suas fraudes e roubos E o maior elogio dos que se fazem num hino de Homero é que tendo nascido de manhã inventou a música ao meiodia e antes do anoitecer roubou o gado de Apolo a seus pastores Também entre os homens antes de se constituírem os Estados não se considerava desonra ser pirata ou ladrão de estrada sendo estes pelo contrário considerados negócios legítimos não apenas entre os gregos mas também nas outras nações como o prova a história dos tempos antigos E nesta época e nesta parte do mundo os duelos são e sempre serão honrosos embora ilegais até que venha um tempo em que a honra seja atribuída aos que recusam e a ignomínia aos que desafiam Porque os duelos são também muitas vezes conseqüência da coragem e o fundamento da coragem é sempre a força ou a destreza que são poder embora na maior parte dos casos sejam conseqüência de palavras ásperas e do temor da desonra em um ou em ambos os contendores que agitados pela cólera são levados a defrontarse para evitar perder a reputação Os escudos e brasões hereditários quando acompanhados de qualquer privilégio eminente são honrosos Caso contrário não o são porque seu poder consiste nesses mesmos privilégios ou em riquezas ou outras coisas semelhantes que são igualmente honradas pelos outros homens Esta espécie de honra geralmente chamada nobreza proveio dos antigos germanos Pois jamais se conheceu tal coisa nos lugares onde se desconheciam os costumes germanos nem hoje estão em uso nos lugares que os germanos não habitaram Os antigos comandantes gregos quando iam para a guerra mandavam pintar em seus escudos as divisas que lhes aprazia sendo um escudo sem emblema sinal de pobreza próprio do soldado comum mas não havia transmissão dessas divisas por herança Os romanos transmitiam as marcas de suas famílias mas eram as imagens não as divisas de seus antepassados Entre os povos da Ásia África e América não há nem jamais houve tal coisa Só os germanos tinham esse costume e foi daí que ele passou para a Inglaterra França Espanha e Itália onde eles em grande número ajudaram os romanos ou fizeram suas próprias conquistas nessas regiões ocidentais do globo Porque a Germânia antigamente se encontrava tal como todos os países em seus inícios dividida por um número infinito de pequenos senhores ou chefes de família que estavam continuamente em guerra uns com os outros Esses chefes ou senhores sobretudo a fim de poderem ser reconhecidos por seus sequazes quando iam cobertos de armas e em parte como ornamento pintavam sua armadura ou escudo ou capa com a efígie de um animal ou qualquer outra coisa e além disso colocavam uma marca ostensivamente visível na cimeira de seus elmos E esta ornamentação das armaduras e do elmo era transmitida por herança aos filhos ao primogênito em toda sua pureza e aos restantes com alguma nota de diversidade a qual o velho senhor ou seja em holandês o Herealt considerasse conveniente Mas quando muitas dessas famílias reunidas formavam uma monarquia mais ampla essa função de heraldo que consistia em distinguir os brasões tornavase um cargo particular independente Os descendentes desses senhores constituíram a grande e antiga nobreza que em sua maioria usava como emblemas criaturas vivas caracterizadas por sua coragem ou afã de rapina ou castelos ameias tendas armas barras paliçadas e outros sinais de guerra pois nada era então tão honrado como a virtude militar Posteriormente não só os reis mas também os Estados populares adotaram diversos tipos de escudo para dar aos que iam para a guerra ou dela voltavam como encorajamento ou como recompensa de seus serviços Tudo isto poderá ser encontrado por um leitor atento nos antigos livros de história gregos e latinos que fazem referência à nação e aos costumes germanos de seu tempo Os títulos de honra como duque conde marquês e barão são honrosos pois significam o valor que lhes é atribuído pelo poder soberano do Estado Nos tempos antigos esses títulos correspondiam a cargos e funções de mando sendo alguns derivados dos romanos e outros dos germanos e franceses Os duques em latim duces eram generais de guerra Os condes convites eram os companheiros ou amigos do general e eralhes confiado o governo e a defesa dos lugares conquistados e pacificados Os marqueses marchiones eram condes que governavam as marcas ou fronteiras do Império Estes títulos de duque conde e marquês foram introduzidos no Império na época de Constantino o Grande numa adaptação dos costumes da milícia dos germanos Mas barão parece ter sido um título dos gauleses e significa um grande homem como os guardas que os reis e príncipes usavam na guerra para rodear sua pessoa O termo parece derivar de vir para ber e bar que na língua dos gauleses significava o mesmo que vir em latim E daí para bero e baro e assim esses homens eram chamados berones e posteriormente barones e em espanhol varones Mas quem quiser conhecer mais minuciosamente a origem dos títulos de honra pode encontrála como eu fiz no excelente tratado de Selden sobre o assunto Com o passar do tempo estes cargos de honra por ocasião de distúrbios ou por razões de bom e pacífico governo foram transformados em meros títulos servindo em sua maioria para distinguir a preeminência lugar e ordem dos súditos nó Estado e foram nomeados duques condes marqueses e barões para lugares dos quais essas pessoas não tinham posse nem comando e criaramse também outros títulos para o mesmo fim O merecimento de um homem é uma coisa diferente de seu valor e também de seu mérito e consiste num poder ou habilidade especial para aquilo de que se diz que ele é merecedor habilidade particular que geralmente é chamada adequação ou aptidão Porque quem mais merece ser comandante ou juiz ou receber qualquer outro cargo é quem for mais dotado com as qualidades necessárias para seu bom desempenho e quem mais merece a riqueza é quem tem as qualidades mais necessárias para o bom uso dessa riqueza Mesmo na falta dessas qualidades podese ser um homem de valor e valioso para qualquer outra coisa Por outro lado um homem pode ser merecedor de riquezas cargos ou empregos e apesar disso não ter o direito de possuílos de preferência a um outro não podendo por isso dizerse que os mereça Porque o mérito pressupõe um direito e a coisa merecida é devida por promessa A isto voltarei a referirme mais adiante quando falar dos contratos CAPÍTULO XI Das diferenças de costumes Não entendo aqui por costumes a decência da conduta por exemplo a maneira como um homem deve saudar a outro ou como deve lavar a boca ou limpar os dentes diante dos outros e outros aspectos da pequena moral Entendo aquelas qualidades humanas que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa Para este fim devemos ter em mente que a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito Pois não existe o finis ultimus fim último nem o summum bonum bem supremo de que se fala nos livros dos antigos filósofos morais E ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados A felicidade é um contínuo progresso do desejo de um objeto para outro não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo Sendo a causa disto que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez e só por um momento mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro Portanto as ações voluntárias e as inclinações dos homens não tendem apenas para conseguir mas também para garantir uma vida satisfeita e diferem apenas quanto ao modo como surgem em parte da diversidade das paixões em pessoas diversas e em parte das diferenças no conhecimento e opinião que cada um tem das causas que produzem os efeitos desejados Assinalo assim em primeiro lugar como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que cessa apenas com a morte E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou ou que cada um não possa contentarse com um poder moderado mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda E daqui se segue que os reis cujo poder é maior se esforçam por garantilo no interior através de leis e no exterior através de guerras E depois disto feito surge um novo desejo em alguns de fama por uma nova conquista em outros de conforto e prazeres sensuais e em outros de admiração de serem elogiados pela excelência em alguma arte ou outra qualidade do espírito A competição pela riqueza a honra o mando e outros poderes leva à luta à inimizade e à guerra porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar subjugar suplantar ou repelir o outro Particularmente a competição pelo elogio leva a reverenciar a antiguidade Porque os homens competem com os vivos não com os mortos e atribuem a estes mais do que o devido a fim de poderem empanar a glória dos outros O desejo de conforto e deleite sensual predispõe os homens para a obediência ao poder comum pois com tais desejos se abandona a proteção que poderia esperarse do esforço e trabalho próprios O medo da morte e dos ferimentos produza mesma tendência e pela mesma razão Pelo contrário os homens necessitados e esforçados que não estão contentes com sua presente condição assim como todos os homens que ambicionam a autoridade militar têm tendência para provocar situações belicosas e para causar perturbações e revoltas pois só na guerra há honra militar e a única esperança de remediar um mau jogo é dar as cartas uma vez mais O desejo de conhecimento e das artes da paz inclina os homens para a obediência ao poder comum pois tal desejo encerra um desejo de ócio consequentemente de proteção derivada de um poder diferente de seu próprio O desejo de louvores predispõe para ações louváveis capazes de agradar aqueles cujo apreço se respeita pois desprezamos também os louvores das pessoas que desprezamos O desejo de fama depois da morte tem o mesmo efeito E embora depois da morte seja impossível sentir os louvores que nos são feitos na Terra pois são alegrias que ou são eclipsadas pelas indizíveis alegrias do Céu ou são extintas pelos extremos tormentos do Inferno apesar disso essa fama não é vã porque os homens encontram um deleite presente em sua previsão assim como no beneficio que daí pode resultar para sua posteridade Embora agora não o vejam mesmo assim imaginamno e tudo o que constitui prazer para os sentidos constitui também prazer para a imaginação Ter recebido de alguém a quem consideramos nosso igual maiores benefícios do que esperávamos faz tender para o amor fingido e na realidade para o ódio secreto pois nos coloca na situação de devedor desesperado que ao recusarse a ver seu credor tacitamente deseja que ele se encontre onde jamais possa voltar a vêlo Porque os benefícios obrigam e a obrigação é servidão a obrigação que não se pode compensar é servidão perpétua e perante um igual é odiosa Mas ter recebido benefícios de alguém a quem se considera superior faz tender para o amor porque a obrigação não é uma nova degradação e alegre aceitação a que se dá o nome de gratidão constitui uma honra tal para o benfeitor que geralmente é tomada como retribuição Também receber benefícios mesmo de um igual ou inferior desde que haja esperança de retribuição faz tender para o amor porque na intenção do beneficiado a obrigação é de ajuda e serviço mútuo Daí deriva uma emulação para ver quem superará o outro em benefícios que é a mais nobre e proveitosa competição que é possível na qual o vencedor fica satisfeito com sua vitória e o outro se vinga admitindo a derrota Ter feito a alguém um mal maior do que se pode ou se está disposto a sofrer faz tender para odiar quem sofreu o mal pois só se pode esperar vingança ou perdão e ambos são odiosos O medo da opressão predispõe os homens para anteciparse procurando ajuda na associação pois não há outra maneira de assegurar a vida e a liberdade Os homens que desconfiam de sua própria sutileza se encontram nos tumultos e sedições mais predispostos para a vitória do que os que se consideram sábios ou sagazes pois estes últimos gostam de se informar primeiro e os outros com medo de serem ultrapassados gostam de atacar primeiro E nas sedições como os homens estão sempre dispostos para a luta defenderse uns aos outros e usar todas as vantagens da força é um estratagema superior a todos os que possam ser produzidos pela mais sutil inteligência Os homens vaidosos que sem terem consciência de grande capacidade se deliciam em julgaremse valentes tendem apenas para a ostentação não para os atos pois quando surgem perigos ou dificuldades só os aflige ver descoberta sua incapacidade Os homens vaidosos que avaliam sua capacidade pelas lisonjas de outros homens ou pelo sucesso de alguma ação anterior sem terem sólidas razões de esperança baseadas num autêntico conhecimento de si mesmos têm tendência para empreendimentos irrefletidos e à primeira visão de perigos ou dificuldades a retirarse assim que podem Porque não vendo o caminho da salvação preferem arriscar sua honra que pode ser salva com uma desculpa em vez de sua vida para a qual nenhuma salvação é suficiente Os homens que têm em alta conta sua sabedoria em questões de governo têm tendência para a ambição Porque na falta de um emprego público como conselheiros ou magistrados estão perdendo a honra de sua sabedoria Consequentemente os oradores eloqüentes têm tendência para a ambição pois a eloqüência assemelhase à sabedoria tanto para eles mesmos como para os outros A pusilanimidade predispõe os homens para a indecisão e consequentemente para deixar perder as ocasiões e as melhores oportunidades de ação Porque quando se esteve em deliberação até se aproximar o momento da ação se nessa altura não for manifesto o que há de melhor a fazer isso é sinal de que a diferença entre os fatores quer num sentido quer noutro não é muito grande Portanto não tomar uma decisão nesse momento é deixar perder a ocasião por preocuparse com ninharias o que é pusilanimidade A frugalidade embora nos pobres seja uma virtude torna os homens incapazes de levar a cabo as ações que precisam da força de muitos homens ao mesmo tempo Porque ela enfraquece seu esforço que deve ser alimentado e revigorado pela recompensa A eloqüência juntamente com a lisonja leva os homens a confiar em quem as pratica pois a primeira assemelhase à sabedoria e a segunda assemelhase à bondade Acrescenteselhe a reputação militar e os homens tornarseão predispostos para aderir e a sujeitarse a quem as possui As duas primeiras tranqüilizamnos quanto aos perigos que podem vir dessa pessoa e a segunda quanto aos que podem vir dos outros A falta de ciência isto é a ignorância das causas predispõe ou melhor obriga os homens a confiar na opinião e autoridade alheia Porque todos os homens preocupados com a verdade se não confiarem em sua própria opinião deverão confiar na de alguma outra pessoa a quem considerem mais sábia que eles próprios e não considerem provável que queira enganálos A ignorância do significado das palavras isto é a falta de entendimento predispõe os homens para confiar não apenas na verdade que não conhecem mas também nos erros e o que é mais nos absurdos daqueles em quem confiam Porque nem o erro nem o absurdo podem ser detectados sem um perfeito entendimento das palavras Do mesmo deriva que os homens dêem nomes diferentes a uma única e mesma coisa em função das diferenças entre suas próprias paixões Quando aprovam uma determinada opinião chamamlhe opinião e quando não gostam dela chamamlhe heresia contudo heresia significa simplesmente uma opinião determinada apenas com mais algumas tintas de cólera Do mesmo deriva também ser impossível distinguir sem estudo e grande entendimento entre uma ação de muitos homens e muitas ações de uma multidão como por exemplo entre a ação única de todos os senadores de Roma ao matarem Catilina e as muitas ações de um certo número de senadores ao matarem César Ficase portanto predisposto para tomar como ação do povo aquilo que é uma multidão de ações praticadas por uma multidão de pessoas talvez arrastadas pela persuasão de uma só A ignorância das causas e da constituição original do direito da eqüidade da lei e da justiça predispõe os homens para tomarem como regra de suas ações o costume e o exemplo de maneira a considerarem injusto aquilo que é costume castigar e justo aquilo de cuja impunidade e aprovação pode apresentar um exemplo ou como barbaramente lhe chamam os juristas os únicos que usam esta falsa medida um precedente Como crianças pequenas que têm como única regra dos bons e maus costumes a correção que recebem de seus pais e mestres salvo que as crianças são fiéis a essa regra ao passo que os homens não o são porque tendose tornado fortes e obstinados apelam do costume para a razão e da razão para o costume conforme mais lhes convém afastandose do costume quando seu interesse o exige e pondose contra a razão todas as vezes que a razão fica contra eles É esta a causa devido à qual a doutrina do bem e do mal é objeto de permanente disputa tanto pela pena como pela espada ao passo que com a doutrina das linhas e figuras o mesmo não ocorre dado que aos homens não preocupa qual é a verdade neste ultimo assunto como coisa que não se opõe á ambição ao lucro ou à cobiça de ninguém Pois não duvido que se acaso fosse contrária ao direito de domínio de alguém ou aos interesses dos homens que possuem domínio a doutrina segundo a qual os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos de um quadrado esta doutrina teria sido se não objeto de disputa pelo menos suprimida mediante a queima de todos os livros de geometria na medida em que os interessados de tal fossem capazes A ignorância das causas remotas predispõe os homens para atribuir todo evento às causas imediatas e instrumentais pois são estas as causas que percebem E daí se segue que em todos os lugares onde os homens se vêem sobrecarregados com tributos fiscais descarregam sua fúria em cima dos publicanos isto é os recebedores recolhedores e outros funcionários da renda pública e se associam àqueles que censuram o governo civil e assim depois de se terem comprometido para além dos limites de qualquer justificação possível se voltam também contra a autoridade suprema por medo ao castigo ou por vergonha de receber perdão A ignorância das causas naturais predispõe os homens para a credulidade chegando muitas vezes a acreditar em coisas impossíveis Pois esses nada conhecem em contrário a que elas possam ser verdade sendo incapazes de detectar a impossibilidade E a credulidade dado que os homens se comprazem em escutar em companhia predispõenos para mentir Assim a simples ignorância sem ser acompanhada de malícia é capaz de levar os homens tanto a acreditar em mentiras como a dizêlas e por vezes também a inventálas A ansiedade em relação ao futuro predispõe os homens para investigar as causas das coisas pois seu conhecimento torna os homens mais capazes de dispor o presente da maneira mais vantajosa A curiosidade ou amor pelo conhecimento das causas afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa e depois também da causa dessa causa até que forçosamente deve chegar a esta idéia que há uma causa da qual não há causa anterior porque é eterna que é aquilo a que os homens chamam Deus De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais sem com isso nos inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda a sua natureza Porque tal como um homem que tenha nascido cego que ouça outros falarem de irem aquecerse junto ao fogo e seja levado a aquecerse junto ao mesmo pode facilmente conceber e convencerse de que há ali alguma coisa a que os homens chamam fogo e é a causa do calor que sente mas é incapaz de imaginar como ele seja ou de ter em seu espírito uma idéia igual à daqueles que vêem o fogo assim também através das coisas visíveis deste mundo e de sua ordem admirável se pode conceber que há uma causa dessas coisas a que os homens chamam Deus mas sem ter uma idéia ou imagem dele no espírito E aqueles que pouca ou nenhuma investigação fazem das causas naturais das coisas todavia devido ao medo que deriva da própria ignorância daquilo que tem o poder de lhes ocasionar grande bem ou mal tendem a supor e a imaginar por si mesmos várias espécies de poderes invisíveis e a se encherem de admiração e respeito por suas próprias fantasias Em épocas de desgraça tendem a invocálas e quando esperam um bom sucesso tendem a agradecerlhes transformando em seus deuses as criaturas de sua própria fantasia E foi dessa maneira que aconteceu devido à infinita variedade da fantasia terem os homens criado no mundo inúmeras espécies de deuses Este medo das coisas invisíveis é a semente natural daquilo a que cada um em si mesmo chama religião e naqueles que veneram e temem esse poder de maneira diferente da sua superstição E tendo esta semente da religião sido observada por muitos alguns dos que a observaram tenderam a alimentála revestila e conformála às leis e a acrescentarlhe de sua própria invenção qualquer opinião sobre as causas dos eventos futuros que melhor parecesse capaz de lhes permitir governar os outros fazendo o máximo uso possível de seus poderes CAPÍTULO XII Da religião Verificando que só no homem encontramos sinais ou frutos da religião não há motivo para duvidar que a semente da religião se encontra também apenas no homem e consiste em alguma qualidade peculiar ou pelo menos em algum grau eminente dessa qualidade que não se encontra nas outras criaturas vivas Em primeiro lugar é peculiar à natureza do homem investigar as causas dos eventos a que assiste uns mais outros menos mas todos os homens o suficiente para terem a curiosidade de procurar as causas de sua própria boa ou má fortuna Em segundo lugar élhe também peculiar perante toda e qualquer coisa que tenha sido um começo pensar que ela teve também uma causa que determinou esse começo no momento em que o fez nem mais cedo nem mais tarde Em terceiro lugar enquanto para os animais a única felicidade é o gozo de seus alimentos repouso e prazeres cotidianos pois de pouca ou nenhuma previsão dos tempos vindouros são capazes por falta de observação e de memória da ordem conseqüência e dependência das coisas que vêem enquanto isso por seu lado o homem observa como um evento foi produzido por outro e recorda seus antecedentes e conseqüências E quando se vê na impossibilidade de descobrir as verdadeiras causas das coisas dado que as causas da boa e da má sorte são em sua maior parte invisíveis supõe causas para elas quer as que lhe são sugeridas por sua própria fantasia quer as que aceita da autoridade de outros homens aos quais considera seus amigos e mais sábios do que ele próprio Os dois primeiros motivos dão origem à ansiedade Pois quando se está certo de que existem causas para todas as coisas que aconteceram até agora ou no futuro virão a acontecer é impossível a alguém que constantemente se esforça por se garantir contra os males que receia e por obter o bem que deseja não se encontrar em eterna preocupação com os tempos vindouros De modo que todos os homens sobretudo os que são extremamente previdentes se encontram numa situação semelhante à de Prometeu Porque tal como Prometeu nome que quer dizer homem prudente foi acorrentado ao monte Cáucaso um lugar de ampla perspectiva onde uma águia se alimentava de seu gado devorando de dia o que tinha voltado a crescer durante a noite assim também o homem que olha demasiado longe preocupado com os tempos futuros tem durante todo o dia seu coração ameaçado pelo medo da morte da pobreza ou de outras calamidades e não encontra repouso nem paz para sua ansiedade a não ser no sono Este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das causas como se estivessem no escuro deve necessariamente ter um objeto Quando portanto não há nada que possa ser visto nada acusam quer da boa quer da má sorte a não ser algum poder ou agente invisível Foi talvez neste sentido que alguns dos antigos poetas disseram que os deuses foram criados pelo medo dos homens o que quando aplicado aos deuses quer dizer aos muitos deuses dos gentios é muito verdadeiro Mas o reconhecimento de um único Deus eterno infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais e suas diversas virtudes e operações mais facilmente que do medo do que possa vir a acontecerlhes nos tempos vindouros Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata desse efeito e depois a causa dessa causa e mergulhe profundamente na investigação das causas deverá finalmente concluir que necessariamente existe como até os filósofos pagãos confessavam um primeiro motor Isto é uma primeira e eterna causa de todas as coisas que é o que os homens significam com o nome de Deus E tudo isto sem levar em conta a sorte por cuja preocupação se produz nos homens uma tendência para o medo desviandoos ao mesmo tempo da investigação das causas das outras coisas dandolhes assim ocasião de inventar tantos deuses quantos forem os homens que os inventem E quanto à matéria ou substância dos agentes invisíveis assim imaginados seria impossível que por cogitação natural se fosse cair num outro conceito a não ser que é a mesma da alma do homem e que a alma do homem é da mesma substância que aparece nos sonhos àqueles que dormem ou nos espelhos aos que estão despertos As quais os homens como não sabem que tais aparições não passam de criaturas da fantasia pensam que são substâncias externas e reais e assim lhes chamam fantasmas como os latinos lhes chamavam imagines e umbrae pensando que são espíritos ou seja tênues corpos aéreos E pensam que são semelhantes àqueles agentes invisíveis que temem salvo que estes aparecem e desaparecem quando lhes apraz Mas a opinião de que tais espíritos são incorpóreos e imateriais jamais poderia entrar por natureza na mente de qualquer homem porque embora os homens sejam capazes de reunir palavras de significação contraditória como espírito e incorpóreo jamais serão capazes de ter a imaginação de alguma coisa que lhes corresponda Portanto os homens que através de sua própria meditação acabam por reconhecer um Deus infinito onipotente e eterno preferem antes confessar que ele é incompreensível e se encontra acima de seu entendimento em vez de definir sua natureza pelas palavras espírito incorpóreo para depois confessar que sua definição é ininteligível Ou se lhe atribuem esse título não é dogmaticamente com a intenção de tornar entendida a natureza divina mas piosamente para honrálo com atributos ou significações o mais longínquo que seja possível da solidez dos corpos visíveis Além disso quanto à maneira como pensam que esses agentes invisíveis produziram seus efeitos quer dizer quais as causas imediatas que eles usaram para fazer que as coisas ocorram os homens que não conhecem o que chamamos causar isto é quase todos os homens não dispõem de outra regra para descobri las senão observando e recordando aquilo que viram preceder o mesmo efeito em alguma outra ocasião ou ocasiões anteriores sem verem entre o antecedente e o evento conseqüente qualquer espécie de dependência ou conexão Portanto de coisas idênticas no passado esperam coisas idênticas no futuro e supersticiosamente ficam esperando a boa ou má sorte de coisas que nada tiveram a ver com a produção dos efeitos Do mesmo modo que os atenienses para sua batalha de Lepanto pediam um novo Fórmio e o partido de Pompeu para sua guerra na África pedia um novo Capitão e outros também fizeram em diversas ocasiões desde então atribuíram sua fortuna a alguém que simplesmente se encontrava presente a um lugar que daria sorte ou azar ou a palavras proferidas especialmente se entre elas estivesse o nome de Deus como as frases cabalísticas e esconjuros a liturgia das bruxas tal como poderiam acreditar que têm o poder de transformar uma pedra em pão de transformar o pão num homem ou qualquer coisa em qualquer coisa Em terceiro lugar a adoração naturalmente manifestada pelos homens para com os poderes invisíveis só pode usar as mesmas expressões de reverência que se usam em relação aos homens como oferendas petições agradecimentos submissão do corpo súplicas respeitosas comportamento sóbrio palavras meditadas juras isto é garantia mútua das promessas ao invocar esses poderes Além disso a razão nada sugere permitindo aos homens que a isso se limitem ou que através de outras cerimônias confiem naqueles que consideram mais sábios que eles próprios Por último quanto à maneira como esses poderes invisíveis comunicam aos homens as coisas que futuramente virão a ocorrer sobretudo quanto à boa e à má fortuna em geral ou o bom ou mau sucesso em qualquer empreendimento particular os homens se encontram naturalmente numa situação de perplexidade Salvo que fazendo a partir do tempo passado conjeturas sobre o tempo futuro estão extremamente sujeitos não apenas a tomar coisas acidentais depois de uma ou duas ocorrências por prognósticos de que o mesmo sempre ocorrerá no futuro mas também a acreditar em idênticos prognósticos feitos por outros homens dos quais conceberam uma opinião favorável E é nestas quatro coisas a crença nos fantasmas a ignorância das causas segundas a devoção pelo que se teme e a aceitação de coisas acidentais como prognósticos que consiste a semente natural da religião A qual devido às diferenças da imaginação julgamento e paixões dos diversos homens se desenvolveu em cerimônias tão diferentes que as que são praticadas por um homem são em sua maior parte consideradas ridículas por outro Porque estas sementes foram cultivadas por duas espécies de homens Uma espécie foi a daqueles que as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção A outra foi a dos que o fizeram sob o mando e direção de Deus Mas ambas as espécies o fizeram com o objetivo de fazer os que neles confiavam tender mais para a obediência as leis a paz a caridade e a sociedade civil De modo que a religião da primeira espécie constitui parte da política humana e ensina parte do dever que os reis terrenos exigem de seus súditos A religião da segunda espécie é a política divina que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do reino de Deus Da primeira espécie são todos os fundadores de Estados e legisladores dos gentios Da segunda espécie são Abraão Moisés e nosso abençoado Salvador dos quais chegaram até nós as leis do reino de Deus Quanto àquela parte da religião que consiste nas opiniões relativas à natureza dos poderes invisíveis quase nada há com um nome que não tenha sido considerado entre os gentios em um ou outro lugar como um deus ou um demônio ou imaginado pelos poetas como animado habitado ou possuído por um ou outro espírito A matéria informe do mundo era um deus com o nome de Caos O céu o oceano os planetas o fogo a terra os ventos eram outros tantos deuses Os homens as mulheres um pássaro um crocodilo uma vaca um cão uma cobra uma cebola um alhoporro foram divinizados Além disso encheram quase todos os lugares com espíritos chamados daemons as planícies com Pan e panises ou sátiros os bosques com faunos e ninfas o mar com tritões e outras ninfas cada rio e cada fonte com um fantasma do mesmo nome e com ninfas cada casa com seus lares ou familiares cada homem com seu gênio o inferno com fantasmas e acólitos espirituais como Caronte Cérbero e as Fúrias e de noite todos os lugares com larvas lêmures fantasmas de homens falecidos e todo um reino de fadas e duendes Também atribuíram divindade e dedicaram templos a meros acidentes e qualidades como o tempo a noite o dia a paz a concórdia o amor o ódio a virtude a honra a saúde a corrupção a febre e outros semelhantes E em suas preces a favor ou contra a eles oravam como se houvesse fantasmas com esses nomes pairando sobre suas cabeças os quais deixariam cair ou impediriam de cair aquele bem ou mal a favor do qual ou contra o qual oravam Invocavam também seu próprio engenho sob o nome de Musas sua própria ignorância sob o nome de Fortuna seu próprio desejo sob o nome de Cupido sua própria raiva sob o nome de Fúrias seu próprio membro viril sob o nome de Príapo atribuíam suas propuções a Íncubos e Súcubos de modo tal que nada que um poeta pudesse introduzir como pessoa em seu poema deixavam de fazer um deus ou um demônio Os mesmos autores da religião dos gentios observando o segundo fundamento da religião que é a ignorância que os homens têm das causas e consequentemente sua tendência para atribuir sua sorte a causas das quais ela em nada aparenta depender aproveitaram para impor à sua ignorância em vez das causas secundárias uma espécie de deuses secundários e ministeriais atribuindo a causa da fecundidade a Vênus a causa das artesa Apolo a da sutileza e sagacidade a Mercúrio a das tormentas e tempestades a Éolo e as de outros efeitos a outros deuses De modo tal que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de atividades E às formas de veneração que os homens naturalmente consideravam próprias para oferecer a seus deuses tais como sacrifícios orações e ações de graças além das acima referidas os mesmos legisladores dos gentios acrescentaram suas imagens tanto em pintura como em escultura A fim de que os mais ignorantes quer isto dizer a maior parte ou a generalidade do povopensando que os deuses em cuja representação tais imagens eram feitas nelas realmente estavam incluídos como se nelas estivessem alojados pudessem sentir perante elas ainda mais medo E dotaramnos com terras e casas funcionários e rendas separadas de todos os outros usos humanos isto é santificadas e consagradas a esses seus ídolos tais como cavernas grutas bosques e montanhas e também ilhas inteiras e atribuíramlhes não apenas as formas umas de homens outras de animais e outras de monstros mas também as faculdades e paixões de homens e animais como a sensação a linguagem o sexo o desejo a geração e isto não apenas misturandose uns com os outros para propagar a raça dos deuses mas misturandose também com os homens e as mulheres produzindo deuses híbridos e simples moradores dos céus como Baco Hércules e outros e além dessas também o ódio e a vingança e outras paixões das criaturas vivas assim como as ações delas derivadas como a fraude o roubo o adultério a sodomia e todo e qualquer vício que possa ser tomado como efeito do poder e causa do prazer e todos aqueles vícios que entre os homens são considerados mais como contrários à lei do que contrários à honra E por último aos prognósticos dos tempos vindouros que naturalmente não passam de conjeturas baseadas na experiência dos tempos passados e sobrenaturalmente não são mais do que revelação divina os mesmos autores da religião dos gentios baseandose em parte numa pretensa experiência e em parte numa pretensa revelação acrescentaram inúmeras outras supersticiosas maneiras de adivinhação E fizeram os homens acreditar que descobririam sua sorte às vezes nas respostas ambíguas ou destituídas de sentido dos sacerdotes de Delfos Delos e Amon e outros famosos oráculos respostas que eram propositadamente ambíguas para dar conta do evento de ambas as maneiras ou absurdas pelas intoxicantes emanações do lugar o que é muito freqüente em cavernas sulfurosas Às vezes nas folhas das sibilas sobre cujas profecias como talvez as de Nostradamus pois os fragmentos atualmente existentes parecem ser invenção de uma época posterior havia alguns livros que gozavam de grande reputação no tempo da República Romana Às vezes nos insignificantes discursos de loucos supostamente possuídos por um espírito divino ao que chamavam entusiasmo e a estas maneiras de predizer acontecimentos se chamava teomancia ou profecia Às vezes no aspecto apresentado pelas estrelas ao nascer o que se chamava horoscopia e era considerado parte da astrologia judicial Às vezes em suas próprias esperanças e temores o que se chamava tumomancia ou presságio Às vezes nas predições dos bruxos que pretendiam comunicarse com os mortos o que se chama necromancia esconjuro e feitiçaria e não passa de um misto de impostura e fraude Às vezes no vôo ou forma de se alimentar casual das aves o que se chamava augúrio Às vezes nas entranhas de um animal sacrificado o que se chamava aruspicina Às vezes nos sonhos Às vezes no crocitar dos corvos ou no canto dos pássaros Às vezes nas linhas do rosto o que se chamava metoposcopia ou pela palmistria nas linhas da mão ou em palavras casuais o que se chamava omina Às vezes em monstros ou acidentes invulgares como eclipses cometas meteoros raros terremotos inundações nascimentos prematuros e coisas semelhantes a que chamavam portento e ostenta porque pensavam que eles prediziam ou pressagiavam alguma grande calamidade futura Às vezes no simples acaso como no jogo de cara ou coroa ou na contagem do número de orifícios de um crivo ou no jogo de escolher versos de Homero e Virgílio e em inúmeras outras vãs invenções do gênero Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância Portanto os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados Primeiro o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção mas como os ditames de algum deus ou outro espírito ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos simples mortais a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites Assim Numa Pompílio pretendia ter recebido da ninfa Egéria as cerimônias que instituiu entre os romanos o primeiro rei e fundador do reino do Peru pretendia que ele e sua esposa eram filhos do Sol e Maomé para estabelecer sua nova religião pretendia falar com o Espírito Santo sob a forma de uma pomba Em segundo lugar tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis Em terceiro lugar o de prescrever cerimônias suplicações sacrifícios e festivais os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses assim como que da ira dos deuses resultava o insucesso na guerra grandes doenças contagiosas terremotos e a desgraça de cada indivíduo e que essa ira provinha da falta de cuidado com sua veneração e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto das cerimônias exigidas E embora entre os antigos romanos não fosse proibido negar aquilo que nos poetas está escrito sobre os sofrimentos e os prazeres depois desta vida que foram abertamente satirizados por vários indivíduos de grande autoridade e peso nesse Estado apesar disso essa crença sempre foi mais aceita do que rejeitada E através destas e outras instituições semelhantes conseguiam a serviço de seu objetivo que era a paz do Estado que o vulgo em ocasiões de desgraça atribuísse a culpa à falta de cuidado ou ao cometimento de erros em suas cerimônias ou à sua própria desobediência às leis tornandose assim menos capaz de rebelar se contra seus governantes Entretido pela pompa e pela distração dos festivais e jogos públicos celebrados em honra dos deuses nada mais necessitava do que pão para se manter afastado do descontentamento de murmúrios e protestos contra o Estado Portanto os romanos que tinham conquistado a maior parte do mundo então conhecido não tinham escrúpulos em tolerar qualquer religião que fosse mesmo na própria cidade de Roma a não ser que nela houvesse alguma coisa incompatível com o governo civil E não há notícia de que lá alguma religião fosse proibida a não ser a dos judeus os quais por serem o próprio reino de Deus consideravam ilegítimo reconhecer sujeição a qualquer rei mortal ou a qualquer Estado E assim se vê como a religião dos gentios fazia parte de sua política Mas quando foi o próprio Deus através da revelação sobrenatural que implantou a religião nesse momento ele estabeleceu também para si mesmo um reino particular e não ditou apenas leis relativas ao comportamento para consigo próprio mas também de uns para com os outros E dessa maneira no reino de Deus a política e as leis civis fazem parte da religião não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação temporal e a espiritual certo que Deus é o rei de toda a Terra mas mesmo assim pode ser rei de uma nação peculiar e escolhida Pois não há nisso maior incongruência do que no fato de aquele que detém o comando geral de todo o exército ter também um regimento ou companhia que lhe pertença em particular Deus é rei de toda a Terra por seu poder mas de seu povo escolhido é rei em virtude de um pacto Mas para falar mais longamente do reino de Deus tanto por natureza como por pacto reservei no subseqüente discurso um outro lugar Tendo em conta a maneira como a religião se propagou não é difícil compreender as causas devido às quais toda ela se resolve em suas primeiras sementes ou princípios Os quais são apenas a crença numa divindade e em poderes invisíveis e sobrenaturais que jamais poderá ser extirpada da natureza humana a tal ponto que novas religiões deixem de brotar dela mediante a ação daqueles homens que têm reputação suficiente para esse efeito Pois verificando que toda religião estabelecida assenta inicialmente na fé de uma multidão em determinada pessoa que se acredita não apenas ser um sábio e esforçarse por conseguir a felicidade de todos mas também ser um santo a quem o próprio Deus decidiu declarar sobrenaturalmente sua vontade seguese necessariamente que quando aqueles que têm o governo da religião se tornam suspeitos quanto a sua sabedoria sua sinceridade ou seu amor ou quando se mostram incapazes de apresentar qualquer sinal provável da revelação divina nesse caso a religião que eles desejam manter se torna igualmente suspeita e sem o medo da espada civil contradita e rejeitada Aquilo que faz perder a reputação de sabedoria naquele que estabelece uma religião ou lhe acrescenta algo depois de já estabelecida é a imposição de crenças contraditórias Porque não é possível que sejam verdadeiras ambas as partes de uma contradição portanto impor a crença nelas é um argumento de ignorância que nisso denuncia seu autor e o desacredita em todas as outras coisas que ele venha a propor como revelação sobrenatural a qual revelação certamente se pode receber sobre muitas coisas acima da razão natural mas nunca contra ela Aquilo que faz perder a reputação de sinceridade é fazer ou dizer coisas que pareçam ser sinais de que não se acredita nas coisas em que se exige que os outros acreditem Todos esses atos e palavras são portanto considerados escandalosos porque são obstáculos que fazem os homens cair em vez de seguir o caminho da religião como por exemplo a injustiça a crueldade a hipocrisia a avareza e a luxúria Pois quem pode acreditar que aquele que pratica ordinariamente as ações que derivam de qualquer destas raízes pode acreditar que existe e deve ser temido aquele poder invisível com que pretende atemorizar os outros por faltas menores Aquilo que faz perder a reputação de amor é deixar transparecer ambições pessoais quando a crença que se exige dos outros conduz ou parece conduzir à aquisição de domínio riquezas dignidade ou à garantia de prazeres apenas ou especialmente para si próprio Porque aquilo de que os homens tiram benefícios próprios se considera que o fazem por si mesmos não por amor aos outros Por último o testemunho que os homens podem apresentar de eleição divina não pode ser outro senão a realização de milagres ou de profecias verdadeiras o que é também um milagre ou de extraordinária felicidade Portanto àqueles pontos de religião que foram recebidos dos que realizaram tais milagres os pontos que forem acrescentados por aqueles que não provam sua eleição através de algum milagre não conquistam maior crença do que aquela que os costumes e as leis dos lugares onde foram educados lhes proporcionam Pois tal como nas coisas naturais os homens judiciosos exigem sinais e argumentos naturais assim também nas coisas sobrenaturais exigem sinais sobrenaturais que são os milagres antes de aquiescerem em seu íntimo e do fundo do coração Todas estas causas do debilitamento da fé dos homens aparecem manifestamente nos exemplos que se seguem Em primeiro lugar temos o exemplo dos filhos de Israel que quando Moisés que tinha provado sua eleição através de milagres assim como da maneira feliz como os tirou do Egito se ausentou por apenas quarenta dias se revoltaram contra a veneração do verdadeiro Deus que por ele lhes fora recomendado e estabelecendo como seu deus um bezerro de ouro caíram na idolatria dos egípcios dos quais tão pouco tempo antes haviam sido libertados Por outro lado depois que Moisés Aarão e Josué e a geração que tinha assistido às grandes obras de Deus em Israel morreram surgiu uma outra geração que adorou a Baal De modo que quando faltaram os milagres faltou também a fé E também quando os filhos de Samuel depois de instituídos por seu pai como juízes em Bersabé aceitaram suborno e julgaram injustamente o povo de Israel recusou continuar a ter Deus como seu rei a não ser da mesma maneira como era rei dos outros povos exigindo portanto de Samuel que lhes escolhesse um rei à maneira das nações De modo que quando falta a justiça a fé falta também a ponto de os ter levado a depor seu Deus da soberania que tinha sobre eles E enquanto no momento da implantação da religião cristã os oráculos cessaram em todas as partes do Império Romano e o número de cristãos aumentava maravilhosamente todos os dias e em todos os lugares devido à pregação dos Apóstolos e Evangelistas uma grande parte desse sucesso pode razoavelmente ser atribuída ao desprezo que os sacerdotes dos gentios dessa época haviam atraído sobre si mesmos devido a sua impureza sua avareza e seus manejos com os príncipes Também a religião da Igreja de Roma foi em parte pela mesma razão abolida na Inglaterra e em muitas outras partes da cristandade na medida em que a falta de virtude dos pastores provocou no povo a falta de fé e em parte porque a filosofia e doutrina de Aristóteles foi levada para a religião pelos homens das Escolas do que surgiram tantas contradições e absurdos que acarretaram para o clero uma reputação tanto de ignorância como de intenção fraudulenta e levaram o povo a tender para a revolta contra eles tanto contra a vontade de seus próprios príncipes como na França e na Holanda quanto de acordo com sua vontade como na Inglaterra Por último entre os pontos que a Igreja de Roma declarou necessários para a salvação existe um tão grande número que redunda manifestamente em vantagem do Papa e de seus súditos espirituais que residem nos territórios de outros príncipes cristãos que se não fosse a recíproca emulação desses príncipes eles te riam podido sem guerras nem perturbações recusar toda autoridade exterior tão facilmente como ela foi recusada pela Inglaterra Pois haverá alguém que não seja capaz de ver para beneficio de quem contribuía acreditarse que um rei só recebe de Cristo sua autoridade no caso de ser coroado por um bispo Que um rei se for sacerdote não pode casarse Que se um príncipe nasceu de um casamento legítimo ou não é assunto que deve ser decidido pela autoridade de Roma Que os súditos podem ser libertos de seu dever de sujeição se a corte de Roma tiver condenado o rei como herege Que um rei como Chilperico da França pode ser deposto por um Papa como o Papa Zacarias sem motivo algum sendo seu reino dado a um de seus súditos Que o clero secular e regular seja em que país for se encontra isento da autoridade de seu reino em casos criminais E quem não vê em proveito de quem redundam os emolumentos das missas particulares e dos vales do Purgatório juntamente com outros sinais de interesse pessoal suficientes para mortificar a mais viva fé se conforme disse o magistrado civil e os costumes deixassem de a sustentar mais do que qualquer opinião que tenham da santidade sabedoria e probidade de seus mestres De modo que posso atribuir todas as mudanças de religião do mundo a uma e à mesma causa isto é sacerdotes desprezíveis e isto não apenas entre os católicos mas até naquela Igreja que mais presumiu de Reforma CAPÍTULO XIII Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro mesmo assim quando se considera tudo isto em conjunto a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar tal como ele Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matai o mais forte quer por secreta maquinação quer aliandose com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo Quanto às faculdades do espírito pondo de lado as artes que dependem das palavras e especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama ciência a qual muito poucos têm é apenas numas poucas coisas pois não é uma faculdade nativa nascida conosco e não pode ser conseguida como a prudência ao mesmo tempo que se está procurando alguma outra coisa encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força Porque a prudência nada mais é do que experiência que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens naquelas coisas a que igualmente se dedicam O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo quer dizer em maior grau do que todos menos eles próprios e alguns outros que ou devido à fama ou devido a concordarem com eles merecem sua aprovação Pois a natureza dos homens é tal que embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência maior eloqüência ou maior saber dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios porque vêem sua própria sabedoria bem de perto e a dos outros homens à distância Mas isto prova que os homens são iguais quanto a esse ponto e não que sejam desiguais Pois geralmente não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins Portanto se dois homens desejam a mesma coisa ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos eles tornamse inimigos E no caminho para seu fim que é principalmente sua própria conservação e às rezes apenas seu deleite esforçamse por se destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem se alguém planta semeia constrói ou possui um lugar conveniente é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas para desapossálo e priválo não apenas do fruto de seu trabalho mas também de sua vida e de sua liberdade Por sua vez o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação isto é pela força ou pela astúcia subjugar as pessoas de todos os homens que puder durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçálo E isto não é mais do que sua própria conservação exige conforme é geralmente admitido Também por causa de alguns que comprazendose em contemplar seu próprio poder nos atos de conquista levam estes atos mais longe do que sua segurança exige se outros que do contrário se contentariam em manterse tranqüilamente dentro de modestos limites não aumentarem seu poder por meio de invasões eles serão incapazes de subsistir durante muito tempo se se limitarem apenas a uma atitude de defesa Consequentemente esse aumento do domínio sobre os homens sendo necessário para a conservação de cada um deve ser por todos admitido Por outro lado os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros e sim pelo contrário um enorme desprazer quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação naturalmente se esforça na medida em que a tal se atreva o que entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos vai suficientemente longe para leválos a destruirse uns aos outros por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor causando lhes dano e dos outros também através do exemplo De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia Primeiro a competição segundo a desconfiança e terceiro a glória A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro a segunda a segurança e a terceira a reputação Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas mulheres filhos e rebanhos dos outros homens os segundos para defendêlos e os terceiros por ninharias como uma palavra um sorriso uma diferença de opinião e qualquer outro sinal de desprezo quer seja diretamente dirigido a suas pessoas quer indiretamente a seus parentes seus amigos sua nação sua profissão ou seu nome Com isto se torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito eles se encontram naquela condição a que se chama guerra e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra do mesmo modo que quanto à natureza do clima Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos assim também a natureza da guerra não consiste na luta real mas na conhecida disposição para tal durante todo o tempo em que não há garantia do contrário Todo o tempo restante é de paz Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra em que todo homem é inimigo de todo homem o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção Numa tal situação não há lugar para a indústria pois seu fruto é incerto consequentemente não há cultiva da terra nem navegação nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar não há construções confortáveis nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força não há conhecimento da face da Terra nem cômputo do tempo nem artes nem letras não há sociedade e o que é pior do que tudo um constante temor e perigo de morte violenta E a vida do homem é solitária pobre sórdida embrutecida e curta Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens tornandoos capazes de atacarse e destruirse uns aos outros E poderá portanto talvez desejar não confiando nesta inferência feita a partir das paixões que a mesma seja confirmada pela experiência Que seja portanto ele a considerarse a si mesmo que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado que quando vai dormir fecha suas partas que mesmo quando está em casa tranca seus cofres e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita Que opinião tem ele de seus compatriotas ao viajar armado de seus concidadãos ao fechar suas portas e de seus filhos e servidores quando tranca seus cofres Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atas como eu o faço com minhas palavras Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba o que será impossível até ao momento em que sejam feitas as leis e nenhuma lei pode ser feita antes de se ter determinado qual a pessoa que deverá fazêla Poderá porventura pensarse que nunca existiu um tal tempo nem uma condição de guerra como esta e acredito que jamais tenha sido geralmente assim no mundo inteiro mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim Porque os povos selvagens de muitos lugares da América com exceção do governo de pequenas famílias cuja concórdia depende da concupiscência natural não possuem qualquer espécie de governo e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi Seja como for é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacifico costumam deixarse cair numa guerra civil Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos contra todos de qualquer modo em todos os tempos os reis e as pessoas dotadas de autoridade soberana por causa de sua independência vivem em constante rivalidade e na situação e atitude dos gladiadores com as armas assestadas cada um de olhos fixos no outro isto é seus fortes guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos e constantemente com espiões no território de seus vizinhos o que constitui uma atitude de guerra Mas como através disso protegem a indústria de seus súditos daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência que nada pode ser injusto As noções de bem e de mal de justiça e injustiça não podem aí ter lugar Onde não há poder comum não há lei e onde não há lei não há injustiça Na guerra a força e a fraude são as duas virtudes cardeais A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito Se assim fosse poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo do mesmo modo que seus sentidos e paixões São qualidades que pertencem aos homens em sociedade não na solidão Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade nem domínio nem distinção entre o meu e o teu só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir e apenas enquanto for capaz de conserválo É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra por obra da simples natureza Embora com uma possibilidade de escapar a ela que em parte reside nas paixões e em parte em sua razão As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de conseguilas através do trabalho E a razão sugere adequadas normas de paz em torno das quais os homens podem chegar a acordo Essas normas são aquelas a que por outro lado se chama leis de natureza das quais falarei mais particularmente nos dois capítulos seguintes CAPÍTULO XIV Da primeira e Segunda leis naturais e dos contratos O direito de natureza a que os autores geralmente chamam jus naturale é a liberdade que cada homem possui de usai seu próprio poder da maneira que quiser para a preservação de sua própria natureza ou seja de sua vida e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim Por liberdade entendese conforme a significação própria da palavra a ausência de impedimentos externos impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem Uma lei de natureza lex naturalis é um preceito ou regra geral estabelecido pela razão mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou priválo dos meios necessários para preservála ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservála Porque embora os que têm tratado deste assunto costumem confundir jus e lex o direito e a lei é necessário distinguilos um do outro Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas De modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria E dado que a condição do homem conforme foi declarado no capítulo anterior é uma condição de guerra de todos contra todos sendo neste caso cada um governado por sua própria razão e não havendo nada de que possa lançar mão que não possa servirlhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos seguese daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas incluindo os corpos dos outros Portanto enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas não poderá haver para nenhum homem por mais forte e sábio que seja a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão Que todo homem deve esforçarse pela paz na medida em que tenha esperança de conseguila e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza isto é procurara paz e seguila A segunda encerra a suma do direito de natureza isto é por todos os meios que pudermos defendermonos a nós mesmos Desta lei fundamental de natureza mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz deriva esta segunda lei Que um homem concorde quando outros também o façam e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo em renunciar a seu direito a todas as coisas contentandose em relação aos outros homens com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito assim como ele próprio nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu pois isso eqüivaleria a oferecerse como presa coisa a que ninguém é obrigado e não a disporse para a paz É esta a lei do Evangelho Faz aos outros o que queres que te façam a ti E esta é a lei de todos os homens Quod tibi jïeri non vis alteri ne feceris Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que privarse da liberdade de negar ao outro o beneficio de seu próprio direito à mesma coisa Pois quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outro homem um direito que este já não tivesse antes porque não há nada a que um homem não tenha direito por natureza mas apenas se afasta do caminho do outro para que ele possa gozar de seu direito original sem que haja obstáculos da sua parte mas não sem que haja obstáculos da parte dos outros De modo que a conseqüência que redunda para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu próprio direito original Abandonase um direito simplesmente renunciando a ele ou transferindoo para outrem Simplesmente renunciando quando não importa em favor de quem irá redundar o respectivo beneficio Transferindoo quando com isso se pretende beneficiar uma determinada pessoa ou pessoas Quando de qualquer destas maneiras alguém abandonou ou adjudicou seu direito dizse que fica obrigado ou forçado a não impedir àqueles a quem esse direito foi abandonado ou adjudicado o respectivo beneficio e que deve e é seu dever não tornar nulo esse seu próprio ato voluntário e que tal impedimento é injustiça e injúria dado que é sine jure pois se transferiu ou se renunciou ao direito De modo que a injúria ou injustiça nas controvérsias do mundo é de certo modo semelhante àquilo que nas disputas das Escolas se chama absurdo Porque tal como nestas últimas se considera absurdo contradizer aquilo que inicialmente se sustentou assim também no mundo se chama injustiça e injúria desfazer voluntariamente aquilo que inicialmente se tinha voluntariamente feito O modo pelo qual um homem simplesmente renuncia ou transfere seu direito é uma declaração ou expressão mediante um sinal ou sinais voluntários e suficientes de que assim renuncia ou transfere ou de que assim renunciou ou transferiu o mesmo àquele que o aceitou Estes sinais podem ser apenas palavras ou apenas ações ou então conforme acontece na maior parte dos casos tanto palavras como ações E estas são os vínculos mediante os quais os homens ficam obrigados vínculos que não recebem sua força de sua própria natureza pois nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um homem mas do medo de alguma má conseqüência resultante da ruptura Quando alguém transfere seu direito ou a ele renuncia fálo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido ou a qualquer outro bem que daí espera Pois é um ato voluntário e o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos Portanto há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem por quaisquer palavras ou outros sinais possa abandonar ou transferir Em primeiro lugar ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirarlhe a vida dado que é impossível admitir que através disso vise a algum beneficio próprio O mesmo pode dizerse dos ferimentos das cadeias e do cárcere tanto porque desta aceitação não pode resultar benefício ao contrário da aceitação de que outro seja ferido ou encarcerado quanto porque é impossível saber quando alguém lança mão da violência se com ela pretende ou não provocar a morte Por último o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um quanto a sua vida e quanto aos meios de preservála de maneira tal que não acabe por dela se cansar Portanto se através de palavras ou outros sinais um homem parecer despojarse do fim para que esses sinais foram criados não deve entenderse que é isso que ele quer dizer ou que é essa a sua vontade mas que ele ignorava a maneira como essas palavras e ações irão ser interpretadas A transferência mútua de direitos é aquilo a que se chama contrato Há uma diferença entre a transferência do direito a uma coisa e a transferência ou tradição ou seja a entrega da própria coisa Porque a coisa pode ser entregue juntamente com a translação do direito como na compra e venda com dinheiro a vista ou na troca de bens e terras ou pode ser entregue algum tempo depois Por outro lado um dos contratantes pode entregar a coisa contratada por seu lado permitindo que o outro cumpra a sua parte num momento posterior determinado confiando nele até lá Nesse caso da sua parte o contrato se chama pacto ou convenção Ambas as partes podem também contratar agora para cumprir mais tarde e nesse caso dado que se confia naquele que deverá cumprir sua parte sua ação se chama observância da promessa ou fé e a falta de cumprimento se for voluntária chamase violação de fé Quando a transferência de direito não é mútua e uma das partes transfere na esperança de assim conquistar a amizade ou os serviços de um outro ou dos amigos deste ou na esperança de adquirir reputação de caridade ou magnanimidade ou para livrar seu espírito da cor da compaixão ou na esperança de ser recompensado no céu nestes casos não há contrato mas doação dádiva ou grafia palavras que significam uma e a mesma coisa Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência Expressas são as palavras proferidas com a compreensão do que significam Essas palavras são do tempo presente ou do passado como dou adjudico dei adjudiquei quero que isto seja teu ou do futuro como darei adjudicarei palavras do futuro a que se chama promessas Os sinais por inferência são às vezes conseqüência de palavras e às vezes conseqüência do silêncio às vezes conseqüência de ações e às vezes conseqüência da omissão de ações Geralmente um sinal por inferência de qualquer contrato é tudo aquilo que mostra de maneira suficiente a vontade do contratante As palavras sozinhas se pertencerem ao tempo futuro e encerrarem uma simples promessa são sinais insuficientes de uma doação e portanto não são obrigatórias Porque se forem do tempo futuro como por exemplo amanhã darei são sinal de que ainda não dei e de que consequentemente meu direito não foi transferido continuando em minha posse até o momento em que o transferir por algum outro ato Mas se as palavras forem do tempo presente ou do passado como por exemplo dei ou dou para ser entregue amanhã nesse caso meu direito de amanhã é abandonado hoje e isto em virtude das palavras mesmo que não haja qualquer outro argumento de minha vontade E há uma grande diferença na significação das palavras Volo hoc tuum esse cras e Cras dabo isto é entre Quero que isto seja teu amanhã e Darteei isto amanhã Porque a primeira maneira de falar indica um ato da vontade presente ao passo que a segunda indica um ato da vontade futura Portanto a primeira frase estando no presente transfere um direito futuro e a segunda que é do futuro não transfere nada Mas se além das palavras houver outros sinais da vontade de transferir um direito nesse caso mesmo que a doação seja livre pode considerarse que o direito é transmitido através de palavras do futuro Por exemplo se alguém oferece um prêmio para aquele que chegar primeiro ao fim de uma corrida a doação é livre embora as palavras sejam do futuro mesmo assim o direito é transmitido pois se esse alguém não quisesse que suas palavras fossem assim entendidas não as teria deixado escapar Nos contratos o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do tempo presente ou passado mas também quando elas são do futuro porque todo contrato é uma translação ou troca mútua de direitos Portanto aquele que apenas promete por já ter recebido o beneficio por causa do qual prometeu deve ser entendido como tencionando que o direito seja transmitido porque se não tivesse a intenção de ver suas palavras assim entendidas o outro não teria cumprido primeiro sua parte É por esse motivo que na compra e na venda e em outros atos de contrato uma promessa é equivalente a um pacto e portanto é obrigatória De quem cumpre primeiro a sua parte no caso de um contrato se diz que merece o que há de vir a receber do cumprimento da parte do outro o qual tem como devido E também quando é prometido um prêmio apenas ao ganhador ou quando se lança dinheiro no meio de um grupo para ser aproveitado por quem o apanhar embora isto seja uma doação apesar disso assim ganhar ou assim apanhar equivale a merecer e a têlo como devido Porque o direito é transferido pela oferta do prêmio e pelo ato de lançar o dinheiro embora não esteja determinado a quem é transferido o que só será feito pela realização do certame Mas entre essas duas espécies de mérito há esta diferença que no contrato eu mereço em virtude de meu próprio poder e da necessidade do contratante ao passo que no caso da doação o que me permite merecer é apenas a benevolência do doador No contrato mereço do contratante que ele se desfaça de seu direito No caso da doação não mereço que o doador se desfaça de seu direito e sim que quando dele se desfizer ele seja meu e não de outrem Creio ser este o significado da distinção estabelecida pelas Escolas entre meritum congrui e meritum condigni Tendo Deus todopoderoso prometido p Paraíso àqueles homens cegos pelos desejos carnais que forem capazes de atravessar este mundo em conformidade com os preceitos e limites por ele estabelecidos dizem elas que o que de tal for capaz merecerá o Paraíso ex congruo Mas como nenhum homem pode reclamar o direito a ele com base em sua própria direitura ou retidão ou em qualquer de seus próprios poderes mas apenas com base na livre graça de Deus dizem elas que nenhum homem pode merecer o Paraíso ex condigno Creio ser este o significado dessa distinção mas dado que os disputantes não se põem de acordo quanto à significação dos termos de sua própria arte a não ser enquanto isso lhes é de utilidade nada afirmarei de seu significado limitandome apenas a dizer isto que quando uma doação é feita indefinidamente como no caso de um prêmio a ser disputado aquele que ganhar merece e pode reclamar o prêmio como sendolhe devido Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros na condição de simples natureza que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes com direito e força suficiente para impor seu cumprimento ele não é nulo Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição a avareza a cólera e outras paixões dos homens se não houver o medo de algum poder coercitivo O qual na condição de simples natureza onde os homens são todos iguais e juízes do acerto de seus próprios temores é impossível ser suposto Portanto aquele que cumpre primeiro não faz mais do que entregarse a seu inimigo contrariamente ao direito que jamais pode abandonar de defender sua vida e seus meios de vida Mas num Estado civil onde foi estabelecido um poder para coagir aqueles que de outra maneira violariam sua fé esse temor deixa de ser razoável Por esse motivo aquele que segundo o pacto deve cumprir primeiro é obrigado a fazêlo A causa do medo que torna inválido um tal pacto deve ser sempre algo que surja depois de feito o pacto como por exemplo algum fato novo ou outro sinal da vontade de não cumprir caso contrário ela não pode tornar nulo o pacto Porque aquilo que não pode impedir um homem de prometer não deve ser admitido como impedimento do cumprimento Aquele que transfere qualquer direito transfere também os meios de gozálo na medida em que tal esteja em seu poder Por exemplo daquele que transfere uma terra se entende que transfere também a vegetação e tudo o que nela cresce Também aquele que vende um moinho não pode desviar a corrente que o faz andar E daqueles que dão a um homem o direito de governar soberanamente se entende que lhe dão também o direito de recolher impostos para pagar a seus soldados e de designar magistrados para a administração da justiça É impossível fazer pactos com os animais porque eles não compreendem nossa linguagem e portanto não podem compreender nem aceitar qualquer translação de direito nem podem transferir qualquer direito a outrem sem mútua aceitação não há pacto possível É impossível fazer pactos com Deus a não ser através da mediação daqueles a quem Deus falou quer por meio da revelação sobrenatural quer através dos lugartenentes que sob ele governam e em seu nome Porque de outro modo não podemos saber se nossos pactos foram aceitos ou não Portanto aqueles que fazem voto de alguma coisa contrária à lei de natureza fazem voto em vão pois cumprir tal voto seria uma coisa injusta E se for uma coisa ordenada pela lei de natureza não é o voto mas a lei que os vincula A matéria ou objeto de um pacto é sempre alguma coisa sujeita a deliberação porque fazer o pacto é um ato da vontade quer dizer um ato e o último ato da deliberação portanto sempre se entende ser alguma coisa futura e que é considerada possível de cumprir por aquele que faz o pacto Portanto prometer o que se sabe ser impossível não é um pacto Mas só depois de se verificar ser impossível o que antes se considerava possível o pacto é válido e embora não obrigue à própria coisa obriga ao valor equivalente Ou então se também isso for impossível à tentativa sem fingimentos de cumprir o mais possível porque a mais do que isto ninguém pode ser obrigado Os homens ficam liberados de seus pactos de duas maneiras ou cumprindo ou sendo perdoados Pois o cumprimento é o fim natural da obrigação e o perdão é a restituição da liberdade constituindo a retransferência daquele direito em que a obrigação consistia Os pactos aceites por medo na condição de simples natureza são obrigatórios Por exemplo se eu me comprometo a pagar um resgate ou um serviço em troca da vida a meu inimigo fico vinculado por esse pacto Porque é um contrato em que um recebe o beneficio da vida e o outro receberá dinheiro ou serviços em troca dela Consequentemente quando não há outra lei como é o caso na condição de simples natureza que proíba o cumprimento o pacto é válido Portanto os prisioneiros de guerra que se comprometem a pagar seu resgate são obrigados a pagálo E se um príncipe mais fraco assina uma paz desvantajosa com outro mais forte devido ao medo é obrigado a respeitála a não ser como acima ficou dito que surja algum novo e justo motivo de temor para recomeçar a guerra E mesmo vivendo num Estado se eu me vir forçado a livrar me de um ladrão prometendolhe dinheiro sou obrigado a pagálo a não ser que a lei civil disso me dispense Porque tudo o que posso fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar legitimamente por medo e o que eu compactuar legitimamente não posso legitimamente romper Um pacto anterior anula outro posterior Porque um homem que transmitiu hoje seu direito a outro não pode transmitilo amanhã a um terceiro portanto a promessa posterior não transmite direito algum pois é nula Um pacto em que eu me comprometa a não me defender da força pela força é sempre nulo Porque conforme acima mostrei ninguém pode transferir ou renunciar a seu direito de evitar a morte os ferimentos ou o cárcere o que é o único fim da renúncia ao direito portanto a promessa de não resistir à força não transfere qualquer direito em pacto algum nem é obrigatória Porque embora se possa fazer um pacto nos seguintes termos Se eu não fizer isto ou aquilo matame não se pode fazêlo nestes termos Se eu não fizer isto ou aquilo não te resistirei quando vieres matarme Porque o homem escolhe por natureza o mal menor que é o perigo de morte ao resistir e não o mal maior que é a morte certa e imediata se não resistir E isto é reconhecido como verdadeiro por todos os homens na medida em que conduzem os criminosos para a execução e para a prisão rodeados de guardas armados apesar de esses criminosos terem aceitado a lei que os condena Um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo sem garantia de perdão é igualmente inválido Pois na condição de natureza em que todo homem é juiz não há lugar para a acusação e no estado civil a acusação é seguida pelo castigo sendo este força ninguém é obrigado a não lhe resistir O mesmo é igualmente verdadeiro da acusação daqueles por causa de cuja condenação se fica na miséria como a de um pai uma esposa ou um benfeitor Porque o testemunho de um tal acusador se não for prestado voluntariamente deve considerarse corrompido pela natureza e portanto não deve ser aceito e quando o testemunho de um homem não vai receber crédito ele não é obrigado a prestálo Também as acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas como testemunhos Porque a tortura é para ser usada como meio de conjetura de esclarecimento num exame posterior e de busca da verdade e o que nesse caso é confessado contribui para aliviar quem é torturado não para informar os torturadores Portanto não deve ser aceito como testemunho suficiente porque quer o torturado se liberte graças a uma verdadeira ou a uma falsa acusação fálo pelo direito de preservar sua vida Dado que a força das palavras conforme acima assinalei é demasiado fraca para obrigar os homens a cumprirem seus pactos só é possível conceber na natureza do homem duas maneiras de reforçála Estas são o medo das conseqüências de faltar à palavra dada ou o orgulho de aparentar não precisar faltar a ela Este último é uma generosidade que é demasiado raro encontrar para se poder contar com ela sobretudo entre aqueles que procuram a riqueza a autoridade ou os prazeres sensuais ou seja a maior parte da humanidade A paixão com que se pode contar é o medo o qual pode ter dois objetos extremamente gerais um é o poder dos espíritos invisíveis e o outro é o poder dos homens que dessa maneira se pode ofender Destes dois embora o primeiro seja o maior poder mesmo assim o medo do segundo é geralmente o maior medo O medo do primeiros é em cada homem sua própria religião a qual surge na natureza do homem antes da sociedade civil Já o segundo não surge antes disso ou pelo menos não em grau suficiente para levar os homens a cumprirem suas promessas dado que na condição de simples natureza a desigualdade do poder só é discernida na eventualidade da luta De modo que antes da época da sociedade civil ou em caso de interrupção desta pela guerra não há nada que seja capaz de reforçar qualquer pacto de paz a que se tenha anuído contra as tentações da avareza da ambição da concupiscência ou outro desejo forte a não ser o medo daquele poder invisível que todos veneram como Deus e na qualidade de vingador de sua perfídia Portanto tudo o que pode ser feito entre dois homens que não estejam sujeitos ao poder civil é jurarem um ao outro pelo Deus que ambos temem juramento ou jura que é uma forma de linguagem acrescentada a uma promessa pela qual aquele que promete exprime que caso não a cumpra renuncia à graça de Deus ou pede que sobre si mesmo recaia sua vingança Era assim a fórmula pagã que Júpiter me mate como eu mato este animal E isto juntamente com os rituais e cerimônias que cada um usava em sua religião a fim de tornar maior o medo de faltar à palavra Fica assim manifesto que qualquer juramento feito segundo outra fórmula ou ritual faz que aquele que jura o faça em vão e não é juramento algum E não é possível jurar por alguma coisa que quem jura não pense ser Deus Porque embora os homens costumem às vezes jurar por seu rei por motivo de medo ou de lisonja com isso dão a entender que lhe atribuem honra divina E jurar desnecessariamente por Deus não é mais do que profanar seu nome ao mesmo tempo que jurar por outras coisas como os homens fazem no discurso vulgar não é jurar e sim um costume ímpio produzido por um excesso de veemência na linguagem Fica manifesto também que o juramento nada acrescenta à obrigação Porque um pacto caso seja legítimo vincula aos olhos de Deus tanto sem o juramento como com ele caso seja ilegítimo não vincula nada mesmo que seja confirmado por um juramento CAPÍTULO XV De outras leis de natureza Daquela lei de natureza pela qual somos obrigados a transferir aos outros aqueles direitos que ao serem conservados impedem a paz da humanidade seguese uma terceira Que os homens cumpram os pactos que celebrarem Sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias como o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria em vigor permaneceríamos na condição de guerra Nesta lei de natureza reside a fonte e a origem da justiça Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito e todo homem tem direito a todas as coisas consequentemente nenhuma ação pode ser injusta Mas depois de celebrado um pacto rompêlo é injusto E a definição da injustiça não é outra senão o não cumprimento de um pacto E tudo o que não é injusto é justo Ora como os pactos de confiança mútua são inválidos sempre que de qualquer dos lados existe receio de não cumprimento conforme se disse no capítulo anterior embora a origem da justiça seja a celebração dos pactos não pode haver realmente injustiça antes de ser removida a causa desse medo o que não pode ser feito enquanto os homens se encontram na condição natural de guerra Portanto para que as palavras justo e injusto possam ter lugar é necessária alguma espécie de poder coercitivo capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento de seus pactos mediante o terror de algum castigo que seja superior ao beneficio que esperam tirar do rompimento do pacto e capaz de fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo como recompensa do direito universal a que renunciaram E não pode haver tal poder antes de erigirse um Estado O mesmo pode deduzirse também da definição comum da justiça nas Escolas pois nelas se diz que a justiça é a vontade constante de dar a cada um o que é seu Portanto onde não há o seu isto é não há propriedade não pode haver injustiça E onde não foi estabelecido um poder coercitivo isto é onde não há Estado não há propriedade pois todos os homens têm direito a todas as coisas Portanto onde não há Estado nada pode ser injusto De modo que a natureza da justiça consiste rio cumprimento dos pactos válidos mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumprilos e é também só aí que começa a haver propriedade Os tolos dizem em seu foro íntimo que a justiça é coisa que não existe e às vezes dizemno também com a língua alegando com toda a seriedade que estando a conservação e a satisfação de cada homem entregue a seu próprio cuidado não pode haver razão para que cada um deixe de fazer o que supõe conduzir a esse fim e também portanto que fazer ou deixar de fazer cumprir ou deixar de cumprir os pactos não é contra a razão nos casos em que contribui para o beneficio próprio Com isso eles não pretendem negar que existem pactos e que umas vezes eles são desrespeitados e outras são cumpridos e que seu desrespeito pode ser chamado injustiça e sua observância justiça Mas perguntam se a justiça pondo de lado o temor a Deus porque os mesmos tolos disseram em seu foro íntimo que Deus não existe não poderá às vezes concordar com aquela mesma razão que dita a cada um seu próprio bem sobretudo quando ela produz um benefício capaz de colocar um homem numa situação que lhe permita desprezar não apenas os ultrajes e censuras mas também o poder dos outros homens O reino de Deus se ganha pela violência E se ele fosse ganho pela violência injusta Seria contra a razão assim ganhálo quando é impossível que daí resulte qualquer dano E se não é contra a razão não é contra a justiça caso contrário a justiça não pode ser considerada uma coisa boa Graças a raciocínios como este a perversidade triunfante adquiriu o nome de virtude e alguns que em todas as outras coisas condenam a violação da fé aprovamna quando é para conquistar um reino E os pagãos que acreditavam que Saturno foi deposto por seu filho Júpiter apesar disso acreditavam que o mesmo Júpiter era o vingador da injustiça Coisa semelhante se encontra num texto jurídico dos comentários de Coke sobre Litleton onde se diz que se o legítimo herdeiro da coroa for culpado de traição mesmo assim deve ser coroado e no instante a culpa será nula Exemplo do qual se pode muito bem concluir que se o herdeiro aparente de um reino matar o ocupante do trono mesmo que seja seu pai podese dar a isso o nome de injustiça ou qualquer outro dome que se queira mas jamais se poderá dizer que é contra a razão dado que todas as ações voluntárias dos homens tendem para seu benefício próprio e as ações mais razoáveis são as que melhor conduzem a seus fins Todavia este especiosa raciocínio é falso Porque não pode tratarse de promessas mútuas quando de ambos os lados não há garantia de cumprimento como quando não há um poder civil estabelecido acima dos autores das promessas Porque essas promessas não são pactos Mas tanto quando um dos lados já cumpriu a sua parte tanto quando há um poder capaz de o obrigar a cumprir põese o problema de saber se é contra a razão isto é contra o beneficio do outro cumprir a sua parte ou se o não é E eu afirmo que não é contra a razão Para proválo há várias coisas a considerar Em primeiro lugar quando alguém pratica uma ação que na medida em que é possível prever e calcular tende para sua própria destruição mesmo que algum acidente inesperado venha a tornála benéfica para ele tais acontecimentos não a transformam numa ação razoável ou judiciosa Em segundo lugar numa condição de guerra em que cada homem é inimigo de cada homem por falta de um poder comum que os mantenha a todos em respeito ninguém pode esperar ser capaz de defenderse da destruição só com sua própria força ou inteligência sem o auxílio de aliados em alianças das quais cada um espera a mesma defesa Portanto quem declarar que considera razoável enganar aos que o ajudam não pode razoavelmente esperar outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder Portanto quem quebra seu pacto e ao mesmo tempo declara que pode fazêlo de acordo com a razão não pode ser aceite por qualquer sociedade que se constitua em vista da paz e da defesa a não ser devido a um erro dos que o aceitam E se for aceite não se pode continuar a admitilo quando se vê o perigo desse erro e não seria razoável esse homem contar com esses erros como garantia de sua segurança Portanto alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade está condenado a perecer e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos outros homens os quais ele não podia prever e com os quais não podia contar portanto contra a razão de sua preservação Assim todos os homens que não contribuem para sua destruição fazemno apenas por ignorância do que a eles próprios beneficia Quanto à hipótese de adquirir uma segura e perpétua felicidade no céu por qualquer meio tratase de uma pretensão frívola pois para tal só se pode imaginar uma maneira não rompendo os pactos mas cumprindoos Quanto à outra hipótese de conquistar a soberania pela rebelião é evidente que a tentativa mesmo que seja coroada de êxito é contrária à razão por um lado porque não é razoável esperar que tenha êxito antes pelo contrário por outro lado porque ao fazêlo se ensina aos outros a conquistar a soberania da mesma maneira Portanto a justiça isto é o cumprimento dos pactos é uma regra da razão pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida e por conseguinte é uma lei de natureza Há alguns que vão ainda mais longe e não aceitam que a lei de natureza seja constituída por aquelas regras que conduzem à preservação da vida do homem na Terra e sim pelas que permitem conseguir uma felicidade eterna depois da morte À qual pensam que o rompimento dos pactos pode conduzir sendo este portanto justo e razoável são esses que consideram obra meritória matar depor ou rebelarse contra o poder soberano constituído acima deles por seu próprio consentimento Mas dado que não há conhecimento natural da situação do homem depois da morte e muito menos da recompensa que lá se dá à falta de palavra havendo apenas uma crença baseada na afirmação de outros homens que dizem conhecêla sobrenaturalmente ou dizem conhecer aqueles que conheceram os que conheceram outros que a conheceram sobrenaturalmente não é possível por conseguinte considerar o rompimento da palavra um preceito da razão ou da natureza Outros há que embora reconhecendo o cumprimento da palavra dada como uma lei de natureza não obstante abrem exceção para certas pessoas tais como os hereges e todos aqueles que não têm como costume o cumprimento de seus pactos e também isto é contra a razão Pois se qualquer defeito de um homem for suficiente para dispensálo do cumprimento de um pacto o mesmo deveria ter sido perante a razão suficiente para têlo impedido de celebrálo As palavras justo e injusto quando são atribuídas a homens significam uma coisa e quando são atribuídas a ações significam outra Quando são atribuídas a homens indicam a conformidade ou a incompatibilidade entre os costumes e a razão Mas quando são atribuídas a ações indicam a conformidade ou a incompatibilidade com a razão não dos costumes mas de ações determinadas Portanto um homem justo é aquele que toma o maior cuidado possível para que todas as suas ações sejam justas e um homem injusto é o que despreza esse cuidado É mais freqüente que em nossa língua esses homens sejam designados pelas palavras honrado e iníquo em vez de justo e injusto embora o significado seja o mesmo Portanto um homem honrado não perde o direito a esse título por causa de uma ou algumas poucas ações injustas derivadas de paixões repentinas ou de erros sobre coisas ou pessoas Nem um homem iníquo deixa de assim ser considerado por causa das ações que faz ou deixa de fazer devido ao medo pois sua vontade não é determinada pela justiça mas pelo beneficio aparente do que faz O que presta às ações humanas o sabor da justiça é uma certa nobreza ou coragem raras vezes encontrada em virtude da qual se despreza ficar devendo o bemestar da vida à fraude ou ao desrespeito pelas promessas É essa justiça da conduta que se significa quando se chama virtude à justiça e vício à injustiça Mas a justiça das ações não faz que aos homens se chame justos e sim inocentes e a injustiça das mesmas também chamada injúria fazlhes atribuir apenas o nome de culpados Por outro lado a injustiça de costumes é a disposição ou a aptidão para cometer injúria e é a injustiça antes de passar aos atos e sem supor que algum indivíduo determinado haja sido injuriado Mas a injustiça de uma ação quer dizer uma injúria pressupõe que um determinado indivíduo haja sido injuriado nomeadamente aquele com quem foi celebrado o pacto Assim muitas vezes a injustiça é feita a um homem ao mesmo tempo que o dano recai sobre outro Como quando o senhor ordena a seu servo que dê dinheiro a um estranho se tal não for feito a injúria será feita ao senhor ao qual anteriormente se prometera obedecer mas o dano recai sobre o estranho para com o qual não havia obrigação e que portanto não podia ser injuriado O mesmo se passa no Estado os homens podem perdoar uns aos outros suas dívidas mas não os roubos ou outras violências que lhes causem dano Porque não pagar uma dívida é uma injúria feita a eles mesmos ao passo que o roubo e a violência são injúrias feitas à pessoa do Estado Tudo o que seja feito a um homem de conformidade com sua própria vontade manifestada ao autor da ação não é injúria cometida contra ele Porque se quem pratica a ação não tiver anteriormente abandonado seu direito original de fazer o que lhe aprouver mediante um pacto antecedente não há quebra de pacto portanto não há injúria E se o tiver nesse caso a manifestação pelo outro da vontade de que o faça liberao desse pacto e consequentemente não há injúria feita ao outro Os autores dividem a justiça das ações em comutativa e distributiva e dizem que a primeira consiste numa proporção aritmética e a segunda numa proporção geométrica Assim a justiça comutativa é por eles atribuída à igualdade de valor das coisas que são objeto de contrato e a justiça distributiva à distribuição de benefícios iguais a pessoas de mérito igual Como se fosse injustiça vender mais caro do que se comprou ou dar a um homem mais do que ele merece O valor de todas as coisas contratadas é medido pelo apetite dos contratantes portanto 0 valor justo é aquele que eles acham conveniente oferecer E o mérito sem contar o que ocorre num pacto onde o cumprimento por uma das partes merece o cumprimento da outra parte e cai sobre á alçada da justiça comutativa não da distributiva não é devido por justiça é recompensado apenas pela graça Portanto esta distinção não é correta no sentido em que costumava ser exposta Para falar com propriedade a justiça comutativa é a justiça de um contratante ou seja o cumprimento dos pactos na compra e na venda no aluguel ou sua aceitação ao emprestar ou tomar emprestado na troca na permuta e outros atos de contrato A justiça distributiva é a justiça de um árbitro isto é o ato de definir o que é justo Pelo qual merecendo a confiança dos que o escolheram como árbitro se ele corresponder a essa confiança se diz que distribuiu a cada um o que lhe era devido Com efeito esta é uma distribuição justa e pode ser chamada embora impropriamente justiça distributiva Mais próprio seria chamarlhe eqüidade a qual é também uma lei de natureza conforme se mostrará no lugar oportuno Tal como a justiça depende de um pacto antecedente assim também a gratidão depende de uma graça antecedente quer dizer de uma dádiva antecedente É esta a quarta lei de natureza que pode ser assim formulada Que quem recebeu beneficio de outro homem por simples graça se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrependerse de sua boa vontade Pois quem dá fálo tendo em mira um beneficio próprio porque a dádiva é voluntária e o objeto de todos os atos voluntários é sempre o beneficio de cada um Se esta expectativa for frustrada não poderá haver benevolência nem confiança nem consequentemente ajuda mútua ou reconciliação entre um homem e outro Nesse caso não poderão sair da condição de guerra a qual é contrária à lei primeira e fundamental de natureza que ordena aos homens que procurem a paz O desrespeito a esta lei chamase ingratidão e tem com a graça a mesma relação que há entre a injustiça e a obrigação por contrato A quinta lei de natureza é a complacência quer dizer Que cada um se esforce por acomodarse com os outros Para compreender esta lei é preciso levar em conta que na aptidão dos homens para a sociedade existe uma certa diversidade de natureza derivada da diversidade de suas afeções De maneira semelhante ao que verificamos nas pedras que juntamos para a construção de um edifício Pois tal como os construtores põem de lado como inaproveitáveis e perturbadoras as pedras que devido a sua aspereza ou à irregularidade de sua forma tiram às outras mais espaço do que o que elas mesmas ocupam e além disso por sua dureza não são fáceis de aplanar assim também aqueles que devido à aspereza de sua natureza se esforçarem por guardar aquelas coisas que para eles são supérfluas e para os outros são necessárias e devido à obstinação de suas paixões não puderem ser corrigidos deverão ser abandonados ou expulsos da sociedade como hostis a ela Pois sendo de esperar que cada homem não apenas por direito mas também pela necessidade de sua natureza se esforce o mais que possa por conseguir o que é necessário a sua conservação todo aquele que a tal se oponha por causa de coisas supérfluas ê culpado da guerra que daí venha a resultar e portanto age contrariamente à lei fundamental de natureza que ordena procurar a paz Aos que respeitam esta lei pode chamarse sociáveis os latinos chamavamlhes commodí e aos que não o fazem obstinados insociáveis refratários ou intratáveis A sexta lei de natureza é Que como garantia do tempo futuro se perdoem as ofensas passadas àqueles que se arrependam e o desejem Porque o perdão não é mais do que uma garantia de paz a qual embora quando dada aos que perseveram em sua hostilidade não seja paz mas medo quando recusada aos que oferecem garantia do tempo futuro é sinal de aversão pela paz o que é contrário à lei de natureza A sétima lei ê Que na vingança isto é a retribuição do mal com o mal os homens não olhem à importância do mal passado mas só à importância do bem futuro O que nos proíbe aplicar castigo com qualquer intenção que não seja a correção do ofensor ou o exemplo para os outros Pois esta lei é conseqüência da que lhe é anterior a qual ordena o perdão em vista da segurança do tempo futuro Além do mais a vingança que não visa ao exemplo ou ao proveito vindouro é um triunfo ou glorificação com base no dano causado ao outro que não tende para fim algum pois o fim é sempre alguma coisa vindoura Ora glorificarse sem tender a um fim é vanglória e contrário à razão e causar dano sem razão tende a provocar a guerra o que é contrário á lei de natureza E geralmente se designa pelo nome de crueldade E dado que todos os sinais de ódio ou desprezo tendem a provocar a luta a ponto de a maior parte dos homens preferirem arriscar a vida a ficar sem vingança podemos formular em oitavo lugar como lei de natureza o seguinte preceito Que ninguém por atos palavras atitude ou gesto declare ódio ou desprezo pelo outro Ao desrespeito a esta lei se chama geralmente contumélia A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples natureza na qual conforme acima se mostrou todos os homens são iguais A desigualdade atualmente existente foi introduzida pelas leis civis Bem sei que Aristóteles no livro primeiro de sua Poética como fundamento de sua doutrina afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar querendo com isso referirse aos mais sábios entre os quais se incluía a si próprio devido a sua filosofia e outros têm mais capacidade para servir referindose com isto aos que tinham corpos fortes mas não eram filósofos como ele como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens mas pela diferença de inteligência o que não só é contrário à razão mas é também contrário à experiência Pois poucos há tão insensatos que não prefiram governarse a si mesmos a ser governados por outros E os que em sua própria opinião são sábios quando lutam pela força com os que desconfiam de sua própria sabedoria nem sempre ou poucas vezes ou quase nunca alcançam a vitória Portanto se a natureza fez todos os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida e se a natureza fez os homens desiguais como os homens dado que se consideram iguais só em termos igualitários aceitam entrar em condições de paz essa igualdade deve ser admitida Por conseguinte como nona lei de natureza proponho esta Que cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza A falta a este preceito chamase orgulho Desta lei depende uma outra Que ao iniciaremse as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros Assim como é necessário a todos os homens que buscam a paz renunciar a certos direitos de natureza quer dizer perder a liberdade de fazer tudo o que lhes apraz assim também é necessário para a vida do homem que alguns desses direitos sejam conservados como o de governar o próprio corpo desfrutar o ar a água o movimento os caminhos para ir de um lugar a outro e todas as outras coisas sem as quais não se pode viver ou não se pode viver bem Se neste caso ao fazer a paz alguém exigir para si aquilo que não aceita seja atribuído aos outros estará agindo contrariamente à lei precedente que ordena o reconhecimento da igualdade dos homens e contrariamente também portanto à lei de natureza Quem respeita esta lei é geralmente chamado modesto e quem não a respeita arrogante Os gregos chamavam à violação desta lei pleonexía isto é o desejo de mais do que a sua parte E também Se a alguém for confiado servir de juiz entre dois homens é um preceito da lei de natureza que trate a ambos eqüitativamente Pois sem isso as controvérsias entre os homens só podem ser decididas pela guerra Portanto aquele que for parcial num julgamento estará fazendo todo o possível para afastar os homens do uso de juízes e árbitros por conseguinte contra a lei fundamental de natureza estará sendo causa de guerra A observância desta lei que ordena distribuir eqüitativamente a cada homem o que segundo a razão lhe pertence chamase eqüidade ou conforme acima já disse justiça distributiva Sua violação chamase acepção de pessoas prosopolepsía E desta deriva uma outra lei Que as coisas que não podem ser divididas sejam gozadas em comum se assim puder ser e se a quantidade da coisa o permitir sem limite caso contrário proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito Caso contrário a distribuição seria desigual e contrária à eqüidade Mas há algumas coisas que não podem ser divididas nem gozadas em comum Para esses casos a lei de natureza que prescreve a eqüidade exige Que o direito absoluto ou então se o uso for alternado a primeira posse sejam determinados por sorteio Porque a distribuição eqüitativa faz parte da lei de natureza e é impossível imaginar outras maneiras de fazer uma distribuição eqüitativa Há duas espécies de sorteio o arbitrário e o natural O arbitrário é aquele com o qual os competidores concordaram o natural ou é a primogenitura que os gregos chamavam kleronomía o que significa dado por sorteio ou é a primeira apropriação Portanto aquelas coisas que não podem ser gozadas em comum nem divididas devem ser adjudicadas ao primeiro possuidor e em alguns casos ao primogênito como adquiridas por sorteio É também uma lei de natureza Que a todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvoconduto Porque a lei que ordena a paz enquanto fim ordena a intercessão como meio E o meio para a intercessão é o salvoconduto Mas como por mais desejosos de cumprir estas leis que os homens estejam é não obstante sempre possível que surjam controvérsias relativas às ações primeiro se foram ou não foram praticadas e segundo caso tenham sido praticadas se foram ou não foram contrárias à lei à primeira das quais se chama questão de fato e à segunda questão de direito e portanto se as partes em presença não fizerem mutuamente um pacto no sentido de aceitar a sentença de um terceiro estarão tão longe da paz como antes Esse outro a cuja sentença se submetem chamase árbitro Portanto é da lei de natureza Que aqueles entre os quais há controvérsia submetam seu direito ao julgamento de um árbitro Dado que se supõe cada um fazer todas as coisas tendo em vista seu próprio beneficio ninguém pode ser um árbitro adequado em causa própria e como a eqüidade atribui a cada parte um beneficio igual à falta de árbitro adequado se um for aceite como juiz o outro também o deve ser desta maneira a controvérsia isto é a causa da guerra permanece contra a lei de natureza Pela mesma razão em nenhuma causa alguém pode ser aceite como árbitro se aparentemente para ela resultar mais proveito honra ou prazer da vitória de uma das partes do que da da outra Porque nesse caso ele recebeu um suborno embora um suborno inconfessável e ninguém pode ser obrigado a confiar nele Também neste caso a controvérsia e a condição de guerra permanecem contra a lei de natureza Numa controvérsia de fato dado que o juiz não pode dar mais crédito a um do que a outro na ausência de outros argumentos precisa dar crédito a um terceiro ou a um terceiro e a um quarto ou mais Caso contrário a questão não pode ser decidida a não ser pela força contra alei de natureza São estas as leis de natureza que ditam a paz como meio de conservação das multidões humanas e as únicas que dizem respeito à doutrina da sociedade civil Há outras coisas que contribuem para a destruição dos indivíduos como a embriaguez e outras formas de intemperança as quais portanto também podem ser contadas entre aquelas coisas que a lei de natureza proíbe Mas não é necessário referilas nem seria pertinente fazêlo neste lugar Embora esta possa parecer uma dedução das leis de natureza demasiado sutil para ser apreciada por todos os homens a maior parte dos animais estão demasiado ocupados na busca de sustento sendo os restantes demasiado negligentes para poder compreendêla Apesar disso para não permitir que ninguém seja desculpado todas elas foram sintetizadas em resumo acessível e inteligível mesmo para os menos capazes Esse resumo é Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti 0 que mostra a cada um que para aprender as leis de natureza o que tem a fazer é apenas quando ao comparar suas ações com as dos outros estas últimas parecem excessivamente pesadas colocálas no outro prato da balança e no lugar delas as suas próprias de maneira que suas próprias paixões e amor de si em nada modifiquem o peso Não haverá então nenhuma destas leis de natureza que não lhe pareça perfeitamente razoável As leis de natureza obrigam in foro interno quer dizer impõem o desejo de que sejam cumpridas mas in foro externo isto é impondo um desejo de pôlas em prática nem sempre obrigam Pois aquele que fosse modesto e tratável e cumprisse todas as suas promessas numa época e num lugar onde mais ninguém assim fizesse tornarseia presa fácil para os outros e inevitavelmente provocaria sua própria ruína contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza que tendem para a preservação da natureza Por outro lado aquele que possuindo garantia suficiente de que os outros observarão para com ele as mesmas leis mesmo assim não as observa não procura a paz mas a guerra e consequentemente a destruição de sua natureza pela violência Todas as leis que obrigam in foro interno podem ser violadas não apenas por um fato contrário à lei mas também por um fato conforme a ela no caso de seu autor considerálo contrário Pois embora neste caso sua ação seja conforme à lei sua intenção é contrária à lei o que constitui uma violação quando a obrigação é in foro interno As leis de natureza são imutáveis e eternas pois a injustiça a ingratidão a arrogância o orgulho a iniqüidade a acepção de pessoas e os restantes jamais podem ser tornados legítimos Pois jamais poderá ocorrer que a guerra preserve a vida e a paz a destrua Essas leis na medida em que obrigam apenas a um desejo e a um esforço isto é um esforço não fingido e constante são fáceis de obedecer Pois na medida em que exigem apenas esforço aquele que se esforça por cumprilas estálhes obedecendo E aquele que obedece à lei é justo E a ciência dessas leis é a verdadeira e única filosofia moral Porque a filosofia moral não é mais do que a ciência do que é bom e mau na conservação e na sociedade humana O bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos costumes e doutrinas dos homens E homens diversos não divergem apenas em seu julgamento quanto às sensações do que é agradável ou desagradável ao gosto ao olfato ao ouvido ao tato e à vista divergem também quanto ao que é conforme ou desagradável à razão nas ações da vida cotidiana Mais o mesmo homem em momentos diferentes diverge de si mesmo às vezes louvando isto é chamando bom àquilo mesmo que outras vezes despreza e a que chama mau Daqui procedem disputas controvérsias e finalmente a guerra Portanto enquanto os homens se encontram na condição de simples natureza que é uma condição de guerra o apetite pessoal é a medida do bem e do mal Por conseguinte todos os homens concordam que a paz é uma boa coisa e portanto que também são bons o caminho ou meios da paz os quais conforme acima mostrei são a justiça a gratidão a modéstia a eqüidade a misericórdia e as restantes leis de natureza quer dizer as virtudes morais e que seus vícios contrários são maus Ora a ciência da virtude e do vício é a filosofia moral portanto a verdadeira doutrina das leis de natureza é a verdadeira filosofia moral Mas os autores de filosofia moral embora reconheçam as mesmas virtudes e vícios não sabem ver em que consiste sua excelência não sabem ver que elas são louvadas como meios para uma vida pacífica sociável e confortável e fazemnas consistir numa mediocridade das paixões Como se não fosse na causa e sim no grau de intrepidez que consiste a força ou se não fosse na causa e sim na quantidade de uma dádiva que consiste a liberalidade A estes ditames da razão os homens costumam dar o nome de leis mas impropriamente Pois eles são apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a conservação e defesa de cada um Ao passo que a lei em sentido próprio é a palavra daquele que tem direito de mando sobre outros No entanto se considerarmos os mesmos teoremas como transmitidos pela palavra de Deus que tem direito de mando sobre todas as coisas nesse caso serão propriamente chamados leis CAPÍTULO XVI Das pessoas autores e coisas personificadas Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas seja com verdade ou por ficção Quando elas são consideradas como suas próprias ele se chama uma pessoa natural Quando são consideradas como representando as palavras e ações de um outro chamaselhe uma pessoa fictícia ou artificial A palavra pessoa é de origem latina Em lugar dela os gregos tinham prósopon que significa rosto tal como em latim persona significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem imitada no palco E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto como máscara ou viseira E do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação tanto nos tribunais como nos teatros De modo que uma pessoa é o mesmo que um ator tanto no palco como na conversação corrente E personificar é representar seja a si mesmo ou a ostro e daquele que representa outro dizse que é portador de sua pessoa ou que age em seu nome sentido usado por Cícero quando diz Unus sustineo tres Personas Mei Adversarii et Judicis Sou portador de três pessoas eu mesmo meu adversário e o juiz Recebe designações diversas conforme as ocasiões representante mandatário lugartenente vigário advogado deputado procurador ator e outras semelhantes Quanto às pessoas artificiais em certos casos algumas de suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam Nesses casos a pessoa é o ator e aquele a quem pertencem suas palavras e ações é o autor casos estes em que o ator age por autoridade Porque aquele a quem pertencem bens e posses é chamado proprietário em latim Dominus e em grego Kyrios quando se trata de ações é chamado autor E tal como o direito de posse se chama domínio assim também o direito de fazer qualquer ação se chama autoridade De modo que por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ação efeito por autoridade significa sempre feito por comissão ou licença daquele a quem pertence o direito De onde se segue que quando o ator faz um pacto por autoridade obriga através disso o autor e não menos do que se este mesmo o fizesse nem fica menos sujeito a todas as conseqüências do mesmo Portanto tudo o que acima se disse cap 14 sobre a natureza dos pactos entre homens em sua capacidade natural é válido também para os que são feitos por seus atores representantes ou procuradores que possuem autoridade para tal dentro dos limites de sua comissão mas não além destes Portanto aquele que faz um pacto com o autor ou representante sem saber que autoridade ele tem fá lo por sua conta e risco Porque ninguém é obrigado por um pacto do qual não é autor nem consequentemente por um pacto feito contra ou à margem da autoridade que ele mesmo conferiu Quando o ator faz qualquer coisa contra a lei de natureza por ordem do autor se pelo pacto anterior for obrigado a obedecerlhe não é ele e sim o autor que viola a lei de natureza Pois a ação embora seja contra a lei de natureza não é sua pelo contrário recusarse a praticála é contra a lei de natureza que obriga a cumprir os contratos E aquele que faz um pacto com o autor através da mediação do ator sem saber que autoridade este tem simplesmente confiando em sua palavra e no caso de esta autoridade não lhe ser comunicada após ser pedida deixa de ter obrigação Porque o pacto feito com o autor não é válido sem essa garantia Mas se aquele que assim pactuou antecipadamente sabia que não podia esperar outra garantia senão a palavra do ator neste caso o pacto é válido porque aqui o ator se constitui a si mesmo como autor Portanto do mesmo modo que quando a autoridade é evidente o pacto obriga o autor e não o ator assim também quando a autoridade é fingida ele obriga apenas o ator pois o único autor é ele próprio Poucas são as coisas incapazes de serem representadas por ficção As coisas inanimadas como uma igreja um hospital uma ponte podem ser personificadas por um reitor um diretor ou um supervisor Mas as coisas inanimadas não podem ser autores nem portanto conferir autoridade a seus atores Todavia os atores podem ter autoridade para prover a sua conservação a eles conferida pelos proprietários ou governadores dessas coisas Portanto essas coisas não podem ser personificadas enquanto não houver um Estado de governo civil De maneira semelhante as crianças os imbecis e os loucos que não têm o uso da razão podem ser personificados por guardiães ou curadores mas não podem ser autores durante esse tempo de qualquer ação praticada por eles a não ser que quando tiverem recobrado o uso da razão venham a considerar razoável essa ação Mas enquanto durar a loucura aquele que tem o direito de governálos pode conferir autoridade ao guardião Mas também isto só pode ter lugar num Estado civil porque antes desse Estado não há domínio de pessoas Um ídolo ou mera ficção do cérebro pode ser personificado como o eram os deuses dos pagãos que eram personificados pelos funcionários para tal nomeados pelo Estado e tinham posses e outros bens assim como direitos que os homens de vez em quando a eles dedicavam e consagravam Mas os ídolos não podem ser autores porque um ídolo não é nada A autoridade provinha do Estado portanto antes da instituição do governo civil os deuses dos pagãos não podiam ser personificados O verdadeiro Deus pode ser personificado Conforme efetivamente foi primeiro por Moisés que governou os israelitas que não eram o seu povo e sim o povo de Deus não em seu próprio nome com Hoc dicit Moyses mas em nome de Deus com Hoc dicit Dominus Em segundo lugar pelo filho do homem seu próprio filho nosso abençoado salvador Jesus Cristo que veio para submeter os judeus e induzir todas as nações a entrarem no reino de seu pai não em seu próprio nome mas em nome de seu pai Em terceiro lugar pelo Espírito Santo ou confortador que falava e atuava nos apóstolos O qual Espírito Santo era um confortador que não veio por si mesmo mas foi mandado pelos outros dois dos quais procedia Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão Porque é a unidade do representante e não a unidade do representado que faz que a pessoa seja una E é o representante o portador da pessoa e só de uma pessoa Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão Dado que a multidão naturalmente não é uma mas muitos eles não podem ser entendidos como um só mas como muitos autores de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome Cada homem confere a seu representante comum sua própria autoridade em particular e a cada um pertencem todas as ações praticadas pelo representante caso lhe haja conferido autoridade sem limites Caso contrário quando o limitam quanto aquilo em que os representará ou até que ponto a nenhum deles pertence mais do que aquilo em que deu comissão para agir Se o representante for constituído por muitos homens a voz do maior número deverá ser considerada como a voz de todos eles Porque se o menor número se pronunciar por exemplo pela afirmativa e o maior número pela negativa haverá votos negativos mais do que suficientes para destruir os afirmativos E assim o excesso de votos negativos não recebendo contradição é a única voz do representante Um corpo representativo de número par sobretudo quando o número não é grande onde portanto muitas vezes as vozes são iguais é consequentemente outras tantas vezes mudo e incapaz de ação Todavia em alguns casos os votos contraditórios iguais em número podem decidir uma questão tal como na conde nação ou absolvição a igualdade de votos embora não condene efetivamente absolve embora pelo contrário não condenem na medida em que não absolvem Porque quando se realiza a audiência de uma causa não condenar é o mesmo que i absolver mas a recíproca isto é dizer que não absolver é o mesmo que condenar não é verdadeira O mesmo se passa numa deliberação entre a execução imediata e o adiamento para outra ocasião pois quando os votos são iguais não decretar a execução é um decreto de dilação Por outro lado se o número for ímpar como três ou mais sejam homens ou assembléiasonde cada um tem autoridade através de um voto negativo para anular o efeito de todos os votos afirmativos dos restantes esse número não é representativo Porque devido á diversidade de opiniões e interesses dos homens ocorre muitas vezes e em casos da maior gravidade que ele se torna uma pessoa muda e destituída de capacidade do mesmo modo que para muitas coisas mais para o governo de uma multidão especialmente em tempo de guerra Há duas espécies de autores O autor da primeira espécie é o simplesmente assim chamado o qual acima defini como sendo aquele a querei pertence simplesmente a ação de um outro Da segunda espécie é aquele a quem pertence uma ação ou um pacto de um outro condicionalmente Quer dizer que o realiza se o outro não o faz até ou antes de um determinado momento Estes autores condicionais são geralmente chamados fiadores em latim fidejussores e sponsores quando especialmente para dívidas praedes e para comparecimento perante um juiz ou magistrado vades SEGUNDA PARTE DO ESTADO CAPÍTULO XVII Das causas geração e definição de um O fim último causa final e desígnio dos homens que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita Quer dizer o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária conforme se mostrou das paixões naturais dos homens quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito forçandoos por medo do castigo ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto Porque as leis de natureza como a justiça a eqüidade a modéstia a piedade ou em resumo fazer aos outros o que queremos que nos façam por si mesmas na ausência do temor de algum poder capaz de leválas a ser respeitadas são contrárias a nossas paixões naturais as quais nos fazem tender para a parcialidade o orgulho a vingança e coisas semelhantes E os pactos sem a espada não passam de palavras sem força para dar qualquer segurança a ninguém Portanto apesar das leis de natureza que cada um respeita quando tem vontade de respeitálas e quando pode fazêlo com segurança se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança cada um confiará e poderá legitimamente confiar apenas em sua própria força e capacidade como proteção contra todos os outros Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias roubarse e espoliarse uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima e tão longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior era a honra adquirida Nesse tempo os homens tinham como únicas leis as leis da honra ou seja evitar a crueldade isto é deixar aos outros suas vidas e seus instrumentos de trabalho Tal como então faziam as pequenas famílias assim também fazem hoje as cidades e os reinos que não são mais do que famílias maiores para sua própria segurança ampliando seus domínios e sob qualquer pretexto de perigo de medo de invasão ou assistência que pode ser prestada aos invasores legitimamente procuram o mais possível subjugar ou enfraquecer seus vizinhos por meio da força ostensiva e de artifícios secretos por falta de qualquer outra segurança e em épocas futuras por tal são recordadas com honra Não é a união de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer essa segurança porque quando os números são pequenos basta um pequeno aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da força suficientemente grande para garantir a vitória constituindo portanto tal aumento um incitamento à invasão A multidão que pode ser considerada suficiente para garantir nossa segurança não pode ser definida por um número exato mas apenas por comparação com o inimigo que tememos e é suficiente quando a superioridade do inimigo não é de importância tão visível e manifesta que baste para garantir a vitória incitandoo a tomar a iniciativa da guerra Mesmo que haja uma grande multidão se as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um não poderá esperarse que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém seja contra o inimigo comum seja contra as injúrias feitas uns aos outros Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força em vez de se ajudarem só se atrapalham uns aos outros e devido a essa oposição mútua reduzem a nada sua força E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo mas além disso mesmo sem haver inimigo comum facilmente farão guerra uns aos outros por causa de seus interesses particulares Pois se fosse licito supor uma grande multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis de natureza sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito igualmente o seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo Nesse caso não haveria nem seria necessário qualquer governo civil ou qualquer Estado pois haveria paz sem sujeição Também não é bastante para garantir aquela segurança que os homens desejariam que durasse todo o tempo de suas vidas que eles sejam governados e dirigidos por um critério único apenas durante um período limitado como é o caso numa batalha ou numa guerra Porque mesmo que seu esforço unânime lhes permita obter uma vitória contra um inimigo estrangeiro depois disso quando ou não terão mais um inimigo comum ou aquele que por alguns é tido por inimigo é por outros tido como amigo é inevitável que as diferenças entre seus interesses os levem a desunirse voltando a cair em guerra uns contra os outros É certo que há algumas criaturas vivas como as abelhas e as formigas que vivem sociavelmente umas com as outras e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o beneficio comum Assim talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo Ao que tenho a responder o seguinte Primeiro que os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade o que não ocorre no caso dessas criaturas E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio e finalmente a guerra ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece Segundo que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e dado que por natureza tendem para o bem individual acabam por promover o bem comum Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens e só pode tirar prazer do que é eminente Terceiro que como essas criaturas não possuem ao contrário do homem o uso da razão elas não vêem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público E esses esforçamse por empreender reformas e inovações uns de uma maneira e outros doutra acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil Quarto que essas criaturas embora sejam capazes de um certo uso da voz para dar a conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções apesar disso carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal e o que é mau sob a aparência do bem ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal semeando o descontentamento entre os homens e perturbando a seu belprazer a paz em que os outros vivem Quinto as criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais satisfeito se sente pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado Por último o acordo vigente entre essas criaturas é natural ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto isto é artificialmente Portanto não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais além de um pacto para tornar constante e duradouro seu acordo ou seja um poder comum que os mantenha em respeito e que dirija suas ações no sentido do beneficio comum A única maneira de instituir um tal poder comum capaz de defendêlos das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros garantindolhes assim uma segurança suficiente para que mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra possam alimentarse e viver satisfeitos é conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens que possa reduzir suas diversas vontades por pluralidade de votos a uma só vontade O que equivale a dizer designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas considerandose e reconhecendose cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante e suas decisões a sua decisão Isto é mais do que consentimento ou concórdia é uma verdadeira unidade de todos eles numa só e mesma pessoa realizada por um pacto de cada homem com todos os homens de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem Cedo e transfiro meu direito de governarme a mim mesmo a este homem ou a esta assembléia de homens com a condição de transferires a ele teu direito autorizando de maneira semelhante todas as suas ações Feito isto à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado em latim civitas É esta a geração daquele grande Leviatã ou antes para falar em termos mais reverentes daquele Deus Mortal ao qual devemos abaixo do Deus Imortal nossa paz e defesa Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado élhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros É nele que consiste a essência do testado a qual pode ser assim definida Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão mediante pactos recíprocos uns com os outros foi instituída por cada um como autora de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos da maneira que considerar conveniente para assegurara paz e a defesa comum Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano e dele se diz que possui poder soberano Todos os restantes são súditos Este poder soberano pode ser adquirido de duas maneiras Uma delas é a sarça natural como quando um homem obriga seus filhos a submeteremse e a submeterem seus próprios filhos a sua autoridade na medida em que é capaz de destruílos em caso de recusa Ou como quando um homem sujeita através da guerra seus inimigos a sua vontade concedendolhes a vida com essa condição A outra é quando os homens concordam entre si em submeteremse a um homem ou a uma assembléia de homens voluntariamente com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros Este último pode ser chamado um Estado Político ou um Estado por instituição Ao primeiro pode chamarse um Estado por aquisição Vou em primeiro lugar referirme ao Estado por instituição CAPÍTULO XVIII Dos direitos dos soberanos por instituição Dizse que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam cada um com cada um dos outros que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles ou seja de ser seu representante todos sem exceção tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens tal como se fossem seus próprios atos e decisões a fim de viverem em paz uns com os outro e serem protegidos dos restantes homens É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido Em primeiro lugar na medida em que pactuam deve entenderse que não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual Consequentemente aqueles que já instituíram um Estado dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem seja no que for sem sua licença Portanto aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia voltando à confusão de uma multidão desunida nem transferir sua pessoa daquele que dela i é portador para outro homem ou outra assembléia de homens Pois são obrigados cada homem perante cada homem a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu soberano fizer e considerar bom fazer Assim a dissensão de alguém levaria todos os restantes a romper o pacto feito com esse alguém o que constitui injustiça Por outro lado cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa portanto se o depuserem estarão tirandolhe o que é seu o que também constitui injustiça Além do mais se aquele que tentar depor seu soberano for morto ou por ele castigado devido a essa tentativa será o autor de seu próprio castigo dado que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer E dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por sua própria autoridade também a esse título ele estará sendo injusto E quando alguns homens desobedecendo a seu soberano pretendem ter celebrado um novo pacto não com homens mas com Deus também isto é injusto pois não há pacto com Deus a não ser através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus e ninguém o faz a não ser o lugartenente de Deus o detentor da soberania abaixo de Deus E esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente mesmo perante a própria consciência de quem tal pretende que não constitui apenas um ato injusto mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano Em segundo lugar dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um e não entre o soberano e cada um dos outros não pode haver quebra do pacto da parte do soberano portanto nenhum dos súditos pode libetarse da sujeição sob qualquer pretexto de infração É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus súditos porque iria ou que celebrálo com toda a multidão na qualidade de parte do pacto ou que celebrar diversos pactos um com cada um deles Com o todo na qualidade que parte é impossível porque nesse momento eles ainda não constituem uma pessoa E se fizer tantos pactos quantos forem os homens depois de ele receber a soberania esses pactos serão nulos pois qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será um ato praticado tanto por ele mesmo como por todos os outros porque será um ato praticado na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular Além disso se algum ou mais de um deles pretender que houve infração do pacto feito pelo soberano quando de sua instituição e outros ou um só de seus súditos ou mesmo apenas ele próprio pretender que não houve tal infração não haverá nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia Volta portanto a ser a força a decidir e cada um recupera o direito de se defender por seus próprios meios contrariamente à intenção que o levara àquela instituição Portanto é inútil pretender conferir a soberania através de um pacto anterior A opinião segundo a qual o monarca recebe de um pacto seu poder quer dizer sob certas condições deriva de não se compreender esta simples verdade que os pactos não passando de palavras e vento não têm qualquer força para obrigar dominar constranger ou proteger ninguém a não ser a que deriva da espada pública Ou seja das mãos livres e sem peias daquele homem u assembléia de homens que detém a soberania cujas ações são garantidas por iodos e realizadas pela força de todos os que nele se encontram unidos Quando se confere a soberania a uma assembléia de homens ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição Pois ninguém é suficientemente tolo para dizer por exemplo que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a soberania sob tais e tais condições as quais quando não cumpridas dariam aos romanos o direito de depor o povo de Roma O fato de os homens não verem a razão para que se passe o mesmo numa monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns que vêem com mais simpatia o governo de uma assembléia da qual podem ter a esperança de vir a participar do que o de uma monarquia da qual é impossível esperarem desfrutar Em terceiro lugar se a maioria por voto de consentimento escolher um soberano os que tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes Ou seja devem aceitar reconhecer todos os ates que ele venha a praticar ou então serem justamente destruídos pelos restantes Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que constituíam a assembléia declarou suficientemente com esse ato sua vontade e portanto tacitamente fez um pacto de se conformar ao que a maioria decidir Portanto se depois recusar aceitála ou protestar contra qualquer de seus decretos age contrariamente ao pacto isto é age injustamente E quer faça parte da congregação quer não faça e quer seu consentimento seja pedido quer não seja ou terá que submeterse a seus decretos ou será deixado na condição de guerra em que antes se encontrava e na qual pode sem injustiça ser destruído por qualquer um Em quarto lugar dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído seguese que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos e que nenhum deles pode acusálo de injustiça Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo Por esta instituição de um Estado cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estarseá queixando daquilo de que ele próprio é autor portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio e não pode acusarse a si próprio de injúria pois causar injúria a si próprio é impossível É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniqüidade mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio Em quinto lugar e em conseqüência do que foi dito por último aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto nem de qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos Dado que cada súdito é autor dos ato de seu soberano cada um estaria castigando outrem pelos atos cometidos por si mesmo Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios constitui direito de qualquer homem ou assembléia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas E o de fazer tudo o que considere necessário ser feito tanto antecipadamente para a preservação da paz e da segurança mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade vinda do exterior quanto também depois de perdidas a paz e a segurança para a recuperação de ambas E em conseqüência Em sexto lugar compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são contrárias à paz e quais as que lhe são propícias E em conseqüência de em que ocasiões até que ponto e o que se deve conceder àqueles que falam a multidões de pessoas e de quem deve examinar as doutrinas de todos os livros antes de serem publicados Pois as ações dos homens derivam de suas opiniões e é no bom governo das opiniões que consiste o bom governo das ações dos homens tendo em vista a paz e a concórdia entre eles E embora em matéria de doutrina não se deva olhar a nada senão à verdade nada se opõe à regulação da mesma em função da paz Pois uma doutrina contrária à paz não pode ser verdadeira tal como a paz e a concórdia não podem ser contrárias à lei da natureza É certo que num Estado onde devido à negligência ou incapacidade dos governantes e dos mestres venham a ser geralmente aceites falsas doutrinas as verdades contrárias podem ser geralmente ofensivas Mas mesmo a mais brusca e repentina irrupção de uma nova verdade nunca vem quebrantar a paz pode apenas às vezes despertar a guerra Porque aqueles que são tão desleixadamente governados que chegam a ousar pegar em armas para defender ou impor uma opinião esses se encontram ainda em condição de guerra Sua situação não é a paz mas apenas uma suspensão de hostilidades por medo uns aos outros É como se vivessem continuamente num prelúdio de batalha Portanto compete ao detentor do poder soberano ser o juiz ou constituir todos os juízes de opiniões e doutrinas como uma coisa necessária para a paz evitando assim a discórdia e a guerra civil Em sétimo lugar pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar e ais as ações que pode praticar sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos é a isto que os homens chamam propriedade Porque antes da constitui do poder soberano conforme já foi mostrado todos os homens tinham direito todas as coisas o que necessariamente provocava a guerra Portanto esta propriedade dado que é necessária à paz e depende do poder soberano é um ato se poder tendo em vista a paz pública Essas regras da propriedade ou meum e tuum tal como o bom e o mau ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos são as leis civis Quer dizer as leis de cada Estado em particular embora hoje o nome de direito civil se aplique apenas às antigas leis civis da cidade de ma pois sendo esta a capital de uma grande parte do mundo suas leis eram se tempo o direito civil dessa região Em oitavo lugar pertence ao poder soberano a autoridade judicial quer dizer o direito de ouvir e julgar todas as controvérsias que possam surgir com peito às leis tanto civis quanto naturais ou com respeito aos fatos Porque n a decisão das controvérsias não pode haver proteção de um súdito contra as árias de um outro Serão em vão as leis relativas ao meum e ao tuum E cada homem detém devido ao natural e necessário apetite de sua própria conservação o direito de protegerse a si mesmo com sua força individual o que é uma condição de guerra contrária aos fins que levaram à instituição de todo Estado Em nono lugar pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com iras nações e Estados Quer dizer o de decidir quando ela a guerra corresponde ao bem comum e qual a quantidade de forças que devem ser reunidas oradas e pagas para esse fim e de levantar dinheiro entre os súditos a fim de pagar suas despesas Porque o poder mediante o qual o povo vai ser defendido insiste em seus exércitos e a força de um exército consiste na união de suas forças sob um comando único Poder que pertence consequentemente ao soberano instituído dado que o comando da militia na ausência de outra instituição torna ao soberano aquele que o possui Portanto seja quem for o escolhido para general de 11 exército aquele que possui o poder soberano é sempre o generalíssimo Em décimo lugar compete à soberania a escolha de todos os conselheiros ministros magistrados e funcionários tanto na paz como na guerra Dado que o soberano está encarregado dos fins que são a paz e a defesa comuns entendese que ele possui o poder daqueles meios que considerar mais adequados para seu propósito Em décimo primeiro lugar é confiado ao soberano o direito de recompensar com riquezas e honras e o de punir com castigos corporais ou pecuniários ou com a ignomínia a qualquer súdito de acordo com a lei que previamente estabeleceu Caso não haja lei estabelecida de acordo com o que considerar mais capaz de conduzir ao serviço do Estado ou de desestimular a prática de desserviços ao mesmo Por último levando em conta os valores que os homens tendem naturalmente a atribuir a si mesmos o respeito que esperam receber dos outros e o pouco valor que atribuem aos outros homens o que dá origem entre eles a uma emulação constante assim como querelas facções e por último à guerra à destruição de uns pelos outros e à diminuição de sua força perante um inimigo comum tudo isto torna necessário que existam leis de honra e que seja atribuído um valor aos homens que bem serviram ou que são capazes de bem servir ao Estado e também que seja posta força nas mãos de alguns a fim de dar execução a essas leis Mas já foi mostrado que não é apenas toda a milícia ou forças do Estado mas também o julgamento de todas as controvérsias que pertence à soberania Ao soberano compete pois também conceder títulos de honra e decidir qual a ordem de lugar e dignidade que cabe a cada um assim como quais os sinais de respeito nos encontros públicos ou privados que devem manifestar uns para com os outros São estes os direitos que constituem a essência da soberania e são as marcas pelas quais se pode distinguir em que homem ou assembléia de homens se localiza e reside o poder soberano Porque esses direitos são incomunicáveis e inseparáveis 0 poder de cunhar moeda de dispor das propriedades e pessoas dos infantes herdeiros de ter opção de compra nos mercados assim como todas as outras prerrogativas estatutárias pode ser transferido pelo soberano sem que por isso perca o poder de proteger seus súditos Mas se transferir o comando da milícia será em vão que conservará o poder judicial pois as leis não poderão ser executadas Se alienar o poder de recolher impostos o comando da milícia será em vão e se renunciar à regulação das doutrinas os súditos serão levados à rebelião pelo medo aos espíritos Se examinarmos cada um dos referidos direitos imediatamente veremos que conservar todos os outros menos ele não produzirá qualquer efeito para a preservação da paz e da justiça que é o fim em vista do qual todos os Estados são instituídos E esta é a divisão da qual se diz que um reino dividido em si mesmo não pode manterse pois a menos que esta divisão anteriormente se verifique a divisão em exércitos opostos jamais poderá ocorrer Se antes de mais não houvesse sido aceite na maior parte da Inglaterra a opinião segundo a qual esses poderes eram divididos entre o rei e os lordes e a câmara dos comuns o povo jamais haveria sido dividido nem caído na guerra civil primeiro entre aqueles que discordavam em matéria de política e depois entre os dissidentes acerca da liberdade de religião lutas que agora instruíram os homens quanto a este ponto do direito soberano a ponto de poucos haver hoje na Inglaterra que não vejam que esses direitos são inseparáveis e assim serão universalmente reconhecidos no próximo período de paz e assim continuarão até que essas misérias sejam esquecidas e não mais do que isso a não ser que o vulgo seja melhor educado do que tem sido até agora Dado que se trata de direitos essenciais e inseparáveis seguese necessariamente que quaisquer que sejam as palavras em que qualquer deles pareça ser alienado mesmo assim se não se renunciar em termos expressos ao próprio poder soberano e o nome de soberano não mais for dado pelos outorgados àquele que a eles outorga nesse caso a outorga é nula porque depois de ele ter outorgado tudo quanto queira se lhe outorgamos de volta a soberania tudo fica assim restabelecido e inseparavelmente atribuído a ele Como a grande autoridade é indivisível e inseparavelmente atribuída ao soberano há pouco fundamento para a opinião dos que afirmam que os reis soberanos embora sejam singulis majores com maior poder do que qualquer de seus súditos são apesar disso universis minores com menos poder do que eles todos juntos Porque se por todos juntos não entendem o corpo coletivo como uma pessoa nesse caso todos juntos e cada um significam o mesmo e essa fala é absurda Mas se por todos juntos os entendem como uma pessoa pessoa da qual o soberano é portador nesse caso o poder de todos juntos é o mesmo que o poder do soberano e mais uma vez a fala é absurda absurdo esse que vêem com clareza sempre que a soberania reside numa assembléia do povo mas que num monarca não vêem todavia o poder da soberania é o mesmo seja a quem for que pertença Do mesmo modo que o poder assim também a honra do soberano deve ser maior do que a de qualquer um ou a de todos os seus súditos Porque é na soberania que está a fonte da honra Os títulos de lorde conde duque e príncipe são suas criaturas Tal como na presença do senhor os servos são iguais sem honra de qualquer espécie assim também o são os súditos na presença do soberano E embora alguns tenham mais brilho e outros menos quando não estão em sua presença perante ele não brilham mais do que as estrelas na presença do sol Mas poderia aqui objetarse que a condição de súdito é muito miserável pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em suas mãos poder tão ilimitado Geralmente os que vivem sob um monarca pensam que isso é culpa da monarquia e os que vivem sob o governo de uma democracia ou de outra assembléia soberana atribuem todos os inconvenientes a essa forma de governo Ora o poder é sempre o mesmo sob todas as formas se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos E isto sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral em qualquer forma de governo é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos impedindo a rapina e a vingança E também sem levar em conta que o que mais impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem que esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos em cujo vigor consiste sua própria força e glória e sim a obstinação daqueles que contribuindo de má vontade para sua própria defesa tornam necessário que seus governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz a fim de obterem os meios para resistir ou vencer a seus inimigos em qualquer emergência ou súbita necessidade Porque todos os homens são dotados por natureza de grandes lentes de aumento ou seja as paixões e o amor de si através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso fardo mas são destituídos daquelas lentes prospectivas a saber a ciência moral e civil que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas CAPÍTULO XIX Das diversas espécies de governos por instituição e da sucessão do poder soberano A diferença entre os governos consiste na diferença do soberano ou pessoa representante de todos os membros da multidão Dado que a soberania ou reside em um homem ou em uma assembléia de mais de um e que em tal assembléia ou todos têm o direito de participar ou nem todos mas apenas certos homens distinguidos dos restantes tornase evidente que só pode haver três espécies de governo Porque o representante é necessariamente um homem ou mais de um e caso seja mais de um a assembléia será de todos ou apenas de uma parte Quando o representante é um só homem o governo chamase uma monarquia Quando é uma assembléia de todos os que se uniram é uma democracia ou governo popular Quando é uma assembléia apenas de uma parte chamaselhe uma aristocracia Não pode haver outras espécies de governo porque o poder soberano inteiro que já mostrei ser indivisível tem que pertencer a um ou mais homens ou a todos Encontramos outros nomes de espécies de governo como tirania e oligarquia nos livros de história e de política Mas não se trata de nomes de outras formas de governo e sim das mesmas formas quando são detestadas Pois os que estão descontentes com uma monarquia chamamlhe tirania e aqueles a quem desagrada uma aristocracia chamamlhe oligarquia Do mesmo modo os que se sentem prejudicados por uma democracia chamamlhe anarquia o que significa ausência de governo embora creio eu ninguém pense que a ausência de governo é uma nova espécie de governo Pela mesma razão também não devem as pessoas pensar que o governo é de uma espécie quando gostam dele e de uma espécie diferente quando o detestam ou quando são oprimidos pelos governantes É evidente que os homens que se encontrarem numa situação de absoluta liberdade poderão se lhes aprouver conferir a um só homem a autoridade de representar todos eles ou então conferir essa autoridade a qualquer assembléia Poderão portanto se tal considerarem conveniente submeterse a um monarca de maneira tão absoluta como a qualquer outro representante Quando já estiver instituído um poder soberano portanto só será possível haver outro representante das mesmas pessoas para determinados fins particulares definidos pelo próprio soberano Caso contrário instituirseiam dois soberanos tendo cada um sua pessoa representada por dois atores os quais se oporiam um ao outro e assim necessariamente dividiriam esse poder que para que o povo possa viver em paz tem que ser indivisível Assim a multidão seria levada a uma situação de guerra contrariamente ao fim para que é instituída toda soberania Portanto do mesmo modo que seria absurdo supor que uma assembléia soberana ao convidar o povo de seus domínios a enviar seus deputados com poder para dar a conhecer suas opiniões e desejos estaria assim considerando esses deputados e não os membros da própria assembléia como absolutos representantes do povo assim também seria absurdo supor o mesmo de um monarca E não compreendo como uma verdade tão evidente pode ultimamente ter sido tão pouco reconhecida Como é possível que numa monarquia aquele que detém a soberania através de uma descendência de seiscentos anos que é o único a ser chamado soberano que recebe de todos os seus súditos o título de Majestade e é inquestionavelmente considerado por todos como seu rei apesar de tudo isso jamais seja considerado seu representante sendo esta palavra tomada sem que ninguém o contradiga como o título daqueles que por ordem do rei foram designados pelo povo para apresentar suas petições e caso o rei o permitisse para exprimir suas opiniões Isto pode servir de advertência para aqueles que são os verdadeiros e absolutos representantes do povo a fim de ensinarem a todos a natureza de seu cargo e tomarem cuidado com a maneira como admitem a existência de qualquer outra representação geral em qualquer ocasião que seja se pretendem corresponder à confiança neles depositada A diferença entre essas três espécies de governo não reside numa diferença de poder mas numa diferença de conveniência isto é de capacidade para garantir a paz e a segurança do povo fim para o qual foram instituídas Comparando a monarquia com as outras duas impõemse varias observações Em primeiro lugar seja quem for que seja portador da pessoa do povo ou membro da assembléia que dela é portadora é também portador de sua própria pessoa natural Embora tenha o cuidado em sua pessoa política de promover o interesse comum terá mais ainda ou não terá menos cuidado de promover seu próprio bem pessoal assim como o de sua família seus parentes e amigos E na maior parte dos casos se por acaso houver conflito entre o interesse público e o interesse pessoal preferirá o interesse pessoal pois em geral as paixões humanas são mais fortes do que a razão De onde se segue que quanto mais intimamente unidos estiverem o interesse público e o interesse pessoal mais se beneficiará o interesse público Ora na monarquia o interesse pessoal é o mesmo que o interesse público A riqueza o poder e a honra de um monarca provêm unicamente da riqueza da força e da reputação de seus súditos Porque nenhum rei pode ser rico ou glorioso ou pode ter segurança se acaso seus súditos forem pobres ou desprezíveis ou demasiado fracos por carência ou dissensão para manter uma guerra contra seus inimigos Ao passo que numa democracia ou numa aristocracia a prosperidade pública contribui menos para a fortuna pessoal de alguém que seja corrupto ou ambicioso do que muitas vezes uma decisão pérfida uma ação traiçoeira ou lima guerra civil Em segundo lugar um monarca recebe conselhos de quem lhe apraz e quando e onde lhe apraz Em conseqüência tem a possibilidade de ouvir as pessoas versadas na matéria sobre a qual está deliberando seja qual for a categoria ou a qualidade dessas pessoas e com a antecedência que quiser em relação ao momento da ação assim como com o segredo que quiser Pelo contrário quando uma assembléia soberana precisa de conselhos só são admitidas as pessoas que desde início a tal têm direito as quais em sua maioria são mais versadas na aquisição de riquezas do que na de conhecimentos e darão seu conselho em longos discursos que podem levar os homens à ação e geralmente o fazem mas não contribuem para orientar essa ação Porque o entendimento submetido à chama das paixões jamais é iluminado mas sempre ofuscado E nunca há lugar nem tempo onde uma assembléia possa receber conselhos em sigilo devido a sua própria multidão Em terceiro lugar as resoluções de um monarca estão sujeitas a uma única inconstância que é a da natureza humana ao passo que nas assembléias além da da natureza verificase a inconstância do número Porque a ausência de uns poucos que poderiam manter firme a resolução uma vez tomada ausência que pode ocorrer por segurança por negligência ou por impedimentos pessoais ou a diligente aparição de uns poucos da opinião contrária podem desfazer hoje tudo o que ontem ficou decidido Em quarto lugar é impossível um monarca discordar de si mesmo seja por inveja ou por interesse mas numa assembléia isso é possível e em grau tal que pode chegar a provocar uma guerra civil Em quinto lugar numa monarquia existe o inconveniente de qualquer súdito poder ser pelo poder de um só homem e com o fim de enriquecer um favorito ou um adulador privado de tudo quanto possui 0 que confesso é um grande e inevitável inconveniente Mas o mesmo pode também acontecer quando o poder soberano reside numa assembléia pois seu poder é o mesmo e seus membros se encontram tão sujeitos aos maus conselhos ou a serem seduzidos por oradores como um monarca por aduladores e tornandose aduladores uns dos outros servem mutuamente à cobiça e à ambição uns dos outros E enquanto os favoritos de um monarca são poucos e ele tem para favorecer apenas seus parentes os favoritos de uma assembléia são muitos e os parentes são em muito maior número que os de um monarca Além do mais não há favorito de um monarca que não seja tão capaz de ajudar seus amigos como de prejudicar seus inimigos ao passo que os oradores ou seja os favoritos das assembléias soberanas embora possuam grande poder para prejudicar pouco têm para ajudar Porque acusar exige menos eloqüência assim é a natureza do homem do que desculpar e a condenação parecese mais com a justiça do que a absolvição Em sexto lugar há na monarquia o inconveniente de ser possível a soberania ser herdada por uma criança ou por alguém incapaz de distinguir entre o bem e o mal 0 inconveniente reside no fato de ser necessário que o uso do poder fique nas mãos de um outro homem ou nas de uma assembléia que deverá governar por seu direito e em seu nome como curador e protetor de sua pessoa e autoridade Mas dizer que é inconveniente pôr o uso do poder soberano nas mãos de um homem ou de uma assembléia é dizer que todo governo é mais inconveniente do que a confusão e a guerra civil E todo o perigo que se pode pretender existir só virá portanto das lutas entre aqueles que por causa de um cargo de tamanha honra e proveito se tornarão competidores Para ver claramente que este inconveniente não se deve à forma de governo a que chamamos monarquia basta lembrar que o monarca anterior pode indicar o tutor do infante seu sucessor quer expressamente por testamento quer tacitamente não se opondo ao costume que neste caso é normal Os inconvenientes que poderão verificarse não deverão ser atribuídos à monarquia nessa circunstância mas à ambição e injustiça dos súditos que são as mesmas em todas as espécies de governo onde o povo não é competentemente instruído quanto a seus deveres e quanto aos direitos da soberania No caso de o monarca antecedente não haver tomado quaisquer medidas quanto a essa tutoria basta a lei de natureza para fornecer uma regra suficiente que o tutor seja aquele que por natureza tenha maior interesse na preservação da autoridade do infante e a quem menos beneficie sua morte ou a diminuição dessa autoridade Dado que por natureza todo homem procura seu próprio interesse e benefício colocar o infante nas mãos de quem possa beneficiarse com sua destruição ou prejuízo não é tutoria mas traição Portanto se forem tomadas suficientes precauções contra qualquer justa querela a respeito do governo de um menor de idade se surgir qualquer disputa que venha perturbar a tranqüilidade pública ela não deve ser atribuída à forma da monarquia mas à ambição dos súditos e à ignorância de seu dever Por outro lado não há qualquer grande Estado cuja soberania resida numa grande assembléia que não se encontre quanto às consultas da paz e da guerra e quanto à feitura das leis na mesma situação de um governo pertencente a uma criança Porque do mesmo modo que à criança falta julgamento para discordar dos conselhos que lhe dão precisando portanto de pedir a opinião daquele ou daqueles a quem foi confiada assim também a uma assembléia falta liberdade para discordar do conselho da maioria seja ele bom ou mau E do mesmo modo que uma criança tem necessidade de um tutor ou protetor para preservar sua pessoa e autoridade assim também nos grandes Estados a soberana assembléia por ocasião de todos os grandes perigos e perturbações tem necessidade de custodes libertatis ou seja de ditadores e protetores de sua autoridade Que são o equivalente de monarcas temporários aos quais ela pode entregar por um tempo determinado o completo exercício de seu poder E tem acontecido mais freqüentemente ela ser por eles privada do poder ao fim desse tempo do que os infantes serem privados do mesmo por seus protetores regentes ou quaisquer outros tutores Embora conforme acabei de mostrar as espécies de soberania sejam apenas três ou seja a monarquia onde pertence a um só homem a democracia onde pertence à assembléia geral dos súditos e a aristocracia onde reside numa assembléia de certas pessoas designadas ou de qualquer outra maneira distinguidas das restantes apesar disso aquele que examinar os Estados que efetivamente existiram e existem no mundo talvez não encontre facilidade em reduzilas a três podendo assim tender para acreditar que existem outras formas derivadas da mistura daquelas três Como por exemplo as monarquias eletivas onde o poder soberano é colocado nas mãos dos reis por um tempo determinado ou as monarquias onde o poder do rei é limitado governos que não obstante são pela maior parte dos autores chamados monarquias De maneira semelhante se um Estado popular ou aristocrático subjugar um país inimigo e governar este último através de um presidente um procurador ou outro magistrado neste caso poderá parecer à primeira vista que se trata de um governo popular ou aristocrático Mas não é esse o caso Porque os monarcas eletivos não são soberanos mas ministros do soberano e os monarcas limitados também não são soberanos mas ministros dos que têm o poder soberano E aquelas províncias que se encontram submetidas a uma democracia ou aristocracia de um outro Estado não são democrática ou aristocraticamente governadas e sim monarquicamente Em primeiro lugar com respeito ao monarca eletivo cujo poder está limitado à duração de sua vida como acontece atualmente em muitas regiões da cristandade ou a certos anos ou meses como no caso do poder dos ditadores entre os romanos se ele tiver o direito de designar seu sucessor não será mais eletivo mas hereditário Mas se ele não tiver o direito de escolher seu sucessor nesse caso haverá algum outro homem ou assembléia que após sua morte poderá indicar um novo monarca pois caso contrário o Estado morreria e se dissolveria com ele voltando à condição de guerra Se for sabido quem terá o poder de conceder a soberania após sua morte será também sabido que já antes a soberania lhe pertencia Porque ninguém tem o direito de dar aquilo que não tem o direito de possuir e guardar para si mesmo se assim lhe aprouver E se não houver ninguém como poder de conceder a soberania após a morte daquele que foi eleito em primeiro lugar nesse caso este tem o poder ou melhor é obrigado pela lei de natureza a garantir mediante a escolha de seu sucessor que aqueles que lhe confiaram o governo não voltem a cair na miserável condição de guerra civil Consequentemente ele foi quando eleito designado como soberano absoluto Em segundo lugar o rei cujo poder é limitado não é superior àquele ou àqueles que têm o direito de limitálo E aquele que não é superior não é supremo isto é não é soberano Portanto a soberania ficou sempre naquela assembléia que tem o direito de limitálo e em conseqüência o governo não é uma monarquia mas democracia ou aristocracia Conforme acontecia antigamente em Esparta onde os reis tinham o privilégio de comandar seus exércitos mas a soberania residia nos éforos Em terceiro lugar enquanto o povo romano governava a região da Judéia por exemplo através de um presidente nem por isso a Judéia era uma democracia porque seus habitantes não eram governados por uma assembléia da qual algum deles tivesse o direito de fazer parte nem uma aristocracia pois não eram governados por uma assembléia da qual alguém pudesse fazer parte por sua eleição Eram governados por uma só pessoa que embora em relação ao povo de Roma fosse uma assembléia do povo ou democracia em relação ao povo da Judéia que não tinha qualquer direito de participar no governo era um monarca Pois embora quando o povo é governado por uma assembléia escolhida por ele próprio em seu próprio seio o governo se chame uma democracia ou aristocracia quando o povo é governado por uma assembléia que não é de sua própria escolha o governo é uma monarquia não de um homem sobre outro homem mas de um povo sobre outro povo Dado que a matéria de todas estas formas de governo é mortal de modo tal que não apenas os monarcas morrem mas também assembléias inteiras é necessário para a conservação da paz entre os homens que do mesmo modo que foram tomadas medidas para a criação de um homem artificial também sejam tomadas medidas para uma eternidade artificial da vida Sem a qual os homens que são governados por uma assembléia voltarão à condição de guerra em cada geração e com os que são governados por um só homem o mesmo acontecerá assim que morrer seu governante Esta eternidade artificial é o que se chama direito de sucessão Não existe qualquer forma perfeita de governo em que a decisão da sucessão não se encontre nas mãos do próprio soberano Porque se esse direito pertencer a qualquer outro homem ou a qualquer assembléia particular ele pertence a um súdito e pode ser retomado pelo soberano a seu belprazer e por conseqüência o direito pertence a ele próprio Se o direito não pertencer a nenhuma pessoa em especial e estiver na dependência de uma nova escolha neste caso o Estado encontrase dissolvido e o direito pertence a quem dele puder apoderarse contrariamente à intenção dos que instituíram o Estado tendo em vista uma segurança perpétua e não apenas temporária Numa democracia é impossível que a assembléia inteira venha a faltar a não ser que falte também a multidão que deverá ser governada Portanto as questões relativas ao direito de sucessão não podem ter lugar algum nessa forma de governo Numa aristocracia quando morre qualquer dos membros da assembléia a eleição de outro em seu lugar compete à própria assembléia na qualidade de soberano a quem pertence o direito de escolher todos os conselheiros e funcionários Pois tudo quanto o representante faz como ator cada um dos súditos faz também como autor E embora a soberana assembléia possa dar a outrem o direito de eleger novos membros de sua corte mesmo assim continua a ser em virtude de sua autoridade que se faz a eleição e pela mesma pode ser revogada quando o interesse público assim o exigir Com respeito ao direito de sucessão a maior dificuldade ocorre no caso da monarquia E a dificuldade surge do fato de à primeira vista não ser evidente quem deve designar o sucessor nem muitas vezes quem foi que ele designou Porque em ambos estes casos é necessária maior precisão de raciocínio do que geralmente se tem o costume de aplicar Quanto ao problema de saber quem deve designar o sucessor de um monarca que é detentor da soberana autoridade ou seja quem deve determinar o direito de herança dado que os monarcas eletivos não têm a propriedade mas apenas o uso do poder soberano deve admitirse que ou aquele que está no poder tem o direito de decidir a sucessão ou esse direito volta para a multidão dissolvida Porque a morte daquele que tem a propriedade do poder soberano deixa a multidão destituída de qualquer soberano isto é sem qualquer representante no qual possa ser unida e tornarse capaz de praticar qualquer espécie de ação Ela fica portanto incapaz de proceder à eleição de um novo monarca pois cada um tem igual direito de submeterse a quem considerar mais capaz de protegêlo ou então se puder de proteger se a si mesmo com sua própria escapada o que equivale a um regresso à confusão e à condição de guerra de todos os homens contra todos os homens contrariamente ao fim para que a monarquia fora instituída Torna se assim evidente que pela instituição de uma monarquia a escolha do sucessor é sempre deixada ao juízo e vontade do possessor atual Quanto ao problema que às vezes pode surgir de saber quem foi que o atual monarca designou como herdeiro e sucessor de seu poder este é determinado por palavras expressas num testamento ou por outros sinais tácitos considerados suficientes Considerase que há palavras expressas ou testamento quando tal é declarado em vida do soberano viva vote ou por escrito como os primeiros imperadores de Roma declaravam quem deviam ser seus herdeiros Porque a palavra herdeiro não significa por si mesma os filhos ou parentes mais próximos de um homem mas seja quem for que de qualquer modo este último declarar que deverá sucederlhe em suas propriedades Portanto se um monarca declarar expressamente que uma determinada pessoa deverá ser sua herdeira quer oralmente quer por escrito nesse caso essa pessoa será imediatamente após o falecimento de seu predecessor investida no direito de ser monarca Mas na ausência de testamento e palavras expressas é preciso guiarse por outros sinais naturais da vontade um dos quais é o costume Portanto quando 0 costume é que o parente mais próximo seja o sucessor absoluto também nesse caso é o parente mais próximo que tem direito à sucessão visto que se fosse diferente a vontade do que detinha o poder facilmente ele poderia assim ter declarado quando em vida De maneira semelhante quando o costume é que o sucessor seja o parente masculino mais próximo também nesse caso o direito de sucessão pertence ao parente masculino mais próximo pela mesma razão E o mesmo seria se o costume fosse dar preferência ao parente feminino Porque seja qual for o costume que um homem tenha a possibilidade de controlar através de uma palavra e não o faz estáse perante um sinal natural de que ele quer que esse costume seja aplicado Mas quando não há costume ou testamento anterior deve entenderse primeiro que a vontade do monarca é que o governo continue sendo monárquico dado que aprovou essa forma de governo em si mesmo Segundo que seu próprio filho homem ou mulher seja preferido a qualquer outro dado que se supõe que os homens tendem por natureza a favorecer mais seus próprios filhos do que os filhos dos outros homens e de entre seus filhos mais os do sexo masculino que os do feminino porque os homens são naturalmente mais capazes do que as mulheres para as ações que implicam esforço e perigo Terceiro caso falte sua própria descendência mais um irmão do que um estranho e mesmo assim o de sangue mais próximo de preferência ao mais remoto dado que sempre se supõe que o parente mais chegada é também o mais chegado em afeto e é evidente que sempre se recebe por reflexo mais honra devido à grandeza do parente mais próximo Mas sendo legítimo que um monarca decida sua sucessão por palavras de contrato ou testamento alguém poderá talvez objetar um grave inconveniente que ele pode vender ou dar a um estrangeiro seu direito de governar O que dado que os estrangeiros isto é os homens que não estão habituados a viver sob o mesmo governo e não falam a mesma língua geralmente dão pouco valor uns aos outros pode redundar na opressão dos súditos O que é sem dúvida um grande inconveniente mas que não deriva necessariamente da sujeição ao governo de um estrangeiro e sim da falta de habilidade dos governantes que ignoram as verdadeiras regras da política Assim os romanos depois de terem subjugado muitas nações a fim de tornarem seu governo mais aceitável procuraram eliminar essa causa de ressentimento tanto quanto consideraram necessário concedendo às vezes a nações inteiras e às vezes aos homens mais importantes das nações que conquistaram não apenas os privilégios mas também o nome de romanos E a muitos deles deram um lugar no Senado assim como cargos públicos inclusive na cidade de Roma E era isto que nosso mui sábio monarca o rei Jaime visava ao esforçarse por realizar a união dos dois domínios da Inglaterra e da Escócia Se tal tivesse conseguido é muito provável que tivesse evitado as guerras civis que levaram à miséria ambos esses reinos na situação atual Portanto não constitui injúria feita ao povo que um monarca decida por testamento sua sucessão apesar de que por culpa de muitos príncipes tal haja sido às vezes considerado inconveniente Em favor da legitimidade de uma tal decisão há também um outro argumento que sejam quais forem os inconvenientes que possam derivar da entrega de um reino a um estrangeiro o mesmo pode também acontecer devido ao casamento com um estrangeiro dado que o direito de sucessão pode acabar por recair nele Todavia isto é considerado legítimo por todos os homens CAPÍTULO XX Do domínio paterno e despótico Um Estado por aquisição é aquele onde o poder soberano foi adquirido pela força E este é adquirido pela força quando os homens individualmente ou em grande número e por pluralidade de votos por medo da morte ou do cativeiro autorizam todas as ações daquele homem ou assembléia que tem em seu poder suas vidas e sua liberdade Esta espécie de domínio ou soberania difere da soberania por instituição apenas num aspecto os homens que escolhem seu soberano fazemno por medo uns dos outros e não daquele a quem escolhem e neste caso submetemse àquele de quem têm medo Em ambos os casos fazemno por medo o que deve ser notado por todos aqueles que consideram nulos os pactos conseguidos pelo medo da morte ou da violência Se isso fosse verdade ninguém poderia em nenhuma espécie de Estado ser obrigado à obediência É certo que num Estado já instituído ou adquirido as promessas derivadas do medo da morte ou da violência não são pactos nem geram obrigação quando a coisa prometida é contrária às leis mas a razão disso não é que tenha sido feita por medo e sim que aquele que prometeu não tinha qualquer direito à coisa prometida Por outro lado quando alguém pode legitimamente cumprir uma promessa e não o faz não é a invalidez do pacto que o absolve e sim a sentença do soberano Se assim não fosse tudo aquilo que alguém legitimamente prometesse seria ilegítimo não cumprir mas quando 0 soberano como ator de tal o dispensa ele está sendo dispensado por aquele que extorquiu a promessa na qualidade de autor dessa absolvição Mas os direitos e conseqüências da soberania são os mesmos em ambos os casos Seu poder não pode sem seu consentimento ser transferido para outrem não pode alienálo não pode ser acusado de injúria por qualquer de seus súditos não pode por eles ser punido É juiz do que é necessário para a paz e juiz das doutrinas é o único legislador e supremo juiz das controvérsias assim como dos tempos e ocasiões da guerra e da paz é a ele que compete a escolha dos magistrados conselheiros comandantes assim como todos os outros funcionários e ministros é ele quem determina as recompensas e castigos as honras e as ordens As razões de tudo isto são as mesmas que foram apresentadas no capítulo anterior para os mesmos direitos e conseqüências da soberania por instituição 0 domínio pode ser adquirido de duas maneiras por geração e por conquista O direito de domínio por geração é aquele que o pai tem sobre seus filhos e chamase paterno Esse direito não deriva da geração como se o pai tivesse domínio sobre seu filho por têlo procriado e sim do consentimento do filho seja expressamente ou por outros argumentos suficientemente declarados Quanto à geração quis Deus que o homem tivesse uma colaboradora e há sempre dois que são igualmente pais portanto o domínio sobre o filho deveria pertencer igualmente a ambos e ele deveria estar igualmente submetido a ambos o que é impossível pois ninguém pode obedecer a dois senhores Aqueles que atribuem o domínio apenas ao homem por ser do sexo mais excelente enganamse totalmente Porque nem sempre se verifica essa diferença de força e prudência entre o homem e a mulher de maneira a que o direito possa ser determinado sem conflito Nos Estados essa controvérsia é decidida pela lei civil e na maior parte dos casos embora nem sempre a sentença é favorável ao pai porque na maior parte dos casos o Estado foi criado pelos pais não pelas mães de família Mas agora a questão diz respeito ao puro estado de natureza onde não existem leis matrimoniais nem leis referentes à educação das crianças mas apenas a lei de natureza e a inclinação natural dos sexos um para com o outro e para com seus filhos Nesta condição de simples natureza ou os pais decidem entre si por contrato o domínio sobre os filhos ou nada decidem a tal respeito Se houver essa decisão o direito se aplica conformemente ao contrato Diznos a história que as Amazonas faziam com os homens dos países vizinhos aos quais recorriam para o efeito um contrato pelo qual as crianças do sexo masculino seriam enviadas de volta e as do sexo feminino ficavam com elas assim o domínio sobre as filhas pertencia à mãe Caso não haja contrato o domínio pertence à mãe Porque na condição de simples natureza onde não existem leis matrimoniais é impossível saber quem é o paia não ser que tal seja declarado pela mãe Portanto o direito de domínio sobre os filhos depende da vontade dela e consequentemente pertencelhe Por outro lado visto que a criança se encontra inicialmente em poder da mãe de modo que esta tanto pode alimentála quanto abandonála caso seja alimentada fica devendo a vida à mãe sendo portanto obrigada a obedecerlhe e não a outrem por conseqüência é a ela que pertence o domínio sobre a criança Mas se a abandonar e um outro a encontrar e alimentar nesse caso o domínio pertence a quem a alimentou Pois ela deve obedecer a quem a preservou porque sendo a preservação da vida o fim em vista do qual um homem fica sujeito a outro supõese que todo homem prometa obediência àquele que tem o poder de salválo ou de destruílo Se a mãe se encontrar submetida ao pai o filho se encontra em poder do pai e se o pai estiver submetido à mãe como quando uma rainha soberana desposa um de seus súditos o filho fica submetido à mãe visto que o pai também a ela está submetido Se um homem e uma mulher monarcas de dois reinos diferentes tiverem um filho e fizerem um contrato estabelecendo quem deverá ter domínio sobre ele o direito de domínio será conforme a esse contrato Se não houver contrato o domínio será conforme ao domínio do lugar onde o filho reside Porque o soberano de cada país tem direito de domínio sobre todos quantos lá residem Aquele que tem domínio sobre um filho tem também domínio sobre os filhos desse filho e sobre os filhos de seus filhos Porque aquele que tem domínio sobre a pessoa de alguém também tem domínio sobre tudo quanto lhe pertence sem o que o domínio seria apenas um título desprovido de quaisquer efeitos Com o direito de sucessão ao domínio paterno passase o mesmo que com o direito de sucessão à monarquia sobre o qual já disse o suficiente no capítulo anterior O domínio adquirido por conquista ou vitória militar é aquele que alguns autores chamam despótico de despótes que significa senhor ou amo e é o domínio do senhor sobre seu servo O domínio é adquirido pelo vencedor quando 0 vencido para evitar o iminente golpe de morte promete por palavras expressas ou por outros suficientes sinais de sua vontade que enquanto sua vida e a liberdade de seu corpo lho permitirem o vencedor terá direito a seu uso a seu belprazer Após realizado esse pacto o vencido torna se servo mas não antes Porque pela palavra servo quer seja derivada de servire servir ou de servare salvar disputa que deixo para os gramáticos não se entende um cativo que é guardado na prisão ou a ferros até que o proprietário daquele que o tomou ou o comprou de alguém que o fez decida o que vai fazer com ele porque esses homens geralmente chamados escravos não têm obrigação alguma e podem sem injustiça destruir suas cadeias ou prisão e matar ou levar cativo seu senhor por servo entendese alguém a quem se permite a liberdade corpórea e que após prometer não fugir nem praticar violência contra seu senhor recebe a confiança deste último Portanto não é a vitória que confere o direito de domínio sobre o vencido mas o pacto celebrado por este E ele não adquire a obrigação por ter sido conquistado isto é batido tomado ou posto em fuga mas por ter aparecido e terse submetido ao vencedor E o vencedor não é obrigado pela rendição do inimigo se não lhe tiver prometido a vida a poupálo por terse entregue a sua discrição o que só obriga o vencedor na medida em que este em sua própria discrição considerar bom E o que os homens fazem quando pedem quartel como agora se lhe chama e a que os gregos chamavam Zogría tomar com vida é escapar pela submissão à fúria presente do vencedor e chegara um acordo para salvar a vida mediante resgate ou prestação de serviços Portanto aquele a quem é dado quartel não recebe garantia de vida mas apenas um adiamento até uma deliberação posterior pois não se trata de entregarse em troca de uma condição de vida mas de entregarse à discrição Sua vida só se encontra em segurança e sua servidão só se torna uma obrigação depois de o vencedor lhe ter outorgado sua liberdade corpórea Porque os escravos que trabalham nas prisões ou amarrados por cadeias não o fazem por dever mas para evitar a crueldade de seus guardas 0 senhor do servo é também senhor de tudo quanto este tem e pode exigir seu uso Isto é de seus bens de seu trabalho de seus servos e seus filhos tantas vezes quantas lhe aprouver Porque ele recebeu a vida de seu senhor mediante o pacto de obediência isto é o reconhecimento e autorização de tudo o que o senhor vier a fazer E se acaso o senhor recusandoo o matar ou o puser a ferros ou de outra maneira o castigar por sua desobediência ele próprio será o autor dessas ações e não pode acusálo de injúria Em resumo os direitos e conseqüências tanto do domínio paterno quanto do despótico são exatamente os mesmos que os do soberano por instituição e pelas mesmas razões razões que foram apresentadas no capítulo anterior Assim no caso de alguém que é monarca de nações diferentes tendo numa recebido a soberania por instituição do povo reunido e noutra por conquista isto é por submissão de cada indivíduo para evitar a morte ou as cadeias nesse caso exigir de uma nação mais do que da outra por causa do título de conquista por ser uma nação conquistada é um ato de ignorância dos direitos da soberania Porque ele é igualmente soberano absoluto de ambas as nações caso contrário não haveria soberania alguma e cada um poderia legitimamente protegerse a si mesmo conforme pudesse com sua própria espada o que é uma situação de guerra Tornase assim patente que uma grande família se não fizer parte de nenhum Estado é em si mesma quanto aos direitos de soberania uma pequena monarquia E isto quer a família seja formada por um homem e seus filhos ou por um homem e seus servos e por um homem e seus filhos e servos em conjunto dos quais o pai ou senhor é o soberano Apesar disso uma família não é propriamente um Estado a não ser que graças a seu número ou a outras circunstâncias tenha poder suficiente para só ser subjugada pelos azares da guerra Porque quando um certo número de pessoas manifestamente é demasiado fraco para se defender em conjunto cada uma pode usar sua própria razão nos momentos de perigo para salvar sua vida seja pela fuga ou pela sujeição ao inimigo conforme achar melhor Da mesma maneira que uma pequena companhia de soldados surpreendida por um exército pode baixar as armas e pedir quartel ou então fugir em vez de ser passada pela espada E isto é o bastante relativamente ao que eu estabeleci por especulação e dedução sobre os direitos soberanos a partir da natureza necessidades e desígnios dos homens na criação dos Estados e na submissão a monarcas ou assembléias a quem outorgam poder suficiente para sua proteção Examinemos agora o que as Escrituras ensinam relativamente às mesmas questões Assim disseram a Moisés os filhos de Israel 4 Falanos e ouvirteemos mas que Deus não nos fale senão morreremos Isto implica uma obediência absoluta a Moisés A respeito do direito dos reis disse o próprio Deus pela boca de Samuel 5 Este será o direito do rei que sobre vós reinará Ele tomará vossos filhos e os fará guiar seus carros e ser seus cavaleiros e correr na frente de seus carros e colher sua colheita e fazer suas máquinas de guerra e instrumentos de seus carros e levará vossas filhas para fazerem perfumes para serem suas cozinheiras e padeiras Ele tomará vossos campos vossos vinhedos e vossos olivais e dálosá a seus servos Tomará as primícias de vosso grão e de vosso vinho e dálasá a seus camareiros e a seus outros servos Tomará vossos servos e vossas criadas e a flor de vossa juventude para empregálos em seus negócios Tomará as primícias de vossos rebanhos e vós sereis seus servos Tratase aqui de um poder absoluto resumido nas últimas palavras vós sereis seus servos Por outro lado quando o povo soube qual o poder que seu rei iria ter apesar de tudo consentiu e assim disse 6 Nós seremos como todas as outras nações e nosso rei julgará nossas causas e irá à nossa frente para comandarnos em nossas guerras Aqui se encontra confirmado o direito que têm os soberanos tanto 0 da milícia quanto todo poder judicial direito que encerra o poder mais absoluto que a um homem é possível transferir a outro Por outro lado foi a seguinte a oração do rei Salomão a Deus Dá a teu servo entendimento para julgar teu povo e para distinguir entre o bem e o mal Competia portanto ao soberano ser juiz e prescrever as regras para distinguir entre o bem e o mal regras estas que são as leis por conseqüência é nele que reside o poder legislativo Saul pôs a prêmio a vida de Davi mas este quando estava em seu poder dar a morte a Saul e seus servos se aprestavam a fazêlo impediuos dizendo Deus não permita que eu cometa tal ação contra meu senhor o ungido de Deus Sobre a obediência dos servos disse São Paulo Servos obedecei a vosso senhor em todas as coisas E também Filhos obedecei a vossos pais em todas as coisas Há obediência simples naqueles que estão sujeitos ao domínio paterno ou despótico Por outro lado Os escribas e fariseus estão sentados na cadeira de Moisés portanto tudo o que vos mandarem observar observaio e fazeio E São Paulo 2 Advertios para que se submetam a príncipes e outras pessoas de autoridade e que lhes obedeçam Esta obediência também é simples Por último mesmo nosso Salvador reconhece que os homens devem pagar os impostos exigidos pelos reis quando diz Dai a César o que é de César e ele próprio pagava esses impostos E reconhece também que a palavra do rei é suficiente para tirar qualquer coisa de qualquer súdito quando tal é necessário e que o rei é o juiz dessa necessidade porque ele próprio como rei dos judeus ordenou aos discípulos que tomassem a burra e seu burrinho para leválo a Jerusalém dizendo 3 Ide à aldeia que fica diante de vós e lá encontrareis uma burra amarrada e com ela seu burrinho desamarraimos e trazeimos E se alguém vos perguntar o que pretendeis dizei que o Senhor tem necessidade deles e deixarvosão partir Ninguém perguntará se essa necessidade constitui um direito suficiente nem se ele é juiz dessa necessidade mas simplesmente acatarão a vontade do Senhor A estas citações pode ser acrescentada outra do Gênese Vós sereis como deuses conhecendo o bem e o mal E o versículo 11 Quem vos disse que estáveis nus Haveis comido da árvore da qual vos ordenei que não comêsseis Porque sendo o conhecimento ou juízo do bem e do mal proibido sob o símbolo do fruto da árvore do conhecimento como prova a que foi submetida a obediência de Adão o diabo a fim de excitar a ambição da mulher a quem o fruto já parecia belo disselhe que se o provassem seriam como deuses conhecendo o bem e o mal E depois de ambos terem comido efetivamente assumiram o oficio de Deus que é o juízo do bem e do mal mas não adquiriram qualquer nova aptidão para distinguir corretamente entre eles E embora se diga que depois de comerem viram que estavam nus nunca ninguém interpretou essa passagem como querendo dizer que antes eles eram cegos e não viam sua própria pele o significado é claramente que foi essa a primeira vez que julgaram sua nudez na qual foi a vontade de Deus criálos como inconveniente e sentindose envergonhados tacitamente censuraram o próprio Deus Ao que Deus disse Haveis comido etc como se quisesse dizer Vós que me deveis obediência pretendeis atribuirvos a capacidade de julgar meus mandamentos Pelo que fica claramente indicado embora alegoricamente que os mandamentos daqueles que têm o direito de mandar não devem ser censurados nem discutidos por seus súditos De modo que aparece bem claro a meu entendimento tanto a partir da razão quanto das Escrituras que o poder soberano quer resida num homem como numa monarquia quer numa assembléia como nos Estados populares e aristocráticos é o maior que é possível imaginar que os homens possam criar E embora seja possível imaginar muitas más conseqüências de um poder tão ilimitado apesar disso as conseqüências da falta dele isto é a guerra perpétua de todos os homens com seus vizinhos são muito piores Nesta vida a condição do homem jamais poderá deixar de ter alguns inconvenientes mas num Estado jamais se verifica qualquer grande inconveniente a não ser os que derivam da desobediência dos súditos e o rompimento daqueles pactos a que o Estado deve sua existência E quem quer que considere demasiado grande o poder soberano procurará fazer que ele se torne menor e para tal precisará submeterse a um poder capaz de limitá lo quer dizer a um poder ainda maior A maior objeção é a da prática ou seja a pergunta sobre onde e quando um tal poder foi jamais reconhecido pelos súditos Mas perante isso pode perguntarse quando e onde já existiu um reino que tenha permanecido muito tempo livre de sedições e guerras civis Naquelas nações cujos Estados tiveram vida longa e só foram destruídos pela guerra exterior os súditos jamais discutiram o poder soberano E seja como for um argumento tirado da prática de homens que nunca conseguiram chegar ao fundo para com reta razão pesar as causas e natureza dos Estados e que sofreram diariamente aquelas misérias que derivam da ignorância dessas causas e dessa natureza é um argumento sem validade Porque mesmo que em todos os lugares do mundo os homens costumassem construir sobre a areia as fundações de suas causas daí não seria possível inferir que é assim que deve ser feito 0 talento de fazer e conservar Estados consiste em certas regras tal como a aritmética e a geometria e não como o jogo do tênis apenas na prática Regras essas que nem os homens pobres têm lazer nem os homens que dispõe de lazer tiveram até agora curiosidade ou método suficientes para descobrir CAPÍTULO XXI Da liberdade dos súditos Liberdade significa em sentido próprio a ausência de oposição entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento e não se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais Porque de tudo o que estiver amarrado ou envolvido de modo a não poder moverse senão dentro de um certo espaço sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo dizemos que não tem liberdade de ir mais além E o mesmo se passa com todas as criaturas vivas quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou cadeias e também das águas quando são contidas por diques ou canais e se assim não fosse se espalhariam por um espaço maior costumamos dizer que não têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses impedimentos externos Mas quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não costumamos dizer que ela não tem liberdade mas que lhe falta o poder de se mover como quando uma pedra está parada ou um homem se encontra amarrado ao leito pela doença Conformemente a este significado próprio e geralmente aceite da palavra um homem livre é aquele que naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer Mas sempre que as palavras livre e liberdade são aplicadas a qualquer coisa que não é um corpo há um abuso de linguagem porque o que não se encontra sujeito ao movimento não se encontra sujeito a impedimentos Portanto quando se diz por exemplo que o caminho está livre não se está indicando qualquer liberdade do caminho e sim daqueles que por ele caminham sem parar E quando dizemos que uma doação é livre não se está indicando qualquer liberdade da doação e sim do doador que não é obrigado a fazêla por qualquer lei ou pacto Assim quando falamos livremente não se trata da liberdade da voz ou da pronúncia e sim do homem ao qual nenhuma lei obrigou a falar de maneira diferente da que usou Por último do uso da expressão livre arbítrio não é possível inferir qualquer liberdade da vontade do desejo ou da inclinação mas apenas a liberdade do homem a qual consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade desejo ou inclinação de fazer O medo e a liberdade são compatíveis como quando alguém atira seus bens ao mar com medo de fazer afundar seu barco e apesar disso o faz por vontade própria podendo recusar fazêlo se quiser tratando se portanto da ação de alguém que é livre Assim também às vezes só se pagam as dívidas com medo de ser preso o que como ninguém impede a abstenção do ato constitui o ato de uma pessoa em liberdade E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no Estado por medo da lei são ações que seus autores têm a liberdade de não praticar A liberdade e a necessidade são compatíveis tal como as águas não tinham apenas a liberdade mas também a necessidade de descer pelo canal assim também as ações que os homens voluntariamente praticam dado que derivam de sua vontade derivam da liberdade ao mesmo tempo que dado que os atos da vontade de todo homem assim como todo desejo e inclinação derivam de alguma causa e essa de uma outra causa numa cadeia contínua cujo primeiro elo está na mão de Deus a primeira de todas as causas elas derivam também da necessidade De modo tal que para quem pudesse ver a conexão dessas causas a necessidade de todas as ações voluntárias dos homens pareceria manifesta Portanto Deus que vê e dispõe todas as coisas vê também que a liberdade que o homem tem de fazer o que quer é acompanhada pela necessidade de fazer aquilo que Deus quer e nem mais nem menos do que isso Porque embora os homens possam fazer muitas coisas que Deus não ordenou e das quais portanto não é autor não lhes é possível ter paixão ou apetite por nada de cujo apetite a vontade de Deus não seja a causa E se acaso sua vontade não garantisse a necessidade da vontade do homem e consequentemente de tudo o que depende da vontade do homem a liberdade dos homens seria uma contradição e um impedimento à onipotência e liberdade de Deus E isto é suficiente quanto ao assunto em pauta sobre aquela liberdade natural que é a única propriamente chamada liberdade Mas tal como os homens tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria conservação criaram um homem artificial ao qual chamamos Estado assim também criaram cadeias artificiais chamadas leis civis as quais eles mesmos mediante pactos mútuos prenderam numa das pontas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano e na outra ponta a seus próprios ouvidos Embora esses laços por sua própria natureza sejam fracos é no entanto possível mantêlos devido ao perigo se não pela dificuldade de rompêlos É unicamente em relação a esses laços que vou agora falar da liberdade dos súditos Dado que em nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens o que é uma coisa impossível seguese necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir como o mais favorável a seu interesse Porque tomando a liberdade em seu sentido próprio como liberdade corpórea isto é como liberdade das cadeias e prisões tornase inteiramente absurdo que os homens clamem como o fazem por uma liberdade de que tão manifestamente desfrutam Por outro lado entendendo a liberdade no sentido de isenção das leis não é menos absurdo que os homens exijam como fazem aquela liberdade mediante a qual todos os outros homens podem tornarse senhores de suas vidas Apesar do absurdo em que consiste é isto que eles pedem pois ignoram que as leis não têm poder algum para protegêlos se não houver uma espada nas mãos de um homem ou homens encarregados de pôr as leis em execução Portanto a liberdade dos súditos está apenas naquelas coisas que ao regular suas ações o soberano permitiu como a liberdade de comprar e vender ou de outro modo realizar contratos mútuos de cada um escolher sua residência sua alimentação sua profissão e instruir seus filhos conforme achar melhor e coisas semelhantes Não devemos todavia concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano de vida e de morte Porque já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súdito pode sob qualquer pretexto ser propriamente chamado injustiça ou injúria Porque cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo soberano de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for a não ser na medida em que ele próprio é súdito de Deus e consequentemente obrigado a respeitar as leis de natureza Portanto pode ocorrer e freqüentemente ocorre nos Estados que um súdito seja condenado à morte por ordem do poder soberano e apesar disso nenhum deles ter feito mal ao outro Como quando Jefte levou sua filha a ser sacrificada caso este assim como todos os casos semelhantes em que quem assim morreu tinha liberdade para praticar a ação pela qual não obstante foi sem injúria condenado à morte O mesmo vale também para um príncipe soberano que leve à morte um súdito inocente Embora o ato seja contrário à lei de natureza por ser contrário à eqüidade como foi o caso de Davi ao matar Urias contudo não foi uma injúria feita a Urias e sim a Deus Não a Urias porque o direito de fazer o que lhe aprouvesse lhe foi dado pelo próprio Urias E a Deus porque Davi era súdito de Deus e estava proibido de toda iniqüidade pela lei de natureza Distinção que o próprio Davi confirmou de maneira evidente quando se arrependeu do fato e disse Somente contra vós pequei Da mesma maneira o povo de Atenas quando baniu por dez anos o homem mais poderoso do Estado não considerou haver cometido qualquer injustiça e contudo nunca procurou saber que crime ele havia cometido mas apenas o mal que poderia fazer Mais ordenaram o banimento daqueles que não conheciam e cada cidadão levando para a praça do mercado sua concha de ostra tendo escrito o nome daquele a quem desejava banir sem realmente chegar a acusálo umas vezes bania um Aristides por sua reputação de Justiça e outras vezes um ridículo bufão como Hipérbolo apenas como gracejo Contudo é impossível dizer que o povo soberano de Atenas carecia de direito para banilos ou que a cada ateniense faltava a liberdade de gracejar ou de ser justo A liberdade à qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos assim como nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política não é a liberdade dos indivíduos mas a liberdade do Estado a qual é a mesma que todo homem deveria ter se não houvesse leis civis nem qualquer espécie de Estado E os efeitos daí decorrentes também são os mesmos Porque tal como entre homens sem senhor existe uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho sem que haja herança a transmitir ao filho nem a esperar do pai nem propriedade de bens e de terras nem segurança mas uma plena e absoluta liberdade de cada indivíduo assim também nos Estados que não dependem uns dos outros cada Estado não cada indivíduo tem absoluta liberdade de fazer tudo o que considerar isto é aquilo que o homem ou assembléia que os representa considerar mais favorável a seus interesses Além disso vivem numa condição de guerra perpétua e sempre na iminência da batalha com as fronteiras em armas e canhões apontados contra seus vizinhos a toda a volta Os atenienses e romanos eram livres quer dizer eram Estados livres Não que qualquer indivíduo tivesse a liberdade de resistir a seu próprio representante seu representante é que tinha a liberdade de resistir a um outro povo ou de invadilo Até hoje se encontra escrita em grandes letras nas torres da cidade de Lucca a palavra libertas mas ninguém pode daí inferir que qualquer indivíduo lá possui maior liberdade ou imunidade em relação ao serviço do Estado do que em Constantinopla Quer o Estado seja monárquico quer seja popular a liberdade é sempre a mesma Mas é coisa fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e por falta de capacidade de distinguir tomarem por herança pessoal e direito inato seu aquilo que é apenas direito do Estado E quando o mesmo erro é confirmado pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto não é de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo Nestas partes ocidentais do mundo costumamos receber nossas opiniões relativas à instituição e aos direitos do Estado de Aristóteles Cícero e outros autores gregos e romanos que viviam em Estados populares e em vez de fazerem derivar esses direitos dos princípios da natureza os transcreviam para seus livros a partir da prática de seus próprios Estados que eram populares Tal como os gramáticos descrevem as regras da linguagem a partir da prática do tempo ou as regras da poesia a partir dos poemas de Homero e Virgílio E como aos atenienses se ensinava para neles impedir o desejo de mudar de governo que eram homens livres e que todos os que viviam em monarquia eram escravos Aristóteles escreveu em sua Política livro 6 cap 2 Na democracia deve suporse a liberdade porque é geralmente reconhecido que ninguém é livre em qualquer outra forma de governo Tal como Aristóteles também Cícero e outros autores baseavam sua doutrina civil nas opiniões dos romanos que eram ensinados a odiar a monarquia primeiro por aqueles que depuseram o soberano e passaram a partilhar entre si a soberania de Roma e depois por seus sucessores Através da leitura desses autores gregos e latinos os homens passaram desde a infância a adquirir o hábito sob uma falsa aparência de liberdade de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre os atos de seus soberanos E por sua vez o de controlar esses controladores com uma imensa efusão de sangue E creio que em verdade posso afirmar que jamais uma coisa foi paga tão caro como estas partes ocidentais pagaram o aprendizado das línguas grega e latina Passando agora concretamente à verdadeira liberdade dos súditos ou seja quais são as coisas que embora ordenadas pelo soberano não obstante eles podem sem injustiça recusarse a fazer é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos um Estado Ou então o que é a mesma coisa qual a liberdade que a nós mesmos negamos ao reconhecer todas as ações sem exceção do homem ou assembléia de quem fazemos nosso soberano Porque de nosso ato de submissão fazem parte tanto nossa obrigação quanto nossa liberdade as quais portanto devem ser inferidas por argumentos daí tirados pois ninguém tem qualquer obrigação que não derive de algum de seus próprios atos visto que todos os homens são por natureza igualmente livres Dado que tais argumentos terão que ser tirados ou das palavras expressas eu autorizo todas as suas ações ou da intenção daquele que se submete a seu poder intenção que deve ser entendida como o fim devido ao qual assim se submeteu a obrigação e a liberdade do súdito deve ser derivada ou daquelas palavras ou outras equivalentes ou do fim da instituição da soberania a saber a paz dos súditos entre si e sua defesa contra um inimigo comum Portanto em primeiro lugar dado que a soberania por instituição assenta num pacto entre cada um e todos os outros e a soberania por aquisição em pactos entre o vencido e o vencedor ou entre o filho e o pai tornase evidente que todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto Já no capítulo 14 mostrei que os pactos no sentido de cada um absterse de defender seu próprio corpo são nulos Portanto Se o soberano ordenar a alguém mesmo que justamente condenado que se mate se fira ou se mutile a si mesmo ou que não resista aos que o atacarem ou que se abstenha de usar os alimentos o ar os medicamentos ou qualquer outra coisa sem a qual não poderá viver esse alguém tem a liberdade de desobedecer Se alguém for interrogado pelo soberano ou por sua autoridade relativamente a um crime que cometeu não é obrigado a não ser que receba garantia de perdão a confessálo porque ninguém conforme mostrei no mesmo capítulo pode ser obrigado por um pacto a recusarse a si próprio Por outro lado o consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo ou assumo como minhas todas as suas ações nas quais não há qualquer espécie de restrição a sua antiga liberdade natural Porque ao permitirlhe que me mate não fico obrigado a matarme quando ele mo ordena Uma coisa é dizer matame ou a meu companheiro se te aprouver e outra coisa é dizer matarmeei ou a meu companheiro Seguese portanto que Ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matarse a si mesmo ou a outrem Por conseqüência que a obrigação que às vezes se pode ter por ordem do soberano de executar qualquer missão perigosa ou desonrosa não depende das palavras de nossa submissão mas da intenção a qual deve ser entendida como seu fim Portanto quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania não há liberdade de recusar mas caso contrário há essa liberdade Por esta razão um soldado a quem se ordene combater o inimigo embora seu soberano tenha suficiente direito de punilo com a morte em caso de recusa pode não obstante em muitos casos recusar sem injustiça como quando se faz substituir por um soldado suficiente em seu lugar caso este em que não está desertando do serviço do Estado E deve também darse lugar ao temor natural não só o das mulheres das quais não se espera o cumprimento de tão perigoso dever mas também o dos homens de coragem feminina Quando dois exércitos combatem há sempre os que fogem de um dos lados ou de ambos mas quando não o fazem por traição e sim por medo não se considera que o fazem injustamente mas desonrosamente Pela mesma razão evitar o combate não é injustiça é cobardia Mas aquele que se alista como soldado ou toma dinheiro público emprestado perde a desculpa de uma natureza timorata e fica obrigado não apenas a ir para o combate mas também a dele não fugir sem licença de seu comandante E quando a defesa do Estado exige o concurso simultâneo de todos os que são capazes de pegar em armas todos têm essa obrigação porque de outro modo teria sido em vão a instituição do Estado ao qual não têm o propósito ou a coragem de defender Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado em defesa de outrem seja culpado ou inocente Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para protegernos sendo portanto destrutiva da própria essência do Estado Mas caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano ou tenha cometido algum crime capital pelo qual cada um deles pode esperar a morte terão eles ou não a liberdade de se unirem e se ajudarem e defenderem uns aos outros Certamente que a têm porque se limitam a defender suas vidas o que tanto o culpado como o inocente podem fazer Sem dúvida havia injustiça na primeira falta a seu dever mas o ato de pegar em armas subseqüente a essa primeira falta embora seja para manter o que fizeram não constitui um novo ato injusto E se for apenas para defender suas pessoas de modo algum será injusto Mas a oferta de perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria e torna ilegítima sua insistência em ajudar ou defender os restantes Quanto às outras liberdades dependem do silêncio da lei Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir conformememte a sua discrição Portanto essa liberdade em alguns lugares é maior e noutros menor e em algumas épocas maior e noutras menor conforme os que detêm a soberania consideram mais conveniente Por exemplo houve um tempo na Inglaterra em que um homem podia entrar em suas próprias terras desapossando pela força quem ilegitimamente delas se houvesse apossado Mas posteriormente essa liberdade de entrada à força foi abolida por um estatuto que o rei promulgou no Parlamento E em alguns lugares do mundo os homens têm a liberdade de possuir muitas esposas sendo que em outros lugares tal liberdade não é permitida Se um súdito tem uma controvérsia com seu soberano quanto a uma dívida ou um direito de posse de terras ou bens ou quanto a qualquer serviço exigido de suas mãos ou quanto a qualquer penalidade corporal ou pecuniária baseandose em qualquer lei anterior tem a mesma liberdade de defender seu direito como se fosse contra outro súdito e perante os juízes que o soberano houver designado Dado que o soberano exige por força de uma lei anterior e não em virtude de seu poder declara por isso mesmo não estar exigindo mais do que segundo essa lei é devido Portanto a defesa não é contrária à vontade do soberano e em conseqüência disso o súdito tem o direito de pedir que sua causa seja julgada e decidida de acordo com a lei Mas se o soberano pedir ou tomar alguma coisa em nome de seu poder nesse caso deixa de haver lugar para qualquer ação da lei pois tudo 0 que ele faz em virtude de seu poder é feito pela autoridade de cada súdito e em conseqüência quem mover uma ação contra o soberano estará movendoa contra si mesmo Se um monarca ou uma assembléia soberana outorgarem uma liberdade a todos ou a qualquer dos súditos liberdade essa que lhe faz perder a capacidade de prover a sua segurança a outorga é nula a não ser que diretamente renuncie ou transfira a soberania para outrem Porque dado que poderia ter abertamente se tal fosse sua vontade e em termos claros renunciado ou transferido a soberania e não o fez deve entender se que não era essa sua vontade e que a outorga teve origem na ignorância da incompatibilidade entre uma tal liberdade e o poder soberano Portanto a soberania continua em suas mãos assim como todos os poderes que são necessários para seu exercício como o da paz e da guerra e o poder judicial e os de designar funcionários e conselheiros e o de levantar impostos e os restantes referidos no capítulo 18 Entendese que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegêlos Porque o direito que por natureza os homens têm de defenderse a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum A soberania é a alma do Estado e uma vez separada do corpo os membros deixam de receber dela seu movimento O fim da obediência é a proteção e seja onde for que um homem a veja quer em sua própria espada quer na de um outro a natureza manda que a ela obedeça e se esforce por conservála Embora a soberania seja imortal na intenção daqueles que a criaram não apenas ela se encontra por sua própria natureza sujeita à morte violenta através da guerra exterior mas encerra também em si mesma devido à ignorância e às paixões dos homens e a partir da própria instituição grande número de sementes de mortalidade natural através da discórdia intestina Se um súdito for feito prisioneiro de guerra e ou sua pessoa ou seus meios de vida se encontrarem entregues à guarda do inimigo e se sua vida e sua liberdade corpórea lhe forem oferecidas com a condição de se tornar súdito do vencedor ele tem a liberdade de aceitar essa condição E depois de a ter aceite passa a ser súdito de quem o aprisionou pois era essa a única maneira de se preservar O caso será o mesmo se ele ficar retido nos mesmos termos num país estrangeiro Mas se um homem for mantido na prisão ou a ferros ou se não lhe for confiada a liberdade de seu corpo nesse caso não pode dizerse que esteja obrigado à sujeição por um pacto podendo portanto se for capaz fugir por quaisquer meios que sejam Se um monarca renunciar à soberania tanto para si mesmo como para seus herdeiros os súditos voltam à absoluta liberdade da natureza Porque embora a natureza possa declarar quem são seus filhos e quem é o parente mais próximo continua dependendo de sua própria vontade conforme se disse no capítulo anterior quem deverá ser o herdeiro Assim se ele não tiver herdeiro não há mais soberania nem sujeição O caso é o mesmo se ele morrer sem parentes conhecidos e sem declarar quem deverá ser o herdeiro Porque nesse caso não pode ser conhecido herdeiro algum e por conseqüência não pode ser devida qualquer sujeição Se o soberano banir um súdito durante o banimento ele não será súdito Mas quem tiver sido enviado com uma mensagem ou tiver obtido licença para viajar continua a ser súdito Contudo éo por contrato entre soberanos não em virtude do pacto de sujeição Pois quem quer que penetre nos domínios de outrem passa a estar sujeito a todas as leis aí vigorantes a não ser que tenha um privilégio por acordo entre os soberanos ou por licença especial Se um monarca vencido na guerra se fizer súdito do vencedor seus súditos ficam livres da obrigação anterior e passam a ter obrigação para com o vencedor Mas se ele for feito prisioneiro ou não dispuser da liberdade de seu próprio corpo nesse caso não se entende que ele tenha renunciado ao direito de soberania e em conseqüência seus súditos são obrigados a prestar obediência aos magistrados que anteriormente tiverem sido nomeados para governar não em nome deles mesmos mas no do soberano Porque se seu direito permanece o problema diz respeito apenas à administração isto é aos magistrados e funcionários e se a ele faltarem meios para nomeálos deve suporse que aprova aqueles que ele próprio anteriormente nomeou CAPÍTULO XXII Dos sistemas sujeitos políticos e privados Depois de ter falado da geração forma e poder de um Estado cabe agora falar das partes que o constituem E em primeiro lugar dos sistemas que se parecem com as partes semelhantes ou músculos de um corpo natural Por sistema entendo qualquer número de homens unidos por um interesse ou um negócio De entre os sistemas alguns são regulares e outros são irregulares Os regulares são aqueles onde um homem ou uma assembléia é instituído como representante de todo o conjunto Todos os outros são irregulares Dos regulares alguns são absolutos e independentes sujeitos apenas a seu próprio representante e só são deste tipo os Estados dos quais já falei nos cinco últimos capítulos Outros são dependentes quer dizer subordinados a um poder soberano do qual todos incluindo seu representante são súditos Dos sistemas subordinados uns são políticos e outros são privados Os políticos também chamados corpos políticos ou pessoas jurídicas são os que são criados pelo poder soberano do Estado Os privados são os que são constituídos pelos próprios súditos entre si ou pela autoridade de um estrangeiro Porque a autoridade derivada de um poder estrangeiro dentro do domínio de um outro neste domínio não é pública mas privada Dos sistemas privados alguns são legítimos e outros são ilegítimos São legítimos todos os que são permitidos pelo Estado e todos os outros são ilegítimos Os sistemas irregulares são aqueles que não tendo representante consistem apenas numa reunião de pessoas se não forem proibidos pelo Estado nem forem constituídos com malévola intenção como a influência de pessoas nos mercados nas feiras ou para quaisquer outros fins inofensivos são legítimos Mas se a intenção for malévola ou então caso o número seja considerável se for desconhecida nesse caso são ilegítimos Nos corpos políticos o poder do representante é sempre limitado e quem estabelece seus limites é o poder soberano Porque o poder ilimitado é soberania absoluta E em todos os Estados o soberano é o absoluto representante de todos os seus súditos portanto nenhum outro pode ser representante de qualquer parte deles a não ser na medida em que ele o permita E permitir que um corpo político de súditos tenha um representante absoluto para todos os efeitos e fins seria abandonar o governo de uma parte idêntica do Estado e dividir o domínio contrariamente aos interesses da paz e da defesa o que é inconcebível que o soberano possa fazer por qualquer outorga que não os dispense clara e diretamente de sua sujeição Porque as conseqüências das palavras não são sinais de sua vontade quando outras conseqüências são sinais do contrário são sinais de erro e de falta de cálculo coisa a que todos os homens estão sujeitos Os limites do poder que é concedido ao representante de um corpo político dependem de duas coisas Uma são os escritos ou cartas que recebe do soberano a outra são as leis do Estado Porque embora na instituição ou aquisição de um Estado independente não haja necessidade dessas cartas dado que nesse caso o poder do representante tem apenas os limites estabelecidos pela lei de natureza que não é escrita nos corpos subordinados são tais as diversidades de limitação que se tornam necessárias relativamente a suas funções tempos e lugares que não poderiam ser lembradas sem essas cartas e não poderiam ser conhecidas se essas cartas não fossem patentes de forma a lhes poderem ser lidas e além disso seladas e autenticadas com os selos ou outros sinais permanentes da autoridade soberana Visto que essa limitação nem sempre é fácil ou talvez possível de ser descrita numa carta é preciso que as leis do Estado comuns a todos os súditos determinem o que é legítimo aos representantes fazer em todos os casos que se encontrem omissos nas próprias cartas Portanto Num corpo político se o representante for um homem qualquer coisa que faça na pessoa do corpo que não seja permitida por suas cartas ou pelas leis é seu próprio ato e não o ato do corpo ou de qualquer dos membros deste além de si mesmo Porque para além dos limites estabelecidos por suas cartas e pelas leis ele não representa a pessoa de ninguém a não ser a de si próprio Mas aquilo que ele fizer conformemente a elas será o ato de todos pois do ato do soberano todos são autores dado que ele é seu representante ilimitado E o ato do representante que não se afastar das cartas do soberano será um ato do soberano logo cada um dos membros do corpo é seu autor Mas se o representante for uma assembléia qualquer coisa que essa assembléia decrete não permitida pelas cartas ou pelas leis será o ato da assembléia ou corpo político e o ato de cada um daqueles por cujo voto o decreto foi decidido Mas não será o ato de cada um dos que estando presentes votaram contra nem de qualquer um dos ausentes a não ser que tenham votado por procuração É o ato da assembléia porque foi votado pela maioria e se for um crime a assembléia pode ser punida na medida em que de tal é passível como por dissolução ou cassação de suas cartas o que é mortal para esses corpos artificiais e fictícios ou então por multa pecuniária se a assembléia tiver um capital comum do qual nenhum dos membros inocentes seja proprietário Porque dos castigos corporais a natureza isentou todos os corpos políticos Mas aqueles que não deram seu voto são inocentes porque a assembléia não pode representar ninguém em coisas que não sejam permitidas pelas cartas e em conseqüência disso não são envolvidos no voto geral Se a pessoa do corpo político for um homem e este pedir dinheiro empresado a um estranho isto é a alguém que não pertença ao mesmo corpo dado ser desnecessário que as cartas limitem os empréstimos limitação esta que já é feita pelas inclinações naturais dos homens a dívida é do representante Porque se de suas cartas recebesse autoridade para fazer os membros pagar sua dívida teria também em conseqüência soberania sobre eles E nesse caso a outorga seria nula enquanto derivada de um erro freqüentemente verificado na natureza humana e sinal insuficiente da vontade do outorgante E se for permitida por ele é porque ele é o soberano representante e deixa de estar abrangido pela presente questão que diz respeito apenas aos corpos subordinados Portanto nenhum membro a não ser o próprio representante tem obrigação de pagar a dívida assim contraída pois aquele que emprestou enquanto estranho às cartas e à qualificação do corpo entendeu como seus devedores apenas os que nessa qualidade se comprometeram E dado que só o representante e mais ninguém pode assumir tal compromisso é ele o único devedor portanto é ele quem deve pagar tirando o dinheiro do capital comum se o houver ou de suas próprias propriedades se não houver esse capital Se o representante contrair uma dívida através de contrato ou de multa o caso será o mesmo Mas quando o representante é uma assembléia e o credor é um estranho apenas são responsáveis pela dívida os que deram voto favorável à contração do empréstimo ou ao contrato que originou a dívida ou ao fato devido ao qual a multa foi imposta Porque cada um dos que assim votaram se comprometeu pessoalmente a pagar visto que quem for autor de um pedido de empréstimo ficará obrigado ao pagamento inclusive do total da dívida embora fique dela dispensado no caso de alguém a pagar Mas se o credor for um membro da assembléia é apenas esta que se encontra obrigada a pagar com o capital comum se o houver Havendo liberdade de voto se o credor votou que se fizesse o empréstimo votou que ele fosse pago Mas se votou que não se fizesse o empréstimo ou estava ausente apesar disso pelo próprio fato de emprestar votou pelo empréstimo contrariando seu voto anterior e fica obrigado pelo último tornandose ao mesmo tempo devedor e credor Não pode portanto exigir o pagamento a nenhum indivíduo em particular mas apenas ao tesouro comum e se tal inexistir não há solução nem tem ele razão de queixa a não ser contra si mesmo pois tinha conhecimento dos atos da assembléia e de suas possibilidades de pagamento e sem ser forçado não obstante aceitou num ato de insanidade emprestar seu dinheiro Fica assim manifesto que nos corpos políticos subordinados e sujeitos ao poder soberano por vezes se torna não apenas legítimo mas também útil que um indivíduo abertamente proteste contra os decretos da assembléia representativa fazendo que sua discordância seja registrada ou testemunhada Caso contrário esse indivíduo poderia ser obrigado a pagar dívidas contraídas ou tornarse responsável por crimes cometidos por outrem Mas numa assembléia soberana essa liberdade desaparece tanto porque quem aí protesta ao mesmo tempo nega a soberania da assembléia quanto porque tudo o que é ordenado pelo poder soberano é perante o súdito embora nem sempre aos olhos de Deus justificado pela própria ordem pois de tal ordem um dos súditos é autor A variedade dos corpos políticos é quase infinita pois não se distinguem apenas em função dos diversos tipos de atividade para que são constituídos deste ponto de vista há uma indizível diversidade mas também em função dos tempos lugares e números sujeitos a grande número de limitações De entre as atividades algumas dizem respeito ao governo Primeiro o governo de uma província pode ser delegado a uma assembléia cujas resoluções dependem todas do voto da maioria esta assembléia será um corpo político e seu poder será limitado pela delegação A palavra província significa um cargo ou função que aquele a quem pertence a função delega a um outro para que este o administre por ele e sob sua autoridade Assim quando num Estado há diversos países onde vigoram leis diferentes ou que são separados por grandes distâncias e quando a administração do governo é delegada a diversas pessoas esses países onde o soberano não reside e governa por delegação são chamados províncias Mas do governo de uma província por uma assembléia residente na própria província há poucos exemplos Os romanos que tinham soberania sobre muitas províncias governavamnas sempre através de presidentes e pretores não por assembléias como governavam a cidade de Roma e os territórios adjacentes De maneira semelhante quando a Inglaterra enviou colônias para cultivar a Virgínia e as ilhas de Sommer embora o governo dessas colônias fosse delegado a assembléias em Londres jamais estas assembléias delegaram sua função governativa a qualquer assembléia residente no local mas enviaram um governador para cada plantação Pois embora todo homem quando por natureza pode estar presente deseje participar do governo apesar disso quando não pode estar presente se inclina também por natureza a delegar o governo de seus interesses comuns a uma forma monárquica de preferência a uma forma popular de governo O que também é claramente visível nos homens que têm grandes propriedades territoriais que quando não querem darse ao cuidado de administrar seus negócios preferem confiar num único servo a confiar numa assembléia quer de seus amigos quer de seus servos Mas seja como for na realidade mesmo assim podemos supor que o governo de uma província ou de uma colônia seja delegado a uma assembléia Quando 0 seja o que neste lugar tenho a dizer é o seguinte seja qual for a dívida que essa assembléia contraia e seja qual for o ato ilegal que seja decretado será apenas o ato dos que votarem a favor e não dos que discordaram ou estavam ausentes pelas razões anteriormente apresentadas Além disso uma assembléia residente fora dos limites da colônia cujo governo lhe pertence é incapaz de exercer qualquer poder sobre as pessoas ou sobre os bens de qualquer membro da colônia para punilos por dívida ou qualquer outro dever em nenhum lugar fora da própria colônia pois fora dela não possui jurisdição ou autoridade e deve contentarse com a solução que as leis locais lhe oferecerem Embora a assembléia tenha direito de aplicar multas a qualquer de seus membros que desrespeite as leis de sua autoria fora do território da colônia não tem qualquer direito de executar a cobrança dessa multa E o que aqui ficou dito sobre os direitos de uma assembléia no governo de uma província ou colônia aplicase também a uma assembléia no governo de uma cidade uma universidade um colégio ou uma igreja ou a qualquer outro governo exercido sobre seres humanos De maneira geral em todos os corpos políticos se qualquer dos membros se considerar injustiçado pelo próprio corpo o julgamento de sua causa compete ao soberano e aos que o soberano tenha nomeado como juízes de tais causas ou nomeie para julgar essa causa particular e não ao próprio corpo político Porque o corpo político inteiro é neste caso um outro súdito coisa que não se passa com uma assembléia soberana no caso da qual se o soberano não for juiz embora em causa própria não pode haver juiz algum Num corpo político para a boa administração do tráfico exterior a forma de representação mais conveniente é uma assembléia de todos os membros quer dizer uma assembléia tal que todos os que arriscaram seu dinheiro possam estar presentes a todas as deliberações e resoluções do corpo se assim o quiserem Como prova disto basta ter presente o fim em vista do qual os que são mercadores e podem comprar e vender ou exportar e importar suas mercadorias conforme sua própria discrição apesar disso se vinculam a uma corporação Não há dúvida que são poucos os mercadores capazes com a mercadoria que compram no próprio país de fretar um navio para exportála Portanto em geral precisam se reunir em uma sociedade onde cada um possa participar nos lucros em proporção à soma que arrisca ou tirar seu próprio lucro da venda do que transporta ou importa ao preço que considerar adequado Mas no caso não se trata de um corpo político pois inexiste qualquer representativo comum capaz de obrigálos a qualquer lei além daquela que é comum a todos os outros súditos O fim dessa incorporação é tornar maior seu lucro o que pode ser feito de duas maneiras por simples compra ou por simples venda tanto no país como no estrangeiro De modo que autorizar uma companhia de mercadores a tornarse uma corporação ou corpo político é o mesmo que conferirlhe um duplo monopólio um de simples compradores e o outro de simples vendedores Porque quando uma companhia é incorporada para qualquer país estrangeiro determinado ela só exporta as mercadorias vendáveis nesse país o que constitui simples compra no interior e simples venda no estrangeiro Porque no interior há apenas um comprador e no estrangeiro apenas um vendedor sendo ambas as coisas lucrativas para o mercador pois assim compra no interior a preço mais baixo e vende no estrangeiro a preço mais alto E no exterior há apenas um comprador de mercadoria estrangeira e no interior há apenas um vendedor sendo ambas as coisas mais uma vez lucrativas para quem arrisca Deste duplo monopólio uma parte é desvantajosa para o povo do país e a outra para os estrangeiros Porque no país graças ao exclusivo da exportação estabelecem os preços que lhes apraz para os produtos da terra e da manufatura do povo e graças ao exclusivo da importação estabelecem os preços que lhes apraz para todas as mercadorias que o povo necessita sendo ambas as coisas prejudiciais para o povo Por outro lado graças ao exclusivo da venda das mercadorias nacionais no estrangeiro e ao exclusivo da comera local das mercadorias estrangeiras elevam o preço das primeiras e abaixam o preço das últimas em prejuízo dos estrangeiros Porque quando é só um que vende as mercadorias são mais caras e quando é só um que compra elas são mais baratas e assim essas corporações não passam de monopólios embora fossem altamente proveitosas para o Estado se pudesse haver reunião num corpo político nos mercados estrangeiros e a o mesmo tempo haver liberdade no próprio país cada um comprando e vendendo ao preço que pudesse Não sendo portanto a finalidade desses corpos de mercadores o beneficio comum do corpo inteiro que neste caso tem como único capital comum aquele que é deduzido de cada empreendimento para construir comprar carregar e equipar os navios e sim o lucro particular de cada um dos empresários é razoável que cada um seja informado do emprego de seu próprio dinheiro isto é que cada um seja membro da assembléia que terá o poder de decidir esse emprego e também que cada um seja informado de suas contas Portanto o representante de um corpo dessa espécie tem que ser uma assembléia na qual cada um dos membros do corpo possa estar presente se quiser a todas as decisões Se um corpo político de mercadores contrair uma dívida para com um estranho por ato de sua assembléia representativa cada um dos membros será individualmente responsável pelo todo Porque um estranho não pode informarse de suas leis particulares mas encaraos como outros tantos indivíduos cada um deles obrigado ao total do pagamento até que o pagamento feito por um libera todos os restantes Mas se a dívida for para com um dos membros da companhia o credor será devedor do todo perante si próprio não podendo portanto exigir o pagamento a não ser tirado do capital comum se o houver Se o Estado baixar um imposto sobre o corpo político entendese que ele recai sobre cada um dos membros proporcionalmente a sua participação individual na companhia Porque neste caso o único capital comum que existe é o que é feito de seus investimentos individuais Se for aplicada ao corpo político alguma multa devido a qualquer ato ilegal só estão sujeitos a ela aqueles por cujos votos esse ato foi decidido ou aqueles com cujo auxílio o ato foi executado Porque quanto a todos os outros o único crime que há é pertencer ao corpo e isso se for um crime não é deles pois o corpo foi criado pela autoridade do Estado Se um dos membros for devedor do corpo político pode ser por este processado mas seus bens não podem ser confiscados nem sua pessoa pode ser presa pela autoridade do corpo mas apenas pela autoridade do Estado Porque se o corpo político puder fazêlo por sua própria autoridade poderá também por sua própria autoridade julgar que a dívida é devida o que é o mesmo que ser juiz em causa própria Esses corpos instituídos para o governo dos homens ou do tráfico podem ser perpétuos ou limitados a uma duração estabelecida por escrito Mas também há corpos cuja duração é limitada apenas pela natureza de seus negócios Se por exemplo um monarca soberano ou uma assembléia soberana houver por bem dar ordem às cidades ou a outras partes de seu território para que lhe enviem seus deputados para informálo sobre a situação e necessidades dos súditos ou para aconselhálo na feitura de boas leis ou por qualquer outra razão com uma pessoa representando cada região e a esses deputados for fixado um lugar e um tempo de reunião eles constituem nesse lugar e durante esse tempo um corpo político representando todos os súditos desse domínio Mas isso é apenas para aqueles assuntos que lhes foram propostos por aquele homem ou assembléia que pela soberana autoridade os mandou chamar e a partir do momento em que seja declarado que nada mais será por eles proposto ou debatido o corpo político fica dissolvido Porque se eles fossem os representantes absolutos do povo nesse caso seriam a assembléia soberana havendo assim duas assembléias soberanas ou dois soberanos para um só e mesmo povo o que não é compatível com a paz desse povo Portanto onde já há uma soberania a única representação absoluta do povo que pode haver é através dela própria Quanto aos limites dentro dos quais um tal corpo político pode representar o povo inteiro esses são estabelecidos por escrito por quem o convocou Pois o povo não pode escolher seus deputados para outro fim senão o que se encontrar expresso no escrito a ele enviado por seu soberano Os corpos privados regulares e legítimos são aqueles que são constituídos sem cartas ou outra autoridade escrita a não ser as leis comuns a todos os outros súditos Dado que se encontram unidos numa pessoa representativa são considerados regulares tal como o são todas as famílias onde o pai ou senhor comanda a família inteira Porque ele tem autoridade sobre seus filhos e servos até onde a lei permite embora não mais longe do que isso pois nenhum deles é obrigado a obedecer naquelas ações que a lei proíbe praticar Em todas as outras ações durante o tempo em que estiverem submetidos ao governo doméstico estão sujeitos a seus pais e senhores como a seus soberanos imediatos Sendo o pai e senhor antes da instituição do Estado soberano absoluto de sua própria família depois dessa instituição só perde de sua autoridade aquilo que a lei do Estado lhe tirar Os corpos privados regulares mas ilegítimos são aqueles que se unem numa só pessoa representativa sem qualquer espécie de autoridade pública É o caso das corporações de mendigos ladrões e ciganos para organizarem melhor suas ocupações de mendicância e de roubo E o das corporações de homens que se unem pela autoridade de qualquer pessoa estrangeira em outro domínio para a propagação mais fácil de qualquer doutrina ou para constituir um partido contrário ao poder do Estado Os sistemas irregulares que por sua natureza não passam de ligas ou por vezes de mera concorrência de pessoas sem união em vista de qualquer desígnio determinado nem por qualquer laço de obrigação recíproca e derivam apenas de uma semelhança de vontades e inclinações tornamse legítimos ou ilegítimos conforme a legitimidade ou ilegitimidade dos desígnios de cada um dos indivíduos que os constituem e estes desígnios devem ser interpretados conforme as circunstâncias As ligas de súditos dado que é corrente fazeremse ligas de defesa mútua são num Estado que não é mais do que uma liga de todos os súditos reunidos em sua maioria desnecessárias e têm um sabor de intenção ilegítima são por esse motivo ilegítimas recebendo geralmente o nome de facções ou conspirações Dado que uma liga é uma união de homens através de pactos se não for conferido poder a um homem ou a uma assembléia como na condição de simples natureza para obrigálos ao cumprimento de tais pactos a liga só será válida enquanto não surgir justa causa de desconfiança Portanto as ligas entre Estados acima dos quais não há qualquer poder humano constituído capaz de mantêlos a todos em respeito não apenas são legítimas como são também proveitosas durante o tempo que duram Mas as ligas de súditos de um mesmo Estado onde cada um pode defender seu direito por meio do poder soberano são desnecessárias para a preservação da paz e da justiça e caso seus desígnios sejam malévolos ou desconhecidos do Estado também ilegítimas Porque toda união das forças de indivíduos particulares é se a intenção for malévola injusta e se a intenção for desconhecida é perigosa para o Estado e injustamente oculta Se o poder soberano residir numa grande assembléia e um determinado número de indivíduos membros dessa assembléia sem autorização para tal instigam uma parte com o fim de influenciar a conduta dos restantes neste caso tratase de uma facção ou conspiração ilegítima pois constitui uma sedução fraudulenta da assembléia em defesa de seus interesses particulares Mas que aquele cujo interesse particular vai ser objeto de debate e julgado pela assembléia faça o maior número de amigos que puder não constitui qualquer injustiça porque neste caso ele não faz parte da assembléia Ainda que suborne esses amigos com dinheiro salvo se houver uma lei expressa contra isso mesmo assim não há injustiça Porque às vezes dados os costumes humanos como são é impossível obter justiça sem dinheiro e cada um pode pensar que sua própria causa é justa até ao momento de ser ouvida e julgada Em todos os Estados sempre que um particular tiver mais servos do que os necessários para a administração de suas propriedades e o legítimo uso que deles possa fazer tratase de uma facção e ilegítima Dado que ele dispõe da proteção do Estado não tem necessidade de defenderse com uma força pessoal Se nas nações não inteiramente civilizadas várias famílias numerosas sempre viveram em permanente hostilidade atacandose umas às outras com forças particulares é suficientemente evidente que o fizeram injustamente ou então que não havia Estado Tal como as facções familiares assim também as facções que se propõem o governo da religião como os papistas os protestantes etc ou o do Estado como os patrícios e plebeus dos antigos tempos de Roma e os aristocráticos e democráticos dos antigos tempos da Grécia são injustas pois são contrárias à paz e à segurança do povo e equivalem a tirar a espada de entre as mãos do soberano O ajuntamento de pessoas é um sistema irregular cuja legitimidade ou ilegitimidade depende das circunstâncias e do número dos que se reúnem Se as circunstâncias forem legítimas e manifestas o ajuntamento é legítimo como por exemplo a habitual reunião de pessoas numa igreja ou num espetáculo público nos números habituais Porque se o número de pessoas for extraordinariamente grande as circunstâncias deixam de ser evidentes e em conseqüência disso aquele que não for capaz de apresentar uma explicação satisfatória de sua presença no local deve ser considerado consciente de um desígnio ilegítimo e tumultuoso Pode ser legítimo que um milhar de pessoas faça uma petição para ser apresentada a um juiz ou magistrado mas se um milhar de pessoas for levar essa petição tratase de uma assembléia tumultuosa porque para tal fim um ou dois são bastantes Mas em casos como este não é um número fixo que torna ilegítima uma assembléia mas aquele número que os funcionários presentes não têm a possibilidade de subjugar e entregar à justiça Quando um número inusitado de pessoas se reúne contra alguém a quem acusam a assembléia é um tumulto ilegítimo porque lhes é possível fazer entregar a acusação ao magistrado por uns poucos ou apenas um só Foi esse o caso de São Paulo em Éfeso quando Demétrio e um grande número de outros homens levaram perante o magistrado dois dos companheiros de São Paulo clamando a uma só voz Grande é Diana de Éfeso O que era uma maneira de exigir justiça contra eles por ensinarem ao povo uma doutrina que era contrária a sua religião e a seus negócios Neste caso as circunstâncias eram justas levando em conta as leis desse povo Mas sua assembléia considerou ilegítima essa ação e por ela o magistrado repreendeuos com estas palavras S Se Demétrio e os outros trabalhadores podem acusar qualquer homem de alguma coisa existem audiências e deputados que se acusem um ao outro E se tendes mais alguma coisa a pedir vosso caso poderá ser julgado por uma assembléia legalmente convocada Pois corremos o risco de ser acusados pela sedição deste dia visto que não existe motivo capaz de justificar este ajuntamento de pessoas Com isto ele classificou como sedição e da qual não é possível apresentar justificação toda assembléia da qual não seja possível apresentar justa explicação E isto é tudo quanto eu tinha a dizer relativamente aos sistemas e assembléias de pessoas que podem ser comparados conforme já disse às partes semelhantes do corpo do homem os que forem legítimos aos músculos e os que forem ilegítimos aos tumores cálculos e apostemas engendrados pelo afluxo antinatural de humores malignos CAPÍTULO XXIII Dos ministros públicos do poder soberano No último capítulo falei das partes semelhantes do Estado Neste capítulo vou falar das partes orgânicas que são os ministros públicos Um ministro público é aquele que é encarregado pelo soberano quer este seja um monarca ou uma assembléia de qualquer missão com autoridade no desempenho dessa missão para representar a pessoa do Estado E enquanto qualquer homem ou assembléia a quem pertença a soberania representa duas pessoas ou então como é mais comum dizerse tem duas capacidades uma natural e outra política num monarca não há apenas a pessoa do Estado mas também a de um homem e uma assembléia soberana não tem apenas a pessoa do Estado mas também a da assembléia aqueles que são seus servos em sua capacidade natural não são ministros públicos sãono apenas os que servem na administração dos negócios públicos Portanto nem os oficiais de justiça nem os alguazis nem os outros funcionários que servem na assembléia tendo como única finalidade a conveniência dos membros da assembléia numa aristocracia ou numa democracia nem os despenseiros camareiros e caixeiros nem quaisquer outros servidores de cada monarca são ministros públicos numa monarquia Dos ministros públicos alguns têm a seu cargo a administração geral quer de todo o domínio quer de uma parte dele No caso do todo pode ser confiada a alguém como protetor ou regente pelo antecessor de um infanterei durante a menoridade deste toda a administração de seu reino Neste caso todos os súditos têm obrigação de obediência às ordenações que faça assim como às ordens que dê em nome do rei desde que não sejam incompatíveis com o poder soberano No caso de só uma parte ou província tanto um monarca como uma assembléia soberana podem entregar sua administração geral a um governador lugartenente prefeito ou vicerei E também neste caso todos os habitantes dessa província são obrigados a fazer tudo quanto ele ordenar em nome do soberano e que não seja incompatível com o direito do soberano Porque esses protetores vicereis e governadores só têm como direitos aqueles que dependem da vontade do soberano E nenhuma delegação de poder que lhes seja feita pode ser interpretada como uma declaração da vontade de transferir a soberania sem que haja palavras expressas e evidentes para tal fim E esta espécie de ministros públicos assemelhase aos nervos e tendões que movem os diversos membros de um corpo natural Outros têm administração especial quer dizer estão encarregados de alguma função especial seja no país ou no estrangeiro No país temos em primeiro lugar para a economia do Estado aqueles que possuem autoridade relativamente ao tesouro aos tributos impostos rendas multas ou qualquer rendimento público assim como para receber recolher publicar ou tomar as respectivas contas e que são ministros públicos Ministros porque estão ao serviço da pessoa representativa e nada podem fazer contra suas ordens ou sem sua autorização Públicos porque a servem em sua capacidade política São também ministros públicos em segundo lugar os que têm autoridade relativamente à milícia a custódia das armas fortes e portos o recrutamento pagamento e comando dos soldados e a provisão de todas as coisas necessárias para a conduta da guerra tanto em terra como nos mares Mas um soldado sem comando embora esteja lutando pelo Estado nem por isso representa sua pessoa porque não tem ninguém perante quem possa representála Porque todos os que têm um comando representamno apenas perante aqueles que comandam Também são ministros públicos os que têm autoridade para ensinar ou para permitir a outros que ensinem ao povo seus deveres para com o poder soberano instruindoo no conhecimento do que é justo ou injusto a fim de tornar o povo mais capaz de viver em paz e harmonia e de resistir ao inimigo comum São ministros na medida em que não fazem tudo isso por sua própria autoridade e sim pela de outrem e são públicos porque o fazem ou devem fazêlo apenas em virtude da autoridade do soberano Só o monarca ou a assembléia soberana possui abaixo de Deus autoridade para ensinar e instruir o povo e nenhum homem além do soberano recebe seu poder Dei grada simplesmente isto é de um favor que vem apenas de Deus Todos os outros recebem seus poderes do favor e providência de Deus e de seus soberanos e assim numa monarquia se diz Dei gratia Regis ou Dei providentia voluntate Regis Também são ministros públicos aqueles a quem é concedido o poder judicial Porque em suas sedes de justiça representam a pessoa do soberano e sua sentença é a sentença dele Porque conforme antes foi declarado todo poder judicial está essencialmente ligado à soberania portanto todos os outros juízes são apenas ministros daquele ou daqueles que têm o poder soberano E todas as controvérsias são de duas espécies a saber de fato e de direito e assim são também os julgamentos uns de fato e outros de direito De modo que para julgar a mesma controvérsia pode haver dois juízes um de fato e outro de direito E em qualquer desses tipos de controvérsia pode surgir uma controvérsia entre a parte julgada e o juiz a qual dado que ambos são súditos do soberano manda a eqüidade que seja julgada por homens aceites por consentimento de ambos pois ninguém pode ser juiz em causa própria Mas o soberano já está aceite por ambos como juiz e portanto deverá ou ouvir a causa e decidila ele mesmo ou nomear um juiz com o qual ambos concordem Considerase então que esse acordo foi realizado entre eles de diversas maneiras Em primeiro lugar se ao acusado for permitido recusar aqueles juízes cujos interesses o façam suspeitar deles tendo o queixoso já escolhido seu próprio juiz aqueles que ele não recusar serão juízes com os quais ele próprio concordou Em segundo lugar se apelar para qualquer outro juiz não poderá depois voltar a apelar porque esse apelo foi de sua escolha Em terceiro lugar se apelar para o próprio soberano e for este a proferir a sentença em pessoa ou através de delegados com os quais ambas as partes tenham concordado essa sentença é definitiva porque o acusado foi julgado por seus próprios juízes quer dizer por ele próprio Depois de examinadas estas propriedades de uma justa e racional administração judicial não posso deixar de observar a excelente constituição dos tribunais de justiça estabelecidos na Inglaterra tanto para os litígios comuns quanto para os políticos Entendo por litígios comuns aqueles onde tanto o queixoso quanto o acusado são súditos e por litígios políticos também chamados pleitos da coroa aqueles onde o queixoso é o soberano Porque quando havia duas ordens na sociedade sendo uma a dos lordes e a outra a dos comuns os lordes tinham o privilégio de ter apenas os outros lordes como juízes de todos os crimes capitais e desses lordes todos quantos estivessem presentes sendo isto reconhecido como um privilégio de favor seus juízes eram apenas aqueles que eles mesmos desejavam E em todas as controvérsias todo súdito como também os lordes nas controvérsias civis tinha como juízes habitantes da região a que correspondia a questão controvertida e em relação a esses podia exercer o direito de recusa até que finalmente se escolhessem doze homens contra os quais não houvesse objeção sendo então o súdito julgado por esses doze Assim tendo cada uma das partes seus próprios juízes não havia nada que qualquer delas pudesse alegar no sentido de a sentença deixar de ser considerada definitiva Essas pessoas públicas que recebem do poder soberano autorização tanto para instruir como para julgar o povo são aqueles membros do Estado que podem adequadamente ser comparados aos órgãos da fala num corpo natural São também ministros públicos todos aqueles que receberam do soberano autorização para proceder à execução de todas as sentenças para publicar as ordens do soberano para reprimir tumultos para prender e encarcerar os malfeitores e praticar outros atos tendentes à preservação da paz Porque cada ato que praticam em nome dessa autoridade é um ato do Estado e sua função é comparável à das mãos num corpo natural Os ministros públicos nomeados para o estrangeiro são aqueles que representam a pessoa de seu próprio soberano perante os Estados estrangeiros São dessa espécie os embaixadores os mensageiros os agentes e arautos enviados com autorização pública e em missão política Mas aqueles que são enviados apenas com autorização de um dos partidos em presença numa nação que atravessa um período conturbado mesmo que sejam aceites pelo país estrangeiro não são ministros públicos nem privados do Estado porque nenhuma de suas ações tem como autor o próprio Estado De maneira semelhante um embaixador enviado por um príncipe para apresentar felicitações ou condolências ou para estar presente a uma solenidade mesmo que a autorização seja pública dado que se trata de um assunto privado e que lhe compete em sua capacidade natural é uma pessoa privada E também um homem que seja enviado a outro país com o fim secreto de investigar as opiniões lá vigentes e a força do país embora tanto a autorização como a missão sejam públicas e dado que não é possível que alguém veja nele outra pessoa a não ser a sua própria é apenas um ministro privado Mas apesar disso é um ministro do Estado e pode ser comparado aos olhos do corpo natural E aqueles que são escolhidos para receber as petições ou outras informações do povo e são como se fossem os ouvidos públicos são ministros públicos e nessa qualidade representam seu soberano Um conselheiro ou um conselho de Estado se o considerarmos destituído de qualquer autoridade judicial ou de comando e tendo apenas a de dar sua opinião ao soberano quando ela for pedida ou de propô la quando não for pedida também não é uma pessoa pública Porque a opinião é apresentada apenas ao soberano cuja pessoa não pode em sua própria presença ser representada para ele por um outro Mas um corpo de conselheiros nunca deixa de ter alguma autoridade tanto judicial quanto de administração imediata Numa monarquia eles representam o monarca transmitindo suas ordens aos ministros públicos Numa democracia o conselho ou senado propõe ao povo os resultados de suas deliberações enquanto conselho mas quando designa juízes ou julga causas ou concede audiência a embaixadores fálo na qualidade de ministro do povo E numa aristocracia o conselho de Estado é a própria assembléia soberana oferecendo conselho apenas a si própria CAPÍTULO XXIV Da nutrição e procriação de um Estado A nutrição de um Estado consiste na abundância e na distribuição dos materiais necessários à vida em seu acondicionamento e preparação e uma vez acondicionados em sua entrega para uso público através de canais adequados Quanto à abundância de matéria é uma coisa limitada por natureza àqueles bens que por intermédio da terra e do mar os dois peitos de nossa mãe comum Deus geralmente ou dá de graça ou em troca do trabalho dos homens Dado que a matéria dessa nutrição consiste em animais vegetais e minerais Deus colocouos generosamente ao nosso alcance à superfície da terra ou perto dela de modo tal que não é preciso mais do que trabalho e esforço para colhêlos A tal ponto a abundância depende simplesmente a seguir ao favor de Deus do trabalho e esforço dos homens Essa matéria a que geralmente se chama bens em parte é nativa e em parte é estrangeira Nativa quando pode ser obtida dentro do território do Estado Estrangeira quando é importada do exterior E como não existe território algum sob o domínio de um Estado a não ser que seja de uma extensão imensa que produza todas as coisas necessárias para a manutenção e movimento do corpo inteiro e poucos são os que não produzem alguma coisa mais além do necessário os bens supérfluos que se obtêm no interior deixam de ser supérfluos e passam a suprir as necessidades internas mediante a importação do que pode ser obtido no exterior seja através de troca de justa guerra ou de trabalho Porque o trabalho de um homem também é um bem que pode ser trocado por benefícios tal como qualquer outra coisa E já houve Estados que não tendo mais território suficiente para seus habitantes conseguiram apesar disso não apenas manter mas até aumentar seu poder em parte graças à atividade mercantil entre um lugar e outro e em parte através da venda de manufaturas cujos materiais eram trazidos de outros lugares A distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu do leu e do seu Isto é numa palavra da propriedade E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano Porque onde não há Estado conforme Já se mostrou há uma guerra perpétua de cada homem contra seu vizinho na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e conserva pela força o que não é propriedade nem comunidade mas incerteza O que é a tal ponto evidente que até Cícero um apaixonado defensor da liberdade numa arenga pública atribuiu toda propriedade às leis civis Se as leis civis disse ele alguma vez forem abandonadas ou negligentemente conservadas para não dizer oprimidas não haverá nada mais que alguém possa estar certo de receber de seus antepassados ou deixar a seus filhos E também Suprimi as leis civis e ninguém mais saberá o que é seu e o que é dos outros Visto portanto que a introdução da propriedade é um efeito do Estado que nada pode fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa ela só pode ser um ato do soberano e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o poder soberano Bem o sabiam os antigos que chamavam Nómos quer dizer distribuirão ao que nós chamamos lei e definiam a justiça como a distribuição a cada um do que é seu Nesta distribuição a primeira lei diz respeito à distribuição da própria terra da qual o soberano atribui a todos os homens uma porção conforme o que ele e não conforme o que qualquer súdito ou qualquer número deles considerar compatível com a eqüidade e com o bem comum Os filhos de Israel eram um Estado no deserto e careciam dos bens da terra até ao momento em que se tornaram senhores da Terra Prometida a qual foi posteriormente dividida entre eles não conforme sua própria discrição mas conforme a discrição do sacerdote Eleazar e do general Josué Os quais quando já havia doze tribos ao fazer delas treze mediante a subdivisão da tribo de José apesar disso dividiram a terra em apenas doze porções e não atribuíram qualquer terra à tribo de Levi atribuindolhe a décima parte da totalidade dos frutos da terra divisão que portanto era arbitrária E embora quando um povo toma posse de um território por meio da guerra nem sempre ele extermine os antigos habitantes como fizeram os judeus deixando suas terras a muitos ou à maior parte ou a todos é apesar disso evidente que posteriormente essas terras passam a ser patrimônio do vencedor como aconteceu com o povo da Inglaterra que recebeu todas as suas terras de Guilherme o Conquistador De onde podemos concluir que a propriedade que um súdito tem em suas terras consiste no direito de excluir todos os outros súditos do uso dessas terras mas não de excluir o soberano quer este seja uma assembléia ou um monarca Dado que o soberano quer dizer o Estado cuja pessoa ele representa se entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança comuns essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista do mesmo Em conseqüência qualquer distribuição que ela faça em prejuízo dessa paz e dessa segurança é contrária à vontade de todos os súditos que confiaram a paz e a segurança de suas vidas à discrição e consciência do soberano e assim essa distribuição deve pela vontade de cada um deles ser considerada nula É certo que um monarca soberano ou a maioria de uma assembléia soberana pode ordenar a realização de muitas coisas seguindo os ditames de suas paixões e contrariamente a sua consciência e isso constitui uma quebra da confiança e da lei da natureza Mas isto não é suficiente para autorizar qualquer súdito a pegar em armas contra seu soberano ou mesmo a acusálo de injustiça ou a de qualquer modo falar mal dele Porque os súditos autorizaram todas as suas ações e ao atribuíremlhe o poder soberano fizeramnas suas Mas em que casos as ordens do soberano são contrárias à eqüidade e à lei de natureza é coisa que será examinada adiante em outro lugar Na distribuição das terras o próprio Estado pode ter uma porção possuindo e melhorando a mesma através de seu representante E essa porção pode ser de molde a tornarse suficiente para sustentar todas as despesas necessárias para a paz e defesa comuns O que seria muito verdadeiro se fosse possível conceber qualquer representante que estivesse livre das paixões e enfermidades humanas Mas sendo a natureza humana o que é a atribuição de terras públicas ou de uma renda determinada para o Estado seria inútil e faria tender para a dissolução do governo e a condição de simples natureza e guerra sempre que ocorresse o poder soberano cair nas mãos de um monarca ou de uma assembléia que ou fosse excessivamente negligente em questões de dinheiro ou suficientemente ousada para arriscar o patrimônio público numa guerra longa e dispendiosa Os Estados não podem suportar uma dieta pois não sendo suas despesas limitadas por seu próprio apetite e sim por acidentes externos e pelos apetites de seus vizinhos a riqueza pública não pode ser limitada por outros limites senão os que forem exigidos por cada ocasião Embora na Inglaterra o Conquistador tenha reservado algumas terras para seu próprio uso além de florestas e coutadas tanto para sua recreação como para a preservação dos bosques e tenha também reservado diversos serviços nas terras que deu a seus súditos parece apesar disso que elas não foram reservadas para sua manutenção em sua capacidade pública mas em sua capacidade natural pois tanto ele quanto seus sucessores lançaram impostos arbitrários sobre as terras de todos os seus súditos sempre que tal consideraram necessário E mesmo que essas terras e serviços públicos tivessem sido estabelecidos como suficiente manutenção do Estado tal teria sido contrário à finalidade da instituição pois eram insuficientes conforme ficou claro dados esses impostos subseqüentes e além disso estavam sujeitos a alienação e diminuição conforme foi tornado claro pela posterior pequena renda da coroa Portanto é inútil atribuir uma porção ao Estado que pode vendêla ou dá la e efetivamente a vende e a dá quando tal é feito por seu representante Compete ao soberano a distribuição das terras do país assim como a decisão sobre em que lugares e com que mercadorias os súditos estão autorizados a manter tráfico com o estrangeiro Porque se às pessoas privadas competisse usar nesses assuntos de sua própria discrição algumas delas seriam levadas pela ânsia do lucro tanto a fornecer ao inimigo os meios para prejudicar o Estado quanto a prejudicálo elas mesmas importando aquelas coisas que ao mesmo tempo que agradam aos apetites dos homens apesar disso são para eles nocivas ou pelo menos inúteis Compete portanto ao Estado quer dizer apenas ao soberano aprovar ou desaprovar tanto os lugares como os objetos do tráfico exterior Além do mais dado que não é suficiente para o sustento do Estado que cada indivíduo tenha a propriedade de uma porção de terra ou de alguns poucos bens ou a propriedade natural de alguma arte útil e não existe arte no mundo que não seja necessária ou para a existência ou para o bemestar de quase todos os indivíduos é necessário que os homens distribuam o que são capazes de poupar transferindo essa propriedade mutuamente uns aos outros através da troca e de contratos mútuos Compete portanto ao Estado isto é ao soberano determinar de que maneira devem fazerse entre os súditos todas as espécies de contrato de compra venda troca empréstimo arrendamento e mediante que palavras e sinais esses contratos devem ser considerados válidos Quanto à matéria e à distribuição de nutrição a todos os membros do Estado o que até aqui ficou dito levando em conta o modelo da presente obra é suficiente Entendo por acondicionamento a redução de todos os bens que não são imediatamente consumidos e são reservados para nutrição num momento posterior a alguma coisa de igual valor e além disso suficientemente portátil para não atrapalhar o movimento das pessoas de lugar para lugar a fim de que se possa ter em qualquer lugar toda a nutrição que o lugar seja capaz de comportar E isso não é outra coisa senão 0 ouro a prata e o dinheiro Pois dado que o ouro e a prata têm um elevado valor em quase todos os países do mundo eles constituem uma medida cômoda do valor de todas as outras coisas entre nações diferentes E o dinheiro mandado cunhar em qualquer material pelo soberano de um Estado constitui na medida suficiente do valor de todas as outras coisas entre os súditos desse Estado Graças a essas medidas tornase possível que todos os bens tanto os móveis quanto os imóveis acompanhem qualquer indivíduo a todo lugar para onde ele se desloque dentro e fora do lugar de sua residência habitual E tornase possível que os mesmos bens sejam passados de indivíduo a indivíduo dentro do Estado e vão circulando a toda a volta alimentando à medida que passa todas as partes do Estado A tal ponto que este acondicionamento é como se fosse a corrente sangüínea de um Estado pois é de maneira semelhante que o sangue natural é feito dos frutos da terra e circulando vai alimentando pelo caminho todos os membros do corpo do homem E devido ao fato de o ouro e a prata terem seu valor devido à própria matéria de que são feitos são eles os primeiros a ter o seguinte privilégio que seu valor não pode ser alterado pelo poder de um Estado nem pelo de um certo número de Estados pois são a medida comum dos bens em todos os lugares Mas a moeda legal pode facilmente ter seu valor aumentado ou rebaixado Em segundo lugar o ouro e a prata têm o privilégio de imprimir movimento aos Estados fazendoos quando tal se torna necessário estender seus braços até aos países estrangeiros e o de aprovisionar não apenas os súditos que viajam mas também exércitos inteiros Mas aquela moeda que não tem valor devido ao material de que é feita e sim devido à cunhagem local é incapaz de suportar a mudança de ares e só produz efeitos em seu próprio país e mesmo neste encontrase sujeita à mudança das leis podendo assim ter seu valor diminuído muitas vezes em prejuízo dos que a possuem Os caminhos e canais através dos quais o dinheiro circula para uso público são de duas espécies os da primeira conduzemno até aos cofres públicos e os da outra fazemno sair de novo para efetuar os pagamentos públicos À primeira espécie pertencem os recolhedores recebedores e tesoureiros e à segunda pertencem igualmente os tesoureiros assim como os funcionários designados para fazer os pagamentos dos vários ministros públicos ou privados E também nisto 0 homem artificial conserva sua semelhança com o homem natural cujas veias recebem o sangue das diversas partes do corpo e o transportam até o coração e depois de vitalizálo o coração volta a expelir o sangue por meio das artérias a fim de vivificar e tornar possível o movimento a todos os membros do corpo A procriação ou os filhos de um Estado são aquilo a que chamamos plantações ou colônias que são grupos de pessoas enviadas pelo Estado sob a direção de um chefe ou governador para povoar um país estrangeiro quer este já se encontre vazio de habitantes quer seja tornado vazio através da guerra E depois de estabelecida a colônia ou esta constitui por si só um Estado dispensado da sujeição ao soberano que a enviou como foi feito por muitos Estados nos tempos antigos e neste caso o Estado de onde partiram era chamado sua metrópole ou mãe e não exigia da colônia mais do que os pais costumam exigir dos filhos a quem emancipam e libertam de seu governo doméstico ou seja a honra e a amizade ou então permanece unida à metrópole como as colônias do povo de Roma e neste caso não são Estados independentes mas províncias e parte integrante do Estado que as enviou De modo que o direito das colônias fora a honra e a ligação com a sua metrópole depende totalmente da licença ou carta por meio da qual o soberano autorizou a plantação CAPÍTULO XXV Do conselho Até que ponto é falacioso ajuizar da natureza das coisas através do uso vulgar e inconstante das palavras é coisa que em nada aparece mais claramente do que na confusão entre os conselhos e as ordens derivados da maneira imperativa de falar em ambos utilizada e além disso em muitas outras ocasiões Porque as palavras Faze isto não são apenas as palavras de quem ordena mas também as de quem dá um conselho ou de quem exorta No entanto são poucos os que não vêem que estas coisas são muito diferentes ou que são incapazes de distinguir entre elas quando percebem quem está falando e a quem se está dirigindo e em que ocasião No entanto ao encontrar estas frases nos escritos dos homens e não se sendo capaz ou não se querendo levar em consideração as circunstâncias confundemse às vezes os preceitos dos conselheiros com os preceitos daqueles que ordenam e outras vezes o oposto conforme seja mais adequado às conclusões que se quer tirar ou às ações a que se dá aprovação Para evitar tais erros e restituir suas significações próprias e distintas a esses termos de ordenar aconselhar e exortar definoos da maneira seguinte Uma ordem é quando alguém diz Faze isto ou Não faças isto e não há lugar para esperar outra razão a não ser a vontade de quem o diz De onde manifestamente se segue que quem ordena visa com isso a seu próprio beneficio pois a razão de sua ordem é apenas sua própria vontade e o objeto próprio da vontade de todo homem é sempre algum beneficio para si mesmo Um conselho é quando alguém diz Faze isto ou Não faças isto e deduz suas razões do beneficio que tal acarreta para aquele a quem o diz Tornase a partir daqui evidente que aquele que dá conselho pretende apenas seja qual for sua intenção oculta o beneficio daquele a quem o dá Há portanto entre um conselho e uma ordem uma grande diferença a ordem é dirigida para beneficio de quem a dá e o conselho para beneficio de outrem E daqui deriva outra diferença um homem pode ser obrigado a fazer aquilo que lhe ordenam como quando fez a promessa de obedecer mas ninguém pode ser obrigado a fazer o que lhe aconselham porque o prejuízo resultante de não seguir o conselho é apenas o seu próprio e se acaso tiver feito a promessa de seguilo o conselho já adquiriu a natureza de uma ordem Uma terceira diferença entre ambos é que ninguém pode pretender ter o direito de dar conselhos a outra pessoa porque não é possível pretender que daí tira algum beneficio próprio mas pedir o direito de dar conselho a outrem revela uma vontade de conhecer os desígnios do outro ou de conseguir algum outro benefício para si mesmo o que conforme já disse é o objeto próprio da vontade de cada um Outra coisa também faz parte da natureza do conselho que seja quem for que o peça não pode de acordo com a eqüidade acusar ou punir quem o der Porque pedir conselho a outrem é permitirlhe que dê esse conselho da maneira que achar melhor e em conseqüência quem dá conselhos a seu soberano quer seja um monarca ou uma assembléia a pedido deste não pode de acordo com a eqüidade ser punido por causa do conselho quer este seja ou não conforme à opinião da maioria quanto à proposta em debate Porque se a decisão da assembléia puder ser conhecida antes de terminado o debate então ela não deve pedir nem aceitar qualquer conselho pois a decisão da assembléia é a resolução do debate e o fim de toda deliberação E geralmente quem pede conselho é autor dele portanto não pode punilo e aquilo que o soberano não pode fazer nenhum outro pode também Mas se um súdito der a outro algum conselho de fazer coisas contrárias às leis quer o conselho provenha de más intenções ou apenas da ignorância pode ser punido pelo Estado porque a ignorância da lei não é desculpa suficiente já que todos são obrigados a informarse das leis a que estão sujeitos A exortação e a dissuasão são conselhos acompanhados de sinais naquele que os faz de um veemente desejo de que eles sejam aceitos Ou em termos mais breves tratase de um conselho em que se insiste com veemência Porque quem exorta não deduz as conseqüências daquilo que aconselha a fazer vinculandose assim ao rigor do raciocínio verdadeiro mas incita aquele a quem aconselha à ação e aquele que dissuade procura afastar da ação Levam assim em conta em seus discursos ao deduzirem suas razões as paixões e opiniões comuns dos homens e fazem uso de similitudes metáforas exemplos e outros recursos da oratória a fim de persuadirem seus ouvintes da utilidade da honra ou da justiça da aceitação de seu conselho De onde se pode concluir em primeiro lugar que a exortação e a dissuasão têm em vista o bem de quem dá o conselho não de quem o pede o que é contrário ao dever de um conselheiro o qual segundo a definição do conselho não devia ter em conta seu próprio beneficio e sim o de a quem aconselha Que nesse conselho tem em vista seu próprio benefício fica bem patente na longa e veemente insistência ou no artificio com que é dado que não lhe tendo sido pedido e em conseqüência derivando de seus próprios motivos visa principalmente a seu próprio beneficio e só acidentalmente ou de nenhum modo poderá redundar em beneficio de quem é aconselhado Em segundo lugar o uso da exortação e da dissuasão só tem cabimento quando alguém se vai dirigir a uma multidão porque quando o discurso é dirigido a uma só pessoa esta pode interromper o orador examinando suas razões com mais rigor do que pode ser feito por uma multidão que é constituída por um número demasiado para que seja possível estabelecer uma disputa e um diálogo com quem se dirige indiferentemente a todos ao mesmo tempo Em terceiro lugar os que exortam ou dissuadem quando se lhes pediu que aconselhassem são conselheiros corruptos como se estivessem subornados por seu próprio interesse Por melhor que seja o conselho quem o der não será bom conselheiro tal como quem der uma sentença justa a troco de uma recompensa não será um juiz justo Mas quando alguém tem o direito de comandar como pai de sua família ou como chefe de um exército suas exortações e dissuasões não apenas são legítimas mas também necessárias e louváveis No entanto nesse caso não se trata mais de conselhos mas de ordens e estas quando são para execução de um trabalho árduo manda às vezes a necessidade e sempre a humanidade que sejam dadas de maneira suavizada para melhor encorajarem e no tom e estilo de um conselho de preferência à linguagem mais áspera de uma ordem Podemos encontrar exemplos da diferença entre a ordem e o conselho nas formas de linguagem que a ambos exprimem nas Sagradas Escrituras Não tenhais outros deuses senão eu Não façais para vós mesmos nenhuma imagem gravada Não pronuncieis o nome de Deus em vão Santificai o sábado Honrai pai e mãe Não mateis Não roubeis etc são ordens Porque a razão pela qual devemos obedecerlhes é tirada da vontade de Deus nosso Rei a quem temos a obrigação de obedecer Mas as palavras Vendei tudo o que tiverdes daio aos pobres e seguime são um conselho porque a razão pela qual devemos fazêlo é tirada de nosso próprio beneficio a saber que assim ganharemos um tesouro no céu As palavras Ide à aldeia que fica diante de vós e lá encontrareis uma burra amarrada e com ela seu burrinho desamarraia e trazeima são uma ordem porque a razão delas é tirada da vontade de seu Senhor Mas as palavras Arrependeivos e batizaivos em nome de Jesus são um conselho porque a razão de eles assim fazerem não visa a qualquer benefício de Deus todopoderoso que continuará sendo Rei mesmo que nos rebelemos mas a nosso próprio benefício pois não temos outra maneira de evitar o castigo que nos ameaça por via de nossos pecados Tal como a diferença entre o conselho e a ordem pôde ser deduzida da natureza do conselho consistindo numa dedução do beneficio ou prejuízo que pode resultar para quem é aconselhado devido às conseqüências necessárias ou prováveis da ação proposta assim também podem ser derivadas as diferenças entre os conselheiros capazes e os incapazes Pois não sendo a experiência mais do que a recordação de ações semelhantes anteriormente observadas e não sendo o conselho mais do que o discurso através do qual essa experiência é transmitida a outrem as virtudes e defeitos de um conselho são as mesmas que as virtudes e defeitos intelectuais E os conselheiros da pessoa de um Estado fazemlhe as vezes de memória e de discurso mental Mas a esta semelhança entre o Estado e o homem natural vemse acrescentar uma dessemelhança da maior importância a saber que um homem natural recebe sua experiência dos objetos naturais dos sentidos que influenciam sua própria paixão ou interesse ao passo que quem dá conselho à pessoa representativa de um Estado pode ter e muitas vezes tem seus fins e paixões particulares o que torna seus conselhos sempre suspeitos e muitas vezes infidedignos Deve portanto estabelecerse como primeira condição de um bom conselheiro que seus fins e interesses não sejam incompatíveis com os fins e interesses daquele a quem aconselha Em segundo lugar dado que a função de um conselheiro quando se passa a deliberar sobre qualquer ação consiste em tornar manifestas as conseqüências desta a fim de que quem é aconselhado possa ser informado de maneira clara e correta ele deve apresentar seu conselho na forma de linguagem que melhor permita à verdade aparecer de modo evidente quer dizer com um raciocínio firme e uma linguagem significante e própria e com a maior brevidade que a evidência permita Portanto as inferências apressadas e destituídas de evidência como as que são tiradas apenas de exemplos ou da autoridade dos livros e não são argumentos sobre o que é bom ou mau mas testemunhos de fato ou de opinião as expressões obscuras confusas e ambíguas e também todos os discursos metafóricos que tendem a excitar as paixões porque tal raciocínio e tais expressões servem apenas para iludir ou para levar quem aconselhamos a fins que não são os seus tudo isto é incompatível com o cargo de conselheiro Em terceiro lugar dado que a capacidade para aconselhar deriva da experiência e do estudo aturado e ninguém pode ser considerado possuidor de experiência em todas as coisas que é necessário conhecer para a administração de um grande Estado ninguém pode ser considerado bom conselheiro a não ser naquelas questões em que não apenas seja muito versado mas nas quais tenha também longamente meditado e refletido Dado que as questões de Estado consistem em manter o povo em paz no interior e defendêlo de invasão estrangeira é evidente que elas exigem profundo conhecimento da condição do gênero humano dos direitos do governo e da natureza da eqüidade da justiça e da honra conhecimento a que não pode chegarse sem muito estudo e também o da força dos bens e dos lugares do próprio país e de seus vizinhos assim como das inclinações e desígnios de todas as nações que de qualquer maneira possam prejudicálo E nada disto se consegue sem muita experiência Não apenas a soma de todas estas coisas mas mesmo cada um dos aspectos exige a idade e a observação de um homem avançado em anos e com estudos mais do que medianos Conforme disse anteriormente cap 8 o talento que se exige para o conselho é o julgamento E as diferenças entre os homens quanto a este ponto dependem das diferenças de educação de uns para um tipo de estudo e de ocupação e de outros para um outro Quando para fazer todas as coisas existem regras infalíveis como as regras da geometria para as máquinas e os edifícios toda a experiência do mundo é incapaz de igualar o conselho daquele que aprendeu ou descobriu a regra Quando não existe tal regra aquele que tem mais experiência no tipo de questão de que se trata será senhor do melhor julgamento e será o melhor conselheiro Em quarto lugar para ter a capacidade de dar conselho a um Estado numa questão que diga respeito a um outro Estado é necessário terse conhecimento dê todos os acordos e relatos que de lá vêm assim como de todos os registros de tratados e transações de Estado entre os dois países O que só pode ser feito por quem de tal o representante considerar capaz De onde podemos concluir que o que não são convidados a dar conselho não podem em tais casos prestálo d maneira satisfatória Em quinto lugar supondose que o número de conselheiros seja igual recebese melhor conselho ouvindoos separadamente em vez de numa assembléia e isso por muitas razões Em primeiro lugar ouvindoos separadamente ése informado da opinião de cada um E numa assembléia muitos deles exprimem sua opinião dizendo simplesmente sim ou não ou com suas mãos ou pés e sem serem motivados por sua própria reflexão mas pela eloqüência de outrem ou por medo de desagradar a alguns que já falaram ou a toda a assembléia caso os contradigam ou por medo de parecer de compreensão mais embotada do que os que aplaudiram a opinião contrária Em segundo lugar numa assembléia constituída por muitos é inevitável que alguns tenham interesses contrários ao interesse público e estes podem deixarse apaixonar por seus interesses a paixão pode tornálos eloqüentes e a eloqüência pode conquistar outros para a mesma opinião Porque as paixões dos homens que isoladamente são moderadas como o calor de uma tocha numa assembléia são como muitas tochas que se inflamam umas às outras especialmente quando sopram umas nas outras com discursos até pegarem fogo ao Estado sob pretexto de aconselhálo Em terceiro lugar ao ouvir cada um separadamente tornase possível examinar quando isso é necessário a verdade ou a probabilidade das razões de cada um e os fundamentos da opinião defendida mediante freqüentes interrupções e objeções O que é impossível numa assembléia onde em todas as questões difíceis se fica mais estupefato e aturdido pela variedade dos discursos do que informado sobre a decisão que deve ser tomada Além do mais quando uma assembléia numerosa é convocada para dar conselho nunca podem deixar de aparecer alguns que têm a ambição de ser considerados eloqüentes e conhecedores de política e estes não comunicarão sua opinião preocupados com a questão em pauta e sim com o sucesso de seus variegados discursos tecidos de policromos fios ou fragmentos de autores O que pelo menos constitui uma impertinência que rouba o tempo de uma consulta séria e é fácil de evitar se o conselho for dado separadamente e de maneira sigilosa Em quarto lugar nas deliberações que devem ser conservadas em segredo o que é extremamente freqüente nas questões públicas os conselhos de um grande número e sobretudo os das assembléias são perigosos Assim as grandes assembléias são obrigadas a confiar essas questões a menor número de pessoas e às que têm maiores conhecimentos e em cuja fidelidade têm mais confiança Para concluir haverá alguém que concorde que se peça conselho a uma grande assembléia de conselheiros que desejem ou aceitem ocuparse com seus problemas quando se tratar de casar seus filhos de dispor de suas terras de governar sua casa ou de administrar seu patrimônio privado especialmente se houver entre eles alguns que não desejem sua prosperidade Quem quer que trate de seus negócios com a ajuda de muitos e prudentes conselheiros consultando a cada um separadamente e em seu elemento próprio é o que deles trata melhor tal como quem usa parceiros competentes no jogo do tênis colocados nos lugares próprios Aquele que em seguida deles tratará melhor será quem usar apenas seu próprio julgamento tal como aquele que não usa parceiro algum Mas quem em seus negócios é levado de cá para lá por um conselho complexo que só é capaz de agir com a pluralidade de opiniões concordantes cuja execução é geralmente atrasada devido à inveja ou ao interesse pela parte discordante é quem deles trata pior e é comparável a quem é levado até à bola embora por bons jogadores num carrinho de mão ou outro veículo já de si mesmo pesado e além disso é atrapalhado pelas opiniões e esforços divergentes dos que o vão empurrando e tanto mais quanto mais numerosos forem os que nele ponham as mãos e sobretudo quando entre eles existe um ou mais que deseja que ele perca o jogo E embora seja verdade que muitos olhos vêem mais do que um não deve isto ser considerado aplicável a um grande número de conselheiros a não ser quando a resolução final pertença apenas a um homem Caso contrário dado que muitos olhos vêem a mesma coisa em diversos planos e tendem a olhar pelo canto do olho para seu interesse pessoal quem deseja não falhar o alvo embora olhe à volta com ambos os olhos quando aponta fálo sempre com um só Assim nunca um grande Estado popular se conservou a não ser graças a um inimigo exterior que uniu seu povo ou graças à reputação de algum homem eminente em seu seio ou ao conselho secreto de uns poucos ou ao medo recíproco de duas facções equivalentes mas nunca graças à consulta aberta da assembléia Quanto aos Estados muito pequenos sejam eles populares ou monárquicos não há sabedoria humana capaz de conserválos para além do que durar a rivalidade entre seus poderosos vizinhos CAPÍTULO XXVI Das leis civis Entendo por leis civis aquelas leis que os homens são obrigados a respeitar não por serem membros deste ou daquele Estado em particular mas por serem membros de um Estado Porque o conhecimento das leis particulares é da competência dos que estudam as leis de seus diversos países mas o conhecimento da lei civil é de caráter geral e compete a todos os homens A antiga lei de Roma era chamada sua lei civil da palavra Civitas que significa Estado E os países que tendo estado submetidos ao Império Romano e governados por essas leis ainda conservam delas a parte que consideram necessária chamam a essa parte a lei civil para distinguila do resto de suas próprias leis civis Mas não é disso que é meu propósito falar aqui pois não pretendo mostrar o que são as leis aqui e ali e sim o que é a lei Do mesmo modo que fizeram Platão Aristóteles e Cícero assim como muitos outros sem que tenham adotado como profissão o estudo das leis E em primeiro lugar é evidente que a lei em geral não é um conselho mas uma ordem E também não é uma ordem dada por qualquer um a qualquer um pois é dada por quem se dirige a alguém já anteriormente obrigado a obedecerlhe Quanto à lei civil acrescenta esta apenas o nome da pessoa que ordena que é a persona civitatis a pessoa do Estado Considerado isto defino a lei civil da seguinte maneira A lei civil é para todo súdito constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe oralmente ou por escrito ou por outro sinal suficiente de sua vontade para usar como critério de distinção entre o bem e o mal isto é do que é contrário ou não é contrário à regra Definição onde não há nada que não seja evidente à primeira vista Pois não há ninguém que não veja que algumas leis são dirigidas a todos os súditos em geral algumas só a determinadas províncias outras a determinadas vacações e outras a determinadas pessoas sendo portanto leis para aqueles a quem a ordem é dirigida e para ninguém mais E também que as leis são as regras do justo e do injusto não havendo nada que seja considerado injusto e não seja contrário a alguma lei E igualmente que ninguém pode fazer leis a não ser o Estado pois nossa sujeição é unicamente para com o Estado e que as ordens devem ser expressas por sinais suficientes pois de outro modo ninguém saberia como obedecerlhes Portanto tudo o que possa ser deduzido desta definição como conseqüência necessária deve ser reconhecido como verdadeiro E dela passo a deduzir o que se segue 1 Em todos os Estados o legislador é unicamente o soberano seja este um homem como numa monarquia ou uma assembléia como numa democracia ou numa aristocracia Porque o legislador é aquele que faz a lei E só o Estado prescreve e ordena a observância daquelas regras a que chamamos leis portanto o Estado é o único legislador Mas o Estado só é uma pessoa com capacidade para fazer seja o que for através do representante isto é o soberano portanto o soberano é o único legislador Pela mesma razão ninguém pode revogar uma lei já feita a não ser o soberano porque uma lei só pode ser revogada por outra lei que proíba sua execução 2 0 soberano de um Estado quer seja uma assembléia ou um homem não se encontra sujeito às leis civis Dado que tem o poder de fazer e revogar as leis pode quando lhe aprouver libertarse dessa sujeição revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas por conseqüência já antes era livre Porque é livre quem pode ser livre quando quiser E a ninguém é possível estar obrigado perante si mesmo pois quem pode obrigar pode libertar portanto quem está obrigado apenas perante si mesmo não está obrigado 3 Quando um costume prolongado adquire a autoridade de uma lei não é a grande duração que lhe dá autoridade mas a vontade do soberano expressa por seu silêncio pois às vezes o silêncio é um argumento de aquiescência e só continua sendo lei enquanto o soberano mantiver esse silêncio Portanto se o soberano tiver uma questão de direito que não se baseie em sua vontade presente e sim nas leis anteriormente feitas a passagem do tempo não trará prejuízo a seu direito e a questão será julgada pela eqüidade Porque muitas ações injustas e sentenças injustas passam sem controle durante mais tempo do que qualquer homem pode lembrar E nossos juristas só aceitam as leis consuetudinárias que são razoáveis e consideram necessário abolir os costumes maléficos mas a decisão sobre o que é razoável e o que deve ser abolido pertence a quem faz a lei que é a assembléia soberana ou o monarca 4 A lei de natureza e a lei civil contêmse uma à outra e são de idêntica extensão Porque as leis de natureza que consistem na eqüidade na justiça na gratidão e outras virtudes morais destas dependentes na condição de simples natureza conforme já disse no final do capítulo 15 não são propriamente leis mas qualidades que predispõem os homens para a paz e a obediência Só depois de instituído o Estado elas efetivamente se tornam leis nunca antes pois passam então a ser ordens do Estado portanto também leis civis pois é o poder soberano que obriga os homens a obedecerlhes Porque para declarar nas dissensões entre particulares o que é eqüidade o que é justiça e o que é virtude moral e tornálas obrigatórias são necessárias as ordenações do poder soberano e punições estabelecidas para quem as infringir ordenações essas que portanto fazem parte da lei civil Portanto a lei de natureza faz parte da lei civil em todos os Estados do mundo E também reciprocamente a lei civil faz parte dos ditames da natureza Porque a justiça quer dizer o cumprimento dos pactos e dar a cada um o que é seu é um ditame da lei de natureza E os súditos de um Estado fizeram a promessa de obedecer à lei civil quer a tenham feito uns aos outros como quando se reúnem para escolher um representante comum quer com o próprio representante um por um quando subjugados pela espada prometem obediência em troca da garantia da vida e em conseqüência a obediência à lei civil também faz parte da lei de natureza A lei civil e a lei natural não são diferentes espécies mas diferentes partes da lei uma das quais é escrita e se chama civil e a outra não é escrita e se chama natural Mas o direito de natureza isto é a liberdade natural do homem pode ser limitado e restringido pela lei civil mais a finalidade das leis não é outra senão essa restrição sem a qual não será possível haver paz E a lei não foi trazida ao mundo para nada mais senão para limitar a liberdade natural dos indivíduos de maneira tal que eles sejam impedidos de causar dano uns aos outros e em vez disso se ajudem e unam contra o inimigo comum 5 Se o soberano de um Estado subjugar um povo que haja vivido sob outras leis escritas e posteriormente os governar através das mesmas leis pelas quais antes eram governados essas leis serão não obstante as leis civis do Estado vencedor e não as do Estado vencido Porque o legislador não é aquele por cuja autoridade as leis pela primeira vez foram feitas mas aquele por cuja autoridade elas continuam sendo leis Portanto quando diversas províncias são abrangidas pelo domínio de um Estado e nessas províncias há uma diversidade de leis às quais geralmente se chama os costumes de cada província não devemos entender que esses costumes recebem sua força apenas da passagem do tempo Eles eram antigamente leis escritas ou de algum outro modo dadas a conhecer para as constituições e estatutos de seus soberanos E se agora são leis não é devido à prescrição do tempo e sim às constituições do atual soberano Mas se em todas as províncias de um domínio se verificar a observância geral de uma lei não escrita e se em seu uso não se manifestar qualquer iniqüidade essa lei não pode ser outra coisa senão uma lei de natureza igualmente obrigatória para todos os homens 6 Dado que todas as leis escritas ou não recebem toda sua força e autoridade da vontade do Estado quer dizer da vontade do representante que numa monarquia é o monarca e nos outros Estados a assembléia soberana há lugar para perguntar de onde derivam aquelas opiniões que se encontram nos livros de eminentes juristas de vários Estados segundo as quais o poder legislativo depende diretamente ou por conseqüência de indivíduos particulares ou juízes subordinados Como por exemplo Que a lei comum só está submetida ao controle do Parlamento o que só é verdade se o Parlamento detém o poder soberano e só pode reunirse ou dissolverse por sua própria discrição Pois se outrem tiver o direito de dissolvêlo terá o direito de controlo lo e consequentemente o de controlar seus controles E caso não exista tal direito o controlador das leis não será o Parlamentum e sim o Rex in Parlamento E quando um Parlamento é soberano por mais numerosos e mais sábios que sejam os homens que reúna das regiões a ele submetidos e seja por que motivo for tal não levará ninguém a acreditar que por isso a assembléia adquiriu o poder legislativo Item que os dois braços de um Estado são a força e a justiça dos quais o primeiro é o rei e o segundo está depositado nas mãos do Parlamento Como se fosse possível subsistir um Estado onde a força estivesse em uma mão que a justiça não tivesse a autoridade de comandar e governar 7 Que a lei nunca pode ser contrária à razão é coisa com que nossos juristas concordam assim como com que não é a letra isto é cada uma de suas frases que é a lei e sim aquilo que é conforme à intenção do legislador Isto é verdade mas subsiste a dúvida quanto àquele cuja razão deve ser aceite como lei Não pode tratarse de nenhuma razão privada porque nesse caso haveria tantas contradições nas leis como as há nas Escolas Nem tampouco como pretende Sir Edward Coke de uma perfeição artificial da razão obtida através de muito estudo observação e experiência como era a dele Porque é possível que muito estudo fortaleça e confirme sentenças errôneas e quando se constrói sobre falsos fundamentos quanto mais se constrói maior é a ruína Além disso as razões e resoluções dos que estudam e observam com igual diligência e durante tempo igual são e sempre serão discordantes Portanto o que faz a lei não é aquela juris prudência ou sabedoria dos juízes subordinados mas a razão deste nosso homem artificial o Estado e suas ordens E sendo o Estado em seu representante uma só pessoa não é fácil surgir qualquer contradição nas leis e quando tal acontece a mesma razão é capaz por interpretação ou alteração de eliminar a contradição Em todos os tribunais de justiça quem julga é o soberano que é a pessoa do Estado 0 juiz subordinado deve levar em conta a razão que levou o soberano a fazer determinada lei para que sua sentença seja conforme a esta e nesse caso a sentença é uma sentença do soberano caso contrário é dele mesmo e é injusta 8 Partindo daqui de que a lei é uma ordem e de que uma lei consiste na declaração ou manifestação da vontade de quem ordena oralmente ou por escrito ou mediante outros suficientes argumentos da mesma vontade podemos compreender que a ordem do Estado só é lei para aqueles que têm meios para dela se informarem A lei não se aplica aos débeis naturais às crianças e aos loucos tal como não se aplica aos animais nem podem eles ser classificados como justos ou injustos pois nunca tiveram capacidade para fazer qualquer pacto ou para compreender as conseqüências do mesmo portanto nunca aceitaram autorizar as ações do soberano como é necessário que façam para criar um Estado Tal como aqueles a quem a natureza ou um acidente tirou a possibilidade de informarse das leis em geral também todo aquele a quem qualquer acidente que lhe não seja imputável tirou os meios para informarse de qualquer lei será desculpado quando não a observar e para falar em termos próprios para ele essa lei não é lei Tornase portanto necessário examinar neste lugar quais os argumentos e sinais suficientes para o conhecimento do que é a lei quer dizer do que é da vontade do soberano tanto nas monarquias como nas outras formas de governo Em primeiro lugar se for uma lei obrigatória para todos os súditos sem exceção e não estiver escrita ou de algum outro modo publicada em lugares onde deles possam informarse tratase de uma lei de natureza Porque tudo que os homens conhecem como lei não através das palavras de outros homens mas cada um através de sua própria razão deve ser válido para a razão de todos os homens o que não pode acontecer com nenhuma lei a não ser a lei de natureza Portanto as leis de natureza não precisam ser publicadas nem proclamadas pois estão contidas nesta única sentença aprovada por todo o mundo Não faças aos outros o que não consideras razoável que seja feito por outrem a ti mesmo Em segundo lugar se for uma lei obrigatória apenas para uma determinada categoria de pessoas ou de uma determinada pessoa e não for escrita nem oralmente tornada pública tratase igualmente de uma lei de natureza e é conhecida pelos mesmos argumentos e sinais que distinguem essa categoria dos restantes súditos Porque toda lei que não seja escrita ou de alguma maneira publicada por aquele que faz a lei só pode ser conhecida através da razão daquele que lhe obedece portanto é uma lei também natural e não apenas civil Por exemplo se o soberano nomear um ministro público sem lhe dar instruções escritas sobre o que deve fazer o ministro é obrigado a tomar como instruções os ditames da razão Se nomear um juiz este deve tomar cuidado que sua sentença esteja de acordo com a razão de seu soberano e sendo esta sempre entendida como eqüidade é obrigatória para ele segundo a lei de natureza Se nomear um embaixador este deverá em todas as coisas que não constarem de suas instruções escritas tomar como instruções o que a razão lhe ditar como mais vantajoso para os interesses do soberano e o mesmo se passa com todos os outros ministros da soberania públicos e privados Todas estas instruções da razão natural devem ser compreendidas sob o nome comum de fidelidade que é um dos ramos da justiça natural Com exceção da lei de natureza faz parte da essência de todas as outras leis serem dadas a conhecer a todos os que são obrigados a obedecerlhes quer oralmente quer por escrito ou mediante qualquer outro ato que se saiba proceder da autoridade soberana Porque a vontade de alguém só pode ser compreendida através de suas palavras ou atos ou então por uma conjetura feita a partir de seus objetivos e propósitos os quais devem sempre ser considerados na pessoa do Estado como conformes à eqüidade e à razão E nos tempos antigos quando as cartas ainda não eram de uso comum muitas vezes as leis eram postas em verso para que o povo inculto tomando prazer em cantálas e recitálas pudesse mais facilmente guardálas na memória Pela mesma razão Salomão aconselhou a um homem que estabelecesse uma relação entre os dez mandamentos e seus dez dedos E Moisés quando deu a lei ao povo de Israel na renovação do contrato recomendou que a ensinassem a seus filhos discorrendo sobre ela tanto em casa como nos caminhos tanto ao deitar como ao levantar e escrevendoa nos montantes e nas portas de suas casas e também que se reunisse o povo homens mulheres e crianças para a ouvirem ler E não basta que a lei seja escrita e publicada é preciso também que haja sinais manifestos de que ela deriva da vontade do soberano Porque os indivíduos que têm ou julgam ter força suficiente para garantir seus injustos desígnios e leválos em segurança até seus ambiciosos fins podem publicar como lei o que lhes aprouver independentemente ou mesmo contra a autoridade legislativa Portanto não basta apenas uma declaração da lei são necessários também sinais suficientes do autor e da autoridade Em todos os Estados o autor ou legislador é considerado evidente pois ele é o soberano e tendo sido constituído pelo consentimento de todos deve considerarse que é suficientemente conhecido por todos E embora a ignorância e ousadia da maior parte dos homens seja tal que quando se desvanece a recordação da primeira constituição de seu Estado deixam de levar em conta qual o poder que costuma defendêlos de seus inimigos dá proteção a sua indústria e lhes garante justiça quando são ofendidos apesar disso dado que nenhum dos homens que tal levam em conta pode colocálo em dúvida não é possível alegar como desculpa a ignorância de onde reside a soberania E é um ditame da razão natural e consequentemente uma evidente lei de natureza que ninguém deve enfraquecer esse poder cuja proteção todos pediram ou conscientemente aceitaram contra outros Portanto ninguém pode pôr em dúvida quem é o soberano a não ser por sua própria culpa mau grado o que homens pérfidos possam sugerir A dificuldade reside na evidência da autoridade que dele deriva e a possibilidade de eliminar essa dificuldade depende do conhecimento dos registros públicos dos conselhos públicos dos ministros públicos e dos selos públicos pelos quais todas as leis são suficientemente verificadas Digo verificadas não autorizadas pois a verificação é apenas o testemunho e o registro não a autoridade da lei a qual consiste unicamente na ordem do soberano Portanto se alguém tem uma questão por injúria dependente da lei de natureza quer dizer da eqüidade comum a sentença do juiz que possui por delegação autoridade para examinar tais causas constitui nesse caso individual suficiente verificação da lei de natureza Pois embora a opinião de quem professa o estudo das leis seja útil para evitar litígios tratase apenas de uma opinião é ao juiz que compete dizer aos homens o que é a lei depois de ter escutado a controvérsia Mas quando se trata de uma questão de injúria ou crime dependente de uma lei escrita qualquer um pode se quiser ser suficientemente informado mediante o recurso aos registros por si mesmo ou através de outros antes de praticar tal injúria ou cometer o crime quer se trate de injúria ou não Mais é isso que se deve fazer Porque quando alguém duvida se um ato que vai praticar é justo ou injusto e pode informarse se quiser o ato é ilegítimo De maneira semelhante quem se considerar injuriado num caso determinado pela lei escrita a qual pode por si mesmo ou através de outros ver e examinar se se queixar antes de consultar a lei fáloá injustamente manifestando mais uma tendência para vexar os outros do que para exigir seus direitos Se a questão for de obediência a um funcionário público constitui suficiente verificação de sua autoridade ter visto sua comissão para o cargo com o selo público e ouvir sua leitura ou ter meios para dela se informar caso se queira Pois todos os homens têm a obrigação de fazer todos os esforços para se informarem de todas as leis escritas que possam ter relação com suas ações futuras Se o legislador for conhecido e se as leis tanto por escrito como pela luz da natureza forem suficientemente publicadas mesmo assim fica faltando uma circunstância absolutamente essencial para torná las obrigatórias Porque a natureza da lei não consiste na letra mas na intenção ou significado isto é na autêntica interpretação da lei ou seja do que o legislador quis dizer portanto a interpretação de todas as leis depende da autoridade soberana e os intérpretes só podem ser aqueles que o soberano única pessoa a quem o súdito deve obediência venha a designar Se assim não for a astúcia do intérprete pode fazer que a lei adquira um sentido contrário ao que o soberano quis dizer e desse modo 0 intérprete tornarseá legislador Todas as leis escritas ou não têm necessidade de uma interpretação A lei de natureza que não é escrita embora seja fácil para aqueles que sem parcialidade ou paixão fazem uso de sua razão natural deixando portanto sem desculpa seus violadores tornouse agora apesar disso devido ao fato de haver poucos ou talvez ninguém que em alguns casos não se deixe cegar pelo amor de si ou qualquer outra paixão a mais obscura de todas as leis e por isso é a que tem mais necessidade de intérpretes capazes Quanto às leis escritas se forem breves facilmente serão mal interpretadas por causa da diversidade de significações de uma ou duas palavras e se forem longas ainda serão mais obscuras devido à diversidade de significações de muitas palavras De modo que nenhuma lei escrita quer seja expressa em poucas ou em muitas palavras pode ser bem compreendida sem uma perfeita compreensão das causas finais para as quais a lei foi feita e o conhecimento dessas causas finais está com o legislador Para este portanto nenhum dos nós da lei pode ser insolúvel seja achandolhe as pontas e por aí desatandoo seja fazendo quantas pontas lhe aprouver como Alexandre fez com sua espada ao nó górdio através do poder legislativo coisa que nenhum intérprete pode fazer Num Estado a interpretação das leis de natureza não depende dos livros de filosofia moral Sem a autoridade do Estado a autoridade de tais filósofos não basta para transformar em leis suas opiniões por mais verdadeiras que sejam Tudo o que escrevi neste tratado sobre as virtudes morais e sua necessidade para a obtenção e preservação da paz embora seja evidentemente verdadeiro não passa por isso a ser lei Se o é é porque em todos os Estados do mundo faz parte das leis civis Embora seja naturalmente razoável é graças ao poder soberano que é lei Caso contrário seria um grande erro chamar lei não escrita à lei de natureza sobre a qual tantos volumes foram publicados com tão grande número de contradições uns dos outros e de si mesmos A interpretação da lei de natureza é a sentença do juiz constituído pela autoridade soberana para ouvir e determinar as controvérsias que dela dependem e consiste na aplicação da lei ao caso em questão Porque no ato de judicatura o juiz não faz mais do que examinar se o pedido de cada uma das partes é compatível com a eqüidade e a razão natural sendo portanto sua sentença uma interpretação da lei de natureza interpretação essa que não é autêntica por ser sua sentença pessoal mas por ser dada pela autoridade do soberano mediante a qual ela se torna uma sentença do soberano que então se torna lei para as partes em litígio Mas como todo juiz subordinado ou soberano pode errar em seu julgamento da eqüidade se posteriormente em outro caso semelhante considerar mais compatível com a eqüidade proferir uma sentença contrária tem obrigação de fazêlo 0 erro de um homem nunca se torna sua própria lei nem o obriga a nele persistir Nem tampouco pela mesma razão se torna lei para outros juízes mesmo que tenham jurado segui lo Pois embora uma sentença errada dada pela autoridade do soberano caso ele a conheça e autorize nas leis que são mutáveis seja a constituição de uma nova lei para os casos em que todas as mais diminutas circunstâncias sejam idênticas apesar disso nas leis imutáveis como as leis de natureza tal sentença não se torna lei para o mesmo ou outros juizes nos casos semelhantes que a partir de então possam ocorrer Os príncipes sucedem uns aos outros e um juiz passa e outro vem mais o céu e a terra passarão mas nem um artigo da lei de natureza passará porque ela é a eterna lei de Deus Portanto mesmo todas as sentenças juntas de todos os juízes que já existiram são incapazes de fazer uma lei contrária à eqüidade natural E todos os exemplos dos juízes anteriores não chegam para justificar uma sentença irracional nem para dispensar um juiz do esforço de estudar o que é a eqüidade quanto ao caso que vai julgar a partir dos princípios de sua própria razão natural Por exemplo é contrário à lei de natureza castigar os inocentes e inocente é aquele que é absolvido judicialmente e reconhecido como inocente pelo juiz Suponhamos que um homem é acusado de um crime capital e à vista do poder e malícia de algum inimigo e da freqüente corrupção e parcialidade dos juizes foge com medo de ser condenado se posteriormente for apanhado e levado a julgamento legal e mostrar suficientemente que não é culpado do crime sendo dele absolvido e não obstante for condenado à perda de seus bens tratase da manifesta condenação de um inocente Concluo assim que não há nenhum lugar do mundo onde isto possa ser considerado uma interpretação da lei de natureza ou possa ser tornado lei pelas sentenças de juízes anteriores que hajam feito o mesmo Pois aquele que julgou primeiro julgou injustamente e nenhuma injustiça pode servir de padrão para o julgamento dos juizes posteriores Pode haver uma lei escrita que proíba os inocentes de fugir e eles podem ser punidos se fugirem Mas que fugir por medo a uma injúria seja tomado como presunção de culpa depois de alguém já ter sido judicialmente absolvido do crime é contrário à natureza da presunção que não pode ter lugar depois de feito o julgamento No entanto isso é estabelecido para a lei comum da Inglaterra por um grande jurista Se um homem diz ele que é inocente for acusado de felonia e fugir com medo da acusação embora seja judicialmente absolvido da felonia deverá mau grado sua inocência perder todos os seus bens casas dívidas e deveres Porque quanto à perda destes a lei não admite prova contra a presunção legal baseada em sua fuga Vemos aqui um inocente judicialmente absolvido mau grado sua inocência quando nenhuma lei escrita o proibia de fugir depois da absolvição com base numa presunção legal ser condenado à perda de todos os seus bens Se a lei basear em sua fuga uma presunção do fato que era capital a sentença também deverá ser capital se a presunção não fosse do fato por que deveria ele perder seus bens Portanto isto não é nenhuma lei da Inglaterra e a condenação não se baseia numa presunção legal e sim numa presunção dos juizes Também é contra a lei dizer que não pode ser admitida prova contra uma presunção legal Porque qualquer juiz seja soberano ou subordinado se recusar ouvir as provas estará recusando fazer justiça Mesmo que a sentença seja justa os juízes que condenam sem ouvir as provas apresentadas são juízes injustos e sua presunção é apenas preconceito o que ninguém deve levar consigo para a sede da justiça sejam quais forem os julgamentos ou exemplos precedentes que ele pretenda estar seguindo Há outros casos desta natureza onde os julgamentos foram pervertidos por seguirem precedentes mas isto é suficiente para mostrar que embora a sentença do juiz seja lei para as partes litigantes não é lei para qualquer dos juízes que lhe venham a suceder no cargo De maneira semelhante quando é posto em questão o significado das leis escritas quem escreve um comentário delas não pode ser considerado seu intérprete Porque em geral os comentários estão mais sujeitos a objeções do que o texto suscitando novos comentários e assim tal interpretação nunca teria fim Portanto a não ser que haja um intérprete autorizado pelo soberano do qual os juízes subordinados não podem divergir os intérpretes não podem ser outros senão os juízes comuns do mesmo modo que o são no caso da lei não escrita E suas sentenças devem ser tomadas pelos litigantes como leis para aquele caso particular mas não obrigam outros juízes a dar sentenças idênticas em casos idênticos Porque é possível um juiz errar na interpretação mesmo das leis escritas mas nenhum erro de um juiz subordinado pode mudar a lei que é a sentença geral do soberano No caso das leis escritas é costume estabelecer uma diferença entre a letra e a sentença da lei Quando por letra se entende tudo o que possa inferirse das meras palavras a distinção é correta Porque a significação de quase todas as palavras quer em si mesmas quer em seu uso metafórico é ambígua e na argumentação podem adquirir muitos sentidos mas na lei há apenas um sentido Mas se por letra se entender o sentido literal nesse caso não pode haver distinção entre a letra e a sentença ou intenção da lei Porque o sentido literal é aquele que o legislador pretendia que pela letra da lei fosse significado Ora supõese que a intenção do legislador é sempre a eqüidade pois seria grande contumélia que um juiz pensasse de maneira diferente do soberano Portanto ele deve caso a palavra da lei não autorize plenamente uma sentença razoável suprila com a lei de natureza ou então se o caso for difícil suspender o julgamento até receber mais ampla autoridade Suponhamos que uma lei escrita ordene que aquele que for expulso de sua casa à força deva ser a ela restituído pela força e aconteça que por descuido alguém deixe sua casa vazia e ao voltar seja impedido de entrar pela força caso para o qual não foi estabelecida uma lei especial É evidente que este caso é abrangido pela mesma lei senão não poderia haver qualquer espécie de solução para ele o que deve ser considerado contrário à intenção do legislador Por outro lado a palavra da lei ordena que se julgue de acordo com a evidência suponhamos agora que alguém é acusado falsamente de uma ação que o próprio juiz viu ser cometida por outro e não por aquele que está sendo acusado Neste caso nem a letra da lei deve ser seguida de maneira a condenar um inocente nem o juiz deve dar sua sentença contra a evidência do testemunho porque a letra da lei diz o contrário mas deve solicitar do soberano que nomeie outro juiz e que ele próprio seja testemunha De modo que o inconveniente resultante das meras palavras de uma lei escrita pode remeter o juiz para a intenção da lei a fim de interpretála melhor mas não há inconveniente que possa justificar uma sentença contrária à lei Porque o juiz do certo e do errado não é juiz do que é conveniente ou inconveniente para o Estado As aptidões necessárias a um bom intérprete da lei quer dizer a um bom juiz não são as mesmas de um advogado a saber o estudo das leis Porque um juiz tal como deve tomar conhecimento dos fatos exclusivamente através das testemunhas assim também não deve tomar conhecimento da lei através de nada que não sejam os estatutos e constituições do soberano alegados no litígio ou a ele declarados por alguém autorizado pelo poder soberano a declarálos E não precisa preocuparse antecipadamente com o que vai julgar porque o que deverá dizer relativamente aos fatos serlheá dado pelas testemunhas e o que deverá dizer em matéria de lei serlheá dado por aqueles que em suas alegações o mostrarem o que por autoridade interpretará no próprio local Os lordes do Parlamento da Inglaterra eram juízes e causas muito difíceis foram ouvidas e decididas por eles mas poucos eram muito versados no estudo das leis e menos ainda eram os que disso faziam profissão Embora consultassem juristas nomeados para estarem presentes para esse fim só eles tinham autoridade para dar sentenças De maneira semelhante nos julgamentos de direito comum os juízes são doze homens do povo que dão sentença não apenas de fato mas também de direito e se pronunciam simplesmente pelo queixoso ou pelo acusado quer dizer são juízes não apenas do fato mas também do direito e num caso criminal não se limitam a determinar se o crime foi ou não praticado mas também se se tratou de assassinato homicídio felonia assalto e coisas semelhantes que são determinações da lei Mas como não se supõe que eles próprios conheçam a lei há alguém com autoridade para informálos dela no caso particular do qual deverão ser juízes Mas no caso de não julgarem em conformidade com o que ele lhes diz não ficam sujeitos a qualquer penalidade a não ser que se torne patente que o fizeram contra suas consciências ou que foram corrompidos por qualquer suborno As coisas que fazem um bom juiz ou um bom intérprete da lei são em primeiro lugar uma correta compreensão daquela lei principal de natureza a que se chama eqüidade A qual não depende da leitura das obras de outros homens mas apenas da sanidade da própria razão e meditação natural de cada um e portanto se deve presumir existir em maior grau nos que têm maior oportunidade e maior inclinação para sobre ela meditarem Em segundo lugar o desprezo pelas riquezas desnecessárias e pelas preferências Em terceiro lugar ser capaz no julgamento de despirse de todo medo raiva ódio amor e compaixão Em quarto e último lugar paciência para ouvir atenção diligente ao ouvir e memória para reter digerir e aplicar o que se ouviu A diferença e divisão das leis foi feita de diversas maneiras conforme os diferentes métodos daqueles que escreveram sobre elas Pois tratase de uma coisa que não depende da natureza mas da perspectiva do autor e depende do método peculiar a cada um Nas Instituições de Justiniano encontramos sete espécies de leis civis 1 Os editos constituições e epístolas do príncipe isto é do imperador porque todo o poder do povo residia nele São semelhantes a estes as proclamações dos reis da Inglaterra 2 Os decretos de todo o povo de Roma incluindo o Senado quando eram postos em discussão pelo Senado Inicialmente estes eram leis em virtude do poder soberano que residia no povo e os que não foram revogados pelos imperadores continuaram sendo leis pela autoridade imperial Porque de todas as leis que são obrigatórias se entende que são leis em virtude da autoridade de quem tem poder pára revogálas De certo modo semelhantes a estas leis são os atos do Parlamento da Inglaterra 3 Os decretos do povo comum excluindo o Senado quando eram postos em discussão pelos tribunos do povo Os que não foram revogados pelo imperador continuaram sendo leis pela autoridade imperial Eram semelhantes a estes as ordens da Câmara dos Comuns na Inglaterra 4 Senatus consulta as ordens do Senado Porque quando o povo de Roma se tornou demasiado numeroso para poder reunirse sem inconveniente o imperador considerou preferível que se consultasse o Senado em vez do povo Estas têm alguma semelhança com os atos de conselho 5 Os editos dos pretores e em alguns casos os dos edis tal como os dos juízes supremos nos tribunais ingleses 6 Responsa prudentum que eram as sentenças e opiniões dos juristas a quem o imperador dava autorização para interpretar a lei e para responder a todos quantos em matéria de lei pediam seu conselho Respostas essas que os juízes ao proferirem suas sentenças eram obrigados a respeitar pelas constituições do imperador Seriam semelhantes aos relatórios de casos julgados se as leis inglesas obrigassem os outros juízes a respeitálas Porque os juízes da lei comum na Inglaterra não são propriamente juízes mas juris consulti aos quais tanto os lordes quanto os doze homens do povo são obrigados pela lei a pedir conselho 7 Finalmente os costumes não escritos que são por natureza uma imitação da lei são autênticas leis pelo consentimento tácito do imperador caso não sejam contrários à lei de natureza Outra maneira de dividir as leis é em naturais e positivas As naturais são as que têm sido leis desde toda a eternidade e não são apenas chamadas naturais mas também leis morais Consistem nas virtudes morais como a justiça a eqüidade e todos os hábitos do espírito propícios à paz e à caridade dos quais já falei nos capítulos 14 e 15 As positivas são as que não existem desde toda a eternidade e foram tornadas leis pela vontade daqueles que tiveram o poder soberano sobre outros Podem ser escritas ou então dadas a conhecer aos homens por qualquer outro argumento da vontade de seu legislador Por outro lado das leis positivas umas são humanas e outras são divinas e das leis positivas humanas umas são distributivas e as outras penais As distributivas são as que determinam os direitos dos súditos declarando a cada um por meio do que adquire e conserva a propriedade de terras ou bens e um direito ou liberdade de ação estas leis são dirigidas a todos os súditos As penais são as que declaram qual a penalidade que deve ser infligida àqueles que violam a lei e são dirigidas aos ministros e funcionários encarregados da execução das leis Porque embora todos devam ser informados das penas previstas para suas transgressões apesar disso a ordem não se dirige ao delinqüente do qual não se pode esperar que fielmente se castigue a si próprio mas aos ministros públicos encarregados de mandar executar a penalidade Estas leis penais são em sua maioria escritas juntamente com as leis distributivas e por vezes são chamadas julgamentos Porque todas as leis são julgamentos ou sentenças gerais do legislador tal como cada julgamento particular é uma lei para aquele cujo caso é julgado As leis positivas divinas pois sendo as leis naturais eternas e universais são todas elas divinas são as que sendo os mandamentos de Deus não desde toda a eternidade nem universalmente dirigidas a todos os homens mas apenas a um determinado povo ou a determinadas pessoas são declaradas como tais por aqueles a quem Deus autorizou a assim declarálas Mas como pode ser conhecida esta autoridade do homem para declarar quais são essas leis positivas de Deus Deus pode ordenar a um homem por meios sobrenaturais que comunique leis aos outros homens Mas dado que faz parte da essência da lei que aquele que tem a obrigação receba garantias da autoridade de quem lho declara aquilo de que não podemos tomar naturalmente conhecimento que seja proveniente de Deus como é possível sem revelação sobrenatural ter a garantia da revelação recebida pelo declarante e como é possível terse a obrigação de obedecerlhe Quanto à primeira pergunta é evidentemente impossível alguém ter a garantia da revelação feita a outrem sem receber uma revelação feita particularmente a si próprio Mesmo que alguém seja levado a acreditar em tal revelação devido aos milagres que vê o outro fazer ou devido à extraordinária santidade de sua vida ou por ver a extraordinária sabedoria ou o extraordinário sucesso de suas ações essas não são provas garantidas de uma revelação especial Os milagres são feitos maravilhosos mas o que é maravilhoso para um pode não sê lo para outro A santidade pode ser fingida e os sucessos visíveis deste mundo são as mais das vezes obra de Deus através de causas naturais e vulgares Portanto ninguém pode infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação sobrenatural da vontade de Deus pode apenas ter uma crença e conforme seus sinais pareçam maiores ou menores uma crença mais firme ou uma crença mais frágil Quanto à segunda pergunta como podemos adquirir a obrigação de obedecerlhe já não é tão difícil Porque se a lei declarada não for contrária à lei de natureza a qual é indubitavelmente a lei de Deus e alguém se esforçar por obedecerlhe esse alguém é obrigado por seu próprio ato obrigado a obedecerlhe não obrigado a acreditar nela porque as crenças e cogitações interiores dos homens não estão sujeitas aos mandamentos mas apenas à operação de Deus ordinária e extraordinária A fé na lei sobrenatural não é um cumprimento mas apenas um assentimento a essa lei e não é um dever que oferecemos a Deus mas um dom que Deus faz livremente a quem lhe apraz por outro lado a incredulidade também não é uma infração de qualquer de suas leis mas uma rejeição de todas elas exceto as leis naturais Mas isto que digo ficará mais claro com os exemplos e testemunhos das Sagradas Escrituras relativos a este ponto 0 pacto que Deus fez com Abraão de maneira sobrenatural dizia o seguinte Este é o pacto que deves observar entre mim e ti e tua semente depois de ti A semente de Abraão não teve essa revelação e nem sequer ainda existia mas participou do pacto ficando obrigada a obedecer o que Abrão lhes apresentasse como lei de Deus o que só foi possível em virtude da obediência que deviam a seus pais os quais se não estiverem sujeitos a nenhum outro poder terreno como era o caso de Abraão têm poder soberano sobre seus filhos e servos Por outro lado quando Deus disse a Abraão Em ti serão abençoadas todas as nações da Terra pois sei que ordenarás a teus f lhos e a tua casa que continuem depois de ti a seguir a via do Senhor e a observar a retidão e o julgamento é evidente que a obediência de sua família que não teve qualquer revelação dependia da obrigação anterior de obedecer a seu soberano No monte Sinai só Moisés subiu até Deus 0 povo foi proibido de aproximarse sob pena de morte e mesmo assim foi obrigado a obedecer a tudo quanto Moisés lhe apresentasse como lei de Deus Com que fundamento a não ser sua própria submissão podiam dizer Fala nos e nós te ouviremos mas que Deus não nos fale senão morreremos Estas duas citações mostram suficientemente que num Estado os súditos que não tenham recebido uma revelação segura e certa relativamente à vontade de Deu feita pessoalmente a cada um deles devem obedecer como tais às ordens do Estado Porque se os homens tivessem a liberdade de tomar por mandamentos de Deus seus próprios sonhos e fantasias ou os sonhos e fantasias de determinados indivíduos dificilmente haveria dois homens capazes de concordar quanto ao que é mandamento de Deus e além disso por respeito a eles todos desprezariam os mandamentos do Estado Concluo portanto que em tudo o que não seja contrário à lei moral quer dizer à lei de natureza todos os súditos são obrigados a obedecer como lei divina ao que como tal for declarado pelas leis do Estado 0 que é evidente para a razão de qualquer homem pois tudo o que não for contrário à lei de natureza pode ser tornado lei em nome dos detentores do poder soberano e não há razão para que seja menos obrigatório obedecerlhe quando é proposta em nome de Deus Além do mais não há lugar algum no mundo onde seja permitido aceitar como mandamento de Deus o que não seja declarado como tal pelo Estado Os Estados cristãos castigam os que se rebelam contra a religião cristã assim como todos os outros Estados castigam os que aderem a qualquer religião por eles proibida Pois em tudo o que não for regulado pelo Estado é conforme à eqüidade que é a lei de natureza e portanto uma eterna lei de Deus que cada um desfrute igualmente de sua liberdade Há ainda uma outra distinção entre as leis entre as fundamentais e as não fundamentais mas nunca consegui ver em autor algum o que significa lei fundamental Não obstante é possível estabelecer sob este aspecto uma distinção razoável entre as leis Em todo Estado lei fundamental é aquela que se eliminada o Estado é destruído e irremediavelmente dissolvido como um edifício cujos alicerces se arruinam Portanto lei fundamental é aquela pela qual os súditos são obrigados a sustentar qualquer poder que seja conferido ao soberano quer se trate de um monarca ou de uma assembléia soberana sem o qual o Estado não poderia subsistir como é o caso do poder da guerra e da paz o da judicatura o da designação dos funcionários e o de fazer o que considerar necessário para o bem público Uma lei não fundamental é aquela cuja revogação não acarreta a dissolução do Estado como é o caso das leis relativas às controvérsias entre súditos E é tudo quanto à divisão das leis Penso que as expressões lex civilis e jus civile quer dizer lei e direito civil são usadas promiscuamente para designar a mesma coisa mesmo entre os mais doutos autores e não deveria ser assim Porque direito é liberdade nomeadamente a liberdade que a lei civil nos permite e a lei civil é uma obrigação que nos priva da liberdade que a lei de natureza nos deu A natureza deu a cada homem o direito de se proteger com sua própria força e o de invadir um vizinho suspeito a título preventivo e a lei civil tira essa liberdade em todos os casos em que a proteção da lei pode ser imposta de modo seguro Nessa medida lex e jus são tão diferentes como obrigação e liberdade De maneira semelhante as leis e as cartas são promiscuamente tomadas pela mesma coisa Mas as cartas são doações do soberano e não são leis mas isenções da lei Os termos usados na lei são jubeo injungo mando e ordeno e os termos usados numa carta são dedi concessi dei e concedi e o que é dado e concedido a um homem não lhe é imposto por uma lei Uma lei pode ser obrigatória para todos os súditos de um Estado mas uma liberdade ou carta destinase apenas a uma pessoa ou apenas a uma parte do povo Porque dizer que todo o povo de um Estado tem liberdade em determinado caso é o mesmo que dizer que para tal caso não foi feita lei alguma ou então que se o foi está já revogada CAPÍTULO XXVII Dos crimes desculpas e atenuantes Um pecado não é apenas uma transgressão da lei é também qualquer manifestação de desprezo pelo legislador Porque um tal desprezo é uma violação de todas as leis ao mesmo tempo Pode portanto consistir além da prática de um ato ou do pronunciar de palavras proibidas pela lei ou da omissão do que a lei ordena também na intenção ou propósito de transgredir Porque o propósito de infringir a lei manifesta um certo grau de desprezo por aquele a quem compete mandála executar Deliciarse apenas na imaginação com a idéia de possuir os bens os servos ou a mulher de um outro sem qualquer intenção de lhos tirar pela força ou pela fraude não constitui infração da lei que diz não cobiçarás Também não é pecado o prazer que se pode ter ao imaginar ou sonhar com a morte de alguém de cuja vida não se pode esperar mais do que prejuízo e desprazer só 0 é a resolução de executar qualquer ato que a tal tenda Porque sentir prazer com a ficção daquilo que agradaria se fosse real é uma paixão tão inerente à natureza tanto do homem como das outras criaturas vivas que fazer disso um pecado seria o mesmo que considerar pecado serse um homem Levando isto em conta considero excessivamente severos tanto para si próprios como para os outros os que sustentam que os primeiros movimentos do espírito são pecados embora restringidos pelo temor a Deus Mas reconheço que é mais seguro errar desse lado do que errar do outro Um crime é um pecado que consiste em cometer por feito ou por palavra um ato que a lei proíbe ou em omitir um ato que ela ordena Assim todo crime é um pecado mas nem todo pecado é um crime A intenção de roubar ou matar é um pecado mesmo que nunca se manifeste através de palavras ou atos porque Deus que vê os pensamentos dos homens pode culpálos por eles Mas antes de aparecer alguma coisa feita ou dita onde um juiz humano possa descobrir a intenção não pode falarse em crime Distinção esta já feita pelos gregos nas palavras hamártema énklema e aitía das quais a primeira que se traduz por pecado significava qualquer espécie de violação da lei e as duas últimas que se traduzem por crime significavam apenas o pecado do qual um homem pode acusar outro Não há lugar para humana acusação de intenções que nunca se tornam visíveis em ações exteriores De maneira semelhante os latinos com a palavra peccatum pecado designavam toda espécie de desvio em relação à lei e com a palavra crimen derivada de terno que significava perceber designavam apenas os pecados que podem ser apresentados perante um juiz e portanto não são simples intenções Destas relações entre o pecado e a lei e entre o crime e a lei civil pode inferirse em primeiro lugar que onde acaba a lei acaba também o pecado Mas dado que a lei de natureza é eterna a violação dos pactos a arrogância e todos os atos contrários a qualquer virtude moral nunca podem deixar de ser pecados Em segundo lugar que onde acaba a lei civil acaba também o crime pois na ausência de qualquer lei que não seja a lei de natureza deixa de haver lugar para acusação sendo cada homem seu próprio juiz acusado apenas por sua própria consciência e desculpado pela retidão de suas próprias intenções Portanto se há reta intenção o ato não é pecado e no caso contrário o ato é pecado mas não é crime Em terceiro lugar que onde não há mais poder soberano também não há mais crime pois onde não há tal poder não é possível conseguir a proteção da lei portanto cada um pode protegerse com seu próprio poder Porque no momento da instituição do poder soberano não pode suporse que ninguém renuncie ao direito de preservar seu próprio corpo para cuja segurança foi estabelecida a soberania Mas isto deve aplicarse apenas aos que não contribuíram pessoalmente para a derrubada do poder que os protegia porque isto foi um crime desde o início A fonte de todo crime é algum defeito de entendimento ou algum erro de raciocínio ou alguma brusca força das paixões 0 defeito de entendimento é ignorância e o de raciocínio é opinião errônea Além disso a ignorância pode ser de três espécies da lei dó soberano e da pena A ignorância da lei de natureza não pode ser desculpa para ninguém pois deve suporse que todo homem chegado ao uso da razão sabe que não deve fazer aos outros o que jamais faria a si mesmo Portanto seja onde for que alguém se encontre tudo o que fizer contra esta lei será um crime Se alguém vier da índia para nosso país e persuadir os homens daqui a aceitar uma nova religião ou lhes ensinar qualquer coisa que tenda à desobediência das leis deste país mesmo que esteja perfeitamente persuadido da verdade do que ensina estará cometendo um crime e pode ser justamente punido pelo mesmo não apenas por sua doutrina ser falsa mas também por estar fazendo uma coisa que não aprovaria em outrem a saber que partindo daqui procure modificar lá a religião Mas a ignorância da lei civil serve de desculpa a quem se encontrar num país estranho até que ela lhe seja declarada pois até esse momento nenhuma lei civil é obrigatória De maneira semelhante se a lei civil do próprio país não for suficientemente declarada a um homem de modo que ele possa conhecêla se quiser e se a ação não for contrária à lei de natureza a ignorância é uma desculpa razoável Nos outros casos a ignorância da lei civil não constitui desculpa A ignorância do poder soberano no país de residência habitual de um homem não o desculpa pois ele tem a obrigação de saber qual é o poder pelo qual lá tem sido protegido A ignorância da pena quando a lei é declarada não é desculpa para ninguém Pois quem infringir uma lei a qual sem o medo de uma pena não seria uma lei mas palavras vãs estará submetido à pena mesmo que não saiba qual ela é porque quem pratica voluntariamente uma ação aceita todas as conseqüências conhecidas dessa ação Ora a punição é uma conseqüência conhecida da violação das leis em qualquer Estado e se essa punição já estiver determinada pela lei é a ela que se está submetido caso contrário estáse sujeito a uma punição arbitrária Pois manda a razão que quem comete injúria sem outra limitação a não ser a de sua própria vontade sofra punição sem outra limitação a não ser a vontade daquele cuja lei foi violada Mas quando a pena está associada ao crime na própria lei ou quando ela costuma ser aplicada em casos semelhantes o delinqüente fica desculpado de uma pena maior Pois quando o castigo é previamente conhecido e não é suficientemente grande para dissuadir da ação ele constitui um convite a esta ação Pois quando alguém compara o beneficio tirado de sua injustiça com o prejuízo decorrente do castigo escolhe por necessidade da natureza o que lhe parece melhor para si mesmo e portanto quando sofre uma punição maior do que a prevista pela lei ou maior do que outros sofreram pelo mesmo crime foi a lei que o tentou e o enganou Nenhuma lei feita depois de praticado um ato pode transformar este num crime pois se o ato for contrário à lei de natureza a lei existe antes do ato e uma lei positiva não pode ser conhecida antes de ser feita portanto não pode ser obrigatória Mas quando a lei que proíbe o ato é feita antes de este praticado quem praticou o ato está sujeito à pena estabelecida posteriormente caso não seja conhecida anteriormente uma pena menor por escrito ou pelo exemplo pela razão imediatamente antes apresentada Por defeito de raciocínio quer dizer por erro os homens são capazes de violar as leis de três maneiras Em primeiro lugar por presunção de falsos princípios Por exemplo quando depois de observar que em todos os lugares e em todas as épocas foram autorizadas ações injustas pela força e as vitórias dos que as cometeram e também que quando os poderosos conseguem manejar as sutilezas das leis de seu país são só os mais fracos ou os que falharam em seus empreendimentos que são considerados criminosos observado isso passam a basear seu raciocínio nos seguintes princípios e fundamentos que a justiça não passa de uma palavra vã que tudo o que um homem consiga adquirir por sua indústria ou pela sorte lhe pertence que a prática de todas as nações não pode ser injusta que os exemplos de épocas anteriores são bons argumentos a favor de voltar afazer o mesmo e muitos outros da mesma espécie Se tais princípios forem aceites nenhum ato poderá ser por si mesmo um crime mas terá que ser tornado tal não pela lei mas pelo sucesso de quem o comete E o mesmo ato poderá ser virtuoso ou vicioso conforme à fortuna aprouver de modo que o que Marius tona um crime Sila poderá tornar meritório e César supondo que as leis não mudem poderá transformar outra vez num crime provocando a perpétua perturbação da paz do Estado Em segundo lugar por falsos mestres que deturpam a lei de natureza tornandoa incompatível com a lei civil ou então ensinam leis e doutrinas de sua autoria ou tradições de tempos anteriores que são incompatíveis com o dever de um súdito Em terceiro lugar por inferências erradas feitas a partir de princípios verdadeiros 0 que acontece geralmente aos que são apressados e precipitados em concluir e decidir o que fazer como acontece com os que ao mesmo tempo têm em alta conta seu próprio entendimento e estão convencidos de que as coisas desta natureza não exigem tempo de estudo bastando a simples experiência e um bom talento natural coisas de que ninguém se considera desprovido ao passo que ninguém pretende poder chegar ao conhecimento do bem e do mal que não é de menor dificuldade sem grandes e prolongados estudos E não há nenhum desses defeitos de raciocínio capaz de desculpar um crime embora alguns possam servir de atenuante a quem pretenda poder administrar seus negócios pessoais e muito menos a quem desempenha um cargo público Porque nesses casos pretendese ser dotado de razão e só a falta desta poderia servir de fundamento para a desculpa Das paixões que mais freqüentemente se tornam causas do crime uma é a vanglória isto é o insensato sobrestimar do próprio valor Como se a diferença de valor fosse efeito do talento da riqueza ou do sangue ou de qualquer outra qualidade natural sem depender da vontade dos que detêm a autoridade soberana De onde deriva a presunção de que as punições ordenadas pelas leis e geralmente aplicáveis a todos os súditos não deveriam ser infligidas a alguns com o mesmo rigor com que são infligidas aos homens pobres obscuros e simples abrangidos pela designação de vulgo Assim acontece muito que os que se avaliam pela importância de sua fortuna se aventuram a praticar crimes com a esperança de escapar ao castigo mediante a corrupção da justiça pública ou a obtenção do perdão em troca de dinheiro ou outras recompensas E também os que têm multidões de parentes poderosos assim como os homens populares que adquiriram boa reputação junto à multidão adquirem coragem para violar as leis devido à esperança de dominar o poder ao qual compete mandálas executar E também os que têm uma grande e falsa opinião de sua própria sabedoria se atrevem a repreender as ações e a pôr em questão a autoridade dos que os governam transtornando as leis com seu discurso público tentando fazer que só seja crime o que seus próprios desígnios exigem que o seja Também acontece aos mesmos terem tendência para todos os crimes que dependem da astúcia e da capacidade de enganar o próximo pois imaginam que seus desígnios são demasiado sutis para ser percebidos São estes os que considero os efeitos de uma falsa presunção da sabedoria própria Porque dos que são os primeiros instigadores da perturbação dos Estados o que nunca pode ocorrer sem guerra civil muito poucos serão os que viverão o bastante para assistir ao triunfo de seus novos desígnios De modo que seus crimes redundam em beneficio da posteridade e da maneira que menos teriam desejado o que prova que eles não eram tão sábios como pensavam E aqueles que enganam com a esperança de não serem descobertos geralmente se enganam a si mesmos as trevas em que pensam estar escondidos não são mais do que sua própria cegueira e não são mais sábios do que as crianças que pensam esconderse quando tapam seus próprios olhos De maneira geral todos os homens possuídos de vanglória a não ser que sejam inteiramente timoratos estão sujeitos à ira pois têm mais tendência do que os outros a interpretar como desprezo a normal liberdade de conversação E poucos são os crimes que não podem ser resultado da ira Quanto às paixões do ódio da concupiscência da ambição e da cobiça é tão óbvio quais são os crimes capazes de produzir para a experiência e entendimento de qualquer um que nada é preciso dizer sobre eles a não ser que são enfermidades tão inerentes à natureza tanto do homem como de todas as outras criaturas vivas que seus efeitos só podem ser evitados por um extraordinário uso da razão ou por uma constante severidade em seu castigo Porque em todas as coisas que odeiam os homens encontram um constante e inevitável incômodo perante o qual a paciência de cada um precisa ser inesgotável ou então é preciso encontrar alívio na eliminação do poder que causa o incômodo A primeira solução é difícil e a segunda muitas vezes é impossível sem alguma violação da lei Além disso a ambição e a cobiça são paixões que exercem continuamente sua pressão e influência ao passo que a razão não se encontra continuamente presente para resistirlhes portanto sempre que surge a esperança de impunidade verificamse seus efeitos Quanto à concupiscência o que lhe falta em continuidade sobralhe em veemência que é suficiente para dissipar o receio de castigos leves e incertos De todas as paixões a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo Mais excetuando algumas naturezas generosas é a única coisa que leva os homens a respeitálas quando a violação das leis não prece poder dar lucro ou prazer Apesar disso em muitos casos o medo pode levar a cometer um crime Porque não é qualquer espécie de medo que justifica a ação que produz mas apenas o medo de sofrimento corporal a que se chama medo físico do qual alguém seja incapaz de ver a maneira de livrarse a não ser através dessa ação Se um homem é atacado e teme uma morte imediata e não vê maneira de escapar senão ferindo quem o ataca se ferir este de morte não há crime Porque não se admite que ninguém ao criar um Estado haja renunciado à defesa de sua vida e seus membros quando não há tempo para a lei vir em seu auxílio Mas matar um homem porque devido a seus atos ou suas ameaças posso concluir que ele me matará quando puder é um crime dado que disponho de tempo e de meios para pedir proteção ao poder soberano Por outro lado se alguém sofre palavras desagradáveis ou algumas pequenas injúrias para as quais os que fizeram as leis não previram castigo nem acharam que valesse a pena um homem no uso da razão leválas em conta e tem medo caso não se vingue de tornarse objeto de desprezo ficando consequentemente sujeito a receber de outros idênticas injúrias e para evitar isto viola a lei protegendose a si mesmo para o futuro pelo terror de sua vingança privada neste caso tratase de um crime Porque o prejuízo não é corpóreo e sim fantástico e embora neste rincão do mundo seja considerado intolerável à luz de um costume iniciado não há muitos anos entre homens jovens e vaidosos tão insignificante que um homem corajoso e seguro de sua própria coragem não pode leválo em consideração Por outro lado pode acontecer que um homem tenha medo dos espíritos seja devido a sua própria superstição ou a ter dado excessivo crédito a outros homens que lhe falem de estranhos sonhos e visões Pode assim ser levado a acreditar que esses espíritos lhe causarão dano se fizer ou omitir diversas coisas cuja prática ou omissão seja contrária às leis Aquilo que nestas condições é feito ou omitido não pode ser desculpado por esse medo e é um crime Porque conforme já mostrei no segundo capítulo os sonhos são naturalmente apenas as fantasias que perduram durante o sono derivadas das impressões recebidas pelos sentidos em estado de vigília e quando por qualquer acaso não se tem a certeza de ter dormido parecem verdadeiras visões Assim quem violar a lei baseandose em seus próprios sonhos e pretensas visões ou nos de outrem ou numa fantasia do poder dos espíritos invisíveis diferente da que é permitida pelo Estado estarseá afastando da lei de natureza o que é um delito certo e estará seguindo os produtos de sua própria imaginação ou da de um outro dos quais jamais poderá saber se significam alguma coisa ou se não significam nada nem se quem lhe conta seus sonhos está mentindo ou dizendo a verdade 0 que se a cada indivíduo fosse permitido fazer como o seria pela lei de natureza se alguma houvesse nenhuma lei poderia existir e todo Estado seria dissolvido A partir destas diferentes fontes do crime já vai ficando claro que nem todos os crimes são da mesma linhagem ao contrário do que pretendiam os antigos estóicos Não apenas há lugar para desculpas mediante as quais se prova não ser crime aquilo que parecia sêlo mas também para atenuantes mediante as quais um crime que parecia grande se torna menor Embora todos os crimes mereçam igualmente o nome de injustiça tal como todo desvio de uma linha reta implica igual sinuosidade conforme acertadamente observaram os estóicos não se segue daí que todos os crimes sejam igualmente injustos tal como nem todas as linhas tortas são igualmente tortas Por deixarem de observar isto os estóicos consideravam crimes igualmente graves matar uma galinha contra a lei e matar o próprio pai 0 que desculpa inteiramente um ato tirandolhe todo caráter criminoso só pode ser aquilo que ao mesmo tempo tira à lei seu caráter obrigatório Porque se for cometido um ato contrário à lei e quem o cometeu tiver obrigação perante a lei esse ato só pode ser um crime A falta de meios para conhecer a lei desculpa totalmente porque a lei da qual não há meios para adquirir informação não é obrigatória Mas a falta de diligência para informarse não pode ser considerada como falta de meios e ninguém que pretenda possuir razão suficiente para dirigir seus próprios assuntos pode ser considerado como carente de meios para conhecer as leis de natureza pois estas são conhecidas através da razão que ele pretende possuir Só as crianças e os loucos estão desculpados de qualquer ofensa à lei natural Quando um homem se encontra em cativeiro ou em poder do inimigo e encontrase em poder do inimigo quando sua pessoa ou seus meios de vida assim se encontram se não for por sua própria culpa cessa a obrigação da lei Porque é preciso que obedeça ao inimigo para não morrer e em conseqüência disso tal obediência não é crime porque ninguém é obrigado quando falta a proteção da lei a deixar de protegerse da melhor maneira que puder Se alguém for obrigado pelo terror de uma morte iminente a praticar um ato contrário à lei fica inteiramente desculpado porque nenhuma lei pode obrigar um homem a renunciar a sua própria preservação Supondo que essa lei fosse obrigatória mesmo assim o raciocínio seria o seguinte Se não o fizer morrerei imediatamente e se o fizer morrerei mais tarde fazendoo portanto ganho tempo de vida Consequentemente a natureza obriga à prática do ato Quando alguém se encontra privado de alimento e de outras coisas necessárias a sua vida e só é capaz de preservarse através de um ato contrário à lei como quando durante uma grande fome obtém pela força ou pelo roubo o alimento que não consegue com dinheiro ou pela caridade ou quando em defesa da própria vida arranca a espada das mãos de outrem nesses casos o crime é totalmente desculpado pela razão acima apresentada Por outro lado os atos praticados contra a lei por autoridade de outrem são por essa autoridade desculpados perante o autor pois ninguém deve acusar de seu próprio ato a quem não passa de seu instrumento Mas o ato não é desculpado perante uma terceira pessoa por ele prejudicada pois na violação da lei tanto o autor como o ator são criminosos De onde se segue que quando aquele homem ou assembléia que detém o poder soberano ordena a alguém que faça uma coisa contrária a uma lei anterior esse feito será totalmente desculpado Porque o próprio soberano não deve condenálo dado ser ele o autor e o que não pode ser justamente condenado pelo soberano não pode ser justamente punido por qualquer outra pessoa Além do mais quando o soberano ordena que se faça alguma coisa contrária a sua própria lei anterior essa ordem quanto a esse ato particular é uma revogação da lei Se aquele homem ou assembléia que tem o poder soberano renunciar a qualquer direito essencial para a soberania resultando daí para o súdito a aquisição de qualquer liberdade incompatível com o poder soberano quer dizer com a própria existência do Estado se o súdito recusar obedecer suas ordens em alguma coisa contrária à liberdade concedida apesar de tudo tratase de um pecado contrário ao dever do súdito Porque este deve saber o que é incompatível com a soberania dado que esta última foi criada por seu próprio consentimento e para sua própria defesa e que essa liberdade sendo incompatível com ela foi concedida por ignorância das conseqüências funestas do ato Mas se ele não se limitar a desobedecer e além disso resistir a um ministro público em sua execução neste caso tratase de um crime pois poderia terse queixado e ver reconhecido seu direito sem qualquer violação da paz Os graus do crime distribuemse em várias escalas e são medidos em primeiro lugar pela malignidade da fonte ou causa em segundo lugar pelo contágio do exemplo em terceiro lugar pelo prejuízo do efeito e em quarto lugar pela concorrência de tempos lugares e pessoas 0 mesmo ato praticado contra a lei se derivar da presunção de força riqueza e amigos capazes de resistir aos que devem executar a lei é um crime maior do que se derivar da esperança de não ser descoberto ou de poder escapar pela fuga Porque a presunção da impunidade pela força é uma raiz da qual sempre brotou em todas as épocas e devido a todas as tentações o desprezo por todas as leis ao passo que no segundo caso o receio do perigo que leva um homem a fugir tornao mais obediente para o futuro Um crime que sabemos sêlo é maior do que o mesmo crime baseado numa falsa persuasão de que o ato é legítimo Pois quem o comete contra sua consciência está confiando em sua força ou outro poder o que o encoraja a cometer o mesmo outra vez mas quem o faz por erro volta a conformarse com a lei depois de lhe mostrarem o erro Aquele cujo erro deriva da autoridade de um mestre ou de um intérprete da lei publicamente autorizado tem menos culpa do que aquele cujo erro deriva de uma peremptória prossecução de seus próprios princípios e raciocínios Pois o que é ensinado por alguém que ensina por autoridade pública é ensinado pelo Estado e tem uma aparência de lei até que a mesma autoridade o controle e em todos os crimes que não encerram uma recusa do poder soberano nem são contrários a uma lei evidente desculpe totalmente Ao passo que quem baseia suas ações em seu juízo pessoal deve conforme a retidão ou o erro desse juízo manterse de pé ou cair por terra 0 mesmo ato se tiver sido constantemente punido em outros casos é um crime maior do que se houver muitos exemplos anteriores de impunidade Porque esses exemplos são outras tantas esperanças de impunidade dadas pelo próprio soberano E quem dá a um homem tal esperança e presunção de perdão animandoo a cometer a ofensa tem sua parte nesta última portanto não é razoável que atribua a culpa inteira ao ofensor Um crime provocado por uma paixão súbita não é tão grande como quando o mesmo deriva de uma longa meditação Porque no primeiro caso há lugar para atenuantes baseadas em geral debilidade da natureza humana mas quem o praticou com premeditação usou de circunspecção e pensou na lei no castigo e nas conseqüências do crime para a sociedade E ao cometer o crime desprezou tudo isto preferindo seu próprio apetite Mas não há paixão tão súbita que possa servir de desculpa total pois todo o tempo que medeia entre o conhecimento da lei e a prática do ato deve ser tomado como um tempo de deliberação pois cada um deve meditando sobre a lei corrigir a irregularidade de suas paixões Quando a lei é lida e interpretada pública e assiduamente perante o povo inteiro um ato praticado contra ela é um crime maior do que quando os homens não recebem essa instrução tendo de se informar com dificuldade incerteza e interrupção de seus afazeres e junto a indivíduos particulares Porque neste caso parte da culpa é atribuída à geral debilidade mas no primeiro há manifesta negligência que não deixa de implicar um certo desprezo pelo poder soberano Os atos que a lei condena expressamente mas que o legislador tacitamente aprova através de outros sinais manifestos de sua vontade são crimes menores do que os mesmos atos quando são condenados tanto pela lei como pelo legislador Dado que a vontade do legislador é a lei temos nesse caso duas leis contraditórias que serviriam de desculpa total se os homens fossem obrigados a tomar conhecimento da aprovação do soberano por outros argumentos que não os expressos por suas ordens Mas como existem castigos conseqüentes não apenas à transgressão da lei mas também a sua observância o soberano em parte é causa da transgressão e portanto não é razoável que atribua ao delinqüente todo o crime Por exemplo a lei condena os duelos e a punição é capital Em contrapartida quem recusa um duelo fica sujeito ao desprezo e ao escárnio irremediavelmente e por vezes é considerado pelo próprio soberano indigno de desempenhar qualquer cargo de comando na guerra Dado isso se alguém aceitar um duelo levando em conta que todos os homens legitimamente se esforçam por conquistar uma opinião favorável dos detentores do poder soberano manda a razão que não se aplique um castigo rigoroso dado que parte da culpa pode ser atribuída a quem castiga E não digo isto por desejar a liberdade das vinganças privadas ou qualquer outra espécie de desobediência e sim por desejar que os governantes tenham o cuidado de não sancionar obliquamente o que diretamente proíbem Os exemplos dos príncipes são e sempre foram para quem os vê mais fortes como motivos da ação do que as próprias leis E embora nosso dever seja fazer não o que eles fazem mas o que eles dizem este é um dever que só será seguido quando aprouver a Deus dar aos homens uma graça extraordinária e sobrenatural para obedecer a esse preceito Por outro lado podemos comparar os crimes em função do malefício de seus efeitos Em primeiro lugar o mesmo ata quando redunda no prejuízo de muitos é maior do que quando redunda em dano para poucos Portanto quando um ato é prejudicial não apenas no presente mas também pelo exemplo no futuro ele é um crime fértil que se multiplica em prejuízo de muitos ao passo que no segundo caso o ato é estéril Defender doutrinas contrárias à religião estabelecida pelo Estado é uma falta mais grave num pregador autorizado do que numa pessoa privada do mesmo modo que viver de modo profano ou incontinente ou praticar qualquer espécie de ação irreligiosa De maneira semelhante é um crime mais grave num mestre de leis do que em qualquer outro homem sustentar qualquer argumento ou praticar qualquer ato que contribua para o enfraquecimento do poder soberano E também no caso de um homem possuidor de tal reputação de sabedoria que todos os seus conselhos sejam seguidos e seus atos imitados por muitos se ele atentar contra a lei seu ato será um crime maior do que o mesmo ato praticado por outrem Porque tais homens não se limitam a cometer crimes mas ensinamnos como leis a todos os outros homens E de maneira geral todos os crimes se tornam maiores quando provocam escândalo quer dizer quando se tornam obstáculos para os fracos que olham menos para o caminho que estão seguindo do que para a luz que outros homens levam na sua frente Também os atos de hostilidade à situação presente do Estado são crimes maiores do que os mesmos atos praticados contra pessoas privadas porque o prejuízo se estende a todos São desse tipo a revelação das forças e dos segredos do Estado a um inimigo assim como quaisquer atentados contra o representante do Estado seja ele um monarca ou uma assembléia e todas as tentativas por palavras ou atos para diminuir a autoridade do mesmo quer no momento presente quer na sucessão Crimes que os latinos definiam como crimina laesae majestatis e consistem em propósitos ou atos contrários a uma lei fundamental De maneira semelhante os crimes que tornam sem efeito os julgamentos são maiores do que as injúrias feitas a uma ou mais pessoas por exemplo receber dinheiro para dar falso testemunho ou julgamento é um crime maior do que defraudar alguém de qualquer outra maneira numa quantia idêntica ou maior Pois não erra apenas o que fracassa nesse julgamento mas além disso todos os julgamentos se tornam inúteis dandose oportunidade ao uso da força e da vingança pessoal Também o roubo e dilapidação do tesouro ou da renda pública é um crime maior do que roubar ou defraudar um particular porque roubar o público é roubar muitos ao mesmo tempo E também a usurpação fraudulenta de um ministério público a falsificação selos públicos ou da moeda nacional é mais grave do que fazerse passar pela pessoa de um particular ou falsificar seu selo porque a primeira fraude vai prejudicar a muitos Dos atos contrários à lei praticados contra particulares o maior crime é o que provoca maior dano segundo a opinião comum entre os homens Portanto Matar contra a lei é um crime maior do que qualquer outra injúria que não sacrifique vidas Matar com tortura é mais grave do que simplesmente matar A mutilação de um membro é mais grave do que despojar alguém de seus bens E despojar alguém de seus bens pelo temor da morte ou ferimentos é mais grave do que mediante clandestina subtração E por clandestina subtração é mais grave do que por consentimento fraudulentamente conseguido a violação da castidade pela força é mais grave do que por sedução a de uma mulher casada é mais grave do que a de uma mulher solteira Porque de maneira geral é assim que essas coisas são avaliadas embora algumas pessoas sejam mais e outras menos sensíveis à mesma ofensa Mas a lei não olha ao particular e sim às inclinações gerais da espécie humana Assim a ofensa causada por contumélia seja por palavras ou gestos quando o único prejuízo que causa é o agravo de quem a recebe não foi levada em conta pelos gregos pelos romanos e por outros Estados tanto antigos quanto modernos partindo do princípio de que a verdadeira causa do agravo não está na contumélia que não produz efeitos sobre pessoas conscientes de sua própria virtude e sim na pusilanimidade de quem se considera ofendido Além disso um crime contra um particular é muito agravado pela pessoa tempo e lugar Porque matar seus próprios pais é um crime maior do que matar qualquer outro dado que o pai deve ter a honra de um soberano embora tenha cedido seu poder à lei civil pois a tinha originalmente por natureza E roubar um pobre é um crime maior do que roubar um rico pois para o pobre o prejuízo é mais importante E um crime cometido num momento e num lugar reservados à devoção é maior do que se cometido noutro momento e noutro lugar pois revela maior desprezo pela lei Poderiam acrescentarse muitos outros casos de agravantes e atenuantes mas pelos já apresentados fica fácil para qualquer um medir o nível de outros crimes que se queira considerar Por último dado que em quase todos os crimes se faz injúria não apenas a um particular mas também ao Estado o mesmo crime é chamado crime público quando a acusação é feita em nome do Estado e quando esta é feita em nome de um particular chamaselhe crime privado E os litígios a tal referentes chamamse públicos judicia publica litígios da coroa ou litígios privados Numa acusação de assassinato se o acusador é um particular o litígio é privado e se o acusador é o soberano o litígio é público CAPÍTULO XXVIII Das penas e das recompensas Uma pena é um dano infligido pela autoridade pública a quem fez ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei a fim de que assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência Antes de inferir seja o que for desta definição há uma pergunta da maior importância a que é mister responder a saber qual é em cada caso a porta por onde entra o direito ou autoridade de punir Porque pelo que anteriormente ficou dito ninguém é considerado obrigado pelo pacto a absterse de resistir à violência não podendo portanto pretenderse que alguém deu a outrem qualquer direito de pôr violentamente a mão em sua pessoa Ao fundar um Estado cada um renuncia ao direito de defender os outros mas não de defenderse a si mesmo Além disso cada um se obriga a ajudar o soberano na punição de outrem mas não na sua própria Mas prometer ajudar o soberano a causar dano a outrem só poderia equivaler a darlhe o direito de punir se aquele que assim promete tivesse ele próprio um tal direito Fica assim manifesto que o direito de punir que pertence ao Estado isto é àquele ou àqueles que o representam não tem seu fundamento em qualquer concessão ou dádiva dos súditos Mas também já mostrei que antes da instituição do Estado cada um tinha direito a todas as coisas e a fazer o que considerasse necessário a sua própria preservação podendo com esse fim subjugar ferir ou matar a qualquer um E é este o fundamento daquele direito de punir que é exercido em todos os Estados Porque não foram os súditos que deram ao soberano esse direito simplesmente ao renunciarem ao seu reforçaram o uso que ele pode fazer do seu próprio da maneira que achar melhor para a preservação de todos eles De modo que ele não lhe foi dado foilhe deixado e apenas a ele e tão completo com exceção dos limites estabelecidos pela lei natural como na condição de simples natureza ou de guerra de cada um contra seu próximo Da definição da pena infiro em primeiro lugar que nem as vinganças pessoais nem as injúrias de particulares podem propriamente ser classificadas como penas pois não derivam da autoridade pública Em segundo lugar que não constitui pena o serse esquecido ou desfavorecido pela preferência pública pois dessa maneira não se causa dano a ninguém apenas se fica na situação em que se estava antes Em terceiro lugar que os danos causados pela autoridade pública sem condenação pública anterior não devem ser classificados como penas mas como atos hostis Porque o ato devido ao qual se aplica a alguém uma pena deve primeiro ser julgado pela autoridade pública como transgressão da lei Em quarto lugar os danos infligidos pelo poder usurpado ou por juízes não autorizados pelo soberano não são penas mas atos de hostilidade porque os atos do poder usurpado não têm como autor a pessoa condenada portanto não são atos de autoridade pública Em quinto lugar que todo dano infligido sem intenção ou possibilidade de predispor o delinqüente ou outros homens através do exemplo à obediência às leis não é pena mas ato de hostilidade porque sem tal finalidade nenhum dano merece receber esse nome Em sexto lugar enquanto certas ações implicam por natureza diversas conseqüências danosas como quando ao atacar outrem alguém acaba morto ou ferido ou quando se é acometido de doença por causa da prática de um ato ilegal esses danos embora em relação a Deus que é o autor da natureza possam ser considerados infligidos sendo portanto penas divinas não podem ser considerados penas em relação aos homens porque não são infligidos pela autoridade dos homens Em sétimo lugar se o dano infligido for menor do que o benefício ou satisfação naturalmente resultante do crime cometido tal dano não é abrangido pela definição e é mais preço ou redenção do que pena aplicada por um crime Porque é da natureza das penas ter por fim predispor os homens a obedecer às leis fim esse que não será atingido se forem menores do que o beneficio da transgressão e redundará no efeito contrário Em oitavo lugar se uma pena for determinada e prescrita pela própria lei e se depois de cometido o crime for infligida uma pena mais pesada o excesso não é pena e sim ato de hostilidade Dado que a finalidade das penas não é a vingança mas o terror e dado que se tira o terror de uma pena mais pesada com a declaração de uma que o é menos a inesperada adição não faz parte da pena Mas quando a lei não determina pena alguma qualquer uma que seja infligida tem a natureza de uma pena Pois quem se arrisca a violar uma lei para a qual não está determinada uma pena espera uma pena indeterminada quer dizer arbitrária Em nono lugar os danos infligidos por um ato praticada antes de haver uma lei que o proibisse não são penas mas atos de hostilidade Porque antes da lei não há transgressão da lei e a pena supõe um ato julgado como transgressão de uma lei Portanto os danos infligidos antes de feita a lei não são penas mas atos de hostilidade Em décimo lugar os danos infligidos ao representante do Estado não são penas mas atos de hostilidade Porque é da natureza das penas serem infligidas pela autoridade pública que é apenas a autoridade do próprio representante Por último os danos infligidos a quem é um inimigo declarado não podem ser classificados como penas Dado que esse inimigo ou nunca esteve sujeito à lei e portanto não pode transgredila ou esteve sujeito a ela e professa não mais o estar negando em conseqüência que possa transgredila todos os danos que lhe possam ser causados devem ser tomados como atos de hostilidade E numa situação de hostilidade declarada é legítimo infligir qualquer espécie de danos De onde se segue que se por atos ou palavras sabida e deliberadamente um súdito negar a autoridade do representante do Estado seja qual for a penalidade prevista para a traição o representante pode legitimamente fazêlo sofrer o que bem entender Porque ao negar a sujeição ele negou as penas previstas pela lei portanto deve sofrer como inimigo do Estado isto é conforme a vontade do representante Porque as penas são estabelecidas pela lei para os súditos não para os inimigos como é o caso daqueles que tendose tornado súditos por seus próprios atos deliberadamente se revoltam e negam o poder soberano A primeira e mais geral distribuição das penas é em divinas e humanas Das primeiras terei ocasião de falar mais adiante em lugar mais conveniente As penas humanas são as que são infligidas por ordem dos homens e podem ser corporais pecuniárias a ignomínia a prisão o exílio ou uma mistura destas As penas corporais são as infligidas diretamente ao corpo e conforme a intenção de quem as inflige como a flagelação os ferimentos ou a privação dos prazeres do corpo de que anteriormente legitimamente se desfrutava Destas penas umas são capitais e outras menos do que capitais Pena capital é a morte dada de modo simples ou com tortura Menos do que capitais são a flagelação os ferimentos as cadeias ou quaisquer outras dores corporais que por sua própria natureza não são mortais Porque se quando da aplicação de uma pena resultar a morte sem ser por intenção de quem a aplicou a pena não deve ser considerada capital mesmo que o dano resulte mortal devido a um acidente imprevisível caso em que a morte não é infligida mas apressada As penas pecuniárias são as que consistem não apenas no confisco de uma soma em dinheiro mas também de terras ou quaisquer outros bens que geralmente são comprados e vendidos por dinheiro Caso a lei que estabelece uma dessas penas seja feita com o propósito de reunir dinheiro daqueles que a transgredirem não se trata propriamente de uma pena e sim do preço de um privilégio e isenção da lei a qual não proíbe o ato de maneira absoluta mas proíbeo apenas aos que não têm a possibilidade de pagar a soma em questão Fora quando se trata de uma lei natural ou de parte da religião pois nestes casos não se trata de uma isenção da lei mas de sua transgressão Se por exemplo uma lei impuser uma multa pecuniária aos que usarem o nome de Deus em vão o pagamento da multa não será o preço de uma licença para praguejar mas uma pena aplicada à transgressão de uma lei indispensável De maneira semelhante se uma lei impuser o pagamento de uma quantia em dinheiro a quem foi injuriado tratase apenas de uma compensação do dano causado que extingue apenas a acusação da parte injuriada e não o crime do ofensor A ignomínia consiste em punir com um mal considerado desonroso dentro do Estado ou em privar de um bem considerado honroso dentro do mesmo Porque algumas coisas são honrosas por natureza como os efeitos da coragem da magnanimidade da força da sabedoria e outras qualidades do corpo e do espírito Outras são tornadas honrosas pelo Estado como as insígnias títulos e cargos assim como quaisquer outros sinais singulares do favor do soberano As primeiras se podemos delas ser privados por natureza ou acidente não nos podem ser tiradas pela lei portanto sua perda não constitui uma pena Mas as últimas podem ser tiradas pela autoridade que as tornou honrosas e neste caso tratase de penas propriamente ditas como quando se degrada um condenado privandoo de suas insígnias títulos e cargos ou declarandoo indigno dos mesmos para futuro A prisão ocorre quando alguém é privado da liberdade pela autoridade pública e pode ser imposta tendo em vista dois fins diferentes sendo um deles a segura custódia do acusado e o outro a aplicação de uma penalidade ao condenado No primeiro caso não se trata de uma pena pois a ninguém tal se pode aplicar antes de ser judicialmente ouvido e declarado culpado Portanto seja qual for o dano infligido a um homem por prisão ou confinamento antes de sua causa ser ouvida para além do que for necessário para garantir sua custódia é contrário à lei de natureza Mas no outro caso tratase de uma pena porque é um dano infligido pela autoridade pública em virtude de algo que foi pela mesma autoridade considerado transgressão da lei A palavra prisão abrange toda restrição de movimentos causada por um obstáculo exterior seja uma casa a que se dá o nome geral de prisão seja uma ilha caso em que se diz que as pessoas lá ficam confinadas seja um lugar onde as pessoas são obrigadas a trabalhar como antigamente se condenavam as pessoas às pedreiras e atualmente se condenam às galés seja mediante correntes ou qualquer outro impedimento 0 exílio banimento ocorre quando por causa de um crime alguém é condenado a sair dos domínios do Estado ou de uma de suas partes para durante um tempo determinado ou para sempre ficar impedido de lá voltar E por sua própria natureza sem outras circunstâncias não parece ser uma pena mas mais uma fuga ou então uma ordem pública para através da fuga evitar a aplicação da pena Cícero dizia que jamais tal pena foi aplicada na cidade de Roma e chamavalhe um refúgio para quem está em perigo Se alguém for banido e apesar disso for autorizado a desfrutar de seus bens e do rendimento de suas terras a simples mudança de ares não constitui uma penalidade nem contribui para beneficio do Estado em função do qual todas as penas são ditadas quer dizer para que a vontade dos homens seja conformada à observância da lei e muitas vezes constitui um prejuízo para o Estado Porque um homem banido é um inimigo legítimo do Estado que o baniu pois não é mais um membro desse Estado Mas se além disso for privado de suas terras ou bens nesse caso não é no exílio que a pena consiste e esta deve ser incluída entre as penas pecuniárias Todas as penas aplicadas a súditos inocentes quer sejam grandes ou pequenas são contrárias à lei de natureza pois as penas só podem ser aplicadas por transgressão da lei não podendo portanto os inocentes sofrer penalidades Isso é portanto uma violação em primeiro lugar daquela lei de natureza que proíbe a todos os homens em suas vinganças olhar a algo que não seja o bem futuro pois nenhum bem pode resultar para o Estado da punição de um inocente Em segundo lugar daquela que proíbe a ingratidão dado que todo poder soberano originalmente é dado pelo consentimento de cada um dos súditos a fim de que por ele sejam protegidos enquanto se mantiverem obedientes a punição de um inocente equivale a pagar um bem com um mal Em terceiro lugar daquela lei que ordena a eqüidade quer dizer uma distribuição eqüitativa da justiça o que deixa de se respeitar quando se castiga um inocente Mas infligir qualquer dano a um inocente que não é súdito se for para beneficio do Estado e sem violação de qualquer pacto anterior não constitui desrespeito à lei de natureza Porque todos os homens que não são súditos ou são inimigos ou deixaram de sêlo em virtude de algum pacto anterior E contra os inimigos a quem o Estado julgue capaz de lhe causar dano é legítimo fazer guerra em virtude do direito de natureza original no qual a espada não julga nem o vencedor faz distinção entre culpado e inocente como acontecia nos tempos antigos nem tem outro respeito ou clemência senão o que contribui para o bem de seu povo É também com este fundamento que no caso dos súditos que deliberadamente negam a autoridade do Estado a vingança se estende legitimamente não apenas aos pais mas também à terceira e quarta gerações ainda não existentes que consequentemente são inocentes do ato por causa do qual vão sofrer Porque a natureza desta ofensa consiste na renúncia à sujeição que é um regresso à condição de guerra a que vulgarmente se chama rebelião e os que assim ofendem não sofrem como súditos mas como inimigos Porque a rebelião é apenas a guerra renovada A recompensa pode ser por dádiva ou por contrato Quando é por contrato chamase salário ou ordenado que é o beneficio devido por serviços prestados ou prometidos Quando é por dádiva é um beneficio proveniente da graça de quem o confere a fim de estimular ou capacitar alguém para lhe prestar serviços Portanto quando o soberano de um Estado estipula um salário para qualquer cargo público aquele que o recebe é obrigado em justiça a desempenhar seu cargo no caso contrário fica apenas obrigado pela honra a reconhecer e a esforçarse por retribuir Embora não haja para os homens solução legítima quando se lhes ordena que abandonem seus negócios pessoais para desempenharem funções públicas sem recompensa ou salário mesmo assim não são a tal obrigados nem pela lei de natureza nem pela instituição do Estado a não ser que o serviço em questão não possa ser realizado de outra maneira Porque se considera que o soberano pode fazer uso de todas as capacidades desses homens desde que a estes se reconheça o mesmo direito que ao mais ínfimo soldado o de reclamar como uma dívida o pagamento dos serviços prestados Os benefícios outorgados pelo soberano a um súdito por medo de seu poder ou de sua capacidade para causar dano ao Estado não são propriamente recompensas Não são salários porque neste caso não se supõe a existência de qualquer contrato pois cada um já se encontra obrigado a não causar prejuízos ao Estado Também não são graças porque são extorquidos pelo medo o qual nunca deve afetar o poder soberano São mais sacrifícios feitos pelo soberano considerado em sua pessoa natural e não na pessoa do Estado com o fim de aplacar o descontentamento de quem considera mais poderoso do que ele próprio para estimulálo não à obediência mas pelo contrário à continuação e intensificação de futuras extorsões Enquanto alguns salários são certos provenientes do tesouro público e outros são incertos ou ocasionais provenientes da execução ao cargo para o qual o salário foi estipulado em alguns casos os últimos são nocivos para o Estado como por exemplo no caso da judicatura Com efeito quando o beneficio dos juízes e ministros dos tribunais de justiça resulta da multidão de causas que são levadas a seu conhecimento daí se seguem necessariamente dois inconvenientes Um deles é a multiplicação dos processos porque quantos mais eles forem maior será o beneficio 0 outro depende do primeiro e é a competição acerca da jurisdição pois cada tribunal procura atribuirse o julgamento do maior número possível de processos Mas nos cargos executivos estes inconvenientes não se verificam pois o lucro não pode ser aumentado por qualquer esforço que possa despenderse E isto bastará quanto à natureza das penas e das recompensas as quais são como que os nervos e tendões que movem os membros e as juntas de um Estado Expus até aqui a natureza do homem cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeterse ao governo juntamente com o grande poder de seu governante ao qual comparei com o Leviatã tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó onde Deus após ter estabelecido o grande poder do Levialâ lhe chamou Rei dos Soberbos Não há nada na Terra disse ele que se lhe possa comparar Ele é feito de maneira a nunca ter medo Ele vê todas as coisas abaixo dele e é o Rei de todos os Filhos da Soberba Mas dado que é mortal e sujeito à degenerescência do mesmo modo que todas as outras criaturas terrenas e dado que existe no céu embora não na terra algo de que ele deve ter medo e a cuja lei deve obedecer vou falar no capítulo seguinte de suas doenças e das causas de sua mortalidade e de quais as leis de natureza a que deve obedecer CAPÍTULO XXIX Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado Muito embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal contudo se os homens se servissem da razão da maneira como fingem fazêlo podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males internos Pois pela natureza de sua instituição estão destinados a viver tanto tempo quanto a humanidade ou quanto as leis de natureza ou quanto a própria justiça que lhes dá vida Portanto quando acontece serem dissolvidos não por violência externa mas por desordem intestina a causa não reside nos homens enquanto matéria mas enquanto seus obreiros e organizadores Pois os homens quando finalmente se cansam de conflitos irregulares e de ataques mútuos e desejam de todo coração transformarse num edifício sólido e duradouro por falta quer da arte de fazer leis adequadas para nortear as suas ações quer também da humildade e paciência para aceitarem ver suprimidos os aspectos grosseiros e rudes da sua presente grandeza não conseguem sem a ajuda de um arquiteto muito hábil ser reunidos em outra coisa que não seja um edifício desordenado o qual mesmo que consiga agüentarse durante sua própria época necessariamente cairá sobre a cabeça da posteridade Portanto entre as enfermidades de um Estado incluirei em primeiro lugar aquelas que têm origem numa instituição imperfeita e se assemelham às doenças de um corpo natural que provêm de uma procriação defeituosa Esta é uma dessas enfermidades Um homem para obter um reino contentase muitas vezes com menos poder do que é necessário para a paz e defesa do Estado Donde se segue que quando o exercício do poder é assumido para salvação pública tem a aparência de um ato injusto que predispõe um grande número de homens quando a ocasião se apresenta para a rebelião do mesmo modo que os corpos das crianças concebidas por pais enfermos estão sujeitos quer a uma morte precoce quer à expulsão da má qualidade resultante da sua concepção viciosa através de cálculos e pústulas E quando os reis se negam a si próprios uma parte desse poder tão necessário nem sempre é muito embora por vezes o seja por ignorância daquilo que é necessário ao cargo que ocupam mas muitas vezes pela esperança de a recuperarem quando lhes aprouver No que não raciocinam corretamente porque os que quiserem obrigálos a cumprir suas promessas serão ajudados contra eles pelos Estados estrangeiros os quais para bem de seus próprios súditos não perderão uma ocasião de enfraquecer o domínio dos seus Vizinhos Thomas Becker arcebispo de Canterbury foi assim apoiado contra Henrique 11 pelo Papa tendo a sujeição dos eclesiásticos ao Estado sido dispensada por Guilherme o Conquistador no momento da sua recepção quando jurou não infringir a liberdade da Igreja Do mesmo modo os barões cujo poder foi elevado a um grau incompatível com o poder soberano por Guilherme Rufus a fim de obter sua ajuda na transferência da sucessão de seu irmão mais velho para ele próprio foram ajudados pelos franceses em sua rebelião contra o rei João Mas isto não acontece apenas nas monarquias Pois enquanto a fórmula do antigo Estado romano era o Senado e o povo de Roma nem o Senado nem o povo aspiravam à totalidade do poder o que primeiro causou as sedições de Tibério Graco Caio Graco Lúcio Saturnino e outros e mais tarde as guerras entre o Senado e o Povo no tempo de Mário e Sila e novamente no tempo de Pompeu e César com a extinção de sua democracia e a instalação da monarquia 0 povo de Atenas obrigouse reciprocamente a tudo menos a uma única ação a saber que ninguém sob pena de morte podia propor o recomeço da guerra pela ilha de Salamina e contudo por essa razão se Sólon não espalhasse que estava louco e se mais tarde com os gestos e os trajos de um louco e em verso não a tivesse proposto ao povo que o rodeava teriam tido um inimigo perpetuamente em pé de guerra mesmo às portas da sua cidade Todos os Estados que têm seu poder limitado mesmo que seja pouco estão sujeitos a tais inconvenientes ou estratagemas Em segundo lugar examinarei as doenças de um Estado que derivam do veneno das doutrinas sediciosas uma das quais é a seguinte Todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações Isto é verdade na condição de simples natureza quando não existem leis civis e também sob o governo civil nos casos que não estão determinados pela Lei Mas não sendo assim é evidente que a medida das boas e más ações é a lei civil e o juiz o legislador que sempre é representativo do Estado Partindo desta falsa doutrina os homens adquirem a tendência para debater consigo próprios e discutir as ordens do Estado e mais tarde para obedecê las ou desobedecêlas conforme acharem conveniente em seus juízos particulares Pelo que o Estado é perturbado e enfraquecido Outra doutrina incompatível com a sociedade civil é a de que é pecado o que alguém fazer contra sua consciência e depende do pressuposto de que o homem é juiz do bem e do mal Pois a consciência de um homem e seu juízo são uma e a mesma coisa e tal como o juízo também a consciência pode ser errônea Portanto muito embora aquele que não está sujeito à lei civil peque em tudo o que fizer contra sua consciência porque não possui qualquer outra regra que deva seguir senão sua consciência contudo o mesmo não acontece com aquele que vive num Estado porque a lei é a consciência pública pela qual já aceitou ser conduzido De outro modo no meio de uma tal diversidade de consciências particulares que não passam de opiniões particulares o Estado tem necessariamente de ser perturbado e ninguém ousa obedecer ao poder soberano senão na medida em que isso se lhe afigurar bom a seus próprios olhos Também tem sido freqüentemente ensinado que a fé e a santidade não podem ser atingidas pelo estudo e pela razão mas sim por inspiração sobrenatural ou infusão o que uma vez aceite não vejo por que razão alguém deveria justificar a sua fé ou por que razão todos os cristãos não seriam também profetas ou por que razão alguém deveria seguir como regra de ação a lei de seu país em vez de sua própria inspiração E assim caímos outra vez no erro de atribuir a nós mesmos o julgar do bem e do mal ou de tornar seus juízes esses indivíduos particulares que fingem ser inspirados sobrenaturalmente o que leva à dissolução de todo governo civil A fé vem pelo ouvido e ouvindo por aqueles acidentes que nos guiam à presença daqueles que nos falam os quais acidentes são todos provocados por Deus todopoderoso e contudo não são sobrenaturais mas apenas inobserváveis devido ao grande número que concorre para qualquer efeito Sem dúvida a fé e a santidade não são muito freqüentes contudo não são milagres mas provocadas pela educação pela disciplina pela correção e por outros meios naturais pelos quais Deus as produz em seu eleito no momento que julgar adequado E estas três opiniões perniciosas à paz e ao governo têm nesta parte do mundo tido origem principalmente nas palavras e nos escritos de teólogos ignorantes os quais juntando as palavras das Sagradas Escrituras de uma maneira diversa daquela que é conforme à razão fazem tudo para levar os homens a pensar que a santidade e a razão natural não podem coexistir Uma quarta opinião incompatível com a natureza do Estado é a de que o detentor do poder soberano está sujeito às leis civis É certo que todos os soberanos estão sujeitos às leis de natureza porque tais leis são divinas e não podem ser revogadas por nenhum homem ou Estado Mas o soberano não está sujeito àquelas leis que ele próprio ou melhor que o Estado fez Pois estar sujeito a leis é estar sujeito ao Estado isto é ao soberano representante isto é a si próprio o que não é sujeição mas liberdade em relação às leis Este erro porque coloca as leis acima do soberano coloca também um juiz acima dele com poder para punilo o que é fazer um novo soberano e também pela mesma razão um terceiro para punir o segundo e assim sucessivamente ao infinito para confusão e dissolução do Estado A quinta doutrina que tende para a dissolução do Estado é que todo indivíduo particular tem propriedade absoluta de seus bens a ponto de excluir o direito do soberano Todo homem tem na verdade uma propriedade que exclui o direito de qualquer outro súdito e temna apenas devido ao poder soberano sem cuja proteção qualquer outro homem teria igual direito à mesma coisa Mas se o direito do soberano for também excluído ele não poderá desempenhar o cargo em que o colocaram o qual consiste em defendêlos quer dos inimigos externos quer dos ataques uns dos outros e consequentemente deixará de haver Estado E se a propriedade dos súditos não exclui o direito do soberano representante aos bens deles muito menos o exclui em relação aos cargos de judicatura ou de execução nos quais representam o próprio soberano Existe uma sexta doutrina aberta e diretamente contrária à essência do Estado que é esta o poder soberano pode ser dividido Pois em que consiste dividir o poder de um Estado senão em dissolvêlo uma vez que os poderes divididos se destroem mutuamente uns aos outros E para estas doutrinas os homens apóiam se principalmente em alguns daqueles que fazendo das leis sua profissão tentam tornatas dependentes de seu próprio saber e não do poder legislativo E do mesmo modo que as falsas doutrinas também muitas vezes o exemplo de governos diferentes em nações vizinhas predispõe os homens para a alteração da forma já estabelecida Assim o povo dos judeus foi levado a rejeitar Deus e a pedir ao profeta Samuel um rei à maneira das outras nações do mesmo modo as cidades menores da Grécia foram continuamente perturbadas com sedições das facções aristocrática e democrática desejando uma parte de quase todos os Estados imitar os lacedemônios e a outra parte os atenienses E não duvido que muitos homens tenham ficado contentes com as recentes perturbações na Inglaterra à imitação dos Países Baixos supondo que de nada mais precisavam para se tornarem ricos do que mudar como tinham feito a forma do seu governo pois a constituição da natureza humana está em si sujeita ao desejo de novidade Quando portanto são provocados para o mesmo também pela vizinhança daqueles que foram enriquecidos por ela é quase impossível que não fiquem contentes com aqueles 4ie os solicitam para a mudança e que não gostem dos primeiros tempos muito embora se aflijam com a continuação da desordem tal como aqueles impacientes que começando com coceira se arranham com suas próprias unhas a ponto de não poderem mais suportar o ardor Quanto à rebelião centra a monarquia em particular uma de suas causas mais freqüentes é a leitura de livros de política e de história dos antigos gregos e romanos da qual os jovens e todos aqueles que são desprovidos do antídoto de uma sólida razão recebendo uma impressão forte e agradável das grandes façanhas de guerra praticadas pelos condutores dos exércitos formam uma idéia agradável de tudo o que fizerem além disso e julgam que sua grande prosperidade procedeu não da emulação de indivíduos particulares mas da virtude da sua forma de governo popular não atentando nas freqüentes sedições e guerras civis provocadas pela imperfeição da sua política A partir da leitura digo de tais livros os homens resolveram matar seus reis porque os autores gregos e latinos em seus livros e discursos de política consideraram legítimo e louvável fazêlo desde que antes de matalo o chamassem de tirano pois não dizem que seja legítimo o regicídio isto é o assassinato de um rei mas sim o tiranicídio isto é o assassinato de um tirano A partir dos mesmos livros aqueles que vivem numa monarquia formam a opinião de que os súditos de um Estado popular gozam de liberdade e aqueles que o são de uma monarquia são todos escravos Repito aqueles que vivem numa monarquia formam tal opinião mas não aqueles que vivem num governo popular pois não o verificam Em resumo não consigo imaginar coisa mais prejudicial a uma monarquia do que a permissão de se lerem tais livros em público sem mestres sensatos lhes fazerem aquelas correções capazes de retirarlhes o veneno que contêm veneno esse que não hesito em comparar à mordida de um cão raivoso que constitui uma doença denominada pelos físicos hidrofobia ou medo da água Pois aquele que assim foi mordido tem um contínuo tormento de sede e contudo não pode ver a água e fica num estado como se o veneno conseguisse transformálo num cão do mesmo modo quando uma monarquia é mordida até ao âmago por aqueles autores democráticos que continuamente rosnam em suas terras ela de nada mais precisa do que de um monarca forte que contudo quando surgir será detestado devido a uma certa tiranofobia ou medo de ser governado pela força Assim como houve doutores que sustentaram que há três almas no homem também há aqueles que pensam poder haver mais de uma alma isto é mais de um soberano num Estado e levantam a supremacia contra a soberania os cânones contra as leis e a autoridade espiritual contra a autoridade civil atuando sobre o espírito dos homens com palavras e distinções que em si nada significam mas que mostram por sua obscuridade que aparece no escuro como alguns pensam de maneira invisível um outro reino como se fosse um reino de fadas Ora dado ser manifesto que o poder civil e o poder do Estado são uma e a mesma coisa e que a supremacia e o poder de fazer cânones e conceder faculdades implica um Estado seguese que onde um é soberano e o outro é supremo onde um pode fazer leis e o outro pode fazer cânones tem de haver dois Estados para os mesmos súditos o que é um reino dividido e que não pode durar Pois apesar da insignificante distinção entre temporal e espiritual não deixa de haver dois reinos e cada súdito fica sujeito a dois senhores Pois dado que o poder espiritual assume o direito de declarar o que é pecado assume por conseqüência o direito de declarar o que é lei nada mais sendo o pecado do que a transgressão da lei e dado que por sua vez o poder civil assume o direito de declarar o que é lei todo súdito tem de obedecer a dois senhores ambos os quais querem ver suas ordens cumpridas como leis o que é impossível Ora se houver apenas um reino ou o civil que é o poder do Estado tem de estar subordinado ao espiritual e então não há nenhuma soberania exceto a espiritual ou o espiritual tem de estar subordinado ao temporal e então não existe outra supremacia senão a temporal Quando portanto estes dois poderes se opõem um ao outro a Estado só pode estar em grande perigo de guerra civil e de dissolução Pois sendo a autoridade civil mais visível e erguendose na luz mais clara da razão natural não pode fazer outra coisa senão atrair a ela em todas as épocas uma parte muito considerável do povo e a espiritual muito embora se levante na escuridão das distinções da Escola e das palavras difíceis contudo porque o receio da escuridão e dos espíritos é maior do que os outros temores não pode deixar de congraçar um partido suficiente para a desordem e muitas vezes para a destruição de um Estado E isto é uma doença que não sem adequadação pode compararse à epilepsia ou doença de cair que os judeus consideravam como uma espécie de possessão pelos espíritos no corpo natural Pois assim como nesta doença há um espírito não natural ou vento na cabeça que obstrui as raízes dos nervos e que agitandoos violentamente faz desaparecer o movimento que naturalmente eles deviam ter como resultado do poder da alma sobre o cérebro e que por isso causa movimentos violentos e irregulares que os homens chamam convulsões nas partes a ponto de aquele que é tomado por eles cair umas vezes na água outras vezes no fogo como um homem destituído de sentidos assim também no corpo político quando o poder espiritual agita os membros de um Estado pelo terror dos castigos e pela esperança das recompensas que são seus nervos e não pelo poder civil que é a alma do Estado como deviam ser movidos e por meio de palavras estranhas e difíceis sufoca seu entendimento precisa por isso de distrair o povo e ou submergir o Estado na opressão ou lançálo no fogo de uma guerra civil Acontece por vezes também que no governo meramente civil há mais do que uma alma como quando o poder de arrecadar impostos que é a faculdade nutritiva depende de uma assembléia geral o poder de conduzir e comandar que é a faculdade motora depende de um só homem e o poder de fazer leis que é a faculdade racional depende do consenso acidental não apenas daqueles dois mas também de um terceiro Isto causa perigos no Estado umas vezes por falta de consenso para boas leis mas muitas vezes por falta daquele alimento que é necessário para a vida e para o movimento Pois muito embora alguns percebam que tal governo não é governo mas divisão do Estado em três facções e o chamem monarquia mista contudo a verdade é que não é um Estado independente mas três facções independentes não uma pessoa representativa mas três No reino de Deus pode haver três pessoas independentes sem quebra da unidade no Deus que reina mas quando são os homens que reinam e estão sujeitos à diversidade de opiniões isso não pode acontecer E portanto se o rei representa a pessoa do povo e a assembléia geral também representa a pessoa do povo e uma outra assembléia representa a pessoa de uma parte do povo não há apenas uma pessoa nem um soberano mas três pessoas e três soberanos Não sei a que doença do corpo natural do homem posso comparar exatamente esta irregularidade de um Estado Mas uma vez vi um homem que tinha outro homem ligado a um de seus lados com cabeça braço tronco e estômago próprios se tivesse outro homem do outro lado a comparação podia então ser exata Até aqui tenhome referido àquelas doenças do Estado que representam um perigo maior e mais premente Há outras não tão graves que convém contudo observar Em primeiro lugar a dificuldade de conseguir dinheiro para os gastos necessários do Estado especialmente em vésperas de guerra Esta dificuldade surge da opinião de que todo o súdito tem em suas terras e bens uma propriedade exclusiva do direito do soberano ao uso dos mesmos Daqui se segue que o poder soberano que prevê as necessidades e perigos do Estado encontrando obstruída pela teimosia do povo a passagem do dinheiro para o tesouro público quando devia ampliarse para enfrentar e evitar tais perigos em seu início contraise tanto quanto possível e quando já não pode fazêlo mais luta com o povo por meio dos estratagemas da lei a fim de obter pequenas somas que não sendo suficientes o levam a finalmente decidirse a abrir violentamente o caminho para o fornecimento necessário sem o qual perecerá e sendo muitas vezes levado a estes extremos reduz por fim o povo à atitude devida caso contrário o Estado perecerá necessariamente De tal modo que podemos muito bem comparar esta alteração a uma febre intermitente na qual estando congeladas as partes carnosas ou obstruídas por matéria peçonhenta as veias que por seu curso natural desembocam no coração não são como deviam ser supridas pelas artérias donde resulta primeiro uma contração fria e um tremor dos membros e depois um esforço violento e forte do coração a fim de forçar a passagem do sangue e antes que o consiga fazer contentase com os pequenos alívios provocados por aquelas coisas que refrescam momentaneamente até que se a natureza for suficientemente forte vence finalmente a resistência das partes obstruídas e dissipa o veneno em suor ou então se a natureza for demasiado fraca o doente morre Também existe às vezes no Estado uma doença que se assemelha à pleurisia quando o tesouro do Estado saindo de seu curso normal se concentra com demasiada abundância em um ou vários indivíduos particulares por meio de monopólios ou de contratos das rendas públicas do mesmo modo que o sangue numa pleurisia alcançando a membrana do tórax causa aí uma inflamação acompanhada de febre e de pontadas dolorosas Também a popularidade de um súdito poderoso a menos que o Estado tenha uma caução muito forte da sua fidelidade constitui uma perigosa doença porque o povo que devia receber seu movimento da autoridade do soberano através da adulação e da reputação de um homem ambicioso é desviado de sua obediência às leis para seguir alguém cujas virtudes e desígnios desconhece E isto representa habitualmente um perigo maior num governo popular do que numa monarquia porque o exército é tão forte e numeroso que se torna fácil acreditar que ele é o povo Foi por este meio que Júlio César erguido pelo povo contra o Senado tendo conquistado para si próprio a lealdade do seu exército tornouse senhor tanto do Senado como do povo E este procedimento de homens populares e ambiciosos é pura rebelião e pode ser comparado aos efeitos da feitiçaria Outra enfermidade do Estado é a grandeza imoderada de uma cidade quando esta é capaz de fornecer por si própria os contingentes e os recursos para um grande exército como também constitui uma enfermidade o grande número de corporações que são como que muitos Estados menores nas entranhas de um maior como vermes nas entranhas do homem natural Ao que deve acrescentarse a liberdade de discutir com o poder absoluto daqueles que fingem ter prudência política os quais educados na maior parte entre as fezes do povo contudo animados por falsas doutrinas estão em perpétua contenda com as leis fundamentais para grande prejuízo do Estado tal como os pequenos vermes que os físicos denominam ascárides Podemos ainda acrescentar o apetite insaciável ou bulimia de alargar os domínios com as feridas incuráveis muitas vezes por isso mesmo recebidas do inimigo e os tumores de conquistas caóticas que constituem muitas vezes uma carga e que são conservadas com maior perigo do que se fossem perdidas e também a letargia do ócio e a consumpção dos distúrbios e vãs despesas Finalmente quando numa guerra externa ou intestina os inimigos obtêm uma vitória final a ponto de não se mantendo mais em campo as forças do Estado não haver mais proteção dos súditos leais então está o Estado dissolvido e todo homem tem a liberdade de protegerse a si próprio por aqueles meios que sua prudência lhe sugerir Pois o soberano é a alma pública que dá vida e movimento ao Estado a qual expirando os membros deixam de ser governados por ela tal como a carcaça do homem quando se separa de sua alma ainda que imortal Pois muito embora o direito de um monarca soberano não possa ser extinguido pelo ato de outro contudo a obrigação dos membros pode Pois aquele que quer proteção pode procurála em qualquer lugar e quando a obtém fica obrigado sem a pretensão fraudulenta de se ter submetido por medo a proteger sua proteção enquanto for capaz Mas quando o poder de uma assembléia é suprimido o direito da mesma desaparece completamente porque a própria assembléia fica extinta e consequentemente não há qualquer possibilidade de a soberania reaparecer Do cargo do soberano representante O cargo do soberano seja ele um monarca ou uma assembléia consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder nomeadamente a obtenção da segurança do povo ao qual está obrigado pela lei de natureza e do qual tem de prestar contas a Deus o autor dessa lei e a mais ninguém além dele Mas por segurança não entendemos aqui uma simples preservação mas também todas as outras comodidades da vida que todo homem por uma indústria legítima sem perigo ou inconveniente do Estado adquire para si próprio E pensase que isto deve ser feito não através de um cuidado com os indivíduos maior do que sua proteção em relação a ofensas de que apresentem queixa mas por uma providência geral contida em instrução pública quer de doutrina quer de exemplo e na feitura e execução de boas leis às quais os indivíduos podem recorrer nos seus casos E porque se os direitos essenciais da soberania anteriormente especificados no capítulo 18 forem retirados o Estado fica por isso dissolvido e todo homem volta à condição e calamidade de uma guerra com os outros homens que é o maior mal que pode acontecer nesta vida compete ao cargo de soberano manter esses direitos em sua integridade e consequentemente é contra seu dever em primeiro lugar transferir para outro ou tirar de si qualquer deles Pois aquele que desampara os meios desampara os fins e desampara os meios aquele que sendo o soberano reconhece estar sujeito às leis civis e renuncia ao poder da judicatura suprema ou ao poder de fazer a paz e a guerra por sua própria autoridade ou de julgar as necessidades do Estado ou de levantar impostos e soldados quando e tanto quanto segundo sua própria consciência lhe parecer necessário ou de nomear funcionários e ministros quer da guerra quer da paz ou de nomear professores e de examinar que doutrinas estão conformes ou contrárias à defesa paz e bem do povo Em segundo lugar é contra seu dever deixar o povo ser ignorante ou desinformado dos fundamentos e razões daqueles seus direitos essenciais porque assim os homens são facilmente seduzidos e levados a resistirlhe quando 0 Estado precisar de sua cooperação e ajuda Pelo contrário os fundamentos desses direitos devem ser ensinados de forma diligente e verdadeira porque não podem ser mantidos por nenhuma lei civil ou pelo terror de uma punição legal Pois uma lei civil que proíba a rebelião e nisso consiste toda a resistência aos direitos essenciais da soberania não é como uma lei civil nenhuma obrigação a não ser por virtude da lei de natureza que proíbe a violação do juramento a qual obrigação natural se não for conhecida dos homens estes não podem conhecer o direito de qualquer lei que o soberano faça E quanto à punição encaramna apenas como um ato de hostilidade que quando julgarem ter força suficiente tentarão evitar através de atos de hostilidade Como tenho ouvido dizer a alguns que a justiça não passa de uma palavra sem substância e que seja o que for que um homem possa pela força ou arte adquirir para si próprio não apenas em situação de guerra mas também num Estado é dele mesmo o que já mostrei ser falso do mesmo modo também há aqueles que sustentam não existirem fundamentos nem princípios racionais que apóiem aqueles direitos essenciais que tornam absoluta a soberania Porque se existissem teriam sido descobertos em algum lugar ao passo que vemos que até agora ainda não existiu nenhum Estado em que esses direitos tivessem sido reconhecidos ou discutidos No que argumentam tão mal quanto os selvagens da América se estes negassem quaisquer fundamentos ou princípios racionais para construir uma casa que durasse tanto quanto os materiais porque nunca viram ainda uma tão bem construída O tempo e a indústria todos os dias produzem conhecimento E tal como a arte de bem construir deriva de princípios racionais observados pelos homens industriosos que durante muito tempo estudaram a natureza dos materiais e os diversos efeitos de figura e proporção muito tempo depois que a humanidade começou ainda que pobremente a construir do mesmo modo muito tempo depois que os homens começaram a constituir Estados imperfeitos e suscetíveis de cair em desordem podem ser descobertos por meio de uma industriosa meditação princípios racionais para tornar duradoura sua constituição excetuada a violência externa E tais são aqueles que tenho apresentado neste discurso interessandome hoje muito pouco saber se não foram vislumbrados por aqueles que têm o poder para utilizá los ou se foram desprezados por eles ou não Mas supondo que estes meus princípios não sejam princípios racionais tenho contudo a certeza de que são princípios tirados da autoridade das Escrituras como mostrarei quando falar do reino de Deus administrado por Moisés sobre os judeus seu povo dileto por meio de um pacto Mas insistem que muito embora os princípios possam estar certos contudo o povo vulgar não tem capacidade suficiente para ser levado a entendêlos Ficaria contente se os súditos ricos e poderosos de um reino ou aqueles que são considerados mais sábios fossem menos incapazes do que o povo Mas todos sabem que as oposições a este tipo de doutrina resultam não tanto da dificuldade do assunto como do interesse daqueles que devem aprendêla Os homens poderosos dificilmente digerem algo que estabeleça um poder para refrear suas paixões e os homens sábios algo que descubra os seus erros e que portanto diminua sua autoridade ao passo que o espírito da gente vulgar a menos que esteja marcado por uma dependência em relação aos poderosos ou desvairado com as opiniões de seus doutores é como papel limpo pronto para receber seja o que for que a autoridade pública queira nele imprimir Serão nações inteiras levadas a aquiescer aos grandes mistérios da religião cristã que estão acima da razão e serão milhões de homens levados a acreditar que o mesmo corpo pode estar em inúmeros lugares ao mesmo tempo o que é contra a razão e não serão os homens capazes de por seu ensino e pregação protegidos pela lei levar a aceitar o que é conforme à razão de maneira tal que qualquer homem sem preconceitos nada mais precise para aprendêlo do que ouvi lo Concluo portanto que na instrução do povo acerca dos direitos essenciais que são as leis naturais e fundamentais da soberania não há qualquer dificuldade enquanto um soberano tiver seu poder completo exceto aquilo que resulta de seus próprios erros ou dos erros daqueles a quem confia a administração do Estado e consequentemente é seu dever leválo a ser assim instruído e não apenas seu dever mas seu beneficio também e segurança contra o perigo que pode vir da rebelião para sua pessoa natural E descendo aos pormenores deve ensinarse ao povo em primeiro lugar que ele não deve enamorarse de nenhuma forma de governo que vê nas nações vizinhas assim como de sua própria nem tampouco seja qual for a presente prosperidade que observem em nações governadas de maneira diferente da sua deve desejar mudar Pois a prosperidade de um povo governado por uma assembléia aristocrática ou democrática não vem nem da aristocracia nem da democracia mas da obediência e concórdia dos súditos assim como também o povo não floresce numa monarquia porque um homem tem o direito de governálo mas porque ele lhe obedece Retirem seja de que Estado for a obediência e consequentemente a concórdia do povo e ele não só não florescerá como a curto prazo será dissolvido E aqueles que empreendem reformar o Estado pela desobediência verão que assim o destroem como as loucas filhas de Peleus na fábula as quais desejando trazer de volta a juventude do pai decrépito seguindo o conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o cozinharam juntamente com ervas estranhas mas não fizeram dele um novo homem Este desejo de mudar é como a quebra do primeiro dos mandamentos de Deus pois aí Deus diz Non habebis Deos alunos Não terás os deuses das outras nações e em outro texto referente aos reis que eles são deuses Em segundo lugar deve ser ensinado a não deixarse levar pela admiração da virtude de qualquer de seus concidadãos por muito alto que se eleve ou por muito brilhante que apareça no Estado nem de qualquer assembléia exceto a assembléia soberana a ponto de prestarlhe qualquer obediência ou honra adequada apenas ao soberano que em seus lugares particulares eles representam a não receber qualquer influência deles além da que lhes é conferida pela autoridade soberana Pois não se concebe que um soberano ame seu povo como deve se não for zeloso dele e se permitir que seja pela lisonja de homens populares seduzido e afastado de sua lealdade como muitas vezes tem sido não apenas secretamente mas abertamente a ponto de proclamar seu casamento com eles in fatie ecclesiae por meio de pregadores e publicando o mesmo nas ruas o que pode ser adequadamente comparado à violação do segundo dos dez mandamentos Em terceiro lugar em conseqüência a isto devia ser informado de como é uma falta grave falar mal do soberano representante quer se trate de um homem quer se trate de uma assembléia ou pôr em questão e discutir seu poder ou de qualquer modo usar seu nome de maneira irreverente pelo que ele pode ser levado a desprezar seu povo e a obediência deste na qual reside a segurança do Estado pode ser enfraquecida Doutrina que o terceiro mandamento aponta por semelhança Em quarto lugar dado que o povo não consegue aprender isto ou que aprendendoo não consegue lembrálo nem mesmo depois de uma geração a ponto de saber em quem está colocado o soberano poder sem afastarse de seu trabalho habitual algumas vezes para poder escutar aqueles que foram designados para instruílo é necessário que sejam determinadas ocasiões em que possa reunirse depois das orações e das ações de graças a Deus o Soberano dos Soberanos para ouvir falar naqueles seus deveres para que as leis positivas principalmente aquelas que se referem a todos os seus membros sejam lidas e expostas e colocadas no espírito da autoridade que as tornou leis Para este fim tinham os judeus todos os sete dias um sábado no qual a lei era lida e exposta e nesta solenidade lhes era lembrado que seu rei era Deus que tendo criado o mundo em seis dias ele descansou no sétimo dia e por nele descansarem do seu trabalho que era seu rei aquele Deus que os redimiu das tarefas servis e penosas que faziam no Egito e lhes concedeu um período depois de se terem regozijado em Deus para se divertirem também por meio de um divertimento legítimo De tal modo que a primeira tábua dos mandamentos é toda gasta em enumerar a soma do poder absoluto de Deus não apenas como Deus mas como rei por pacto em especial dos judeus e pode portanto iluminar aqueles que receberam o soberano poder por consentimento dos homens a fim de verem que doutrina devem ensinar a seus súditos E porque a primeira instrução das crianças depende do cuidado dos pais é necessário que elas lhes obedeçam enquanto estão sob sua tutela e não apenas isto mas que também mais tarde como a gratidão o exige reconheçam os benefícios de sua educação através de sinais externos de honra Para cujo fim devem ser ensinadas que originariamente o pai de todos os homens era também seu senhor supremo com poder de vida e de morte sobre eles e que os pais de família quando ao instituírem o Estado abdicaram daquele poder absoluto nunca pretenderam perder a honra que lhes era devida pela educação que davam Pois não era necessário à instituição do soberano poder abdicar de tal direito nem haveria qualquer razão para que alguém desejasse ter filhos ou ter o encargo de alimentálos e instruílos se mais tarde não devesse receber deles benefícios diferentes daqueles que recebem dos outros homens E isto concorda com o quinto mandamento Também todo soberano deve fazer que a justiça seja ensinada o que consistindo esta em não tirar a nenhum homem aquilo que é dele é o mesmo que dizer que deve fazer que os homens sejam ensinados a não despojar por violência ou fraude os seus vizinhos de qualquer coisa que seja deles pela autoridade do soberano Entre as coisas tidas em propriedade aquelas que são mais caras ao homem são sua própria vida e membros e no grau seguinte na maior parte dos homens aquelas que se referem à afeição conjugal e depois delas as riquezas e os meios de vida Portanto o povo deve ser ensinado a absterse de violência para com as pessoas dos outros por meio de vinganças pessoais de violação da honra conjugal e de rapina violenta e de subtração fraudulenta dos bens uns dos outros Para cujo fim é também necessário que lhe sejam mostradas as más conseqüências de falsos juízos por corrupção ou dos juízes ou das testemunhas pelos quais desaparece a distinção de propriedade e a justiça se torna de nenhum efeito coisas que estão todas preconizadas no sexto sétimo oitavo e nono mandamentos Finalmente deve serlhe ensinado que não apenas os fatos injustos mas também os desígnios e intenções de praticálos embora acidentalmente impedidos constituem injustiça a qual consiste tanto na depravação da vontade como na irregularidade do ato E esta é a intenção do décimo mandamento e a súmula da segunda tábua a qual toda ela se reduz a este mandamento de caridade mútua Amarás a teu próximo como a ti mesmo assim como a súmula da primeira tábua se reduz ao amor de Deus que então tinham recebido havia pouco tempo como seu rei Quanto aos meios e instrumentos pelos quais o povo pode receber esta instrução devemos investigar por que meios tantas opiniões contrárias à paz da humanidade apoiadas em princípios fracos e falsos contudo nele se enraizaram tão profundamente Refirome àquelas que especifiquei no capítulo precedente como a que afirma deverem os homens julgar aquilo que é legal ou ilegal não de acordo com a própria lei mas segundo suas próprias consciências isto é por seus juízos particulares como a que afirma que os súditos pecam ao obedecer às ordens do Estado a menos que primeiro tenham verificado serem elas legais como aquela que afirma ser sua propriedade em bens tal que exclui o domínio que o Estado tem sobre os mesmos que é legítimo os súditos matarem aqueles que denominam tiranos que o soberano poder pode ser dividido e assim por diante as quais conseguiram ser instiladas no povo pela seguinte forma Aqueles a quem a necessidade ou a capacidade mantém atentos a seus negócios e atividades e por outro lado aqueles cuja frivolidade ou preguiça leva a procurar os prazeres sensuais espécies de homens que dividem entre si a maior parte da humanidade sendo afastados da meditação profunda que o aprendizado da verdade não apenas em questões de justiça natural mas também em todas as outras ciências necessariamente exige recebem as noções de seus deveres principalmente dos teólogos no púlpito e em parte daqueles seus vizinhos ou familiares que tendo a faculdade de discorrer prontamente e de maneira plausível parecem mais sábios e mais instruídos em casos de lei e de consciência do que eles próprios E os teólogos e outros que fazem ostentação de erudição tiram seu conhecimento das Universidades e das Escolas de leis ou de livros que foram publicados por homens eminentes nessas Escolas e Universidades É portanto manifesto que a instrução do povo depende totalmente de um adequado ensino da juventude nas Universidades Mas podem alguns dizer não são as Universidades da Inglaterra já suficientemente eruditas para fazer isso Ou será que quer tentar ensinar as Universidades Perguntas difíceis Contudo não hesito em responder à primeira que até por volta dos últimos anos do reinado de Henrique VIII o poder do Papa se erguia sempre contra o poder do Estado principalmente através das Universidades e que as doutrinas defendidas por tantos pregadores contra o soberano poder do rei e por tantos legistas e outros que ali tinham recebido sua educação constituem um argumento suficiente de que muito embora as Universidades não fossem as autoras daquelas falsas doutrinas contudo não souberam semear a verdade Pois no meio de tantas opiniões contraditórias o mais certo é que não tenham sido suficientemente instruídas e não é de causar espanto se ainda conservam restos daquele sutil licor com que primeiro foram temperadas contra a autoridade civil Mas quanto à segunda pergunta não me compete nem é necessário dizer nem sim nem não pois qualquer homem que veja o que estou fazendo pode facilmente perceber aquilo que penso A segurança do povo requer além disso da parte daquele ou daqueles que detêm o soberano poder que a justiça seja administrada com igualdade a todos os escalões do povo isto é que tanto aos ricos e poderosos quanto às pessoas pobres e obscuras seja feita justiça das injúrias contra elas praticadas de tal modo que os grandes não possam ter maior esperança de impunidade quando praticam violências desonras ou quaisquer ofensas aos de condição inferior do que quando um destes faz o mesmo a um deles pois nisto consiste a eqüidade à qual na medida em que é um preceito da lei de natureza um soberano está tão sujeito como o mais ínfimo do povo Todas as violações da lei são ofensas contra o Estado mas há algumas que são também contra as pessoas privadas Só aquelas que dizem respeito ao Estado podem sem violação da eqüidade ser perdoadas pois todo homem pode perdoar aquilo que é feito contra ele próprio de acordo com sua própria opinião Mas uma ofensa contra um indivíduo particular não pode com eqüidade ser perdoada sem o consentimento daquele que foi ofendido ou sem uma razoável satisfação A desigualdade dos súditos resulta dos atos do soberano poder e por tanto não tem mais lugar na presença do soberano isto é num Tribunal de Justiça do que a desigualdade entre os reis e seus súditos na presença do rei dos reis A honra das grandes pessoas deve ser avaliada por sua beneficência e pela ajuda que dão aos homens de condição inferior ou sem nenhuma E as violências opressões e ofensas que cometem não são atenuadas mas antes agravadas pela grandeza de suas pessoas porque têm menos necessidade de cometê las As conseqüências desta parcialidade para com os grandes sucedemse do seguinte modo a impunidade faz a insolência a insolência o ódio e o ódio a tentativa de derrubar toda a grandeza opressora e insolente ainda que com a ruína do Estado Da igualdade da justiça faz parte também a igual imposição de impostos igualdade que não depende da igualdade dos bens mas da igualdade da dívida que todo homem deve ao Estado para sua defesa Não é suficiente que um homem trabalhe para a manutenção de sua vida é necessário também que lute se for preciso para assegurar seu trabalho Ou têm de fazer como os judeus fizeram depois do regresso do cativeiro reedificando o templo com uma mão e segurando a espada com a outra ou então têm de contratar outros para lutar por eles Pois os impostos que são cobrados ao povo pelo soberano nada mais são do que os sol dos devidos àqueles que seguram a espada pública para defender os particulares no exercício de várias atividades e profissões Dado que portanto o beneficio que todos retiram disso é o usufruto da vida que é igualmente cara ao pobre e ao rico a dívida que o homem pobre tem para com aqueles que defendem sua vida é a mesma que o homem rico tem pela defesa da sua exceto que os ricos que têm u serviço dos pobres podem ser devedores não apenas de suas pessoas mas de muitas mais Dado isto a igualdade dos impostos consiste mais na igualdade daquilo que é consumido do que nos bens das pessoas que o consumem Pois que razão há para que aquele que trabalha muito e poupando os frutos do seu trabalho consome pouco seja mais sobrecarregado do que aquele que vivendo ociosamente ganha pouco e gasta tudo o que ganha dado que um não recebe maior proteção do Estado do que o outro Mas quando os impostos incidem sobre aquelas coisas que os homens consomem todos os homens pagam igualmente por aquilo que usam e o Estado também não é defraudado pelo desperdício luxurioso dos particulares E sempre que muitos homens por um acidente inevitável se tornam incapazes de sustentarse com seu trabalho não devem ser deixados à caridade de particulares mas serem supridos tanto quanto as necessidades da natureza o exigirem pelas leis do Estado Pois assim como é falta de caridade em qualquer homem abandonar aquele que não tem forças também o é no soberano de um Estado expôlo aos acasos de uma caridade tão incerta Mas no que diz respeito àqueles que possuem corpos vigorosos a questão colocase de outro modo devem ser obrigados a trabalhar e para evitar a desculpa de que não encontram emprego deve haver leis que encorajem toda a espécie de artes como a navegação a agricultura a pesca e toda a espécie de manufatura que exige trabalho Aumentando ainda o número de pessoas pobres mas vigorosas devem ser removidas para regiões ainda não suficientemente habitadas onde contudo não devem exterminar aqueles que lá encontrarem mas obrigálos a habitar mais perto uns dos outros e a não utilizar uma grande extensão de solo para pegar o que encontram e sim tratar cada pequeno pedaço de terra com arte e cuidado a fim de este lhes dar o sustento na devida época E quando toda a terra estiver superpovoada então o último remédio é a guerra que trará aos homens ou a vitória ou a morte Pertence ao cuidado do soberano fazer boas leis Mas o que é uma boa lei Por boa lei entendo apenas uma lei justa pois nenhuma lei pode ser injusta A lei é feita pelo soberano poder e tudo o que é feito por tal poder é garantido e diz respeito a todo o povo e aquilo que qualquer homem tiver ninguém pode dizer que ë injusto Acontece com as leis do Estado o mesmo que com as leis do jogo seja o que for que os jogadores estabeleçam não é injustiça para nenhum deles Uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e além disso evidente Pois o objetivo das leis que são apenas regras autorizadas não é coibir o povo de todas as ações voluntárias mas sim dirigilo e mantêlo num movimento tal que não se fira com seus próprios desejos impetuosos com sua precipitação ou indiscrição do mesmo modo que as sebes não são colocadas para deter os viajantes mas sim para conserválos no caminho E portanto uma lei que não é necessária não se dirigindo ao verdadeiro objetivo de uma lei não é boa Pode conceberse que uma lei seja boa quando é para beneficio do soberano muito embora não seja necessária ao povo mas não é assim Pois o bem do soberano e do povo não podem ser separados É um soberano fraco o que tem súditos fracos e é um povo fraco aquele cujo soberano carece de poder para governálo à sua vontade Leis desnecessárias não são boas leis mas sim armadilhas para dinheiro as quais são supérfluas quando o direito do soberano é reconhecido e quando este não é reconhecido são insuficientes para defender o povo A evidência não consiste tanto nas palavras da própria lei como na declaração das causas e motivos que lhe deram origem Isto é o que nos mostra a intenção do legislador e conhecida a intenção do legislador a lei é mais facilmente compreendida com poucas palavras do que com muitas Pois todas as palavras estão sujeitas à ambigüidade e portanto a multiplicação de palavras no texto da lei é uma multiplicação da ambigüidade Além disso parece implicar por demasiada diligência que quem puder subtrairse às palavras estará fora do alcance da lei E isto é a causa de muitos processos desnecessários Pois quando vejo quão curtas eram as leis dos tempos antigos e como a pouco e pouco se foram tornando mais extensas penso ver uma luta entre aqueles que escreveram a lei e aqueles que pleiteiam contra ela procurando os primeiros circunscrever os segundos e os segundos evitar a circunscrição tendo estes alcançado a vitória Pertence portanto ao cargo de legislador tal é em todos os Estados o supremo representante seja ele um homem ou uma assembléia tornar evidente a razão pela qual a lei foi feita e o próprio corpo da lei tão curto mas em termos tão adequados e significantes quanto possível Pertence também ao cargo do soberano estabelecer uma correta aplicação de castigos e recompensas E dado que o objetivo da punição não é a vingança nem dar largas à colera mas sim a correção do ofensor ou de outros através do exemplo as mais severas punições devem ser infligidas àqueles crimes que são de maior perigo para a coisa pública como os que provêm de maldade para com o governo estabelecido os que brotam do desprezo da justiça os que provocam indignação na multidão e os que quando não punidos parecem permitidos como quando são cometidos por filhos criados ou favoritos dos homens no poder pois a indignação leva os homens não só contra os atores e autores da injustiça mas também contra todo o poder que parece protegêlos como no caso de Tarqüínio quando por causa do ato insolente de um de seus filhos foi expulso de Roma e a própria monarquia foi dissolvida Mas crimes de enfermidade como os que resultam de grande provocação de grande temor de grande necessidade ou de ignorância quer o fato seja um grande crime quer não dão ocasião muitas vezes à benevolência sem prejuízo do Estado e a benevolência quando para ela há lugar é exigida pela lei de natureza O castigo dos chefes e panfletários num tumulto e não o do pobre povo seduzido pode ser útil ao Estado como exemplo Ser severa para com o povo é punir aquela ignorância que pode em grande parte ser atribuída ao soberano cujo erro consistiu em não têlo instruído melhor Do mesmo modo pertence ao cargo e ao dever do soberano distribuir suas recompensas sempre que delas possa resultar um benefício para o Estado no que consiste seu fim e objetivo O que se verifica quando aqueles que bem serviram ao Estado são com a menor despesa possível bem recompensados a ponto de outros ficarem encorajados quer para servilo com a maior lealdade possível quer para estudar as artes que lhes permitam fazêlo melhor Comprar com dinheiro ou com mercês um súdito ambicioso e popular para que fique quieto e desista de agitar o espírito do povo nada tem que ver com recompensa a qual não é dada por maus serviços mas sim por bons serviços passados nem sinal de gratidão mas de medo nem contribui para o beneficio mas para o prejuízo da coisa pública É uma luta contra a ambição como a que Hércules travou com o monstro de Hidra o qual tendo muitas cabeças por cada uma que desaparecia havia outras três que cresciam Pois da mesma maneira quando a ousadia de um homem popular é recebida com uma recompensa surgem muitos mais devido ao exemplo que praticam a mesma maldade na esperança de receberem igual benefício e como todas as espécies de manufatura também a maldade aumenta por ser vendável E muito embora às vezes se possa adiar uma guerra civil com tais meios contudo o perigo tornase ainda maior e a pública ruína mais certa É portanto contra o dever do soberano a quem está entregue a segurança pública recompensar aqueles que aspiram à grandeza perturbando a paz de seu país em vez de oporse às primeiras iniciativas de tais homens correndo um pequeno risco que se torna maior com o passar do tempo Outra tarefa do soberano consiste em escolher bons conselheiros quero dizer aqueles cujo conselho deve ouvir no governo do Estado Pois esta palavra conselho consilium corruptela de considium tem uma ampla significação e inclui todas as assembléias que se reúnem apenas para deliberar o que deve ser feito no futuro más também para julgar os fatos passados e a lei para o presente Aqui empregoa apenas no primeiro sentido e neste sentido não há escolha de conselho nem numa democracia nem numa aristocracia porque as pessoas que aconselham são parte da pessoa aconselhada A escolha de conselheiros portanto é própria da monarquia na qual o soberano que não procurar escolher aqueles que em todos os sentidos são os mais aptos não desempenha seu cargo como deve Os conselheiros mais capazes são aqueles que menos têm a ganhar com um mau conselho e aqueles que possuem maior conhecimento daquilo que leva à paz e defesa do Estado É difícil saber quem espera benefícios das perturbações públicas mas o sinal que guia uma suspensão justa é a adulação do povo em suas queixas desarrazoadas ou inúteis por parte de homens cujas terras não são suficientes para cobrir suas despesas habituais e pode ser facilmente observado por qualquer pessoa que se interesse por descobrilo Mas ainda é mais difícil saber quem tem maior conhecimento dos negócios públicos e aqueles que os conhecem precisam muito dele Pois conhecer aqueles que conhecem as regras de quase todas as artes é em grande parte conhecer também a mesma arte pois nenhum homem pode certificar se da verdade das regras dos outros exceto aquele que primeiro aprendeu a compreendêlas Mas os melhores indícios do conhecimento de qualquer arte são a muita prática dela e os constantes bons resultados nela obtidos O bom conselho não vem por acaso nem por herança e portanto não há mais razão para esperar bom conselho do rico ou nobre em questões de Estado do que no delinear as dimensões de uma fortaleza a menos que se pense que não é necessário método no estudo da política como é necessário no estudo da geometria bastando ser bom observador o que não é verdade pois a política é dos dois estudos o mais difícil Nestas regiões da Europa tem sido considerado um direito de certas pessoas fazer parte do mais alto conselho de Estado por herança o que tem origem nas conquistas dos antigos germanos nas quais muitos senhores absolutos reunindose para conquistar outras nações não entrariam na confederação sem aqueles privilégios que pudessem constituir marcas de diferença em tempos vindouros entre sua posteridade e a posteridade de seus súditos Sendo esses privilégios incompatíveis com o poder soberano pela graça do soberano parecem conserválos mas lutando por eles como se fossem seus direitos têm necessariamente de perdêlos a pouco e pouco e por fim não recebem mais honras do que aquelas que resultam naturalmente de suas capacidades E por muito capazes que sejam os conselheiros em qualquer negócio o benefício de seu conselho é maior quando dão a qualquer pessoa sua opinião juntamente com as razões dela do que quando o fazem numa assembléia por meio de um discurso e é maior quando pensaram antes o que vão dizer do que quando fazem de improviso em ambos os casos porque tiveram mais tempo para examinar as conseqüências da ação e estão menos sujeitos a cair em contradição devido à inveja à emulação ou a outras paixões que surgem da diversidade de opiniões O melhor conselho naquelas coisas que não dizem respeito a outras nações mas apenas ao bemestar e aos benefícios de que os súditos podem usufruir por leis que visam apenas ao interno deve ser tomado das informações gerais e das queixas do povo de cada província que melhor está a par de suas próprias necessidades queixas essas que portanto quando nada é pedido que prejudique os direitos essenciais da soberania devem ser diligentemente levadas em conta Pois sem esses direitos essenciais como disse muitas vezes antes o Estado de modo algum pode subsistir O general em chefe de um exército se não for popular não será amado nem temido como deve por seu exército portanto não pode desempenhar com sucesso aquele cargo Tem portanto que ser industrioso valente afável liberal e afortunado a fim de obter uma reputação quer de suficiência quer de amor aos seus soldados A isto chamase popularidade e alimenta nos soldados quer o brio quer a coragem para se entregarem à sua proteção e protege a severidade do general ao punir quando se torna necessário os soldados rebeldes ou negligentes Mas este amor dos soldados se não houver uma caução da fidelidade do general é coisa perigosa para o soberano poder especialmente quando reside nas mãos de uma assembléia que não é popular Faz parte portanto da segurança do povo que aqueles a quem o soberano entrega seus exércitos sejam ao mesmo tempo bons chefes e súditos fiéis Mas quando o próprio soberano é popular isto é respeitado e amado pelo povo não existe qualquer perigo na popularidade de um súdito Pois os soldados em geral nunca são tão injustos que alinhem ao lado de seu capitão muito embora o amem contra seu soberano quando não só amam sua pessoa como também sua causa E portanto aqueles que pela violência alguma vez destruíram o poder do seu legítimo soberano antes de conseguirem instalarse em seu lugar sempre se encontraram na situação penosa de forjar seus títulos a fim de poupar ao povo a vergonha de recebêlos Possuir um direito reconhecido ao poder soberano é uma qualidade tão popular que aquele que o possui já não precisa por seu lado atrair para si os corações dos súditos mas apenas que o vejam absolutamente capaz de governar sua própria família nem requer do lado de seus inimigos senão o licenciamento de seus exércitos Pois a parte maior e mais ativa da humanidade nunca até agora esteve contente com o presente No que se refere às atribuições de um soberano para com o outro que estão incluídas naquele direito que é comumente chamado direito das gentes não preciso aqui dizer nada porque o direito das gentes e a lei de natureza são uma e a mesma coisa E qualquer soberano tem o mesmo direito ao procurar a segurança de seu povo que qualquer homem privado precisa ter para conseguir a segurança de seu próprio corpo E a mesma lei que dita aos homens destituídos de governo civil o que devem fazer e o que devem evitar no que se refere uns aos outros dita o mesmo aos Estados isto é às consciências dos soberanos príncipes e das assembléias soberanas não havendo nenhum tribunal de justiça natural exceto na própria consciência na qual não é o homem que reine mas Deus cujas leis como as que obrigam toda a humanidade no que se refere a Deus na medida em que é o autor da natureza são naturais e no que se refere ao mesmo Deus na medida em que é rei dos reis são leis Mas do reino de Deus como rei dos reis e como também de um povo eleito falarei no resto deste discurso Do reino de Deus por natureza Que a condição de simples natureza isto é de absoluta liberdade como é a daqueles que não são nem súditos nem soberanos é anarquia e condição de guerra que os preceitos pelos quais os homens são levados a evitar tal condição são as leis da natureza que um Estado sem poder soberano não passa de uma palavra sem substância e não pode permanecer que os súditos devem aos soberanos simples obediência em todas as coisas de onde se segue que sua obediência não é incompatível com as leis de Deus provei suficientemente naquilo que já escrevi Falta apenas para um completo conhecimento do dever civil conhecer o que são essas leis de Deus Pois sem isso um homem não sabe quando algo lhe é ordenado pelo poder civil se isso é contrário à lei de Deus ou não e assim ou por uma excessiva obediência civil ofende a Divina Majestade ou com receio de ofender a Deus transgride os mandamentos do Estado Para evitar ambos estes escolhos é necessário conhecer o que são as leis divinas E dado que o conhecimento de toda lei depende do conhecimento do soberano poder direi algo nos capítulos seguintes sobre o reino de Deus Deus é rei que a terra se alegre escreve o salmista E também Deus é rei muito embora as nações não o queiram e é aquele que está sentado sobre os querubins muito embora a terra seja movida Quer os homens queiram quer não têm de estar sempre sujeitos ao divino poder Negando a existência ou a providência de Deus os homens podem perder seu alivio mas não libertarse de seu jugo Mas chamar reino de Deus a este poder de Deus que se estende não só ao homem mas também aos animais e plantas e corpos inanimados é apenas um uso metafórico da palavra Pois só governa propriamente quem governa seus súditos com a palavra e com a promessa de recompensa àqueles que lhe obedecem e com a ameaça de punição àqueles que não lhe obedecem Portanto os súditos do reino de Deus não são os corpos inanimados nem as criaturas irracionais porque não compreendem seus preceitos nem os ateus nem aqueles que não acreditam que Deus se preocupe com as ações da humanidade porque não reconhecem nenhuma palavra como sendo sua nem têm esperança em suas recompensas nem receio de suas ameaças Aqueles portanto que acreditam haver um Deus que governa o mundo e que deu preceitos e propôs recompensas e punições para a humanidade são os súditos de Deus todo o resto deve ser compreendido como seus inimigos Governar com palavras exige que tais palavras sejam tornadas conhecidas de forma manifesta pois de outro modo não são leis Pertence à natureza das leis uma promulgação suficiente e clara de tal modo que afaste a desculpa de ignorância a qual nas leis dos homens é apenas de uma só espécie ou seja proclamação ou promulgação pela voz do homem Mas Deus declara suas leis de três maneiras pelos ditames da razão natural pela revelação e pela voz de algum homem ao qual pela feitura de milagres concede crédito junto dos outros Daqui surge uma tripla voz de Deus racional sensível e profética à qual corresponde uma tripla audição justa razão sentimento sobrenatural e fé Quanto ao sentimento sobrenatural que consiste na revelação ou inspiração não foram dadas quaisquer leis universais porque Deus não fala desse modo mas a determinadas pessoas e a homens diversos diz coisas diversas A partir da diferença entre as outras duas espécies de palavras de Deus racional e profética pode ser atribuído a Deus um duplo reino natural e profético natural quando governa pelos ditames naturais da justa razão aqueles muitos da humanidade que reconhecem sua providência e profético quando tendo elegido uma nação específica os judeus como seus súditos os governa e a nenhuns outros além deles não apenas pela razão natural mas também por leis positivas que lhes dá pela boca de seus profetas Penso falar do reino Natural de Deus neste capítulo O direito de natureza pelo qual Deus reina sobre os homens e pune aqueles que violam suas leis deve ser derivado não do fato de têlos criado como se exigisse obediência por gratidão por seus benefícios mas sim de seu poder irresistível Mostrei primeiro como o direito soberano nasce de um pacto para mostrar como o mesmo direito pode surgir da natureza nada mais é preciso do que mostrar em que casos nunca é retirado Dado que todos os homens por natureza tinham direito a todas as coisas cada um deles tinha direito a reinar sobre todos os outros Mas porque este direito não podia ser obtido pela força dizia respeito à segurança de cada um pondo de lado aquele direito escolher homens com autoridade soberana por consenso comum para governálos e defendêlos visto que se tivesse havido um homem de poder irresistível não haveria razão para ele não governar por aquele poder e defenderse a si próprio e a eles conforme lhe parecesse melhor Para aqueles portanto cujo poder é irresistível o domínio de todos os homens é obtido naturalmente por sua excelência de poder e por conseqüência é por aquele poder que o reino sobre os homens e o direito de afligir os homens a seu prazer pertence naturalmente a Deus todopoderoso não como criador e concessor de graças mas como onipotente E muito embora a punição seja devida apenas ao pecado porque por essa palavra se entende sofrimento pelo pecado contudo o direito de fazer sofrer nem sempre resulta dos pecados dos homens mas sim do poder de Deus Esta questão Por que razão os homens maus prosperam e os homens bons sofrem reveses foi muito discutida pelos antigos e o mesmo acontece com esta nossa questão Por que direito Deus dispensa as prosperidades e os reveses desta vida e é de tamanha dificuldade que tem abalado a fé não apenas do vulgo mas também dos filósofos e o que é mais dos santos no que se refere à divina providência Como é bom diz Davi o Deus de Israel para aqueles que têm um coração justo contudo meus pés tinham quase desaparecido minhas pisadas tinham quase sumido pois fiquei revoltado contra os maus quando vi os gentios em tal prosperidade E Jó com que vigor apostrofou Deus por tantos sofrimentos que passara apesar de sua retidão Esta questão no caso de Jó é resolvida pelo próprio Deus não por argumentos tirados dos pecados de Jó mas de seu próprio poder Pois enquanto os amigos de Jó foram buscar seus argumentos para o sofrimento dele a seus pecados e ele se defendeu pela consciência de sua inocência o próprio Deus tomou à sua conta o assunto e tendo justificado o sofrimento com argumentos tirados de seu poder como por exemplo este Onde estavas tu quando lancei as fundações da terra e outros semelhantes não só aprovou a inocência de Jó como reprovou a errônea doutrina de seus amigos Conforme a esta doutrina é a frase de nosso Salvador que se refere ao homem que nasceu cego com estas palavras Nem este homem pecou nem seus pais para que as obras de Deus pudessem ser tornadas manifestas nele E muito embora seja dito que a morte entrou no mundo através do pecado com o que se quer dizer que se Adão nunca tivesse pecado nunca teria morrido isto é nunca teria sofrido a separação de sua alma e de seu corpo não se segue daí que Deus não tivesse podido fazêlo sofrer muito embora ele não tivesse pecado tal como provocou sofrimentos em outros seres vivos que não podem pecar Tendo afirmado que o direito de soberania de Deus se baseia apenas na natureza devemos considerar em seguida o que são as leis divinas ou ditames da razão natural leis essas que dizem respeito quer aos deveres naturais de cada homem para com os outros quer às honras naturalmente devidas a nosso divino soberano As primeiras são as mesmas leis de natureza de que já falei nos capítulos 14 e 15 deste tratado a saber a eqüidade a justiça a compaixão a humildade e as outras virtudes morais Restanos portanto considerar que preceitos são ditados aos homens apenas por sua razão natural sem outra palavra de Deus referentes à honra e ao culto da divina majestade A honra consiste no pensamento interior e na opinião do poder e bondade de outra pessoa e portanto honrar a Deus é pensar tão bem quanto possível de seu poder e bondade E os sinais externos desta opinião que aparecem nas palavras e nos atos dos homens recebem o nome de culto que é uma parte daquilo que os latinos designavam pela palavra cultus pois cultus significa em sentido próprio e constante aquele trabalho que o homem exerce sobre uma coisa com o objetivo de obter com isso um beneficio Ora essas coisas de que tiramos benefícios ou estão sujeitas a nós e a vantagem produzida advém como um efeito natural do trabalho que sobre elas aplicamos ou não estão sujeitas a nós mas correspondem a nosso trabalho segundo sua própria vontade No primeiro sentido o trabalho exercido sobre a terra é denominado cultivo e a educação das crianças o cultivo de seus espíritos No segundo sentido quando a vontade dos homens deve ser aliciada para nosso objetivo não pela força mas pela complacência significa o mesmo que cortejar isto é conquistar as boas graças por meio de bons ofícios como por exemplo lauvores reconhecimento de seu poder e tudo aquilo que agradar àqueles de quem esperamos benefícios E isto é propriamente culto e neste sentido publicola significa aquele que faz o culto do povo e cultuo Dei significa o culto de Deus Da honra interna que consiste na opinião do poder e da bondade nascem três paixões o amor que se refere à bondade e a esperança e o temor que estão relacionados com o poder e três partes do culto externo louvor glorificação e bênção sendo o sujeito do louvor a bondade e o sujeito da glorificação e da bênção o poder e o efeito deles a felicidade O louvor e a glorificação são significantes quer por palavras quer por atos por palavras quando dizemos que um homem é bom ou grande por atos quando lhe agradecemos por sua bondade e obedecemos a seu poder A opinião da felicidade de alguém só pode ser expressa por palavras Há alguns sinais de honra quer nos atributos quer nos atos que o são naturalmente entre os atributos bom justo liberal e outros semelhantes e entre os atos orações ações de graças e obediência Outros sãono por instituição ou costume dos homens e em alguns tempos e lugares são honrosos em outros não são honrosos em outros são indiferentes como por exemplo os gestos na saudação na oração e nas ações de graças em diferentes tempos e lugares usados deforma diferente O primeiro é o culto natural e o segundo o culto arbitrário E quanto ao culto arbitrário há duas diferenças pois umas vezes se trata de um culto obrigatório e outras vezes de um culto voluntário obrigatório quando é da maneira que quer aquele que é cultuado livre quando é daquela maneira que no cultuados considera adequada Quando é obrigatório não são as palavras ou gestos mas sim a obediência que constitui o culto Mas quando é livre o culto consiste na opinião dos espectadores pois se as palavras ou atos pelos quais pensamos venerar lhes parecem ridículos e tendentes à contumélia não constituem culto porque não são sinais de honra e não são sinais de honra porque um sinal não é sinal para aquele que o dá mas para aquele a quem é dedicado isto é o espectador Também há um culto público e um culto privado Público é o culto que um Estado realiza como pessoa Privado é aquele que é feito por um particular O público no que se refere a todo o Estado é livre mas no que se refere aos particulares não o é O culto privado é secretamente livre mas perante a multidão nunca existe sem algumas restrições quer por parte das leis quer por parte das opiniões dos homens o que é contrário à natureza da liberdade A finalidade do culto entre os homens é o poder Pois quando um homem vê outro ser cultuado considerao poderoso e fica mais pronto a obedecerlhe o que torna seu poder ainda maior Mas Deus não possui finalidades o culto que lhe prestamos é um resultado de nosso dever e é regulado segundo nossa capacidade por aquelas regras de honra que a razão dita para serem observadas pelo fracos em relação aos homens mais poderosos na esperança de benefícios com receio de perseguições ou como agradecimentos por um bem já deles recebido Para que possamos conhecer que culto de Deus nos é ensinado pela luz da natureza começarei com seus atributos Em primeiro lugar é evidente que lhe devemos atribuir existência pois ninguém quererá venerar aquilo que julga não existir Em segundo lugar que os filósofos que disseram que o mundo ou a alma do mundo era Deus falaram indignamente dele e negaram sua existência pois por Deus entendemos a causa do mundo e dizer que o mundo é Deus é dizer que não há causa dele isto é que não existe Deus Em terceiro lugar que dizer que o mundo não foi criado mas que é eterno dado que aquilo que é eterno não tem causa é negar que haja um Deus Em quarto lugar que aqueles que atribuem a inatividade a Deus como pensam lhe retiram o cuidado com a humanidade lhe retiram sua honra pois isso faz desaparecer o amor e o temor dos homens que é a raiz da honra Em quinto lugar que naquelas coisas que significam grandeza e poder dizer que é finito não é honrálo pois não é um sinal da vontade de honrar a Deus atribuirlhe menos do que podemos e finito é menos do que podemos porque ao finito é fácil de acrescentar mais Portanto atribuirlhe figura não é honrálo pois toda figura é finita Nem dizer que concebemos e imaginamos ou temos uma idéia dele em nosso espírito pois seja o que for que concebamos é finito Nem atribuirlhe partes ou totalidade que são atributos apenas de coisas finitas Nem dizer que ele está neste ou naquele lugar pois tudo o que está num lugar é limitado e finito Nem que ele se move ou descansa pois ambos estes atributos lhe conferem lugar Nem que há mais do que um Deus porque isso implica que todos são finitos pois não pode haver mais do que um infinito Nem atribuirlhe a menos que seja metaforicamente querendo significar não a paixão mas o efeito paixões que participam da dor como arrependimento cólera compaixão ou da carência como apetite esperança desejo ou de qualquer faculdade poisa paixão é o poder limitado por alguma coisa E portanto quando atribuímos uma vontade a Deus ela não deve ser entendida como a do homem como um apetite racional mas como o poder pelo qual tudo faz Do mesmo modo quando lhe atribuímos visão e outros atos dos sentidos e também conhecimento e entendimento o que em nós nada mais é do que uma agitação do espírito provocada pelas coisas externas que pressionam as partes orgânicas do corpo do homem Pois não existe tal coisa em Deus e sendo coisas que dependem de causas naturais não lhe podem ser atribuídas Aquele que quiser atribuir a Deus apenas o que é garantido pela razão natural ou deve servirse de atributos negativos como infinito eterno incompreensível ou de superlativos como o mais alto o maior e outros semelhantes ou de indefinidos como bom justo sagrado criador e em tal sentido como se não quisesse declarar aquilo que ele é pois isso seria circunscrevêlo dentro dos limites de nossa fantasia mas sim como o admiramos e como estamos prontos a obedecerlhe o que é um sinal de humildade e de vontade de honrálo tanto quanto possível pois só existe um nome para significar nossa concepção de sua natureza e esse nome é Eu sou e apenas um nome de sua relação conosco e esse é Deus no qual está contido o Pai o Rei e o Senhor No que se refere aos atos do culto divino é um muito geral preceito da razão que eles devem ser sinais da intenção de honrar a Deus como são em primeiro lugar as orações pois não se pensa que os imaginários quando fazem as imagens fazem delas deuses mas sim o povo que reza diante delas Em segundo lugar as ações de graças que no culto divino diferem das orações apenas na medida em que estas precedem o beneficio e aquelas lhe sucedem sendo a finalidade de ambas reconhecer Deus como o autor de todos os benefícios tanto passados como futuros Em terceiro lugar ofertas isto é sacrifícios e oblações se forem dos melhores são sinais de honra pois são ações de graças Em quarto lugar Não jurar senão por Deus é naturalmente um sinal de honra pois é uma confissão de que só Deus conhece o coração e que a sabedoria ou a força de nenhum homem pode proteger alguém contra a vingança de Deus sobre o perjuro Em quinto lugar faz parte de um culto racional falar com consideração de Deus pois revela medo dele e o medo é uma confissão de seu poder Daqui se segue que o nome de Deus não deve ser usado de maneira precipitada e sem qualquer objetivo pois isso é o mesmo que usálo em vão E não tem qualquer finalidade a menos que seja por meio de juramento e por ordem do Estado para dar garantia aos juízos ou entre Estados para evitar a guerra E discussão sobre a natureza de Deus é contrária à sua honra pois se supõe que neste reino natural de Deus não existe nenhuma outra maneira de conhecer qualquer coisa exceto pela razão natural isto é pelos princípios da ciência natural a qual está tão longe de nos ensinar alguma coisa sobre a natureza de Deus como de nos ensinar nossa própria natureza ou a natureza do mais ínfimo ser vivo E portanto quando os homens abandonam os princípios da razão natural e discutem sobre os atributos de Deus nada mais fazem do que desonrálo pois nos atributos que damos a Deus não devemos considerar a significação da verdade filosófica mas a significação da intenção piedosa de lhe prestarmos a maior honra de que somos capazes Por faltar esta consideração escreveramse volumes de discussão sobre a natureza de Deus que não tendem à sua honra mas à honra de nossa própria sabedoria e erudição e nada mais são do que abusos vãos e inconsiderados de seu sagrado nome Sexto nas orações ações de graças ofertas e sacrifícios é um ditame da razão natural que eles devem ser em sua espécie os melhores e os mais significantes de honra Por exemplo que as rezas e ações de graças sejam feitas com palavras e frases que não sejam nem abruptas nem frívolas nem plebéias mas belas e bem compostas pois de outro modo não honraremos a Deus tão bem quanto podemos E portanto os gentios procederam de maneira absurda venerando imagens de deuses mas era razoável fazêlo em verso e com música quer de vozes quer de instrumentos Estavam também concordes com a razão por resultarem de uma intenção de venerálo os animais que ofereciam em sacrifício e as ofertas que faziam e os seus atos de veneração estavam cheios de submissão e celebravam os benefícios recebidos Sétimo a razão aponta não apenas para o culto de Deus em particular mas também e especialmente em público e à vista dos homens pois sem isso se perde o que em honra é mais aceitável levar os outros a honrálo Finalmente a obediência a suas leis isto é neste caso às leis de natureza é o maior de todos os cultos Pois tal como a obediência é mais aceitável para Deus do que o sacrifício assim também deixar de atender seus mandamentos é a maior de todas as contumélias E estas são as leis daquele culto divino que a razão natural dita aos particulares Mas dado que um Estado é apenas uma pessoa deve também apresentar a Deus um só culto o que faz quando ordena que seja ostentado publicamente pelos particulares E isto é culto público cuja propriedade é ser uniforme pois aquelas ações que são feitas de maneira diferente por homens diferentes não podem ser consideradas como culto público E portanto quando são permitidas muitas espécies de cultos resultantes das diferentes religiões dos particulares não se pode dizer que haja qualquer culto público nem que o Estado tenha qualquer religião E porque as palavras e por conseqüência os atributos de Deus recebem sua significação por concordância e decisão dos homens devem sentidos como significativos de honra aqueles atributos que os homens decidam que assim sejam e aquilo que puder ser feito pela vontade dos particulares quando não existe outra lei além da razão pode ser feito pela vontade do Estado por meio de leis civis E porque um Estado não tem vontade e não faz outras leis senão aquelas que são feitas pela vontade daquele ou daqueles que têm o soberano poder seguese que aqueles atributos que o soberano ordena no culto de Deus como sinais de honra devem ser aceites e usados como tais pelos particulares em seu culto público Mas porque nem todas as ações são sinais por constituição mas algumas são naturalmente sinais de honra outras de contumélia estas últimas que são aquelas que os homens têm vergonha de fazer à vista daqueles a quem reverenciam não podem ser tornadas parte do culto divino por meio do poder humano nem as primeiras na medida em que são um comportamento decente modesto e humilde podem alguma vez ser separadas dele Mas visto que há um número infinito de ações e gestos de natureza indiferente aqueles que o Estado ordenar que estejam pública e universalmente em uso como sinais de honra e parte do culto de Deus devem ser aceites e usados como tais pelos súditos E aquilo que é dito nas Escrituras É melhor obedecer a Deus do que aos homens tem lugar no reino de Deus por pacto e não por natureza Tendo assim falado rapidamente do reino natural de Deus e de suas leis naturais apenas acrescentarei a este capítulo uma curta declaração acerca de suas punições naturais Não existe nesta vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de conseqüências tão longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao homem um prospeto até ao fim E nesta cadeia estão ligados acontecimentos agradáveis e desagradáveis de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas e estas dores são as punições naturais daquelas ações que são o início de um mal maior que o bem E daqui resulta que a intemperança é naturalmente castigada com doenças a precipitação com desastres a injustiça com a violência dos inimigos o orgulho com a ruína a cobardia com a opressão o governo negligente dos príncipes com a rebelião e a rebelião com a carnificina Pois uma vez que as punições são conseqüentes com a quebra das leis as punições naturais têm de ser naturalmente conseqüentes com a quebra das leis de natureza e portanto seguemnas como seus efeitos naturais e não arbitrários E isto no que se refere à constituição natureza e direito dos soberanos e no que se refere ao dever dos súditos derivado dos princípios da razão natural E agora considerando como é diferente esta doutrina da prática da maior parte do mundo especialmente daquelas partes ocidentais que receberam sua sabedoria moral de Roma e de Atenas e como é necessária uma profunda filosofia moral àqueles que têm a administração do soberano poder estou a ponto de acreditar que este meu trabalho seja inútil como o Estado de Platão pois também ele é de opinião de que é impossível desaparecerem as desordens do Estado e as mudanças de governo por meio de guerras civis enquanto os soberanos não forem filósofos Mas quando atento novamente no fato de que a ciência da justiça natural é a única ciência necessária para os soberanos e para seus principais ministros e que eles não precisam de ser sobrecarregados com as ciências matemáticas como precisam nos textos de Platão além de por boas leis serem os homens encorajados ao seu estudo e que nem Platão nem qualquer outro filósofo até agora ordenou e provou com suficiência ou probabilidade todos os teoremas da doutrina moral que os homens podem aprender a partir daí não só a governar como a obedecer fico novamente com alguma esperança de que esta minha obra venha um dia a cair nas mãos de um soberano que a examinará por si próprio pois é curto e penso que claro sem a ajuda de algum intérprete interessado ou invejoso e que pelo exercício da plena soberania protegendo o ensino público desta obra transformará esta verdade especulativa na utilidade da prática TERCEIRA PARTE DO ESTADO CRISTÃO Dos princípios da política cristã Até aqui deduzi os direitos do poder soberano e os deveres dos súditos unicamente dos princípios da natureza que a experiência tenha mostrado serem verdadeiros ou dos que o consentimento relativamente ao uso das palavras assim tenha tornado Quer dizer partindo da natureza do homem que conhecemos através da experiência e de definições das palavras que são essenciais para todo raciocínio político que são universalmente aceites Mas quanto ao que vou tratar em seguida isto é a natureza e direitos de um Estado cristão onde muita coisa depende das revelações sobrenaturais da vontade de Deus o fundamento de meu discurso deverá ser não apenas a palavra natural de Deus mas também sua palavra profética Não obstante não convém renunciar aos sentidos e à experiência nem àquilo que é a palavra indubitável de Deus nossa razão natural Pois foram esses os talentos que ele pôs em nossas mãos para vivermos até o retorno de nosso abençoado Salvador portanto não são para serem envoltos no manto de uma fé implícita mas para serem usados na busca da justiça da paz e da verdadeira religião Pois embora haja na palavra de Deus muitas coisas que estão acima da razão quer dizer que não podem ser demonstradas nem refutadas pela razão natural não há nessa palavra nada contrário a ela E quando assim parece ser a culpa é de nossa inábil interpretação ou de nosso incorreto raciocínio Portanto quando alguma coisa aí escrita se mostra demasiado árdua para nosso exame devemos propornos cativar nosso entendimento às palavras e não ao esforço de peneirar uma verdade filosófica por intermédio da lógica a respeito daqueles mistérios que não são compreensíveis e aos quais não se aplica qualquer regra da ciência natural Pois com os mistérios de nossa religião se passa o mesmo que com as pílulas salutares para os doentes que quando são engolidas inteiras têm a virtude de curar mas quando mastigadas voltam em sua maior parte a ser cuspidas sem qualquer efeito Mas o cativeiro de nosso entendimento não deve ser interpretado como uma submissão da faculdade intelectual à opinião de outrem e sim à vontade de obedecer quando a obediência é devida Porque os sentidos a memória o entendimento a razão e a opinião não podem por nós ser mudados à vontade pois são sempre necessariamente tais como nolos sugerem as coisas que vemos ouvimos e consideramos Não são portanto efeitos de nossa vontade é nossa vontade que é efeito deles Cativamos nosso entendimento e nossa razão quando nos abstemos de contradizer quando falamos da maneira como a legítima autoridade nos ordena e quando vivemos conformemente a tal O que em suma é confiança e fé que depositamos naquele que fala embora o espírito seja incapaz de conceber qualquer espécie de noção a partir das palavras proferidas Quando Deus fala ao homem tem que ser ou imediatamente ou através da mediação de outro homem ao qual ele próprio haja antes falado imediatamente Qual a maneira como Deus fala ao homem imediatamente é coisa que pode ser perfeitamente entendida por aqueles a quem assim falou mas qual a maneira como o mesmo deve ser entendido dos outros é coisa difícil se não impossível de saber Pois se alguém pretender que Deus lhe falou sobrenaturalmente e imediatamente e se eu de tal duvidar não me é fácil ver que argumento pode ele apresentar para obrigarme a acreditálo Ë certo que se ele for meu soberano pode obrigarme à obediência impedindome de declarar por atos ou palavras que não o acredito mas não pode obrigarme a pensar de maneira diferente daquela de que minha razão me convence Mas alguém que não tenha sobre mim tal autoridade e pretenda o mesmo não terá nada capaz de impor seja a crença seja a obediência Porque dizer que Deus falou a alguém nas Sagradas Escrituras não é o mesmo que dizer que Deus lhe falou imediatamente e sim através da mediação dos profetas ou dos apóstolos ou da Igreja da mesma maneira como fala a todos os outros cristãos Dizer que Deus lhe falou em sonhos não é mais do que dizer que sonhou que Deus lhe falou o que não é de força a conquistar a crença de ninguém que saiba que os sonhos em sua maioria são naturais e podem ter origem nos pensamentos anteriores e que sonhos como esse não passam da manifestação de uma alta estima de si mesmo e de uma insensata arrogância assim como de uma falsa opinião sobre sua própria piedade ou outra virtude pela qual julga ter merecido o favor de uma revelação extraordinária Dizer que teve uma visão ou que ouviu uma voz é o mesmo que dizer que sonhou entre o sono e a vigília pois efetivamente acontece muitas vezes alguém assim tomar seu sonho por uma visão por não ter reparado bem que estava dormitando Dizer que fala por inspiração sobrenatural é o mesmo que dizer que sente um ardente desejo de falar ou alguma alta opinião de si mesmo para os quais não consegue encontrar uma razão natural e suficiente De modo que embora Deus possa falar a alguém através de sonhos visões voz e inspiração ele não obriga ninguém a acreditar que efetivamente assim fez a qualquer um que tenha essa pretensão Porque sendo um homem pode estar enganado e o que é mais pode estar mentindo Como pode então aquele a quem Deus nunca revelou imediatamente sua vontade a não ser por intermédio da razão natural saber quando deve ou não deve obedecer à palavra dos que pretendem ser profetas Dos quatrocentos profetas aos quais o rei de Israel pediu conselho a respeito da guerra que fazia contra Ramoth Gilead só Miquéias era um verdadeiro profeta O profeta que foi enviado para profetizar contra Jeroboam embora fosse um verdadeiro profeta e mediante dois milagres feitos em sua presença mostrasse ser um profeta enviado por Deus foi apesar disso enganado por outro velho profeta que o persuadiu a comer e beber com ele como se fosse uma ordem dada pela boca de Deus Se um profeta foi capaz de enganar outro que certeza pode haver de conhecer a vontade de Deus por um caminho que não seja o da razão Ao que respondo baseado nas Sagradas Escrituras que há dois sinais que em conjunto mas não separadamente permitem identificar o verdadeiro profeta Um deles é a realização de milagres o outro é não ensinar qualquer religião que não a já estabelecida Separadamente conforme disse nenhum deles é suficiente Se entre vós se erguer um profeta ou um sonhador de sonhos que pretenda realizar um milagre e o milagre acontecer se ele disser para seguirdes deuses estranhos aos quais não conheçais não lhe dareis ouvidos etc E esse profeta ou sonhador de sonhos deve ser condenado à morte pois vos disse para vos revoltardes contra Deus vosso Senhor Nestas palavras há duas coisas a salientar Em primeiro lugar que Deus não aceita que os milagres bastem como argumentos para aceitar a vocação de um profeta como é o caso no terceiro versículo eles servem para experimentar a constância de nossa dedicação a Deus Porque as obras dos feiticeiros egípcios embora não fossem tão grandes como as de Moisés mesmo assim eram grandes milagres Em segundo lugar que por maior que seja o milagre se ele tender a provocar a revolta contra o rei ou contra aquele que governa em virtude da autoridade do rei deve pensarse apenas que quem realizou tal milagre foi enviado para pôr à prova a fidelidade do povo Porque as palavras vos revoltardes contra Deus vosso Senhor são neste lugar equivalentes a vos revoltardes contra vosso rei Com efeito Deus haviase tornado seu rei por um pacto celebrado no sopé do monte Sinai e Deus governavaos unicamente por intermédio de Moisés pois só este falava com Deus e de vez em quando comunicava ao povo os mandamentos de Deus De maneira semelhante Cristo nosso Salvador depois de ter feito os discípulos reconheceremno como o Messias quer dizer como o ungido de Deus que a nação dos judeus dia após dia esperou como seu rei mas recusou quando ele chegou não deixou de avisálos contra o perigo dos milagres Surgirão disse ele falsos Cristos e falsos profetas e farão grandes maravilhas e milagres capazes até de seduzir se tal fosse possível os próprios eleitos O que mostra que os falsos profetas podem ter o poder de fazer milagres e mesmo assim não devemos aceitar sua doutrina como a palavra de Deus Além disso São Paulo disse aos Gálatas que se ele mesmo ou um anjo do céu lhes pregasse um outro Evangelho diferente do que ele pregara que ele fosse amaldiçoado Esse Evangelho dizia que Cristo era rei de modo que toda pregação contra o poder do rei reconhecido em conseqüência destas palavras é amaldiçoada por São Paulo Pois suas palavras eram dirigidas àqueles que devido a sua pregação já tinham reconhecido Jesus como o Cristo quer dizer como rei dos judeus Tal como os milagres sem a pregação da doutrina estabelecida por Deus são argumento insuficiente de uma revelação imediata assim também o é a pregação da verdadeira doutrina sem a realização de milagres Porque se um homem que não ensina falsas doutrinas viesse pretender ser um profeta sem mostrar qualquer milagre de modo algum sua pretensão deveria ser aceite como é evidente em Dt 1821s Se perguntais em vosso coração como saber que a palavra do profeta não é aquela que Deus proferiu se o profeta tiver falado em nome do Senhor e se tal não for verdade essa é a palavra que o Senhor não proferiu e o profeta proferiu a com o orgulho de seu corarão não o temais Mas poderia aqui também perguntarse quando o profeta prediz uma coisa como podemos saber se ela virá ou não a ocorrer Porque ele pode predizer uma coisa que só virá a acontecer depois de muito tempo mais do que o tempo de vida de um homem ou pode dizer de maneira indefinida que tal virá a ocorrer em qualquer momento e neste caso esse sinal do profeta é inútil Portanto os milagres que nos obrigam a acreditar num profeta devem ser confirmados por um acontecimento imediato e não adiado por muito tempo Fica assim manifesto que o ensino da religião estabelecida por Deus juntamente com a realização imediata de um milagre foram os únicos sinais aceites pelas Escrituras como próprios de um verdadeiro profeta quer dizer como impondo o reconhecimento de uma revelação imediata e que nenhum deles por si só é suficiente para obrigar alguém a aceitar o que ele diz Portanto dado que agora não se produzem mais milagres não resta qualquer sinal que permita reconhecer as pretensas revelações ou inspirações de qualquer indivíduo E não há obrigação alguma de dar ouvidos a qualquer doutrina para além do que é conforme às Sagradas Escrituras que desde o tempo de nosso Salvador substituem e suficientemente compensam a falta de qualquer outra profecia e a partir das quais mediante sábia e douta interpretação e cuidadoso raciocínio podem facilmente ser deduzidos todos os preceitos e regras necessárias para conhecer nosso dever para com Deus e para com os homens sem entusiasmo ou inspiração sobrenatural E é destas Escrituras que vou extrair os princípios de meu discurso a respeito dos direitos dos que são na terra os supremos governantes dos Estados cristãos e dos deveres dos súditos cristãos para com seus soberanos E com esse fim vou falar no capítulo seguinte dos livros autores alcance e autoridade da Bíblia CAPÍTULO XXXIII Do número antigüidade alcance autoridade e intérpretes dos livros das Sagradas Escrituras Entendo por livros das Sagradas Escrituras aqueles que devem ser o Cânone quer dizer as regras da vida cristã E como as regras da vida que os homens são em consciência obrigados a respeitar são leis o problema das Escrituras é o problema de saber o que é lei para toda a cristandade tanto natural como civil Porque embora as Escrituras não determinam quais são as leis que cada rei cristão deve ditar em seus domínios não obstante elas determinam quais são as leis que eles não devem ditar Assim dado que já provei que em seus domínios os soberanos são os únicos legisladores só são canônicos isto é só constituem lei em cada nação aqueles livros estabelecidos como tais pela autoridade soberana É certo que Deus é o soberano de todos os soberanos e portanto quando fala a qualquer súdito deve ser obedecido seja o que for que qualquer potentado terreno ordene em sentido contrário Mas o problema não é o da obediência a Deus e sim o de quando e o que Deus disse e isso só pode ser conhecido pelos súditos que não receberam revelação sobrenatural através da razão natural a qual os levou a obedecer a fim de conseguir a paz e a justiça à autoridade de seus diversos Estados quer dizer de seus legítimos soberanos Conformemente a esta obrigação só posso reconhecer como Sagradas Escrituras dos livros do Antigo Testamento aqueles que a autoridade da Igreja da Inglaterra ordenou que fossem reconhecidos como tais É suficientemente sabido quais são esses livros sem ser preciso enumerálos aqui são os mesmos que são reconhecidos por São Jerônimo que considera apócrifos os restantes a saber a Sabedoria de Salomão o Eclesiastes Judite Tobias o primeiro e o segundo dos Macabeus apesar de ter visto o primeiro em hebreu e o terceiro e o quarto de Esdras Josephus um sábio judeu que escreveu na época do Imperador Domiciano reconhece vinte e dois dos canônicos fazendo o número coincidir com o alfabeto hebreu São Jerônimo faz o mesmo embora ambos os reconheçam de maneiras diferentes Porque Josephus conta cinco livros de Moisés treze dos Profetas que escreveram a história de sua própria época e veremos depois como concordam com os escritos dos profetas contidos na Bíblia e quatro dos Hinos e preceitos morais Mas São Jerônimo reconhece cinco livros de Moisés oito dos Profetas e nove outros sagrados escritos aos quais chama Hagiógrofos Os Septuaginta que eram setenta sábios judeus enviados por Ptolomeu rei do Egito para traduzir a lei judia do hebreu para o grego não nos deixaram como Sagradas Escrituras em língua grega nada a não ser o mesmo que é reconhecido pela Igreja da Inglaterra Quanto aos livros do Novo Testamento são igualmente reconhecidos como cânone por todas as Igrejas cristãs e por todas as seitas de cristãos que admitem qualquer livro como canônico Quanto a quem foram os autores originais dos vários livros das Sagradas Escrituras é coisa que não foi tornada evidente por qualquer suficiente testemunho ou outra história que é a única prova em matéria de fato nem pode sêlo por quaisquer argumentos da razão natural pois a razão não serve para convencer da verdade dos fatos mas apenas da verdade das conseqüências Portanto a luz que deve guiarnos nesta questão deve ser a que provém dos próprios livros e embora esta luz não nos mostre o autor de cada livro ela não deixa de ter utilidade para nos dar a conhecer a época em que foram escritos Em primeiro lugar quanto ao Pentateuco não constitui argumento suficiente para afirmar que foi escrito por Moisés o fato desse lhe chamar os cinco livros de Moisés Tal como os títulos do livro de Josué do livro dos Juízes do livro de Rute e dos livros dos Reis não são argumentos suficientes para provar que eles foram escritos por Josué pelos Juízes por Rute ou pelos Reis Porque nos títulos dos livros o tema é tão freqüentemente assinalado como o autor A História de Lívio denota o autor mas a História de Scanderbeg é denominada em função do tema Lemos no último capítulo do Deuteronômio versículo 6 a respeito do sepulcro de Moisés que ninguém conhecia seu sepulcro até este dia isto é até o dia em que essas palavras foram escritas Portanto é manifesto que essas palavras foram escritas depois de seu funeral Porque seria uma estranha interpretação dizer que Moisés falou de seu próprio sepulcro mesmo por profecia afirmando que não foi encontrado até que um dia no qual ele ainda estava vivo Mas talvez alguém possa alegar que apenas o último capítulo e não todo o Pentateuco foi escrito por outrem e não o restante Examinemos portanto o que se encontra no livro do Gênese 126 E Abraão passou pela terra até ao lugar de Sichem na planície de Moreh e então o cananeu estava na terra Estas têm necessariamente que ser as palavras de alguém que escreveu quando o cananeu não estava na terra portanto não podem ser de Moisés que morreu depois de ele para lá ter ido De maneira semelhante nos Números 2114 o autor cita outro livro mais antigo intitulado O Livro das Guerras do Senhor onde foram registrados os feitos de Moisés no mar Vermelho e na ponte de Arnon Fica assim perfeitamente evidente que os cinco livros de Moisés foram escritos depois de seu tempo embora não seja manifesto quanto tempo depois Mas embora Moisés não tenha compilado inteiramente esses livros na forma em que os conhecemos ele escreveu tudo o que aí se diz que escreveu Como por exemplo o Volume da Lei que segundo parece está contido no cap 11 do Deuteronômio e os capítulos seguintes até o 27 que também foi ordenado que fossem escritos em pedras na entrada para a terra de Canaã E isto escreveuo 0 próprio Moisés e entregouo aos sacerdotes e anciãos de Israel para ser lido todo sétimo ano em Israel inteiro na assembléia da festa do Tabernáculo E foi dessa lei que Deus ordenou que seus reis quando estabeleceram essa forma de governo tirassem uma cópia para os sacerdotes e levitas e foi ela que Moisés ordenou aos sacerdotes e levitas que colocassem ao lado da arca e a mesma que depois de estar perdida voltou muito tempo depois a ser encontrada por Hilkiah que a enviou ao rei Josias o qual fazendo que ela fosse lida ao povo renovou o pacto estabelecido entre este último e Deus Que o livro de Josué também foi escrito muito depois do tempo de Josué é coisa que pode inferirse de muitos trechos do próprio livro Josué tinha colocado doze pedras no meio do Jordão como monumento de sua passagem e sobre isto diz o autor que elas lá ficaram até este dia Ora até este dia é uma frase que significa um tempo passado muito além da memória do homem De maneira semelhante depois da fala do Senhor que tinha libertado o povo do opróbrio do Egito diz o autor que o lugar se chama Gilgal até este dia O que teria sido impróprio se dito no tempo de Josué E também sobre o nome do vale de Achor pela perturbação causada por Achan no acampamento diz o autor que ficou até este dia o qual portanto deve necessariamente ser muito posterior ao tempo de Josué E há muitos outros argumentos deste tipo como em Jos 829 1313 1414 e 1563 O mesmo é manifesto em argumentos semelhantes do livro dos Juízes cap 1 2126 624 104 1519 176 e Rute 11 mas especialmente Juízes 1830 onde se diz que Jônatas e seus filhos eram sacerdotes da tribo de Dan até o dia do cativeiro da terra Que os livros de Samuel também foram escritos depois de seu tempo prova se a partir de argumentos idênticos 1 Sam 55 71315 276 e 3025 onde depois de ter distribuído partes iguais dos despojos entre os que guardaram as munições e os que combateram diz o autor Ele fez disso um estatuto e uma ordenação para Israel até este dia Além disso quando Davi desgostoso por Deus ter dado a morte a Uzzah por estender a mão para segurar a arca chamou ao lugar PerezUzzah diz o autor que ele é assim chamado até este dia Portanto a época em que o livro foi escrito deve ser muito posterior ao fato quer dizer muito tempo depois da época de Davi Quanto aos dois livros dos Reis e aos dois livros das Crônicas por um lado há os trechos que fazem referência aos monumentos que segundo o autor permaneceram até seu próprio tempo como em 1 Reis 91321 1012 1219 e 2 Reis 222 822 1027 147 166 17233441 e 1 Crôn 441 526 Por outro lado constitui argumento suficiente de que foram escritos depois do cativeiro de Babilônia o fato de sua história continuar até esse tempo Porque os fatos registados são sempre mais antigos do que o registro e muito mais antigos do que os livros que referem ou citam esse registro como fazem esses livros em diversas passagens remetendo o leitor para as crônicas dos reis de Judá para as crônicas dos reis de Israel para os livros do profeta Samuel do profeta Natan e do profeta Hageu assim como para a Visão de Jehdo e os livros do profeta Servias e do profeta Addo Não resta dúvida de que os livros de Esdras e Neemias foram escritos depois de seu regresso do cativeiro pois fazem referência a esse regresso à reconstrução das muralhas e casas de Jerusalém à renovação do pacto e às ordenações de sua política A história da Rainha Ester é do tempo do cativeiro portanto o autor deve ser da mesma época ou de uma posterior O livro de Jó não mostra nenhum sinal do tempo em que foi escrito embora pareça suficientemente evidenciado Ezequiel 1414 e Tg 511 que não era uma pessoa inventada contudo o livro não parece ser uma história e sim um tratado sobre uma questão muito discutida nos tempos antigos Por que freqüentemente os maus prosperam neste mundo e os bons são afligidos Parece ser isso o mais provável porque desde o início até o terceiro versículo do terceiro capítulo quando se inicia o lamento de Jó o hebreu é em prosa conforme testemunha São Jerônimo daí até o sexto versículo do último capítulo é em versos hexâmetros e o resto do capítulo volta a ser em prosa Assim a discussão é toda em verso e a prosa só é acrescentada como prefácio no início e como epílogo no fim Ora o verso não é o estilo habitual dos que se encontram em grande aflição corno Jó nem dos que vão confortálos como amigos Mas nos tempos antigos era freqüente em filosofia sobretudo em filosofia moral Os Salmos foram escritos em sua maioria por Davi para uso dos cantores A eles foram acrescentados alguns cantos de Moisés e outros homens santos sendo alguns deles posteriores ao regresso do cativeiro como 0 137 e o 126 por onde fica manifesto que o Saltério foi compilado e posto na forma atual depois do regresso dos judeus de Babilônia Os Provérbios como são uma coleção de sábias e piedosas sentenças em parte da autoria de Salomão e em parte da de Agur filho de Jakeh e em parte da da mãe do rei Lemuel não é provável que tenham sido coligidos por Salomão ou por Agur ou pela mãe de Lemuel embora as sentenças sejam deles a coleção ou compilação de todos num único livro provavelmente foi obra de algum outro homem devoto que viveu depois de todos eles Os livros do Eclesiastes e dos Cânticos não têm nada que não seja de Salomão a não ser os títulos e inscrições Porque As palavras do pregador filho de Davi rei de Jerusalém e O Cântico dos Cânticos parecem ter sido feitos para fins de distinção quando os livros das Escrituras foram reunidos num único corpo de lei para que também os autores e não só a doutrina pudessem subsistir Dos profetas os mais antigos são Sofonias Jonas Amos Oséias Isaías e Miquéias que viveram no tempo de Amazias e Azarias ou Ozias reis de Judá Mas o livro de Jonas não é propriamente um registro de sua profecia a qual está contida em poucas palavras Quarenta dias e Nínive será destruída mas a história ou narração de sua rebeldia e desrespeito aos mandamentos de Deus assim dado que ele é o tema do livro há pouca probabilidade de que seja também seu ator Mas o livro de Amós é sua própria profecia Jeremias Abdias Nahum e Habacuc profetizaram no tempo de Josias Ezequiel Daniel Ageu e Zacarias profetizaram no cativeiro Quanto ao tempo em que Joel e Malaquias profetizaram não se torna evidente a partir de seus escritos Mas examinando as inscrições ou títulos de seus livros fica bastante claro que todas as Escrituras do Antigo Testamento foram postas na forma que possuem após o regresso dos judeus do cativeiro em Babilônia e antes do tempo de Ptolomeu Filadelfo que as mandou traduzir para o grego por setenta homens que lhe foram mandados da Judéia para esse fim E se os livros Apócrifos que nos são recomendados pela Igreja embora não como canônicos como livros proveitosos para nossa instrução neste ponto merecem crédito as Escrituras foram postas na forma que lhes conhecemos por Esdras 0 que se vê no que ele mesmo diz no segundo livro cap 14 vers 2122 etc ao dirigirse a Deus Tua lei foi queimada portanto ninguém conhece as coisas que fizeste nem as obras que estão para começar Mas se encontro graça perante ti envia o Espírito Santo até mim e escreverei tudo o que foi feito no mundo desde o início todas as coisas que foram escritas na lei para que os homens possam encontrar teu caminho e para que possam viver aqueles que irão viver nos dias mais longínquos E no versículo 45 E veio a acontecer que depois de cumpridos os quarenta dias o Altíssimo falou e disse o primeiro que escreveste publicao abertamente para que os dignos e os indignos possam lêlo mas guarda os últimos setenta para que possas entregálos apenas àqueles de entre o povo que sejam sábios E isto é quanto basta acerca do tempo em que foram escritos os livros do Antigo Testamento Os autores do Novo Testamento viveram todos menos de uma geração depois da Ascensão de Cristo e todos eles viram nosso Salvador ou foram seus discípulos com exceção de São Paulo e São Lucas Em conseqüência tudo o que por eles foi escrito é tão antigo como a época dos apóstolos Mas a época em que os livros dos Novo Testamento foram recebidos e reconhecidos pela Igreja como seus escritos não é uma época tão remota Porque assim como os livros do Antigo Testamento não nos vêm de uma época mais antiga do que a de Esdras que sob a direção do Espírito de Deus os recuperou quando estavam perdidos assim também os do Novo Testamento cujas cópias não eram muitas nem facilmente poderiam estar todas nas mãos de uma só pessoa não podem datar de uma época mais antiga do que aquela em que os dirigentes da Igreja os reuniram aprovaram e nolos recomendaram como sendo os escritos desses apóstolos e discípulos por cujos nomes são designados A primeira enumeração de todos os livros tanto do terem sido coligidos por Clemente Primeiro depois de São Pedro bispo de Roma Mas como apenas se julga isso e muitos o contestam o concílio de Laodicéia é o primeiro que conhecemos a recomendar a Bíblia às Igrejas cristãs como sendo os escritos dos profetas e apóstolos e esse concílio se reuniu no ano de 364 depois de Cristo E nessa época embora até então a ambição fosse o que dominava entre os grandes doutores da Igreja fazendoos deixar de reconhecer os imperadores apesar de cristãos como pastores mas só como ovelhas e considerar como lobos os imperadores não cristãos e de se terem esforçado por apresentar sua doutrina não como conselho e informação na qualidade de pregadores mas como leis na qualidade de governantes absolutos embora tais fraudes pretendessem tornar o povo mais piedoso e mais obediente à doutrina cristã apesar de tudo isto estou convencido de que isso não os levou a falsificar as Escrituras embora as cópias dos livros do Novo Testamento estivessem apenas nas mãos dos eclesiásticos pois se tivessem a intenção de assim fazer sem dúvida os teriam tornado mais favoráveis do que são a seu poder sobre os príncipes cristãos Portanto não vejo qualquer razão para duvidar que o Antigo e o Novo Testamento tais como atualmente os conhecemos são os verdadeiros registros das coisas que foram feitas e ditas pelos profetas e apóstolos Assim talvez alguns daqueles livros que são chamados Apócrifos não tenham sido deixados fora do Cânone por inconformidade de doutrina com o restante mas apenas por não terem sido encontrados em hebreu Porque depois da conquista da Ásia por Alexandre o Grande eram poucos os judeus cultos que não conheciam perfeitamente a língua grega Pois os setenta intérpretes que verteram a Bíblia para o grego eram todos hebreus e ainda temos as obras de Philo e de Josephus ambos judeus por eles eloqüentemente escritas em grego Mas o que torna canônico um livro não é o autor é a autoridade da Igreja E embora esses livros hajam sido escritos por diversos homens é manisfesto que todos eles estavam imbuídos do mesmo espírito pelo fato de todos eles conspirarem para o mesmo fim que era o estabelecimento dos direitos do reino de Deus do Pai do Filho e do Espirito Santo Porque o livro do Gênese derivava a genealogia do povo de Deus desde a criação do mundo até a ida para o Egito Os outros quatro livros de Moisés contêm a eleição de Deus como rei desse povo e as leis que ele prescreveu para seu governo Os livros de Josué dos Juízes de Rute e de Samuel até o tempo de Saul descrevem as ações do povo de Deus até o momento em que se libertaram do jugo de Deus e escolheram um rei à maneira das nações vizinhas 0 resto da história do Antigo Testamento deriva a sucessão da linha de Davi até o cativeiro linha essa da qual viria a nascer o restaurador do reino de Deus nosso abençoado Salvador Deus Filho cuja vinda foi prevista nos livros dos profetas depois dos quais os evangelistas escreveram sua vida suas ações e sua pretensão ao trono enquanto viveu sobre a terra Por último os Atos e Epistolas dos apóstolos declaram a vinda de Deus o Espírito Santo e a autoridade que ele lhes deixou e a seus sucessores para a direção dos judeus e para a conversão dos gentios Em resumo tanto as histórias e profecias do Antigo Testamento como os Evangelhos e Epistolas do Novo Testamento tiveram um só e único objetivo a conversão dos homens à obediência a Deus 1 em Moisés e nos sacerdotes 2 no homem Cristo e 3 nos apóstolos e nos sucessores do poder apostólico Porque efetivamente estes representaram em momentos diversos a pessoa de Deus Moisés e seus sucessores os Sumos Sacerdotes e reis de Judá no Antigo Testamento o próprio Cristo durante o tempo que viveu na terra e os apóstolos e seus sucessores desde o dia do Pentecostes quando o Espírito Santo baixou sobre eles até o dia de hoje É uma questão muito disputada entre as diversas seitas da religião cristã de onde as Escrituras tiram sua autoridade Questão que às vezes é formulada em outros termos Como sabemos que elas são a palavra de Deus ou Por que acreditamos que elas o são A dificuldade de resolver essa questão vem sobretudo da impropriedade das palavras em que a própria questão está formulada Porque em todo o lado se acredita que foi Deus seu primeiro e original autor logo não é essa a questão que está em disputa Por outro lado é evidente que só podem saber que elas são a palavra de Deus embora todos os verdadeiros cristãos em tal creiam aqueles a quem o próprio Deus o revelou sobrenaturalmente portanto não é correto colocar a questão em termos de nosso conhecimento de tal fato Por último quando se levanta a questão de nossa crença dado que uns são levados a acreditar por uma razão e outros por outras diferentes não é possível dar uma respostas geral válida para todos A formulação correta da questão é por que autoridade elas são tornadas lei Na medida em que não diferem das leis de natureza não há dúvida de que são a lei de Deus e são portadoras de uma autoridade legível por todos os homens que têm o uso da razão natural Mas esta autoridade não é outra senão a de toda outra doutrina moral conforme à razão cujos ditames são leis não feitas mas eternas Se elas são tornadas leis pelo próprio Deus são da natureza da lei escrita que são leis apenas para aqueles perante quem Deus suficientemente as publicou de modo que ninguém possa desculparse que elas não são suas leis Portanto aquele a quem Deus não revelou sobrenaturalmente que elas são suas leis nem que aqueles que as publicaram foram enviados por ele não é obrigado a obedecerlhes por nenhuma autoridade a não ser a daquele cujas ordens já têm força de lei quer dizer por nenhuma outra autoridade que não a do Estado único a possuir o poder legislativo Por outro lado se não for a autoridade legislativa do Estado que lhes confere força de lei deve ser alguma outra autoridade derivada de Deus seja pública ou privada Se for privada obriga apenas àquele a quem a Deus aprouve revelála em particular Porque se todos os homens fossem obrigados a aceitar como lei de Deus o que qualquer particular a pretexto de inspiração ou revelação pessoal lhes pretenda impor e dado o grande número de homens que por orgulho ou ignorância tomam seus próprios sonhos e extravangantes fantasias e loucuras por testemunhos do Espírito de Deus ou por ambição pretendem ter recebido tais divinos testemunhos falsamente e contra suas próprias consciências seria impossível que qualquer lei divina fosse reconhecida Se for pública ou é a autoridade do Estado ou é a da Igreja Mas a Igreja se for uma pessoa é a mesma coisa que um Estado de cristãos sendo um Estado porque consiste num dado número de homens unidos numa pessoa o seu soberano e sendo uma Igreja porque é formada de cristãos unidos sob um soberano cristão Mas se a Igreja não for uma pessoa não possui qualquer espécie de autoridade não pode mandar nem praticar qualquer espécie de Tão nem é capaz de ter qualquer poder ou qualquer direito a alguma coisa e não tem qualquer espécie de vontade razão ou voz porque todas essas qualidades são pessoais Ora se todos os cristãos não se encontrarem abrangidos por um só Estado eles não constituem uma pessoa nem existe uma Igreja universal que tenha sobre eles qualquer autoridade Portanto as Escrituras não são tornadas leis pela Igreja universal E se ela é um Estado nesse caso todos os monarcas e nações cristãs são pessoas privadas sujeitas a ser julgadas depostas e punidas por um soberano universal de toda a cristandade Portanto a questão da autoridade das Escrituras fica reduzida a isto Se os reis cristãos e as assembléias soberanas dos Estados cristãos são absolutos em seu próprio território imediatamente abaixo de Deus ou se estão sujeitos a um vigário de Cristo constituído sobre a Igreja universal podendo ser julgados condenados depostos ou mortos consoante ele achar conveniente ou necessário para o bem comum Questão esta que só poderá ser resolvida mediante um exame mais atento do reino de Deus o qual nos permitirá também julgar a autoridade de interpretar as Escrituras Porque quem quer que tenha o poder de tornar lei a qualquer escrito tem também o poder de aprovar ou desaprovar a interpretação do mesmo CAPÍTULO XXXIV Do significado de espírito santo anjo e inspiração nos livros das Santas Escrituras Dado que o fundamento de todo raciocínio verdadeiro é a significação constante das palavras a qual na doutrina que se segue não depende da vontade do autor como na ciência natural nem do uso vulgar como na conversação corrente mas do sentido que têm nas Escrituras tornase necessário antes de ir mais adiante determinar que significado têm na Bíblia aquelas palavras que devido a sua ambigüidade podem tornar obscuro ou discutível o que a partir delas vou inferir Vou começar com as palavras corpo e espírito que na linguagem das Escolas se denominam substâncias corpóreas e incorpóreas A palavra corpo em sua acepção mais geral significa o que preenche ou ocupa um determinado espaço ou um lugar imaginado que não dependa da imaginação mas seja uma parte real do que chamamos o universo Dado que o universo é o agregado de todos os corpos não há nenhuma de suas partes reais que não seja também corpo nem há coisa alguma que seja propriamente um corpo e não seja também parte desse agregado de todos os corpos que é o universo Por outro lado e dado que os corpos estão sujeitos à mudança quer dizer à variedade da aparência para os sentidos das criaturas vivas ao mesmo se chama também substância quer dizer sujeito a diversos acidentes Às vezes a ser movido outras a ficar parado ou a parecer a nossos sentidos às vezes quente outras vezes frio às vezes de uma cor cheiro gosto ou som e outras vezes de outro diferente E atribuímos esta variedade do parecer produzida pela diversidade das operações dos corpos sobre os órgãos de nossos sentidos às alterações dos corpos que operam e chamamoslhes acidentes desses corpos Segundo esta acepção da palavra substância e corpo significam a mesma coisa Portanto substância incorpórea são palavras que quando reunidas se destroem uma à outra tal como se alguém falasse de um corpo incorpóreo Mas na linguagem popular nem todo o universo é chamado corpo só o sendo aquelas de suas partes que podem ser discernidas pelo sentido do tato como resistentes à pressão ou pelo sentido da vista como impedindo uma visão distante Portanto na linguagem comum ar e substâncias aéreas não costumam ser tomados como corpos mas chamaselhes vento ou hálito na medida em que se sentem seus efeitos ou espíritos porque os mesmos em latim são chamados spiritus Como quando se chama espíritos animais e vitais àquela substância aérea que no corpo de toda criatura viva lhe dá vida e movimento Quanto àqueles ídolos do cérebro que nos apresentam corpos quando eles não existem como num espelho num sonho ou para um cérebro acordado mas destemperado eles nada são como disse em geral de todos os ídolos o Apóstolo Quero dizer absolutamente nada no lugar onde parecem estar e no próprio cérebro nada mais do que tumulto proveniente da ação dos objetos ou da desordenada agitação dos órgãos de nossos sentidos E os homens que se ocupam de coisas diferentes da busca de suas causas não sabem por si mesmos o que lhes chamar podendo portanto facilmente ser persuadidos por aqueles cujo conhecimento tanto reverenciam alguns a chamarlhes corpos pensando que são feitos de ar tornado compacto por um poder sobrenatural dado que a vista os julga corpóreos e outros a chamarlhes espíritos porque o sentido do tato nada discerne no lugar onde aparecem que seja capaz de resistir à pressão dos dedos De modo que a significação própria de espírito na linguagem comum tanto pode ser um corpo sutil fluido e invisível quanto um fantasma ou outro ídolo ou fantasia da imaginação Mas significações metafóricas há muitas pois às vezes é tomado como uma disposição ou inclinação da mente como quando designamos a disposição para controlar o que os outros dizem como espírito de contradição ou uma tendência para a impureza como espírito impuro ou a tendência para a maldade como espírito perverso ou a estupidez como espírito tosco e a tendência para a piedade ou para o serviço de Deus como Espírito de Deus E às vezes designamos com essa palavra uma capacidade eminente ou uma paixão extraordinária ou uma enfermidade da mente como quando uma grande sabedoria é chamada espírito de sabedoria ou quando se diz dos loucos que estão possuídos por um espírito Não encontro em lugar algum outras significações de espírito E como nenhuma dessas é capaz de dar conta do sentido dessa palavra nas Escrituras a passagem não está ao alcance do entendimento humano e nossa fé nesse caso não consiste em nossa opinião mas em nossa submissão Como em todas as passagens onde se diz que Deus é um espírito ou quando com Espírito de Deus se pretende designar o próprio Deus Porque a natureza de Deus é incompreensível quer dizer nada entendemos do que é mas apenas que ele é Portanto os atributos que lhe damos não são para dizermos uns aos outros o que é nem para indicar nossa opinião de sua natureza mas nosso desejo de honrálo com aqueles nomes que consideramos mais honrosos entre nós mesmos Gên 12 0 Espírito de Deus pairava sobre as águas Se aqui por Espírito de Deus se entender o próprio Deus estáse atribuindo movimento a Deus e consequentemente lugar o que só é inteligível quanto aos corpos não quanto às substâncias incorpóreas Assim esta passagem está acima de nosso entendimento que é incapaz de conceber nada que se mova e que não mude de lugar ou que não tenha dimensões e tudo o que tem dimensões é corpo Mas o significado dessas palavras entendese melhor numa passagem semelhante Gên 81 Quando a terra estava coberta pelas águas como no princípio e Deus pretendia fazêlas baixar para descobrir de novo a terra firme usou estas palavras Quero levar meu Espírito sobre a terra e as águas diminuirão Nesta passagem deve entenderse por Espírito um vento que é um ar ou espírito movido que poderia ser chamado como na passagem anterior o Espírito de Deus porque era obra de Deus Gên 4138 Faraó chamou a sabedoria de José o Espírito de Deus Tendoo José aconselhado a procurar um homem sábio e discreto para mandálo à terra do Egito disse ele Poderemos encontrar um homem como este no qual exista o Espírito de Deus E fx 283 Ireis falar disse Deus a todos os de coração sábio aos quais enchi com o espírito da sabedoria para que façam roupas para Aarão afim de consagrálo Onde um entendimento extraordinário embora apenas para fazer roupas sendo um dom de Deus é chamado Espírito de Deus 0 mesmo se encontra também em fx 3136 e 3531 E em saías 1120 onde o profeta diz ao falar do Messias 0 Espírito do Senhor irá habitar nele o Espírito da sabedoria e do entendimento o Espírito do conselho e da firmeza e o Espírito do temor ao Senhor Onde manifestamente não se quer falar de outros tantos fantasmas mas de outras tantas graças eminentes que Deus lhe daria No livro dos Juízes um extraordinário zelo e coragem em defesa do povo de Deus é chamado o Espírito de Deus Como quando estimulou a Otoniel Gedeão Jefté e Sansão para que o libertassem da servidão Juízes 310 634 1129 1325 146 e 19 Sobre Saul ao receber notícias da insolência dos amonitas para com os homens de Jabesh Gilead dizse 1 Sam 116 que o Espírito de Deus baixou sobre Saul e sua ira ou na versão latina sua fúria foi grandemente incendida Onde não é provável que se esteja falando de um fantasma e sim de um extraordinário zelo de castigar a crueldade dos amonitas De maneira semelhante pelo Espírito de Deus que baixou sobre Saul quando ele se encontrava entre os profetas que louvavam a Deus com canções e músicas I Sam 1920 não deve entendei se um fantasma mas um zelo inesperado e súbito de unirse a eles em sua devoção 0 falso profeta Zedequias disse a Miquéias 1 Reis 2224 Por onde se foi de mim o Espírito do Senhor para falarte 0 que não pode ser tomado como um fantasma pois Miquéias declarou perante os reis de Israel e Judá o acontecimento da batalha como proveniente de uma visão e não de um espírito falando nele Do mesmo modo se depreende dos livros dos profetas que estes últimos apesar de falarem pelo Espírito de Deus quer dizer por uma graça especial de predição não recebiam seu conhecimento do futuro de um fantasma dentro deles e sim de um sonho ou visão sobrenatural Gên 27 Dizse que Deus fez o homem do pó da terra e insulou em suas narinas spiraculum vitae o sopro da vida e o homem foi tornado uma alma vivente Aqui o sopro da vida insuflado por Deus significa simplesmente que Deus lhe deu a vida E também J6 273 dizer enquanto o Espírito de Deus estiver em minhas narinas é o mesmo que dizer enquanto eu viver Assim em Ez 120 o espírito da vida estava nas rodas é equivalente de as rodas estavam vivas E em Ez 230 a expressão o espírito entrou em mim e me pôs de pé significa recuperei minha força vital e não que algum fantasma ou substância incorpórea entrou em meu corpo e o possuiu No capítulo 11 dos Números versículo 17 Tomarei disse Deus do Espírito que está em ti e dálo ei a eles e eles suportarão contigo o fardo do povo Tratase dos sete anciãos de dois dos quais se diz que profetizaram no acampamento e disso alguns se queixaram e Josué quis que Moisés de tal os proibisse ao que Moisés se recusou De onde se depreende que Josué não sabia que eles estavam autorizados a fazêlo e profetizavam de acordo com a vontade de Moisés quer dizer por um espírito ou autoridade subordinada à deste último Em sentido semelhante lemos Dt 349 que Josué estava cheio do espírito de sabedoria porque Moisés tinha posto suas mãos sobre ele Isto é porque lhe foi ordenado por Moisés que continuasse a obra por ele próprio iniciada a saber levar o povo de Deus até a terra prometida e que a morte o impediu de terminar Em sentido semelhante se diz Rom 89 Se algum homem não tiver o Espírito de Cristo ele não é dos seus Com isto não se quer referir o fantasma de Cristo e sim a submissão a sua doutrina E também 1 Jo 42 Por isso conhecereis o Espírito de Deus todo Espírito que confessar que Jesus Cristo veio carnalmente é de Deus Com o que se quer referir o espírito da genuína cristandade ou a submissão àquele artigo principal da fé cristã que Jesus é o Cristo o que não pode ser interpretado como um fantasma E do mesmo modo nestas palavras Lc 41 E Jesus cheio do Santo Fantasma isto é conforme vem expresso em Mt 41 e em Mc 112 do Espirito Santo deve lerse o realizar a obra para que fora enviado por Deus Pai Mas interpretar isso como um fantasma é o mesmo que dizer que o próprio Deus pois nosso Salvador o era estava cheio de Deus o que é extremamente impróprio e insignificante Não vou examinar como chegamos a traduzir espíritos pela palavra fantasmas que nada significa nem no céu nem na terra a não ser os habitantes imaginários do cérebro do homem Digo apenas que no texto apalavra espírito não significa tal coisa e ou significa propriamente uma substancia real ou significa metaforicamente alguma aptidão ou afecção extraordinária da mente ou do corpo Os discípulos de Cristo ao veremno caminhar sobre as ondas Mt 1426 e Me 649 julgaram que ele era um espírito querendo com isso referir um corpo aéreo e não um fantasma Pois se diz que todos eles o viram o que é impossível dizerse das ilusões do cérebro que não são comuns a muita gente ao mesmo tempo como são os corpos visíveis mas singulares devido às diferenças das imaginações só podendo dizer se dos corpos 0 mesmo aconteceu quando ele foi tomado por um espírito pelos mesmos apóstolos Lc 2437 e também At 1215 quando São Pedro foi libertado da prisão não se deu crédito à notícia E quando a donzela disse que ele estava à porta disseram que era seu anjo com o que certamente se queria referir uma substância corpórea e é preciso dizer que os próprios discípulos aceitavam a opinião comum tanto aos judeus como aos gentios de que algumas dessas aparições não eram imaginárias mas reais e sem precisarem da fantasia do homem para existirem A estas os judeus chamavam espíritos e anjos bons ou maus e os gregos davam às mesmas o nome de demônios E algumas dessas aparições podem ser reais e substanciais quer dizer corpos sutis que Deus pode formar pelo mesmo poder com que fez todas as coisas e que pode usar como ministros e mensageiros quer dizer anjos para declarar sua vontade e executar a mesma quando lhe aprouver de maneira extraordinária e sobrenatural Mas depois de ele assim as formar elas são substâncias dotadas de dimensões ocupando espaço e podendo ser movidas de um lugar para outro conforme é peculiar aos corpos Portanto não são fantasmas incorpóreos quer dizer fantasmas que não estão em lugar algum quer dizer que estão em nenhures quer dizer que parecendo ser algo não são nada Mas se se entender corpóreo da maneira mais vulgar como substâncias perceptíveis por nossos sentidos externos nesse caso a substância incorpórea não é uma coisa imaginária e sim real a saber uma substância tênue e invisível mas que tem as mesmas dimensões dos corpos mais sólidos A palavra anjo significa geralmente um mensageiro e na maior parte dos casos um mensageiro de Deus E por mensageiro de Deus entendese algo que dá a conhecer sua presença extraordinária quer dizer a manifestação extraordinária de seu poder especialmente através de um sonho ou de uma visão Não há nada nas Escrituras relativamente à criação dos anjos Freqüentemente se repete que são espíritos mas este nome significa tanto nas Escrituras como na linguagem vulgar tanto entre os judeus como entre os gentios às vezes corpos tênues como o ar o vento e os espíritos vitais e animais das criaturas vivas outras vezes significa as imagens que surgem na fantasia por ocasião dos sonhos e visões as quais não são substâncias reais e não duram mais do que o sonho ou visão em que aparecem aparições essas que embora não sejam substâncias reais mas acidentes do cérebro quando são criadas sobrenaturalmente por Deus para manifestar sua vontade não é impropriamente que são chamadas mensageiros de Deus quer dizer seus anjos Tal como os gentios concebiam as imaginações do cérebro como coisas realmente existentes sem eles e independentes da fantasia e forjaram a partir daí suas opiniões dos demônios bons e maus aos quais dado que pareciam existir realmente chamavam substâncias e dado que não lhes era possível sentilos com as mãos chamavam incorpóreos assim também os judeus com o mesmo fundamento sem haver nada no Antigo Testamento que a tal os obrigasse eram geralmente de opinião com exceção da seita dos saduceus de que essas aparições que por vezes a Deus aprazia fazer surgir na imaginação dos homens para seu próprio serviço e portanto lhes chamava seus anjos eram substâncias independentes da imaginação e criaturas permanentes de Deus Assim os que julgavam bons para eles eram considerados anjos de Deus e os que julgavam serlhes prejudiciais eram chamados anjos maus ou espíritos malignos Como era o caso do espírito de Píton e dos espíritos dos loucos dos lunáticos e dos epilépticos Pois consideravam endemoninhados todos os que eram afligidos por essas doenças Mas se examinarmos as passagens do Antigo Testamento onde se faz referência aos anjos veremos que na maior parte delas a única coisa que se pode entender pela palavra anjo é uma imagem despertada sobrenaturalmente na fantasia para indicar a presença de Deus na execução de alguma obra sobrenatural Portanto nas passagens restantes onde sua natureza não é explicitada essa palavra deve entenderse da mesma maneira Pois lemos em Gên 16 que à mesma aparição se chama não apenas anjo mas também Deus e que o que é chamado versículo 7 o anjo do Senhor diz a Agar no décimo versículo Multiplicarei tua linhagem super abundantemente quer dizer fala na pessoa de Deus E esta aparição não era uma fantasia figurada mas uma voz Por onde se torna evidente que anjo significa aqui simplesmente o próprio Deus o qual fez sobrenaturalmente que Agar ouvisse uma voz vinda do céu ou melhor tratase simplesmente de uma voz sobrenatural testemunhando a presença especial de Deus Sendo assim por que não poderão os anjos que apareceram a Lot e são chamados homens Gên 1913 e aos quais embora fossem dois Lot falou como se fosse só um vers 18 e a esse um como se fosse Deus porque as palavras são Lot lhes disse Não rogovos Senhor ser entendidos como imagens de homens sobrenaturalmente formadas na imaginação tal como antes um anjo foi entendido como uma voz imaginada Quando o anjo chamou a Abraão desde o céu para que detivesse sua mão que ia matar Isaac Gên 2211 não houve aparição mas apenas uma voz A qual não obstante foi com bastante propriedade chamada mensageiro ou anjo de Deus pois declarou sobrenaturalmente a vontade de Deus o que evita o esforço de supor quaisquer fantasmas permanentes Os anjos que Jacob viu na escada do céu Gên 2812 eram uma visão de seu sonho portanto eram apenas uma fantasia e um sonho mas como essas aparições são sobrenaturais e sinais da presença especial de Deus não é impróprio chamar lhes anjos 0 mesmo deve entenderse Gên 3111 quando Jacó diz 0 anjo do Senhor apareceume durante o sono Com efeito uma aparição a um homem durante o sono é que toda a gente chama um sonho quer esse sonho seja natural ou sobrenatural E aquilo a que Jacó chamou anjo era o próprio Deus porque o mesmo anjo disse versículo 13 Eu sou o Deus de Bethel Por outro lado Êx 149 o anjo que foi à frente do exército de Israel até ao mar Vermelho e depois se pôs atrás dele é o próprio Deus versículo 19 E ele não apareceu sob a forma de um belo homem mas sob a forma de dia de uma coluna de nuvens e de noite sob a forma de uma coluna de fogo Contudo esta coluna foi toda a aparição e anjo prometida a Moisés Êx 149 como guia do exército Pois se diz que essa coluna nebulosa desceu do céu e ficou à porta do Tabernáculo e falou com Moisés Vemos neste caso o movimento e a linguagem que geralmente se atribuem aos anjos atribuídos a uma nuvem porque a nuvem era um sinal da presença de Deus e não era menos um anjo do que se tivesse a forma de um homem ou uma criança de beleza inexcedível ou se tivesse asas como geralmente são pintados para falsa instrução da gente do vulgo Porque não é a forma que deles faz anjos mas seu uso Ora este uso deve ser a significação da presença de Deus nas operações sobrenaturais como quando Moisés Ëx 3314 quis que Deus fosse junto com o exército como sempre tinha feito antes de fazerem o bezerro de ouro e Deus não respondeu Irei nem Mandarei um anjo em meu lugar e sim Minha presença irá convosco Seria demasiado longo enumerar todas as passagens do Antigo Testamento onde se encontra a palavra anjo Assim para abrangêlas todas ao mesmo tempo direi que não há qualquer texto naquela parte do Antigo Testamento que a Igreja da Inglaterra considera canônica da qual possamos concluir que existe ou que foi criada qualquer coisa permanente designada pelo nome de espírito ou anjo que não possua quantidade e não possa ser dividida pelo entendimento quer dizer examinada por partes de modo tal que uma parte esteja num lugar e a parte seguinte no lugar seguinte ao primeiro Em resumo que não seja corpórea considerando corpo aquilo que é alguma coisa ou que está em algum lugar Mas em todas as passagens o sentido permite a interpretação de anjo como mensageiro como João Batista é chamado um anjo e Cristo o anjo do pacto e também como segundo a mesma analogia a pomba e as línguas de fogo na medida em que eram sinais da presença especial de Deus poderiam igualmente ser chamadas anjos Embora em Daniel encontremos dois nomes de anjos Gabriel e Miguel o próprio texto deixa claro Dan 121 que por Miguel se entende o Cristo não como anjo mas como príncipe e que Gabriel tal como as idênticas aparições a outros santos homens durante o sono não passava de um fantasma sobrenatural pelo qual pareceu a Daniel em seu sonho que estando dois santos falando um deles disse ao outro Gabriel vamos fazer este homem entender sua visão Porque Deus não precisa de distinguir seus servos celestes com nomes que só se tornam úteis para as curtas memórias dos mortais No Novo Testamento não há qualquer passagem que permita provar que os anjos a não ser quando se trata daqueles homens de quem Deus fez os mensageiros e ministros de sua palavra ou suas obras sejam coisas permanentes e além disso incorpóreas Que são permanentes pode depreenderse das palavras de nosso Salvador Mt 2541 onde ele diz que será dito aos pecadores no dia do juízo Ide malditos para o fogo eterno preparado para o Diabo e seus anjos Passagem que mostra bem a permanência dos anjos maus a não ser que entendamos o nome do Diabo e seus anjos como indicando os adversários da Igreja e seus ministros mas que é incompatível com sua imaterialidade porque o fogo eterno não seria um castigo para substâncias impalpáveis como são todas as coisas incorpóreas Portanto aí não fica provado que os anjos sejam incorpóreos De maneira semelhante quando São Paulo diz 1 Cor 63 Não sabeis que julgaremos os anjos e também 2 Pdr 24 Porque se Deus não perdoou aos anjos que pecaram e os precipitou no inferno e ainda Jdt 16 E aos anjos que não conservaram seu estado primitivo e abandonaram sua primitiva habitação ele reservou a obscuridade em eternas cadeias até o Juízo do último dia em todas estas passagens embora prove a permanência da natureza angelical confirma também sua materialidade E também Mt 2230 Na ressurreição os homens não casam nem dão em casamento mas são como os anjos de Deus no céu mas na ressurreição os homens serão permanentes e não incorpóreos portanto os anjos também o serão Há diversas outras passagens de onde poderia tirarse a mesma conclusão Para os homens que entendem o significado das palavras substância e incorpóreo dado que incorpóreo não é tomado como corpo sutil mas como não corpo elas implicam quando juntas uma contradição Nessa medida dizer que um anjo ou espírito é nesse sentido uma substância incorpórea é efetivamente o mesmo que dizer que não há qualquer espécie de anjos ou espíritos Assim levando em conta a significação da palavra anjo no Antigo Testamento e a natureza dos sonhos e visões que acontecem aos homens através dos processos habituais da natureza inclinome para pensar que os anjos não são mais do que aparições sobrenaturais da imaginação suscitadas pela intervenção especial e extraordinária de Deus a fim de dar a conhecer à humanidade e principalmente a seu próprio povo sua presença e seus mandamentos Mas as numerosas passagens do Novo Testamento e as próprias palavras de nosso Salvador em textos onde não há suspeita de corrupção das Escrituras arrancaram a minha débil razão o reconhecimento e crença de que também há anjos substanciais e permanentes Mas acreditar que eles não estão em parte alguma quer dizer em nenhures quer dizer que não são nada como dizem embora indiretamente os que os consideram incorpóreos não pode ser provado a partir das Escrituras Da significação da palavra espírito depende a da palavra inspiração que ou é tomada em sentido próprio e neste caso não é mais do que o insuflar num homem de um ar ou vento fino e sutil tal como um homem enche uma bexiga com seu sopro ou então se os espíritos não são corpóreos e têm sua existência apenas na imaginação não é mais do que o insuflar de um fantasma o que só pode ser dito de maneira imprópria e impossível pois os fantasmas são nada apenas parecem ser alguma coisa Portanto essa palavra é usada nas Escrituras apenas metaforicamente Como quando se diz Gên 27 que Deus inspirou ao homem o sopro da vida não se querendo dizer outra coisa senão que Deus lhe deu o movimento vital Porque não devemos pensar que Deus fez primeiro um sopro vivo e depois o insuflou em Adão depois de este já estar feito quer esse sopro fosse real ou aparente mas apenas At 1725 que lhe deu vida e alento quer dizer que fez dele uma criatura viva E quando se diz l Tim 316 todas as Escrituras são dadas por inspiração de Deus falando aí das Escrituras do Antigo Testamento tratase de uma simples metáfora significando que Deus inclinou o espírito ou mente desses autores a escrever o que seria útil para ensinar reprovar corrigir e instruir os homens no reto caminho da vida Mas quando São Pedro diz 2 Pdr 121 que nos tempos antigos a profecia não proveio da vontade dos homens mas os santos homens de Deus falaram enquanto movidos pelo Espírito Santo entendese por Espírito Santo a voz de Deus num sonho ou visão sobrenatural que não é uma inspiração E quando nosso Salvador lançou seu alento sobre os discípulos dizendo recebei o Espírito Santo esse alento também não era o espírito mas um sinal das graças espirituais que lhes estava concedendo E embora se diga de muitos inclusivamente de nosso próprio Salvador que estava cheio do Espírito Santo mesmo assim essa plenitude não deve ser entendida como infusão da substância de Deus mas como acumulação de seus dons como o dom da santidade da vida ou o dom das línguas e outros semelhantes quer sejam conseguidos sobrenaturalmente ou pelo estudo e pelo trabalho pois em todos os casos tratase de dons de Deus De maneira semelhante quando Deus diz Jo 228 derramarei meu espírito sobre a carne e vossos filhos e filhas profetizarão vossos velhos sonharão sonhos e vossos jovens verão visões não devemos entendêlo em sentido próprio como se o espírito fosse como a água sujeito a efusão e infusão mas no sentido de Deus ter prometido darlhes sonhos e visões proféticas Porque o uso próprio da palavra infundido ao falar das graças de Deus constitui um abuso da palavra dado que as graças são virtudes e não corpos que podem ser levados para aqui e para ali ou que podem ser despejados para dentro dos homens como se estes fossem barris Da mesma maneira tomar inspiração em sentido próprio ou dizer que entraram nos homens espíritos benéficos que lhes permitem profetizar ou espíritos maléficos que os tornam frenéticos lunáticos ou epilépticos não é tomar a palavra no sentido das Escrituras pois nestas o espírito é tomado como poder de Deus trabalhando através de causas que nos são desconhecidas Como também o vento At 22 que lá se diz ter enchido a casa onde os apóstolos estavam reuni dos no dia de Pentecostes não deve ser entendido como o Espírito Santo o qual é a própria divindade mas como um sinal externo da intervenção especial de Deus em seus corações para neles tornar efetivas as graças internas e as santas virtudes que considerava necessárias para a realização de seu apostolado CAPÍTULO XXXV Do significado de Reino de Deus Santo nas Escrituras Nas obras dos autores religiosos especialmente nos sermões e tratados de devoção o Reino de Deus é geralmente tomado como a eterna felicidade depois desta vida no altíssimo céu ao qual também chamam o Reino de Glória Às vezes também como santificação o máximo dessa felicidade ao que chamam Reino da Graça Mas nunca como a monarquia quer dizer o poder soberano de Deus sobre quaisquer súditos adquirido pelo consentimento destes que é a significação própria de Reino Pelo contrário verifico que na maioria das passagens das Escrituras Reino de Deus significa um reino propriamente dito constituído pelos votos do povo de Israel de maneira peculiar segundo a qual escolheram Deus como seu rei mediante um pacto celebrado com ele após Deus terlhes prometido a posse da terra de Canaã e poucas vezes tem um significado metafórico E mesmo nestes casos é tomado como domínio sobre o pecada apenas no Novo Testamento pois um domínio como esse todo súdito o terá no Reino de Deus sem prejuízo para o soberano Desde a própria criação Deus não se limitou a reinar naturalmente sobre todos os homens através de seu poder mas teve também súditos peculiares aos quais comandava por intermédio de uma voz da mesma maneira que um homem fala com outro Foi dessa maneira que reinou sobre Adão dandolhe ordem de se abster da árvore do conhecimento do bem e do mal Quando ele desobedeceu e dela provou propôsse ser como Deus julgando entre o bem e o mal seguindo seu próprio critério em vez dos mandamentos de seu criador e seu castigo foi a privação do estado de vida eterna no qual inicialmente Deus o tinha criado E posteriormente Deus castigou pelos seus vícios a sua posteridade com exceção de apenas oito pessoas com um dilúvio universal E era nessas pessoas que consistia nesse momento o Reino de Deus Mais tarde prouve a Deus falar a Abraão e fazer com ele um pacto Gên 177s nestes termos Estabelecerei meu pacto entre mim e ti e tua semente depois de ti em suas gerações por um pacto perpétuo para ser um Deus para ti e para tua semente depois de ti E darteei a ti e a tua semente depois de ti a terra onde és um estranho toda a terra de Canaã para uma posse perpétua Neste pacto Abraão prometeu por si mesmo e sua posteridade obedecer ao que Deus nosso Senhor lhe dissesse e por sua parte Deus prometeu a Abraão a posse perpétua da terra de Canaã E como testemunho e garantia do pacto ordenou versículo 11 o sacramento da circuncisão É a isto que se chama o Antigo Pacto ou Testamento que encerra um contrato entre Deus e Abraão mediante o qual Abraão fica obrigado assim como sua posteridade a ficar sujeito de maneira peculiar à lei positiva de Deus porque à lei moral já estava obrigado antes através de um juramento de obediência Embora ainda não seja dado a Deus o nome de rei nem a Abraão e sua descendência o nome de reino a coisa é a mesma a saber a instituição mediante um pacto da soberania peculiar de Deus sobre a descendência de Abraão 0 que na renovação do mesmo pacto por Moisés no monte Sinai é expressamente chamado um Reino de Deus peculiar sobre os judeus E foi de Abrão não de Moisés que São Paulo disse Rom 411 que ele é o Pai dos fiéis quer dizer dos que são leais e não violam a obediência jurada a Deus primeiro pela circuncisão e depois no novo pacto pelo batismo Este pacto no sopé do monte Sinai foi renovado por Moisés Êx 195 quando o Senhor ordenou a Moisés que falasse ao povo desta maneira Se efetivamente obedecerdes a minha voz e respeitardes meu pacto então sereis um povo peculiar para mim pois toda a terra me pertence E sereis sob mim um reino sacerdotal e uma nação santa Povo peculiar era no latim vulgar peculium de cunctis populis na tradução inglesa feita no reinado de Jaime um tesouro peculiar sob mim acima de todas as nações e a tradução francesa de Genebra a jóia mais preciosa de todas as nações Mas a tradução correta é a primeira pois é confirmada pelo próprio São Paulo Ti 214 quando diz aludindo a essa passagem que nosso abençoado Salvador se deu a si mesmo por nós com o fim de purificarnos para si mesmo como um povo peculiar isto é extraordinário Por que em grego a palavra é periorísios que geralmente se opõe à palavra epiorísios e assim como esta significa vulgar cotidiano ou como na oração do Senhor de uso diário assim também a outra significa excedente e armazenado e gozado de maneira especial e é a isso que os latinos chamavam peculium E este significado da passagem é confirmado pela razão para ela dada por Deus imediatamente a seguir onde ele acrescenta Todas as nações do mundo são minhas mas não é dessa maneira que sois meus e sim de uma maneira especial Porque elas são minhas em virtude do meu poder mas vós sereis meus por vosso próprio consentimento e pacto 0 que constitui um acrescento a seu título geral sobre todas as nações Por outro lado o mesmo é confirmado nas palavras expressas do mesmo texto Vós sereis para mim um reino sacerdotal e uma nação santa 0 latim vulgar era regnum sacerdolale com o que concorda a tradução dessa passagem IPdr 29 sacerdotium regale um sacerdócio real Como concorda também a própria instituição pela qual ninguém pode entrar no sanctum sanctorum quer dizer ninguém pode dirigirse diretamente ao próprio Deus mas só através do sumo sacerdote A tradução inglesa acima referida seguindo a de Genebra refere um reino de sacerdotes o que ou significa a sucessão de um Sumo Sacerdote após outro ou então não está de acordo com São Pedro nem com o exercício do sumo sacerdócio Porque nunca competiu a ninguém a não ser apenas ao Sumo Sacerdote informar o povo da vontade de Deus nem jamais a qualquer convocação de sacerdotes foi permitido entrar no sanctum sanctorum Além disso o título de nação santa confirma o mesmo porque santo significa aquilo que é de Deus por direito especial não por direito geral Conforme se diz nos textos a terra inteira é de Deus mas nem toda a terra é chamada santa sendoo apenas aquela que é posta de parte para um serviço especial como era o caso da nação dos judeus Portanto esta passagem mostra suficientemente que por Reino de Deus se entende propriamente um Estado instituído pelo consentimento dos que lhe iriam ficar sujeitos para seu governo civil e para o controle de seu comportamento não apenas para com Deus seu soberano mas também uns para com os outros em matéria de justiça e para com as outras nações tanto na paz como na guerra E ele era propriamente um reino onde Deus era o rei e o Sumo Sacerdote viria a ser após a morte de Moisés seu único vicerei ou lugartenente Mas há muitas outras passagens que provam claramente o mesmo Em primeiro lugar 1 Sam 87 aquela em que os anciãos de Israel revoltados com a corrupção dos filhos de Samuel pediram um rei e Samuel mostrou seu desagrado e orou ao Senhor e o Senhor em resposta lhe disse Escuta a voz do povo pois não foi a ti que eles rejeitaram foi a mim para que não reine sobre eles Onde é evidente que o próprio Deus era então seu rei e que Samuel não comandava o povo mas apenas a ele comunicava o que de vez em quando Deus lhe ditava Por outro lado quando Samuel disse ao povo 1 Sam 1212 Quando vistes que Nahash rei dos filhos de Amon marchava contra vós haveisme dito Não só um rei deve reinar sobre nós dado que Deus nosso Senhor era vosso rei fica manifesto que Deus era seu rei e governava o regime civil de seu Estado E depois de os Israelitas rejeitarem Deus os profetas predisseram sua restituição Is 2423 Então a Lua ficará confundida e o Sol ficará envergonhado quando o Senhor das Hostes reinar no monte Sion e em Jerusalém Onde se fala expressamente de seu reino em Sion e em Jerusalém quer dizer na terra E também Miq 47 E o Senhor reinará sobre eles no monte Sion este monte Sion é em Jerusalém na terra E também Ez 2033 Como vivo disse Deus nosso Senhor seguramente com mão poderosa e o braço estendido e com fúria derramada governarei sobre vós e versículo 37 Farvosei passar sob a vara e levarvosei até o laço do pacto quer dizer reinarei sobre vós e obrigarvosei a respeitar aquele pacto que fizestes comigo através de Moisés e ao qual haveis quebrado com vossa rebelião contra mim no tempo de Samuel e em vossa eleição de um outro rei E no Novo Testamento o anjo Gabriel disse de nosso Salvador Lc 13233 Ele será grande e será chamado o Filho do Altíssimo e o Senhor lhe dará o trono de seu pai Davi e ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó e seu reino não mais terá fim Aqui também se trata de um reino na terra e foi porque o reclamou que lhe foi dada a morte como inimigo de César A insígnia de sua cruz era Jesus de Nazaré Rei dos Judeus por escárnio foi coroado com uma coroa de espinhos e por sua proclamação dizse dos discípulos At 177 Isso todos eles fizeram contrariamente aos decretos de César dizendo que havia um outro rei chamado Jesus Portanto o Reino de Deus é um reino real não um reino metafórico e é neste sentido que é tomado não só no Antigo Testamento como também no Novo Quando dizemos porque teu é o Reino o Poder e a Glória deve entenderse o Reino de Deus pela força de nosso pacto e não pelo direito do poder de Deus porque tal reino Deus sempre teve portanto seria supérfluo dizer em nossas preces venha a nós o teu Reino se isso não significasse a restauração daquele Reino de Deus pelo Cristo esse reino que a revolta dos israelitas interrompeu com a eleição de Saul E também não seria próprio dizer o Reino do Céu está em tua mão ou rezar venha a nós o teu Reino se ele tivesse continuado Existe tão grande número de outras passagens que confirmam esta interpretação que seria de espantar tal não ter sido mais notado não fosse a maneira como elas esclarecem os reis cristãos fazendoos ver seu direito ao governo eclesiástico Isto muito bem viram os que em vez de reino sacerdotal traduziram reino de sacerdotes pois também teriam podido traduzir sacerdócio real como em São Pedro por sacerdócio de reis E tal como traduzem povo peculiar por jóia ou tesouro precioso assim também se poderia chamar ao regimento ou companhia especial de um general a jóia preciosa ou o tesouro do general Em resumo o Reino de Deus é um reino civil que consiste em primeiro lugar na obrigação do povo de Israel para com as leis que Moisés lhe deveria trazer do monte Sinai e que posteriormente o Sumo Sacerdote do momento lhe deveria comunicar perante os querubins do sanctum sanctorum E tendo esse reino sido interrompido com a eleição de Saul os profetas predisseram que seria restaurado por Cristo e é por essa restauração que diariamente oramos quando dizemos na prece do Senhor venha a nós o teu Reino e cujo direito reconhecemos quando acrescentamos porque teu é o Reino o Poder e a Glória para todos os séculos dos séculos amém e cuja proclamação foi a pregação dos apóstolos e para o qual os homens são preparados pelos mestres do Evangelho equivalendo a aceitação desse Evangelho quer dizer a promessa de obediência ao governo de Deus a estar no Reino da Graça porque Deus concedeu grátis o direito de ser súditos isto é filhos de Deus posteriormente quando Cristo viesse em majestade para julgar o mundo e para governar efetivamente seu povo ao que se chama Reino de Glória Se o Reino de Deus também chamado Reino do Céu devido à gloriosa e admirável altura desse trono não fosse um reino exercido por Deus na terra através de seus lugartenentes e vigários que transmitem seus mandamentos ao povo não teria havido tantas discussões e guerras para determinar através de quem Deus nos fala nem tantos padres se teriam preocupado com a jurisdição espiritual nem rei algum a teria negado a eles A partir desta interpretação literal do Reino de Deus surge também a verdadeira interpretação da palavra santo Pois é uma palavra que corresponde no Reino de Deus àquilo que os homens em seus reinos costumam chamar público isto é do rei Em qualquer país o rei é a pessoa pública ou representante de todos os seus súditos E Deus rei de Israel era a pessoa santa de Israel A nação que está sujeita a um soberano terreno é a nação desse soberano isto é da pessoa pública Assim os judeus que eram a nação de Deus eram chamados Êx 196 uma nação santa Porque por santo sempre se entendeu ou o próprio Deus ou o que é propriedade de Deus E público sempre significou ou a própria pessoa do Estado ou alguma coisa que pertence ao Estado de modo tal que nenhuma pessoa particular pode pretender sua propriedade Portanto o sábado dia de Deus é um dia santo o templo casa de Deus é uma casa santa os sacrifícios dízimos e oferendas tributo de Deus são deveres santos os padres profetas e os reis ungidos por Cristo ministros de Deus são homens santos os espíritos ministeriais celestes mensageiros de Deus são santos anjos e assim por diante E sempre que a palavra santo é usada propriamente há alguma coisa de propriedade obtida por consentimento que é significada Ao dizer santificado seja o teu nome não fazemos mais do que rogar a Deus pela graça de respeitar o primeiro mandamento de não ter outros deuses senão ele A humanidade é a nação de Deus por propriedade mas só os judeus são uma nação santa Por que razão senão porque se tornaram sua propriedade através do pacto E a palavra profano geralmente é usada nas Escrituras com o sentido de comum consequentemente seus contrários santo e próprio no Reino de Deus devem significar também o mesmo Mas em sentido figurado também se chama santos àqueles homens cujas vidas foram tão retas como se eles tivessem renunciado a qualquer propósito mundano e se dedicado e dado inteiramente a Deus Em sentido próprio do que é tornado santo quando Deus de tal se apropria e separa para seu próprio uso dizse que é santificado por Deus como o sétimo dia no quarto mandamento tal como se diz no Novo Testamento que os eleitos são santificados no momento em que são ungidos pelo espírito de piedade E o que é tornado santo pela dedicação dos homens e entregue a Deus a fim de ser usado unicamente em seu serviço público é também chamado sagrado e dizse que está consagrado como os templos e outras casas de oração pública assim como seus utensílios padres e ministros vítimas oferendas e a matéria externa dos sacramentos Existem diferentes graus de santidade pois das coisas que são postas de parte para o serviço de Deus pode haver algumas que são novamente postas de parte para seu serviço mais próximo e mais especial A nação inteira dos israelitas era um povo santo de Deus mas a tribo de Levi era entre os israelitas uma tribo santa e entre os levitas os sacerdotes eram os mais santos e entre os sacerdotes o Sumo Sacerdote era o mais santo de todos E assim também a terra da Judéia era a terra santa mas a cidade santa onde Deus devia ser adorado era a mais santa e por sua vez o templo era mais santo do que a cidade e o sanctum sanctorum era mais santo do que o resto do templo Um sacramento é a separação de uma coisa visível de seu uso comum e sua consagração para o serviço de Deus como sinal seja de nossa admissão no Reino de Deus como pertencentes a seu povo peculiar seja de comemoração da mesma No Antigo Testamento o sinal de admissão era a circuncisão e no Novo Testamento é o batismo Sua comemoração no Antigo Testamento era comer o cordeiro pascal num momento determinado que era o aniversário mediante o que se lembrava a noite em que os judeus foram libertados da escravidão do Egito No Novo Testamento é a celebração da ceia do Senhor mediante a qual nos lembramos de nossa libertação da escravidão do pecado pela morte de nosso abençoado Salvador na cruz Os sacramentos de admissão só podem ser usados uma vez porque só precisa haver uma admissão mas como é preciso sernos freqüentemente lembrada nossa libertação e nossa obediência os sacramentos de comemoração necessitam ser reiterados E são estes os principais sacramentos que são como se fossem os juramentos solenes de obediência que fazemos Também há outras consagrações que podem ser chamadas sacramentos dado que a palavra implica consagração ao serviço de Deus mas como ela implica também um juramento ou promessa de obediência a Deus não se encontra no Antigo Testamento nenhum outro além da circuncisão e da extrema unção e no Novo Testamento não há nenhum outro além do batismo e da ceia do Senhor CAPÍTULO XXXVI Da palavra de Deus e dos profetas Sempre que se faz referência à palavra de Deus ou do homem não se significa uma parte da linguagem como são para os gramáticos os nomes ou os verbos ou qualquer termo isolado sem um contexto com outras palavras que o tornem significativo e sim uma oração ou discurso perfeito onde o orador afirma nega ordena promete ameaça deseja ou interroga E neste sentido uma palavra não significa vocabulum mas sermo em grego lógos isto é uma oração discurso ou fala Por outro lado quando falamos da palavra de Deus ou do homem isso pode às vezes entenderse do orador como as palavras que Deus proferiu ou que um homem proferiu Neste sentido quando falamos do Evangelho de São Mateus entendemos que São Mateus foi seu autor Outras vezes pode entenderse do tema e nesse sentido quando lemos na Bíblia as palavras dos dias dos reis de Israel e de Judá isso significa que as ações praticadas nesses dias foram o tema dessas palavras E na língua grega que nas Escrituras conserva muitos hebraísmos entendese muitas vezes pela palavra de Deus não aquela que é dita por Deus mas a que é dita a respeito de Deus e de seu governo quer dizer a doutrina da religião Assim é a mesma coisa dizer lógos theoú ou theologia a doutrina a que precisamente chamamos teologia conforme é manifesto na seguinte passagem At 1346 Então Paulo e Barnabé passaram à ousadia e disseram É necessário que a palavra de Deus primeiro vos seja dita mas vendo que a recusais e que vos julgais indignos de uma vida eterna vede voltamos para os gentios 0 que aqui se chamava palavra de Deus era a doutrina da religião cristã como fica evidente pelo que precede E onde At 520 um anjo diz aos apóstolos Ergueivos e dizei no templo todas as palavras desta vida a expressão palavras desta vida significa a doutrina do Evangelho como se torna evidente pelo que eles fizeram no templo e se encontra expresso no último versículo do mesmo capítulo Diariamente no templo e em cada casa eles não cessavam de ensinar e pregar a Cristo Jesus Fica manifesto nesta passagem que Jesus Cristo era o tema desta palavra da vida ou então o que é o mesmo o tema das palavras desta eterna vida que nosso Salvador lhes ofereceu Assim At 157 a palavra de Deus é chamada a palavra do Evangelho porque encerrava a doutrina do Reino de Cristo e a mesma palavra Rom 108s é chamada a palavra da fé isto é conforme aí se encontra expresso a doutrina de Cristo erguido e regressado de entre os mortos E também em Mtensinada por Cristo E da mesma palavra se diz At 1224 que cresce e se multiplica o que é fácil ser entendido da doutrina evangélica mas é difícil e estranho ser entendido da voz ou fala de Deus No mesmo sentido doutrina dos diabos não significa as palavras de qualquer diabo e sim a doutrina dos pagãos a respeito dos demônios e aqueles fantasmas a quem eles adoravam como deuses Examinando estas duas significações da palavra de Deus conforme aparece nas Escrituras é manifesto neste último sentido quando tomada como doutrina da religião cristã que as Escrituras inteiras são a palavra de Deus mas no primeiro sentido não é esse o caso Por exemplo embora as palavras Eu sou o Senhor teu Deus etc no final dos dez mandamentos tenham sido ditas a Moisés por Deus apesar disso o Prefácio Deus proferiu estas palavras e disse deve ser entendido como as palavras daquele que escreveu a história santa A palavra de Deus no sentido daquela que ele proferiu às vezes entendese propriamente e às vezes metaforicamente Propriamente como as palavras que ele disse a seus profetas e metaforicamente como sua sabedoria poder e eterno decreto ao fazer o mundo Neste sentido os fiat de Gên 1 Façase a luz Façase um firmamento Façamos o homem etc são a palavra de Deus E no mesmo sentido se diz Jo 13 Todas as coisas são feitas com ela e sem ela nada foi feito do que foi feito e também Hbr 13 Ele manteve todas as coisas pela palavra de seu poder quer dizer pelo poder de sua palavra ou seja por seu poder e ainda Hbr 113 Os mundos foram forjados pela palavra de Deus e muitas outras passagens com o mesmo sentido Assim como também entre os latinos a palavra face que significava propriamente a palavra dita era tomada no mesmo sentido Em segundo lugar entendese como os efeitos de sua palavra quer dizer como a própria coisa que por sua palavra é afirmada ordenada ameaçada ou prometida Como quando se diz Sl 10519 que José foi mantido na prisão até que sua palavra chegou isto é até vir a acontecer aquilo que ele havia predito Gên 4013 ao copeiro de Faraó a respeito de sua recuperação desse cargo porque sua palavra chegou significa aí que a própria coisa aconteceu E também Elias disse a Deus 1 Rs 1836 Eu fiz todas estas tuas palavras em vez de dizer Eu fiz todas estas coisas por tua palavra ou ordem E Jer 1715 Onde está a palavra do Senhor está em vez de Onde está o mal que ele ameaçou E Ez 1228 em Nenhuma de minhas palavras se prolongará mais entendese por palavras aquelas coisas que Deus havia prometido a seu povo E no Novo Testamento Mt 2435 o céu e a terra passarão mas minhas palavras não passarão quer dizer que não há nada do que ele prometeu ou predisse que não venha a acontecer E é neste sentido que São João Evangelista e segundo creio apenas São João chamava a nosso próprio Salvador a encarnação da palavra de Deus como em Jo 114 a palavra se fez carne quer dizer a palavra ou promessa de que Cristo viria ao mundo que no princípio estava com Deus quer dizer era intenção de Deus Pai enviar ao mundo a Deus Filho a fim de iluminar os homens no caminho da vida eterna mas até esse momento essa intenção não foi posta em execução e efetivamente encarnada e assim nosso Salvador é aí chamado a palavra não porque ele fosse a promessa mas porque era a coisa prometida Aqueles que se apóiam nesta passagem para lhe chamar o Verbo de Deus não fazem mais do que tornar o texto mais obscuro Também poderiam terlhe chamado o Nome de Deus porque por nome tal como por verbo entendese apenas uma parte da linguagem uma voz um som que nem afirma nem nega não ordena nem promete e também não é qualquer substância corpórea ou espiritual da qual portanto não pode dizerse que seja Deus ou homem ao passo que nosso Salvador era ambas essas coisas E essa palavra que São João disse em seu Evangelho que estava com Deus é em sua primeira Epístola versículo 1 chamada a palavra da vida e versículo 2 a vida eterna que estava com o Pai de modo que Deus só pode ser chamado a palavra na medida em que é chamado vida eterna quer dizer aquele que nos trouxe a vida eterna pelo fato de terse feito carne Assim também Ape 1913 o apóstolo ao falar do Cristo vestido com uma túnica empapada de sangue disse seu nome é a palavra de Deus o que deve ser entendido como se ele tivesse dito que seu nome era Aquele que veio conformemente à intenção de Deus desde o princípio e conformemente a sua palavra e promessas transmitidas pelos profetas Portanto aqui de modo algum se trata da encarnação da palavra mas da encarnação de Deus Filho ao qual portanto se chama a palavra porque sua encarnação foi o cumprimento da promessa Da mesma maneira que ao Espírito Santo se chama a promessa Há também passagens das Escrituras onde a palavra de Deus significa aquelas palavras que são conformes à razão e à eqüidade embora às vezes não sejam proferidas nem por um profeta nem por um homem santo Porque o faraó Necao era um idólatra e no entanto se diz de suas palavras ao bom rei Josias nas quais o aconselhava por intermédio de mensageiros a não se opor a sua marcha contra Carchemish que elas provinham da boca de Deus e que Josias como não lhes deu ouvidos foi morto na batalha conforme pode lerse em 2 Crôn 352123 É certo que quando a mesma história é narrada no primeiro livro de Esdras não é o faraó e sim Jeremias que diz essas palavras a Josias a partir da boca do Senhor Mas devemos dar crédito às Escrituras canônicas seja o que for que esteja escrito nos apócrifos A palavra de Deus também deve ser tomada como os ditames da razão e da eqüidade quando da mesma se diz nas Escrituras que está escrita no coração do homem como no Salmo 3631 em Jer 3133 em Dt 301114 e em muitas outras passagens semelhantes 0 nome de profeta significa nas Escrituras às vezes prolocutor quer dizer aquele que fala de Deus ao homem ou do homem a Deus outras vezes praedictor aquele que prediz as coisas futuras e outras vezes aquele que fala incoerentemente como os homens que estão distraídos É usado mais freqüentemente no sentido de quem fala de Deus ao povo Assim Moisés Samuel Elias Isaías Jeremias e outros eram profetas E neste sentido o Sumo Sacerdote era um profeta pois só ele entrava no sanctum sanctorum para inquirir de Deus e transmitir sua resposta ao povo Portanto de quando Caifás disse ser conveniente que um homem morresse pelo povo diz São João cap 1115 que Ele não disse isso por si mesmo mas sendo o Sumo Sacerdote desse ano profetizou que um homem morreria pela nação Também dos que nas congregações cristãs ensinavam o povo 1 Cor 143 se diz que profetizavam Foi no mesmo sentido que Deus disse a Moisés a respeito de Aarão Êx 414 Ele será teu portavoz perante o povo e para ti ele será uma boca e tu para ele farás as vezes de Deus o que aqui é chamado portavoz é no cap 71 interpretado como profeta 1ê disse Deus fiz de ti um Deus para Faraó e teu irmão Aarão será teu profeta No sentido de falar do homem para Deus Abraão é chamado profeta Gên 207 quando num sonho Deus fala a Abimelec desta maneira Restitui portanto agora ao homem sua mulher porque ele é um profeta e rezará por ti de onde se pode também concluir que o nome de profeta pode ser dado e não impropriamente aos que nas igrejas cristãs têm a vocação de dizer orações públicas para a congregação No mesmo sentido dos profetas que desceram do alto lugar ou colina de Deus com um saltério um adufe uma flauta e uma harpa 1 Sam 105s entre os quais Saul versículo 10 se diz que profetizaram na medida em que dessa maneira publicamente louvaram a Deus No mesmo sentido Míriam é chamada uma profetiza Êx 1520 0 mesmo deve ser entendido quando São Paulo diz 1 Cor 114s Todo homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta etc e toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta porque nesta passagem profetizar significa apenas louvar a Deus em salmos e santas canções o que as mulheres podiam fazer na igreja embora não fosse legítimo que elas falassem à congregação E é neste sentido que os poetas dos pagãos que compunham hinos e outros tipos de poema em honra de seus deuses eram chamados vates profetas como bastante sabem todos os que são versados nos livros dos gentios e como fica evidente quando São Paulo diz aos cretenses Ti 112 que um dos seus profetas dissera que eles eram mentirosos não que São Paulo considerasse profetas os seus poetas pois ele simplesmente reconhecia assim que a palavra profeta era geralmente usada para designar os que celebravam em verso a honra de Deus Na medida em que profecia significa predição ou previsão de contingências futuras não eram profetas apenas os que eram portavozes de Deus e prediziam para os outros as coisas que Deus havia predito a eles eramno também todos aqueles impostores que pretendiam com a ajuda de espíritos familiares ou por supersticiosas adivinhações dos acontecimentos passados a partir de falsas causas prever a ocorrência de acontecimentos semelhantes no futuro Dos quais há muitas espécies conforme já declarei no capítulo 12 deste discurso que adquirem na opinião das gentes do vulgo uma grande reputação de profecia graças a um acontecimento casual que pode ser apenas distorcido em seu proveito reputação essa que é maior do que a que depois pode ser perdida por um grande número de fracassos A profecia não é uma arte nem tampouco quando é tomada como predição uma vocação constante mas um emprego extraordinário e temporário por Deus na maior parte dos casos de homens bons mas às vezes também de homens maus A mulher de Endor da qual se diz que tinha um espírito familiar através do qual chamou o fantasma de Samuel e previu a morte de Saul não era portanto uma profetiza Pois nem possuía uma ciência mediante a qual pudesse chamar um tal fantasma nem parece que Deus tenha ordenado esse chamamento tendose limitado a usar essa impostura como meio para aterrorizar e desencorajar Saul levandoo à derrota de que sucumbiu Quanto à linguagem incoerente entre os gentios era tomada por uma espécie de profecia porque os profetas de seus oráculos intoxicados por um espírito ou vapor da caverna do oráculo pítico de Delfos ficavam por uns tempos realmente loucos e falavam como loucos e de suas palavras desconexas podia tirarse um sentido capaz de aplicarse a qualquer acontecimento do mesmo modo que de todos os corpos se diz que são feitos de matéria prima Também nas Escrituras encontro o mesmo sentido 1 Sam 1810 nestas palavras E o espírito maligno baixou sobre Saul e ele profetizou no meio da casa Embora haja nas Escrituras grande número de significações da palavra profeta a mais freqüente é a daquele a quem Deus falou imediatamente e vai repetilo a outro homem ou ao povo E aqui pode fazerse uma pergunta a saber qual a maneira como Deus fala a um tal profeta Poderá propriamente dizerse como dizem alguns que Deus tem voz e linguagem quando não pode propriamente dizerse que ele tem língua ou outros órgãos idênticos aos do homem 0 profeta Davi usa o seguinte argumento Pode aquele que fez o olho não ver e pode aquele que fez o ouvido não ouvir Mas isto pode ser dito não como habitualmente para descrever a natureza de Deus mas para significar nossa intenção de honrálo Porque ver e ouvir são atributos honrosos e podem ser dados a Deus para declarar sua onipotência na medida em que nossa capacidade pode concebêla Mas se fossem tomados em sentido estrito e próprio poderia argumentarse dado ele ter feito todas as outras partes do corpo humano que ele faz delas o mesmo uso que nós o que na maioria dos casos seria inconveniente além de que atribuirlho seria a maior contumélia deste mundo Portanto devemos interpretar o ato de Deus falar aos homens imediatamente como aquela maneira seja ela qual for através da qual Deus lhes dá a conhecer sua vontade E são muitas as maneiras como ele faz isso e só devem ser procuradas nas Sagradas Escrituras onde embora muitas vezes se diga que Deus falou a esta ou àquela pessoa sem declarar de que maneira há por outro lado muitas passagens que mostram também quais os sinais mediante os quais essas pessoas deviam reconhecer sua presença e seus mandamentos passagens essas através das quais pode tornarse possível entender de que maneira falou a muitas das restantes Não se encontra expressa a maneira como Deus falou a Adão Eva Caim e Noé nem como falou a Abraão até ao momento em que este saiu de sua terra e foi a Sichem na terra de Canaã e aqui se diz Gên 127 que Deus lhe apareceu Portanto há uma maneira pela qual Deus tornou manifesta sua presença isto é através de uma aparição ou visão Além disso Gên 151 a palavra de Deus chegou a Abraão numa visão quer dizer alguma coisa em sinal da presença de Deus apareceu como mensageiro de Deus para falarlhe 0 senhor apareceu também a Abraão Gên 181 através de uma aparição de três anjos e a Albimelec Gên 203 num sonho a Lot Gên 191 através da aparição de dois anjos e a Agar Gên 2117 através da aparição de um anjo e novamente a Abraão Gên 22 l I através da aparição de uma voz do céu e a lsaac Gên 2624 durante a noite quer dizer durante o sono ou através de um sonho e a Jacob Gên 1812 foi num sonho quer dizer conforme as palavras do texto Jacob sonhou que viu uma escada etc e também Gên 321 numa visão de anjos e a Moisés Êx 32 foi a aparição de uma chama ou fogo no meio da sarça E depois da época de Moisés onde está expressa a maneira como Deus falou imediatamente ao homem no Antigo Testamento ele sempre falou por uma visão ou por um sonho como nos casos de Gedeão Samuel Elias Elisa Isaías Ezequiel e os restantes profetas e muitas vezes também no Novo Testamento como nos casos de São José São Pedro São Paulo e São João Evangelista no Apocalipse Só a Moisés falou de maneira mais extraordinária no monte Sinai e no Tabernáculo e ao Sumo Sacerdote no Tabernáculo e no sanctum sanctorum do templo Mas Moisés e depois dele os Sumos Sacerdotes eram profetas de lugar e posição mais eminente no favor de Deus e o próprio Deus declarou por palavras expressas que aos outros profetas falava através de sonhos e visões mas a seu servo Moisés falava de maneira como um homem fala a um amigo As palavras são estas Núm 1268 Se há um profeta entre vós eu vosso Senhor me darei a conhecer a ele numa visão e a ele falarei num sonho Com meu servo Moisés não é assim pois ele é fiel em toda a minha casa com ele falarei de boca a boca de maneira clara e não em palavras obscuras e ele contemplará o semblante de Deus E também Êx 33110 Senhor falou a Moisés frente a frente como um homem fala a um amigo Apesar disso esta fala de Deus a Moisés foi através da mediação de um anjo ou anjos como é dito expressamente At 73553 e Gál 319 portanto através de uma visão embora uma visão mais clara do que a que foi dada a outros profetas Conformemente a isto quando Deus diz Dt 131 Se surgir entre vós um profeta ou sonhador de sonhos a última expressão é apenas uma interpretação da anterior E também JI 228 Vossos filhos e vossas filhas profetizarão e vossos velhos sonharão sonhos e vossos jovens verão visões onde mais uma vez a palavra profecia é exposta por sonho e visão E foi da mesma maneira que Deus falou a Salomão prometendolhe sabedoria riqueza e honra pois o texto diz 1 Rs 315 E quando Salomão acordou viu que era um sonho De modo que em geral os profetas extraordinários do Antigo Testamento só tomaram conhecimento da palavra de Deus através de seus sonhos ou visões quer dizer através das imaginações que tiveram durante o sono ou um êxtase imaginações essas que em todos os verdadeiros profetas eram sobrenaturais mas nos falsos profetas ou eram naturais ou eram fingidas Não obstante dizse que os mesmos profetas falavam pelo espírito como quando o profeta falando dos judeus disse Zac 712 Eles fizeram seus corações duros como diamante para não ouvirem a lei e as palavras que o Senhor das hostes enviara em seu espírito pelos profetas anteriores Por onde fica manifesto que falar pelo espírito ou inspiração não era uma maneira especial de Deus falar diferente de uma visão quando aqueles de quem se dizia que falavam pelo espírito eram profetas extraordinários tais que para cada nova mensagem haviam de ter uma comissão particular ou o que é a mesma coisa um novo sonho ou visão Dos profetas que o eram por uma vocação perpétua no Antigo t estamento uns eram supremos e outros eram subordinados Dos supremos o primeiro foi Moisés e depois dele os Sumos Sacerdotes cada um no seu tempo enquanto o sacerdócio foi real E depois que o povo dos judeus rejeitou a Deus para que não mais reinasse sobre eles aqueles reis que se submeteram ao governo de Deus eram também os profetas principais e o cargo do Sumo Sacerdote passou a ser ministerial E quando Deus ia ser consultado eles envergavam a indumentária sagrada e interrogavam o Senhor quando o rei tal lhes ordenava e eram privados dessa função sempre que assim ao rei aprazia Assim o rei Saul 1 Sam 139 ordenou que lhe trouxessem o sacrifício pelo fogo e ordenou 1 Sam 1418 que o sacerdote trouxesse a arca para perto dele e de novo que a deixasse versículo 19 por ver nisso uma vantagem sobre o inimigo E no mesmo capítulo Saul pede conselho a Deus De maneira semelhante do rei Davi depois de ser ungido embora antes de tomar posse do reino se diz que interrogou o Senhor 1 Sam 232 sobre se deveria combater contra os filisteus em Keilah e versículo 10 Davi ordenou ao sacerdote que lhe trouxesse a túnica sacerdotal para perguntar se deveria ou não ficar em Keilah E o rei Salomão 1 Rs 227 tirou a função sacerdotal a Abiathar e deua a Zadoc versículo 35 Portanto Moisés e os Sumos Sacerdotes e os reis piedosos que interrogavam a Deus em todas as ocasiões extraordinárias sobre que atitude deviam tomar ou que acontecimento iria ocorrer eram todos profetas soberanos Mas não é manifesto qual a maneira como Deus lhes falava Dizer que quando Moisés subiu até Deus no monte Sinai se tratou de um sonho ou uma visão como as que recebiam os outros profetas é contrário à distinção estabelecida por Deus entre Moisés e os outros profetas Núm 126ss Dizer que Deus falou ou apareceu em sua própria natureza é negar sua infinitude sua invisibilidade e sua incompreensibilidade Dizer que falou por inspiração ou infusão do Espírito Santo dado que Espírito Santo significa divindade é fazer Moisés igual a Cristo e só neste a divindade conforme disse São Paulo Col 29 reside corporalmente Por último dizer que ele falou através do Espírito Santo dado que isso significa as graças ou dádivas do Espírito Santo não é atribuirlhe nada de sobrenatural Porque Deus predispõe os homens para a piedade a justiça a misericórdia a verdade a fé e toda espécie de virtude tanto moral como intelectual através da doutrina o exemplo e de diversas maneiras naturais e comuns E assim como nada disto pode ser aplicado a Deus ao falar a Moisés no monte Sinai do mesmo modo não pode aplicarse a ele ao falar aos Sumos Sacerdotes na sede da misericórdia Portanto é ininteligível a maneira como Deus falou a esses soberanos profetas do Antigo Testamento cuja missão consistia em interrogálo No tempo do Novo Testamento o único profeta soberano era nosso Salvador que era ao mesmo tempo o Deus que falava e o profeta a quem ele falava Quanto aos profetas subordinados de vocação perpétua não encontro passagem alguma que prove terlhes Deus falado sobrenaturalmente mas apenas daquela maneira que inclina os homens para a piedade a crença a retidão e as outras virtudes de todos os cristãos E essa maneira embora consistisse na Constituição instrução e educação e nas ocasiões e propensões dos homens para as virtudes cristãs é apesar disso corretamente atribuída à intervenção do Espírito de Deus ou Santo Espírito que costumamos chamar Espírito Santo Pois não há boa inclinação que não seja produto da intervenção de Deus Mas essa intervenção nem sempre é sobrenatural Portanto quando se diz que um profeta fala no Espírito ou pelo Espírito de Deus devemos entender apenas que ele fala conformemente à vontade de Deus declarada pelo supremo profeta Porque a acepção mais comum da palavra espírito é quando ela significa a intenção a mente e a disposição de um homem No tempo de Moisés havia além dele setenta homens que profetizavam no acampamento dos israelitas Qual a maneira como Deus lhes falava é declarado no capítulo 11 dos Números versículo 250 Senhor desceu numa nuvem e falou a Moisés e tomou o Espírito que estava nele e deuo aos setenta anciãos E aconteceu que quando o Espírito pousou sobre eles passaram a profetizar e não mais cessaram Pelo que fica manifesto em primeiro lugar que as profecias que faziam ao povo eram subservientes e subordinadas às profecias de Moisés pois Deus tirou do Espírito de Moisés para dálo a eles de modo que profetizavam da maneira que Moisés queria caso contrário não se teria permitido que profetizassem Pois houve uma queixa feita a Moisés contra eles versículo 27 e Josué queria que Moisés os proibisse de profetizar coisa que ele não fez e disse a Josué Não sejas zeloso em meu lugar Em segundo lugar que nessa passagem o Espírito de Deus significa apenas a tendência e disposição para obedecer e ajudar Moisés na administração do governo Pois se isso significasse que neles tinha sido inspirado o Espírito substancial de Deus quer dizer a natureza divina nesse caso eles não o teriam menos do que o próprio Cristo que é o único em quem o Espírito de Deus reside corporalmente Isso significa portanto a dádiva e graça de Deus que os levou a cooperar com Moisés de quem derivava o Espírito deles E está dito versículo 16 que eles eram os que o próprio Moisés teria designado como anciãos e funcionários do povo Porque as palavras são Reúneme setenta homens a quem conheças como anciãos e funcionários do povo e aqui conheças e o mesmo que designas ou designaste como tais Pois antes nos foi dito Êx 18 que Moisés seguindo os conselhos de seu sogro Jetro designou juízes e funcionários para o povo tementes a Deus e a esses pertenciam os setenta os quais recebendo de Deus o Espírito de Moisés receberam também a disposição para ajudar Moisés na administração do reino E neste sentido se diz que o Espírito de Deus 1 Sam 1613s logo depois da unção de Davi desceu sobre este e abandonou Saul pois Deus concedeu sua graça ao que escolheu para governar seu povo e retiroua daquele a quem rejeitou Portanto pelo Espírito se entende uma inclinação para o serviço de Deus e não qualquer revelação sobrenatural Deus também falou muitas vezes através do resultado de sorteios que eram ordenados por aqueles a quem ele tinha dado autoridade sobre seu povo Assim lemos que Deus manifestou pelo sorteio que Saul mandou realizar 1 Sam 1443 1 falta cometida por Jônatas ao comer um favo de mel contrariamente ao juramento feito pelo povo E Deus dividiu a terra de Canaã entre os israelistas Vos 1810 mediante o sorteio feito por Josué perante o Senhor em Shiloh Parece ter sido da mesma maneira que Deus revelou o crime de Achan Jos 716 etc E eram estas as maneiras como Deus manifestava sua vontade no Antigo Testamento Todas essas maneiras usouas ele também no Novo Testamento À Virgem Maria através da visão de um anjo a José num sonho a Paulo no caminho de Damasco através de uma visão de nosso Salvador e a Pedro através da visão de uma faixa descendo do céu com diversas espécies de carne de animais puros e impuros e na prisão com a visão de um anjo E a todos os apóstolos e autores do Novo Testamento através das graças de seu Espírito e aos apóstolos também por sorteio como na escolha de Matias em lugar de Judas Iscariote Dado portanto que toda profecia supõe uma visão ou um sonho sendo estas duas coisas o mesmo quando são naturais ou algum dom especial de Deus coisa tão raramente verificada entre os homens que é para ser admirada quando se verifica dado também que esses dons como os mais extraordinários sonhos e visões podem provir de Deus não apenas através de uma intervenção sobrenatural e imediata mas também através de uma intervenção natural e da mediação de causas segundas é necessário o uso da razão e do julgamento para distinguir entre dons naturais e sobrenaturais entre visões ou sonhos naturais e sobrenaturais Em conseqüência disso é preciso serse muito circunspecto e cuidadoso ao obedecer à voz de homens que pretendem ser profetas e exigem que obedeçamos a Deus da maneira que eles em nome de Deus nos dizem ser o caminho da felicidade Porque quem pretende ensinar aos homens o caminho para tão grande felicidade pretende governálos quer dizer dirigilos e reinar sobre eles pois é uma coisa que todos os homens naturalmente desejam e portanto isso merece ser suspeito de ambição e impostura consequentemente tal pretensão deve ser examinada e experimentada por todos antes de lhes prestarem obediência a não ser que tal já lhes tenha sido prestada na instituição de um Estado quando o profeta é o soberano civil ou é autorizado pelo soberano civil Se este exame dos profetas e espíritos não fosse permitido a todas as gentes do povo teria sido inútil definir os sinais pelos quais cada um é capaz de distinguir entre aqueles a quem deve e aqueles a quem não deve seguir Dado portanto que foram definidos esses sinais que permitem distinguir um profeta Dt 131 etc e que permitem distinguir um espírito 1 Jo 41 etc e dado que há tanta profecia no Antigo Testamento e tanta pregação no Novo Testamento contra os profetas e dado que geralmente há um número muito maior de falsos profetas do que de verdadeiros cada um deve ter cuidado ao obedecer a suas determinações por sua conta e risco Em primeiro lugar que houve muito mais falsos do que verdadeiros profetas verificase no fato de Ahab 1 Reis 12 ter consultado quatrocentos profetas e todos eles serem falsos e impostores com a única exceção de Miquéias E um pouco antes da época do cativeiro os profetas geralmente eram mentirosos Os profetas diz o Senhor em Jeremias cap14 versículo 14 profetizam mentiras em meu nome Não os enviei nem nada lhes ordenei nem lhes disse que vos profetizassem uma falsa visão uma coisa inane e engano de seu coração Assim Deus ordenou ao povo que lhes não obedecesse pela boca do profeta Jeremias cap 2316 Assim falou o Senhor das hostes não deis ouvidos às palavras dos profetas que a vós profetizam Eles vos iludem falam de uma visão de seu próprio coração e não da boca do Senhor Assim dado que nos tempos do Antigo Testamento havia tais querelas entre os profetas visionários um contestando o outro e perguntando Quando foi que o espírito se foi de mim para ir para ti como ocorreu entre Miquéias e o resto cios quatrocentos e chamandose mentirosos uns aos outros como em Jer 1414 e existindo controvérsias semelhantes até hoje em dia a respeito do Novo Testamento entre os profetas espirituais dado isso tanto então como agora os homens eram e são obrigados a fazer uso de sua razão natural aplicando a toda e qualquer profecia aquelas regras que Deus nos deu para distinguir entre o verdadeiro e o falso Dessas regras no Antigo Testamento uma era a conformidade doutrinária com o que Moisés o profeta soberano havia ensinado e a outra era o poder miraculoso de predizer o que Deus ia fazer acontecer conforme já mostrei a partir de Dt 131 etc E no Novo Testamento há apenas um único sinal que é a pregação da doutrina que Jesus é o Cristo isto é o rei dos judeus prometido no Antigo Testamento Quem quer que negasse esse artigo era um falso profeta fossem quais fossem os milagres que parecesse capaz de realizar e quem o ensinasse era um verdadeiro profeta Pois São João 1 Jo 42 ete falando expressamente da maneira de examinar os espíritos para ver se se tratava do de Deus ou não depois de lhes ter dito que apareceriam falsos profetas assim disse Desta maneira conhecereis o Espírito de Deus todo espírito que confessar que Jesus Cristo veio encarnado é de Deus quer dizer aprovado e reconhecido como profeta de Deus Não que seja um homem piedoso ou um dos eleitos todo aquele que confessa professa ou prega que Jesus é o Cristo mas apenas que é um profeta reconhecido Porque Deus às vezes fala por intermédio de profetas cujas pessoas não aceitou como foi o caso de Balaão e quando predisse a Saul sua morte por intermédio da feiticeira de Endor E no versículo seguinte Todo espírito que não confessar que Jesus Cristo veio encarnado não é de Cristo E este é o espírito do Anticristo Assim a regra é perfeita de ambos os lados é um verdadeiro profeta quem prega que o Messias já veio na pessoa de Jesus e é um falso profeta quem nega que ele veio e o espera em algum futuro impostor que falsamente pretenderá tal honra e a quem o apóstolo propriamente chamou o Anticristo Portanto todos devem examinar quem é o profeta soberano quer dizer quem é o vicerei de Deus na terra e possui abaixo de Deus a autoridade de governar os cristãos e respeitar como regra aquela doutrina que ele em nome de Deus ordenou fosse ensinada e com ela examinar e pôr à prova a verdade das doutrinas que pretensos profetas com milagre ou sem ele em qualquer momento venham propor E se acharem contrária a essa regra devem fazer como fizeram os que foram a Moisés queixarse de que havia alguns que profetizavam no acampamento e de cuja autoridade duvidavam deixando ao soberano como fizeram com Moisés o cuidado de autorizálos ou proibilos conforme lhe parecer e se ele os desautorizar não mais obedecer a sua voz e se ele os aprovar passar a obedecerlhes como homens a quem deu uma parte do espírito de seu soberano Porque quando os cristãos não aceitam seu soberano cristão como profeta de Deus ou têm que aceitar seus próprios sonhos como a profecia por que tencionam governar se e a tumescência de seus próprios corações como o Espírito de Deus ou então têm que aceitar ser dirigidos por um príncipe estrangeiro ou por algum de seus concidadãos capaz de enfeitiçálos por difamação do governo levandoos à rebelião sem outro milagre para confirmar sua vocação do que às vezes um extraordinário sucesso e impunidade Destruindo desta maneira todas as leis divinas e humanas e levando toda ordem governo e sociedade a regressar ao caos primitivo da violência e da guerra civil CAPÍTULO XXXVII Dos milagres e seu uso Entendese por milagres as obras admiráveis de Deus e portanto chamaselhes também maravilhas E como na maior parte dos casos são feitos para confirmar seus mandamentos em circunstâncias onde sem eles os homens seriam capazes de ter dúvidas seguindo seu raciocínio natural privado sobre qual é seu mandamento e qual não é eles são geralmente chamados nas Sagradas Escrituras sinais no mesmo sentido em que são chamados pelos latinos ostenta e portento por mostrarem e anunciarem o que o Altíssimo vai fazer acontecer Portanto para entender o que é um milagre é preciso primeiro entender quais são as obras perante as quais os homens se espantam e que chamam admiráveis E em qualquer circunstância há apenas duas coisas perante as quais os homens se espantam Uma são as coisas estranhas quer dizer de natureza tal que coisa semelhante nunca aconteceu ou só muito raramente A outra são as coisas que depois de acontecidas não podemos imaginar que tenham ocorrido por meios naturais mas apenas imediatamente pela mão de Deus Mas quando vemos para tal a possibilidade de uma causa natural por mais raro que tenha sido tal acontecer ou se tal tiver acontecido muitas vezes mesmo que seja impossível imaginar suas causas naturais deixamos de nos espantar e de considerar tal fato um milagre Portanto se um cavalo ou uma vaca falassem seria um milagre porque ao mesmo tempo a coisa seria estranha e a causa natural seria difícil de imaginar E o mesmo seria se víssemos um estranho desvio da natureza na criação de alguma nova forma de criatura viva Mas quando um homem ou outro animal engendra seu semelhante embora neste caso não saibamos mais como tal é feito do que no outro não se trata de um milagre porque é habitual De maneira semelhante se um homem se metamorfoseasse em pedra ou numa coluna seria um milagre porque seria estranho Mas se um pedaço de madeira assim se transformasse como vemos isso muitas vezes tal não seria um milagre Todavia não sabemos através de que intervenção de Deus isso acontece tanto num caso quanto no outro 0 primeiro arcoíris que foi visto no mundo foi um milagre porque foi o primeiro e consequentemente era estranho E serviu como um sinal de Deus colocado no céu para garantir a seu povo que não haveria mais destruição universal do mundo pelas águas Mas atualmente como é freqüente não é um milagre nem para os que conhecem suas causas naturais nem para os que não as conhecem Por outro lado há muitas obras raras produzidas pela arte do homem mas quando sabemos que foram feitas visto que sabemos também através de que meios foram feitas não as consideramos milagres pois não são forjadas imediatamente pela mão de Deus e sim através da mediação do engenho humano Além do mais dado que o espanto e a admiração são conseqüência do conhecimento e experiência de que os homens são dotados e que uns o são mais e outros o são menos seguese que a mesma coisa pode ser milagre para um e não o ser para outro Acontece assim que homens ignorantes e supersticiosos consideram grandes maravilhas as mesmas obras que outros homens sabendo que elas derivam da natureza que não é obra extraordinária mas obra normal de Deus não admiram de modo algum Por exemplo os eclipses do Sol e da Lua que foram considerados obras sobrenaturais pelas gentes do vulgo embora houvesse outros capazes a partir de suas causas naturais de prever a hora exata em que eles iam ocorrer Ou então quando alguém por confederação e secreta inteligência tomar conhecimento das ações privadas de um homem ignorante e descuidado e lhe disser o que ele fez no passado isso parecerlheá uma coisa miraculosa mas entre os homens sábios e cautelosos não é fácil fazer milagres como esse Por outro lado faz parte da natureza do milagre que ele sirva para granjear crédito aos mensageiros ministros e profetas de Deus a fim de que os homens possam saber que eles foram chamados enviados e empregados por Deus e fiquem assim mais inclinados a obedecerlhes Portanto embora a criação do mundo e depois a destruição de todas as criaturas vivas no dilúvio universal fossem obras admiráveis apesar disso não é costume chamarlhes milagres porque não foram feitas para granjear crédito a qualquer profeta ou outro ministro de Deus Por mais admirável que seja qualquer obra a admiração não se deve ao fato de ela ter podido ser feita porque os homens naturalmente acreditam que o TodoPoderoso pode fazer todas as coisas mas ao de ela ser feita devido à oração ou à palavra de um homem Mas as obras de Deus no Egito pela mão de Moisés foram propriamente milagres porque foram feitas com a intenção de levar o povo de Israel a acreditar que Moisés não fora até eles por qualquer desígnio dependente de seu próprio interesse e sim como enviado de Deus Assim depois que Deus lhe ordenou que libertasse os israelitas da servidão do Egito quando disse Eles não me acreditarão e dirão que o Senhor não me apareceu Deus deu a Moisés o poder de transformar numa serpente a vara que tinha na mão e de mais uma vez voltar a transformála numa vara e o de ao pôr a mão em seu próprio peito fazêlo leproso e de novo ao tirála deixálo intacto a fim de levar os filhos de Israel a acreditar como se vê no versículo 5 que o Deus de seus pais havia aparecido a ele E como se isso não fosse suficiente deulhe o poder de transformar suas águas em sangue E depois de ele ter realizado estes milagres perante o povo dizse versículo 41 que eles o acreditaram Não obstante com medo de Faraó eles não ousavam ainda obedecerlhe Portanto as outras obras que foram realizadas para derramar pragas sobre Faraó e os egípcios tendiam todas para levar os israelitas a acreditar em Moisés e eram milagres propriamente ditos De maneira semelhante se examinarmos todos os milagres feitos pela mão de Moisés c dos restantes profetas até ao cativeiro assim como os de nosso Salvador e depois os dos apóstolos veremos que seu fim foi sempre o de obter ou confirmar a crença de que eles não eram movidos por intenções pessoais e que pelo contrário eram enviados de Deus Podemos além disso observar que o objetivo dos milagres nunca foi fazer surgir a crença universalmente em todos os homens tanto nos eleitos como nos réprobos mas apenas nos eleitos quer dizer naqueles que Deus determinara que deveriam tornarse seus súditos Porque essas miraculosas pragas do Egito não tinham como fim a conversão de Faraó pois Deus havia dito antes a Moisés que ia endurecer o coração de Faraó para que ele não deixasse o povo partir e quando ele finalmente o deixou partir não foi porque os milagres o tivessem persuadido mas porque as pragas a tal o tinham forçado Assim também de nosso Salvador está escrito Mt 1358 que ele não realizou muitos milagres em seu próprio país por causa da descrença de seus habitantes e além disso em Mc 65 em vez de não realizou muitos está escrito não podia realizar nenhum Não foi porque lhe faltasse o poder para tal pois dizer isto seria blasfemar contra Deus nem que os milagres não tivessem o fim de converter a Cristo homens incrédulos pois a finalidade de todos os milagres de Moisés dos profetas de nosso Salvador e de seus apóstolos era acrescentar homens à Igreja Foi porque a finalidade de seus milagres era acrescentar à Igreja não todos os homens mas os que deviam ser salvos quer dizer os eleitos por Deus Dado que nosso Salvador foi enviado por seu Pai não lhe era possível usar seu poder na conversão daqueles que seu Pai havia rejeitado Aqueles que ao expor esta passagem de São Marcos dizem que a frase ele não podia é equivalente a ele não queria fazemno sem se apoiar em qualquer exemplo da língua grega na qual não queria se usa às vezes em lugar de não podia no caso de coisas inanimadas destituídas de vontade mas nunca não podia em lugar de não queria e assim colocam um obstáculo diante dos cristãos mais débeis como se Cristo só pudesse fazer milagres entre os crédulos A partir do que aqui estabeleci quanto à natureza e uso dos milagres podemos definir um milagre como uma obra de Deus além de sua intervenção através da natureza determinada na criação feita para tornar manifesto a seus eleitos a missão de um ministro extraordinário enviado para sua salvação E desta definição podemos inferir em primeiro lugar que em todos os milagres a obra não é um efeito de qualquer virtude do profeta pois é um efeito da intervenção imediata de Deus quer dizer Deus realizaa sem usar o profeta como causa subordinada Em segundo lugar que nenhum demônio anjo ou outro espírito criado pode fazer um milagre Pois deve ser ou em virtude de alguma ciência natural ou por encantamento quer dizer virtude das palavras Porque se os encantadores o fazem por seu próprio poder independente é porque há algum poder que não deriva de Deus coisa que todos os homens recusam e se eles o fazem por um poder que Lhes foi dado então não se trata de obra feita pela intervenção imediata de Deus mas por sua intervenção natural e consequentemente não se trata de um milagre Há alguns textos das Escrituras que parecem atribuir o poder de realizar maravilhas iguais a alguns daqueles milagres imediatos realizados pelo próprio Deus a certas artes de magia e encantamento Por exemplo quando lemos que depois que a vara de Moisés espetada no chão se transformou numa serpente os magos do Egito fizeram o mesmo mediante seus encantamentos e que depois de Moisés ter transformado em sangue as águas dos rios regatos tanques e lagos do Egito os magos também fizeram o mesmo com seus encantamentos e que depois de Moisés com o poder de Deus ter enchido de rãs a terra os magos também fizeram o mesmo com seus encantamentos e encheram de rãs a terra do Egito não é natural depois disto atribuir milagres aos encantamentos quer dizer à eficácia do som das palavras e pensar que isso está perfeitamente provado por esta e outras passagens E contudo não há qualquer passagem das Escrituras que nos diga o que é um encantamento Portanto se um encantamento não é como muitos pensam a realização de estranhos efeitos com feitiços e palavras e sim impostura e ilusão conseguida através de meios vulgares e tão longe de ser sobrenatural que os impostores para fazêlo precisam menos do estudo das causas naturais do que da vulgar ignorância estupidez e superstição do gênero humano esses textos que parecem consagrar o poder da magia da feitiçaria e dos encantamentos devem necessariamente ter um sentido diferente daquele que à primeira vista parecem ter Porque é perfeitamente evidente que as palavras só têm efeito sobre aqueles que as compreendem e neste caso têm o único efeito de significar as intenções ou paixões de quem fala produzindo assim no ouvinte a esperança o medo ou outras paixões e concepções Portanto quando a vara pareceu tornarse uma serpente ou as águas tornaramse sangue ou quando qualquer outro milagre pareceu realizarse por encantamento se isso não foi para edificação do povo de Deus nem a vara nem a água nem qualquer outra coisa foi encantada quer dizer afetada pelas palavras mas apenas o espectador Assim todo o milagre consistiu apenas nisto que o encantador enganou alguém o que não é milagre algum mas coisa muito fácil de fazer Porque é tal a ignorância e a tendência para o erro comum a todos os homens mas especialmente aos que não têm muito conhecimento das causas naturais e da natureza e interesses dos homens que são inúmeras e fáceis as maneiras de enganálos Que reputação de poder miraculoso antes de se saber que havia uma ciência do curso das estrelas não poderia ter adquirido alguém que tivesse anunciado ao povo a hora ou o dia em que o Sol iria escurecer 0 malabarista com o manejo de suas taças e outros objetos se tal arte não fosse hoje em dia vulgarmente praticada levaria a pensar que suas maravilhas são feitas graças ao poder do diabo pelo menos Quem adquirir a prática de falar contendo a respiração os que nos tempos antigos se chamavam ventriloqui fazenda assim que a fraqueza de sua voz pareça provir não da fraca impulsão dos órgãos da fala mas da distância do lugar é capaz de fazer muita gente acreditar que se trata de uma voz do céu sejam quais forem as coisas que diga É para um homem hábil não é difícil depois de informarse dos segredos e confissões familiares que normalmente uma pessoa faz a outra sobre suas ações e aventuras passadas voltar a contar essas coisas e apesar disso houve muitas que mediante esses arti6cios adquiriram a reputação de adivinhos Seria demasiado longo enumerar as diversas espécies desses homens a quem os gregos chamavam thaumaturgi quer dizer capazes de coisas maravilhosas mas tudo o que eles fazem fazemno apenas graças a sua habilidade E se examinarmos as imposturas conseguidas através da cumplicidade não há nada por mais impossível que seja de fazer que seja impossível de acreditar Porque dois homens que conspirarem para um se fingir de coxo e o outro fingir que o cura com um feitiço serão capazes de enganar a muitos mas se muitos conspirarem um para se fingir de coxo outro para fingir que o cura e os restantes para servir de testemunhas serão capazes de enganar a muitos mais Contra esta tendência do gênero humano para acreditar demais em pretensos milagres não há melhor precaução e creio mesmo que não existe outra do que a que Deus prescreveu primeiro por Moisés conforme já disse no capítulo anterior no início do capítulo 13 e no final do capítulo 18 do Deuteronômio que não aceitemos como profetas os que ensinam uma religião diferente da estabelecida pelo lugartenente de Deus que nesse tempo era Moisés nem aqueles que embora ensinem essa religião não vejam confirmadas suas predições Portanto Moisés no seu tempo e Aarão e seus sucessores no seu tempo e o soberano governante do povo de Deus abaixo do próprio Deus quer dizer o chefe da Igreja em cada época devem ser consultados sobre a doutrina que estabeleceram antes de darse crédito a um pretenso milagre ou profeta E quando foi feita uma coisa que se pretende ser um milagre é preciso que a vejamos fazer e que usemos todos os meios possíveis para verificar se realmente foi feita e não apenas isto mas se se trata de uma coisa que ninguém é capaz de fazer com seu poder natural e para a qual seja indispensável a intervenção imediata de Deus Também quanto a isto devemos recorrer ao lugartenente de Deus a quem submetemos nossos julgamentos privados em todos os casos duvidosos Por exemplo se alguém pretender que depois de pronunciar algumas palavras sobre um pedaço de pão Deus imediatamente fez que ele deixasse de ser pão passando a ser um Deus ou um homem ou ambos e não obstante ele continuar como sempre com a aparência de pão não há razão para qualquer pessoa acreditar que isso se tenha realizado nem consequentemente para ter temor a esse alguém até perguntar a Deus através de seu vigário ou lugartenente se isso foi feito ou não Se este disser que não seguese o que disse Moisés Dt 1822 ele disseo presunçosamente e não deveis temêlo Se disser que sim não devemos negálo E também se não virmos um milagre mas apenas ouvirmos falar dele devemos consultar a Igreja legítima quer dizer o chefe legítimo desta sobre até que ponto devemos dar crédito a quem o contou E este é sobretudo o caso dos que hoje em dia vivem sob a autoridade de soberanos cristãos E em nosso tempo não ouvi falar de um único homem que tenha visto qualquer dessas obras maravilhosas feita pelo encantamento ou palavra ou prece de alguém que seja considerada sobrenatural pelos que são dotados de uma razão um pouco mais que medíocre E o problema não é mais o de saber se o que vemos fazer é um milagre ou se o milagre de que ouvimos falar ou sobre o qual lemos é um fato real e não um ato da língua ou da pena e sim em termos simples se o relato é uma verdade ou uma mentira E quanto a esse problema nenhum de nós deve aceitar como juiz sua razão ou consciência privada mas a razão pública isto é a razão do supremo lugartenente de Deus E sem dúvida já o escolhemos como juiz se já lhe demos um poder soberano para fazer tudo quanto seja necessário para nossa paz e defesa Um particular tem sempre a liberdade visto que o pensamento é livre de acreditar ou não acreditar em seu foro íntimo nos fatos que lhe forem apresentados como milagres conforme veja qual o beneficio que sua crença pode acarretar para os que o afirmam ou negam e conjeturando a partir daí se eles são milagres ou mentiras Mas quando se trata da profissão pública dessa fé a razão privada deve submeterse à razão pública quer dizer ao lugartenente de Deus Mas quem é o lugartenente de Deus e chefe da Igreja é coisa que será examinada adiante em lugar adequado CAPÍTULO XXXVIII Do significado de vida eterna inferno salvação mundo vindouro e redenção nas Escrituras Dado que a preservação da sociedade civil depende da justiça e que a justiça depende do poder de vida e de morte assim como de outras recompensas e castigos menores que compete aos detentores da soberania do Estado é impossível um Estado subsistir se qualquer outro que não o soberano tiver o poder de dar recompensas maiores do que a vida ou de aplicar castigos maiores do que a morte Ora sendo a vida eterna uma recompensa maior do que a vida presente e sendo os tormentos eternos um castigo maior do que a morte natural é coisa que merece o exame de todos os que desejam obedecendo à autoridade evitar as calamidades da confusão e da guerra civil o significado que têm nas Sagradas Escrituras as expressões vida eterna e tormentos eternos Assim como quais as ofensas e cometidas contra quem pelas quais os homens receberão os tormentos eternos e quais as ações que permitirão gozar uma vida eterna Em primeiro lugar temos que Adão foi criado em tais condições de vida que se não tivesse desobedecido aos mandamentos de Deus teria gozado perpetuamente do Paraíso do Éden Porque lá havia a árvore da vida da qual estava autorizado a comer desde que se abstivesse de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal que não lhe era permitida Assim depois que desta comeu Deus expulsouo do Paraíso para que ele não estendesse sua mão e colhesse também da árvore da vida vivendo para sempre Pelo que se me afigura o que contudo está sujeito tanto nesta como em todas as questões cuja resolução depende das Escrituras à interpretação da Bíblia autorizada pelo Estado de que sou súdito que Adão se não tivesse pecado teria gozado de uma vida eterna na terra e que tanto ele como sua posteridade adquiriram a mortalidade devido a esse primeiro pecado Não que tal tivesse acarretado uma morte imediata pois nesse caso Adão jamais teria tido filhos e é certo que viveu muito tempo depois e viu uma numerosa descendência antes de morrer Mas onde se diz No dia em que dela comeres morrerás seguramente o significado só pode ser sua mortalidade e certeza da morte Dado que a vida eterna se perdeu devido à transgressão de Adão ao cometer o pecado aquele que cancelasse esse pecado deveria assim recuperar de novo essa vida Ora Jesus Cristo remiu os pecados de todos os que nele acreditam portanto recuperou para todos os crentes aquela vida eterna que havia sido perdida pelo pecado de Adão E é neste sentido que tem validade a comparação de São Paulo Rom 518s Assim como pela ofensa de um só todos os homens foram julgados e condenados assim também pela retidão de um só veio para todos os homens a graça da justificação da vida 0 que se exprime de maneira mais clara nestas palavras 1 Cor 1521 s Pois assim como pelo homem veio a morte assim também pelo homem veio a ressurreição dos mortos Pois assim como em Adão todos morreram assim também em Cristo todos serão vivificados Quanto ao lugar onde os homens deverão gozar essa vida eterna que Cristo conseguiu para eles os textos acima citados parecem indicar que é na terra Pois tal como em Adão todos morreram isto é perderam o Paraíso e a vida eterna na terra assim também em Cristo todos serão vivificados portanto todos os homens deverão viver na terra pois caso contrário a comparação não seria própria Com isto parece concordar o salmista Sl 1333 Sobre Sião envia Deus a bênção e também a vida perpétua pois Sião é em Jerusalém na terra E também São João Apc 27 Ao que resistir darei a comer da árvore da vida que f ca no meio do Paraíso de Deus Esta era a árvore da vida eterna de Adão e essa vida era para ser na terra 0 mesmo parece ser confirmado também por São João Apc 212 Eu João vi a cidade santa Nova Jerusalém descendo de Deus no céu preparada como uma noiva adornada para seu marido e também o versículo 10 confirma o mesmo É como se ele dissesse que a Nova Jerusalém o Paraíso de Deus quando do regresso de Cristo deverá descer do céu para o povo de Deus em vez de ser este a para lá partir da terra E isto em nada difere do que os dois homens de roupas brancas isto é os dois anjos disseram aos apóstolos que estavam contemplando a ascensão de Cristo At 111 Este mesmo Jesus que agora vos é arrebatado para o céu voltará assim como o vistes subir ao céu 0 que soa como se tivessem dito que ele voltaria para governálos sob seu Pai eternamente aqui e não como se se tratasse de leválos para governálos no céu e é conforme à restauração do Reino de Deus instituído sob Moisés que era um governo político dos judeus na terra Por outro lado a afirmação de nosso Salvador Mt 2230 que na ressurreição eles não casam nem são dados em casamento mas são como os anjos de Deus no céu é uma descrição de uma vida eterna semelhante à que perdemos em Adão no que diz respeito ao casamento Dado que Adão e Eva se não tivessem pecado teriam vivido na terra eternamente em suas pessoas individuais é manifesto que não teriam procriado continuadamente sua espécie Porque se as almas imortais fossem capazes de geração como é hoje o gênero humano em pouco tempo não haveria mais lugar na terra para se ficar Os judeus que perguntaram a nosso Salvador quem seria na ressurreição o marido da mulher que havia desposado muitos irmãos desconheciam quais eram as conseqüências da vida eterna e por isso nosso Salvador lhes lembrou essa conseqüência da imortalidade que não haverá geração e consequentemente não haverá casamento tal como não há casamento nem geração entre os anjos A comparação entre aquela vida eterna que Adão perdeu e a que nosso Salvador recuperou por sua vitória sobre a morte também é válida nisto que tal como Adão perdeu a vida eterna por seu pecado e contudo ainda viveu algum tempo de pois disso assim também o fiel cristão recuperou a vida eterna pela paixão de Cristo embora morra de morte natural e continue morto durante algum tempo até a ressurreição Pois tal como a morte se conta a partir da condenação de Adão e não de sua execução assim também a vida se conta a partir da absolvição não da ressurreição dos que são eleitos em Cristo Não é fácil concluir de qualquer texto que eu possa encontrar que o lugar onde os homens irão viver eternamente depois da ressurreição seja o céu entendendose por céu aquelas partes do mundo que são mais distantes da terra onde ficam as estrelas ou acima das estrelas num outro céu mais alto chamado coelum empyreum que não tem referência nas Escrituras nem fundamento na razão Por Reino do Céu entendese o reino do Rei que habita no céu e seu reino era o povo de Israel ao qual ele governava através dos profetas seus lugartenentes primeiro Moisés e depois dele Eleazar e os Soberanos Sacerdotes até que no tempo de Samuel esse povo se revoltou e escolheu como rei um mortal à maneira das outras nações E quando Cristo nosso Salvador através da pregação de seus ministros convencer os judeus a voltar e chamar os gentios a sua obediência então haverá um novo Reino do Céu porque então nosso rei será Deus cujo trono fica no céu sem que nas Escrituras haja qualquer necessidade evidente de que os homens ascendam até essa felicidade mais alto do que o escabelo onde Deus apoia os pés isto é a terra Pelo contrário está escrito Jo 313 que ninguém ascenderá ao céu a não ser aquele que desceu do céu o filho do homem que está no céu Onde há que salientar de passagem que estas palavras não são como as que imediatamente as antecedem palavras de nosso Salvador mas do próprio São João pois nesse tempo Cristo não estava no céu mas na terra 0 mesmo se diz de Davi At 234 quando São Pedro para provar a ascensão de Cristo e usando as palavras do salmista Sl 1610 Não deixarás minha alma no inferno nem suportarás que lua santa alma contemple a corrupção diz que elas não foram ditas de Davi mas de Cristo e para proválo acrescenta esta razão que Davi não ascendeu ao céu Mas a isto seria fácil responder dizendo que embora os corpos não devam ascender antes do dia geral do Julgamento suas almas vão para o céu a partir do momento em que se separam do corpo o que parece ser também confirmado pelas palavras de nosso Salvador que ao provar a ressurreição a partir das palavras de Moisés disse Lc 2037s Que os mortos são ressuscitados já Moisés o mostrou quando chamou ao Senhor o Deus de Abraão e o Deus de Isaac e o Deus de Jacó Pois ele não é um rei dos mortos e sim dos vivos porque todos eles vivem nele Mas se estas palavras forem entendidas como referentes apenas à imortalidade da alma elas de modo algum provam o que nosso Salvador pretendia provar que era a ressurreição do corpo quer dizer a imortalidade do homem Portanto nosso Salvador queria dizer que esses patriarcas eram imortais não por uma propriedade derivada da essência e natureza do gênero humano mas pela vontade de Deus ao qual aprazia simplesmente por sua graça conceder a vida eterna aos fiéis E embora nesse momento os patriarcas e muitos outros fiéis estivessem mortos o que está no texto é que eles viviam para Deus quer dizer foram inscritos no livro da vida juntamente com os que foram absolvidos de seus pecados e escolhidos para a vida eterna de pois da ressurreição Que a alma do homem seja eterna por sua própria natureza e uma criatura viva independente do corpo ou que qualquer simples homem seja mortal sem ser pela ressurreição no último dia com exceção de Enoque e Elias é uma doutrina que não é manifesta nas Escrituras Todo o capítulo 14 de Jó que não é uma fala de seus amigos mas dele mesmo é um lamento sobre a mortalidade desta natureza sem que seja uma negação da imortalidade na ressurreição Ainda há esperança na árvore diz o versículo 7 mesmo quando cortada Mesmo que sua raiz envelheça e seu tronco morra na terra guando sentir a água reverdecerá e dará rebentos como uma planta Mas o homem morre e se esvai sim o homem exala o espírito e onde está ele E também versículo 12 o homem cai e não se levanta mais até que não haja mais céu Mas quando é que não haverá mais céu São Pedro diznos que é no dia da ressurreição geral Pois em sua segunda epístola capítulo 3 versículo 7 ele diz que o céu e a terra que hoje existem estão reservados ao fogo no dia do Julgamento para perdição dos descrentes e versículo 12 esperando e apressandose para a vinda de Deus quando os céus ficarão em fogo e se dissolverão e os elementos fundirão com calor fervente No entanto conforme a promessa nós esperamos por um novo céu e uma nova terra onde impere a retidão Portanto quando Jó disse que o homem não se levanta até que não haja mais céu disse o mesmo que se dissesse que a vida imortal nas Escrituras alma e vida geralmente significam a mesma coisa só começa para o homem na ressurreição e no dia do juízo e não tem como causa sua natureza e geração específica mas sim a promessa Pois São Pedro não diz que esperamos um novo céu e uma nova terra da natureza e sim da promessa Por último dado que já ficou provado com diversas e evidentes passagens das Escrituras no capítulo 35 deste livro que o Reino de Deus é um Estado civil onde o próprio Deus é o soberano primeiro em virtude do antigo pacto e depois em virtude do novo pacto segundo o qual reina por intermédio de seu vigário e lugartenente as mesmas passagens provam portanto também que depois do retorno de nosso Salvador em sua majestade e glória para reinar efetivamente e eternamente o Reino de Deus será na terra Mas como esta doutrina apesar de provada por não poucas ou obscuras passagens das Escrituras será pela maioria considerada uma novidade limitome a propôla nada sustentando quanto a este ou qualquer outro paradoxo da religião esperando o fim daquela disputa pela espada a respeito da autoridade ainda não decidida entre meus concidadãos pela qual toda espécie de doutrina deverá ser aprovada ou rejeitada e de quem dará as ordens tanto oralmente como por escrito que devem ser obedecidas sejam quais forem as opiniões dos particulares por todos os homens que pretendem ser protegidos pelas leis Porque as questões de doutrina relativas ao Reino de Deus têm tamanha influência sobre o reino dos homens que só podem ser decididas por quem abaixo de Deus detém o poder soberano Tal como o Reino de Deus e a vida eterna assim também os inimigos de Deus e seus tormentos após o Julgamento aparecem nas Escrituras como tendo lugar na terra 0 nome do lugar onde até à ressurreição ficam todos os homens quer tenham sido enterrados ou engolidos pela terra é geralmente designado nas Escrituras por palavras que significam debaixo de terra Os latinos usavam sobretudo Infernus e Inferi e os gregos Hádes Quer dizer um lugar onde os homens não podem ver compreendendose tanto o sepulcro como qualquer outro lugar mais profundo Mas o lugar dos condenados depois da ressurreição não está determinado quer no Antigo quer no Novo Testamento por qualquer indicação de situação mas apenas pela companhia que será no lugar para onde foram os homens perversos que Deus em ocasiões anteriores e de maneira extraordinária e miraculosa fez desaparecer da face da terra Como por exemplo que estão in Inferno in Tartarus ou no poço sem fundo porque Corah Dathan e Abirom foram engolidos vivos pelo chão Não que os autores das Escrituras pretendessem fazernos acreditar que poderia haver no globo terráqueo que não é infinito e além disso não é se comparado com a altura das estrelas de grandeza considerável um poço sem fundo quer dizer um buraco de profundidade infinita como os gregos em sua Demonologia quer dizer em sua doutrina a respeito dos demônios e depois deles os romanos chamavam Tartarus Do qual Virgílio diz Bis patet in praeceps tantum tenditque sub umbras Quantum ad aetherum coeli suspectus Olympum pois é uma coisa que não admite qualquer proporção com a terra e o céu mas que devemos acreditar ser lá indefinidamente onde estão os homens a quem Deus infligiu aquele castigo exemplar Por outro lado como aqueles poderosos homens da terra que viveram no tempo de Noé antes do dilúvio e a quem os gregos chamavam heróis e as Escrituras gigantes e ambos dizem que foram produzidos pela copulação dos filhos de Deus com os filhos dos homens foram por causa de sua vida perversa destruídos pelo dilúvio geral o lugar dos condenados também é às vezes assinalado pela companhia desses gigantes mortos como nos Prov 21160 homem que se extravia do caminho do entendimento irá permanecer na congregação dos gigantes e em Jó 265 Contemplai os gigantes gemendo sob as águas e os que moram com eles Neste caso o lugar dos condenados é debaixo de água E em Isaías 149 0 Inferno perturbase por receberte quer dizer o rei de Babilônia e deslocará os gigantes para ti aqui mais uma vez o lugar dos condenados se o sentido for literal é debaixo de água Em terceiro lugar dado que as cidades de Sodoma e Gomorra devido a sua perversidade foram pela ira extraordinária de Deus consumidas com o fogo e o enxofre e porque juntamente com elas a região ao redor fezse um pestilento lago betuminoso o lugar dos condenados é por vezes expresso pelo fogo e como um lago fervente Por exemplo no Apocalipse 218 Mas os timoratos os incrédulos e abomináveis assim como os assassinos os fornicadores os feiticeiros e idólatras e todos os mentirosos terão sua parte no lago que arde com fogo e enxofre que é a segunda morte Fica assim manifesto que o fogo do Inferno aqui expresso por metáfora a partir do fogo verdadeiro de Sodoma não significa uma espécie ou lugar determinado de tormento mas deve ser tomado indefinidamente como destruição como é o caso no capítulo 20 versículo 14 onde se diz que a morte e o Inferno foram lançados ao lago de fogo quer dizer foram abolidos e destruídos Como se depois do juízo final não houvesse mais mortes nem se fosse mais para o Inferno quer dizer não se fosse mais para o Hádes palavra da qual talvez derive a que usamos o que é o mesmo que não mais se morrer Em quarto lugar a partir da praga das trevas infligida aos egípcios sobre a qual está escrito fx 1023 Eles não se viam uns aos outros e ninguém saiu de onde estava durante três dias mas todos os filhos de Israel tinham luz em suas moradas chamase ao lugar dos perversos depois do Julgamento as trevas absolutas ou conforme o original trevas exteriores É o que está expresso Mt 2213 quando o rei ordena a seus servos que amarrem mãos e pés do homem que não tinha vestido sua roupa de casamento e que o expulsem eis tò skótos tò exóteron para as trevas de fora ou trevas exteriores o que quando traduzido por trevas absolutas não significa a grandeza dessas trevas mas onde elas ficam a saber fora da morada dos eleitos de Deus Por último havia um lugar perto de Jerusalém chamado vale dos filhos de Hinon numa parte do qual chamada Tophet os judeus haviam cometido a mais tremenda idolatria sacrificando seus filhos ao ídolo Moloch onde também Deus havia infligido a seus inimigos os mais tremendos castigos e onde Josias havia incinerado os sacerdotes de Moloch sobre seus altares como se verifica em geral em 2 Rs 23 Mais tarde o lugar servia para acumular o lixo e o esterco lá levado da cidade e lá se costumava de vez em quando fazer fogueiras para purificar o ar e eliminar o cheiro à putrefação Depois disso os judeus passaram a denominar o lugar dos condenados a partir deste lugar abominável com o nome de Gehena ou vale de Hinon E Gehena é a palavra que agora habitualmente se traduz por inferno e é a partir das fogueiras que lá de vez em quando ficavam ardendo que temos a noção de fogo perpétuo e inextinguível Ora visto não haver ninguém que interprete as Escrituras no sentido de depois do dia do Julgamento os perversos deverem ser eternamente punidos no vale de Hinon ou de eles ressuscitarem para depois ficarem eternamente debaixo do chão ou debaixo de água ou de depois da ressurreição nunca mais se verem uns aos outros ou não se mexerem do lugar onde estão seguese necessariamente creio eu que o que se diz a respeito do fogo do Inferno é dito metaforicamente e portanto há um sentido próprio a procurar porque para todas as metáforas há um fundamento real capaz de ser expresso em termos próprios tanto para o lugar do Inferno quanto para a natureza dos tormentos infernais e dos atormentadores Em primeiro lugar a natureza e propriedades dos atormentadores são exata e propriamente expressas pelo nome do inimigo ou Satanás o acusador ou Diabolus e o destruidor ou Abadon Estes nomes significativos Satanás Diabo e Abadon não nos apresentam nenhuma pessoa individual como é costume com os nomes próprios mas apenas uma função ou qualidade sendo portanto apelativos os quais não deviam ter deixado de ser traduzidos como é o caso nas Bíblias latinas e modernas porque assim parecem ser os nomes próprios de demônios e fica mais fácil os homens serem levados a acreditar na doutrina dos diabos que nesse tempo era a religião dos gentios e era contrária à de Moisés e de Cristo E dado que inimigo acusador e destruidor são termos que significam o inimigo daqueles que estarão no Reino de Deus se depois da ressurreição o Reino de Deus ficar na terra conforme no capítulo anterior mostrei pelas Escrituras que parece ser o inimigo e seu reino devem também situarse na terra Pois também assim era no tempo anterior à deposição de Deus pelos judeus Porque o reino de Deus era na Palestina e as nações circunvizinhas eram os reinos do inimigo e assim por Sotanas se entende qualquer inimigo terreno da Igreja Os tormentos do Inferno são por vezes expressos como choro e ranger de dentes como em Mt 812 Às vezes como o verme da consciência como Is 6624 e em Mc 9444648 outras vezes como fogo como na passagem onde o verme não morre e o fogo não se extingue outras vezes como vergonha e desprezo como em Dan 122 e muitos dos que dormem no pó da terra despertarão uns para uma vida eterna e outros para eterna vergonha e desprezo Todas estas passagens designam metaforicamente uma tristeza e descontentamento do espírito à vista daquela eterna felicidade dos outros que eles perderam devido a sua incredulidade e desobediência E como essa felicidade dos outros só se torna sensível em comparação com sua miséria presente seguese que eles deverão sofrer as dores e calamidades corporais a que estão sujeitos os que vivem submetidos a governantes maus e cruéis e além disso têm como inimigo o eterno rei dos santos Deus TodoPoderoso E entre essas dores corporais deve reconhecerse também para cada um dos perversos uma segunda morte Pois embora as Escrituras sejam claras quanto à ressurreição universal não está escrito que a qualquer dos réprobos esteja prometida uma vida eterna Porque São Paulo à questão sobre com quais corpos os homens se erguerão de novo respondeu 1 Cor 1542s que o corpo é semeado na corrupção e erguido na incorrupção é semeado na desonra e erguido na glória é semeado na fraqueza e erguido no poder e aqui a glória e o poder não podem ser aplicados aos corpos dos perversos E a expressão segunda morte não pode ser aplicada aos que morrem só uma vez embora em discurso metafórico uma vida perpetuamente calamitosa possa ser chamada uma morte perpétua não pode ser corretamente entendida como uma segunda morte 0 fogo que espera os perversos é um fogo perpétuo o que quer dizer que o estado no qual ninguém pode estar sem tortura tanto de corpo como de espírito depois da ressurreição durará para sempre e neste sentido o fogo será inextinguível e os tormentos serão perpétuos mas daí não pode inferirse que quem for lançado nesse fogo ou atormentado por esses tormentos deverá suportálos e resistirlhes de modo tal que será eternamente queimado e torturado mas jamais será destruído nem morrerá Embora haja muitas passagens onde se fale do fogo e dos tormentos perpétuos nos quais é possível lançar pessoas sucessivamente e umas atrás das outras para sempre não encontro nenhuma onde se afirme que lá haverá uma vida eterna para qualquer pessoa individual e sim pelo contrário uma morte perpétua que é a segunda morte Porque quando a morte e o sepulcro tiverem entregue os mortos que lá estavam e cada homem tiver sido julgado conforme suas ações a morte e o sepulcro serão também lançados ao lago de fogo Isto é a segunda morte Por onde fica evidente que deverá haver uma segunda morte para todos os que forem condenados no dia do juízo depois da qual não mais morrerão Todas as alegrias da vida eterna estão abrangidas nas Escrituras pelas palavras salvação ou salvarse Salvarse é livrarse do mal quer respectivamente contra males especiais quer absolutamente contra todo mal incluindo a necessidade a doença e a própria morte E como o homem foi criado numa condição imortal não sujeito à corrupção nem consequentemente a nada que tenda para a dissolução de sua natureza e perdeu essa felicidade por causa do pecado de Adão seguese que salvarse do pecado é salvarse de todos os males e calamidades que o pecado acarretou para nós Portanto nas Sagradas Escrituras a remissão dos pecados e a salvação da morte e da miséria são a mesma coisa conforme se verifica nas palavras de nosso Salvador que curou um homem que sofria de paralisia dizendo Mt 92 Alegrate meu filho que teus pecados te serão perdoados e sabendo que os escribas consideravam isso uma blasfêmia perguntoulhes versículo 5 se era mais fácil dizer Teus pecados serão perdoados ou Levantate e caminha querendo com isso dizer que era a mesma coisa quanto á salvação dos doentes dizer Teus pecados serão perdoados ou Levantate e caminha e que ele usava essa forma de linguagem apenas para mostrar que tinha o poder de perdoar os pecados Além disso é evidente para a razão que sendo a morte e a miséria os castigos do pecado a isenção do pecado deve ser também a isenção da morte e da miséria quer dizer uma salvação absoluta como a que os fiéis deverão gozar depois do dia do juízo pelo poder e favor de Jesus Cristo que por esse motivo é chamado nosso Salvador Nada direi sobre as salvações individuais tais como são entendidas em 1 Sam 1439 como vive o Senhor que salvou Israel a saber de seus inimigos temporários em 2 Sam 224 Tu és meu Salvador tu me salvaste da violência e em 2 Rs 135 Deus deu aos israelitas um Salvador e assim eles foram libertados das mãos dos assírios e outras passagens semelhantes Pois não há qualquer dificuldade nem interesse em corromper a interpretação de textos deste gênero Mas quanto á salvação geral como ela deve darse no Reino dos Céus há uma grande dificuldade quanto ao lugar Por um lado enquanto se trata de um reino que é uma situação organizada pelos homens para sua perpétua segurança contra seus inimigos e as necessidades parece que essa salvação deve darse na terra Com a salvação o que nos espera é um glorioso reino de nosso rei por conquista e não a segurança através da fuga portanto quando procuramos a salvação devemos também procurar o triunfo e antes do triunfo a vitória e antes da vitória a batalha a qual é impossível supor que se dê no céu Mas por melhor que seja este argumento não confiarei nele sem confirmação por passagens perfeitamente evidentes das Escrituras 0 estado de salvação é descrito de maneira geral em Is 332024 Olha para Sião a cidade de nossas solenidades teus olhos verão Jerusalém uma morada tranqüila um tabernáculo que não deverá ser derrubado nem uma só de suas estacas deve ser retirada nem uma só de suas cordas deve ser rompida Mas ali o glorioso Senhor porá ante nós um lugar de amplos rios e correntes onde não irá galera com remos e onde não passará galante navio Porque o Senhor é nosso juiz o Senhor é nosso legislador o Senhor é nosso rei e ele nos salvará Tuas cordas afrouxaram elas não podem segurar bem o mastro elas não podem esticar a vela então se dividirá a presa de um grande despojo os fracos tomam apresa E o habitante não dirá que está enfermo ao povo que lá morará será perdoada sua iniqüidade Nesta passagem temos indicado o lugar de onde deve proceder a salvação Jerusalém uma morada tranqüila sua eternidade um tabernáculo que não deverá ser derrubado etc o Salvador o Senhor seu juiz seu legislador seu rei que nos salvará a salvação o Senhor porá ante eles uma vasta extensão de águas correntes etc a condição de seus inimigos suas cordas afrouxaram seus mastros estão fracos os fracos tomarão seus despojos etc a condição dos que se salvam o habitante não dirá que está enfermo e por último tudo isto é abrangido pelo perdão dos pecados ao povo que lá morará será perdoada sua iniqüidade Pelo que fica evidente que a salvação será na terra quando Deus reinar em Jerusalém por ocasião do retorno de Cristo e de Jerusalém virá a salvação dos gentios que serão recebidos no Reino de Deus como é também mais expressamente declarado pelo mesmo profeta capítulo 6520s E eles isto é os gentios que conservavam qualquer judeu em escravidão trarão todos os vossos irmãos de todas as nações para uma oferenda do Senhor a cavalo em carros e em liteiras sobre mulas e animais velozes para minha montanha sagrada Jerusalém disse o Senhor como os filhos de Israel levam uma oferenda numa vasilha limpa à casa do Senhor E eu os tomarei também como sacerdotes e como levitas disse o Senhor Por onde fica manifesto que a sede principal do Reino de Deus que é o lugar de onde virá a salvação daqueles de entre nós que somos gentios será Jerusalém E o mesmo é também confirmado por nosso Salvador em seu diálogo com a mulher de Samaria sobre o lugar da adoração de Deus à qual disse Jo 422 que os samaritanos não conheciam o que adoravam e os judeus adoravam o que conheciam pois a salvação é dos judeus ex judaeis quer dizer começa com os judeus É coma se dissesse vós adorais a Deus mas não sabeis por intermédio de quem ele vos salvará ao contrário de nós que sabemos que será um dos da tribo de Judá um judeu e não um samaritano Assim não foi impertinentemente que a mulher lhe replicou Nós sabemos que o Messias virá De modo que o que nosso Salvador disse a salvação é dos judeus é o mesmo que diz São Paulo Rom 116s 0 Evangelho é o poder de Deus para salvação de todos os que crêem primeiro para o judeu e também para o grego Porque aí a justiça de Deus se revela de fé em fé da fé do judeu para a fé do gentio É no mesmo sentido que o profeta Joel descrevendo o dia do juízo cap 230s diz que Deus mostraria maravilhas no céu e na terra sangue fogo e colunas defumo 0 sol transformarseia em trevas e a lua em sangue antes da vinda do grande e terrível dia do Senhor e acrescenta no versículo 32 e acontecerá que quem invocar o nome do Senhor será salvo Porque no monte Sião e em Jerusalém estará a salvação E Abdias no versículo 17 diz o mesmo No monte Sião estará a libertação e haverá santidade e a casa de Jacó possuirá suas posses isto é as posses dos pagãos estando essas posses expressas mais particularmente nos versículos seguintes como o monte de Esaú a terra dos filisteus os campos de Efraim de Samaria Gilead e as cidades do sul e conclui com as palavras o Reino será do Senhor Todas estas passagens são sobre a salvação e o Reino de Deus depois do dia do juízo na terra Por outro lado não encontrei texto algum capaz de provar a probabilidade de qualquer ascensão dos santos aos céus quer dizer a qualquer coelum empyreum ou outra região etérea A não ser que ela se chame o Reino dos Céus nome que pode ter porque Deus que era o rei dos judeus os governava por meio de suas ordens enviadas a Moisés pelos anjos do céu E depois que eles se revoltaram enviou do céu a seu Filho para submetêlos à obediência e de lá o enviará de novo para os governar tanto a eles como a outros fiéis desde o dia do juízo até a eternidade Ou porque o trono deste nosso grande rei está no céu enquanto a terra é apenas seu escabelo Mas que os súditos de Deus tenham um lugar tão alto como seu trono ou mais alto do que seu escabelo é coisa que não parece compatível com a dignidade de um rei e além disso não encontro em seu apoio qualquer texto evidente das Sagradas Escrituras A partir de tudo quanto ficou dito a respeito do Reino de Deus e da salvação não é difícil interpretar o que significa mundo vindouro Nas Escrituras encontrase referência a três mundos o mundo antigo o mundo atual e o mundo vindouro Sobre o primeiro diz São Pedro Se Deus não poupou o mundo antigo e salvou apenas Noé como oitava pessoa um pregador da retidão levando 0 dilúvio para sobre o mundo dos ímpios etc Assim o primeiro mundo vai desde Adão até ao dilúvio geral Sobre o mundo atual diz nosso Salvador Jo 1836 Meu reino não é deste mundo Porque ele veio apenas para ensinar aos homens o caminho da salvação e para renovar o reino de seu Pai através de sua doutrina Sobre o mundo vindouro diz São Pedro Não obstante esperamos conforme sua promessa novos céus e uma nova terra É este aquele mundo onde Cristo depois de descer dos céus por entre as nuvens com grande poder e glória enviará seus anjos e reunirá a seus eleitos idos dos quatro ventos e dos lugares mais longínquos da terra para a partir de então reinar sobre eles abaixo de seu Pai perpetuamente A salvação de um pecador supõe uma redenção anterior pois aquele que uma vez se tornou culpado de um pecado fica sujeito a sofrer uma pena por causa do mesmo e é obrigado a pagar ou alguém em seu lugar o resgate que aquele que foi ofendido e o tem em seu poder quiser exigir Dado que a pessoa ofendida é Deus TodoPoderoso em cujo poder se encontram todas as coisas esse resgate precisa ser pago antes de ser possível conquistar a salvação e será aquele que a Deus aprouver exigir Não se entende por este resgate uma compensação do pecado equivalente à ofensa do que nenhum pecador é capaz por si só e nenhum homem reto é capaz de fazer por outrem É possível compensar o prejuízo que um homem causa a outro mediante restituição ou recompensa mas o pecado não pode ser eliminado mediante uma recompensa pois isso seria transformar numa coisa vendável a liberdade de pecar Mas os pecados podem ser perdoados aos que se arrependem seja graus ou mediante uma penalidade que a Deus aprouver aceitar 0 que Deus geralmente aceitava no Antigo Testamento era um sacri6cio ou uma oferenda Perdoar um pecado não é um ato de injustiça mesmo que tenha havido ameaça de punição Mesmo entre os homens embora uma promessa perante Deus seja obrigatória para quem promete as ameaças quer dizer as promessas de mal não são obrigatórias e muito menos obrigatórias devem ser para Deus que é infinitamente mais misericordioso do que os homens Portanto para nos redimir Cristo nosso Salvador não compensou os pecados dos homens no sentido de sua morte por sua própria virtude poder tornar injusto para Deus castigar os pecadores com a morte eterna Mas esse seu sacrifício e oferenda de si mesmo fela ele em sua primeira vinda que a Deus aprouve decidir para que em sua segunda vinda se salvassem aqueles que entretanto se arrependessem e nele cressem E embora este ato de nossa redenção nem sempre seja chamado nas Escrituras um sacrifício e uma oferenda mas às vezes seja chamada preço não devemos entender por preço uma coisa por cujo valor ele podia exigir um direito de perdão para nós a seu Pai ofendido mas aquele preço que a Deus o Pai em sua misericórdia aprouve exigir CAPÍTULO XXXIX Do significado da palavra Igreja nas Escrituras Nos livros das Sagradas Escrituras a palavra Igreja Eclesia significa diversas coisas Às vezes embora não freqüentemente é tomada no sentido de casa de Deus quer dizer como um templo onde os cristãos se reúnem para cumprir publicamente seus sagrados deveres como em 1 Cor 1434 Que as mulheres se mantenham em silêncio nas igrejas Mas neste caso a palavra é usada metaforicamente designando a congregação lá reunida e desde então tem sido usada para designar o próprio edifício para distinguir entre os templos dos cristãos e os dos idólatras 0 templo de Jerusalém era a casa de Deus e a casa de oração e assim todo edifício destinado pelos cristãos à adoração de Cristo é a casa de Cristo por isso os padres gregos lhe chamavam kyriaké a casa do Senhor e a partir daí nossa língua passou a chamarlhe kyrke e igreja 21 Quando não é usada no sentido de uma casa a palavra igreja significa o mesmo que Ecclesia significava nos Estados gregos quer dizer uma congregação ou assembléia de cidadãos convocada para ouvir falar o magistrado A qual no Estado de Roma se chamava Concio e aquele que falava era chamado Ecclesiastes e Concionator E quando a assembléia era convocada pela autoridade legítima ela era chamada Ecclesia legitima uma igreja legítima énnomos Ekklesía Mas quando ela era perturbada por clamores tumultuosos e sediciosos era considerada uma igreja confusa ekklesía synklexyméne Às vezes a palavra também é usada para designar os homens que têm o direito de fazer parte da congregação mesmo quando não se encontram efetivamente reunidos quer dizer para designar toda a multidão dos cristãos por mais dispersos que possam estar Como em Atos 83 onde se diz que Saulo assolava a Igreja E neste sentido se diz que Cristo é a cabeça da Igreja Às vezes a palavra também designa uma certa parte dos cristãos como em Col 415 Saudai a igreja que está em sua casa E às vezes também apenas no sentido dos eleitos como em Ef 527 Uma Igreja gloriosa sem manchas nem rugas sagrada e sem mácula o que se diz da Igreja triunfante ou Igreja vindoura Às vezes designa uma congregação reunida cujos membros professam o cristianismo quer essa profissão seja verdadeira ou fingida conforme se verifica em Mt 1817 onde se diz Dilo à Igreja e se recusar ouvir a Igreja que ele seja para ti como um gentio ou um publicano E é apenas neste último sentido que a igreja pode ser entendida como uma pessoa quer dizer que nela se pode admitir o poder de querer de pronunciar de ordenar de ser obedecida de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação Porque quando não há a autoridade de uma congregação legítima seja qual for o ato praticado por um conjunto de pessoas tratase de um ato individual de cada um dos que estavam presentes e contribuíram para a prática desse ato e não um ato de todos eles em conjunto como um só corpo e muito menos um ato dos que estavam ausentes ou que estando presentes não queriam que ele fosse praticado Neste sentido defino uma Igreja como uma companhia de pessoas que professam a religião cristã unidas na pessoa de um soberano a cuja ordem devem reunirse e sem cuja autorização não devem reunirse E dado que em todos os Estados são ilegítimas as assembléias não autorizadas pelo soberano civil também aquela Igreja que se reúna em qualquer Estado que lhe tenha proibido reunirse constitui uma assembléia ilegítima Daqui se segue também que não existe na terra qualquer Igreja universal a que todos os cristãos sejam obrigados a obedecer pois não existe na terra um poder ao qual todos os outros Estados se encontrem sujeitos Existem cristãos nos domínios dos diversos príncipes e Estados mas cada um deles está sujeito àquele Estado do qual é um dos membros não podendo em conseqüência estar sujeito às ordens de qualquer outra pessoa Portanto uma Igreja que seja capaz de mandar julgar absolver condenar ou praticar qualquer outro ato é a mesma coisa que um Estado civil formado por homens cristãos e chamaselhe um Esta do civil por seus súditos serem homens e uma Igreja por seus súditos serem cristãos Governo temporal e espiritual são apenas duas palavras trazidas ao mundo para levar os homens a sé confundirem enganandose quanto a seu soberano legítimo É certo que os corpos dos fiéis depois da ressurreição não serão apenas espirituais mas eternos porém nesta vida eles são grosseiros e corruptíveis Portanto nesta vida o único governo que existe seja o do Estado seja o da religião é o governo temporal E não é legítimo que qualquer súdito ensine doutrinas proibidas pelo governante do Estado e da religião E esse governante tem que ser um só caso contrário seguese necessariamente a facção e a guerra civil no país entre a Igreja e o Estado entre os espiritualistas e os temporalistas entre a espada da justiça e o escudo da fé E o que é mais ainda no próprio coração de cada cristão entre o cristão e o homem Os doutores da Igreja são chamados pastores e assim o são também os soberanos civis Mas se entre os pastores não houver alguma subordinação de maneira a que haja apenas um chefe dos pastores serão ensinadas aos homens doutrinas contrárias que poderão ser ambas falsas e das quais uma necessariamente o será Quem é esse chefe dos pastores segundo a lei de natureza já foi mostrado é o soberano civil Quanto a quem tal cargo foi atribuído pelas Escrituras vêloemos nos capítulos seguintes CAPÍTULO XL Dos direitos do reino de Deus em Abraão Moisés nos Sumos e nos Reis de Judá O pai dos fiéis e o primeiro no reino de Deus por contrato foi Abraão Pois foi com ele que o contrato foi primeiro feito pelo qual se obrigou e a sua semente depois dele a reconhecer e obedecer às ordens de Deus não apenas aquelas de que tinha conhecimento como as leis morais pela luz da natureza mas também aquelas que Deus lhe comunicasse de maneira especial por sonhos e visões Pois quanto à lei moral estavam já obrigados e não precisavam de fazer contrato pela promessa da terra de Canaã Nem havia nenhum contrato que pudesse aumentar ou fortalecer a obrigação pela qual quer eles quer todos os outros homens eram obrigados a obedecer naturalmente a Deus todopoderoso E portanto o contrato que Abraão fez com Deus era para receber como ordem de Deus aquilo que em nome de Deus lhe fosse ordenado num sonho ou visão e para comunicálo a sua família e levála a observar as mesmas coisas Neste contrato de Deus com Abraão podemos observar três pontos de importante conseqüência no governo do povo de Deus Primeiro que ao fazer este contrata Deus só falou a Abraão e portanto não fez contrato com ninguém de sua família ou descendência a não ser na medida em que suas vontades que constituem a essência de todos os contratos estavam antes do contrato implicadas na vontade de Abraão que então se supôs possuir um poder legítimo para fazêlos realizar tudo o que ele tinha contratado em seu nome Conforme a isso Gên 1818s Deus disse Todas as nações da terra serão nele abençoadas pois sei que ele governará seus filhos e sua casa depois dele e que eles conservarão 0 caminho do Senhor Do que pode ser concluído este primeiro ponto que aqueles a quem Deus não falou imediatamente devem receber de seu soberano as ordens positivas de Deus como a família c semente de Abraão as recebeu de seu pai e senhor e soberano civil E consequentemente em todos os Estados aqueles que não têm revelação sobrenatural em contrário devem obedecer às leis de seu próprio soberano nos atos externos e na profissão de religião Quanto ao pensamento interior e à crença dos homens de que os governantes não podem ter conhecimento pois só Deus conhece os corações não são voluntários nem são efeito das leis mas sim de uma vontade não revelada e do poder de Deus c consequentemente não caem sob a obrigação Donde se segue um outro ponto que não era ilegítimo para Abraão punir seus súditos quando algum deles pretendesse ter uma visão particular ou espírito ou outra revelação da parte de Deus em apoio de qualquer doutrina que Abraão proibisse ou quando aderissem ou seguissem qualquer dos que tal pretendiam e consequentemente que é agora legítimo o soberano punir alguém que oponha o espírito particular às leis pois ele ocupa o mesmo lugar no Estado que Abraão ocupava em sua própria família Do mesmo deriva também um terceiro ponto que assim como ninguém exceto Abraão em sua família também ninguém exceto o soberano num Estado cristão pode conhecer o que é ou o que não é a palavra de Deus Pois Deus falou apenas a Abraão e só ele podia saber o que Deus disse e interpretar isso para a família E portanto também aqueles que ocupam o lugar de Abraão num Estado são os únicos intérpretes daquilo que Deus falou 0 mesmo pacto foi renovado com Isaac e depois com Jacob mas em seguida não o foi mais até os israelitas se libertarem dos egípcios e terem chegado ao sopé do monte Sinai e então foi renovado por Moisés como disse antes no capítulo 35 de tal modo que eles se tornaram dali em diante o reino eleito de Deus cujo representante era Moisés durante seu tempo e a sucessão daquele cargo foi atribuída a Aarão e a seus herdeiros depois dele para ser eternamente para Deus um reino sacerdotal Por esta constituição foi obtida para Deus um reino Mas dado que Moisés não tinha autoridade para governar os israelitas como sucessor do direito de Abraão porque não podia reclamálo por herança ainda parece que o povo só era obrigado a encarálo como representante de Deus enquanto acreditava que Deus lhe falava Portanto sua autoridade apesar do contrato que tinham feito com Deus dependia ainda só da opinião que tinha de sua santidade e da realidade de suas conferências com Deus e da verdade de seus milagres vindo a mudar essa opinião deixavam de estar obrigados a aceitar como lei de Deus tudo aquilo que ele lhes propunha em nome de Deus Devemos portanto investigar que outro fundamento havia para a obrigação de lhe obedecerem Pois não podia ser a ordem de Deus que os obrigava porque Deus não lhes falou imediatamente mas pela mediação do próprio Moisés E nosso Salvador disse de si próprio Se eu trouxer testemunho de mim próprio meu testemunho não é verdadeiro muito menos se Moisés trouxesse testemunho de si próprio especialmente numa reivindicação de poder monárquico sobre o povo de Deus devia seu testemunho ser recebido Sua autoridade portanto como a autoridade de todos os outros príncipes tem de ter como fundamento o consentimento do povo e sua promessa de lhe obedecer E assim foi pois o povo Êx 2018 quando viu os trovões e os relâmpagos e o barulho da trombeta e a montanha lançar fumo ser afastada e ficar bem longe disse a Moisés falanos e ouvirteemos mas que Deus não nos fale senão morreremos Aqui estava sua promessa de obediência e foi deste modo que se obrigaram a obedecer a tudo o que ele lhes transmitisse por ordem de Deus E apesar de o pacto constituir um reino sacerdotal isto é um reino hereditário a Aarão contudo isso deve ser entendido da sucessão depois de Moisés ter morrido Pois todo aquele que ordene e estabeleça a polícia como primeiro fundador de um Estado seja ele uma monarquia uma aristocracia ou uma democracia precisa ter poder soberano sobre o povo durante todo o tempo em que o estiver fazendo E que Moisés teve aquele poder durante todo o seu tempo está afirmado com evidência nas Escrituras Primeiro no texto há pouco citado porque o povo prometeu obediência a ele e não a Aarão Segundo Êx 241 s E Deus disse a Moisés Vem até ao Senhor tu e Aarão Nadab e Abihu e setenta dos anciãos de Israel E só Moisés chegará perto do Senhor mas eles não chegarão perto nem o povo subirá com ele Pelo que fica claro que Moisés que foi chamado sozinho até Deus e não Aarão nem os outros sacerdotes nem os setenta anciãos nem o povo a quem foi proibido subir era o único que representava para os israelitas a pessoa de Deus isto é era seu único soberano sob Deus E embora depois seja dito versículo 9 Então subiram Moisés e Aarâo Nadaó e Abihu e setenta dos anciãos de Israel e viram o Deus de Israel e havia sob seus pés algo que se assemelhava a um pavimento de pedra safira ete contudo isto só foi depois de Moisés ter estado antes com Deus e de ter trazido para o povo as palavras que Deus lhe dissera Só ele foi para tratar dos negócios do povo aos outros como aos nobres de seu séquito foi admitida como honra aquela graça especial que não foi concedida ao povo a qual foi como se vê pelo versículo seguinte ver Deus e viver Deus não pós sua mão sobre eles viram Deus e comeram e beberam isto é viveram mas não transmitiram nenhuma ordem dele para o povo Também é dito em toda parte 0 Senhor falou a Moisés como em todas as outras ocasiões de governo assim também na ordenação das cerimônias de religião contidas nos capítulos 25 26 27 28 29 30 e 31 do Êxodo e em todo o Levítico a Aarão raras vezes 0 bezerro que Aarão fez foi lançado por Moisés no fogo Finalmente a questão da autoridade de Aarão por ocasião de seu motim e de Míriam contra Moisés foi Números 12 julgada pelo próprio Deus em vez de Moisés Assim como na questão entre Moisés e o povo quem tinha o direito de governar o povo quando Corah Dathan e Abiram e duzentos e cinqüenta príncipes da assembléia se reuniram Núm 163 contra Moisés e contra Aarão e lhes disseram vós tomais demasiado sobre vós mesmos dado que toda a congregação é sagrada cada um deles e o Senhor está entre eles por que vos elevais acima da congregação do Senhor Deus fez que a terra engulisse vivos Corah Dathan e Abiram com suas mulheres e crianças e consumiu aqueles e cinqüenta príncipes pelo fogo Portanto nem Aarão nem o povo nem qualquer aristocracia dos maiores príncipes do povo mas só Moisés teve depois de Deus a sabedoria sobre os israelitas E isto não apenas em questões de política civil mas também de religião Pois só Moisés falou com Deus e portanto só ele podia dizer ao povo o que Deus exigia de suas mãos Ninguém sob pena de morte podia ser tão presunçoso que se aproximasse da montanha onde Deus falou com Moisés Colocarás limites disse o Senhor Êx 1912 ao povo à tua volta e dirás Tenham cautela convosco para que não subam a montanha ou toquem sua fronteira aquele que tocar a montanha será certamente condenado à morte E também versículo 21 Desce exorta o povo a que não irrompa para contemplar o Senhor Do que podemos concluir que todo aquele que num Estado cristão ocupar o lugar de Moisés é o único mensageiro de Deus e o intérprete de suas ordens E de acordo com isto ninguém devia segundo a interpretação da Escritura ir além dos limites que são colocados por seus vários soberanos Pois as Escrituras dado que Deus agora fala nelas são o monte Sinai cujos limites são as leis daqueles que representam a pessoa de Deus sobre a terra Olhar para elas e ali contemplar as maravilhosas obras de Deus e aprender a temêlo é permitido mas interpretálas isto é espiar aquilo que Deus disse àquele que ele designou para governar em seu nome e tornarse juiz de se ele governa como Deus lhe ordenou ou não é transgredir os limites que Deus nos estabeleceu e olhar para Deus de maneira irreverente No tempo de Moisés não houve nenhum profeta nem nenhum pretendente ao espírito de Deus senão aqueles que Moisés tinha aprovado e autorizado Pois havia em seu tempo só setenta homens que podem ser considerados profetas pelo Espírito de Deus e estes eram todos da escolha de Moisés a respeito dos quais Deus disse a Moisés Núm 1116 Reúneme setenta dos anciãos de Israel que souberes serem os anciãos do povo A estes Deus concedeu seu espírito mas não era um espírito diferente do de Moisés pois disse versículo 25 Deus desceu numa nuvem e tirou do espírito que estava sobre Moisés e deuo aos setenta anciãos Mas como mostrei antes capítulo 36 espírito significa entendimento de tal modo que o sentido do texto não é outro senão este que Deus os dotou de um entendimento conforme e subordinado ao de Moisés para que pudessem profetizar isto é falar ao povo em nome de Deus de tal modo que apresentassem como ministros de Moisés e por autoridade sua aquela doutrina que era agradável a Moisés Pois não passavam de ministros e quando dois deles profetizavam no acampamento isso era considerado uma coisa nova e ilegítima e como está nos versículos 27 e 28 do mesmo capítulo foram acusados disso e Josué aconselhou Moisés a proibilos por não saberem que era pelo espírito de Moisés que eles profetizavam Pelo que fica manifesto que nenhum súdito deve pretender à profecia ou ao espírito em oposição à doutrina estabelecida por aquele a quem Deus colocou no lugar de Moisés Morto Aarão e depois dele também Moisés o reino por ser um reino sacerdotal passou em virtude do pacto ao filho de Aarão Eleazar o Sumo Sacerdote E Deus declarouo soberano logo a seguir a ele ao mesmo tempo que designou Josué para general de seu exército Pois assim falou Deus expressamente Núm 2721 referindose a Josué Ele ficará antes de Eleazar o Sacerdote que pedirá conselho para ele diante do Senhor perante sua palavra sairão e perante sua palavra entrarão tanto ele quanto todos os filhos de Israel com ele Portanto o supremo poder de fazer a guerra e a paz pertencia ao sacerdote 0 supremo poder da judicatura pertencia também ao Sumo Sacerdote pois o livro da lei estava à sua guarda e só os sacerdotes e levitas eram os juízes subordinados nas causas civis como se vê no Dt 178ss E quanto à maneira de se prestar culto a Deus nunca houve dúvida de que o Sumo Sacerdote até ao tempo de Saul tinha a autoridade suprema Portanto o poder civil e eclesiástico estavam ambos reunidos numa única e mesma pessoa o Sumo Sacerdote e assim deve ser quando alguém governa por direito divino isto é por autoridade imediata de Deus 0 intervalo entre a morte de Josué e a época de Saul é freqüentemente indicado no livro dos Juizes do seguinte modo que nesses dias não havia rei em Israel e algumas vezes com esta adição que cada homem fazia aquilo que a seus olhos era certo Pelo que deve entenderse que onde se diz não havia rei isso significa não havia soberano poder em Israel E assim era se considerarmos o ato e o exercício de tal poder Pois depois da morte de Josué e Eleazar surgiu uma outra geração Jz 210 que não conhecia o Senhor nem as obras que tinha feito por Israel e que procedeu mal perante o Senhor e serviu Baalim E os judeus tinham aquela qualidade que São Paulo observou procurar um sinal não só antes de se submeterem ao governo de Moisés mas também depois de se terem comprometido por sua submissão Pois os sinais e os milagres tinham como objetivo conseguir a fé e não impedir os homens de a violarem quando já a tinham dado pois a isso os homens estão obrigados pela lei de natureza Mas se considerarmos não o exercício mas o direito de governar o soberano poder ainda pertencia ao Sumo Sacerdote Portanto seja qual for a obediência prestada a qualquer dos juizes que eram homens escolhidos extraordinariamente por Deus para salvar seus súditos rebeldes das mãos do inimigo isso não pode constituir argumento contra o direito do Sumo Sacerdote ao poder soberano em todas as questões quer de política quer de religião E nem os juízes nem o próprio Samuel tiveram um chamado habitual para o governo mas sim um chamado extraordinário e foram obedecidos pelos israelitas não por dever mas por reverência para com seu favor junto a Deus que aparecia em sua sabedoria coragem ou fortuna A partir daí portanto ficaram inseparáveis o direito de regular quer a política quer a religião Aos juízes sucederam os reis e enquanto anteriormente toda autoridade quer em religião quer em política estava no Sumo Sacerdote agora ela estava toda no rei Pois a soberania sobre o povo que existia antes não apenas em virtude do poder divino mas também por um pacto particular dos israelitas com Deus e logo abaixo dele com o Sumo Sacerdote como seu vicerei sobre a terra foi abandonada pelo povo com o consentimento do próprio Deus Pois quando disseram a Samuel 1 Sam 85 faznos um rei para julgarnos como todas as outras nações queriam dizer que não queriam mais ser governados pelas ordens que sobre eles caíam a partir do Sacerdote em nome de Deus mas sim por alguém que os governasse da mesma maneira como todas as outras nações eram governadas e consequentemente ao despojarem o Sumo Sacerdote da autoridade real aboliram aquele especial governo de Deus E contudo Deus consentiu nisso dizendo a Samuel versículo 7 Escuta com atenção a voz do povo em tudo o que ele te disser pois ele não te rejeitou mas me rejeitou a mim para que não reinasse sobre ele Tendo portanto rejeitado Deus em cujo nome os Sacerdotes governavam não foi deixada nenhuma autoridade aos sacerdotes exceto aquela que aprouvesse ao rei concederlhes a qual era maior ou menor conforme os reis eram bons ou maus E quanto ao governo dos negócios civis é manifesto que estava todo nas mãos do rei Pois no mesmo capítulo versículo 20 dizem que serão como todas as nações que seu rei será seu juiz e irá à frente deles e lutará em suas batalhas isto é terá toda a autoridade tanto na paz como na guerra No que está contida também a autoridade religiosa pois não havia nessa altura outra palavra de Deus pela qual regular a religião a não ser a lei de Moisés que era sua lei civil Além disso lemos I Rs 227 que Salomão destituiu Abiathar de ser sacerdote perante o Senhor Tinha portanto autoridade sobre o Sumo Sacerdote como sobre qualquer súdito o que é uma grande marca de supremacia em religião E lemos também 1 Rs 8 que dedicou o templo que abençoou o povo e que ele em pessoa fez aquela excelente oração usada na consagração de todas as igrejas e casas de oração o que é uma outra grande marca de supremacia em religião Também lemos 2 Rs 22 que quando havia questão a respeito do livro da lei encontrado no templo a mesma não era decidida pelo Sumo Sacerdote mas Josias enviouo e a outros para inquirirem a tal respeito junto de Hulda a profetiza o que constituiu uma outra marca da supremacia em religião Finalmente lemos 1 Crôn 2630 que Davi tornou Hashabiah e seus irmãos hebronitas oficiais de Israel entre eles para oeste em todos os negócios do Senhor e no serviço do rei Do mesmo modo versículo 32 que ele tornou outros hebronitas governantes sobre os reubenitas os gaditas e metade da tribo de Manassés estes eram o resto de Israel que habitava para lá do Jordão para todas as questões que dissessem respeito a Deus e para os negócios do rei Não é isto o pleno poder tanto temporal como espiritual como lhe chamam aqueles que o dividem Em conclusão são desde a primeira instituição do reino de Deus até ao cativeiro a supremacia da religião estava nas mesmas mãos que a da soberania civil e o oficio de sacerdote depois da eleição de Saul não era magisterial mas ministerial Apesar de o governo tanto na política quanto na religião estar unido primeiro nos Sumos Sacerdotes e depois nos reis pelo menos no que se refere ao direito contudo vêse pela mesma História Sagrada que o povo não o compreendeu mas que havendo entre ele uma grande parte e provavelmente a maior parte que só na medida em que via grandes milagres ou o que é equivalente a um milagre grandes façanhas ou grande fortuna nos empreendimentos de seus governantes dava crédito suficiente quer à fama de Moisés quer aos colóquios entre Deus e os sacerdotes aproveitava a ocasião sempre que seu governante lhe desagradava censurando por vezes a política por vezes a religião para mudar o governo ou revoltarse de sua obediência a seu belprazer E daí se seguiram de tempos a tempos as guerras civis as divisões e as calamidades da nação Como por exemplo depois da morte de Eleazar e Josué a geração seguinte que não tinha visto os prodígios de Deus mas foi deixada à sua própria e fraca razão não se sabendo obrigada pelo pacto de um reino sacerdotal deixou de acatar as ordens do sacerdote e qualquer lei de Moisés e todos os homens passaram a fazer o que a seus olhos parecia certo e nas questões civis obedeciam àqueles homens que de tempos a tempos julgavam capazes de libertálos das nações vizinhas que os oprimiam e não consultavam Deus como o deviam fazer mas aqueles homens ou mulheres que supunham ser profetas por suas predições das coisas que estavam para vir e muito embora tivessem um ídolo em sua capela contudo se tinham um levita como capelão fingiam adorar o Deus de Israel E depois quando pediram um rei segundo os costumes das nações não foi com a intenção de se afastarem do culto de Deus rei mas desesperando da justiça dos filhos de Samuel queriam ter um rei para julgálos nas ações civis mas não que permitissem a seu rei mudar a religião que pensavam lhes fora recomendada por Moisés De tal modo que sempre conservaram de reserva um pretexto ou de justiça ou de religião para se desembaraçarem de sua obediência sempre que tinham esperança de ganhar Samuel ficou aborrecido com o povo porque eles desejaram um rei pois Deus era já seu rei e Samuel só tinha autoridade abaixo dele contudo Samuel quando Saul não observou seus conselhos destruindo Agag como Deus tinha ordenado ungiu outro rei a saber Davi para tomar a sucessão de seus herdeiros Rehoboam não era idólatra mas quando o povo o considerou opressor esse pretexto civil afastou dele dez tribos para Jeroboam um idólatra E em geral durante toda a história dos reis tanto de Judá como de Israel sempre houve profetas que controlavam os reis por transgredirem a religião e às vezes também por erros de Estado como Josafá foi censurado pelo profeta Jehu por ajudar o rei de Israel contra os sírios e Hezekiah por Isaías por mostrar seus tesouros aos embaixadores de Babilônia Por tudo isto se vê que embora o poder tanto do Estado quanto da religião estivesse nos reis contudo nenhum deles deixou de estar controlado em seu uso a não ser quando eram bem vistos por suas capacidades naturais ou por sua fortuna De tal modo que das práticas daqueles tempos não pode tirarse nenhum argumento de que o direito de supremacia em religião não pertencia aos reis a menos que o atribuamos aos profetas nem concluir porque rezando Hezekiah ao Senhor diante dos querubins não obteve dele resposta nessa altura mas mais tarde pelo profeta Isaías que portanto Isaías era o chefe supremo da igreja ou porque Josias consultou Hulda a profetiza a respeito do livro da lei que portanto nem ele nem o Sumo Sacerdote mas sim Hulda a profetiza tinha a suprema autoridade em matéria de religião o que penso não ser a opinião de nenhum doutor Durante o cativeiro os judeus não tinham Estado algum e depois de seu regresso embora renovassem seu pacto com Deus não foi feita promessa de obediência nem a Esdras nem a qualquer outro E logo depois se tornaram súditos dos gregos com cujos costumes e demonologia assim como com a doutrina dos cabalistas sua religião tornouse muito corrompida de tal modo que nada se pode coligir de sua confusão tanto no Estado quanto na religião a respeito da supremacia em qualquer deles Portanto no que se refere ao Antigo Testamento podemos concluir que quem tinha a soberania do Estado entre os judeus tinha também a suprema autoridade em matéria de culto exterior de Deus e representava a pessoa de Deus isto é a pessoa de Deus Pai embora não fosse chamado pelo nome de Pai até àquela altura em que enviou ao mundo a seu Filho Jesus Cristo para redimir a humanidade de seus pecados e levála para seu reino eterno para ser salva para sempre Do que vamos falar no capítulo seguinte CAPÍTULO XLI DA missão de nosso abençoado Salvador Encontramos nas Sagradas Escrituras três partes da missão do Messias A primeira é como Redentor ou Salvador a segunda é como Pastor Conselheiro ou Mestre isto é a missão de um profeta enviado por Deus para converter os que Deus havia eleito para a salvação a terceira é como Rei e um rei eterno mas sob seu Pai como foi o caso de Moisés e dos Sumos Sacerdotes em suas respectivas épocas E a essas três partes correspondem três épocas Nossa redenção foi levada a cabo em sua primeira vinda pelo sacrifício mediante o qual se ofereceu na cruz por nossos pecados nossa redenção foi parcialmente levada a cabo por sua própria pessoa e parcialmente efetuada atualmente por seus ministros o que assim continuará até seu retorno E após esse retorno começará seu glorioso reinado sobre seus eleitos que há de durar eternamente Faz parte da missão de Redentor isto é de quem pagou o resgate do pecado resgate esse que é a morte que ele tenha sido sacrificado tendo assim carregado em sua própria cabeça e afastado de nós nossas iniqüidade da maneira que Deus havia exigido Não que a morte de um só homem embora sem pecado possa compensar as ofensas de todos os homens no rigor da justiça mas apenas na misericórdia de Deus que ordenou os sacrifícios pelo pecado que em sua misericórdia lhe aprouve aceitar Na lei antiga como está escrito no Levítico eap16 o Senhor exigia que se fizesse todos os anos uma reparação dos pecados de todo Israel tanto os sacerdotes como os outros Para tal Aarão devia sacrificar um boi jovem por si mesmo e pelos sacerdotes Quanto ao resto do povo devia receber deste dois bodes jovens dos quais devia sacrificar um mas quanto ao outro que era o bode expiatório devia pousar as mãos em sua cabeça e através da confissão das iniqüidade do povo depositálas todas sobre essa cabeça e depois através de uma pessoa adequada fazer que o bode fosse levado para o deserto e lá fugisse levando consigo as iniqüidade do povo Tal como o sacrifício de um só dos bodes era um preço suficiente porque aceitável para o resgate de todo Israel assim também a morte do Messias é um preço suficiente para pagar os pecados de todo o gênero humano pois nada mais foi exigido Os sofrimentos de Cristo nosso Salvador parecem estar aqui figurados tão claramente como na oblação de Israel ou em qualquer de seus outros símbolos no Antigo Testamento Ele foi ao mesmo tempo ó bode sacrificado e o bode expiatório Ele foi oprimido e ele foi afligido Is 537 ele não abriu a boca foi levado como um cordeiro para a matança e assim como um cordeiro fica mudo diante do tosquiador assim também ele não abriu a boca Aqui ele é o bode sacrificado Ele suportou nossos agravos e levou nossas aflições vers 4 E também vers 6 o Senhor carregou sobre si as iniqüidade de nós todos Aqui ele é o bode expiatório Ele foi separado da terra dos vivos pela transgressão de meu povo vers 8 Aqui é mais uma vez o bode sacrificado E também vers 11 ele suportará seus pecados Aqui é o bode expiatório Assim o cordeiro de Deus é o equivalente de ambos esses bodes sacrificado no fato de ter morrido e escapando em sua ressurreição sendo erguido oportunamente por seu Pai e retirado da habitação dos homens em sua Ascensão Assim na medida em que quem redime não tem direito à coisa redimida antes da redenção e do pagamento do resgate e este resgate era a morte do redentor é manifesto que nosso Salvador enquanto homem não era rei daqueles que redimiu antes de sofrer a morte isto é durante o tempo em que viveu corporalmente na terra Digo que ele então não era rei de maneira presente em virtude do pacto que os fiéis fazem com ele no batismo Não obstante pela renovação de seu pacto com Deus no batismo eles ficam obrigados a obedecerlhe como rei sob seu Pai a qualquer momento em que lhe aprouver assumir o Reino Conformemente a isto nosso Salvador disse expressamente ele mesmo João 1836 Meu Reino não é deste mundo Ora dado que nas Escrituras se encontra referência somente a dois mundos aquele que existe agora e durará até ao dia do juízo que portanto se chama também o último dia e aquele que existirá depois do dia do juízo quando haverá um novo céu e uma nova terra dado isso o Reino do Cristo só vai começar depois da ressurreição geral E foi isso que disse nosso Salvador Mt 16270 Filho do homem virá na glória de seu Pai com seus anjos e então recompensará a cada homem conforme seus atos Recompensar a cada homem conforme seus atos é a função de um rei e isso não acontecerá antes de ele vir na glória de seu Pai com seus anjos Quando nosso Salvador disse Mt 232 Os escribas e fariseus estão sentados na cadeira de Moisés portanto tudo o que vos pedirem para fazer observaio e fazeio declarou claramente estar atribuindo para esse tempo o poder real não a si mesmo mas a eles E assim faz também quando diz Lc 1214 Quem fez de mim um juiz ou um divisor para vós E também Jo 1247 Eu não vim para julgar o mundo mas para salvar o mundo Contudo nosso Salvador veio a este mundo para poder ser rei e juiz no mundo vindouro Pois ele era o Messias isto é o Cristo isto é o sacerdote ungido e o soberano profeta de Deus Quer dizer ele viria a ter todo o poder que estava em Moisés o profeta nos Sumos Sacerdotes que sucederam a Moisés e nos reis que sucederam aos Sacerdotes E São João diz expressamente cap 5 vers 220 Pai não julga ninguém mas confiou todo julgamento ao Filho E isto não é incompatível com aquela outra passagem Eu não vim para julgar o mundo pois isto se refere ao mundo presente o outro ao mundo vindouro Assim como também onde está escrito que na segunda vinda de Cristo Mt 1928 vós que me seguistes na regeneração quando o Filho do homem se sentar no trono de sua glória vós também vos sentareis em doze tronos julgando as doze tribos de Israel Nesse caso se enquanto Cristo estava na terra não tinha nenhum reino neste mundo qual foi o fim de sua primeira vinda Foi para restaurar sob a autoridade de Deus mediante um novo pacto aquele Reino que era seu pelo antigo pacto e havia sido interrompido pela rebelião dos israelitas com a eleição de Saul Para fazêlo devia pregar a eles que ele era o Messias isto é o rei a eles prometido pelos profetas e oferecerse em sacrifício pelos pecados daqueles que pela fé deviam submeterselhe E caso a nação em geral o recusasse chamar a sua obediência aqueles de entre os gentios que o acreditassem De modo que há duas partes da missão de nosso Salvador durante sua estada na terra Uma é proclamarse a si mesmo como Cristo a outra é pelo ensino e pelo obrar de milagres persuadir e preparar os homens a viverem de maneira a tornaremse merecedores da imortalidade que os crentes iriam gozar no tempo em que ele viesse em majestade para tomar posse do Reino de seu Pai E é por isso que a época de sua pregação é muitas vezes por ele mesmo chamada a Regeneração o que não é propriamente um reino nem portanto uma licença para negar obediência aos magistrados então existentes pois ele ordenoulhes que obedecessem aos que se sentavam na cadeira de Moisés e que pagassem tributos a César mas única mente um adiantamento do Reino de Deus que estava para vir dado àqueles a quem Deus havia concedido a graça de serem seus discípulos e de nele acreditarem É por esta razão que dos piedosos se diz estarem já no Reino da Graça enquanto naturalizados naquele Reino celeste Até aqui por conseguinte nada foi feito ou ensinado por Cristo que tenda a diminuir o direito civil dos judeus ou de César Pois no que diz respeito ao Estado em que nessa época os judeus viviam tanto os que governavam como os que eram governados esperavam a vinda do Messias e do Reino de Deus o que lhes teria sido impossível se suas leis o proibissem quando viesse de se manifestar e se dar a conhecer Assim dado que ele nada fez senão procurar provar que era o Messias pela pregação e pelos milagres ele nada fez contra as leis dos judeus 0 Reino que reclamava só viria num outro mundo Ensinou todos os homens a entretanto obedecerem aos que se sentavam na cadeira de Moisés Permitiulhes que dessem a César o seu tributo e recusou exercer ele mesmo as funções de juiz Como podiam então suas palavras ou ações ser sediciosas ou tenderem para a derrubada do governo civil então existente Mas como Deus havia determinado seu sacrifício a fim de levar seus eleitos de volta à obediência do pacto primitivo usou como meios para fazer que o mesmo se realizasse a malícia e a ingratidão dos judeus E também nada fez de contrário às leis de César Pois embora o próprio Pilatos para contentar os judeus o entregasse para ser crucificado antes de assim fazer declarou abertamente que nele não havia encontrada falta E como justificação de sua condenação não alegou o que os judeus exigiam que ele pretendia ser rei mas simplesmente que ele era rei dos judeus e mau grado seu clamor recusouse a alterála dizendo 0 que está escrito está escrito Quanto à terceira parte de sua missão que era ser rei já mostrei que seu Reino não havia de começar antes da ressurreição Mas então ele será rei não apenas enquanto Deus pois nesse sentido ele já é rei e sempre o será de toda a terra em virtude de sua onipotência mas também peculiarmente rei de seus eleitos em virtude do pacto que eles com ele fazem no batismo E é por isso que nosso Salvador diz Mt 1928 que seus apóstolos se sentarão em doze tronos julgando as doze tribos de Israel quando o Filho do homem se sentar em seu trono em sua glória Com o que quer dizer que reinará em sua humana natureza E em Mt 16270 Filho do homem virá na glória de seu Pai com seus anjos e então recompensará a cada homem conforme seus atos 0 mesmo podemos ler em Mc 1326 1462 e mais expressamente para o tempo em Lc 2229s Eu vos concedo um Reino tal como meu Pai mo concedeu a mim para que possais comer e beber à minha mesa em meu reino e sentarvos em tronos julgando as doze tribos de Israel Pelo que fica manifesto que o Reino de Cristo a ele concedido por seu Pai não há de chegar antes que o Filho do homem venha em glória e faça de seus apóstolos os juízes das doze tribos de Israel Mas aqui alguém pode perguntar dado não haver casamento no Reino do Céu se então os homens poderão comer e beber de que comida pode tratarse nessa passagem Isto é explicado por nosso Salvador quando diz Jo 627 Não trabalheis pela comida que perece mas por aquela comida que dura uma vida eterna e que o Filho do homem vos dará Assim comer à mesa de Cristo significa comer da árvore da vida quer dizer gozar da imortalidade no Reino do Filho do homem Passagens estas juntamente com muitas outras pelas quais se torna evidente que o Reino de nosso Salvador será por ele exercido em sua humana natureza Por outro lado ele não será então rei de maneira alguma senão como subordinado ou vicerei de Deus Pai como Moisés o era no deserto e os Sumos Sacerdotes o eram antes do reinado de Saul e os reis depois disso Porque uma das profecias relativas a Cristo é que ele seria semelhante a Moisés quanto ao cargo Eu erguerei para eles um profeta disse o Senhor Dt 1818 de entre seus irmãos como para vós e porei minhas palavras em sua boca e esta semelhança com Moisés se manifesta também nas próprias ações de nosso Salvador no tempo que passou na terra Pois tal como Moisés escolheu os doze príncipes das tribos para governarem abaixo dele assim também nosso Salvador escolheu doze apóstolos que se sentarão em doze tronos e julgarão as doze tribos de Israel E tal como Moisés autorizou setenta anciãos a receber o Espírito de Deus e a profetizar perante o povo isto é conforme já disse antes a falarlhe em nome de Deus assim também nosso Salvador ordenou setenta discípulos para pregarem seu Reino e a salvação de todas as nações E tal como quando apresentaram a Moisés uma queixa contra os setenta que profetizavam no acampamento de Israel e ele os justificou dizendo que nisso eles estavam manifestando obediência a seu governo assim também nosso Salvador quando São João foi queixarselhe de um certo homem que exorcizava os demônios em seu nome ele o justificou de tal fato dizendo Lc 950 Não lho proíbas pois quem não está contra nós está do nosso lado Por outro lado nosso Salvador se assemelhou a Moisés na instituição dos sacramentos tanto de admissão no Reino de Deus como de comemoração da libertação dos eleitos de sua miserável condição Tal como os filhos de Israel tinham como sacramento de sua recepção no Reino de Deus antes do tempo de Moisés o rito da circuncisão rito esse que depois de ter sido omitido no deserto voltou a ser restaurado logo que eles chegaram à terra da promissão assim também os judeus antes da vinda de nosso Salvador tinham o rito do batismo isto é de lavar com água todos os que antes eram gentios e haviam abraçado ao Deus de Israel Era este rito que São João Batista usava na recepção de todos os quedavam seus nomes ao Cristo o qual ele pregava já ter chegado a este mundo e nosso Salvador instituiu o mesmo rito como sacramenta a ser dado a todos os que nele acreditavam Qual a causa de onde pela primeira vez derivou o rito do batismo é coisa que não se encontra formalmente expressa nas Escrituras mas pode provavelmente considerarse uma imitação da lei de Moisés respeitante à lepra pela qual se ordenava que o leproso fosse obrigado a afastarse durante algum tempo do acampamento de Israel e se depois desse tempo fosse por um sacerdote considerado curado era readmitido no acampamento depois de uma solene lavagem Pode portanto ter sido este o protótipo da lavagem do batismo mediante a qual os homens que são curados pela fé da lepra do pecado são aceites no seio da Igreja com a solenidade do batismo Há uma outra conjetura feita a partir das cerimônias dos gentios num determinado caso que raramente ocorre e que era o seguinte que quando um homem depois de dado por morto conseguia restabelecerse os outros homens tinham escrúpulo de contatar com ele tal como o teriam de contatar com um fantasma a não ser que ele voltasse a ser contado no número dos homens mediante a lavagem tal como as crianças recémnascidas eram lavadas das impurezas de sua natividade o que constituía uma espécie do novo nascimento Esta cerimônia dos gregos da época em que a Judéia estava sob o domínio de Alexandre e dos gregos seus sucessores é bastante provável que se tenha insinuado na religião dos judeus Mas dado não ser verossímil que nosso Salvador fosse sancionar um rito pagão é mais verossímil que ele tenha origem na cerimônia legal da lavagem depois da lepra Quanto ao outro sacramento o de comer o cordeiro pascal é manifestamente imitado no sacramento da ceia do Senhor na qual o partir do pão e o derramar do vinho trazem à memória nossa libertação da miséria do pecado pela paixão de Cristo tal como comer o cordeiro pascal trazia à memória a libertação dos judeus da escravidão do Egito Assim dado que a autoridade de Moisés era apenas subordinada e que ele era apenas o lugartenente de Deus seguese que Cristo cuja autoridade enquanto homem devia ser idêntica à de Moisés não estava menos subordinado à autoridade de seu Pai 0 mesma se encontra mais manifestamente expresso no fato de ele nos ensinar a orar Pai nosso venha a nós u teu Reino e Porque teu é o Reino o Poder e a Glória e por se dizer que ele virá na glória de seu Pai e pelo que diz São Paulo 1 Cor 1524 então virá o fim quando ele terá entregue o Reino de Deus Pai e por muitas outras passagens inteiramente expressas Portanto nosso Salvador tanto no ensinar quanto no reinar representa como o fez Moisés a pessoa de Deus ao qual desse momento em diante mas n9 antes se chama o Pai e continuando a ser uma e a mesma substância é uma pessoa enquanto representado por Moisés e uma outra pessoa enquanto representado por seu Filho o Cristo Porque sendo pessoa algo relativo a um representante é conseqüência da pluralidade de representantes que haja uma pluralidade de pessoas embora de uma e a mesma substância CAPÍTULO XLII Do poder eclesiástico Para compreender o que é o poder eclesiástico e a quem pertence é preciso fazer uma separação no tempo desde a Ascensão de nosso Salvador dividindoo em duas partes uma antes da conversão dos reis e homens possuidores do poder civil e a outra depois de sua conversão Pois demorou muito depois da Ascensão antes que qualquer rei ou soberano civil abraçasse e publicamente autorizasse o ensino da religião cristã Quanto a esse tempo intermediário é manifesto que o poder eclesiástico pertencia aos apóstolos e depois destes àqueles que haviam sido por eles ordenados para pregar o Evangelho e converter os homens ao cristianismo assim como para guiar os convertidos no caminho da salvação Depois destes o poder foi por sua vez entregue aos que eles ordenaram o que era feito mediante a imposição das mãos sobre os que eram ordenados pelo que se significava a transmissão do Espírito Santo ou Espírito de Deus àqueles a quem ordenavam ministros de Deus para ampliar seu reinado Assim a imposição das mãos não era outra coisa senão o selo de sua missão de pregar a Cristo e ensinar sua doutrina e a transmissão do Espírito Santo através dessa cerimônia da imposição das mãos era uma imitação do que havia feito Moisés Porque Moisés usou a mesma cerimônia com seu ministro Josué conforme lemos no Deuteronômio 349 E Josué filho de Nun estava cheio do espírito da sabedoria porque Moisés havia posto suas mãos sobre ele Portanto nosso Salvador entre a Ressurreição e a Ascensão deu seu Espírito aos apóstolos primeiro soprando sobre eles e dizendo Jo 2022 recebei o Espirito Santo e depois da Ascensão At 22s enviando sobre eles um poderoso vento e afiadas línguas de fogo e não pela imposição das mãos tal como Deus não pôs suas mãos sobre Moisés e seus apóstolos transmitiram depois o mesmo Espírito pela imposição das mãos como Moisés fez com Josué Fica por aqui manifesto com quem permaneceu continuamente o poder eclesiástico naqueles primeiros tempos em que não havia qualquer Estado cristão com os que receberam esse poder dos apóstolos pela sucessiva imposição das mãos Temos portanto aqui a pessoa de Deus nascendo pela terceira vez Pois tal como Moisés e os Sumos Sacerdotes eram os representantes de Deus no Antigo Testamento e também nosso Salvador na qualidade de homem durante sua morada na terra assim também o Espírito Santo quer dizer os apóstolos e seus sucessores no encargo de pregar e de ensinar que receberam do Espírito Santo tem desde então sido seu representante Mas uma pessoa conforme já mostrei no capítulo 13 é aquele que é representado tantas vezes quantas for representado Portanto Deus que foi representado isto é personificado três vezes pode propriamente ser considerado como sendo três pessoas embora nem a palavra pessoa nem a palavra trindade lhe sejam atribuídas na Bíblia Sem dúvida São João diz 1 Jo 57 Existem três que dão testemunho no céu o Pai a Palavra e q Espírito Santo e estes três são um só Mas isto não entra em contradição e concorda perfeitamente com a idéia de três pessoas na significação própria de pessoas ou seja os que são representados por outros Pois Deus Pai enquanto representado por Moisés é uma pessoa enquanto representado por seu Filho é outra pessoa e enquanto representado pelos apóstolos e pelos doutores que ensinavam pela autoridade deles recebida é uma terceira pessoa mas aqui cada uma destas pessoas é a pessoa de um e um só Deus No entanto poderia aqui perguntarse do que é que esses três prestam testemunho E São João diznos versículo 11 que eles prestam testemunho de que Deus nos deu a vida eterna em seu Filho Por outro lado se perguntarem onde se manifesta esse testemunho a resposta é fácil pois ele é provado pelos milagres que Deus realizou primeiro através de Moisés depois através de seu próprio Filho e por último através dos apóstolos que haviam recebido o Espírito Santo todos estes em seu tempo representaram a pessoa de Deus e ou profetizaram ou pregaram a Jesus Cristo Quanto aos apóstolos era do caráter do apostolado no caso dos doze primeiros e grandes apóstolos prestar testemunho de sua ressurreição 0 que aparece expresso no fato de São Pedro quando ia ser escolhido um novo apóstolo para o lugar de Judas Iscariote usar estas palavras At 121 s Destes homens que nos acompanharam todo o tempo que Jesus nosso Senhor esteve entre nós desde o batismo de João até ao próprio dia em que foi arrebatado de entre nós deve ser ordenado um para conosco ser testemunha de sua ressurreição Palavras que devem ser interpretadas como a prestação de testemunho de que fala São João Na mesma passagem vem referida uma outra trindade das testemunhas na terra Pois ele diz vers 8 que há três que prestam testemunho na terra o espírito a água e o sangue e estes três coincidem em um só Quer dizer as graças do Espírito de Deus e os dois sacramentos o batismo e a ceia do Senhor todos os quais coincidem no testemunho para garantir a vida eterna às consciências dos crentes testemunho do qual ele disse versículo 10 Aquele que crê no Filho do homem tem em si mesmo sua própria testemunha Nesta trindade na terra a unidade não é a da coisa porque o espírito a água e o sangue não são a mesma substância embora dêem o mesmo testemunho Mas na trindade do céu as pessoas são as pessoas de um só e mesmo Deus embora representado em três momentos e ocasiões diferentes Concluindo e na medida em que tal pode ser diretamente tirado das Escrituras a doutrina da trindade é em substância a seguinte Deus que é sempre um e o mesmo foi a pessoa representada por Moisés a pessoa representada por seu Filho encarnado e a pessoa representada pelos apóstolos Enquanto representado pelos apóstolos o Espírito Santo pelo qual eles falavam é Deus enquanto representado por seu Filho que era Deus e homem o Filho é esse Deus enquanto representado por Moisés e pelos Sumos Sacerdotes o Pai quer dizer o pai de nosso Senhor Jesus Cristo é esse Deus De onde podemos inferir a razão por que os nomes Pai Filho e Espírito Santo significando a divindade nunca são usados no Antigo Testamento porque são pessoas isto é recebem seus nomes do fato de representarem o que só era possível depois de diversos homens terem representado a pessoa de Deus no governo ou direção de outros homens sob sua autoridade Vemos assim como o poder eclesiástico foi transmitido aos apóstolos por nosso Salvador e como eles foram a fim de melhor poderem exercer esse poder imbuídos do Espírito Santo que portanto é às vezes chamado no Novo Testamento paracletus que significa assistente alguém chamado em ajuda embora seja geralmente traduzido como consolador Passemos agora a examinar o próprio poder o que era e sobre quem era exercido 0 Cardeal Belarmino em sua terceira controvérsia geral tratou um grande número de questões relativas ao poder eclesiástico do Papa de Roma e começa com a seguinte se ele deveria ser monárquico aristocrático ou democrático Sendo todas estas espécies de poder soberanas e coercitivas Mas toda a disputa seria em vão se se verificasse que não lhes foi deixado por nosso Salvador qualquer espécie de poder coercitivo mas apenas o poder de proclamar o Reino de Cristo e de persuadir os homens a submeteremse lhe e através de preceitos e bons conselhos ensinar aos que se submeteram o que devem fazer para serem recebidos no Reino de Deus quando ele chegar e que os apóstolos e outros ministros do Evangelho são apenas nossos professores e não nossos comandantes e que seus preceitos não são leis mas apenas salutares conselhos Já mostrei no capítulo anterior que o Reino de Cristo não é deste mundo portanto seus ministros não podem a não ser que sejam reis exigir obediência em seu nome Pois se o rei supremo não tiver seu poder real neste mundo por que autoridade pode ser exigida obediência a seus funcionários Tal como meu Pai me enviou assim disse nosso Salvador assim também eu vos envio Mas nosso Salvador foi enviado para persuadir os judeus a voltarem para o Reino de seu Pai e os gentios a aceitaremno e não para reinar em majestade nem tampouco como lugartenente de seu Pai até ao dia do Juízo Q tempo que vai desde a Ascensão até à ressurreição geral não é chamado um reinado e sim uma regeneração isto é uma preparação dos homens para a segunda e gloriosa vinda de Cristo no dia do juízo Como se vê pelas palavras de nosso Salvador Mt 1928 Pós que me seguistes na regeneração quando o Filho do homem se sentar no trono de sua glória também vós vos sentareis em doze tronos E nas de São Paulo Ef 615 Tendo vossos pés calçados com a preparação do Evangelho da paz O que é comparado por nosso Salvador com a pesca isto é com ganhar os homens para a obediência não pela coerção e pela punição mas pela persuasão por isso ele não disse aos apóstolos que faria deles outros tantos Nemrods ou caçadores de homens e sim pescadores de homens Também é comparado com a levedura com a sementeira e com a multiplicação de uma semente de mostarda comparação que exclui qualquer compulsão não é portanto possível que nesse tempo haja um verdadeiro reinado A obra dos ministros cristãos é a evangelização isto é a proclamação de Cristo e a preparação de sua segunda vinda tal como a evangelização de São João Batista era uma preparação para a primeira vinda Por outro lado a missão dos ministros de Cristo neste mundo é levar os homens a crer e ter fé em Cristo Mas a não tem qualquer relação ou dependência com a coerção e a autoridade mas apenas com a certeza ou probabilidade de argumentos tirados da razão ou de alguma coisa em que já se acredita Portanto os ministros de Cristo neste mundo não recebem desse título qualquer poder para punir alguém por não acreditar ou por contradizer o que dizem isto é o título de ministros cristãos não lhes dá o poder de punir a esses Mas se tiverem poder civil soberano por instituição política nesse caso podem sem dúvida legitimamente punir qualquer contradição de suas leis E São Paulo disse expressamente sobre si mesmo e os outros pregadores do Evangelho Nós não temos domínio sobre vossa fé somos os ajudantes de vossa alegria Uma outra prova de que os ministros de Cristo neste mundo não têm o direito de comandar pode ser inferida da autoridade legítima que Cristo conferiu a todos os príncipes tanto os cristãos como os infiéis Diz São Paulo Cot 320 Os filhos obedecerão aos pais em todas as coisas pois isso muito agrada ao Senhor E no versículo 22 Os servos obedecerão a seus senhores de acordo com a carne não trabalhando apenas debaixo de olho para agradarlhes mas com simplicidade de coração por temor a Deus Isto se diz daqueles cujos senhores são infiéis sendo mesmo assim obrigados a obedecerlhes em todas as coisas Por outro lado a respeito da obediência aos príncipes Rom 13 primeiros 6 versículos São Paulo exorta a sujeitarse aos altos poderes dizendo que todo poder é ordenado por Deus e que devemos sujeitarnos a eles não apenas por medo de incorrer em sua ira mas também por imperativo da consciência E São Pedro diz 1 Pdr 213ss Submeteivos a todas as ordens do homem em nome do Senhor quer seja para com o rei como supremo ou para com governadores como aqueles que por ele foram enviados para castigar os malfeitores e para louvar os que praticam o bem porque é essa a vontade de Deus E de novo São Paulo Ti 31 Lembrai aos homens que se sujeitem aos príncipes e poderes e obedeçam aos magistrados Esses príncipes e poderes de que São Pedro e São Paulo falam aqui eram todos infiéis logo muito mais devemos nós obedecer aos que são cristãos a quem Deus conferiu um poder soberano sobre nós Nesse caso como podemos ser obrigados a obedecer a qualquer ministro de Cristo se ele nos ordenar que façamos alguma coisa contrária às ordens do rei ou outro representante soberano do Estado de que somos membros e pelo qual esperamos ser protegidos Portanto é manifesto que Cristo não deu qualquer autoridade para comandar os outros homens a seus ministros neste mundo a não ser que eles estejam também investidos de autoridade civil Mas poderia objetarse e se um rei ou um senado ou qualquer outra pessoa soberana nos proibisse acreditar em Cristo Ao que respondo que essa proibição não teria efeito algum porque a crença e a descrença nunca seguem as ordens dos homens A fé é uma dádiva de Deus que o homem é incapaz de dar ou tirar por promessas de recompensa ou ameaças de tortura Mas se além disso se perguntar E se nos for ordenado por nosso príncipe legítimo que digamos com nossa boca que não acreditamos devemos obedecer a essa ordem A afirmação com a boca é apenas uma coisa externa não mais do que qualquer outro gesto mediante o qual manifestamos nossa obediência o que qualquer cristão mantendose em seu coração firmemente fiel à fé de Cristo tem a mesma liberdade de fazer que o profeta Eliseu concedeu a Naaman o sírio Naaman estava em seu coração convertido ao Deus de Israel pois declarou 2 Rs 517 De ora em diante teu servo não fará oferendas ou sacrifícios a outros deuses senão ao Senhor E nesta coisa o Senhor perdoa a seu servo que quando meu amo vai à casa de Rimmon para o culto e se apoia em minha mão eu me inclino na casa de Rimmon quando eu me inclino na casa de Rimmon o Senhor perdoa a seu servo nesta coisa 0 que o profeta aprovou e lhe disse dai em paz Em seu coração Naaman era crente mas ao inclinar se perante o ídolo Rimmon negava efetivamente o verdadeiro Deus tanto como se o houvesse feito com seus lábios Mas nesse caso o que devemos responder ao que disse nosso Salvador A quem me negar diante dos homens eu negarei diante de meu Pai que está no céu Podemos dizer que tudo aquilo que um súdito como era o caso de Naaman é obrigada a fazer em obediência a seu soberano desde que o não faça segundo seu próprio espírito mas segundo as leis de seu país não é uma ação propriamente sua e sim de seu soberano e neste caso não é ele quem nega Cristo perante os homens mas seu governante e as leis de seu país E se alguém acusar esta doutrina de incompatibilidade com o verdadeiro e autêntico cristianismo perguntarlheei se acaso houver em qualquer Estado cristão um súdito que intimamente em seu coração seja da religião maometana a quem seu soberano ordene que esteja presente no serviço divino da Igreja cristã e isso sob pena de morte se nesse caso ele pensa que esse maometano é em sã consciência obrigado a sofrer a morte por essa causa em vez de obedecer às ordens de seu príncipe legítimo Se ele disser que é melhor sofrer a morte estará autorizando todos os particulares a desobedecerem a seus príncipes em defesa de sua religião seja esta verdadeira ou falsa se disser que deve obedecer estará permitindo a si mesmo aquilo que nega ao outro contrariamente às palavras de nosso Salvador Tudo o que quiseres que os outros te façam deves fazêlo a eles e contrariamente à lei de natureza que é a indubitável e eterna lei de Deus Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti Mas então o que devemos dizer sobre aqueles mártires acerca dos quais lemos na história da Igreja Que eles desperdiçaram inutilmente suas vidas Para responder a isto é preciso estabelecer uma distinção quanto às pessoas que perderam a vida por esse motiva das quais algumas receberam a vocação de pregar e professar abertamente o Reino de Cristo enquanto outras não receberam essa vocação nem lhes foi exigido nada mais além de sua própria fé As da primeira espécie caso lhes tenha sido dada a morte por prestarem testemunho sobre o fato de Jesus se ter erguida de entre os mortos foram verdadeiros mártires Porque um mártir conforme a verdadeira definição da palavra é uma testemunha da ressurreição de Jesus o Messias papel que só pode ser desempenhado pelos que com ele conviveram na terra e o viram depois de assim se ter erguido Pois é preciso que uma testemunha tenha visto o que vai atestar caso contrário seu testemunho não serve E que só esses podem propriamente ser chamados mártires de Cristo fica manifesto nas palavras de São Pedro Atos 121s Qualquer desses homens que nos tiver acompanhado todo o tempo em que Jesus nosso Senhor andou entre nós desde o batismo de João até ao próprio dia em que nos foi arrebatado deve ser ordenado como mártir isto é como testemunha de sua ressurreição juntamente conosco E aqui deve salientarse que para ser testemunha da verdade da ressurreição de Cristo quer dizer da verdade deste artigo fundamental da religião cristã que Jesus era o Cristo é preciso serse um discípulo que tenha convivido com ele e o tenha visto antes e depois de sua ressurreição Portanto é preciso serse um de seus discípulos originais e os que tal não foram podem testemunhar apenas que seus antecessores o disseram logo não passam de testemunhas dos testemunhos de outrem e são apenas mártires segundos ou mártires das testemunhas de Cristo Aquele que para sustentar qualquer doutrina que ele próprio tenha tirado da história da vida de nosso Salvador e dos Atos ou Epístolas dos apóstolos ou na qual acredite por aceitar a autoridade de um particular se opuser às leis e à autoridade do Estado civil está muito longe de ser um mártir de Cristo ou um mártir de seus mártires Há apenas um artigo que se alguém morrer por ele merece nome tão honroso e esse artigo é que Jesus é o Cristo quer dizer que ele nos redimiu e que voltará para nos dar a salvação e a vida eterna em seu glorioso reino Não se exige morrer por qualquer dogma que sirva a ambição ou as vantagens do clero e não é a morte da testemunha e sim o próprio testemunho que faz o mártir porque a palavra significa simplesmente o homem que presta testemunho quer seja ou não condenado à morte por causa desse testemunho E também aquele que não foi enviado para pregar este artigo fundamental mas assume tal tarefa por sua própria autoridade pessoal embora seja uma testemunha e consequentemente um mártir quer primariamente de Cristo quer secundariamente de seus apóstolos discípulos ou seus sucessores não é obrigado a sofrer a morte por essa causa pois não foi chamado a tal e portanto tal não lhe é exigido e também não deverá queixarse se perder a recompensa que espera de quem nunca lhe confiou tal missão Portanto não pode ser mártir nem do primeiro nem do segundo grau quem não tiver recebido autorização para pregar a Cristo regressado na carne quer dizer ninguém a não ser os que são enviados a converter os infiéis Porque ninguém é testemunha para quem já acredita e portanto não precisa de testemunhas mas apenas para quem nega ou duvida ou de tal jamais ouviu falar Cristo enviou seus apóstolos assim como seus setenta discípulos com autorização para pregar não enviou todos os crentes E enviouos aos incréus Enviovos disse ele como ovelhas entre os lobos não como ovelhas entre outras ovelhas Por último nenhum dos pontos de sua missão conforme se encontram expressamente estabelecidos pelo Evangelho implica qualquer espécie de autoridade sobre a congregação Temos em primeiro lugar Mt 10 que os doze apóstolos foram enviados às ovelhas desgarradas da casa de Israel e ordenouselhes pregarem que o Reino de Deus estava próximo Ora em sentido original pregar é aquele ato que um pregoeiro ou um arauto ou outro funcionário costuma praticar publicamente ao proclamar um rei E um pregoeiro não tem direito de comandar ninguém Além disso os setenta discípulos foram enviados Lc 102 como lavradores não como senhores da colheita e eram obrigados versículo 9 a dizer 0 Reino de Deus chegou até vós Entendese aqui por Reino não o Reino da Graça mas o Reino da Glória pois eles eram obrigados a anunciar vers 11 àquelas cidades que recusavam recebêlos como ameaça que tal dia seria mais tolerável para Sodoma do que para uma tal cidade Além disso nosso Salvador disse a seus discípulos que procuravam prioridade de lugar Mt 2028 que sua missão era ajudar a vinda do Filho do homem não ser ajudados mas ajudar Os pregadores não têm poder magistral apenas poder ministerial Que não sejais chamados mestres disse nosso Salvador Mt 2310 pois só um é vosso mestre e é Cristo Outro ponto de sua missão é ensinar a todas as nações como se vê em hlt 2819 e em Me 1615 Ide pelo mundo inteiro e pregai o evangelho a todas as criaturas Portanto ensinar e pregar são a mesma coisa Porque quem proclama a vinda de um rei precisa ao mesmo tempo dar a conhecer por que direito ele vem se se pretender que os homens se lhe submetam Como São Paulo fez com os judeus de Tessalônica quando durante três sábados argumentou com eles sobre as Escrituras manifestando e alegando que Cristo teve necessariamente que sofrer e ressurgir de entre os mortos e que este Jesus é o Cristo Mas ensinar com base no Antigo Testamento que Jesus era o Cristo quer dizer rei e ressurgiu de entre os mortos não é o mesmo que dizer que os homens têm obrigação depois de têlo acreditado de obedecer aos que lho dizem contra as leis e as ordens de seus soberanos mas apenas que agirão sabiamente os que esperarem a vinda futura de Cristo com paciência e fé e conservando sua obediência aos magistrados atuais Outro ponto de sua missão é batizar em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo 0 que é o batismo É mergulhar na água Mas o que é mergulhar alguém na água em nome de alguma coisa 0 significado destas palavras do batismo é o que se segue Aquele que é batizado é mergulhado ou lavado como sinal de sua transformação num novo homem e num súdito leal daquele Deus cuja pessoa era representada nos tempos antigos por Moisés e os Sumos Sacerdotes quando reinava sobre os judeus e de Jesus Cristo seu Filho Deus e homem que nos redimiu e em sua humana natureza representará a pessoa de seu Pai em seu reino eterno após a ressurreição e como sinal de aceitação a doutrina dos apóstolos os quais ajudados pelo Espírito do Pai e do Filho foram designados como guias para nos levar até esse reino pelo único e seguro caminho para lá Dado que esta é nossa promessa de batismo e dado que a autoridade dos soberanos terrenos não deverá ser derrubada antes do dia do juízo o que é expressamente afirmado por São Paulo 1 Cor 1522ss quando diz Tal como em Adão todos morrem assim também em Cristo todos serão revivificados Mas cada um em sua ordem tendo Cristo os primeiros frutos e depois os que são de Cristo em sua vinda depois vem o fim quando nos será entregue o Reino de Deus Pai depois de ele ter derrubado todo mando todo poder e toda autoridade é manifesto que no batismo não constituímos acima de nós qualquer autoridade encarregada de dirigir nossas ações externas nesta vida apenas prometemos tomar a doutrina dos apóstolos como guia no caminho da vida eterna O poder da remissão e retenção dos pecados também chamado o poder de libertar e obrigar e às vezes as chaves do Reino dos Céus é uma conseqüência da autoridade para batizar e para recusar batizar Porque o batismo é o sacramento de submissão dos que serão recebidos no Reino de Deus quer dizer na vida eterna quer dizer da remissão dos pecados Pois tal como a vida eterna se perde quando o pecado é cometido assim também ela é recuperada com a remissão dos pecados dos homens A finalidade do batismo é a remissão dos pecados e por isso São Pedro quando os que foram convertidos por seu sermão do dia de Pentecostes lhe perguntaram o que deviam fazer aconselhouos a arrependeremse e deixaremse batizar em nome de Jesus para a remissão dos pecados Portanto dado que batizar é declarar a recepção dos homens no Reino de Deus e recusar dar o batismo é declarar sua exclusão seguese que o poder de declarálos expulsos ou admitidos nele foi dado aos mesmos apóstolos e a seus substitutos e sucessores Assim depois de nosso Salvador soprar sobre eles dizendo Jo 2022 recebei o Espírito Santo acrescenta no versículo seguinte Seja quem for que por vós tenha remido seus pecados estes estarão remidos e seja quem for cujos pecados por vós sejam retidos eles estarão retidos Com estas palavras não é conferida a autoridade de perdoar ou de reter os pecados simples e absolutamente da maneira como Deus os perdoa ou os retém pois conhece o coração do homem e a verdade de sua penitência e conversão mas apenas condicionalmente ao penitente E este perdão ou absolvição caso o absolvido tenha apenas um arrependimento fingido fica imediatamente sem qualquer outro ato ou sentença do absolvente nulo e sem qualquer efeito para a salvação sendo pelo contrário uma agravante do pecado Portanto os apóstolos e seus sucessores devem guiarse apenas pelos sinais exteriores do arrependimento e se estes se manifestarem têm autoridade para negar a absolvição mas se estes não se manifestarem não têm autoridade para absolver 0 mesmo pode também verificarse no batismo pois a um judeu convertido ou a um gentio os apóstolos não têm poder para negar o batismo nem têm o de concedêlo a um impenitente Mas dado que ninguém é capaz de discernir a verdade do arrependimento de outrem a não ser pelos sinais exteriores de suas palavras e ações que estão sujeitas à hipocrisia surge uma nova questão quem pode ser constituído como juiz desses sinais Questão que é decidida pelo nosso próprio Salvador Se teu irmão diz ele pecar contra ti vai e falalhe de sua falta a sós entre ti e ele se ele te ouvir terás conquistado a teu irmão Mas se ele não quiser ouvirte leva contigo mais um ou dois E se ele recusar ouvi tos vai dizêlo à Igreja e se ele recusar ouvir a Igreja deixa que ele seja para ti como um pagão e um publicano Por onde fica manifesto que a decisão acerca da verdade do arrependimento não compete a qualquer homem mas à Igreja isto é à assembléia dos fiéis ou àqueles que têm autoridade para ser seus representantes Mas além da decisão é também necessário que seja pronunciada uma sentença e isto compete sempre ao apóstolo ou a algum pastor da Igreja como prolocutor do que nosso Salvador fala no versículo 18 Tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desatares na terra será desatado no céu E é conforme a isto a prática de São Paulo quando diz 1 Cor 53ss Porque eu em verdade ausente de corpo mas presente em espírito já determinei como se estivesse presente em relação àquele que praticou tal ato em nome de nosso Senhor Jesus Cristo quando estamos reunidos e de meu espírito com o poder de nosso Senhor Jesus Cristo entregar esse a Satanás quer dizer expulsálo da Igreja como alguém cujos pecados não foram perdoados Neste caso foi Paulo quem pronunciou a sentença mas primeiro a assembléia ouviu a causa dado que São Paulo estava ausente e foi ela que ditou a condenação Mas no mesmo capítulo vers 11 e 12 o julgamento de um tal caso é mais expressamente atribuído à assembléia Mas agora vos escrevi que não aceitásseis a companhia de alguém que seja chamado irmão mas seja um fornicador etc que com tal pessoa não comêsseis Pois que me importa julgar os que estão fora Não julgais vós os que estão fora Portanto a sentença mediante a qual alguém foi expulso da Igreja foi pronunciada pelo apóstolo ou pastor mas o julgamento acerca do mérito da causa competiu à Igreja quer dizer dado que isso foi antes da conversão dos reis e homens que tinham o poder soberano do Estado à assembléia dos cristãos residentes na mesma cidade em Corinto era a assembléia dos cristãos de Corinto Esta parte do poder das chaves mediante a qual os homens são expulsos do Reino de Deus é o que se chama excomunhão E excomungar no original é aposynágogon poieiñ expulsar da Sinagoga quer dizer expulsar do lugar do serviço divino Palavra esta derivada do costume dos judeus de expulsar de suas sinagogas os que eram considerados quanto à conduta ou à doutrina contagiosos do mesmo modo que os leprosos pela lei de Moisés eram separados da congregação de Israel até ao momento em que fossem declarados sãos pelo sacerdote 0 uso e efeito da excomunhão no tempo em que ainda não era reforçada pelo poder civil limitavase a isto os que não eram excomungados deviam evitar a companhia dos que o eram Não bastava considerálos como pagãos que nunca tivessem sido cristãos pois com estes podiase comer e beber o que não se podia com as pessoas excomungadas conforme se vê nas palavras de São Paulo em que ele diz 1 Cor 59ss que antes lhes havia proibido a companhia dos fornicadores no entanto como isso não seria possível sem sair do mundo limitou a regra aos fornicadores e outras pessoas viciosas que fossem dos irmãos com tal pessoa disse ele não se devia andar de companhia nem comer E isto não é mais do que o que disse nosso Salvador Mt 1817 Que ele seja para ti como um pagão e um publicano Porque os publicanos que eram os colhedores e recebedores das rendas do Estado eram tão odiados e detestados pelos judeus que eram obrigados a pagar que publicano e pecador eram entre eles tomados pela mesma coisa Tanto assim era que quando nosso Salvador aceitou o convite do publicano Zaqueu embora fosse com o fim de convertêlo isso lhe foi assacado como um crime Assim quando a pagão nosso Salvador acrescentou publicano proibiu efetivamente de se comer com uma pessoa excomungada Quanto a proibilos de entrar em suas sinagogas e lugares de reunião não tinham poder para fazêlo a não ser como donos do lugar quer como cristãos quer como pagãos E como todos os lugares pertenciam de direito ao domínio do Estado tanto o excomungado como o que nunca tinha sido batizado podia lá entrar com permissão do magistrado civil Como por exemplo Paulo antes de sua conversão entrou em suas sinagogas de Damasco para prender cristãos homens e mulheres e leválos a ferros para Jerusalém com permissão do Sumo Sacerdote 0 que mostra que para um cristão que se tornasse apóstata num lugar onde o poder civil perseguisse ou não apoiasse a Igreja os efeitos da excomunhão nada tinham capaz de causar prejuízo ou de inspirar terror Nenhum terror devido a sua descrença e nenhum prejuízo porque com isso voltavam a gozar do favor do mundo e no mundo futuro não iriam ficar em situação pior do que os que nunca tinham acreditado 0 prejuízo era mais para a Igreja pois com isso provocava os que expulsava a um mais livre exercício de sua maldade Portanto a excomunhão só tinha efeito sobre os que acreditavam que Jesus Cristo havia de voltar em glória para reinar para sempre e para julgar tanto os vivos como os mortos e que portanto ele recusaria a entrada em seu reino àqueles cujos pecados fossem retidos quer dizer aos que fossem excomungados pela Igreja Por isso São Paulo chamou à excomunhão uma entrega da pessoa excomungada a Satanás Porque além do Reino de Cristo todos os outros reinos após o juízo final ficarão incluídos no Reino de Satanás Era disto que o crente tinha medo quando ameaçado de excomunhão quer dizer de uma situação em que seus pecados não seriam perdoados De onde podemos concluir que a excomunhão no tempo em que a religião cristã não era autorizada pelo poder civil era usada apenas como correção dos costumes e não dos erros de opinião Porque se tratava de um castigo que só podia ser sentido pelos que acreditavam e esperavam o regresso de nosso Salvador para julgar o mundo E os que em tal acreditavam não precisavam para conseguir a salvação de nenhuma outra opinião mas apenas de retidão de vida Existe excomunhão por injustiça como em Mt 18 Se teu irmão te ofender dizlho em particular e depois com testemunhas e por último dilo à Igreja e se ele então não te obedecer que ele seja para ti como um pagão e um publicano E existe excomunhão por vida escandalosa como em I Cor 511 Se qualquer um que seja chamado irmão for um fornicador ou cobiçoso ou idólatra ou ébrio ou extorsionista com esse não deverás comer Mas para excomungar alguém que aceitasse este fundamento que Jesus era o Cristo por causa de uma diferença de opinião quanto a outros pontos que não implicassem a destruição daquele fundamento não se encontra expressa qualquer autoridade nas Escrituras nem exemplo nos apóstolos É certo que em São Paulo há um texto que parece irem sentido contrário Ti 310 Se um homem é um herege depois da primeira e da segunda admoestação rejeitaio Porque um herege é aquele que sendo membro da Igreja ensina uma opinião pessoal que a Igreja proibiu e é a esse que São Paulo aconselha Tito a rejeitar depois da primeira e da segunda admoestação Mas nesta passagem rejeitar não é o mesmo que excomungar e sim desistir de admoestálo deixandoo sozinho para discutir consigo mesmo como alguém que só por si mesmo pode ser convencido 0 mesmo apóstolo diz 2 Tim 223 para evitar as perguntas néscias e ignorantes sendo que evitar nesta passagem e rejeitar na anterior são ó mesmo no original paraitou e as perguntas néscias podem ser postas de lado sem excomunhão Por outro lado Ti 39 evitar as perguntas néscias era no original penstaso pôlas de lado e é o equivalente da palavra rejeitar Não há qualquer outra passagem onde se possa encontrar uma quantidade de matizes suficiente para justificar a expulsão da Igreja de homens fiéis e crentes nos fundamentos apenas por causa de uma própria e singular superestrutura que talvez seja devida a uma boa e piedosa consciência Pelo contrário todas essas passagens que ordenam evitar tais disputas são escritas como lição para os pastores como era o caso de Timóteo e de Tito a fim de não inventarem novos artigos de fé decidindo toda e qualquer pequena controvérsia o que obriga os homens a sobrecarregar desnecessariamente a consciência ou os leva a romper sua união com a Igreja Lição essa que os próprios apóstolos aproveitaram muito bem São Pedro e São Paulo embora fosse grande a controvérsia entre eles como podemos ler em Gál 211 nem por isso se expulsaram um ao outro da Igreja Não obstante durante o tempo dos apóstolos houve outros pastores que não a aproveitaram como Diótrefes 3 Jo 9 etc que expulsou da Igreja aqueles que o próprio São João considerava merecedores de nela entrarem devido ao orgulho que tinha de sua preeminência tão cedo foi que a vanglória e a ambição conseguiram entrar na Igreja de Cristo São muitas as condições necessárias para que alguém fique sujeito à excomunhão Em primeiro lugar que seja membro de alguma comunidade quer dizer de alguma assembléia legítima que tenha o poder de julgar a causa pela qual ele deve ser excomungado Porque quando não há comunidade não pode haver excomunhão nem há poder de dar sentença quando não há poder de julgar Daqui se segue que uma Igreja não pode ser excomungada por outra Porque ou ambas têm igual poder de excomungarse uma à outra e neste caso a excomunhão não é disciplina nem ato de autoridade e sim um cisma e uma destruição da caridade Ou então uma é subordinada à outra de modo tal que ambas têm uma só voz caso em que são apenas uma Igreja e a parte excomungada não é mais uma Igreja mas apenas uma quantidade desagregada de pessoas individuais Dado que a sentença de excomunhão comporta um conselho para não andar em companhia nem sequer comer com quem foi excomungado se um príncipe ou uma assembléia soberana for objeto de excomunhão a sentença não tem efeito Porque todos os súditos são obrigados a estar na companhia e presença de seu soberano quando ele assim exigir segundo a lei de natureza e não podem legitimamente expulsálo de qualquer lugar de seu próprio domínio quer sagrado quer profano nem podem abandonar esse domínio sem sua licença e muito menos se ele os chamar a tal honra recusarse a comer com ele Quanto aos outros príncipes e Estados dado que não são parte de uma congregação única não precisam de qualquer sentença alheia para leválos a evitar a companhia do Estado excomungado porque a própria instituição que uniu um grande número de homens numa só comunidade dissociou ao mesmo tempo uma comunidade da outra e assim a excomunhão não é necessária para manter afastados os reis e os Estados nem tem qualquer efeito que não esteja na natureza da própria política a não ser o de instigar os príncipes a fazerem guerra uns aos outros Tampouco tem qualquer efeito a excomunhão de um súdito cristão que obedeça às leis de seu próprio soberano seja cristão ou pagão Porque se ele acreditar que Jesus é o Cristo é porque tem o Espírito de Deus 1 Jo 41 e Deus habita nele e ele em Deus I Jo 415 Ora aquele que tem o Espírito de Deus aquele que habita em Deus aquele em quem Deus habita não pode sofrer qualquer prejuízo com a excomunhão dos homens Portanto quem acredita que Jesus é o Cristo encontrase livre de todos os perigos que ameaçam as pessoas excomungadas Quem em tal não acredita não é cristão Portanto um cristão verdadeiro e autêntico não está sujeito à excomunhão nem tampouco o está o cristão professo até ao momento em que sua hipocrisia se manifeste em sua conduta quer dizer até que seu comportamento se torne contrário à lei de seu soberano que é a regra da conduta e à qual Cristo e seus apóstolos nos ordenaram que nos sujeitássemos Porque a Igreja só pode julgar a conduta através das ações externas ações estas que só podem tornarse ilegítimas quando são contrárias à lei do Estado Se o pai a mãe ou o amo de alguém for objeto de excomunhão os filhos não ficam proibidos de andar em sua companhia ou de comer com eles porque isso seria o mesmo na maior parte dos casos que obrigálos a absolutamente não comer por falta de meios para conseguir comida e o mesmo que autorizálos a desobedecer a seus pais e a seu amo contrariamente aos preceitos dos apóstolos Em resumo o poder de excomunhão não pode ultrapassar os limites que correspondem aos fins em função dos quais os apóstolos e pastores da Igreja receberam sua missão de nosso Salvador missão que não consiste em governar pelo mando e pela coação mas em ensinar e orientar os homens no caminho da salvação no mundo vindouro E tal como um professor de qualquer ciência pode abandonar seu estudante que obstinadamente se recuse a praticar suas regras mas não pode acusálo de injustiça pois ele jamais teve obrigação de obedecerlhe assim também um mestre da doutrina cristã pode abandonar seus discípulos que obstinadamente continuem a levar uma vida pouco cristã mas não pode afirmar que eles procedam mal para com ele pois eles não têm obrigação de obedecerlhe Pois ao mestre que assim se queixe pode aplicarse a resposta que Deus deu a Samuel numa situação idêntica Não foi a ti que eles rejeitaram mas a mim Portanto a excomunhão quando lhe faltar a ajuda do poder civil como é o caso quando um Estado ou príncipe cristão é excomungado por uma autoridade estrangeira não possui qualquer efeito e consequentemente não deveria inspirar terror de espécie alguma 0 nome de fulmen excommunicationis isto é o raio da excomunhão teve origem numa fantasia do bispo de Roma que foi o primeiro a usála de que ele era o rei dos reis tal como os pagãos faziam de Júpiter o rei dos deuses e lhe atribuíram em seus poemas e quadros um raio com o qual subjugou e castigou os gigantes que ousavam negar seu poder Fantasia esta que se baseava em dois erros primeiro que o Reino de Cristo é deste mundo contrariamente às próprias palavras de nosso Salvador Meu Reino não é deste mundo segundo que ele era o vigário de Cristo não apenas em relação a seus próprios súditos mas também em relação a todos os cristãos do mundo para o que não existe nas Escrituras qualquer fundamento e em seu devido lugar se provará precisamente o contrário Quando São Paulo foi a Tessalônica onde havia uma sinagoga dos judeus At 172s entrou como costumava e dirigiuse a eles e durante três sábados discutiu com eles as Escrituras afirmando e alegando que Cristo necessariamente sofreu e voltou a erguerse de entre os mortos e que esse Jesus que ele pregava era o Cristo As Escrituras aqui referidas eram as Escrituras dos judeus quer dizer o Antigo Testamento Os homens a quem ele ia provar que Jesus era o Cristo e que voltara a erguerse de entre os mortos eram todos judeus e já acreditavam que essas Escrituras eram a palavra de Deus Quanto às afirmações de São Paulo uns acreditavam versículo 4 e outros não acreditavam versículo 5 Dado que todos acreditavam nas Escrituras qual era a razão de não acreditarem todos da mesma maneira uns aceitando e outros recusando a interpretação que São Paulo propunha de suas passagens e cada um interpretandoas para si mesmo Era a seguinte São Paulo foi até eles sem estar encarregado de qualquer missão legal e à maneira de alguém que não pretende ordenar mas persuadir 0 que necessariamente tem que ser feito ou por milagres como Moisés fez com os israelitas no Egito para que eles pudessem ver sua autoridade nas obras de Deus ou então por raciocínio a partir das Escrituras já previamente aceites para que eles pudessem ver a verdade de sua doutrina da palavra de Deus Mas quem persuade por raciocínio a partir de princípios escritos torna aquele a quem se dirige um juiz tanto do significado desses princípios como da força das inferências que faz a partir deles Se esses judeus de Tessalônica não o eram quem mais era juiz do que São Paulo alegava sobre as Escrituras Se era São Pauto para que precisava de citar quaisquer passagens para provar sua doutrina Teria sido suficiente dizer Verifico que é assim nas Escrituras quer dizer em vossas leis das quais sou o intérprete enviado por Cristo Portanto não havia ninguém que fosse um intérprete das Escrituras cujas interpretações os judeus de Tessalônica fossem obrigados a aceitar cada um deles podia acreditar ou deixar de acreditar consoante as alegações lhe parecessem concordar ou não concordar com os significados das passagens alegadas E de maneira geral em todos os casos do mundo aquele que pretende provar alguma coisa torna juiz de sua prova aquele a quem dirige seu discurso Quanto ao caso particular dos judeus eles eram obrigados por palavras expressas Dt 17 a aceitar a decisão de todas as questões difíceis e que fosse apresentada pelos sacerdotes e juízes de Israel nesse momento Mas isto aplicase aos judeus que ainda não haviam sido convertidos Para a conversão dos gentios era inútil o recurso às Escrituras nas quais não acreditavam Portanto os apóstolos trabalhavam com a razão a fim de refutar sua idolatria e isto feito para persuadilos a aceitarem a fé em Cristo mediante seu testemunho de sua vida e ressurreição Portanto não podia ainda haver qualquer controvérsia a respeito da autoridade para interpretar as Escrituras dado que enquanto era infiel nenhum homem era obrigado a aceitar qualquer interpretação de quaisquer Escrituras a não ser a interpretação das leis de seu país dada por seu soberano Passemos agora a examinar a própria conversão para ver qual poderia ser a causa de uma tal obrigação Os homens não eram convertidos a coisa alguma a não ser à crença naquilo que os apóstolos pregavam e os apóstolos nada pregavam senão que Jesus era o Cristo quer dizer o rei que havia de salválos e reinar sobre eles eternamente no mundo vindouro E consequentemente que ele não estava morto mas tinha voltado a erguerse de entre os mortos e subido aos céus e havia de voltar um dia para julgar o mundo que também havia de voltar a erguerse para ser julgado e recompensar cada um conforme suas ações Nenhum deles pregava que ele próprio ou qualquer dos outros apóstolos era um intérprete das Escrituras tal que todos os que se tornavam cristãos deviam aceitar sua interpretação como se fosse lei Porque a interpretação das leis faz parte da administração de um reino atual o que não era o caso dos apóstolos Assim eles pregavam tal como todos os outros pastores desde então Deixai que venha o reino e exortavam seus conversos a obedecerem a seus príncipes étnicos do momento 0 Novo Testamento não estava ainda publicado num volume único Cada um dos Evangelistas era intérprete de seu próprio Evangelho e cada apóstolo de sua própria Epístola Quanto ao Antigo Testamento nosso Salvador disse ele mesmo aos judeus Jo 539 Escrutinai as Escrituras pois nelas pensais que tendes a vida eterna e são elas que dão testemunho de mim Se ele não quisesse dizer que eles deviam interpretálas não lhes teria mandado tirar delas a prova de ele ser o Cristo ou as teria interpretado ele mesmo ou os teria remetido para a interpretação dos sacerdotes Quando surgia uma dificuldade os apóstolos e os anciãos da Igreja se reuniam e decidiam o que devia ser pregado e ensinado e como as Escrituras deviam ser interpretadas para o povo mas não tiravam ao povo a liberdade de lêlas e interpretálas ele mesmo Os apóstolos enviavam às igrejas diversas cartas e outros escritos para sua instrução o que teria sido em vão se não as tivessem autorizado a interpretálos isto é a examinar seu significado E tal como acontecia no tempo dos apóstolos assim deve ser também até ao momento em que haja pastores que possam autorizar um intérprete cuja interpretação deva ser geralmente aceite o que só pode acontecer a partir do momento em que os reis são pastores ou os pastores são reis Há dois sentidos em que de um escrito se pode dizer que é canônico Porque cânone significa regra e uma regra é preceito pelo qual se é guiado e dirigido em qualquer espécie de ação Esses preceitos mesmo que sejam dados por um mestre a seu discípulo ou por um conselheiro a seu amigo não deixam de ser cânones porque são regras Mas quando são dados por alguém a quem o que os recebe é obrigado a obedecer esses cânones não são apenas regras mas leis Portanto aqui a questão diz respeito ao poder de transformar em leis as Escrituras que são as regras da fé cristã A parte das Escrituras que se tornou lei em primeiro lugar foram os dez mandamentos escritos nas duas tábuas de pedra e entregues pelo próprio Deus a Moisés e dadas a conhecer por Moisés ao povo Antes desse momento não havia lei de Deus escrita pois ele não havia ainda escolhido nenhum povo para ser seu reino peculiar e assim não tinha dado aos homens nenhuma lei a não ser a lei de natureza quer dizer os preceitos da razão natural escritos no próprio coração de cada homem Destas duas tábuas a primeira encerrava a lei da soberania 1 Que não obedecessem nem honrassem aos deuses das outras nações nos seguintes termos Non habetis Deos alienos coram me isto é Não tereis como deus os deuses que as outras nações adoram mas apenas a mim com o que ficavam proibidos de obedecer e honrar como seu rei e governante a qualquer outro deus que não o que lhes falava nesse momento através de Moisés e posteriormente através do Sumo Sacerdote 2 Que não deviam fazer uma imagem para representálo quer dizer não deviam escolher nem no céu nem na terra qualquer representante saído de sua própria fantasia mas deviam obedecer a Moisés e Aarão a quem ele designara para essa missão 3 Que não invocassem o nome de Deus em vão isto é que não falassem irresponsavelmente de seu rei e não contestassem seu direito nem a missão de Moisés e Aarão seus lugartenentes 4 Que em todo sétimo dia se deviam abster de qualquer labor ordinário empregando seu tempo em honrálo publicamente A segunda tábua encerrava o dever de cada um para com os outros como honrar pai e mãe não matar não cometer adultério não roubar não corromper o julgamento cora falsos testemunhos e por último nem sequer em foro íntimo projetar fazer injúria aos outros Agora a questão é a seguinte Quem deu a essas tábuas escritas a força obrigatória de leis É indubitável que elas foram tornadas leis pelo próprio Deus Mas como uma lei não produz obrigação nem é lei para ninguém a não ser os que a reconhecem como ato de seu soberano como podia o povo de Israel que foi proibido de aproximarse da montanha para ouvir o que Deus disse a Moisés ser obrigado a obedecer a todas aquelas leis que Moisés lhes propunha É certo que algumas delas eram as leis de natureza como todas as da segunda tábua e portanto deviam ser reconhecidas como boas leis não apenas pelos israelitas mas por toda a gente Mas quanto às que eram peculiares aos israelitas como as da primeira tábua permanece de pé a questão salvo que eles se haviam obrigado logo depois de elas lhes terem sido propostas a obedecer a Moisés nas seguintes palavras Ex 2019 Falanos e nós ouvirteemos mas que Deus não nos fale senão morreremos Portanto nesse momento era apenas Moisés e depois dele somente o Sumo Sacerdote que através de Moisés fosse designado por Deus para administrar esse seu reino peculiar quem tinha na terra o poder de fazer dessa curta escritura do decálogo a lei do Estado de Israel E Moisés e Aarão e os Sumos Sacerdotes subseqüentes eram os soberanos civis Portanto a partir de então a canonização ou transformação das Escrituras em lei competia ao soberano civil A lei judicial quer dizer as leis que Deus prescreveu aos magistrados de Israel para dirigir sua administração da justiça e das sentenças ou julgamentos que proferissem nos litígio entre os homens e a lei levítica quer dizer a regra prescrita por Deus relativamente aos ritos e cerimônias dos sacerdotes e levitas todas essas leis foram transmitidas a eles unicamente por Moisés e portanto também só se tornaram leis em virtude da mesma promessa de obediência a Moisés Se essas leis foram escritas ou não o foram mas foram ditadas ao povo por Moisés depois de estar quarenta dias com Deus na montanha de boca em boca não se encontra expresso no texto mas todas elas eram leis positivas e equivalentes às Sagradas Escrituras e tornadas canônicas por Moisés na qualidade de soberano civil Depois que os israelitas chegaram às planícies de Moab em frente a Jericó e estavam prontos para entrar na terra prometida Moisés acrescentou às primeiras leis diversas outras as quais se chamaram portanto o Deuteronômio isto é as Segundas Leis E elas são conforme está escrito DT 291 as palavras do pacto que Deus ordenou a Moisés que fizesse com os filhos de Israel além do pacto que ele fez com eles em Horeb Porque depois de explicar essas primeiras leis no começo do livro do Deuteronômio ele acrescentou outras que começam no capítulo 12 e vão até ao final do capítulo 26 do mesmo livro Esta lei Dt 271 lhes foi ordenado que a escrevessem em grandes pedras emplastradas ao atravessarem o Jordão Esta lei foi também escrita pelo próprio Moisés num livro e entregue nas mãos dos sacerdotes e anciãos de Israel Dt 319 com a ordem de vers 26 colocála ao lado da Arca pois propriamente na Arca nada havia além dos dez mandamentos Foi desta lei que Moisés Dt 1718 ordenou aos reis de Israel que guardassem uma cópia E foi esta lei que depois de durante muito tempo estar perdida voltou a ser encontrada no templo no tempo de Josias tendo por sua autoridade sido aceite como lei de Deus Mas tanto Moisés quando a escreveu como Josias quando a recuperou eram detentores da soberania civil Portanto a partir de então o poder de tornar canônicas as Escrituras era da competência do soberano civil Não houve além deste livro da lei desde o tempo de Moisés até depois do cativeiro qualquer outro livro aceite entre os judeus como lei de Deus Porque os profetas com exceção de alguns poucos viveram durante o tempo do próprio cativeiro e os restantes viveram apenas um pouco antes dele e estavam tão longe de ver suas profecias aceites como leis que suas pessoas eram perseguidas em parte pelos falsos profetas e em parte pelos reis que por estes se deixavam seduzir E mesmo esse livro que foi confirmado por Josias como lei de Deus e com ele toda a história das obras de Deus se perdeu no cativeiro e saque da cidade de Jerusalém como se verifica em Esdr 1421 Tua lei foi queimada portanto ninguém conhece as coisas que foram feitas por ti nem as obras que irão começar E antes do cativeiro entre o tempo em que a lei se perdeu o qual não vem referido nas Escrituras mas pode provavelmente ser considerado o tempo de Roboão quando Sishak rei do Egito se apoderou dos despojos do templo e o tempo de Josias quando voltou a ser encontrada eles não tinham uma lei de Deus escrita e governavam conforme sua própria discrição ou conforme a orientação dos que cada um deles considerava como profetas Podemos daqui inferir que as Escrituras do Antigo Testamento que atualmente possuímos não eram canônicas nem lei para os judeus antes da renovação de seu pacto com Deus quando de seu regresso do cativeiro e da restauração de seu Estado sob Esdras Mas a partir desse tempo passaram a ser consideradas como lei dos judeus e como tais foram traduzidas para o grego pelos setenta anciãos da Judéia colocadas na biblioteca de Ptolomeu em Alexandria e aprovadas como sendo a palavra de Deus Ora dado que Esdras era o Sumo Sacerdote e que o Sumo Sacerdote era seu soberano civil é manifesto que as Escrituras só foram tornadas leis pelo poder civil soberano Podemos verificar nos escritos dos padres que viveram na época anterior à aceitação da religião cristã e sua autorização pelo Imperador Constantino que os livros que atualmente possuímos do Novo Testamento eram considerados pelos cristãos desse tempo com exceção de alguns poucos tão poucos que aos restantes se chamava Igreja católica e a eles hereges como ditames do Espírito Santo e consequentemente como cânone e regra da fé tal era o respeito e elevada opinião em que tinham seus mestres tal como aliás não é pequena de maneira geral a reverência dos discípulos para com seus primeiros mestres quanto a toda espécie de doutrina que deles recebem Portanto não há dúvida que quando São Paulo escrevia às igrejas que havia convertido ou qualquer outro apóstolo ou discípulo de Cristo escrevia aos que haviam aceitado a Cristo eles recebiam esses seus escritos como a verdadeira doutrina cristã Mas nesse tempo em que não era o poder e autoridade do mestre mas a do ouvinte que o levava a aceitálo não eram os apóstolos que tornavam canônicos a seus escritos era cada converso que assim os tornava para si mesmo Mas aqui o problema não diz respeito ao que cada cristão torna lei ou cânone para si mesmo o que ele pode voltar a rejeitar pelo mesmo direito com que o aceitou diz respeito ao que era tornado cânone para eles de modo tal que lhes fosse impossível fazer sem injustiça qualquer coisa contrária a isso Que o Novo Testamento seja canônico neste sentido quer dizer seja lei em qualquer lugar onde a lei do Estado assim não o fez é contrário à natureza da lei Porque uma lei conforme já foi mostrado é a ordem de um homem ou assembléia a quem demos autoridade soberana para fazer as regras que lhe aprouver para direção de nossas ações e para castigarnos quando fazemos alguma coisa contrária às mesmas Portanto quando algum outro homem nos propõe quaisquer outras regras as quais o soberano governante não haja prescrito elas não passam de conselhos e quanto a estes sejam bons ou maus quem é aconselhado pode sempre sem injustiça recusarse a seguilos e quando são contrários às leis já estabelecidas não é possível seguilos sem injustiça por melhores que pareçam ser Digo neste caso não se pode seguilos nem nas ações nem nos discursos com outros homens embora se possa sem por isso merecer censura acreditar nos mestres e desejar terse liberdade para seguir seus conselhos e que estes sejam publicamente aceites como lei Porque a fé interior é por sua própria natureza invisível e consequentemente está isenta de qualquer jurisdição humana ao passo que as palavras e ações que dela derivam na medida em que são faltas a nossa obediência civil constituem injustiça perante Deus e os homens Assim dado que nosso Salvador negou que seu reino fosse deste mundo e dado que ele disse não ter vindo para julgar mas para salvar o mundo ele não nos sujeitou a lei alguma a não ser as do Estado Quer dizer os judeus à lei de Moisés que como disse Mt 5 não veio para destruir mas para realizar e as outras nações às leis de seus diferentes soberanos e todos os homens às leis de natureza o respeito às quais tanto ele como seus apóstolos em sua pregação nos recomendaram como condição necessária para sermos aceites por ele no último dia em seu Reino eterno onde haverá proteção e vida perpétuas Portanto dado que nosso Salvador e seus apóstolos não deixaram novas leis obrigatórias para nós neste mundo e sim uma nova doutrina para prepararnos para o mundo vindouro os livros do Novo Testamento que encerravam essa doutrina até ao momento em que nos foi ordenado que lhes obedecêssemos por aqueles a quem Deus tinha dado poder na terra para serem legisladores não eram cânones obrigatórios ou seja leis mas apenas bons e seguros conselhos para direção dos pecadores no caminho da salvação aos quais cada um pode aceitar ou recusar por sua conta e risco sem injustiça Por outro lado a missão da qual Cristo nosso Salvador encarregou seus apóstolos e discípulos foi a de proclamar seu Reino não presente mas vindouro e ensinar a todas as nações e batizar aos que acreditassem e entrar nas casas dos que os recebessem e quando não fossem recebidos sacudir contra eles a poeira de seus pés mas não invocar o fogo dos céus para destruílos nem obrigálos à obediência pela espada Em tudo isto nada há de poder mas apenas de persuasão Ele enviouos como ovelhas entre lobos não como reis entre seus súditos Eles não tinham a missão de fazer leis mas a de obedecer e ensinar obediência às leis existentes consequentemente não podiam fazer de seus escritos cânones obrigatórios sem a ajuda do poder civil soberano Portanto as Escrituras do Novo Testamento só se tornam lei quando o poder civil legítimo assim as torna E nesse caso o rei ou soberano também faz delas uma lei para si mesmo com o que se sujeita não ao doutor ou apóstolo que o converteu mas ao próprio Deus e a seu Filho Jesus Cristo de maneira tão imediata como o fizeram os próprios apóstolos 0 que pode parecer conferir ao Novo Testamento em relação aos que abraçaram a doutrina cristã a força das leis nos tempos e lugares onde houve perseguições são os decretos que fazem entre si em seus sínodos Porque lemos At 1528 que a fórmula usada no concílio dos apóstolos dos anciãos e da Igreja inteira era a seguinte Pareceu bom ao Espírito Santo e a nós não vos impor um fardo maior do que estas coisas necessárias etc fórmula esta que significa um poder para impor um fardo aos que tinham aceitado sua doutrina Ora impor um fardo a outrem parecia o mesmo que obrigar e assim os atos desse concílio eram leis para todos os que eram cristãos No entanto não eram mais leis do que os outros preceitos como arrependei vos batizaivos guardai os mandamentos acreditai no Evangelho vinde a mim vende tudo o que tens dáo aos pobres e segueme que não eram ordens mas convites e exortações aos membros da cristandade como o de Is 551 Ó tu que tens sede vem até às águas vem e compra vinho e leite sem dinheiro Porque em primeiro lugar o poder dos apóstolos não era diferente do de nosso Salvador o de convidar os homens a aceitar o Reino de Deus o qual eles próprios reconheciam ser um Reino vindouro e não presente e quem não tem reino não pode fazer leis Em segundo lugar se seus atos de concílio fossem leis não seria possível desobedecerlhes sem pecado Mas não lemos em lugar algum que os que não aceitavam a doutrina de Cristo se tornassem por isso pecadores e sim que morreriam em pecado isto é que seus pecados contra as leis a que deviam obediência não seriam perdoados E essas leis eram as leis de natureza e as leis civis do Estado ao qual cada cristão se havia submetido através de um pacto Portanto não devemos entender o fardo que os apóstolos podiam impor aos que tinham convertido como leis mas como condições propostas àqueles que procuravam a salvação e que estes podiam aceitar ou recusar por sua conta e risco sem qualquer novo pecado embora não sem se arriscarem a ser condenados e excluídos do Reino de Deus por causa de seus pecados passados Por isso São João não disse dos infiéis que a ira de Deus iria cair sobre eles e sim que a ira de Deus permanecia sobre eles e não que eles iriam ser condenados e sim que eles já estavam condenados E não é concebível que o benefício da fé seja a remissão dos pecados a não ser que se conceba ao mesmo tempo que o prejuízo da infidelidade seja a retenção dos mesmos pecados Mas para que fim poderá alguém perguntar é que os apóstolos e depois do tempo destes os outros pastores da Igreja se haviam de reunir para se porem de acordo sobre a doutrina que devia ser ensinada tanto para a fé como para a conduta se ninguém fosse obrigado a obedecer a seus decretos Ao que pode responderse que os apóstolos e os anciãos desse concílio eram obrigados pelo próprio fato de dele participarem a ensinar a doutrina lá aprovada e decretaram que ela fosse ensinada na medida em que nenhuma lei anterior à qual fossem obrigados a obedecer a tal fosse contrária mas não que todos os outros cristãos fossem obrigados a respeitar o que eles ensinavam Pois embora eles pudessem deliberar sobre o que cada um deles havia de ensinar não podiam deliberar sobre o que os outros deviam fazer a não ser que sua assembléia tivesse poder legislativo o que só os soberanos civis podiam ter Porque embora Deus seja o soberano do mundo inteiro não somos obrigados a aceitar como sua lei tudo o que qualquer homem possa propornos em seu nome nem qualquer coisa contrária à lei civil à qual Deus nos ordenou expressamente que obedecêssemos Assim dado que os atos do concílio dos apóstolos não eram leis mas conselhos muito menos eram leis os atos de quaisquer outros doutores ou concílios a partir de então se se reuniram sem a autoridade do soberano civil Consequentemente os livros do Novo Testamento embora sejam perfeitíssimas regras da doutrina cristã não podiam ser tornados leis por qualquer autoridade a não ser a dos reis ou assembléias soberanas Não consta qual foi o primeiro concílio que transformou em cânone as Escrituras que agora possuímos porque aquela coleção dos cânones dos apóstolos que é atribuída a Clemente o primeiro bispo de Roma depois de São Pedro é objeto de controvérsia Porque embora aí tenham sido compilados os livros canônicos as palavras Sint vobis omnibus clericis Bc laicas libra veneranda etc encerram uma distinção entre o clero e os leigos que não era habitual tão próximo do tempo de São Pedro 0 primeiro concílio para estabelecer as Escrituras canônicas de que temos notícia foi o de Laodicéia Can 59 que proíbe a leitura de outros livros nas igrejas o que é um mandato que não se dirige a todos os cristãos mas apenas àqueles que tinham autorização para ler qualquer coisa publicamente na igreja isto é apenas aos eclesiásticos Dos funcionários eclesiásticos do tempo dos apóstolos uns eram magistrais e ou outros ministeriais Magistrais eram as funções de pregação do Evangelho do Reino de Deus aos infiéis de administração dos sacramentos e do serviço divino e de ensinar as regras da fé e da conduta aos que eram convertidos Ministerial era a função dos diáconos isto é dos que eram encarregados da administração das necessidades seculares da Igreja numa época em que esta vivia de um fundo comum de dinheiro constituído pelas contribuições voluntárias dos fiéis De entre os funcionários magistrais os primeiros e mais importantes eram os apóstolos dos quais havia inicialmente apenas doze que foram escolhidos e nomeados por nosso Salvador em pessoa e sua função não consistia apenas em pregar ensinar e batizar mas também em serem mártires testemunhas da ressurreição de nosso Salvador Este testemunho era a marca específica e essencial mediante a qual o apostolado se distinguia das outras magistraturas eclesiásticas pois para serse um apóstolo era essencial ou ter visto nosso Salvador depois de sua ressurreição ou ter convivido com ele antes e ter visto suas obras e outros argumentos de sua divindade que lhes permitissem ser considerados testemunhas suficientes Assim na eleição de um novo apóstolo para o lugar de Judas Iscariote disse São Pedro At 121s Destes homens que nos acompanharam em todo o tempo em que Jesus nosso Senhor andou entre nós desde o batismo de João até ao próprio dia em que nos foi arrebatado deve ser ordenado um para ser testemunha de sua ressurreição juntamente conosco Com a palavra deve fica implicada uma propriedade necessária para um apóstolo a saber ter acompanhado os primeiros apóstolos no tempo em que nosso Salvador se manifestou em carne O primeiro dos apóstolos que não foram nomeados por Cristo no tempo que passou na terra foi Matias escolhido da seguinte maneira Reuniramse em Jerusalém cerca de uns cento e vinte cristãos At 115 Estes designaram dois José o Justo e Matias vers 23 e tiraram a sorte entre ambos E a sorte caiu em Matias que passou a contarse entre os apóstolos vers 26 Por aqui vemos que a ordenação deste apóstolo foi um ato da congregação e não de São Pedro nem dos onze a não ser enquanto membros da assembléia Depois dele não houve qualquer apóstolo que fosse ordenado a não ser Paulo e Barnabé o que foi conforme lemos nos Atos 131ss da maneira seguinte Havia na igreja que ficava em Antioquia certos profetas e mestres como Barnabé e Simeão que era chamado Niger e Lúcio de Cirene e Manahem que tinha sido criado com Herodes o Tetrarca e Saul Quando estes estavam ministrando ao Senhor e jejuando disse o Espírito Santo Separaime Barnabé e Saul para a obra para a qual os chamei E depois de eles jejuarem e orarem e posto suas mãos sobre eles despediramnos Pelo que fica manifesto que embora fossem chamados pelo Espírito Santo esse chamamento lhes foi declarado e sua missão foi autorizada pela igreja de Antioquia em especial E que esse seu chamamento foi para o apostolado é evidente pelo fato de a ambos se chamar apóstolos Atos 1414 E que foi em virtude desse ato da igreja de Antioquia que eles se tornaram apóstolos é claramente declarado por São Paulo Rom 11 pelo fato de ter usado a palavra que o Espírito Santo usou em seu chamamento Pois ele se definia como um apóstolo separado para o Evangelho de Deus aludindo às palavras do Espírito Santo separaime Barnabé e Saul etc Mas como a missão de um apóstolo era ser testemunha da ressurreição de Cristo poderia aqui perguntarse como é que São Paulo que não havia convivido com nosso Salvador antes de sua paixão podia saber que ele ressuscitara Ao que facilmente se responde que nosso Salvador lhe apareceu no caminho de Damasco descendo do céu após a Ascensão e escolheuo como expoente para levar seu nome aos gentios e aos reis e aos filhos de Israel Consequentemente por ter visto o Senhor depois de sua paixão ele era uma testemunha competente de sua ressurreição Quanto a Barnabé era discípulo antes da paixão É portanto evidente que Paulo e Barnabé eram apóstolos e foram escolhidos e autorizados não apenas pelos primeiros apóstolos mas pela igreja de Antioquia tal como Matias foi escolhido e autorizado pela igreja de Jerusalém Bispo palavra formada em nossa língua a partir do grego epískopos significa um inspetor ou superintendente de qualquer empreendimento e particularmente um pastor E depois por metáfora foi tomada não apenas entre os judeus que originalmente eram pastores mas também entre os pagãos no sentido da função de um rei ou qualquer outro dirigente ou guia do povo quer governe pelas leis ou pela doutrina Assim os apóstolos foram os primeiros bispos cristãos instituídos pelo próprio Cristo e neste sentido o apostolado de Judas é chamado seu bispado Atos 120 E posteriormente quando as igrejas cristãs nomearam anciãos encarregados de guiar o rebanho de Cristo com sua doutrina esses anciãos foram também chamados bispos Timóteo era um ancião sendo a palavra ancião no Novo Testamento o nome de um cargo além de indicar a idade mas também era um bispo E nesse tempo os bispos contentavamse com o título de anciãos E o próprio São João o apóstolo amado do Senhor começa sua segunda Epístola com as palavras Do ancião para a senhora eleita Pelo que fica evidente que bispo pastor ancião doutor quer dizer mestre eram apenas nomes diversos da mesma função no tempo dos apóstolos Porque nesse tempo não havia governo por coerção mas apenas por doutrina e persuasão 0 Reino de Deus ainda estava para vir num novo mundo de modo que não podia haver em qualquer igreja uma autoridade capaz de obrigar antes de o Estado haver abraçado a fé cristã e assim não podia haver diversidade de autoridade embora houvesse diversidade de funções Além destes cargos magistrais da Igreja nomeadamente os apóstolos os bispos os anciãos os pastores e os doutores cuja missão era proclamar Cristo aos judeus e incréus e dirigir e ensinar os crentes não encontramos menção de qualquer outro no Novo Testamento Porque os nomes de evangelista e profeta não significam um cargo mas diversos dons graças aos quais diversos homens se tornavam úteis à Igreja Como evangelistas escrevendo a vida e os atos de nosso Salvador como foi o caso dos apóstolos São Mateus e São João e dos discípulos São Marcos e São Lucas e de quem mais escreveu sobre esse assunto como se diz que fizeram Santo Tomás e São Barnabé embora a Igreja não tenha aceitado os livros que levavam seus nomes Como profetas pelo dom de interpretar o Antigo Testamento e às vezes por comunicarem à Igreja suas revelações especiais Pois não eram esses dons nem o dom das línguas nem o dom de expulsar os demônios ou de curar outras doenças nem qualquer outra coisa que vinha atribuir um cargo da Igreja a não ser unicamente a vocação e eleição para a função de ensinar Tal como os apóstolos Matias Paulo e Barnabé não foram feitos diretamente por nosso Salvador mas foram eleitos pela Igreja isto é pela assembléia dos cristãos nomeadamente Matias pela igreja de Jerusalém e Paulo e Barnabé pela igreja de Antioquia assim também os presbíteros e pastores de outras cidades foram eleitos pelas igrejas dessas cidades A fim de proválo examinemos antes de mais a maneira como São Paulo procedeu à ordenação dos presbíteros nas cidades onde havia convertido os habitantes à fé cristã imediatamente após ele e Barnabé terem recebido seu apostolado Lemos que At 1423 eles ordenaram anciãos em todas as igrejas o que à primeira vista pode ser tomado como argumento provando que eles próprios os escolhiam e lhes conferiam sua autoridade Mas para quem examinar o texto original ficará manifesto que era a assembléia dos cristãos de cada cidade quem os autorizava e escolhia Porque as palavras originais eram Xeirotonésantes autois presbytérous kat ekklesían isto é Quando eles os tinham ordenado anciãos pelo levantar das mãos em cada congregação Ora é bem sabido que em todas essas cidades a maneira de escolher os magistrados e funcionários era a pluralidade de sufrágios E como a maneira normal de distinguir entre os votos afirmativos e os negativos era o levantar das mãos em qualquer das cidades ordenar um funcionário não era mais do que reunir o povo para eleger o funcionário por pluralidade de votos quer fosse pela pluralidade das mãos erguidas quer pela pluralidade das vozes ou pela pluralidade das bolas feijões ou pedrinhas que cada um colocava num vaso marcado como afirmativo ou negativo porque quanto a este ponto as diversas cidades tinham costumes diversos Portanto era a assembléia que elegia seus próprios anciãos os apóstolos eram apenas presidentes da assembléia encarregados de convocála para essa eleição e de proclamar os eleitos dandolhes a bênção o que atualmente se chama consagração E por este motivo os que eram presidentes das assembléias como na ausência aos apóstolos era o caso aos anciãos eram chamados proestõtes e em latim antistites palavras que significam a principal pessoa da assembléia cuja função era contar os votos e declarar quem por eles fora escolhido e em caso de empate de votos decidir o problema em questão acrescentando seu próprio voto o que é a função do presidente de um concílio E como em todas as igrejas os presbíteros eram ordenados da mesma maneira quando se usa a palavra constituir como em Ti 15 hina katastéses katà pólin presóytérous por este motivo te deixei em Creta para que constituísses anciãos em todas as cidades deve entenderse a mesma coisa a saber que ele devia reunir os fiéis e ordenar presbíteros por pluralidade de sufrágios Teria sido estranho que numa cidade onde provavelmente nunca se tinha visto escolher qualquer magistrado sem ser por uma assembléia no momento em que os habitantes dessa cidade se tornassem cristãos eles chegassem sequer a pensar em outra maneira de eleger seus mestres e guias quer dizer seus presbíteros também chamados bispos que não fosse por esta pluralidade de sufrágios indicada por São Paulo At 1423 na palavra xeirotonésantes Nem jamais houve qualquer escolha de bispos antes de os imperadores terem achado necessário regular o assunto a fim de manter a paz entre eles que não fosse mediante as assembléias de cristãos em cada uma das diversas cidades 0 mesmo é confirmado também pela prática constante até ao dia de hoje na eleição dos bispos de Roma Pois se em qualquer lugar o bispo tivesse o direito de escolher outro para sucederlhe na função pastoral em qualquer cidade em qualquer momento em que dela saísse para implantar a mesma em outro lugar muito mais teria o direito de designar seu sucessor no lugar em que por último residira e morrera E não constatamos que qualquer bispo de Roma tenha designado seu sucessor Pois durante muito tempo eles foram escolhidos pelo povo como podemos verificar no caso da sedição suscitada entre Dâmaso e Ursicino por causa de sua eleição da qual diz Ammiano Marcelino ter sido tão grande que o prefeito Juvêncio incapaz de manter a paz entre eles se viu obrigado a sair da cidade e que dentro da própria igreja foram nessa ocasião encontrados mortos mais de cem homens E embora depois eles fossem escolhidos primeiro por todo o clero de Roma e mais tarde pelos cardeais nunca um deles foi indicado para a sucessão por seu antecessor Dado que eles não pretendiam ter o direito de designar seus sucessores creio poderse razoavelmente concluir que eles não tinham o direito de designar os sucessores dos outros bispos antes de receberem qualquer novo poder o qual não podia ser atribuído a ninguém pela Igreja mas apenas por quem possuísse uma autoridade legítima não apenas para ensinar mas também para comandar a Igreja isto é por ninguém a não ser o soberano civil A palavra ministro no original diákonos significa alguém que faz voluntariamente o trabalho de outrem Diferindo do servo apenas no fato de por sua condição o servo ter obrigação perante quem nele manda ao passo que os ministros são obrigados apenas perante seu empreendimento não sendo portanto obrigados a mais do que empreenderam De modo que tanto os que ensinam a palavra de Deus como os que administram os negócios seculares da Igreja são ministros mas são ministros de pessoas diferentes Porque os pastores da Igreja chamados At 64 os ministros da palavra são ministros de Cristo pois é dele essa palavra Mas o ministério de um diácono a que se chama versículo 2 do mesmo capítulo serviço de altar é um serviço feito à igreja ou congregação Assim ninguém pode nem sequer a igreja inteira dizer de seu pastor que ele é um ministro Mas a um diácono quer seu cargo seja o de servir o altar quer seja o de distribuir sustento aos cristãos quando em cada cidade viviam de um fundo comum ou de coletas como nos primeiros tempos ou o de tomar conta da casa de orações ou o de administrar as rendas e outros negócios terrenos da igreja a esse diácono a congregação inteira pode propriamente chamar seu ministro Porque sua função de diáconos era servir a congregação embora ocasionalmente não deixassem de pregar o Evangelho e de defender a doutrina de Cristo cada um conforme seus dons como fazia Santo Estêvão ou de ao mesmo tempo pregar e batizar como fazia Filipe Pois esse Filipe que pregava o Evangelho em Samaria At 85 e batizou o eunuco versículo 38 era Filipe o diácono não Filipe o apóstolo Porque é manifesto versículo 1 que quando Filipe estava pregando em Samaria os apóstolos estavam em Jerusalém e quando ouviram dizer Samaria At 85 e batizou o eunuco versículo 38 era Filipe o diácono não Filiimposição de cujas mãos os que foram batizados versículo 15 receberam o que antes do batismo de Filipe não tinham recebido o Espírito Santo Porque para ser conferido o Espírito Santo era necessário que seu batismo fosse ministrado ou confirmado por um ministro da palavra e não por um ministro da Igreja Assim para confirmar o batismo dos que Filipe o diácono havia batizado os apóstolos enviaram de entre eles Pedro e João de Jerusalém para Samaria E eles conferiram aos que antes apenas tinham sido batizados aquelas graças que eram os sinais do Espírito Santo que naquele tempo acompanhavam todos os verdadeiros crentes E quais eles eram pode verse pelo que disse São Marcos cap 1617 Estes sinais seguem a quem crê no meu nome eles expulsarão os demônios eles falarão com novas línguas eles pegarão em serpentes e se beberem alguma coisa mortal ela não lhes fará mal eles porão as mãos nos doentes e estes serão curados A possibilidade de fazer isto não podia ser dada por Filipe mas pelos apóstolos podia e eles efetivamente a deram como se verifica nesta passagem a todos os que verdadeiramente acreditavam e haviam sido batizados por um ministro de Cristo E este poder os ministros de Cristo desta época não podem conferir ou então há muito poucos verdadeiros crentes ou Cristo tem muito poucos ministros Que os primeiros diáconos não eram escolhidos pelos apóstolos mas pela congregação dos discípulos isto é dos cristãos de toda a espécie encontrase manifesto em Atos 6 onde está escrito que os doze depois que foi multiplicado o número de discípulos os mandaram reunir e depois de lhes dizerem que não era próprio que os apóstolos deixassem a palavra de Deus para servirem o altar acrescentaram versículo 3 Irmãos procurai entre vós sete homens de honesto testemunho cheios do Espírito Santo e de sabedoria a quem possamos indicar para essa função Fica assim manifesto que embora os apóstolos os declarassem eleitos foi a congregação que os escolheu o que é dito mais expressamente versículo 5 onde está escrito que esse parecer agradou à multidão que escolheu sete etc No tempo do Antigo Testamento a tribo de Levi era a única capaz de sacerdócio e outros cargos inferiores da Igreja A terra foi dividida entre as outras tribos excetuandose a de Levi que continuavam sendo doze devido à divisão da tribo de José entre Efraim e Manassés Para a habitação da tribo de Levi foram escolhidas certas cidades com os subúrbios para seu gado e seu quinhão devia ser o décimo dos frutos da terra de seus irmãos Além disso os sacerdotes tinham para seu sustento um décimo desse décimo juntamente com parte das oferendas e sacrifícios Porque Deus dissera a Aarão Núm 1820 Vós não tereis herança da terra deles nem tereis parte entre eles eu sou vossa parte e vossa herança entre os filhos de Israel Como então Deus era rei e tinha constituído os membros da tribo de Israel como seus ministros públicos concedeulhes para seu sustento a renda pública quer dizer a parte que Deus reservara para si mesmo que eram os dízimos e as oferendas e é isto que se entende quando Deus diz eu sou vossa herança Portanto não é incorreto atribuir aos levitas a designação de clero a partir de kléros que significa lote ou herança não que eles fossem os herdeiros do Reino de Deus mais do que os outros mas porque a herança de Deus era seu sustento Ora dado que nesse tempo o próprio Deus era seu rei e Moisés Aarão e os Sumos Sacerdotes subseqüentes eram seus lugartenentes é manifesto que o direito aos dízimos e oferendas foi instituído pelo poder civil Depois de rejeitarem Deus e pedirem um rei continuaram a desfrutar da mesma renda mas esse direito derivava do fato de o rei nunca lha ter tirado pois a renda pública estava à disposição daquele que era a pessoa pública a qual até ao cativeiro era o rei Por outro lado depois do regresso do cativeiro continuaram como antes a pagar seus dízimos ao sacerdote Portanto até então os meios de vida da Igreja eram determinados pelo soberano civil Quanto ao sustento de nosso Salvador e de seus apóstolos lemos apenas que eles tinham uma bolsa que era levada por Judas Iscariote e que aqueles dos apóstolos que eram pescadores usavam às vezes sua profissão e que quando nosso Salvador enviou os doze apóstolos para pregar lhes proibiu levar ouro prata e bronze em suas bolsas pois o trabalhador merece sua paga Pelo que parece provável que seu sustento normal não estivesse em desacordo com seu emprego pois seu emprego era vers 8 dar gratuitamente porque gratuitamente tinham recebido e seu sustento era a dádiva gratuita daqueles que acreditavam na boa nova que eles levavam da vinda do Messias seu Salvador Ao que podemos acrescentar as contribuições feitas por gratidão por aqueles que nosso Salvador curara de doenças dos quais são referidas Lc 82s certas mulheres que tinham sido curadas de maus espíritos e enfermidades Maria Madalena da qual saíram sete diabos e Joana mulher de Chuza procurador de Herodes e Susana e muitas outras que lhes serviram de suas riquezas Depois da Ascensão de nosso Salvador os cristãos de todas as cidades viviam em comum do dinheiro proveniente da venda de suas terras e posses as quais depuseram aos pés dos apóstolos por boa vontade não por dever Porque Enquanto conservavas a terra disse São Pedro a Ananias At 54 ela não era tua E depois de ela ser vendida não estava em teu poder 0 que mostra que ele não teria precisado de mentir para conservar sua terra e seu dinheiro pois não era obrigado a contribuir com coisa alguma a não ser que tal lhe aprouvesse E tal como no tempo dos apóstolos também nos tempos posteriores até depois de Constantino o Grande verificamos que o sustento dos bispos e pastores da Igreja cristã se devia apenas à contribuição voluntária dos que haviam abraçado sua doutrina Ainda não havia referência a dízimos mas no tempo de Constantino e seus filhos era tal a afeição dos cristãos por seus pastores conforme disse Amiano Marcelino descrevendo a sedição de Dâmaso e Ursicino por causa do bispado que sua querela valia a pena na medida em que os bispos desse tempo graças à liberalidade de seu rebanho e especialmente das matronas viviam esplendidamente eram transportados em carruagens e tinham mesa e roupagens suntuosas Mas aqui alguém poderá perguntar se nesse tempo os pastores eram obrigados a viver de contribuições voluntárias como de esmolas Pois quem disse São Paulo 1 Cor 97 vai para a guerra à sua própria custa Quem alimenta o rebanho e não bebe o leite do rebanho E também Não sabeis que os que ministram sobre coisas sagradas vivem das coisas do templo e que os que ajudam no altar partilham do altar Quer dizer recebem parte do que é oferecido no altar para seu sustento E conclui então E assim o Senhor determinou que os que pregam o Evangelho vivam do Evangelho Desta passagem pode sem dúvida inferirse que os pastores da Igreja deviam ser sustentados por seus rebanhos mas não competia aos pastores determinar a quantidade ou a espécie de seus emolumentos como quem numa partilha decide seu próprio quinhão Portanto seus emolumentos deviam necessariamente ser determinados pela gratidão e liberalidade de cada um dos membros de seu rebanho ou então pela congregação inteira Mas não podia ser pela congregação inteira pois nessa época as decisões desta não eram leis Portanto o sustento dos pastores antes de os imperadores e soberanos civis o determinarem por lei não era mais do que a benevolência Os que serviam no altar viviam do que lhes era oferecido E também os pastores podem aceitar o que lhes é oferecido por seu rebanho mas não podem exigir o que não lhes é oferecido A que juízes podiam recorrer se não tinham tribunais Ou se entre eles tinham árbitros quem podia executar suas sentenças visto que não tinham poder para armar seus funcionários Resta portanto apenas a congregação inteira como podendo atribuir a quaisquer pastores da Igreja um sustento certo e mesmo isto somente no caso de seus decretos terem a força de leis e não apenas de cânones leis essas que só poderiam ser feitas pelos imperadores reis e outros soberanos civis 0 direito dos dízimos da lei de Moisés não podia ser aplicado aos ministros do Evangelho desse tempo porque Moisés e os Sumos Sacerdotes eram os soberanos civis do povo abaixo de Deus cujo Reino entre os judeus era presente ao passo que o Reino de Deus pelo Cristo ainda está para vir Até aqui mostrouse o que são os pastores da Igreja quais são os pontos de sua missão como por exemplo que devem pregar ensinar batizar ser presidentes de suas respectivas congregações o que é a censura eclesiástica a saber a excomunhão quer dizer nos lugares onde o cristianismo era proibido pelas leis civis evitar a companhia dos excomungados e onde o cristianismo era sancionado pelas leis civis expulsar os excomungados das congregações de cristãos quem elegia os pastores e ministros da Igreja que era a congregação e quem os consagrava e abençoava que era o pastor quais as rendas que lhes eram devidas que não eram mais do que suas próprias posses e seu próprio trabalho e as contribuições voluntárias dos cristãos devotos e gratos Passamos agora a examinar qual a função que têm na Igreja aquelas pessoas que sendo soberanos civis ao mesmo tempo abraçaram a cristã Em primeiro lugar é preciso lembrar que o direito de julgar quais são as doutrinas favoráveis à paz que devem ser ensinadas aos súditos se encontra em todos os Estados inseparavelmente dependente conforme já se provou no capítulo 18 do poder civil soberano quer ele pertença a um homem ou a uma assembléia Pois mesmo para a mais medíocre inteligência é evidente que as ações dos homens derivam de suas opiniões acerca do bem ou do mal que dessas ações para eles redundam e em conseqüência que quem se deixa possuir pela opinião de que sua obediência ao poder soberano lhe será mais prejudicial do que sua desobediência irá desobedecer às leis contribuindo assim para destruir o Estado e introduzir a confusão e a guerra civil para evitar as quais todo governo civil foi instituído Assim em todos os Estados dos pagãos os soberanos recebiam o nome de pastores do povo pois não era legítimo que qualquer súdito ensinasse o povo sem sua licença e autorização 0 direito dos reis pagãos não pode ser considerado anulado por sua conversão à fé de Cristo o qual jamais determinou que os reis devido a nele acreditarem fossem desapossados isto é sujeitos a alguém que não ele mesmo ou então o que é a mesma coisa fossem privados do poder necessário para a preservação da paz entre seus súditos e para sua defesa contra os inimigos estrangeiros Portanto os reis cristãos continuam sendo os supremos pastores de seu povo e têm o poder de ordenar os pastores que lhes aprouver para ensinar na Igreja isto é para ensinar o povo que está a seu cargo Por outro lado mesmo que o direito de escolhêlos pertença à Igreja como acontecia antes da conversão dos reis pois assim era no tempo dos próprios apóstolos conforme já se mostrou neste capítulo ainda assim o direito pertence ao soberano civil desde que cristão Pois pelo fato de ser cristão ele autoriza o ensino e pelo fato de ser o soberano o que é o mesmo que dizer a Igreja por representação os mestres por ele eleitos são eleitos pela Igreja E quando uma assembléia de cristãos escolhe seu pastor num Estado cristão é o soberano quem o elege pois tal é feito por sua autoridade Da mesma maneira como quando uma cidade escolhe seu prefeito se trata de um ato daquele que detém o poder soberano pois todo ato praticado é um ato daquele sem cujo consentimento ele seria inválido Assim sejam quais forem os exemplos que se possa tirar da história quanto à eleição dos pastores pelo povo ou pelo clero esses exemplos não constituem argumentos contra o direito de qualquer soberano civil pois aqueles que os elegeram fizeramno por sua autoridade Portanto dado que em todo Estado cristão o soberano civil é o supremo pastor que tem a seu cargo todo o rebanho de seus súditos e que consequentemente é por sua autoridade que todos os outros pastores são nomeados e adquirem o poder de ensinar e de desempenhar todas as outras funções pastorais seguese também que é do soberano civil que todos os outros pastores recebem o direito de ensinar de pregar e outras funções pertinentes a seu cargo E também que eles são apenas seus ministros do mesmo modo que os magistrados das cidades os juízes dos tribunais de justiça e os comandantes dos exércitos são apenas ministros daquele que é o magistrado de todo o Estado o juiz de todas as causas e o comandante de toda a milícia que é sempre o soberano civil E a razão disto não é que sejam seus súditos os que ensinam mas que o sejam os que vão aprender Suponhamos que um rei cristão confira a autoridade de ordenar pastores em seus domínios a um outro rei poder que diversos reis cristãos atribuem ao Papa com isso ele não estará constituindo um pastor acima de si mesmo nem um soberano pastor acima de seu povo pois tal eqüivaleria a privarse do poder civil o qual dependendo da opinião que os homens têm de seu dever para com ele e do medo que têm do castigo num outro mundo dependeria também da habilidade e lealdade dos doutores os quais não estão menos sujeitos do que qualquer outra espécie de homens não apenas à ambição mas também à ignorância De modo que quando um estrangeiro tem autoridade para escolher os mestres esta élhe dada pelo soberano em cujos domínios ensina Os doutores cristãos são nossos professores de cristianismo mas os reis são pais de família que podem aceitar professores para seus súditos por recomendação de um estranho mas não por ordem deste especialmente se o mau ensino redundar em grande e manifesto proveito para aquele que os recomenda e não podem ser obrigados a conserválo mais do que o necessário para o bem público que se encontra a seu cargo na exata medida em que conservam quaisquer outros direitos essenciais da soberania Portanto se alguém perguntar a um pastor no desempenho de seu cargo como os principais sacerdotes e anciãos do povo perguntaram a nosso Salvador Mi 2123 Por que autoridade fazes essas coisas e quem te deu tal autoridade a única resposta correta será que o faz pela autoridade do Estado a qual lhe foi dada pelo rei ou assembléia que o representa Todos os pastores com exceção do supremo pastor desempenham suas funções pelo direito isto é pela autoridade do soberano civil isto é jure civili Mas o rei ou qualquer outro soberano desempenha seu cargo de supremo pastor pela imediata autoridade de Deus quer dizer por direito de Deus ou jure divino Assim só os reis podem incluir em seus títulos como marca de sua submissão apenas a Deus Dei gratia Rex etc Os bispos devem dizer no início de seus mandatos pelo favor da majestade do rei bispo de tal ou tal diocese ou então como ministros civis em nome de Sua Majestade Porque ao dizer divina providentia que é o mesmo que Dei grada embora disfarçadamente eles estão negando receber do Estado civil sua autoridade e estão subrepticiamente tirando a coleira de sua sujeição civil contrariamente à unidade e defesa do Estado Mas se todo soberano cristão é o supremo pastor de seus próprios súditos parece que possui também a autoridade não apenas de pregar o que talvez ninguém negue mas também de batizar e de administrar o sacramento da ceia do Senhor de consagrar ao serviço de Deus tanto os templos como os pastores o que é negado pela maior parte das pessoas em parte porque ele não costuma fazêlo e em parte porque a administração dos sacramentos e a consagração de pessoas e lugares para uso sagrado exige a imposição das mãos daqueles homens que mediante uma idêntica imposição e continuamente desde o tempo dos apóstolos foram ordenados para idêntico ministério Assim como prova de que os reis cristãos têm poder para batizar e consagrar vou apresentar uma razão para explicar por que eles não costumam fazêlo e também como sem a habitual cerimônia da imposição das mãos eles se tornam capazes de fazêlo se tal lhes aprouver Não resta dúvida que qualquer rei no caso de ser versado em ciências poderia ele próprio dar aulas sobre elas pelo mesmo direito de seu cargo com o qual autoriza outros a dar essas aulas nas Universidades Não obstante como o cuidado com o conjunto dos assuntos do Estado lhe toma completamente o tempo não seria conveniente que ele se dedicasse em pessoa a tal atividade Por outro lado um rei pode também se assim lhe aprouver tomar assento em juízo para ouvir e decidir toda espécie de causas tal como pode dar a outros autoridade para fazêlo em seu nome mas as funções de mando e governo que lhe competem obrigamno a estar constantemente no leme delegando as funções ministeriais a outros submetidos a ele De maneira semelhante nosso Salvador que indubitavelmente tinha poder para batizar não batizava ninguém pessoalmente mas mandava batizar a seus apóstolos e discípulos E assim também São Paulo devido à necessidade de pregar em diversos e distantes lugares batizava poucos de entre todos os corintianos batizou apenas Crispo Caio e Estêvão e a razão disso era que sua função principal era a pregação Por onde fica manifesto que o cargo maior como o governo da Igreja dispensa do menor Assim a razão de não ser costume os reis cristãos batizarem é evidente e é a mesma pela qual ainda hoje poucos são os batizados pelos bispos e pelo Papa ainda menos Quanto à imposição das mãos se ela é ou não necessária para autorizar os reis a batizar e a consagrar podemos considerar o seguinte A imposição das mãos era entre os judeus uma antiquíssima cerimônia pública mediante a qual era designada e tornada certa a pessoa ou qualquer outra coisa pretendida numa oração bênção sacrifício consagração condenação ou outro discurso de alguém Assim ao abençoar os filhos de José Jacó Gên 48 14 pousou sua mão direita sobre Efraim o mais novo e sua mão esquerda sobre Manassés o primogénito e fez isto conscientemente embora eles lhe tivessem sido apresentados por José de maneira tal que se viu obrigado a estender os braços em cruz para fazêlo para indicar a quem pretendia dar a maior bênção Também ao fazer o sacrifício da oferenda se ordena a Aarão Êx 2910 colocar suas mãos na cabeça do boi e vers15 colocar sua mão na cabeça do carneiro 0 mesmo se diz também em Lev 1 4 e 814 De maneira semelhante Moisés quando ordenou Josué como capitão dos israelitas isto é quando o consagrou a serviço de Deus Núm 2723 colocou suas mãos sobre ele e lhe deu seu cargo designando e tornando certo a quem eles deviam obedecer na guerra E na consagração dos levitas Núm 810 Deus ordenou que os filhos de Israel pousassem suas mãos sobre os levitas E na condenação daquele que tinha blasfemado contra o Senhor Lev 2414 Deus ordenou que todos os que o ouvissem pousassem suas mãos em sua cabeça e que toda a congregação o apedrejasse E por que haviam de ser apenas os que o ouvissem a pousar nele suas mãos em vez de um sacerdote um levita ou outro ministro da justiça a não ser porque mais ninguém seria capaz de designar e mostrar aos olhos da congregação quem era que tinha blasfemado e merecia morrer E designar um homem ou qualquer outra coisa ao olhar por meio da mão encontrase menos sujeito a erros do que quando tal é dirigido ao ouvido por meio de um nome E a tal ponto era observada esta cerimônia que ao abençoar em conjunto toda a congregação o que não pode ser feito pela imposição das mãos ainda assim Aarão Lev 922 ergueu sua mão em direção ao povo quando o abençoou E lemos também sobre uma idêntica cerimônia de consagração dos templos entre os pagãos que o sacerdote punha as mãos num dos pilares do templo ao mesmo tempo que ia pronunciando as palavras de consagração A tal ponto é natural designar qualquer coisa individual com a mão para dar certeza aos olhos de preferência às palavras para informar os ouvidos nas questões do serviço público de Deus Portanto esta cerimônia não era nova no tempo de nosso Salvador Porque Jairo Mc 523 cuja filha estava doente não rogou a nosso Salvador que a curasse mas que pousasse nela suas mãos para que ela se curasse E também Mt 1913 eles levaram até ele criancinhas para que ele pousasse suas mãos sobre elas e orasse Segundo este antigo ritual os apóstolos e presbíteros e o próprio presbiterato punham as mãos sobre aqueles a quem ordenavam como pastores ao mesmo tempo que oravam para que eles recebessem o Espírito Santo E isso não apenas uma vez mas em certos casos mais vezes quando aparecia uma nova ocasião Mas o fim era sempre o mesmo isto é uma designação pontual e religiosa da pessoa ordenada quer fosse para uma função pastoral em geral quer fosse para uma missão especial Assim At 66 os apóstolos oraram e puseram suas mãos sobre os sete diáconos o que não foi feito para darlhes o Espírito Santo pois eles estavam cheios do Espírito Santo antes de serem escolhidos como se verifica imediatamente antes no versículo 3 mas para designálos para essa função E depois de Filipe o diácono ter convertido certas pessoas em Samaria Pedro e João foram lá At 817 e pousaram suas mãos sobre eles e eles receberam o Espírito Santo E não eram apenas os apóstolos que tinham esse poder mas também os presbíteros Pois São Paulo aconselhou a Timóteo 1 Tim 522 que não pusesse as mãos bruscamente em ninguém isto é não designasse apressadamente a ninguém para o cargo de pastor 0 presbiterato inteiro pôs as mãos em Timóteo conforme lemos em 1 Tim 414 mas aqui deve entenderse que algum deles o fez por delegação do presbiterato muito provavelmente seu protestos ou prolocutor que talvez fosse o próprio São Paulo Porque em 2 Tim 16 ele dizlhe Reparte o dom do Senhor que está em ti pela imposição de minhas mãos onde de passagem deve salientarse que por Espírito Santo não se entende aqui a terceira pessoa da Trindade mas os dons necessários para a função pastoral Lemos também que São Paulo recebeu duas vezes a imposição das mãos uma vez de Ananias em Damasco At 917s no momento de seu batismo e outra vez At 133 em Antioquia da primeira vez que foi enviado para pregar Portanto a utilidade desta cerimônia na ordenação dos pastores era designar a pessoa a quem se conferia esse poder Mas se então tivesse havido algum cristão que já antes tivesse poder para ensinar seu batizado isto é o ato de fazer dele um cristão não lhe teria dado qualquer novo poder teria somente feito que ele pregasse a verdadeira doutrina isto é que ele usasse corretamente seu poder e portanto a imposição das mãos teria sido desnecessária e o batismo por si só teria sido suficiente Mas antes do cristianismo todo soberano tinha o poder de ensinar e de ordenar mestres portanto o cristianismo não veio darlhes qualquer novo direito mas apenas orientálos quanto à maneira de ensinar a verdade Portanto não precisavam de qualquer imposição das mãos além da que é feita no batismo para autorizálos ao exercício de qualquer das funções pastorais nomeadamente o batismo e a consagração E no Antigo Testamento embora o sacerdote tivesse o direito de consagrar durante o tempo em que a soberania residia no Sumo Sacerdote não tinha esse direito no tempo em que a soberania residia no rei pois lemos 1 Rs 8 que Salomão abençoou o povo consagrou o templo e proferiu aquela oração pública que hoje serve de padrão para a consagração de todas as igrejas e capelas cristãs o que mostra que ele não tinha apenas o direito ao governo eclesiástico tinha também o de exercer funções eclesiásticas Dada esta consolidação do direito político e eclesiástico nos soberanos cristãos fica evidente que eles têm sobre seus súditos toda espécie de poder que pode ser conferido a um homem para o governo das ações externas dos homens tanto em política como em religião e que podem fazer as leis que se lhes afigurarem melhores para o governo de seus súditos tanto na medida em que eles são o Estado como na medida em que eles são a Igreja pois o Estado e a Igreja são os mesmos homens Portanto se tal lhes aprouver podem entregar ao Papa como hoje fazem muitos reis cristãos o governo de seus súditos em matéria de religião Mas nesse caso o Papa ficalhes subordinado quanto a este ponto e exerce esse cargo no domínio de outrem jure civili pelo direito do soberano civil e não jure divino pelo direito de Deus Portanto pode ser demitido dessas funções sempre que o soberano tal considerar necessário para o bem de seus súditos Este também pode se tal lhe aprouver confiar o cuidado da religião a um Supremo pastor ou a uma assembléia de pastores atribuindolhes o poder sobre a Igreja ou uns sobre os outros que considerar mais conveniente e os títulos de honra que quiser como bispo arcebispo padre ou presbítero e estabelecer para seu sustento as leis que lhe aprouver seja por dízimos ou de outra maneira desde que o façam com sinceridade de convicção da qual só Deus pode ser juiz É ao soberano civil que compete nomear os juízes e intérpretes das Escrituras canônicas pois é ele que as transforma em leis Também é ele quem dá força às excomunhões que seriam desprezadas se não fosse graças àquelas leis e castigos que são capazes de reduzir à humildade os mais obstinados libertinos obrigandoos a uniremse ao resto da Igreja Em resumo é ele quem tem o poder supremo em todas as causas quer eclesiásticas ou civis no que diz respeito às ações e às palavras pois só estas são conhecidas e podem ser acusadas E do que ninguém pode ser acusado não existe juiz de espécie alguma a não ser Deus que conhece o coração E estes direitos são pertença de todos os soberanos sejam monarcas ou assembléias pois os que são os representantes de um povo cristão são os representantes da Igreja porque uma Igreja e um Estado de gente cristã são uma e a mesma coisa Embora tudo isto que aqui disse assim como em outras passagens deste livro pareça suficientemente claro para afirmar o supremo poder eclesiástico dos soberanos cristãos dado que a pretensão universal do Papa de Roma a esse poder foi sustentada principalmente e creio que com a maior força possível pelo Cardeal Belarmino em sua controvérsia De Summo Pontífice considerei necessário examinar com a maior brevidade possível os fundamentos e a solidez de seu discurso De entre os cinco livros que escreveu sobre o assunto o primeiro continha três questões Uma simplesmente sobre qual é o melhor governo a monarquia a aristocracia ou a democracia e concluía que nenhuma e sim um governo misto de todas as três Outra sobre qual destas é o melhor governo da Igreja e concluía por uma forma mista mas na qual devia predominar a monarquia A terceira sobre se nesta monarquia mista São Pedro ocupava o lugar de monarca Quanto à sua primeira conclusão já provei suficientemente cap 18 que todos os governos a que os homens são obrigados a obedecer são simples e absolutos Na monarquia há apenas um homem com o poder supremo e todos os outros homens que têm no Estado qualquer espécie de poder têmno por sua delegação enquanto tal lhe apraz e usam desse poder em seu nome E numa aristocracia ou numa democracia há apenas uma assembléia suprema com o mesmo poder que na monarquia pertence ao monarca o que não é soberania mista mas absoluta E qual das três e a melhor não é para ser discutido onde uma delas já se encontra estabelecida devendo ser sempre preferida mantida e considerada melhor a que já existe pois é contrário tanto à lei de natureza como à lei positiva divina fazer alguma coisa que tenda para sua subversão Além do mais nada tem a ver com o poder de qualquer pastor a não ser que detenha a soberania civil qual seja a melhor forma de governo pois sua vocação não é de governar os homens pelo mando mas de ensinálos e persuadilos com argumentos deixandolhes o cuidado de decidir se devem aceitar ou rejeitar a doutrina ensinada Porque a monarquia a aristocracia e a democracia representam para nós três espécies de soberanos não de pastores ou então como também podemos dizer três espécies de chefes de família e não três espécies de professores para as crianças Portanto a segunda conclusão relativa à melhor forma de governo da Igreja nada vale quanto à questão do poder do Papa fora de seus próprios domínios pois em todos os outros Estados seu poder se tiver algum é apenas o do professor não o do chefe de família Quanto à terceira conclusão a saber que São Pedro era monarca da Igreja cita ele como seu principal argumento uma passagem de São Mateus caps 16 18 19 Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha Igreja etc E darteei as chaves do céu tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desatares na terra será desatado no céu Passagem esta que se bem examinada nada mais prova senão que a Igreja de Cristo tinha como fundamento um único artigo a saber Aquele que Pedro em nome de todos os apóstolos professando deu ocasião a nosso Salvador para proferir as palavras aqui citadas para compreender claramente as quais devemos lembrar que nosso Salvador pregava unicamente por ele mesmo por João Batista e por seus apóstolos um único artigo de fé que ele era o Cristo sendo que todos os outros artigos exigem apenas a fé que nesse se fundamenta João começou primeiro Mt 107 pregando apenas isto 0 Reino de Deus está próximo E nosso Salvador pregava o mesmo Mt 417 e quando encarrega os doze apóstolos de sua missão Mt 107 não há referência à pregação de qualquer outro artigo a não ser esse Era este o artigo fundamental e é ele o fundamento da fé da Igreja Posteriormente quando os apóstolos voltaram a ele perguntou a todos eles e não apenas a Pedro Mt 1613 quem os homens diziam que ele era e eles responderam que alguns diziam que ele era São João Batista outros Elias outros Jeremias ou um dos profetas Então ele voltou a perguntarlhes e não apenas a Pedro vers 15 Quem dizeis vós que eu sou Ao que São Pedro respondeu em nome de todos Tu és Cristo Filho do Deus vivo o que eu já disse ser o fundamento da fé de toda a Igreja Aí nosso Salvador aproveitou a ocasião para dizer Sobre esta pedra construirei minha Igreja Pelo que fica manifesto que a pedra fundamental da Igreja era o mesmo que o artigo fundamental da fé da Igreja Mas então por que objetarão alguns nosso Salvador disse também as palavras Tu és Pedro Se o original deste texto tivesse sido rigorosamente traduzido a razão teria aparecido claramente é preciso lembrar que o apóstolo Simão era apelidado Pedra que é a significação da palavra siríaca cephas e da palavra grega pélros Portanto depois da confussão daquele artigo fundamental e referindose a seu nome disse ele assim como se fosse em nossa língua Tu és Pedra e sobre esta pedra construirei minha Igreja 0 que equivale dizer que o artigo Eu sou Cristo é o fundamento de toda fé que eu exijo dos que vão ser membros de minha Igreja E esta referência a um nome não é coisa inabitual na fala comum mas teria sido uma fala estranha e obscura se nosso Salvador tencionando construir sua Igreja sobre a pessoa de São Pedro tivesse dito Tu és uma pedra e sobre esta pedra construirei minha Igreja quando seria tão óbvio ter dito sem ambigüidade construirei minha Igreja sobre ti pois neste caso teria continuado a haver a mesma referência a seu nome E quanto às palavras darteei as chaves do céu etc não se trata de mais do que nosso Salvador deu também a seus restantes discípulos Mi 1818 Tudo o que ligares na terra será ligado no céu e tudo o que desatares na terra será desatado no céu Mas seja como for que isto se interprete não resta dúvida que o poder aqui conferido pertence a todos os Supremos Pastores como são todos os soberanos civis cristãos em seus próprios domínios Tanto assim é que se São Pedro ou nosso Salvador em pessoa tivesse convertido qualquer desses soberanos levandoo a acreditar nele e a reconhecer seu Reino mesmo assim dado que seu Reino não é deste mundo teria confiado unicamente a esse soberano o supremo cuidado de converter seus súditos caso contrário teria de priválo da soberania à qual está indissoluvelmente ligado o direito de ensinar E isto é quanto basta como refutação de seu primeiro livro onde pretende provar que São Pedro foi o monarca universal da Igreja quer dizer de todos os cristãos do mundo 0 segundo livro tem duas conclusões Uma é que São Pedro foi bispo de Roma e lá morreu A outra é que os Papas de Roma são seus sucessores Ambas estas conclusões têm sido contestadas por outros Mas mesmo supondo que são verdadeiras se acaso por bispo de Roma se entender o manarca da Igreja ou seu Supremo Pastor esse bispo não foi Silvestre e sim Constantino que foi o primeiro imperador cristão E do mesmo modo que Constantino também todos os outros imperadores cristãos eram por direito os bispos supremos do Império Romano Digo do Império Romano não de toda a cristandade pois os outros soberanos cristãos tinham o mesmo direito em seus diversos territórios dado tratarse de um cargo essencialmente inerente à sua soberania 0 que vale como resposta a seu segundo livro No terceiro livro discute ele o problema de saber se o Papa é o Anticristo Quanto a mim não vejo argumento algum capaz de provar que ele o é no sentido em que esse nome é usado nas Escrituras E também não tiro da qualidade de Anticristo qualquer argumento capaz de contradizer a autoridade que ele exercia ou que até então exercera nos domínios de qualquer outro príncipe ou Estado É evidente que os profetas do Antigo Testamento predisseram e os judeus esperavam um Messias isto é um Cristo que viria restabelecer entre eles o Reino de Deus que por eles havia sido rejeitado no tempo de Samuel quando pediram um rei à maneira das outras nações Esta sua expectativa tornavaos sujeitos às imposturas de todos quantos tinham ao mesmo tempo a ambição de conseguir esse reino e a arte de enganar o povo mediante milagres falsificados uma vida hipócrita ou orações e doutrinas plausíveis Por isso nosso Salvador e seus apóstolos preveniram o povo contra os falsos profetas e os falsos Cristos Os falsos Cristos são aqueles que pretendem ser o Cristo mas não o são e são propriamente chamados Anticristos no mesmo sentido em que quando se deu um cisma na Igreja por causa da eleição de dois Papas cada um deles chamava ao outro Antipapa ou falso Papa Portanto o Anticristo em sua significação própria tem dois caracteres essenciais Um deles é negar que Jesus é o Cristo e o outro é pretender ser ele mesmo o Cristo 0 primeiro caráter é definido por São João em sua primeira Epístola cap 4 vers 3 Todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus e esse é o espírito do Anticristo 0 outro caráter se exprime nas palavras de nosso Salvador Mt 245 Muitos virão em meu nome dizendo Eu sou o Cristo e também Se alguém vier a vós e disser aqui está o Cristo aí está Cristo não o acrediteis Portanto o Anticristo é forçosamente um falso Cristo isto é um dos que pretendem que são o Cristo E destes dois caracteres negar que Jesus seja o Cristo e afirmar de si mesmo que é o Cristo seguese que tem que existir também um adversário de Jesus o verdadeiro Cristo o que é uma outra significação habitual da palavra Anticristo Mas entre estes numerosos Anticristos existe um especial Ho Anticristos 0 Anticristo ou Anticristo definido como uma certa pessoa e não indefinidamente um Anticristo Ora visto que o Papa de Roma nem pretende sêlo ele mesmo nem nega que Jesus seja o Cristo não percebo como ele pode ser chamado Anticristo palavra esta pela qual não se entende alguém que falsamente pretende ser seu lugar tenente ou vigário geral mas ser ele Há também um caráter relativo ao tempo desse Anticristo especial como vemos em Mt 2415 quando aquele abominável destruidor a que se refere Daniel se erguer no lugar sagrado ocorrendo uma tribulação como nunca houve desde o princípio do mundo nem voltará a haver pois se durasse muito tempo vers 22 nenhuma carne se salvaria mas por causa dos eleitos esses dias serão encurtados serão menos dias Mas essa tribulação ainda não ocorreu pois ela será seguida imediatamente vers 29 por um obscurecimento do Sol e da Lua por uma queda das estrelas por um abalo dos céus e o glorioso retorno de nosso Salvador por entre as nuvens Portanto 0 Anticristo ainda não chegou ao passo que muitos Papas já vieram e se foram É certo que o Papa arrogandose o direito de ditar leis a todos os reis e nações da cristandade usurpou um reino deste mundo que Cristo não reservou para si mas não faz como Cristo e sim para Cristo e nisso nada há de 0 Anticristo No quarto livro a fim de provar que o Papa é o supremo juiz de todas as questões de fé e de costumes o que é o mesmo que ser o monarca absoluto de todos os cristãos do mundo apresenta ele três proposições A primeira é que seus juízos são infalíveis A segunda é que ele pode fazer autênticas leis castigando os que não as respeitam A terceira é que nosso Salvador conferiu ao Papa de Roma toda a jurisdição eclesiástica Para provar a infalibilidade de seus juízos alega as Escrituras e em primeiro lugar uma passagem de Lucas 2231 Simão Simão Satanás desejou poder peneirarte como trigo mas eu orei por ti para que tua fé não fraqueje e tu uma vez convertido fortalece a teus irmãos Conforme a exposição de Belarmino isto significa que Cristo concedeu aqui a Simão Pedro dois privilégios um deles era que sua fé não fraquejasse nem a fé de qualquer de seus sucessores o outro era que nem ele nem qualquer de seus sucessores jamais definiria erroneamente nem contrariamente à definição de um Papa anterior qualquer ponto relativo à fé ou aos costumes 0 que constitui uma interpretação estranha e extremamente forçada Quem ler com atenção esse capítulo verificará que não existe passagem em todas as Escrituras que mais milite contra a autoridade do Papa do que precisamente esta passagem Quando os sacerdotes e os escribas pretendiam matar nosso Salvador na Páscoa e Judas estava decidido a traílo no dia da matança do cordeiro pascal nosso Salvador celebrou o mesmo com seus apóstolos o que declarou não voltaria a fazer até à chegada do Reino de Deus e disselhes também que um deles iria traílo Ao que eles perguntaram qual deles iria fazêlo e além disso dado que a próxima Páscoa que o Mestre iria celebrar seria quando ele fosse Rei entraram numa discussão sobre quem seria então o maior homem Então nosso Salvador lhes disse que os reis das nações tinham domínio sobre seus súditos e eram designados por uma palavra que em hebreu significa generoso mas isso eu não posso ser para vós deveis esforçarvos por servirvos uns aos outros eu vos ordeno um Reino mas tal como meu Pai mo ordenou a mim um Reino que vou agora comprar com meu sangue e que só vou possuir após minha segunda vinda então comereis e bebereis à minha mesa e sentarvoseis em tronos julgando as doze tribos de Israel Então dirigindose a São Pedro disse Simão Simão Satanás tenta sugerindo uma dominação presente enfraquecer tua fé no futuro mas eu orei por ti para que tua fé não fraqueje Portanto tu notai isto estando convertido e compreendendo que meu Reino é de outro mundo consolida a mesma fé em teus irmãos Ao que São Pedro respondeu como alguém que já não espera qualquer autoridade neste mundo Senhor estou pronto para ir contigo não apenas para a prisão mas também para a morte Por onde fica manifesto não apenas que não foi dada a São Pedro qualquer jurisdição neste mundo mas também que lhe foi dado o encargo de ensinar aos outros apóstolos que eles também não teriam nenhuma Quanto à infabilidade das sentenças definitivas de São Pedro em matéria de fé o que pode atribuirselhe com base neste texto é unicamente que São Pedro devia conservar sua crença neste ponto a saber que Jesus voltaria de novo e possuiria o Reino no dia do juízo final o que por este texto não é atribuído a todos os seus sucessores dado que no mundo atual vemos que o continuam reclamando A segunda passagem é a de Ml 16 Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha Igreja e os portões do inferno não prevalecerão contra ela 0 que prova apenas conforme já mostrei neste capítulo que os portões do inferno não prevalecerão contra a confissão de Pedro que deu origem a essa fala nomeadamente esta que Jesus é Cristo Filho de Deus O terceiro texto é o de João 21 vers 16 e 17 alimenta minhas ovelhas o que encerra somente uma missão de ensinar E se concedemos que os restantes apóstolos estão incluídos na designação de ovelhas tratarseá do supremo poder de ensinar mas apenas para o tempo em que não havia soberanos cristãos que já possuíssem essa supremacia Mas já provei que os soberanos cristãos são em seus domínios os supremos pastores e que são instituídos como tais em virtude de serem batizados embora sem qualquer outra imposição de mãos Dado que essa imposição é uma cerimônia para designar a pessoa tornase desnecessária visto que ele já está designado para o poder de ensinar a doutrina que lhe aprouver por sua instituição como detentor de um poder absoluto sobre seus súditos Pois conforme já mostrei antes os soberanos são em virtude de seu cargo os supremos mestres em geral e ficam obrigados por seu batismo a ensinar a doutrina de Cristo E quando permitem a outros ensinarem a seu povo fazemno com risco de suas próprias almas pois será aos chefes de família que Deus irá pedir contas da instrução de seus filhos e servos Foi do próprio Abraão e não de um contratado que Deus disse Gên 1819 Sei que ele ordenará a seus filhos e a sua casa que o sigam no caminho do Senhor fazendo justiça e julgamento A quarta passagem é a de Êx 2830 Tu porás no peitoral do julgamento o Urim e o Thummin o que ele diz ser interpretado pelos Septuaginta como délosin kaì alétheian isto é evidência e verdade E daí conclui que Deus havia dado a evidência e a verdade o que é quase a infalibilidade ao Sumo Sacerdote Mas quer o que foi dado seja a evidência e a verdade quer seja apenas uma advertência ao sacerdote para esforçar se por se informar claramente pelo fato de tal Pr sido dado ao Sumo Sacerdote foi dado ao soberano civil Pois era esta abaixo de Deus a qualidade do Sumo Sacerdote no Estado de Israel o que constitui um argumento a favor da evidência e da verdade isto é da supremacia eclesiástica dos soberanos civis sobre todos os seus súditos contra o pretenso poder do Papa São estes todos os textos por ele alegados em favor da infalibilidade de julgamento do Papa em matéria de fé Quanto à infalibilidade de seu julgamamento relativamente aos costumes alega ele um texto que é o de João 1613 Quando o espírito da verdade chegar ele vos guiará até toda verdade onde diz ele por toda verdade se entende pelo menos toda verdade necessária para a salvação Mas com esta forma mitigada ele não atribui ao Papa mais infalibilidade do que a qualquer pessoa que professe o cristianismo e não vai ser condenada Pois se qualquer pessoa errar em qualquer ponto onde não errar seja necessário para a salvação é impossível que ela seja salva pois para a salvação é necessário unicamente aquilo sem o que é impossível ser se salvo Quais são esses pontos vou declarálo a partir das Escrituras no capítulo seguinte Aqui direi simplesmente que mesmo concedendo que ao Papa é impossível ensinar qualquer erro tal não lhe dá direito a qualquer jurisdição nos domínios de outro príncipe a não ser que ao mesmo tempo sustentemos que cada um é obrigado em consciência a dar trabalho em todas as ocasiões ao melhor trabalhador mesmo que tenha anteriormente prometido esse trabalho a um outro Além de alegar os textos alega ele a razão da maneira seguinte Se o Papa pudesse errar nas coisas necessárias então Cristo não teria previsto suficientemente para a salvação da Igreja pois lhe ordenou que seguisse as indicações do Papa Mas esta razão não é válida a não ser que ele mostre quando e onde Cristo tal ordenou ou sequer tomou qualquer conhecimento de algum Papa Mais mesmo concedendo que tudo o que foi dado a São Pedro foi dado ao Papa visto não haver nas Escrituras qualquer ordem para se obedecer a São Pedro não poderá ser justo quem lhe obedecer quando suas ordens forem contrárias às de seu soberano legítimo Por último não foi declarado pela Igreja nem pelo próprio Papa que ele seja o soberano civil de todos os cristãos do mundo Portanto os cristãos não são todos obrigados a reconhecer sua jurisdição em matéria de costumes Porque a soberania civil e a suprema judicatura quanto às controvérsias de costumes são uma e a mesma coisa E os criadores das leis civis não são apenas os declarantes são também os criadores da justiça e injustiça das ações pois nada há nos costumes dos homens que os faça íntegros ou iníquos a não ser sua conformidade com a lei do soberano Portanto quando o Papa reclama a supremacia quanto às controvérsias de costumes está ensinando os homens a desobedecer ao soberano civil o que é uma doutrina errônea contrária aos muitos preceitos de nosso Salvador e seus apóstolos que nos foram transmitidos pelas Escrituras Para provar que o Papa tem o direito de fazer leis invoca ele muitas passagens Em primeiro lugar Dt 17120 homem que age presunçosamente não dando ouvidos ao Sacerdote que está ali para ministrar perante o Senhor teu Deus ou o juiz esse homem morrerá e tu farás desaparecer o mal de Israel Para responder a isto convém lembrar que o Supremo Sacerdote imediatamente abaixo de Deus era o soberano civil e que todos os juízes deviam por ele ser constituídos Portanto as palavras referidas significam o seguinte 0 homem que ousar desobedecer ao soberano civil do momento ou a qualquer de seus funcionários na execução de suas funções esse homem morrerá etc o que é claramente a favor da soberania civil e contra o poder universal do Papa Em segundo lugar alega ele Mt 16 Tudo o que ligares etc e interpreta esse ligar como o mesmo que é atribuído aos escribas e fariseus Mt 234 Eles ligam pesados fardos duros de carregar e poemnos aos ombros dos homens o que significa segundo ele fazer leis e daí conclui que o Papa pode fazer leis Mas também isto somente milita em favor do poder legislativo dos soberanos civis porque os escribas e fariseus sentavamse na cadeira de Moisés mas Moisés era abaixo de Deus o soberano do povo de Israel e assim nosso Salvador ordenou a este que fizesse tudo o que eles dissessem mas não tudo o que eles fizessem Isto é que obedecessem a suas leis não que seguissem seus exemplos A terceira passagem é João 2116 alimenta minhas ovelhas o que não é um poder para fazer leis mas uma ordem para ensinar Fazer as leis é da competência do Senhor da família que por sua própria discrição escolhe o capelão e também o professor que vai ensinar seus filhos A quarta passagem João 2021 é contra ele As palavras são Como meu Pai me enviou a mim vos envio eu a vós Mas nosso Salvador foi enviado para redimir com sua morte os que acreditassem assim como para preparálos através de sua própria pregação e da dos apóstolos para a entrada em seu Reino do qual ele mesmo disse que não era deste mundo e nos ensinou a orar por sua vinda futura embora recusasse At 16s dizer aos apóstolos quando ela se daria e no qual quando chegar os doze apóstolos se sentarão em doze tronos talvez cada um deles tão alto como o de São Pedro para julgar as doze tribos de Israel Dado que Deus Pai não enviou a nosso Salvador para fazer leis neste mundo podemos concluir do texto que nosso Salvador também não enviou a São Pedro para fazer leis aqui e sim para persuadir os homens a esperarem sua segunda vinda com uma fé inquebrantável e entretanto se forem súditos a obedecerem a seus príncipes e se forem príncipes tanto a em tal acreditarem eles próprios quanto a fazerem todos os esforços para levarem seus súditos a acreditar no mesmo o que é a função de um bispo Portanto esta passagem milita muito fortemente em favor da atribuição da supremacia eclesiástica à soberania civil contrariamente ao que o Cardeal Belarmino dela pretende concluir A quinta passagem é Atos 1528 Pareceu bom ao Espírito Santo e a nós não vos impor um fardo maior do que estas coisas necessárias que abstenhas de oferecer sacrifícios aos ídolos e do sangue e de coisas estranguladas e da fornicação Aqui interpreta ele a frase impor um fardo no sentido do poder legislativo Mas quem poderá dizer ao ler este texto que esta fórmula dos apóstolos não pode ser usada com igual propriedade para dar conselho assim como para fazer leis A fórmula da lei é nós ordenamos mas parecenos bom é a fórmula habitual de quem se limita a dar conselho E quem dá conselho impõe um fardo embora seja condicional isto é um fardo tal que quem o receber conseguirá seus fins E P esse o caso do fardo de absterse das coisas estranguladas e do sangue que não é absoluto mas apenas para o caso de não se querer errar Já antes mostrei cap 25 que a lei se distingue do conselho no seguinte que a razão de uma lei é tirada do desígnio e beneficio de quem a prescreve ao passo que a razão de um conselho é tirada do desígnio e beneficio daquele a quem é dado o conselho E no presente caso os apóstolos visam apenas ao beneficio dos gentios convertidos ou seja sua salvação e não seu próprio beneficio pois desde que cumpram sua missão terão sua recompensa quer sejam obedecidos quer não Portanto os atos desse concílio não eram leis eram conselhos A sexta passagem é a de Rom 13 Que cada alma se sujeite aos poderes superiores pois não há poder senão o de Deus 0 que segundo ele não se aplica apenas aos príncipes seculares mas também aos príncipes eclesiásticos Ao que respondo em primeiro lugar que os únicos príncipes eclesiásticos são os que são também soberanos civis e que seus principados não ultrapassam o âmbito de sua soberania civil fora desses limites podem ser aceitos como doutores mas não podem ser reconhecidos como príncipes Pois se o apóstolo tivesse querido dizer que devemos ser súditos tanto de nossos próprios príncipes como do Papa ternosia ensinado uma doutrina que o próprio Cristo nos disse ser impossível a saber servir a dois Senhores E embora o apóstolo diga em outra passagem Escrevo estas coisas estando ausente pois se estivesse presente usaria de dureza de acordo com o poder que me deu o Senhor não significa isto que ele reclamasse o poder de condenar à morte ou à prisão ao banimento ao açoitamento ou a uma multa a qualquer deles sendo tudo isto punições mas apenas o poder de excomungar o qual sem o poder civil não é mais do que abandonar a companhia e nada mais ter a ver com o excomungado do que com um pagão ou um publicano 0 que em muitos casos pode ser mais doloroso para o excomungante do que para o excomungado A sétima passagem é 1 Cor 421 Devo ir a vós com um vara ou com amor e espírito de clemência Mas mais uma vez aqui não é o poder que um magistrado tem para punir os criminosos que se entende por uma vara mas apenas o poder da excomunhão que por sua natureza não é um punição mas apenas uma denúncia da punição que Cristo virá a infligir quando estiver de pose de seu Reino no dia do juízo E mesmo então não será propriamente uma punição 1o tipo da que se aplica a um súdito que infringiu a lei mas de uma vingança como a que se aplica a um inimigo ou um rebelde que nega o direito de nosso Salvador a seu Reino Portanto isso não prova o poder legislativo de qualquer bispo que não possua também o poder civil A oitava passagem é 1 Tim 32 Um bispo deve ser marido de uma só mulher vigilante sóbrio etc do que ele diz que é uma lei Pensava eu que quem na Igreja podia fazer leis era unicamente o monarca da Igreja São Pedro Mas mesmo supondo que esse preceito provenha da autoridade de São Pedro não vejo razão para chamarlhe uma lei e não um conselho dado que Timóteo não era súdito de São Paulo mas apenas seu discípulo e os membros do rebanho que Timóteo tinha a seu cargo também não eram súditos de seu reino mas SCub escolares na escola de Cristo Se todos os preceitos que ele deu a Timóteo fossem leis por que não o seria também uma lei o de não beber mais água mas usar um pouco de vinho por causa da saúde E por que não serão os preceitos dos bons hsicosZ9 outras tantas leis 0 que transforma um preceito numa lei não é a maneira imperativa de falar e sim a sujeição absoluta a uma pessoa Da mesma maneira a nona passagem 1 Tim 519 Contra um ancião não aceites acusação a não ser diante de duas ou três testemunhas é um sábio preceito mas não é uma lei A décima passagem é Lucas 1016 Aquele que vos ouve ouveme a mim e aquele que vos despreza desprezame a mim E não resta dúvida que quem despreza o conselho dos que são enviados por Cristo despreza o conselho do próprio Cristo Mas quem são esses que são enviados por Cristo senão os que são ordenados pastores pela autoridade legítima E quem é legitimamente ordenado se não for ordenado pelo soberano pastor E quem é ordenado pelo soberano pastor num Estado cristão se não for ordenado pela autoridade do soberano desse Estado Desta passagem concluise portanto que quem ouvir a seu soberano sendo este cristão ouve a Cristo e que quem despreza a doutrina autorizada por seu rei sendo este cristão despreza a doutrina de Cristo e não era isto que Belarmino pretendia aqui provar mas o contrário Mas nada disto tem coisa alguma que ver com as leis Mais um rei cristão em sua qualidade de pastor e mestre de seus súditos não faz por isso que suas doutrinas sejam leis Ele não pode obrigar as pessoas a acreditar embora enquanto soberano civil possa fazer leis compatíveis com sua doutrina as quais possam obrigar os homens a certas ações e às vezes ações que de outro modo eles não praticariam e que ele não deveria ordenar mas na medida em que são ordenadas elas são leis e as ações externas praticadas em obediência a elas sem aprovação interior são ações do soberano e não do súdito que neste caso é apenas um instrumento e não efetua qualquer movimento próprio porque Deus ordenou que lhes obedecesse A décima primeira é toda passagem onde os apóstolos usam para designar um conselho alguma palavra que se costuma usar com o significado de uma ordem ou quando designam a aceitação de seus conselhos com o nome de obediência Assim invocase de 1 Cor 112 Recomendovos que guardeis meus preceitos tais como volos dei No grego está Recomendovos que guardeis as coisas que vos dei tais como eu volas dei 0 que está muito longe de significar que eram leis ou qualquer coisa senão bons conselhos E a de 1 Tes 42 Vós sabeis que mandamentos vos demos onde a frase grega é parangeáás edókamen equivalente a paredókamen o que vos entregamos como na passagem anteriormente invocada o que não prova que as tradições dos apóstolos fossem outra coisa senão conselhos Embora se diga no versículo 8 Aquele que os despreza não despreza a ninguém senão a Deus Porque mesmo nosso Salvador não veio para julgar isto é para ser rei deste mundo mas para sacrificarse pelos pecadores e para deixar em sua Igreja doutores que guiassem e não que empurrassem os homens para Cristo que jamais aceitou ações forçadas que é tudo o que a lei produz mas apenas a conversão interior do coração a qual não é obra das leis mas dos conselhos e da doutrina E a de 2 Tes 314 Se algum homem não obedecer a nossa palavra nesta Epístola assinalai esse homem e não aceites sua companhia para que ele se envergonhe onde da palavra obedecer pretende ele inferir que esta Epístola era uma lei para os tessalônicos Sem dúvida que as Epístolas dos imperadores eram leis Portanto se eles tivessem que obedecer também à Epístola de São Paulo eles teriam que obedecer a dois senhores Mas a palavra obedecer que em grego é hypakoúei significa dar ouvidos a ou pôr em prática não apenas aquilo que é ordenado por quem tem o direito de castigar mas também aquilo que é apresentado sob a forma de conselho para nosso bem Assim São Paulo não diz que matem o desobediente ou que lhe batam ou o prendam ou que o multem o que todos os legisladores podem fazer e sim que evitem sua companhia para que se envergonhe com o que fica evidente que o que mantinha os cristãos em respeito não era o império de um apóstolo mas sua reputação entre os fiéis A última passagem é a de Hbr 1317 Obedecei a vossos chefes e submeteivos a eles pois eles velam por vossas almas já que terão que prestar contas delas Também aqui se entende por obediência seguir seus conselhos pois a razão de nossa obediência não deriva da vontade e do mando de nossos pastores e sim de nosso próprio beneficio pois o que eles têm em atenção é a salvação de nossas almas e não a exaltação de seu próprio poder e autoridade Se aqui se pretendesse dizer que tudo o que eles ensinam são leis daí resultaria que não apenas o Papa mas também cada pastor em sua paróquia teria poder legislativo Por outro lado os que são obrigados a obedecer a seus pastores não têm o poder de examinar suas ordens Que iremos então dizer a São João que nos manda 1 Jo 41 Não obedecer a todo espírito mas provar os espíritos para saber se são de Deus pois andam pelo mundo muitos falsos profetas Portanto é manifesto que podemos contestar as doutrinas de nossos pastores mas ninguém pode contestar uma lei As ordens dos soberanos civis são confirmadas como leis sob todos os aspectos Se além deles alguém puder fazer leis será o fim de todo Estado e consequentemente de toda paz e justiça o que é contrário a todas as leis tanto divinas como humanas Portanto nada se pode concluir desta ou de qualquer outra passagem das Escrituras no sentido de provar que os decretos do Papa são leis onde ele não tiver também a soberania civil 0 último ponto que ele pretende provar é o seguinte Que Cristo nosso Salvador não confiou a jurisdição eclesiástica imediatamente a ninguém a não ser o Papa E aqui ele não trata da questão da supremacia entre o Papa e os reis cristãos mas entre o Papa e os outros bispos E em primeiro lugar diz estar estabelecido que a jurisdição dos bispos é pelo menos em geral de jure divino isto é pelo direito de Deus Para proválo cita São Paulo Ef 411 onde se diz que Cristo após sua Ascensão aos céus concedeu dons aos homens uns como apóstolos outros como profetas outros como evangelistas outros como pastores e outros como mestres E daí infere que sem dúvida eles têm sua jurisdição pelo direito de Deus mas não concede que a recebam imediatamente de Deus e sim por intermédio do Papa Mas se de alguém se disser que tem sua jurisdição de jure divino mas não imediatamente qual a jurisdição legítima ainda que apenas civil que pode existir num Estado cristão sem ser ao mesmo tempo de jure divino Porque os reis cristãos recebem seu poder civil imediatamente de Deus e os magistrados abaixo deles exercem seus diversos cargos em virtude de sua delegação e o que nesse exercício fazem não é menos de jure divino mediato do que o que os bispos fazem em virtude da ordenação pelo Papa Todo poder legítimo é imediatamente divino no supremo governante e mediatamente nos que têm autoridade abaixo dele Assim ou se reconhece que todo funcionário do Estado tem seu cargo pelo direito de Deus ou é impossível afirmar que assim o tem qualquer bispo além do próprio Papa Mas toda esta discussão sobre se Cristo atribuiu a jurisdição apenas ao Papa ou também a outros bispos se não se referir aos lugares onde o Papa detém a soberania civil é uma disputa de lana caprina Pois nem um nem os outros quando não são soberanos possuem qualquer espécie de jurisdição Porque a jurisdição é o poder de ouvir e decidir os litígios entre os homens e não pode pertencer a ninguém a não ser àquele que possui o poder de prescrever as regras do bem e do mal isto é de fazer as leis E com a espada da justiça obrigando os homens a obedecer a suas decisões quer sejam proferidas por ele mesmo ou pelos juízes que nomeou para esse fim coisa que só o soberano civil pode legitimamente fazer Quando portanto Belarmino alega baseado no capítulo 6 de Lucas que nosso Salvador mandou reunir seus discípulos e escolheu doze homens aos quais chamou apóstolos prova apenas que Cristo os elegeu a todos com exceção de Manas Paulo e Barnabé e lhes deu poder e mando para pregar mas não para julgar os litígios entre os homens pois esse é um poder que ele próprio recusou assumir dizendo Quem fez de mim um juiz ou um divisor entre vós e em outra passagem Meu reino não é deste mundo E de quem não tem poder para ouvir e decidir os litígios entre os homens não pode dizerse que tem qualquer espécie de jurisdição Mas isto não impede que nosso Salvador lhes tenha dado poder para pregar e batizar em todas as partes do mundo desde que não fossem proibidos por seu próprio soberano legítimo Porque o próprio Cristo e seus apóstolos expressamente nos ordenaram que obedecêssemos a nosso soberano em todas as coisas Os argumentos mediante os quais ele pretende provar que os bispos recebem do Papa sua jurisdição são inúteis dado que o próprio Papa não tem qualquer jurisdição nos domínios dos outros príncipes Mas como pelo contrário eles provam que todos os bispos recebem de seus soberanos civis a jurisdição que têm não deixarei de enumerálos 0 primeiro é de Números 11 onde Moisés sendo incapaz de arcar sozinho com todo o fardo da administração dos negócios do povo de Israel recebeu de Deus a ordem de escolher setenta anciãos e Deus tomou uma parte do espírito de Moisés para dála a esses setenta anciãos 0 que não significa que Deus tenha enfraquecido o espírito de Moisés o que em nada teria vindo ajudar a este mas que todos eles haviam dele recebido sua autoridade com o que Belarmino interpreta de maneira autêntica e engenhosa esta passagem Mas como Moisés tinha toda a soberania no Estado dos judeus é manifesto que aquilo significa terem eles recebido do soberano civil sua autoridade e consequentemente a passagem prova que em todos os Estados cristãos os bispos recebem do soberano civil sua autoridade recebendoa do Papa apenas nos territórios deste último e não nos territórios de qualquer outro Estado 0 segundo argumento deriva da natureza da monarquia onde toda autoridade pertence a um só homem sendo a dos outros emanada deste Mas o governo da Igreja diz ele é monárquico Isto também milha em favor dos monarcas cristãos Pois estes são realmente monarcas de seu próprio povo isto é de sua própria Igreja porque a Igreja é a mesma coisa que um povo cristão ao passo que o poder do Papa mesmo no caso de São Pedro nem é monárquico nem tem nada de árquico ou de tráfico é apenas didático Porque Deus não aceita uma obediência forçada mas apenas voluntária 0 terceiro assenta no fato de o vaso de São Pedro ser chamado por São Cipriano a cabeça a fonte a raiz o solde onde deriva a autoridade dos bispos Mas pela lei de natureza que é um princípio do bem e do mal melhor do que a palavra de qualquer doutor que é apenas um homem o soberano civil de cada Estado é a cabeça a fonte a raiz o sol de onde deriva toda jurisdição Portanto a jurisdição dos bispos deriva do soberano civil 0 quarto é tirado da desigualdade de suas jurisdições Porque se Deus diz ele lha tivesse dado imediatamente teria conferido ao mesmo tempo igualdade de jurisdição e de ordem Mas verificase que alguns são bispos de apenas uma cidade outros de uma centena de cidades e outros de muitas províncias inteiras e estas diferenças não são determinadas pelas ordens de Deus Portanto sua jurisdição não vem de Deus e sim do homem e ela é maior ou menor conforme apraz ao príncipe da Igreja Argumento este que teria servido seu propósito se antes tivesse provado que o Papa é detentor de uma jurisdição universal sobre todos os cristãos Mas como isso não foi provado e é sabido e notório que a ampla jurisdição do Papa lhe foi dada pelos que a tinham isto é pelos imperadores de Roma pois o patriarca de Constantinopla baseado no mesmo título ou seja de ser bispo da capital do império e sede do imperador pretendia ser igual a ele seguese que todos os outros bispos recebem sua jurisdição dos soberanos dos lugares onde a exercem E como devido a isso eles não têm autoridade de jure divino também o Papa a não tem de jure divino a não ser onde tenha também o cargo de soberano civil 0 quinto argumento é o seguinte Se os bispos recebem sua jurisdição imediatamente de Deus o Papa não lha pode tirar pois nada pode fazer de contrário ao que Deus determinou Conseqüência esta que é correta e bem provada Mas diz ele o Papa pode fazêlo e já o tem feito 0 que também se admite desde que o faça em seus próprios domínios ou nos domínios de qualquer outro príncipe que lhe tenha dado esse poder mas não universalmente como um direito do Papado Pois esse poder pertence a cada soberano cristão dentro das fronteiras de seu império e é inseparável da soberania Antes de o povo de Israel por ordem de Deus a Samuel se ter submetido a um rei à maneira das outras nações o Sumo Sacerdote detinha o governo civil e só ele podia nomear ou depor um sacerdote inferior Mas posteriormente esse poder passou ao rei conforme pode ser provado pelo mesmo argumento de Belarmino Porque se o sacerdote fosse ele o Sumo Sacerdote ou qualquer outro recebesse sua jurisdição imediatamente de Deus nesse caso o rei não poderia tirarlha pois nada pode fazer de contrário ao que Deus determinou Mas é sabido que o rei Salomão 1 Rs 226 privou de seu cargo ao Sumo Sacerdote Abiatar colocando em seu lugar a Zadok versículo 35 Portanto os reis podem do mesmo modo ordenar e demitir os bispos conforme lhes aprouver para o bom governo de seus súditos 0 sexto argumento é o seguinte Se os bispos têm sua jurisdição de jure divino quer dizer recebido imediatamente de Deus os que o sustentam deveriam apresentar alguma palavra de Deus capaz de proválo mas não podem apresentar nenhuma 0 argumento é válido portanto nada tenho a dizer contra ele Mas não é menos válido o argumento que prova que o próprio Papa não tem jurisdição nos domínios de qualquer outro príncipe Por último apresenta ele como argumento o testemunho de dois Papas Inocêncio e Leão E não duvido de que ele poderia ter invocado com idêntica razão os testemunhos de quase todos os Papas desde São Pedro Dado o amor ao poder naturalmente implantado no gênero humano quem quer que seja feito Papa terá a tentação de sustentar a mesma opinião No entanto o que eles fariam seria apenas como foi o caso de Inocêncio e Leão prestar testemunho sobre si mesmos e portanto seu testemunho não seria válido No quinto livro apresenta ele quatro conclusões A primeira é Que o Papa não é senhor do mundo inteiro A segunda Que o Papa não é senhor de todo o mundo cristão A terceira Que o papa fora de seu próprio território não tem diretamente qualquer jurisdição temporal Facilmente se aceitam estas três conclusões A quarta é Que o Papa nos domínios dos outros príncipes tem indiretamente o supremo poder temporal Conclusão que nego a não ser que indiretamente queira dizer que foi obtido por meios indiretos caso em que a aceito Mas suponho que quando diz que ele o tem indiretamente ele quer dizer que essa jurisdição temporal lhe pertence de direito e que esse direito é apenas uma conseqüência de sua autoridade pastoral o qual não poderia exercer se não tivesse também esta Portanto ao poder pastoral ao qual chama espiritual está necessariamente ligado o supremo poder civil tendo ele assim o direito de mudar os reinos dandoos a um e tirandoos de outro quando pensar que tal contribui para a salvação das almas Antes de passar a examinar os argumentos mediante os quais ele pretende provar esta doutrina não seria despropositado pôr a nu suas conseqüências a fim de que os príncipes e governantes detentores da soberania civil em seus diversos Estados possam avaliar por si mesmos se é para eles conveniente aceitálas e se elas contribuem para o bem de seus súditos do qual terão que prestar contas no dia do juízo Quando se diz que o Papa nos territórios dos outros Estados não tem diretamente o supremo poder civil devemos entender que ele não o reclama ao contrário dos outros soberanos civis com base na submissão original daqueles que irão ser governados Pois é evidente e já foi neste tratado suficientemente demonstrado que o direito de todos os soberanos deriva originariamente do consentimento de cada um dos que irão ser governados quer o escolham tendo em vista a defesa comum contra um inimigo como quando concordam entre si em designar um homem ou uma assembléia para protegêlos quer o façam para salvar suas vidas por submissão a um conquistador inimigo Portanto o Papa quando renuncia à posse direta do supremo poder civil sobre os outros Estados nega unicamente ter adquirido seu poder dessa maneira Nem por isso deixa de o exigir de outra maneira a qual consiste sem o consentimento dos que irão ser governados num direito a ele dado por Deus o que ele chama indiretamente em sua assunção do Papado Mas seja qual for a maneira de adquirilo o poder continua sendo o mesmo podendo ele se tal lhe for concedido como um direito depor príncipes e governantes sempre que tal seja pela salvação das almas isto é quantas vezes lhe aprouver pois ele pretende também ser o único a ter o poder de julgar seja ou não seja para a salvação das almas dos homens E é esta a doutrina que não apenas Belarmino nesta obra e muitos outros doutores ensinam em seus sermões e livros mas também que alguns concílios decretaram e conformemente a isso os Papas puseram em prática sempre que a ocasião lhes foi propícia Porque o quarto concílio de Latrão realizado sob o Papa Inocêncio III no terceiro capítulo De Haereticis estabeleceu o seguinte cânone Se apesar de admoestado pelo Papa um rei deixar de expurgar seu reino dos hereges e se depois depor tal ser excomungado não prestar satisfação dentro de um ano seus súditos ficarão dispensados de obedecerlhe Isto foi posto em prática em diversas ocasiões como quando da deposição de Chilperico rei de França na translação do Império Romano para Carlos Magno na opressão do rei João de Inglaterra na transferência do reino de Navarra e em anos mais recentes na liga contra Henrique III de França além de muitas outras ocorrências Penso haver poucos príncipes que não considerem isto injusto e inconveniente mas gostaria que todos eles decidissem se querem ser reis ou súditos Os homens não podem servir a dois senhores Devem portanto os príncipes aliviálos seja tomando completamente em suas mãos as rédeas do governo seja deixandoas inteiramente nas mãos do Papa a fim de que os que desejam ser obedientes sejam protegidos em sua obediência Porque essa distinção entre o poder temporal e o poder espiritual não passa de palavras Dáse uma divisão tão real do poder e sob todos os aspectos tão perigosa dividindo com outrem um poder indireto como um poder direto Mas passemos agora a seus argumentos 0 primeiro é o seguinte 0 poder civil está sujeito ao poder espiritual Portanto o detentor do supremo poder espiritual tem o direito de mando sobre as príncipes temporais e o de dispor de suas temporalidades tendo em vista o espiritual Quanto à distinção entre o temporal e o espiritual examinemos em que sentido pode dizerse inteligivelmente que o poder temporal ou civil está sujeito ao espiritual Há duas maneiras como estas palavras podem adquirir sentido Pois quando dizemos que um poder está sujeito a outro poder ou isso significa que quem tem um deles está sujeito a quem tem o outro ou então que um dos poderes está para o outro como um meio está para um fim Porque é impossível entender que um poder tenha poder sobre outro poder ou que um poder possa ter direito de mando sobre outro visto que sujeição mando direito e poder não são acidentes de poderes e sim de pessoas Um poder pode estar subordinado a outro tal como a arte do seleiro o está à arte do cavaleiro Assim mesmo concedendo que o governo civil seja estabelecido como meio para conduzirnos a uma felicidade espiritual daí não se segue que se um rei tiver o poder civil e o Papa o poder espiritual em conseqüência disso o rei seja obrigado a obedecer ao Papa tal como um seleiro não é obrigado a obedecer a qualquer cavaleiro Portanto tal como da subordinação de uma arte não pode inferirse a sujeição do mestre assim também da subordinação de um governo não pode inferirse a sujeição de um governante Portanto quando ele diz que o poder civil está sujeito ao espiritual isso significa que o soberano civil está sujeito ao soberano espiritual E o argumento fica assim 0 soberano civil está sujeito ao espiritual portanto o príncipe espiritual pode mandar nos príncipes temporais E aqui a conclusão é a mesma que o antecedente que ele deveria ter provado Mas para proválo invoca ele em primeiro lugar esta razão Os reis e os Papas o clero e os leigos constituem um único Estado quer dizer uma única Igreja E em todos os corpos os membros dependem uns dos outros Mas as coisas espirituais não dependem das coisas temporais portanto as temporais dependem das espirituais estandolhes portanto sujeitas Argumentação esta onde há dois erros grosseiros Um deles é que todos os reis cristãos Papas clero e todos os outros cristãos constituem um único Estado Porque é evidente que a França é um Estado a Espanha é outro Veneza é um terceiro etc E estes Estados são formados por cristãos sendo portanto outros tantos corpos de cristãos quer dizer outras tantas Igrejas E seus respectivos soberanos são seus representantes graças ao que eles são capazes de comandar e obedecer de fazer e de padecer tal como um homem natural o que não é o caso de qualquer Igreja geral ou universal enquanto não tiver um representante coisa que na terra não tem pois se o tivesse não haveria dúvida de que toda a cristandade seria um único Estado cujo soberano seria esse representante tanto nas coisas espirituais como nas temporais E ao Papa para tornarse esse representante faltam três coisas que nosso Salvador não lhe deu Mandar e julgar e castigar a não ser por excomunhão separarse de quem com ele se recusa a aprender Pois mesmo que o Papa fosse o único vigário de Cristo ele não poderia exercer seu governo antes da segunda vinda de nosso Salvador E então também não será o Papa mas o próprio São Pedro juntamente com os outros apóstolos quem irá ser juiz do mundo Neste primeiro argumento o outro erro é ele dizer que os membros de todo Estado dependem uns dos outros tal como num corpo natural É certo que existe uma coesão entre eles mas dependem apenas do soberano que é a alma do Estado cuja falta levaria o Estado a desagregarse numa guerra civil deixando de haver coesão entre os homens por falta de uma dependência comum em relação a um soberano conhecido Tal como os membros do corpo natural se desagregam no pó por falta de uma alma que os conserve unidos Portanto não há nesta semelhança nada de onde possa inferirse a dependência dos leigos em relação ao clero ou dos funcionários temporais em relação aos espirituais mas apenas de ambos em relação ao soberano civil o qual sem dúvida deve orientar suas ordens civis no sentido da salvação das almas mas nem por isso fica submetido a ninguém a não ser ao próprio Deus Fica assim patente a elaborada falácia do primeiro argumento para enganar os que não sabem distinguir entre a subordinação das ações em vista de um fim e a sujeição das pessoas umas às outras na administração dos meios Porque para cada fim os meios são determinados pela natureza ou sobrenaturalmente pelo próprio Deus Mas o poder para levar os homens a usar os meios é em todas as nações atribuído pela lei de natureza que proíbe faltar à palavra dada ao soberano civil Seu segundo argumento é o seguinte Todo Estado dado suporse que seja perfeito e suficiente em si mesmo pode mandar em qualquer outro Estado que não lhe esteja sujeito e forçálo a mudar a administração do governo mais pode depor o príncipe e colocar outro em seu lugar se de outro modo não puder defender se contra as injúrias que ele se prepara para fazerlhe E muito mais pode um Estado espiritual ordenar a um Estado temporal que mude a administração de seu governo ou depor o príncipe e instituir outro quando de outro modo não possa defender o bem espiritual Que um Estado a fim de defenderse contra injúrias pode legitimamente fazer tudo o que ele aqui diz é muito verdadeiro e foi já suficientemente demonstrado em tudo o que precede E se também fosse verdade existir hoje no mundo um Estado espiritual distinto de um Estado civil nesse caso seu príncipe se lhe fosse feita injúria ou se lhe faltasse garantia de que não lhe seria feita injúria no futuro poderia defender se e garantirse através da guerra 0 que em suma consiste em depor matar ou subjugar ou na prática de qualquer ato de hostilidade Mas pela mesma razão não seria menos legítimo que um soberano civil perante a concretização ou o medo de idênticas injúrias declarasse guerra ao soberano espiritual o que julgo ser mais do que o Cardeal Belarmino gostaria de inferir de suas próprias proposições Mas não existe neste mundo Estado espiritual algum pois isso é a mesma coisa que o Reino de Cristo do qual ele mesmo disse não ser deste mundo Mas existirá no outro mundo quando da ressurreição quando os que viveram justamente e acreditaram que ele era o Cristo se erguerem apesar de terem morrido como corpos naturais como corpos espirituais E será então que nosso Salvador julgará o mundo e vencerá seus adversários e fundará um Estado espiritual Entretanto dado não existirem à face da terra homens cujos corpos sejam espirituais não pode haver qualquer Estado espiritual entre homens que ainda existem carnalmente a não ser que consideremos um Estado os pregadores que têm a missão de ensinar e preparar os homens para sua recepção no Reino de Cristo quando da ressurreição o que já provei não ser um Estado 0 terceiro argumento é o seguinte Não é legítimo que cristãos tolerem um rei infiel ou herege caso ele se esforce por arrastálos para sua heresia ou infidelidade E compete ao Papa julgar se um rei está ou não arrastando seus súditos para a heresia Portanto o Papa tem o direito de decidir quando o príncipe deve ser deposto ou não ser deposto Ao que respondo que ambas estas asserções são falsas Porque os cristãos ou homens de qualquer religião que seja caso não tolerem seu rei seja qual for a lei que ele faça mesmo que seja respeitante à religião estarão faltando a sua palavra contrariamente à lei divina tanto natural como positiva E não há qualquer juiz da heresia entre os súditos a não ser seu próprio soberano civil Pois a heresia não é mais do que uma opinião pessoal obstinadamente mantida contrária à opinião que a pessoa pública quer dizer o representante do Estado ordenou que fosse ensinada Pelo que fica manifesto que uma opinião publicamente escolhida para ser ensinada não pode ser heresia nem o soberano príncipe que a autorizou pode ser um herege Pois os hereges são apenas os indivíduos particulares que teimosamente defendem uma doutrina proibida por seus legítimos soberanos Mas a fim de provar que os cristãos não devem tolerar reis infiéis ou hereges invoca ele uma passagem de Deut 17 onde Deus proíbe os judeus ao estabelecerem um rei para governálos de escolherem um estrangeiro E daí infere ser ilegítimo para um cristão escolher um rei que não seja cristão E é verdade que quem for cristão isto é quem já se tiver obrigado a aceitar nosso Salvador como seu rei quando ele vier tentará demasiado a Deus se escolher como rei neste mundo alguém que sabe se esforçará tanto pelo terror como pela persuasão a fazêlo violar sua Mas é igualmente perigoso diz ele escolher como rei alguém que não é cristão e deixar de depôlo depois de já escolhido Ao que respondo que o problema não reside no perigo de deixar de depôlo e sim na justiça de depôlo Escolhêlo poderá em alguns casos ser injusto mas depôlo quando já está escolhido em nenhum caso pode ser justo Porque é sempre violação de fé e consequentemente contrário à lei de natureza que é a eterna lei de Deus Por outro lado não está escrito que uma tal doutrina fosse considerada cristã no tempo dos apóstolos nem no tempo dos imperadores romanos antes de os Papas serem os detentores da soberania civil em Roma Mas a isto ele replicou que os cristãos de antanho não depuseram Nero nem Diocleciano nem Juliano nem o ariano Valente pela única razão de carecerem de forças temporais Talvez assim seja Mas acaso nosso Salvador a quem bastaria chamar para ter a ajuda de doze legiões de anjos imortais e invulneráveis carecia de forças para depor a César ou pelo menos a Pilatos que injustamente e sem nele encontrar falta o entregou aos judeus para ser crucificado Ou se os apóstolos precisavam de forças temporais para depor a Nero eralhes necessário em suas Epístolas aos cristãos recémconvertidos ensinarlhes como fizeram a obedecer aos poderes constituídos acima deles um dos quais nesse tempo era Nero dizendolhes que não era por medo de sua ira que deviam obedecerlhes mas por motivos de consciência Deveremos dizer que eles não somente obedeciam mas além disso ensinavam coisas em que não acreditavam por falta de força Certamente não é portanto por falta de força mas por motivos de consciência que os cristãos devem tolerar seus príncipes pagãos ou então dado que não posso chamar herege a alguém cuja doutrina é a doutrina pública os príncipes que autorizarem o ensino de um erro Quanto ao que além disso ele alega em favor do poder temporal do Papa que São Paulo 1 Cor 6 nomeou juízes sob os príncipes pagãos desses tempos não sendo eles ordenados por esse príncipes tal não é verdade Porque São Paulo se limita a aconselhálos a escolher alguns de seus irmãos para dirimir suas dissensões como árbitros em vez de recorrerem à lei uns contra os outros perante os juízes pagãos 0 que constitui um preceito são e cheio de caridade que merece ser seguido também nos melhores Estados cristãos Quanto ao perigo que pode advir para a religião por causa de os súditos tolerarem um príncipe pagão ou transviado é este um ponto a respeito do qual o súdito não é um juiz competente e se o for então os súditos temporais do Papa também podem julgar as doutrinas do Papa Pois todo príncipe cristão conforme anteriormente provei não é menos o supremo pastor de seus próprios súditos do que o Papa o é dos seus 0 quarto argumento é baseado no batismo dos reis onde estes para poderem ser feitos cristãos submetem seus cetros a Cristo e prometem guardar e defender a fé cristã Isto é verdade porque os reis cristãos não são mais do que súditos de Cristo Mas apesar de tudo isso podem ser equivalentes aos Papas pois são os supremos pastores de seus próprios súditos e o Papa não é mais do que rei e pastor mesmo na própria Roma 0 quinto argumento é tirado das palavras proferidas por nosso Salvador Alimenta minhas ovelhas Com as quais era conferido todo o poder necessário para um pastor como o poder de afugentar os lobos como o são os hereges o poder de isolar os carneiros que são bravios ou agridem as outras ovelhas com os cornos como o são os reis perversos embora cristãos e o poder de dar ao rebanho comida adequada De onde ele infere que São Pedro havia recebido de Cristo estes três poderes Ao que respondo que o último desses poderes não é mais do que um poder ou melhor uma ordem para ensinar Quanto ao primeiro que é o de afugentar os lobos isto é os hereges a passagem citada é Mt 715 Guardate dos falsos profetas que vão a ti disfarçados de ovelhas mas interiormente são lobos ferozes Mas os hereges não são falsos profetas nem profetas de espécie alguma e nem sequer admitindo que os hereges são os lobos ali referidos os apóstolos ordenavam que os matassem nem tampouco no caso de serem reis que os depusessem mas apenas que se guardassem deles lhes fugissem e os evitassem Nem tampouco foi a São Pedro nem a qualquer dos apóstolos mas à multidão dos judeus que o seguiram até a montanha que em sua maioria eram homens ainda não convertidos que ele deu esse conselho de guardaremse dos falsos profetas o que portanto se acaso confere o poder de expulsar os reis não apenas foi dado a indivíduos particulares mas até a homens que de modo algum eram cristãos Quanto ao poder de separar e isolar os carneiros furiosos com o que ele queria referir os reis cristãos que recusam submeterse ao pastor romano nosso Salvador recusou assumir ele próprio esse poder neste mundo e além disso aconselhou que se deixasse o trigo e o joio crescerem juntos até ao dia do juízo muito menos deu esse poder a São Pedro ou São Pedro o deu aos Papas A São Pedro e a todos os outros pastores se pede que tratem os cristãos que desobedecem à Igreja isto é que desobedecem ao soberano cristão como pagãos e como publicamos E dado que os homens não reclamam do Papa autoridade alguma sobre os príncipes pagãos também não devem reclamar nenhuma sobre os que são para ser tratados como pagãos Mas do simples poder de ensinar infere ele também que o Papa tem sobre os reis um poder coercitivo 0 pastor diz ele tem que dar a seu rebanho comida adequada portanto o Papa pode e deve forçar os reis a cumprirem o seu dever De onde se segue que o Papa como pastor dos cristãos é o rei dos reis o que sem dúvida todos os reis cristãos devem admitir ou então devem assumir para si mesmos o supremo cargo pastoral cada um em seus domínios Seu sexto e último argumento é tirado de exemplos Ao que respondo em primeiro lugar que os exemplos não provam nada Em segundo lugar que os exemplos por ele invocados não chegam sequer a formar uma probabilidade de direito 0 ato de Joiada ao matar Atalia 2 Reis 11 ou foi praticado pela autoridade do rei Joas ou então foi um crime nefando da parte do Sumo Sacerdote que após a eleição do rei Saul não passava de um simples súdito 0 ato de excomungar o Imperador Teodósio caso seja verdade que o fez foi um crime capital Quanto aos Papas Gregório Santo Ambrósio ao I Gregório II Zacarias e Leão III seus julgamentos foram nulos e feitos em causa própria E os atos por eles praticados conformemente a esta doutrina são os maiores crimes especialmente o de Zacarias de que é capaz a natureza humana E é quanto basta a respeito do poder eclesiástico em cujo exame eu teria sido mais breve deixando de analisar os argumentos de Belarmino se fossem apenas dele como indivíduo particular e não como campeão do Papado contra todos os outros príncipes e governos cristãos CAPÍTULO XLIII Do que é necessário para alguém entrar no reino dos céus 0 pretexto de sedição e de guerra civil mais freqüente nos Estados cristãos teve durante muito tempo sua origem numa dificuldade ainda não suficientemente resolvida de obedecer ao mesmo tempo a Deus e aos homens quando suas ordens se contradizem É bastante evidente que quando alguém recebe duas ordens contrárias e sabe que uma vem de Deus tem de obedecer a esta e não à outra embora seja a ordem de seu legítimo soberano quer se trate de um monarca quer se trate de uma assembléia soberana ou a ordem de seu pai A dificuldade consiste portanto no seguinte que os homens quando recebem ordens em nome de Deus não sabem em alguns casos se a ordem vem de Deus ou se aquele que ordena o faz abusando do nome de Deus para algum fim próprio e particular Pois assim como havia na Igreja dos judeus muitos falsos profetas que procuravam fama junto do povo com visões e sonhos imaginários também tem havido em todos os tempos na Igreja de Cristo falsos mestres que procuram fama junto do povo com doutrinas fantásticas e falsas e que por meio dessa fama tal como está na natureza da ambição procuram governálo em beneficio próprio Mas esta dificuldade de obedecer ao mesmo tempo a Deus e ao soberano civil sobre a terra não tem gravidade para aqueles que sabem distinguir entre o que é necessário e o que não é necessário para sua entrada no Reino de Deus Pois se a ordem do soberano civil for tal que possa ser obedecida sem a perda da vida eterna é injusto não lhe obedecer e tem lugar o preceito do Apóstolo Servos obedecei a vossos senhores em tudo e Crianças obedecei a vossos pais em todas as coisas e o preceito de nosso Salvador Os escribas e fariseus sentamse na cadeira de Moisés portanto observem e façam tudo o que eles disserem Mas se a ordem for tal que não possa ser obedecida sem que se seja condenado à morte eterna então seria loucura obedecerlhe e tem lugar o conselho do nosso Salvador Mt 1028 Não temais aqueles que matam o corpo mas não podem matar a alma Portanto todos os homens que quiserem evitar quer as penas que lhes devem ser infligidas neste mundo pela desobediência a seu soberano terreno e aquelas que lhes serão infligidas no mundo que está para vir por desobediência a Deus precisam aprender a distinguir bem aquilo que é e aquilo que não é necessário à salvação eterna Tudo o que é necessário à salvação está contido em duas virtudes fé em Cristo e obediência às leis A última delas se fosse perfeita seria suficiente para nós Mas porque somos todos culpados de desobediência à lei de Deus não apenas originalmente em Adão mas também atualmente por nossas próprias transgressões exigese agora não só a obediência para o resto da nossa vida mas também uma remissão dos pecados dos tempos passados remissão essa que é a recompensa de nossa fé em Cristo Que nada mais se exige necessariamente para a salvação é algo que fica evidente pelo seguinte que o reino de Deus só está fechado aos pecadores isto é aos desobedientes ou transgressores da lei e não àqueles que se arrependem e crêem em todos os artigos da fé cristã necessários à salvação A obediência exigida por Deus que aceita em todas as nossas ações a vontade pelos atos é um esforço sério de lhe obedecer e é também denominada com todos aqueles nomes que significam esse esforço E portanto a obediência é umas vezes denominada com os nomes de caridade e amor porque implicam a vontade de obedecer e mesmo nosso Salvador faz de nosso amor a Deus e ao próximo um cumprimento de toda a lei e algumas vezes pelo nome de retidão pois a retidão nada mais é do que a vontade de dar a cada um o que lhe é devido isto é a vontade de obedecer às leis e algumas vezes pelo nome de arrependimento porque arrependerse implica um afastamento do pecado que é o mesmo que o regresso da vontade de obediência Portanto todo aquele que desejar sinceramente cumprir as ordens de Deus ou que se arrepender verdadeiramente de suas transgressões ou que amar a Deus com todo o seu coração e ao próximo como a si mesmo tem toda a obediência necessária à sua entrada no reino de Deus pois se Deus exigisse uma inocência perfeita não haveria carne que se salvasse Mas quais são essas ordens que Deus nos deu São as ordens de Deus todas aquelas leis que foram dadas aos judeus pelas mãos de Moisés Se o são por que razão não se ensinou aos cristãos a sua obediência Se o não são que outras o são além da lei de natureza Pois nosso Salvador não nos deu novas leis mas aconselhounos a observar aquelas a que estávamos sujeitos isto é as leis de natureza e as leis de nossos vários soberanos Também não fez nenhuma lei nova para os judeus em seu sermão da montanha mas apenas expôs as leis de Moisés às quais estavam antes sujeitos As leis de Deus portanto nada mais são do que as leis de natureza a principal das quais é que não devemos violar a nossa fé isto é uma ordem para obedecer aos nossos soberanos civis que constituímos acima de nós por um pacto mútuo E esta lei de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena por conseqüência a obediência a todos os preceitos da Bíblia a qual como mostrei no capítulo precedente é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o estabeleceu e nos outros lugares é apenas conselho que cada um por sua conta e risco pode sem injustiça recusar obedecer Sabendo agora o que é a obediência necessária à salvação e a quem é devida devemos considerar em seguida no que se refere à fé em quem e por que razão cremos e quais são os artigos ou pontos que devem necessariamente ser acreditados por aqueles que querem ser salvos E em primeiro lugar quanto à pessoa em quem acreditamos porque é impossível acreditar em alguém antes de conhecer o que disse é necessário que seja alguém que ouvimos falar Portanto a pessoa em quem Abraão Isaac Jacob Moisés e os profetas acreditaram era o próprio Deus que lhes falou sobrenaturalmente e a pessoa em quem os apóstolos e os discípulos que conviveram com Cristo acreditaram era nosso Salvador em pessoa Mas daqueles a quem nem Deus Pai nem nosso Salvador falou alguma vez não pode dizerse que a pessoa em quem acreditavam fosse Deus Acreditaram nos apóstolos e depois deles nos pastores e doutores da Igreja que recomendaram à sua fé a história do Antigo e do Novo Testamento de tal modo que a fé dos cristãos desde o tempo de nosso Salvador teve como fundamento primeiro a reputação de seus pastores e mais tarde a autoridade daqueles que fizeram que o Antigo e o Novo Testamento fossem tomados como regra da fé o que ninguém podia fazer a não ser os soberanos cristãos que são portanto os pastores supremos e as únicas pessoas a quem os cristãos agora ouvem falar da parte de Deus exceto aqueles a quem Deus fala sobrenaturalmente em nossos dias Mas porque há muitos falsos profetas que saíram para o mundo os outros homens devem examinar tais espíritos como São João nos aconselhou 1 Jo 41 se são de Deus ou não E portanto vendo que o exame das doutrinas pertence ao pastor supremo a pessoa em quem todos aqueles que não têm nenhuma revelação especial devem acreditar é em todos os Estados o pastor supremo isto é o soberano civil As causas pelas quais os homens acreditam em qualquer doutrina cristã são variadas pois a fé é um dom de Deus e ele produziua nos vários homens por aquelas maneiras que lhe aprouve usar A causa imediata mais vulgar de nossa crença referente a qualquer ponto da fé cristã é que acreditamos que a Bíblia é a palavra de Deus Mas por que razão acreditamos que a Bíblia seja a palavra de Deus é algo de muito discutido como necessariamente o são todas as questões que não estão bem assentes Pois não colocam a questão nos seguintes termos por que acreditamos nela mas como a conhecemos como se acreditar e conhecer fossem a mesma coisa E daqui enquanto um lado assenta seu conhecimento na infalibilidade da Igreja e o outro lado no testemunho do espírito particular nenhum dos lados conclui aquilo que pretende Pois como conhecerá alguém a infalibilidade da Igreja se não conhecer primeiro a infalibilidade das Escrituras ou saberá alguém que seu próprio espírito particular é algo diferente de uma crença baseada na autoridade e nos argumentos de seus mestres ou numa presunção de seus próprios dons Além disso não há nada nas Escrituras de que possa inferirse a infalibilidade da Igreja e muito menos de qualquer igreja em particular e ainda menos a infalibilidade de qualquer homem em particular É portanto manifesto que os cristãos não sabem mas apenas acreditam que as Escrituras são a palavra de Deus e que a maneira de fazêlos acreditar naquilo que prouve a Deus conceder geralmente aos homens é segundo o modo da natureza isto é a partir de seus mestres É a doutrina de São Paulo referente à fé cristã em geral Rom 1017 a fé chega ouvindo isto é por se ouvir os nossos legítimos pastores Disse também vers 14 e 15 do mesmo capítulo Como acreditarão naquele a quem não ouviram E como ouvirão sem um pregador E como pregarão se não forem enviados Por onde fica evidente que a causa vulgar da crença de que as Escrituras são a palavra de Deus é a mesma que a causa da crença em todos os outros artigos de nossa fé a saber escutar aqueles que estão por lei autorizados e designados para nos ensinar como nossos pais em nossas casas e nossos pastores nas igrejas o que também se torna mais manifesto pela experiência Pois que outra causa pode ser atribuída para o fato de nos Estados cristãos todos os homens ou acreditarem ou pelo menos professarem que as Escrituras são a palavra de Deus e nos outros Estados não senão que nos Estados cristãos foram assim ensinados desde a infância e nos outros lugares foram ensinados de outro modo Mas se o ensino é a causa da fé por que razão nem todos acreditam É portanto certo que a fé é dom de Deus e que ele a dá a quem quer Contudo porque àqueles a quem deu a deu por meio dos professores a causa imediata da fé é o ouvido Numa escola onde muitos são ensinados e alguns com proveito outros sem ele a causa de terem esse proveito é o professor contudo não pode inferirse daí que o aprendizado não seja um dom de Deus Todas as coisas boas provêm de Deus contudo não podem considerarse inspirados todos os que as têm pois isso implica um dom sobrenatural e a mão direta de Deus aquele que o pretende pretende ser profeta e está sujeito ao exame da Igreja Mas quer os homens saibam acreditem ou concedam que as Escrituras são a palavra de Deus se eu mostrar a partir daqueles textos que não são obscuros que artigos de fé são necessários e os únicos necessários para a salvação esses homens têm de saber acreditar ou conceder o mesmo 0 único unum necessarium artigo de fé que as Escrituras tornam simplesmente necessário para a salvação é este que Jesus é o Cristo Pelo nome de Cristo se entende o rei que Deus tinha antes prometido pelos profetas do Antigo Testamento enviar ao mundo para reinar sobre os judeus e sobre aquelas nações que acreditassem nele em seu nome eternamente e para lhes dar aquela vida eterna que ficara perdida com o pecado de Adão 0 que quando eu tiver provado a partir das Escrituras mostrarei ainda quando e em que sentido alguns outros artigos podem também ser chamados necessários Como prova de que a crença neste artigo Jesus é o Cristo é toda a fé exigida para a salvação meu primeiro argumento será tirado do objetivo dos evangelistas que era pela descrição da vida de nosso Salvador estabelecer aquele mesmo artigo Jesus é o Cristo 0 resumo do Evangelho de São Mateus é este que Jesus era do rebanho de Davi nascido de uma virgem o que constitui as marcas do verdadeiro Cristo que os magos vieram adorálo como rei dos judeus que Herodes pela mesma razão procurou matálo que João Batista o proclamou que ele pregou por si mesmo e pelos apóstolos que era rei que ensinou a lei não como uma escriba mas como um homem de autoridade que sarou doenças apenas com sua palavra e fez muitos outros milagres que tinham sido preditos que Cristo faria que foi saudado como rei quando entrou em Jerusalém que preveniu os homens que tivessem cuidado com todos aqueles que pretendessem ser Cristo que foi preso acusado e condenado à morte por dizer que era rei que a causa de sua condenação escrita na cruz era Jesus de Nazaré Rei dos Judeus Tudo isto tende apenas para um fim que é o seguinte que os homens devem acreditar que Jesus é o Cristo Tal era portanto o objetivo do Evangelho de São Mateus Mas o objetivo de todos os evangelistas como se pode ver pela sua leitura era o mesmo Portanto o objetivo de todo o Evangelho era estabelecer apenas aquele artigo E São João expressamente o aponta em sua conclusão João 2031 Estas coisas estão escritas para que possais saber que Jesus é o Cristo o f lho do Deus vivo 0 meu segundo argumento é tirado do assunto dos sermões dos apóstolos tanto durante o período em que nosso Salvador viveu sobre a terra como depois de sua Ascensão Os apóstolos durante o tempo de nosso Salvador foram enviados Lc 92 para pregar o reino de Deus pois nem aqui nem em Mt 107 lhes deu outro encargo além deste À medida que avançarem preguem dizendo que o Reino do Céu está próximo isto é que Jesus é o Messias o Cristo o Rei que estava para vir Que sua pregação também depois da Ascensão foi a mesma é manifesto em At 176 Eles arrastaram escreveu São Lucas Jasão e alguns irmãos até junto dos governantes da cidade gritando Estes que puseram o mundo de pernas para o ar também vieram aqui e foram recebidos por Jasão E eles fazem tudo ao contrário dos decretos de César dizendo que há um outro rei um Jesus E também nos versículos 2 e 3 do mesmo capítulo onde se diz que São Paulo como era seu hábito entrou e foi até eles e durante três sábados discutiu com eles as Escrituras mostrando e alegando que Cristo necessariamente sofreu e ressuscitou dos mortos e que este Jesus que ele pregava é Cristo 0 terceiro argumento é tirado daqueles textos das Escrituras nos quais se declara que toda a fé exigida para a salvação é fácil Pois se fosse necessário à salvação um assentimento interior do espírito a todas as doutrinas referentes à fé cristã hoje ensinadas nada haveria no mundo tão difícil como ser cristão 0 ladrão na cruz muito embora arrependido não poderia ser salvo dizendo Senhor lembrate de mim quando entrares em teu reino pelo que ele não testemunhava nenhuma crença em outro artigo senão neste que Jesus era o Rei Nem poderia dizerse como é dito em Mt 1130 que o jugo de Cristo é fácil e sua carga leve nem que as criancinhas acreditam nele como é dito em Mt 186 Nem podia São Paulo ter dito 7 Cor 121 Prouve a Deus pela loucura de pregar salvar aqueles que acreditavam Nem podia o próprio São Paulo ter sido salvo e muito menos ter sido tão depressa um tão grande doutor da Igreja que talvez nunca pensasse na transubstanciação nem no purgatório nem em muitos outros artigos agora introduzidos 0 quarto argumento é tirado de textos expressos e tais que não são suscetíveis de nenhuma controvérsia interpretativa Como em primeiro lugar Jo 539 Procurai as Escrituras pois nelas vereis que tendes vida eterna e são elas que dão testemunho de mim Nosso Salvador aqui fala apenas das Escrituras do Antigo Testamento pois os judeus daquela época não podiam procurar as Escrituras do Novo Testamento que ainda não estavam escritas Mas o Antigo Testamento nada tinha de Cristo senão as marcas pelas quais os homens podiam conhecêlo quando viesse como que ele descenderia de Davi nasceria em Belém e de uma virgem faria grandes milagres e outras coisas semelhantes Portanto acreditar que este Jesus era ele era suficiente para a vida eterna mas mais do que suficiente não é necessário e consequentemente não é exigido nenhum outro artigo E também Jo 1126 Quem viver e acreditar em mim não morrerá eternamente Portanto acreditar em Cristo é fé suficiente para a vida eterna e consequentemente não é necessária mais fé do que esta Mas acreditar em Jesus e acreditar que Jesus é o Cristo é a mesma coisa como se vê nos versículos que imediatamente se seguem Pois quando nosso Salvador versículo 26 disse a Marta Acreditas tu nisto ela respondeu versículo 27 Sim Senhor acredito que tu és o Cristo o filho de Deus que devia vir ao mundo Portanto só este artigo é suficiente para a vida eterna e mais do que suficiente não é necessário Terceiro João 2021 Estas coisas estão escritas para que possais acreditar que Jesus é o Cristo o filho de Deus que para que acreditando nisso possais ter vida através de seu nome Portanto acreditar que Jesus é o Cristo é fé suficiente para a obtenção da vida e assim nenhum outro artigo é necessário Quarto 1 Jo 42 Todo espírito que confessar que Jesus Cristo se encarnou é de Deus E 1 Jo 51 Aquele que acreditar que Jesus é o Cristo nasceu de Deus E o versículo 5 Quem é aquele que vence o mundo senão aquele que acredita que Jesus é o filho de Deus Quinto At 836s Vede disse o eunuco aqui está a água o que me impede de ser batizado E Felipe disse Se acreditares de todo o coração podes E ele respondeu e disse Acredito que Jesus Cristo é o Filho de Deus Portanto a crença neste artigo Jesus é o Cristo é suficiente para o batismo isto é para nossa entrada no reino de Deus e por conseqüência a única necessária E em geral em todos os textos onde nosso Salvador diz a alguém Tua fé te salvou a razão para ele dizer isto é alguma confissão que diretamente ou por conseqüência implica uma crença em que Jesus é o Cristo 0 último argumento é tirado de textos onde este artigo constitui o fundamento da fé pois aquele que se agarrar ao fundamento será salvo Esses textos são primeiro Mt 2423 Se alguém vos disser aqui está Cristo ou ali não o acrediteis porque aparecerão falsos Cristos e falsos profetas e mostrarão grandes sinais e maravilhas etc Vemos aqui que este artigo Jesus é o Cristo tem de ser defendido muito embora aquele que ensinar o contrário faça grandes milagres 0 segundo texto é Gál 18 Ainda que nós ou um anjo do céu vos pregue qualquer outro Evangelho diferente daquele que vos pregamos que seja maldito Mas o Evangelho que Paulo e os outros apóstolos pregaram era apenas este artigo que Jesus é o Cristo Portanto para a crença neste artigo devemos rejeitar a autoridade de um anjo do céu e muito mais a de qualquer mortal que nos ensinar o contrário Este é portanto o artigo fundamental da fé cristã Um terceiro texto é 1 Jo 41 Amados não acrediteis em todos os espíritos Por este meio conhecereis o espírito de Deus todo espírito que confessar que Jesus encarnou é de Deus Pelo que é evidente que este artigo é a medida e a regra pela qual se avalia e examina todos os outros artigos e é portanto o único fundamental Um quarto texto é Mt 1618 no qual depois de São Pedro ter professado este artigo dizendo a nosso Salvador Tu és Cristo o Filho do Deus vivo nosso Salvador respondeu Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja do que infiro que este artigo é aquele sobre o qual estão construídas todas as outras doutrinas da Igreja como sua fundação Um quinto texto é 1 Cor 3 vers 1112 etc Nenhum homem pode colocar outra fundação diferente daquela que está colocada Jesus é o Cristo Agora se alguém erguer sobre esta fundação ouro prata pedras preciosas madeira palha restolho a obra de cada homem se tornará manifesta pois o dia a declarará porque será revelada pelo fogo e o fogo porá à prova a obra de cada homem seja de que espécie for Se a obra do homem resistir aquilo que sobre ela construiu ele receberá uma recompensa se a obra do homem for queimada ele sofrerá uma perda mas ele próprio será salvo mas pelo fogo Estas palavras sendo em parte simples e fáceis de compreender e em parte alegóricas e difíceis daquilo que é simples se pode inferir que os pastores que ensinam esta fundação que Jesus é o Cristo embora tirem dela conseqüências falsas ao que todos os homens às vezes estão sujeitos podem contudo ser salvos e com muito mais razão serão salvos aqueles que não sendo pastores mas ouvintes acreditam naquilo que lhes é ensinado por seus legítimos pastores Portanto a crença neste artigo é suficiente e por conseqüência não se exige necessariamente nenhum outro artigo de fé para a salvação Agora quanto à parte que é alegórica como que o fogo porá à prova a obra de cada homem e que serão salvos mas pelo fogo ou através do fogo pois o original é dià pyrós em nada altera esta conclusão que tirei das outras palavras que são simples Contudo porque este texto também serviu de argumento para provar o fogo do purgatório apresentarei também aqui minha hipótese referente ao significado deste julgamento de doutrinas e à salvação dos homens pelo fogo Aqui o apóstolo parece aludir às palavras do profeta Zacarias Zac 138s que falando da restauração do reino de Deus disse assim Duas partes deles serão reparadas e morrerão mas a terceira será deixada e trarei a terceira parte pelo fogo e purificálosei como a prata é purificada e afinálosei como o ouro é afinado eles chamarão pelo nome do Senhor e eu ouvilosei 0 dia do juízo é o dia da restauração do reino de Deus e é nesse dia que São Pedro nos diz que haverá a conflagração do mundo na qual os maus perecerão mas os restantes que Deus salvar passarão por aquele fogo sem se queimarem e assim como a prata e o ouro são purificados pelo fogo que os liberta de suas impurezas serão afinados e purificados da sua idolatria e serão levados a invocar o nome do verdadeiro Deus Aludindo a isso São Paulo aqui diz que o dia isto é o dia do juízo o grande dia da chegada de nosso Salvador para restaurar o reino de Deus em Israel purificará a doutrina de cada homem avaliando o que é ouro prata pedras preciosas madeira palha restolho e então aqueles que construíram falsas conseqüências sobre a verdadeira fundação verão suas doutrinas condenadas contudo eles próprios serão salvos e passarão sem se queimarem através desse fogo universal e viverão eternamente para invocar o nome do verdadeiro e único Deus Neste sentido nada há que não concorde com o resto das Sagradas Escrituras nem há vestígios do fogo do purgatório Mas aqui pode perguntarse se não é tão necessário para a salvação acreditar que Deus é onipotente criador do mundo que Jesus Cristo ressuscitou e que todos os homens ressuscitarão dos mortos no último dia como acreditar que Jesus é o Cristo Ao que respondo que o é assim como muitos outros artigos mas eles são tais que estão contidos neste e podem ser deduzidos dele com mais ou menos dificuldade Pois quem há que não veja que aqueles que acreditam que Jesus é o filho do Deus de Israel e que os israelitas consideravam Deus o onipotente criador de todas as coisas também acreditam por isso que Deus é o onipotente criador de todas as coisas Ou como pode alguém acreditar que Jesus é o rei que reinará eternamente a menos que também acredite que ele ressuscitou dos mortos Pois um morto não pode exercer o cargo de rei Em suma aquele que defender esta fundação Jesus é o Cristo defende expressamente tudo aquilo que vê corretamente deduzido dela e implicitamente tudo aquilo que é conseqüente com isso embora não tenhamos habilidade suficiente para discernir a conseqüência E portanto continua a ser verdade que a crença neste único artigo constitui fé suficiente para obter a remissão dos pecados aos penitentes e consequentemente para trazêlos para o reino do céu Agora que mostrei que toda a obediência exigida para a salvação consiste na vontade de obedecer à lei de Deus isto é no arrependimento e que toda a fé exigida para o mesmo está incluída na crença neste artigo Jesus é o Cristo alegarei ainda aqueles textos do Evangelho que provam que tudo o que é necessário à salvação está contido em ambas aquelas juntamente Os homens a quem São Pedro pregou no dia de Pentecostes logo a seguir à Ascensão de nosso Salvador perguntaramlhe e aos demais apóstolos dizendo At 237 Homens e irmãos o que faremos Ao que São Pedro respondeu no versículo seguinte Arrependeivos e seja cada um de vós batizado para a remissão dos pecados e recebereis o dom do Espírito Santo Portanto o arrependimento e o batismo isto é a crença que Jesus é o Cristo é tudo o que é necessário para a salvação E mais tendo certo governante perguntado a nosso Salvador Lc 1818 0 que farei para alcançar a vida eterna este respondeu versículo 20 Tu conheces os mandamentos não cometas adultério não mates não dê falsos testemunhos honra teu pai e tua mãe ao que quando ele disse que os tinha observado nosso Salvador acrescentou Vende tudo o que possuis dáo aos pobres vem e segueme o que era o mesmo que dizer confia em mim que sou o rei Portanto cumprir a lei e acreditar que Jesus é o rei é tudo o que se exige para levar um homem à vida eterna Terceiro São Paulo disse Rom 117 Os justos viverão pela fé não todos mas os justos portanto a fé e a justiça isto é a vontade de ser justo ou arrependimento é tudo o que é necessário para a vida eterna E Mc 115 nosso Salvador pregou dizendo 0 tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo arrependeivos e acreditai no Evangelho isto é a boa nova de que o Cristo tinha chegado Portanto arrependerse e acreditar que Jesus é o Cristo é tudo o que se exige para a salvação Dado que é necessário então que a fé e a obediência implicada na palavra arrependimento concorram ambas para nossa salvação é discutida de maneira impertinente a questão de saber por qual das duas somos justificados Não será contudo impertinente tornar manifesto de que maneira cada uma delas para isso contribui e em que sentido se diz que devemos ser justificados por uma e pela outra E em primeiro lugar se por retidão se entende a justiça das próprias obras nenhum homem pode ser salvo pois não há nenhum que não tenha transgredido a lei de Deus E portanto quando se diz que devemos ser justificados pelas obras tal deve entenderse da vontade que Deus sempre aceita em vez da própria obra tanto nos homens bons como nos maus E neste sentido apenas é que alguém é chamado justo ou injusto e que sua justiça o justifica isto é lhe dá o título na aceitação de Deus de justo e o torna capaz de viver por sua fé do que antes não era capaz De tal modo que a justiça justifica naquele sentido em que justificar é o mesmo que denominar alguém justo e não no sentido de descarregarse da lei pelo que o castigo de seus pecados seria injusto Mas também se diz que um homem é justificado quando sua alegação ainda que em si insuficiente é aceite como quando alegamos nossa vontade nosso esforço para cumprir a lei e nos arrependemos de nossos desfalecimentos e Deus aceita isso em vez da própria realização E porque Deus não aceita a vontade pela ação a não ser nos fiéis é portanto a que torna boa nossa alegação e é neste sentido que só a fé justifica de tal modo que a fé e a obediência são ambas necessárias para a salvação e contudo em vários sentidos se diz que cada uma delas justifica Tendo assim mostrado o que é necessário para a salvação não é difícil reconciliar nassa obediência a Deus com nossa obediência ao soberano civil que ou é cristão ou infiel Se for cristão permite a crença neste artigo que Jesus é o Cristo e em todos os artigos que estão nele contidos ou que são por evidente conseqüência dele deduzidos o que é toda a fé necessária à salvação E porque é um soberano exige obediência a todas suas leis isto é a todas as leis civis nas quais estão também contidas todas as leis de natureza isto é todas as leis de Deus pois além das leis de natureza e das leis da Igreja que fazem parte da lei civil pois a Igreja que pode fazer leis é o Estado não há nenhumas outras leis divinas Quem obedecer portanto a seu soberano cristão não fica por isso impedido nem de acreditar nem de obedecer a Deus Mas suponhamos que um rei cristão a partir desta fundação Jesus é o Cristo tire algumas conseqüências falsas isto é faça algumas construções de palha ou restolho e ordene o ensino das mesmas contudo dado o que São Paulo diz ele será salvo e com muito mais razão será salvo aquele que as ensina por sua ordem e com muito mais ainda aquele que as não ensina e que apenas acredita em seu legítimo mestre E no caso de um súdito ser proibido pelo soberano civil de professar algumas destas suas opiniões com que fundamento justo pode ele desobedecer Podem os reis cristãos errar ao deduzir uma conseqüência mas quem o julgará Julgará um particular quando a questão é sua própria obediência Ou só julgará aquele que para isso for designado pela Igreja isto é pelo soberano civil que o representa Ou se o Papa ou um apóstolo julga não pode ele errar ao deduzir uma conseqüência Não errou um dos dois São Pedro ou São Paulo numa construção quando São Paulo se opôs frontalmente a São Pedro Não pode portanto haver contradição entre as leis de Deus e as leis de um Estado cristão E quando o soberano civil é infiel todos aqueles seus súditos que lhe resistam pecam contra as leis de Deus pois tais são as leis de natureza e rejeitam o conselho dos apóstolos que aconselharam todos os cristãos a obedecer a seus príncipes e todas as crianças e servos a obedecerem a seus pais e senhores em todas as coisas E quanto a sua fé ela é interior e invisível Possuem a licença que teve Naaman e não precisam de se colocarem em perigo por ela Mas se o fizerem devem esperar sua recompensa no céu e não queixaremse de seu legítimo soberano e muito menos fazerlhe guerra Pois aquele que não fica contente com uma ocasião adequada de martírio não tem a fé que professa mas apenas aparenta têla para dar alguma cor a sua própria contumácia Mas que rei infiel será tão destituído de razão a ponto de sabendo que tem um súdito que espera pela segunda chegada de Cristo depois que o mundo atual for queimado e que pretende então obedecerlhe o que é a intenção da crença em que Jesus é o Cristo e que entretanto se considera obrigado a obedecer às leis daquele rei infiel o que todos os cristãos são obrigados em consciência a fazer condenar à morte ou perseguir tal súdito E só isto bastará no que se refere ao reino de Deus e à política eclesiástica No que não pretendo avançar nenhuma opinião própria mas apenas mostrar quais são as conseqüências que me parecem dedutíveis dos princípios de uma política cristã que são as Sagradas Escrituras em confirmação do poder do soberano civil e do dever de seus súditos E na alegação das Escrituras tentei evitar aqueles textos que são de uma interpretação obscura ou controvertida e só alegar aqueles cujo sentido é mais simples e agradável à harmonia e finalidade de toda a Bíblia que foi escrita para o restabelecimento do Reino de Deus em Cristo Pois não são as palavras nuas mas sim o objetivo do autor que dá a verdadeira luz pela qual qualquer escrito deve ser interpretado e aqueles que insistem nos textos isolados sem considerarem o desígnio principal nada deles podem tirar com clareza mas antes jogando átomos das Escrituras como poeira nos olhos dos homens tornam tudo mais obscuro do que é artificio habitual daqueles que não procuram a verdade mas sim suas próprias vantagens QUARTA PARTE DO REINO DAS TREVAS CAPÍTULO XLIV Das trevas espirituais resultantes de má interpretação das Escrituras Além destes poderes soberanos divino e humano sobre os quais até aqui tenho discorrido há nas Escrituras referência a um outro poder a saber o dos governantes das trevas deste mundo o reino de Satanás e a soberania de Belzebu sobre os demônios isto é sobre os fantasmas que aparecem no ar por cuja razão Satanás também é chamado o príncipe do poder do ar e porque governa nas trevas deste mundo o príncipe deste mundo e por conseqüência aqueles que estão sob seu domínio em oposição aos fiéis que são os filhos da luz são chamados os filhos das trevas Pois dado que Belzebu é o príncipe dos fantasmas habitantes de seu domínio de ar e trevas filhos das trevas e estes demônios fantasmas ou espíritos de ilusão significam alegoricamente a mesma coisa Posto isto o reino das trevas tal como é apresentado nestes e outros textos das Escrituras nada mais é do que uma confederação de impostores que para obterem o domínio sobre os homens neste mundo presente tentam por meio de escuras e errôneas doutrinas extinguir neles a luz quer da natureza quer do Evangelho e deste modo despreparálos para a vinda do reino de Deus Assim como os homens que desde a nascença estão profundamente destituídos da luz dos olhos corporais não possuem qualquer idéia da luz e ninguém concebe na imaginação uma luz maior do que a que alguma vez entreviu pelos sentidos externos também o mesmo acontece com a luz do Evangelho e com a luz do entendimento pois ninguém é capaz de conceber que haja um grau maior dela do que aquele a que já chegou E daqui resulta que os homens não possuem outros meios para reconhecer suas próprias trevas senão através do raciocínio a partir dos desastres imprevistos que lhes aconteceram no caminho A parte mais escura do reino de Satanás é aquela que se encontra fora da Igreja de Deus isto é entre aqueles que não acreditam em Jesus Cristo mas não podemos dizer que a Igreja goza portanto como a terra de Goshen de toda a luz necessária para a realização da obra que Deus nos destinou Como explicar que na cristandade tenha sempre havido quase desde os tempos dos apóstolos tantas lutas para se expulsarem uns aos outros de seus lugares quer por meio de guerra externa quer por meio de guerra civil Tanto estrebuchar a cada pequena aspereza da própria fortuna e a cada pequena eminência na dos outros homens E tanta diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo a felicidade como se não fosse noite entre nós ou pelo menos neblina Estamos portanto ainda nas trevas 0 inimigo tem estado aqui na noite de nossa natural ignorância e espalhou as taras dos erros espirituais e isso primeiro abusando e apagando as luzes das Escrituras pois erramos quando não conhecemos as Escrituras Em segunda lugar introduzindo a demonologia dos poetas gentios isto é suas fabulosas doutrinas referentes aos demônios que nada mais são do que ídolos ou fantasmas do cérebro sem qualquer natureza real própria distinta da fantasia humana como são os fantasmas dos mortos e as fadas e outros personagens de histórias de velhas Em terceiro lugar misturando com as Escrituras diversos vestígios da religião e muito da vã e errônea filosofia dos gregos especialmente de Aristóteles Em quarto lugar misturando com ambas estas falsas ou incertas tradições e uma história nebulosa ou incerta E deste modo erramos dando atenção aos espíritos sedutores e à demonologia daqueles que dizem mentiras hipocritamente ou como está no original 1 Tim 41s daqueles que fazem o papel de mentirosos com uma consciência endurecida isto é contrária a seu próprio conhecimento No que se refere aos primeiros destes ou seja os que seduzem os homens abusando das Escrituras penso falar rapidamente neste capítulo 0 maior e principal abuso das Escrituras e em relação ao qual todos os outros são ou conseqüentes ou subservientes é distorcêlas a fim de provar que o reino de Deus tantas vezes mencionado nas Escrituras é a atual Igreja ou multidão de cristãos que vivem agora ou que estando mortos devem ressuscitar no último dia Ao passo que o Reino de Deus foi primeiro instituído pelo ministério de Moisés apenas sobre os judeus que foram portanto chamados de povo eleito e terminou mais tarde no momento da eleição de Saul quando recusaram continuar a ser governados por Deus e pediram um rei segundo o costume das nações no que o próprio Deus consentiu como provei já longamente no capítulo 35 Depois dessa época não houve no mundo nenhum outro reino de Deus por pacto ou de outro modo além do fato de ele sempre ter sido ser e haver de ser rei de todos os homens e de todas as criaturas na medida em que governa segundo sua vontade através de seu infinito poder Contudo ele prometeu pelos seus profetas restaurar o seu governo para eles novamente quando tivesse chegado o tempo que em seu secreto conselho tinha determinado e quando voltassem a ele arrependidos e com desejos de mudar de vida e não apenas isto convidou também os gentios a virem gozar a felicidade de seu reino sob as mesmas condições de conservação e arrependimento e prometeu também mandar seu Filho à terra para expiar os pecados de todos eles através de sua morte e para os preparar pela sua doutrina a recebêlo na sua segunda vinda Não se tendo ainda verificado sua segunda vinda o reino de Deus ainda não chegou e agora não estamos por pacto submetidos a quaisquer outros reis senão nossos soberanos civis excetuando apenas que os cristãos já estão no Reino da Graça na medida em que já têm a promessa de serem recebidos quando ele voltar Conseqüente com este erro de que a atual Igreja é o reino de Cristo deveria haver um homem ou uma assembléia pela boca dos quais nosso Salvador agora no céu falasse desse a lei e representasse sua pessoa perante todos os cristãos ou homens diversos ou diversas assembléias que fizessem o mesmo em diversas partes da cristandade Este poder real sob Cristo sendo desejado universalmente pelo Papa e nos Estados particulares pelas assembléias dos pastores do lugar quando as Escrituras só o concedem aos soberanos civis vem a ser tão apaixonadamente disputado que faz desaparecer a luz da natureza e causa uma escuridão tão grande no entendimento dos homens que não vêem a quem foi que prometeram sua obediência Conseqüente com esta exigência do Papa de ser o vigário geral de Cristo na atual Igreja suposto que seja aquele seu reino aquele a que somos dirigidos no Evangelho é a doutrina de que é necessário a um rei cristão receber sua coroa das mãos de um bispo como se fosse desta cerimônia que ele tirasse a cláusula de Dei grafia do seu título e de que só é tornado rei pelo favor de Deus quando coroado pela autoridade do vice rei universal de Deus sobre a terra e que todos os bispos seja quem for seu soberano fazem no momento de sua consagração um juramento de absoluta obediência ao Papa Conseqüente à mesma pretensão é a doutrina do quarto concílio de Latrão reunido no tempo do Papa Inocêncio III cap 3 De Haereticis Que se um rei perante a exortação do Papa não libertar seu reino de heresias e sendo excomungado pela mesma razão não der satisfação dentro de um ano seus súditos são absolvidos do vínculo de sua obediência Na qual por heresias se entendem todas as opiniões que a Igreja de Roma tinha proibido que fossem defendidas E por este meio sempre que há qualquer contradição entre os desígnios políticos do Papa e dos outros príncipes cristãos como muitas vezes acontece surge tal névoa entre seus súditos que eles não distinguem um estrangeiro que se colocou no trono de seu legítimo príncipe daquele que eles próprios lá tinham colocado e nesta escuridão de espírito são levados a lutarem uns contra os outros sem distinguirem seus inimigos de seus amigos conduzidos pela ambição de outro homem Da mesma opinião a de que a atual Igreja é o reino de Deus resulta que os pastores diáconos e todos os outros ministros da Igreja atribuemse o nome de clero dando aos outros cristãos o nome de leigos isto é simplesmente povo Pois clero significa aqueles cuja manutenção é aquele rendimento que Deus tendoo reservado para si próprio durante seu reinado sobre os israelitas atribuiu à tribo de Levi os quais se destinavam a ser seus públicos ministros e não possuíam nenhuma porção de terra na qual pudessem viver como seus irmãos como sua herança Portanto pretendendo a atual Igreja ser tal como o reino de Israel o Reino de Deus disputando o Papa para si próprio e para seus ministros subordinados tal rendimento como herança de Deus o nome de clero estava adequado àquela pretensão E daí se segue que os dízimos e outros tributos pagos aos levitas como direito de Deus entre os israelitas foram durante muito tempo pedidos e tomados aos cristãos pelos eclesiásticos jure divino isto é por direito de Deus 0 povo foi assim por toda a parte obrigado a um duplo tributo um para o Estado outro para o clero além de que aquele que era pago ao clero era o décimo de seus rendimentos ou seja o dobro daquilo que o rei de Atenas considerado um tirano tirava de seus súditos para pagar todos os cargos públicos pois ele nada mais pedia do que a vigésima parte e apesar disso mantinha com ela abundantemente o Estado E no reino dos judeus durante o reinado sacerdotal de Deus os dízimos e ofertas constituíam a totalidade do rendimento público Do mesmo erro de considerar a atual Igreja como o reino de Deus proveio a distinção entre as leis civis e as leis canônicas sendo a lei civil os atos dos soberanos em seus próprios domínios e a lei canônica os atos do Papa nos mesmos domínios Os quais cânones muito embora não passassem de cânones isto é regras propostas e só voluntariamente recebidas pelos príncipes cristãos até a mudança do império para Carlos Magno contudo depois à medida que o poder do Papa aumentava tornaramse leis obrigatórias e os próprios imperadores para evitarem maiores males a que o povo cego podia ser conduzido eram obrigados a deixá los passar por leis É por isso que em todos os domínios onde o poder eclesiástico do Papa é totalmente aceite os judeus os turcos e os gentios são na Igreja romana tolerados em sua religião na medida em que no exercício de sua profissão não ofendam o poder civil enquanto num cristão embora estrangeiro não ser da religião romana é capital porque o Papa pretende que todos os cristãos são seus súditos Pois de outro modo seria tão contra a lei das nações perseguir um estrangeiro cristão por professar a religião de seu próprio país como perseguir um infiel ou melhor na medida em que não estão contra Cristo estão com ele Do mesmo erro resulta que em todos os Estados cristãos há certos homens que estão isentos por liberdade eclesiástica dos tributos e dos tribunais do Estado civil pois assim está o clero secular além dos monges e frades os quais em muitos lugares constituem uma parte tão importante do povo comum que se houvesse necessidade se podia só com eles organizar um exército suficiente para qualquer guerra em que a Igreja militante os quisesse empregar contra seu próprio príncipe ou outros príncipes Um segundo abuso geral das Escrituras consiste em transformar a consagração em conjuração ou encantação Consagrar é nas Escrituras oferecer dar ou dedicar com linguagem e gestos pios e decentes um homem ou qualquer outra coisa a Deus separandoo do uso comum isto é santificálo ou tornálo de Deus e para ser usado apenas por aqueles a quem Deus nomeou para serem seus ministros públicos como já provei largamente no capítulo 35 e portanto mudar não a coisa consagrada mas apenas seu uso de profano e comum para sagrado e específico do serviço de Deus Mas quando por tais palavras se pretende que seja mudada a natureza ou qualidade da própria coisa não é consagração mas ou uma obra extraordinária de Deus ou uma vã e ímpia conjuração Mas dado que pela freqüência com que se pretende haver mudança em sua consagração não pode ser encarada como uma obra extraordinária não é outra coisa senão uma conjuração ou encantação pela qual querem que os homens acreditem numa alteração da natureza que não existe contrária ao testemunho dos olhos humanos e de todos os demais sentidos Como por exemplo quando o padre em vez de consagrar o pão e o vinho ao serviço particular de Deus no sacramento da ceia do Senhor que nada mais é do que sua separação do uso comum para significar isto é para lembrar aos homens sua redenção pela paixão de Cristo cujo corpo foi quebrado e cujo sangue brotou na cruz por nossas transgressões pretende que por dizer as palavras de nosso Salvador Este é meu corpo e Este é meu sangue a natureza do pão já não está lá mas sim seu próprio corpo muito embora não apareça aos olhos ou aos outros sentidos do espectador coisa alguma que não tivesse aparecido antes da consagração Os esconjuradores egípcios que se diz terem transformado sua varas em serpentes e a água em sangue são encarados apenas como pessoas que iludiram os sentidos dos espectadores por uma falsa aparição de coisas e contudo são julgados como encantadores Mas o que teríamos nós pensado deles se em suas varas nada tivesse aparecido semelhante a uma serpente e na água encantada nada de semelhante ao sangue nem a qualquer outra coisa que não fosse água e se tivessem dito ao rei que eram serpentes que pareciam varas e que era sangue que parecia água Que tinha sido simultaneamente encantamento e mentira E contudo neste ato diário do padre eles fazem exatamente o mesmo usando as palavras sagradas à maneira de um encanto que nada produzisse de novo nos sentidos mas eles sustentam que transformaram o pão num homem e o que é mais num Deus e exigem que os homens o venerem como se fosse nosso Salvador que estivesse presente como Deus e como Homem e portanto que cometamos a mais grosseira idolatria Pois se for suficiente para desculpar de idolatria dizer que já não é pão mas sim Deus por que razão não serviria a mesma desculpa para os egípcios no caso de terem tido a ousadia de dizer que os alhos e as cebolas que veneravam não eram alhos nem cebolas mas uma divindade sob sua species ou semelhança As palavras Este é meu corpo são equivalentes a estas Isto significa ou representa meu corpo e consistem numa vulgar figura de discurso mas encarálas literalmente é um abuso e se assim as encararmos só podemos fazêlo em relação ao pão que o próprio Cristo consagrou com suas mãos Pois ele nunca disse que se de qualquer pão qualquer padre dissesse Este é meu corpo ou Este é o corpo de Cristo os mesmos seriam efetivamente transubstanciados Nem a Igreja de Roma alguma vez estabeleceu esta transubstanciação até a época de Inocêncio III o que não foi há mais de 500 anos quando o poder dos Papas estava no auge e as trevas se tinham tornado tão densas que os homens não distinguiam o pão que lhes era dado para comer especialmente quando era marcado com a figura de Cristo na cruz como se quisessem que os homens acreditassem que se transubstanciava não só no corpo de Cristo mas também na madeira da cruz e que comiam ambos em conjunto no sacramento A mesma encantação em vez de consagração é usada também no sacramento do batismo no qual o abuso do nome de Deus em cada uma das várias pessoas e em toda a Trindade com o sinal da cruz a cada nome constitui o encanto pois primeiro quando fazem a água benta o padre diz Conjurote criatura da água em nome de Deus Pai Todo Poderoso e em nome de Jesus Cristo seu único Filho Nosso Senhor e em virtude do Espírito Santo que te tornes água conjurada para afastar todos os poderes do inimigo e para erradicar e suplantar o inimigo etc E o mesmo na bênção do sal que se mistura com ela Que tu sal sejas conjurado que todos os fantasmas e velhacaria da fraude do demônio possam fugir e abandonar o lugar em que és salpicado e que todos os espíritos sujos sejam conjurados por aquele que virá para julgar os vivos e os mortos 0 mesmo na bênção do óleo Que todo o poder do inimigo toda a hoste do Diabo todos os assaltos e fantasmas de Satanás possam ser afastados por esta criatura do óleo E quanto à criança que está para ser batizada é sujeita a muitos encantamentos primeiro na porta da igreja o padre assopra três vezes no rosto da criança e diz Sai de dentro dele espírito sujo e dá lugar ao Espírito Santo o confortador Como se todas as crianças até serem assopradas pelo padre fossem demoníacas Novamente antes de sua entrada na igreja diz como antes Conjurote etc para que saias e abandones este servo de Deus E novamente o mesmo exorcismo é repetido uma vez mais antes do batismo Estas e algumas outras encantações são aquelas que são usadas em vez de bênçãos e consagrações na administração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor onde tudo o que serve para aqueles sagrados usos exceto o profanado cuspo do padre possui alguma forma de exorcismo Também não são isentos de encantamentos os outros ritos como os do casamento extremaunção visitação dos doentes consagração das igrejas e adros e outros semelhantes na medida em que se observa neles o uso de óleo encantado e água com o abuso da cruz e da palavra sagrada de Davi Asperges me Domine Hyssopo como coisas eficazes para afastar os fantasmas e os espíritos imaginários Outro erro geral resulta da má interpretação das palavras vida eterna morte eterna e segunda morte Pois muito embora leiamos simplesmente nas Sagradas Escrituras que Deus criou Adão em estado de viver para sempre o que era condicional isto é caso ele não desobedecesse a suas ordens o que não era essencial à natureza humana mas conseqüente com a virtude da árvore da vida da qual ele tinha liberdade de comer enquanto não pecasse e que foi expulso do Paraíso depois de ter pecado para que não comesse dela nem vivesse para sempre e que a Paixão de Cristo é um resgate do pecado de todos os que acreditarem nele e por conseqüência uma restituição da vida eterna a todos os fiéis e apenas a eles contudo a doutrina é agora e tem sido há muito tempo diferente a saber que todos os homens tinham vida eterna por natureza na medida em que sua alma é imortal de tal modo que a espada flamejante à entrada do Paraíso muito embora impeça o homem de chegar à árvore da vida não o impede de possuir a imortalidade que Deus lhe tirou por causa do seu pecado nem o faz precisar do sacrifício de Cristo para recuperar a mesma e consequentemente não apenas os fiéis e justos mas também os maus e os gentios gozarão a vida eterna sem qualquer morte e muito menos uma segunda e eterna morte Para remediar a isto dizse que por segunda e eterna morte se entende uma segunda e eterna vida mas em tormentos figura que nunca é usada exceto exatamente neste caso Toda esta doutrina se baseia apenas em alguns dos textos mais obscuros do Novo Testamento os quais contudo considerado todo o âmbito das Escrituras são suficientemente claros num sentido diferente e desnecessário ao credo cristão Pois supondo que quando um homem morre nada resta dele senão sua carcaça não pode Deus que transformou com suas palavras a argila e o pó inanimados numa criatura viva fazer com igual facilidade voltar à vida uma carcaça morta e deixála viver para sempre ou fazêla morrer outra vez também com sua palavra A alma nas Escrituras significa sempre ou a vida ou a criatura viva e o corpo e a alma conjuntamente o corpo vivo No quinto dia da criação Deus disse Que a água produza reptile animae viventis a coisa rastejante que tinha nela uma alma viva e na tradução temos que tinha vida E mais Deus criou baleias e omnem animam viventem na tradução todas as criaturas vivas e do mesmo modo com o homem Deus fêlo do pó da terra e soprou em seu rosto 0 sopro da vida e factus est Homo in animam viventem que é e o homem foi tornado uma criatura viva E depois que Noé saiu da arca Deus disse que não mais destruiria omnem animam viventem isto é todas as criaturas vivas E Deut 1223 Não comas o sangue pois o sangue é a alma isto é a vida Destas passagens se por alma se entendesse uma substância incorpórea com uma existência separada do corpo o mesmo poderia ser inferido de qualquer outra criatura viva tal como do homem Mas que as almas dos fiéis não por sua natureza mas por graça especial de Deus permanecerão em seus corpos depois da ressurreição para toda a eternidade penso ter já suficientemente provado a partir das Escrituras no capítulo 38 E quanto às passagens do Novo Testamento em que se diz que qualquer homem pode ser lançado de corpo e alma no fogo do Inferno nada mais é do que corpo e vida isto é serão lançados vivos no fogo perpétuo de Gehena É esta a janela que dá entrada à tenebrosa doutrina primeiro dos tormentos eternos e depois do Purgatório e consequentemente dos fantasmas dos mortos passeando principalmente em lugares consagrados solitários ou escuros e daí às pretensões de exorcismo e conjuração de fantasmas como também de invocação de homens mortos e á doutrina das indulgências isto é de isenção durante um tempo ou para sempre do fogo do Purgatório onde se pretende que estas substâncias incorpóreas são queimadas para serem purificadas e preparadas para o céu Pois sendo os homens geralmente possuídos antes do tempo de nosso Salvador por contágio da demonologia dos gregos da opinião de que as almas dos homens eram substâncias distintas de seus corpos e portanto que quando o corpo estava morto a alma de todos os homens quer bem aventurados quer maus tinha de subsistir em algum lugar por virtude de sua própria natureza sem reconhecerem portanto qualquer presente sobrenatural de deuses os doutores da Igreja hesitaram durante muito tempo acerca do lugar no qual elas deviam esperar até serem reunidas a seus corpos na ressurreição supondo durante algum tempo que elas permaneciam debaixo dos altares mas depois a Igreja de Roma achou mais interessante construir para elas um lugar no Purgatório que nestes últimos tempos tem sido demolido por algumas outras igrejas Consideremos agora que textos das Escrituras parecem confirmar melhor estes três erros gerais que aqui abordei Quanto àqueles que o Cardeal Belarmino alegou para o atual reino de Deus administrado pelo Papa não há nenhum que apresente um melhor feixe de provas já respondi a eles e tornei evidente que o reino de Deus instituído por Moisés terminou com a eleição de Saul depois do que o sacerdote por sua própria autoridade nunca depôs nenhum rei Aquilo que o Sumo Sacerdote fez a Atália não foi feito por direito próprio mas por direito do jovem Rei Joash seu filho mas Salomão por seu direito próprio depôs o Sumo Sacerdote Abiatar e colocou outro em seu lugar A passagem mais difícil de responder de todas aquelas que podem ser alegadas para provar que o reino de Deus por Cristo já é deste mundo não é referida por Belarmino nem por qualquer outro da Igreja de Roma mas por Beza que o faz começar desde a ressurreição de Cristo Mas se com isso pretendia dar ao presbitério o supremo poder eclesiástico na república de Genebra e consequentemente a qualquer presbitério em qualquer outro Estado ou aos príncipes e outros soberanos civis é coisa que ignoro Pois o presbitério tinha reivindicado o poder de excomungar seus próprios reis e de ser o supremo moderador em religião naqueles lugares onde têm aquela forma de governo eclesiástico do mesmo modo que o Papa o reivindica universalmente As palavras são Mc 91 Em verdade vos digo que há alguns daqueles que aqui estão que não provarão a morte antes de terem visto o reino de Deus chegar com poder As quais palavras se tomadas gramaticalmente tornam certo que ou alguns daqueles homens que estavam junto de Cristo naquele momento ainda estão vivos ou então que o reino de Deus tem de estar agora neste mundo atual E então há um outro trecho mais difícil pois quando os apóstolos depois da ressurreição de nosso Salvador e imediatamente antes de sua Ascensão perguntaram a nosso Salvador dizendo At 16 Restituirás nessa altura o reino a Israel ele lhes respondeu Não vos compete a vós conhecer os tempos e as épocas que o Pai detém em seu próprio poder mas recebereis poder pela vinda do Espírito Santo sobre vós e sereis meus mártires testemunhos quer em Jerusalém e em toda a Judéia e na Samaria e até aos confins da terra o que é o mesmo que dizer Meu reino ainda não chegou nem sabereis antecipadamente quando vai chegar pois virá como um ladrão na noite mas enviarvosei o Espírito Santo e por ele recebereis poder para testemunhar a todo o mundo por vossa pregação minha ressurreição e as obras que fiz e a doutrina que ensinei a fim de que possam acreditar em mim e ter esperança na vida eterna quando eu vier outra vez Como é que isto concorda com a chegada do reino de Cristo no momento da ressurreição E aquilo que São Paulo diz 1 Tes 19s Que eles se afastaram dos ídolos para servir o Deus verdadeiro e vivo e para esperar por seu Filho do céu onde esperar por seu Filho do céu é esperar por sua chegada para ser rei no poder o que não seria necessário se este reino estivesse então presente Também se o reino de Deus começou como Beza naquele trecho Marcos 91 queria ver na ressurreiçao que razão haveria para os cristãos desde a ressurreição dizerem em suas orações Venha a nós o vosso reino É portanto manifesto que as palavras de São Marcos não devem ser interpretadas desse modo Há alguns daqueles que aqui estão disse nosso Salvador que não provarão a morte antes de terem visto o reino de Deus chegar com poder Se então este reino estivesse para vir na ressurreição de Cristo por que razão é dito alguns daqueles em vez de todos Pois todos eles viveram até depois da ressurreição de Cristo Mas aqueles que exigem uma exata interpretação deste texto devem interpretar primeiro as palavras semelhantes de nosso Salvador a São Pedro referindose a São João cap 2122 Se quero que ele permaneça até eu chegar o que te importa isso sobre o que se fundamentou uma versão de que ele não morreria Contudo a verdade daquela versão nem foi confirmada como bem fundamentada nem refutada como mal fundamentada naquelas palavras mas deixada como um dito não compreendido A mesma dificuldade se observa no trecho de São Marcos E se for legítimo conjeturar acerca de seu significado através daquilo que se segue imediatamente quer aqui quer em S Lucas onde a mesma coisa é repetida não é improvável dizer que têm relação com a transfiguração que é descrita nos versos que se seguem imediatamente onde se diz que Depois de seis dias Jesus levou consigo Pedro e Tiago e João não todos mas alguns de seus discípulos e conduziuos a uma alta montanha onde estavam sozinhos e foi transfigurado diante deles E suas roupas ficaram brilhantes extremamente brancas como neve tal como nenhum tintureiro sobre a terra poderia limpá las E ali lhes apareceu Elias com Moisés e eles estavam conversando com Jesus etc Deste modo viram Cristo em glória e majestade tal como deve chegar de tal maneira que ficaram cheios de medo E assim a promessa de nossa Salvador foi cumprida por meio da visão pois era uma visão como provavelmente se pode inferir de São Lucas que conta a mesma história cap 9 vers 28 e disse que Pedro e aqueles que estavam com ele estavam morrendo de sono mas com mais certeza do que Mateus 179 onde a mesma coisa é novamente relatada pois nosso Salvador os carregou dizendo Não contem a ninguém a visão até que o Filho tenha ressuscitado dos mortos Seja como for daqui não se pode tirar nenhum argumento provando que o reino de Deus começou antes do dia do juízo Quanto a alguns outros textos para provar o poder do Papa sobre os soberanos civis além dos de Belarmino como aquele onde se diz que as duas espadas que Cristo e seus apóstolos tinham entre eles eram a espada espiritual e a espada temporal que dizem São Pedro lhe tinha dado por meio de Cristo esse outro acerca das duas luminárias em que a maior significa o Papa e a mais pequena o rei podiase igualmente inferir a partir do primeiro versículo da Bíblia que por céu se entende o Papa e por terra o rei o que não é argumentar a partir das Escrituras mas um petulante insulto aos príncipes que se tornou moda depois da época em que os Papas ficaram tão seguros de sua grandeza que desprezavam todos os reis cristãos e pisando o pescoço dos imperadores para troçarem quer deles quer das Escrituras com as palavras do Salmo 91 Pisarás o leão e a serpente o jovem leão e o dragão pisarás com teus pés Quanto aos ritos da consagração muito embora dependam em sua maior parte da discrição e da sensatez dos chefes da Igreja e não das Escrituras contudo aqueles chefes estão obrigados àquela direção que a própria natureza da ação exige por exemplo que as cerimônias palavras e gestos sejam ao mesmo tempo decentes e significantes ou pelo menos conformes à ação Quando Moisés consagrou o tabernáculo o altar e os vasos que lhes pertenciam Êx 40 consagrouos com o óleo que Deus tinha ordenado que fosse feito para aquele fim e ficaram sagrados Não havia nada de exorcizado para afastar fantasmas 0 mesmo Moisés o soberano civil de Israelquando consagrou Aarâo o Sumo Sacerdote e seus filhos lavouos realmente com água na água exorcizada colocoulhes as vestes e consagrouos com óleo e eles ficaram santificados a fim de ministrarem junto do Senhor no cargo de sacerdotes o que foi uma purificação simples e decente adornandoos antes de apresentálos a Deus para serem seus servos Quando o rei Salomão o soberano civil de Israel consagrou o Templo que tinha construído 2 Rs 8 ficou de pé diante de toda a Congregação de Israel e tendo os abençoado deu graças a Deus por ter colocado no coração de seu pai a sua construção e por ter concedido a ele próprio a graça de realizar o mesmo e então suplicoulhe em primeiro lugar que aceitasse aquela casa muito embora fosse adequada à sua infinita grandeza e que escutasse as orações de seus servos que ali rezassem ou se estivessem ausentes em sua direção e finalmente fez um sacrifício de oferta de paz e a casa ficou consagrada Aqui não houve procissões o rei permaneceu em seu lugar destacado não houve água exorcizada não houve Asperges me nem outra aplicação impertinente de palavras proferidas em outra ocasião mas um discurso decente e racional e tal que ao fazer a Deus a oferta de sua nova casa construída era o mais adequado à ocasião Não lemos que São João tenha exorcizado a água do Jordão nem Filipe a água do rio onde batizou o eunuco nem que algum pastor do tempo dos apóstolos tenha tomado seu cuspo e o tenha posto no nariz da pessoa a ser batizada dizendo In odorem sua vitais isto é Para um suave odor ao Senhor onde nem a cerimônia do cuspo devido a sua sujeira nem a aplicação daquela Escritura devido a sua ligeireza podem ser justificadas por qualquer autoridade humana Para provar que a alma separada do corpo vive eternamente não apenas as almas dos eleitos por graça especial e restauração da vida eterna que Adão perdeu com o pecado e nosso Salvador restabeleceu por seu próprio sacrifício aos fiéis mas também as almas dos réprobos como uma propriedade naturalmente conseqüente com a essência da humanidade sem qualquer outra graça de Deus exceto aquela que é universalmente dada a toda a humanidade há diversos trechos que à primeira vista parecem servir suficientemente ao caso mas tais que quando os comparo com o que antes aleguei capítulo 38 a partir do 14 de Jó me parecem muito mais sujeitos a interpretações diversas do que as palavras de Jó E em primeiro lugar há as palavras de Salomão Ecl 127 Então voltará o pó a ser pó como antes e o espírito voltará a Deus que o deu 0 que pode muito bem se não houver nenhum outro texto diretamente contra ele ter esta interpretação que só Deus conhece mas o homem não o que acontece ao espírito do homem quando ele expira e o mesmo Salomão no mesmo livro cap 3 vers 20 e 21 proferiu a mesma frase no sentido que lhe dei As suas palavras são Todos homens e animais vão para o mesmo lugar todos são de pó e todos voltarão a ser pó outra vez quem sabe que o espírito do homem vai para cima e que o espírito do animal vai para baixo para a terra Isto é ninguém sabe exceto Deus nem é uma frase desusada para comentar coisas que não compreendemos Deus sabe o que e Deus sabe aonde A de Gên 5 24 Enoc caminhou com Deus e não estava pois Deus o levou o que está exposto em Hbr 135 Foi trasladado para que não morresse e não foi encontrado porque Deus o tinha trasladado Pois antes de sua trasladação ele tinha o seguinte testemunho de que agradava a Deus o que provando a imortalidade tanto do corpo como da alma mostra que esta sua trasladação era peculiar àqueles que agradavam a Deus não comum a estes e aos maus e dependendo da graça não da natureza Mas pelo contrário que interpretação devemos nós dar além do sentido literal das palavras de Salomão Ecl 319 Que o que acontece aos filhos dos homens acontece aos animais a mesma coisa acontece a eles assim como uns morrem também os outros morrem sim todos têm um mesmo sopro um espírito de tal modo que o homem não tem preeminência sobre a besta pois tudo é vaidade Pelo sentido literal aqui não há qualquer imortalidade natural da alma nem contudo qualquer repugnância quanto à vida eterna que os eleitos devem gozar por graça E cap 4 vers 3 Melhor está aquele que ainda não foi que ambos eles isto é que aqueles que vivem ou que viveram o que se a alma de todos aqueles que viveram fosse imortal seria um dito forte pois então ter uma alma imortal seria pior do que não ter alma nenhuma E também cap 9 vers S Os vivos sabem que morrerão mas os mortos nada sabem isto é naturalmente e antes da ressurreição do corpo Outro trecho que parece defender uma imortalidade natural da alma é aquele em que nosso Salvador diz que Abraão Isaac e Jacob estavam vivendo mas isto é dito da promessa de Deus e de sua certeza de se levantarem novamente não de uma vida então real No mesmo sentido em que Deus disse a Adão que no dia em que comesse do fruto proibido de certeza morreria daquele dia em diante era um homem morto por sentença mas não por execução até quase mil anos depois Do mesmo modo Abraão Isaac e Jacob estavam vivos por promessa então quando Cristo falou mas não o estão na verdade até a ressurreição E a história de Dives e de Lázaro nada prova contra isto se a encararmos como uma parábola como é Mas há outros trechos do Novo Testamento onde parece ser atribuída diretamente uma imortalidade aos maus pois é evidente que todos se levantarão para o juízo final Além disso é dito em muitos lugares que eles irão para o fogo eterno para tormentos eternos para castigos eternos e que o verme da consciência nunca morre e tudo isto está compreendido na expressão morte eterna que é geralmente interpretada como vida eterna em tormentos E contudo não consigo encontrar em parte alguma que alguém deva viver eternamente em tormentos Também parece difícil dizer que Deus que é o Pai da misericórdia que faz tudo o que quer no céu e na terra que tem à sua disposição os corações de todos os homens que opera sobre os homens quer na ação quer na vontade e sem cujo dom livre o homem não tem nem inclinação para o bem nem arrependimento do mal quisesse punir as transgressões dos homens sem qualquer limite de tempo e com todos os extremos de tortura que os homens podem imaginar e mais Devemos portanto atentar em qual seja o significado de fogo eterno e de outras expressões semelhantes das Escrituras Já mostrei que o reino de Deus por Cristo começa no dia do juízo que nesse dia os fiéis se levantarão de novo com corpos gloriosos e espirituais e serão seus súditos naquele seu reino que será eterno que não se casarão nem serão dados em casamento nem comerão nem beberão como o faziam com seus corpos naturais mas viverão para sempre em suas pessoas individuais sem a eternidade específica da geração e que os réprobos também se levantarão de novo para receber os castigos por seus pecados e também que aqueles entre os eleitos que estiverem vivos com seus corpos terrenos naquele dia terão seus corpos subitamente transformados e tornados espirituais e imortais Mas que os corpos dos réprobos que constituem o reino de Satanás serão também corpos gloriosos ou espirituais ou que serão como os anjos de Deus sem comer nem beber nem gerar ou que sua vida será eterna em suas pessoas individuais como é a vida de todos os fiéis ou como a vida de Adão teria sido se ele não tivesse pecado não existe nenhum trecho das Escrituras que o prove se excetuarmos apenas aqueles trechos referentes aos tormentos eternos que podem ser interpretados de outro modo Donde pode inferirse que assim como os eleitos depois da ressurreição serão restituídos ao estado em que estava Adão antes de ter pecado do mesmo modo os réprobos estarão no estado em que ficou Adão e sua posteridade depois que o pecado foi cometido exceto que Deus prometeu um redentor a Adão e àqueles que nele confiassem e se arrependessem mas não àqueles que morressem com seus pecados como acontece com os réprobos Consideradas estas coisas os textos que mencionam fogo eterno tormentos eternos ou o verme que nunca morre não contradizem a doutrina de uma segunda e eterna morte no sentido próprio e natural da palavra morte 0 fogo ou tormentos preparados para os maus em Gehena Tophet ou em qualquer outro texto podem continuar para sempre e nunca faltarão homens maus para serem neles atormentados muito embora nem todos nem ninguém eternamente Pois sendo os maus deixados no estado em que estavam depois do pecado de Adão podem no momento da ressurreição viver como o fizeram casarse e serem dados em casamento e ter corpos grosseiros e corruptíveis como agora toda a humanidade tem e consequentemente podem gerar perpetuamente depois da ressurreição como o faziam antes pois não há nenhum trecho das Escrituras que diga o contrário Pois São Paulo falando da ressurreição 1 Cor 15 referese a ela apenas como a ressurreição para a vida eterna e não como a ressurreição para o castigo E da primeira disse que o corpo é semeado em corrupção e cresce em incorrupção semeado em desonra e cresce em honra semeado em fraqueza e cresce em poder semeado como corpo natural e cresce como corpo espiritual Nada disto pode ser dito dos corpos daqueles que ressuscitam para o castigo Assim também nosso Salvador quando fala da natureza do homem depois da ressurreição referese à ressurreição para a vida eterna e não para o castigo 0 texto é Lucas 20 versículos 34 35 e 36 um texto fértil Os filhos deste mundo casamse e são dados em casamento mas aqueles que forem considerados como dignos daquele mundo e da ressurreição dos mortos nem se casam nem são dados em casamento nem podem morrer mais pois são iguais aos anjos e são os flhos de Deus sendo os filhos da ressurreição Os filhos deste mundo que estão no estado em que Adão os deixou casarseão e serão dados em casamento isto é corrompemse e geram sucessivamente o que é uma imortalidade da espécie mas não das pessoas dos homens Eles não são dignos de serem contados entre aqueles que obterão o mundo futuro e uma ressurreição absoluta dos mortos mas apenas um curto período como moradores daquele mundo e para o fim apenas de receber um castigo condigno por sua contumácia Os eleitos são os únicos filhos da ressurreição isto é os únicos herdeiros da vida eterna só não podem mais morrer aqueles que são iguais aos anjos e que são os filhos de Deus e não os réprobos Para os réprobos permanece depois da ressurreição uma segunda e eterna morte entre a qual ressurreição e sua segunda e eterna morte há apenas um período de castigo e de tormento e para durar por toda a sucessão de pecadores durante tanto tempo quanto a espécie do homem por propagação agüentar o que é eternamente Nesta doutrina da eternidade natural das almas separadas se baseia como disse a doutrina do purgatório Pois supondo a vida eterna por graça apenas não há vida exceto a vida do corpo e nenhuma imortalidade até a ressurreição Os textos relativos ao purgatório alegados por Belarmino e tirados das Escrituras canônicas do Antigo Testamento são em primeiro lugar o jejum de Davi em favor de Saul e Jônatas mencionado em 2 Sam 112 e novamente em 2 Sam 3 35 pela morte de Abner Este jejum de Davi disse ele era para obter algo para eles das mãos de Deus depois de sua morte porque depois que ele jejuou para conseguir o restabelecimento de seu próprio filho logo que soube que estava morto pediu carne Dado que então a alma tem uma existência separada do corpo e nada pode ser obtido pelo jejum dos homens para as almas que já estão ou no céu ou no inferno seguese que há algumas almas de homens mortos que não estão nem no céu nem no inferno e portanto têm de estar num terceiro lugar que tem de ser o purgatório E assim como duro esforço deturpou aqueles textos para provar a existência de um purgatório visto ser manifesto que as cerimônias de luto e jejum quando são feitas por ocasião da morte de homens cuja vida não foi lucrativa para os carpidores são feitas em honra de suas pessoas e quando são feitas por ocasião da morte daqueles cuja vida trouxe beneficio aos carpidores resultam de seu prejuízo particular E assim Davi honrou Saul e Abner com o seu jejum e na morte de seu próprio filho reconfortouse recebendo seu alimento habitual Nos outros textos que ele foi buscar ao Antigo Testamento não há nada que se pareça com um vestígio ou traço de prova Recorre a todos os textos onde aparece a palavra cólera ou fogo ou incêndio ou expiação ou purificação que os padres só usaram retoricamente em sermões para a doutrina do purgatório já acreditada 0 primeiro versículo do Salmo 37 Ó Senhor não me afastes com tua cólera ne me castigues com teu intenso desagrado o que teria a ver com o purgatório se Agostinho não tivesse aplicado a cólera ao fogo do inferno e o desagrado ao do purgatório E o que tem a ver com o purgatório o do Salmo 6612 Fomos por entre fogo e água e trouxestenos a um lugar úmido e outros textos semelhantes com os quais os doutores daqueles tempos entendiam adornar ou ampliar seus sermões ou comentários trazidos para seus fins à força de habilidade Mas ele alegou outros lugares do Novo Testamento que não são tão fáceis de serem respondidos E em primeiro lugar aquele de Mateus 12 32 Aquele que disser uma palavra contra o filho do homem ela lhe será perdoada mas aquele que falar contra o Espírito Santo isso não lhe será perdoado nem neste mundo nem no mundo que está para vir onde pretende que o purgatório seja o mundo que está para vir no qual podem ser perdoados alguns daqueles pecados que neste mundo não foram Muito embora seja manifesto que só há três mundos um desde a criação até ao dilúvio que foi destruído pela água e que é chamado nas Escrituras o velho mundo outro desde o dilúvio até ao dia do juízo que é o mundo presente e que será destruído pelo fogo e o terceiro que existirá desde o dia do juízo em diante eterno que é denominado o mundo vindouro e no qual todos concordam que não haverá purgatório Portanto são incompatíveis o mundo vindouro e o purgatório Mas então qual pode ser o sentido daquelas palavras de nosso Salvador Confesso que são muito dificilmente conciliáveis com todas as doutrinas agora unanimemente aceitas Nem é vergonha confessar que a profundidade das Escrituras é demasiado grande para ser perscrutada pelo curto entendimento humano Contudo posso propor à consideração dos mais eruditos teólogos aquelas coisas que o próprio texto sugere E em primeiro lugar dado que falar contra o Espírito Santo sendo a terceira pessoa da Trindade é falar contra a Igreja na qual o Espírito Santo reside parece que a comparação é feita entre a facilidade com que nosso Salvador foi indulgente com as ofensas que lhe foram feitas enquanto ele próprio ensinou o mundo isto é quando estava na terra e a severidade dos pastores que vieram depois dele contra aqueles que negassem sua autoridade que vinha do Espírito Santo Como se ele dissesse Vós que negais meu poder mais que ides crucificarme sereis por mim perdoados sempre que vos voltardes para mim com arrependimento mas se negardes o poder daqueles que daqui em diante vos ensinarão pela virtude do Espírito Santo eles serão inexoráveis e não vos perdoarão mas sim vos perseguirão neste mundo e vos deixarão sem absolvição ainda que vos dirijais a mim a menos que vos dirijais a eles também para os castigos tanto quanto estiver ao seu alcance do mundo que está para vir E assim as palavras podem ser tomadas como uma profecia ou predição referente aos tempos como têm sido sempre na Igreja cristã Ora se este não for o significado pois não sou peremptório acerca de textos tão difíceis talvez possa haver lugar depois da ressurreição para o arrependimento de alguns pecadores E há ainda um outro texto que parece concordar com isto Pois atentando nas palavras de São Paulo 1 Cor 15 29 0 que farão aqueles que são batizados pelos mortos se os mortos não ressuscitarem mesmo Por que também são eles batizados pelos mortos pode provavelmente inferirse como alguns fizeram que no tempo de São Paulo havia o costume de receber batismo pelos mortos como os homens que agora acreditam que podem servir de fiadores e tomar a seu cargo responder pela das crianças que não são capazes de ter fé tomando a seu cargo pelas pessoas de seus amigos mortos afirmar que elas estariam prontas a obedecer e a receber nosso Salvador como seu rei quando ele viesse de novo e então o perdão dos pecados no mundo que está para vir não exige um purgatório Mas em ambas estas interpretações há tanto paradoxo que não confio nelas mas proponhoas àqueles que são profundamente versados nas Escrituras a fim de que investiguem se não há algum texto mais claro que as contradiga Só posso afirmar que encontrei passagens evidentes das Escrituras suficientes para persuadirme de que não há nem a palavra nem a coisa purgatório nem neste nem em qualquer outro texto nem nada que possa provar a necessidade de um lugar para a alma sem o corpo nem para a alma de Lázaro durante os quatro dias em que esteve morto nem para as almas daqueles que a Igreja romana pretende estarem agora sendo atormentados no purgatório Pois Deus que foi capaz de dar vida a um pedaço de barro tem o mesmo poder para dar outra vez vida a um morto e transformar sua carcaça inanimada e podre num corpo glorioso espiritual e imortal Um outro texto é 1 Cor 3 onde se diz que os que acumularam restolho feno etc sobre a verdadeira fundação verão sua obra perecer mas serão salvos embora pelo fogo Pretendese que este fogo seja o fogo do purgatório As palavras como disse antes são uma alusão às de Zac 139 onde ele diz Trarei a terceira parte através do fogo e purificálosei como a prata é purificada e afinálosei como o ouro é afinado o que é dito da chegada do Messias em poder e glória isto é no dia do juízo e conflagração do mundo presente no qual os eleitos não serão consumidos mas refinados isto é desfazerseão suas doutrinas e tradições errôneas como se estas fossem chamuscadas e depois disso receberão o nome do verdadeiro Deus De maneira idêntica o apóstolo disse daqueles que defendendo esta fundação Jesus é o Cristo constróem sobre ela outras doutrinas errôneas que eles não serão consumidos naquele fogo que renova o mundo e passarão através dele para a salvação mas só na medida em que reconhecem e abandonam seus primitivos erros Os construtores são os pastores a fundação que Jesus é o Cristo o restolho e o feno as falsas conseqüências dela tiradas por ignorância ou fraqueza o ouro a prata e as pedras preciosas são suas verdadeiras doutrinas e sua refinação ou purificação o abandono de seus erros Em tudo isto não há o menor vestígio da queima das almas incorpóreas isto é impalpáveis Um terceiro texto é o de 1 Cor 15 antes mencionado referente ao batismo pelos mortos a partir do qual concluiu em primeiro lugar que as orações pelos mortos não são desprovidas de vantagens e daqui que há um fogo do purgatório mas nenhuma destas conclusões é acertada Pois das muitas interpretações da palavra batismo aprova esta em primeiro lugar que por batismo se entende metaforicamente um batismo de penitência e que os homens são neste sentido batizados quando jejuam rezam e dão esmolas e assim batismo pelos mortos e orações pelos mortos são a mesma coisa Mas isto é uma metáfora da qual não há nenhum exemplo nem nas Escrituras nem em qualquer outro uso da linguagem e que está também em discordância com a harmonia e a finalidade das Escrituras A palavra batismo é utilizada Mc 1038 e Lc 1250 para significar o banho em seu próprio sangue como aconteceu com Cristo na cruz e com a maioria dos apóstolos por terem dado testemunho dele Mas é difícil dizer que a reza o jejum e as esmolas tenham alguma similitude com o banho A mesma palavra é usada também Mat 311 o que parece contribuir algo para o purgatório no sentido de uma purificação pelo fogo Mas é evidente que o fogo e a purificação aqui mencionados são os mesmos de que falou o profeta Zacarias capítulo 13 vers 9 Trarei a terceira parte através do fogo e refinálosei etc E São Pedro seguindoo 1 Par 17 Que aprova de tua fé muito mais preciosa do que a do ouro que perece muito embora seja afinado com fogo possa ser encontrada em louvores e honras e glória pela aparição de Jesus Cristo E São Paulo 1 Cor 313 D fogo purificará a obra de todos os homens seja ela de que espécie for Mas São Pedro e São Paulo falam do fogo que haverá por ocasião da segunda aparição de Cristo e o profeta Zacarias do dia do juízo portanto este texto de São Mateus pode ser interpretado da mesma maneira e então não haverá necessidade do fogo do purgatório Outra interpretação do batismo pelos mortos é aquela que já mencionei que ele prefere ao segundo lugar de probabilidade e daí também inferiu a utilidade da reza pelos mortos Assim se depois da ressurreição aqueles que não ouviram falar de Cristo ou que não acreditaram nele podem ser recebidos no reino de Cristo não é em vão depois de sua morte que seus amigos rezem por eles até ressuscitarem Mas afirmar que Deus devido às rezas dos fiéis pode converter a ele alguns daqueles que não ouviram Cristo pregar e consequentemente não podem ter rejeitado Cristo e que a caridade dos homens naquele ponto não pode ser censurada nada disto milita em favor do purgatório porque ressuscitar da morte para a vida é uma coisa e ressuscitar do purgatório para a vida é outra na medida em que é ressuscitar da vida para a vida de uma vida de tormentos para uma vida de felicidade Um quarto texto é o de Mateus 525 Concordai rapidamente com vosso adversário enquanto estais no caminho com ele para que a qualquer momento o adversário não vos entregue ao juiz e o juiz vos entregue ao oficial e vós sejais lançados na prisão Em verdade vos digo que de nenhum modo saireis de lá até que tenhais pago o último tostão Alegoria na qual o ofensor é o pecador o adversário e o juiz é Deus o caminho é esta vida a prisão é o túmulo o oficial a morte e segundo a qual o pecador não ressuscitará para a vida eterna mas para uma segunda morte até que tenha pago o último tostão ou que Cristo tenha pago por ele com sua Paixão que é um resgate completo para toda espécie de pecado para os pecados menores como para os maiores crimes tendose ambos tornado veniais com a Paixão de Cristo 0 quinto texto é o de Mateus 522 Todo aquele que ficar zangado com seu irmão sem uma razão será culpado em juízo E todo aquele que disser a seu irmão Raca será culpado no conselho Mas aquele que disser tu louco será condenado ao fogo do inferno De cujas palavras ele inferiu três espécies de pecados e três espécies de castigos e que nenhum daqueles pecados exceto o último será castigado com o fogo do inferno e consequentemente que depois desta vida há castigo de pecados menores no purgatório De cuja inferência não se vêem vestígios em nenhuma interpretação que até agora lhes tenha sido dada Haverá depois desta vida uma distinção de tribunais de justiça como havia entre os judeus no tempo de nosso Salvador para ouvir e determinar diversas espécies de crimes como por exemplo os juízes e o conselho Não pertencerá toda a judicatura a Cristo e a seus apóstolos Portanto para compreender este texto não devemos examinálo isoladamente mas juntamente com as palavras precedentes e subseqüentes Nosso Salvador neste capítulo interpretava a lei de Moisés lei essa que os judeus julgavam então cumprir quando não a tinham transgredido em seu sentido gramatical muito embora a tivessem transgredido no espírito ou na intenção do legislador Portanto visto que pensavam que só se ia contra o sexto mandamento quando se matava um homem ou contra o sétimo quando um homem dormia com uma mulher que não era sua esposa nosso Salvador disse lhes que a cólera escondida de um homem contra seu irmão se for sem uma causa justa é homicídio Ouvistes disse ele a lei de Moisés Não matarás e que Aquele que matar será condenado perante os juízes ou perante a sessão dos setenta mas digovos ficar colérico contra um irmão sem causa ou dizer a ele Raca ou louco é homicídio e será castigado no dia do juízo e sessão de Cristo e seus apóstolos com o fogo do inferno De tal modo que aquelas palavras não eram usadas para distinguir entre diversos crimes e diversos tribunais de justiça e diversos castigos mas para taxar a distinção entre um pecado e outro pecado que os judeus não estabeleciam a partir da diferença da vontade de obedecer a Deus mas a partir da diferença de seus tribunais temporais de justiça e para lhes mostrar que aquele que tenha vontade de magoar seu irmão muito embora o efeito só apareça no ultraje ou não apareça nada será lançado no fogo do inferno pelos juízes e pela sessão que será a mesma não diferentes tribunais no dia do juízo Posto isto não vejo o que possa ser tirado deste texto para defender o purgatório 0 sexto trecho é Lucas 169 Tornaivos amigos do injusto Mamon para que quando falhardes possam recebervos em tabernáculos eternos Isto ele alega para provar a invocação dos santos defuntos Mas o sentido é simples que devemos tornarnos amigos dos pobres com nossos bens e obter deste modo suas orações enquanto eles viverem Quem dá aos pobres empresta a Deus 0 sétimo é Lucas 2342 Ó Senhor lembraivos de mim quando chegardes ao Vosso reino Portanto diz ele há uma remissão dos pecados depois desta vida Mas a conseqüência não é correta Nosso Salvador perdoouo então e ao chegar novamente em glória lembrarseá de ressuscitálo para a vida eterna 0 oitavo é Atos 224 onde São Pedro disse de Cristo que Deus o tinha ressuscitado e abrandado as penas da morte porque não era possível que ele fosse detido por ela o que ele interpreta como sendo uma descida de Cristo ao purgatório para ali libertar algumas almas de seus tormentos Visto que é manifesto ser Cristo que era libertado era ele que não podia ser detido pela morte ou pelo túmulo e não as almas no purgatório Mas se aquilo que Beza diz em suas notas sobre aquele trecho estiver bem observado não haverá ninguém que não veja que em vez de penas devia estar ligaduras e então não haveria mais razão para procurar o purgatório neste texto CAPÍTULO XLV Das demonologia e outros vestígios da religião dos gentios A impressão provocada nos órgãos da vista pelos corpos lúcidos quer em linha reta quer em muitas linhas refletidas a partir dos corpos opacos ou refratadas na passagem através de corpos diáfanos produz nos seres vivos em que Deus colocou tais órgãos uma imaginação do objeto de que resulta a impressão imaginação essa que é denominada visão e que parece não ser uma simples imaginação mas o próprio corpo fora de nós do mesmo modo quando alguém comprime violentamente o olho lhe aparece à frente uma luz exterior que ninguém mais vê porque na verdade não existe tal coisa mas apenas um movimento nos órgãos internos pressionando por uma resistência para fora que o leva a pensar desse modo E o movimento feito por esta pressão continuando depois que o objeto que a causou foi removido é aquilo que denominamos imaginação e memória e durante o sono e algumas vezes numa grande perturbação dos órgãos provocada por doença ou violência sonho coisas acerca das quais já falei rapidamente nos capítulos 2 e 3 Nunca tendo sido descoberta esta natureza da visão pelos que nos tempos antigos aspiravam ao conhecimento natural e muito menos por aqueles que não atentam em coisas tão remotas como é aquele conhecimento de seu uso presente é difícil aos homens conceber aquelas imagens na fantasia e nos sentidos a não ser como coisas realmente existentes fora de nós Algumas das quais porque desaparecem não se sabe por que nem como terão de ser absolutamente incorpóreas isto é imateriais ou formas sem matéria cor ou figura sem qualquer corpo colorido ou figurado e que eles podem colocar em corpos aéreos como uma roupa para tornálas visíveis quando quiserem a nossos olhos corpóreos e outros dizem que são corpos e criaturas vivas mas feitas de ar ou outra matéria mais sutil e etérea que é então quando são vistos condensada Mas qualquer deles concorda numa apelação geral para elas demônios Como se os mortos com quem sonham não fossem os habitantes de seu próprio cérebro mas sim do ar do céu ou do inferno não fantasmas mas espíritos com tanto fundamento como se dissessem que viam seu próprio espírito num espelho ou os espíritos das estrelas num rio ou chamassem à vulgar aparição do sol com cerca de um pé de altura o demônio ou espírito daquele grande sol que ilumina todo o mundo visível E por esta razão têmnos temido como coisas de um desconhecido isto é de um poder ilimitado para lhes fazer bem ou mal e consequentemente têm dado ocasião aos governantes dos Estados gentios para controlarem assim seu receio estabelecendo aquela demonologia na qual os poetas como sacerdotes principais da religião pagã eram especialmente empregados ou respeitados necessária para a paz pública e para a obediência dos súditos e para tornarem algum deles bons demônios e outros maus uns como esporas para a observância os outros como rédeas para impedilos de violar as leis Que espécie de coisas eram essas a que atribuíam o nome de demônios é algo que aparece em parte na genealogia de seus deuses escrita por Hesiódo um dos mais antigos poetas dos gregos e em parte em outras histórias algumas das quais já analisei no capítulo 12 deste discurso Os gregos por meio de suas colônias e conquistas comunicaram sua língua e escritos à Ásia ao Egito e à Itália e também por uma necessária conseqüência sua demonologia ou como São Paulo lhe chama suas doutrinas dos diabos E por este meio o contágio chegou também aos judeus quer da Judéia quer de Alexandria e outras partes onde estavam espalhados Mas o nome de demônio não era por eles atribuído como acontecia com os gregos aos espíritos bons e maus mas só aos maus E aos bons demônios deram o nome do Espírito de Deus e acreditavam que aqueles em cujos corpos entravam eram profetas Em suma todas as singularidades quando boas eram atribuídas ao Espírito de Deus e as más a algum demônio mas a um kakodáimon um mau demônio isto é um diabo E portanto chamavam demoníacos isto é possuídos pelo diabo aqueles que denominamos loucos ou lunáticos ou aqueles que tinham a doença de cair ou que falavam qualquer coisa que eles por não compreenderem consideravam absurda E também de uma pessoa extremamente suja costumavam dizer que ela tinha um espírito sujo de um mudo que ele tinha um espírito mudo e de João Batista Mt 1118 devido à singularidade de seu jejum que ele tinha um diabo e de nosso Salvador porque disse que aquele que obedece a suas ordens não verá a morte in aeternum Agora sabemos que tu tens um diabo Abraão morreu e os profetas morreram e ainda porque disse Jo 720 Tentaram matá lo o povo respondeu Tu tens um diabo que intenta matarte Por onde fica manifesto que os judeus tinham as mesmas opiniões referentes a fantasmas a saber que não eram fantasmas isto é ídolos do cérebro mas coisas reais e independentes da fantasia Se esta doutrina não é verdadeira por que razão podem alguns dizer nosso Salvador não a contradisse e não ensinou o contrário Mais por que razão se serve em diversas ocasiões de formas de discurso tais que parecem confirmála A isto respondo que em primeiro lugar onde Cristo disse Um espírito não tem carne nem ossos embora mostrasse que havia espíritos contudo não nega que sejam corpos E quando São Paulo diz Ressuscitaremos como corpos espirituais reconhece a natureza dos espíritos mas que eles são espíritos corpóreos o que não é difícil de compreender Pois o ar e muitas outras coisas são corpos muito embora não sejam nem carne nem ossos ou qualquer outro corpo grosseiro capaz de ser discernido pelo olhar Mas quando nosso Salvador fala ao diabo e lhe ordena que saia de um homem se pelo diabo quer dizer uma doença como frenesim ou lunatismo ou um espírito corpóreo não é imprópria a expressão Podem as doenças ouvir Ou pode haver um espírito corpóreo num corpo de carne e osso já cheio de espíritos vitais e animais Não há portanto espíritos que nem têm corpos nem são meras imaginações À primeira pergunta respondo que o fato de nosso Salvador ao curar dar uma ordem à loucura ou ao lunatismo não é mais impróprio do que dirigir uma censura à febre ou ao vento e ao mar pois também estes não ouvem ou do que a ordem de Deus à luz ao firmamento ao sol e às estrelas quando lhes ordenou que existissem pois não podiam ouvir antes de terem um ser Mas aquelas falas não são impróprias porque significam o poder da palavra de Deus portanto também não é impróprio dar ordens à loucura ou ao lunatismo com a designação de diabos pela qual eram então habitualmente entendidos para que saíssem do corpo de um homem Quanto à segunda pergunta referente ao fato de serem incorpóreos ainda não encontrei nenhum trecho das Escrituras do qual se possa concluir que alguém fosse possuído por qualquer outro espírito corpóreo exceto pelo próprio pelo que move naturalmente seu corpo Nosso Salvador logo depois que o Espírito Santo desceu sobre ele sob a forma de uma pomba segundo São Mateus capítulo 41 foi conduzido pelo espírito ao deserto e o mesmo é contado Lc 41 com estas palavras Estando Jesus cheio do Espírito Santo foi conduzido em espirito ao deserto onde fica evidente que por espírito aqui se entende o Espírito Santo Isto não pode ser interpretado como uma posse pois Cristo e o Espírito Santo são uma e a mesma substância o que não é posse de uma substância ou corpo por outra E enquanto nos versículos seguintes se diz que ele foi levado pelo diabo para a cidade santa e colocado no pináculo do templo deveremos concluir daí que ele estava possuído pelo diabo ou que foi ali conduzido pela força E novamente transportado dali pelo diabo para uma montanha extremamente alta o qual lhe mostrou dali todos os reinos do mundo Pelo que não devemos acreditar que estivesse possuído ou forçado pelo diabo nem que uma montanha fosse suficientemente alta de acordo com o sentido literal para lhe mostrar todo um hemisfério Qual pode então ser o sentido deste trecho senão o de que ele foi por si próprio para o deserto e que este andar para cima e para baixo do deserto para a cidade e daqui para uma montanha era uma visão Conforme a isto é também a frase de São Lucas de que ele foi conduzido para o deserto não por um espírito mas em espírito ao passo que no que se refere a ser levado para a montanha e para o pináculo do templo ele fala como São Mateus 0 que coaduna com a natureza de um visão Também onde São Lucas diz de Judas Iscariote que Satanás entrou nele e depois que ele foi conversar com os sacerdotes principais e capitães acerca do modo como podia atraiçoar Cristo para eles pode ser respondido que pela entrada nele de Satanás isto é o inimigo se pretende significar a intenção hostil e traidora de vender seu senhor e mestre Pois assim como pelo Espírito Santo se entende freqüentemente nas Escrituras as graças e boas inclinações dadas pelo Espírito Santo do mesmo modo pela entrada de Satanás podese entender as más cogitações e os desígnios dos adversários de Cristo e de seus discípulos Pois assim como é difícil dizer que o diabo entrou em Judas antes de ele ter tido um desígnio tão hostil também é impertinente dizer que ele era primeiro o inimigo de Cristo em seu coração e que o diabo entrou nele depois disso Portanto a entrada de Satanás e seu desígnio perverso era uma e a mesma coisa Mas se não existir nenhum espírito imaterial nem nenhuma posse dos corpos dos homens por qualquer espírito corpóreo pode novamente perguntarse por que razão nosso Salvador e seus apóstolos não ensinaram isso ao povo e com palavras tão claras que não pudessem depois ser postas em dúvida Mas questões como estas são mais curiosas do que necessárias para a salvação de um cristão Os homens podem igualmente perguntar por que razão Cristo que podia ter dado a todos os homens fé piedade e toda a espécie de virtudes morais só as deu a alguns e não a todos e por que razão as deixou à razão natural e à indústria dos homens e não as revelou sobrenaturalmente a todos ou a qualquer homem e muitas outras perguntas para as quais contudo podem ser alegadas razões prováveis e piedosas Pois assim como Deus quando trouxe os israelitas para a terra prometida não os garantiu ali subjugando todas as nações à sua volta mas deixou muitas delas como espinhos em seu flanco para neles despertar de tempos a tempos sua piedade e indústria do mesmo modo nosso Salvador conduzindonos para seu reino celestial não destruiu todas as dificuldades de questões naturais mas deixouas para exercitarmos nossa indústria e razão sendo o objetivo de sua pregação apenas mostrarnos este simples e direto caminho para a salvação a saber a crença neste artigo que ele era o Cristo o Cristo o filho do Deus vivo enviado ao mundo para sacrificarse por nossos pecados e ao chegar novamente reinar gloriosamente sobre seus eleitos e para salválos de seus inimigos eternamente Para o que a opinião da posse por espíritos ou fantasmas não constitui nenhum impedimento no caminho embora seja para alguns uma ocasião de sair do caminho e para seguir suas próprias invenções Se exigimos das Escrituras uma explicação para todas as questões que podem ser levantadas e nos perturbam no cumprimento das ordens de Deus também podemos queixarnos de Moisés por não ter estabelecido o tempo para a criação de tais espíritos assim como da criação da terra e do mar e dos homens e dos animais Para concluir vejo nas Escrituras que há anjos e espíritos bons e maus mas não que eles sejam incorpóreos como são as aparições que os homens vêem no escuro ou nos sonhos ou visões a que os latinos chamam Spectra e tomaram por demônios E acho que há espíritos corpóreos embora sutis e invisíveis mas que o corpo de qualquer homem esteja possuído ou habitado por eles e que os corpos dos santos serão tal como São Paulo lhes chamou corpos espirituais Contudo a doutrina contrária a saber que há espíritos incorpóreos tem até agora prevalecido de tal modo na Igreja que o uso do exorcismo isto é da expulsão de demônios por conjuração se apoiou nela e embora praticado rara e fraca mente ainda não foi totalmente suprimido Que havia muitos demoníacos na Igreja primitiva e alguns loucos e outros doentes singulares enquanto nos tempos de hoje ouvimos falar e vemos muitos loucos e poucos demoníacos é algo que não resulta de uma mudança de natureza mas de nomes Mas é outra questão saber por que razão os apóstolos e depois deles durante algum tempo os pastores da Igreja curavam essas doenças singulares o que agora não se vê fazer como também por que razão não está no poder de cada verdadeiro crente fazer agora tudo o que os fiéis então fizeram isto é como lemos Mc 1617 Em nome de Cristo expulsar os demônios falar com novas línguas levantar serpentes beber venenos mortais sem ficar mal e curar os doentes colocando sobre eles as mãos e tudo isto sem outras palavras exceto em nome de Jesus E é provável que aqueles dons extraordinários fossem dados à Igreja só enquanto os homens confias sem totalmente no Cristo e procurassem sua felicidade apenas no reino que está para vir e consequentemente que quando procuravam autoridade e bens e confiavam na sua própria sutileza para um reino deste mundo estes dons sobrenaturais de Deus lhes eram novamente retirados Um outro vestígio de gentilismo é o culto das imagens que não foi instituído por Moisés no Antigo Testamento nem por Cristo no Novo nem ainda trazido dos gentios mas deixado entre eles depois de terem dado seus nomes a Cristo Antes que nosso Salvador pregasse era a religião geral dos gentios cultuar pelos deuses essas aparências que permanecem no cérebro depois da impressão dos corpos externos sobre os órgãos dos sentidos que são comumente chamadas idéias ídolos fantasmas fantasias como sendo representações daqueles corpos externos que os causam e que nenhuma realidade possuem tal como nenhuma realidade existe nas coisas que parecem erguerse à nossa frente num sonho E esta é a razão por que São Paulo diz Sabemos que um ídolo não é nada não porque pensasse que uma imagem de metal de pedra ou de madeira não fosse nada mas porque aquilo que eles honravam ou temiam na imagem e que consideravam como um deus era uma mera ficção sem lugar nem habitação nem movimento nem existência exceto nos movimentos do cérebro E seu culto com honra divina é aquilo que nas Escrituras se denomina idolatria e rebelião contra Deus Pois sendo Deus o rei dos judeus e sendo seu representante primeiro Moisés e depois o Sumo Sacerdote se se tivesse permitido ao povo o culto e as rezas a imagens que são representações de suas próprias fantasias ele deixaria de depender do verdadeiro Deus do qual não pode haver similitude e de seus primeiros ministros Moisés e os Sumos Sacerdotes e cada homem terseia governado de acordo com seu próprio desejo para maior subversão do Estado e sua própria destruição por falta de união Portanto a primeira lei de Deus era Não devem tomar como deuses Alienos Deos isto é os deuses de outras nações ruas apenas aquele verdadeiro Deus que condescendeu em falar com Moisés e através dele lhes deu leis e direções para sua paz e para sua salvação dos inimigos E a segunda era que eles não deviam fazer para si quaisquer imagens para culto de sua própria invenção Pois é o mesmo depor um rei para submeterse a outro rei quer seja imposto por outra nação quer por nós próprios Os trechos das Escrituras que perversamente favorecem o estabelecimento de imagens para culto ou seu estabelecimento nos lugares onde Deus é venerado são em primeiro lugar dois exemplos um o dos querubins sobre a arca de Deus o outro o da serpente de bronze Em segundo lugar alguns textos que nos ordenam que prestemos culto a certas criaturas por sua relação com Deus como seu escabelo e finalmente alguns outros textos pelos quais se autoriza uma veneração religiosa de coisas sagradas Mas antes de examinar a força daqueles textos para provar aquilo que se pretende tenho em primeiro lugar que explicar o que deve entenderse por culto e por imagens e ídolos Já mostrei no capítulo 20 deste discurso que honrar é avaliar muito alto o poder de qualquer pessoa e que tal valor é medido através de sua comparação com outros Mas porque não há nada que possa ser comparado a Deus em poder não o honramos mas desonramos com qualquer valor menor que o infinito E assim a honra é propriamente por sua natureza secreta e interior no coração Mas os pensamentos anteriores dos homens que aparecem exteriormente em suas palavras e ações são os sinais de nosso ato de honrar e estas são conhecidas pelo nome de culto em latim cultus Portanto rezar jurar obedecer ser diligente e oficioso no servir em suma todas as palavras e ações que indicam receio de ofender ou desejo de agradar são culto quer aquelas palavras e ações sejam sinceras quer sejam fingidas e porque aparecem como sinais do ato de honrar são também geralmente chamadas honra 0 culto que oferecemos àqueles que consideramos apenas como homens como reis e homens de autoridade é o culto civil mas o culto que oferecemos àquilo que pensamos ser Deus sejam quais forem as palavras as cerimônias os gestos ou outras ações é o culto divino Cair prostrado diante de um rei quando se pensa que é apenas um homem não passa de culto civil e quem tira o chapéu na igreja por pensar que é a casa de Deus honra com culto divino Aqueles que procuram a distinção entre o culto divino e civil não na intenção daquele que presta o culto mas nas palavras douleía e latreía enganamse a si próprios Pois visto que há duas espécies de servos aqueles que estão totalmente em poder de seus senhores como escravos tomados em combate como presa de guerra cujos corpos não estão em seu próprio poder dependendo suas vidas da vontade de seus senhores de tal modo que as perdem à menor desobediência e que são comprados e vendidos como animais eram chamados douloi isto é propriamente escravos e seu serviço douleía A outra que é daqueles que servem por aluguel ou na esperança de alcançarem um beneficio de seus senhores voluntariamente são chamados thétes isto é servos domésticos a cujo serviço os senhores não têm outro direito além daquele que está contido nos contratos feitos entre eles Estas duas espécies de servos têm assim muito em comum que seu trabalho lhes é destinado por outrem E a palavra táteis é o nome geral de ambos significando aquele que trabalha para outrem quer como escravo quer como servo voluntário de tal modo que latréia significa geralmente todo serviço mas douleía apenas o serviço do escravo e a condição de escravidão E ambos são usados promiscua mente nas Escrituras para significar nosso serviço de Deus douleía porque somos os escravos de Deus latreía porque o servimos e em toda espécie de serviço está implícita não apenas a obediência mas também o culto isto é aquelas ações gestos e palavras que significam honra Uma imagem na mais estrita significação da palavra é a semelhança de algo visível em cujo sentido as formas fantásticas as aparições ou aparências de corpos visíveis à vista são apenas imagens tal como a aparição de um homem ou de qualquer outra coisa na água por reflexão ou refração ou do sol ou estrelas por direta visão no ar que não são nada real nas coisas vistas nem no lugar onde elas parecem estar nem são suas magnitudes e figuras as mesmas que as do objeto mas mutáveis pela variação dos órgãos da visão ou por óculos e muitas vezes estão presentes em nossa imaginação e em nossos sonhos quando 0 objeto está ausente ou modificado em outras cores e formas como coisas que dependem apenas da fantasia E estas são as imagens que originariamente e mais propriamente são chamadas idéias e ídolos e derivadas da linguagem dos gregos para os quais a palavra eido significava ver São também chamadas fantasmas o que é na mesma língua aparições E é a partir destas imagens que uma das faculdades da natureza do homem é chamada imaginação Fica assim manifesto que não há nem pode haver qualquer imagem de uma coisa invisível É também evidente que não pode haver nenhuma imagem de uma coisa infinita pois todas as imagens e fantasmas que são provocados pela impressão de coisas visíveis têm uma figura mas a figura é uma quantidade de toda a maneira determinada e portanto não pode haver nenhuma imagem de Deus nem da alma do homem nem dos espíritos mas apenas dos corpos visíveis isto é corpos que têm luz em si próprios ou são por eles iluminados E visto que um homem pode fantasiar formas que nunca viu compondo uma figura com partes de diversas criaturas tal como os poetas constróem seus centauros quimeras e outros monstros nunca vistos assim também pode dar matéria a essas formas e produzilas em madeira barro ou metal E estas também são chamadas imagens não pela semelhança com qualquer coisa corpórea mas pela semelhança com alguns fantásticos habitantes do cérebro daquele que as faz Mas nestes ídolos na medida em que estão originariamente no cérebro e na medida em que são pintados entalhados moldados em matéria há uma similitude de uns com os outros pelo que o corpo material feito pela arte pode ser considerado como a imagem do ídolo fantástico feito pela natureza Mas num uso mais amplo da palavra imagem está contida também qualquer representação de uma coisa por outra Assim um soberano sobre a terra pode ser denominado a imagem de Deus e um magistrado inferior a imagem do soberano E muitas vezes na idolatria dos gentios havia pouca consideração pela similitude de seu ídolo material com seu ídolo de fantasia e contudo denominavase uma imagem dele pois uma pedra por desbastar podia ser levantada como Netuno e o mesmo acontecia com diversas outras formas muito diferentes das formas por que concebiam seus deuses E nos tempos atuais vemos muitas imagens da Virgem Maria e outros santos diferentes umas das outras e sem correspondência com qualquer fantasia do homem e contudo servem bastante bem o fim para que foram feitas o qual não era outro senão por nomes apenas representar as pessoas mencionadas na História às quais todos os homens aplicam uma imagem mental feita por eles próprios ou então nenhuma E assim no sentido mais amplo uma imagem é ou a semelhança ou a representação de alguma coisa visível ou ambas as coisas como acontece na maior parte das vezes Mas o nome de ídolo é ainda mais ampliado nas Escrituras a ponto de significar também o sol ou uma estrela ou qualquer outra criatura visível ou invisível quando eles são adorados como deuses Tendo mostrado o que é culto e o que é imagem reunirei as duas coisas agora e examinarei o que é idolatria a qual é proibida no segundo mandamento e em outros lugares das Escrituras Cultuar uma imagem é praticar voluntariamente aqueles atos externos que são sinais de veneração ou da matéria da imagem que é madeira metal ou alguma outra criatura visível ou do fantasma do cérebro por cuja semelhança ou representação a matéria foi formada e figurada ou ambas as coisas como um corpo animado composto da matéria e do fantasma como de corpo e alma Estar descoberto diante de um homem de poder e autoridade ou diante do trono de um príncipe ou naqueles outros lugares que ele ordenou para esse fim em sua ausência é cultuar aquele homem ou príncipe com culto civil como sendo um sinal não de venerar o tamborete ou lugar mas a pessoa e não é idolatria Mas se aquele que o fizer supuser que a alma do príncipe está no tamborete ou apresentar uma petição ao tamborete será culto divino e idolatria Pedir a um rei aquelas coisas que ele é capaz de fazer por nós apesar de nos prostrarmos diante dele não passa de culto civil porque não reconhecemos nele nenhum outro poder além do humano mas pedirlhe voluntariamente bom tempo ou qualquer outra coisa que só Deus pode fazer por nós é culto divino e idolatria Por outro lado se um rei compelir a isso um homem pelo terror da morte ou outro grande castigo corporal não é idolatria pois o culto que o soberano ordena que lhe seja feito pelo terror de suas leis não é um sinal de que aquele que lhe tiver obedecido o venere intimamente como Deus mas sim de que ele está desejoso de salvarse da morte ou de uma vida miserável e que aquilo que não é um sinal de veneração interior não é culto e portanto não é idolatria Nem pode dizerse que aquele que o fizer escandalize ou coloque algum tropeço diante de seu irmão porque por muito sábio ou erudito que seja aquele que cultuar daquela maneira uma outra pessoa não pode argumentar a partir daí que ele o aprova mas sim que o faz por medo e que aquele não é seu ato mas o ato do soberano Cultuar Deus em algum lugar especial ou voltando o rosto para uma imagem ou para um determinado lugar não é cultuar ou venerar o lugar ou imagem mas sim reconhecêla como sagrada isto é reconhecer a imagem ou o lugar como estando à parte do uso comum pois esse é o significado da palavra sagrado a qual não implica uma nova qualidade no lugar ou na imagem mas apenas uma nova relação por apropriação a Deus e portanto não é idolatria como também não era idolatria cultuar Deus diante da serpente de bronze ou para os judeus quando estavam fora de seu país voltarem os rostos quando rezavam para o templo de Jerusalém ou para Moisés tirar os sapatos quando estava diante da sarça ardente no solo do monte Sinai lugar onde Deus tinha escolhido aparecer e dar suas leis ao povo de Israel e que era portanto solo sagrado não por uma santidade inerente mas sim por separação para uso de Deus ou para os cristãos cultuarem nas igrejas as quais são dedicadas a Deus para aquele fim pela autoridade do rei ou de outro verdadeiro representante da Igreja Mas cultuar a Deus como animando ou habitando tal imagem ou lugar isto é supondo uma substância infinita num lugar finito é idolatria pois tais deuses finitos são apenas ídolos do cérebro e nada de real e são comumente referidos nas Escrituras com as palavras vaidade mentiras e nada Também cultuar a Deus não por animar ou estar presente no lugar ou na imagem mas com o objetivo de ser recordado dele ou de algumas de suas obras no caso de o lugar ou imagem serem dedicados ou erigidos por uma autoridade privada e não pela autoridade daqueles que são nossos pastores soberanos é idolatria Pois o mandamento diz Não farás de ti próprio nenhuma imagem gravada Deus ordenou a Moisés que erigisse a serpente de bronze ele não a fez para si próprio portanto não era contra o mandamento Mas a feitura do bezerro de ouro por Aarão e o povo não tendo tido autorização de Deus era idolatria não só porque o tomaram como Deus mas também porque o fizeram para um fim religioso sem permissão nem de Deus seu soberano nem de Moisés que era seu representante Os gentios cultuavam como deuses Júpiter e outros que quando vivos e como homens tinham talvez praticado grandes e gloriosos feitos e cultuavam como filhos de deuses vários homens e mulheres supondo se concebidos por uma divindade imortal e um mortal Isto era idolatria porque os fizeram assim para si próprios não tendo autorização de Deus nem de sua eterna lei da razão nem de sua vontade positiva e revelada Mas muito embora nosso Salvador fosse um homem e nós também acreditássemos que fosse um Deus imortal e filho de Deus contudo isto não é idolatria porque não construímos essa crença segundo nossa fantasia ou juízo mas segundo a palavra de Deus revelada nas Escrituras E quanto à adoração da Eucaristia se as palavras de Cristo Isto é meu corpo significam que ele próprio e o pão que aparecia em sua mão e não apenas este mas todos os pedaços de pão que desde então e em qualquer altura mais tarde seriam consagrados por sacerdotes seriam outros tantos corpos de Cristo e contudo todos eles seriam apenas um corpo então isso não é idolatria porque é autorizado por nosso Salvador mas se o texto não significa isso pois não há outro que possa ser alegado então porque é um culto de instituição humana é idolatria Pois não é suficiente dizer que Deus pode transubstanciar o pão no corpo de Cristo pois os gentios também sustentaram que deus era onipotente e podiam sobre isso assentar uma desculpa igual para sua idolatria pretendendo assim como outros uma transubstanciação de sua madeira e pedra em deus todopoderoso Os que pretendem que a divina inspiração é uma entrada sobrenatural do Espírito Santo num homem e não uma aquisição da graça de Deus por doutrina e estudo encontramse penso eu num dilema muito perigoso Pois se não cultuam os homens que acreditam ser assim inspirados podem cair em impiedade por não adorarem a presença sobrenatural de Deus E também se os cultuam cometem idolatria pois os apóstolos jamais permitiriam que os cultuassem assim Portanto a maneira mais segura consiste em acreditar que pela descida da pomba sobre os apóstolos e pelo sopro de Cristo sobre eles quando lhes deu o Espirito Santo e por sua dádiva pela imposição das mãos se entendem os sinais que prouve a Deus utilizar ou ordenar que fossem utilizados de sua promessa de ajudar aquelas pessoas em seu estudo para pregar seu reino e sua conversão para que não fosse escandalosa mas edificante para os outros Além do culto idólatra das imagens há também um culto escandaloso delas que é também um pecado mas não idolatria Pois idolatria é cultuar por sinais de uma veneração interior e real mas um culto escandaloso não passa de um culto aparente e pode muitas vezes aliarse a um ódio interior e profundo tanto da imagem como do demónio fantástico ou ídolo a que é dedicado e resulta apenas do receio da morte ou outra punição pesada e é contudo um pecado naqueles que assim cultuam no caso de serem homens cujas ações são observadas por outros como luzes para os guiarem porque seguindo seu caminho não podem fazer outra coisa senão tropeçar e cair no caminho da religião enquanto o exemplo daquele que não olhamos não age em nada sobre nós mas deixanos a nossa própria diligência e cuidado e consequentemente não é causa de nossa queda Se portanto um pastor legitimamente chamado a ensinar e a dirigir os outros ou quaisquer outros cujo saber goze de grande reputação presta honras externas a um ídolo por medo a menos que torne seu medo e sua relutância tão evidentes quanto o culto escandaliza seu irmão parecendo aprovar a idolatria Pois seu irmão argumentando a partir da ação de seu professor ou daquele cujo conhecimento ele julga grande conclui que é legítimo em si E este escândalo é pecado e um escândalo dado Mas se uma pessoa que não for pastor nem gozar de eminente reputação por seus conhecimentos na doutrina cristã fizer o mesmo e outra pessoa a seguir não se dá nenhum escândalo pois não tinha nenhuma causa para seguir tal exemplo mas é uma máscara de escândalo que toma para si como uma desculpa perante outros homens Pois se um homem ignorante que está em poder de um rei ou Estado idólatra ao lhe ordenarem sob pena de morte que preste culto diante de um ídolo detestar o ídolo em seu coração procede bem muito embora se tivesse a força suficiente para suportar a morte em vez de lhe prestar culto procedesse ainda melhor Mas se um pastor que como mensageiro de Cristo tomou a si o encargo de ensinara doutrina de Cristo a todas as nações fizer o mesmo não só seria um escândalo pecaminoso no que se refere às consciências de outros cristãos mas um pérfido abandono de tal encargo A súmula daquilo que até agora disse a respeito do culto das imagens é que quem presta culto numa imagem ou em qualquer criatura quer à sua matéria quer a qualquer fantasia de sua própria autoria que julga nela residir ou ambas as coisas conjuntamente ou quem acredita que tais coisas ouvem suas rezas ou vêem suas devoções sem ouvidos ou olhos comete idolatria e quem finge esse culto por medo do castigo se for um homem cujo exemplo tem influência sobre seus irmãos comete um pecado mas não comete idolatria aquele que cultua o criador do mundo diante de uma imagem ou num lugar que ele não fez nem escolheu por si próprio mas tirou do mandamento da palavra de Deus como os judeus fizeram ao cultuarem a Deus diante dos querubins e diante da serpente de bronze durante uns tempos e no templo de Jerusalém ou em direção a ele o que aconteceu também durante uns tempos Agora quanto ao culto dos santos e das imagens e relíquias e outras coisas hoje em dia praticadas na Igreja de Roma digo que não são permitidas pela palavra de Deus nem trazidas para a Igreja de Roma a partir da doutrina ali ensinada mas em parte nela deixada pela primeira conversão dos gentios e depois favorecida confirmada e aumentada pelos bispos de Roma Quanto às provas alegadas a partir das Escrituras a saber aqueles exemplos de imagens indicadas por Deus para serem erigidas não foram erigidas para que o povo ou qualquer homem as cultuasse mas para que eles cultuassem o próprio Deus diante dele como anteriormente os querubins sobre a arca e a serpente de bronze Pois não lemos que o sacerdote ou qualquer outro tenha cultuado os querubins mas pelo contrário lemos 2 Reis 184 que Ezequias quebrou em pedaços a serpente de bronze que Moisés tinha erigido porque o povo lhe queimou incenso Além disso aqueles exemplos não são colocados para nós os imitarmos para que também nós erigíssemos imagens sob o pretexto de cultuar Deus diante deles porque as palavras do segundo mandamento Não farás para ti próprio nenhuma imagem gravada etc distinguem entre as imagens que Deus ordenou que fossem erigidas e aquelas que erigimos para nós próprios E portanto não é bom o argumento que passa dos querubins ou da serpente de bronze para as imagens inventadas pelo homem ou do culto ordenado por Deus para o culto escolhido pelos homens Deve também ser considerado que assim como Ezequias fez em pedaços a serpente de bronze porque os judeus a adoravam a fim de que não o fizessem mais também os soberanos cristãos deviam quebrar as imagens que seus súditos se habituaram a adorar a fim de que não houvesse mais ocasião para tal idolatria Pois nos dias de hoje o povo ignorante sempre que as imagens são adoradas na verdade acredita que há um poder divino nas imagens e ouve dizer a seus pastores que algumas delas falaram e sangraram e que foram feitos milagres por elas o que ele entende como tendo sido feito pelo santo que pensa que é a própria imagem ou que está nela Os israelitas quando adoraram o bezerro pensavam na verdade que adoravam o Deus que os trouxera para fora do Egito e contudo era idolatria porque pensavam que o bezerro fosse Deus ou que o tinha na sua barriga E muito embora alguns homens possam pensar que é impossível o povo ser tão estúpido a ponto de julgar que uma imagem seja Deus ou um santo ou de adorálo naquela idéia é contudo manifesto pelo contrário nas Escrituras que quando foi feito o bezerro de ouro o povo disse Estes são teus deuses ó Israel e que as imagens de Labão eram denominadas seus deuses E todos os dias vemos por experiência em toda a espécie de povo que aqueles homens que nada estudam exceto sua alimentação e bemestar contentamse com acreditar qualquer absurdo de preferência a preocuparemse com seu exame defendendo sua crença como se ela fosse por vínculo inalienável exceto com uma lei expressa e nova Mas inferem de alguns outros trechos que é legítimo pintar anjos e também o próprio Deus como por exemplo Deus caminhando no jardim ou Jacob vendo Deus no cimo da escada ou outras visões e sonhos Mas as visões e sonhos quer naturais quer sobrenaturais não passam de fantasmas e aquele que pinta uma imagem de qualquer deles não faz uma imagem de Deus mas de seu próprio fantasma o que significa fazer um ídolo Não digo que fazer um quadro de acordo com uma fantasia seja pecado mas quando é desenhado para ser considerado como uma representação de Deus é contra o segundo mandamento e não pode ser de nenhum uso exceto para o culto E o mesmo pode ser dito das imagens dos anjos e dos mortos a menos que se trate de monumentos de amigos ou de homens merecedores de serem lembrados pois esse uso de uma imagem não é o culto da imagem mas uma veneração civil não da pessoa que é mas da que foi mas quando é feito à imagem que fabricamos de um santo sem qualquer outra razão além de pensarmos que ele ouve nossas rezas e fica satisfeito com as honras que lhe prestamos quando morto e sem sentidos atribuímos lhe mais do que um poder humano e portanto é idolatria Dado portanto que não existe autoridade nem na lei de Moisés nem no Evangelho para o culto religioso de imagens ou de outras representações de Deus que os homens erigiram para si próprios ou para o culto da imagem de qualquer criatura no céu ou na terra ou sob a terra e visto que os reis cristãos que são os representantes vivos de Deus não devem ser adorados por seus súditos por nenhum ato que signifique uma estima de seu poder maior do que a natureza do homem mortal é suscetível não pode conceberse que o culto religioso agora em uso tenha sido trazido para a Igreja por uma má interpretação das Escrituras Resta portanto a hipótese de que foi nela deixado pelo fato de não se terem destruído as próprias imagens na altura da conversão dos gentios que as adoravam A causa disso era a estima imoderada e os preços atribuídos a seu artificio que fazia que os possuidores muito embora convertidos por as adorarem como tinham feito religiosamente com os demônios as conservassem ainda em suas casas com o pretexto de o fazerem em honra de Cristo da Virgem Maria e dos apóstolos e outros pastores da Igreja primitiva por ser fácil dandolhes novos nomes tornar numa imagem da Virgem Maria e do seu Filho nosso Salvador aquilo que antes era denominado a imagem de Vênus e de Cupido e assim de um Júpiter fazer um Barnabé e de um Mercúrio um Paulo e assim por diante E assim como a mundana ambição crescendo gradualmente nos pastores os levou a procurar agradar aos recentes cristãos e também a um gosto por esta espécie de honras que também eles podiam esperar depois de sua morte assim como aqueles que as tinham já ganho do mesmo modo o culto das imagens de Cristo e de seus apóstolos tornouse cada vez mais idólatra exceto alguns tempos depois de Constantino quando vários imperadores e bispos e concílios gerais observaram sua ilegitimidade e condenaramna mas era demasiado tarde ou fizeramno de maneira demasiado fraca A canonização de santos é um outro vestígio de gentilismo Nem é uma má interpretação das Escrituras nem uma nova invenção da Igreja romana mas um costume tão antigo como o próprio Estado de Roma 0 primeiro a ser canonizado em Roma foi Rômulo e isto devido à narrativa de Julius Proculus que jurou diante do Senado ter falado com ele depois de sua morte e terlhe assegurado que morava no céu e lá era chamado Quirino e que seria propício ao Estado da nova cidade E sobre isto o Senado deu público testemunho de sua santidade Júlio César e outros imperadores depois dele tiveram idêntico testemunho isto é foram canonizados como santos pois a canonização é agora definida por tal testemunho e é o mesmo que a apothéosis dos gentios Foi também dos gentios romanos que os Papas receberam o nome e poder de Pontifex Maximus Este era o nome daquele que no antigo Estado de Roma tinha a autoridade suprema sob o Senado e o povo para regular todas as cerimônias e doutrinas referentes à religião E quando Augusto César mudou o Estado para uma monarquia ele reservou para si apenas este cargo e o de tribuno do povo isto é o poder supremo quer no Estado quer na religião e os imperadores que lhe sucederam desfrutaram do mesmo Mas na época do Imperador Constantino o primeiro que professou e autorizou a religião cristã estava de acordo com sua profissão de fé fazer que a religião fosse regulada sob sua autoridade pelo bispo de Roma embora pareça que não receberam logo o nome de pontifex mas sim que os bispos que se sucederam o tomaram para si por iniciativa própria para fortalecer o poder que exerciam sobre os bispos das províncias romanas Pois não foi qualquer privilégio de São Pedro mas o privilégio da cidade de Roma que os imperadores sempre estavam prontos a apoiar que lhes deu tal autoridade sobre os outros bispos como pode verse claramente pelo fato de o bispo de Constantinopla quando o imperador tornou esta cidade a sede do império pretender ser igual ao bispo de Roma embora por fim não sem luta o Papa tenha vencido e se tenha tornado Pontifex Maximus mas apenas por concessão do imperador e não fora dos limites do império nem em parte alguma depois que o imperador perdeu seu poder em Roma muito embora fosse o próprio Papa quem tirou dele seu poder A partir do que podemos a propósito observar que não há lugar para a superioridade do Papa sobre os outros bispos exceto nos territórios onde ele próprio é o soberano civil e naqueles em que o imperador tendo o soberano poder civil expressamente escolheu o Papa como principal pastor sob sua autoridade de seus súditos cristãos Levar imagens em procissão é outro vestígio da religião dos gregos e dos romanos pois também eles transportavam seus ídolos de lugar para lugar numa espécie de carroça que era especialmente destinada a esse fim chamada thensa e vehiculum deorum pelos latinos e a imagem era colocada numa moldura ou escrínio que chamavam ferculum E aquilo que denominavam pompa é o mesmo que agora se denomina procissão De acordo com o que entre as honras divinas que foram prestadas a Júlio César pelo Senado uma delas foi que na pompa ou procissão nos jogos circenses ele teria thensam et ferculum uma carroça sagrada e um escrínio o que era o mesmo que ser transportado como um deus tal como nos nossos dias os Papas são transportados pelos suíços debaixo de um pálio A estas procissões também pertenciam as tochas acesas e as velas diante das imagens dos deuses tanto entre os gregos como entre os romanos Pois mais tarde os imperadores de Roma receberam as mesmas honras como lemos acerca de Calígula que ao ascender ao império foi transportado de Misenum para Roma no meio de uma multidão de gente por caminhos enfeitados com altarese animais para sacrificio e tochas acesas e acerca de Caracala que foi recebido em Alexandria com incenso e com flores arremessadas e dadouxíáis isto é com tochas pois dadoüxoi eram aqueles que entre os gregos seguravam tochas acesas nas procissões de seus deuses E com o andar dos tempos o povo devoto mas ignorante muitas vezes prestou honras a seus bispos com uma pompa semelhante de velas de cera e às imagens de nosso Salvador e dos santos constantemente na própria igreja E assim se chegou ao uso de velas de cera que foi também estabelecido por alguns dos antigos Concílios Os gentios tinham também sua água lustralis isto é a água benta A Igreja de Roma também os imita em seus dias santos Eles tinham suas bacanais e nês temos nossas vigílias que lhes correspondem eles as saturnalia nós os carnavais e a liberdade dos servos na terçafeira de Entrudo eles sua procissão de Príapo nós a festa de ir buscar levantar e dançar à volta dos maios e dançar é uma das formas de culto e eles tinham a procissão chamada ambarvalia e nós a procissão pelos campos na semana das ladainhas Nem penso que estas sejam todas as cerimônias que foram deixadas na Igreja desde a primeira conversão dos gentios mas são todas as que de momento consigo lembrar e se alguém observasse bem aquilo que é contado nas histórias referentes aos ritos religiosos dos gregos e dos romanos não duvido de que encontraria mais destas velhas garrafas valias do gentilismo que os doutores da Igreja romana ou por negligência ou por ambição encheram outra vez com o novo vinho da cristandade que a seu tempo não deixará de destruílos CAPÍTULO XLVI Das trevas resultantes da vã filosofia e das tradições fabulosas Por filosofia se entende o conhecimento adquirido por raciocínio a partir do modo de geração de qualquer coisa para as propriedades ou das propriedades para algum possível modo de geração das mesmas com o objetivo de ser capaz de produzir na medida em que a matéria e a força humana o permitirem aqueles efeitos que a vida humana exige Assim o geõmetra a partir da construção de figuras encontra muitas de suas propriedades e a partir de suas propriedades novos modos de construílas por raciocínio com o objetivo de ser capaz de medir a terra e a água e para outros inumeráveis usos Assim o astrônomo a partir do nascente do poente e do movimento do sol e das estrelas em várias partes dos céus descobre as causas do dia e da noite e das diferentes estações do ano com o que mantém uma contagem do tempo E o mesmo acontece nas outras ciências Definição pela qual fica evidente que não consideramos como parte dela aquele conhecimento originário chamado experiência no qual consiste a prudência porque não é atingido por raciocínio mas se encontra igualmente nos animais e no homem e nada mais é do que a memória de sucessões de eventos em tempos passados na qual a omissão de qualquer pequena circunstância alterando o efeito frustra a esperança do mais prudente visto que nada é produzido pelo raciocínio acertadamente senão a verdade geral eterna e imutável Nem devemos portanto dar esse nome a quaisquer falsas conclusões pois aquele que raciocina corretamente com palavras que entende nunca pode concluir um erro Nem aquilo que qualquer homem conhece por revelação sobrenatural porque não é adquirido por raciocínio Nem aquilo que se tira por raciocínio da autoridade de livros porque não é por raciocínio de causa a efeito nem do efeito para a causa e não é conhecimento mas crença Sendo a faculdade de raciocinar conseqüente ao uso da linguagem não era possível que não houvesse algumas verdades gerais descobertas por raciocínio quase tão antigas como a própria linguagem Os selvagens da América não deixam de possuir algumas boas proposições morais também possuem um pouco e aritmética para adicionar e dividir com números não muito grandes mas nem por isso são filósofos Pois assim como havia plantas de cereal e de vinho em pequena quantidade espalhadas pelos campos e bosques antes de os homens conhecerem suas virtudes ou usaremnas como alimento ou plantaremnas separadamente em campos e vinhas época em que se alimentavam de bolotas e bebiam água assim também deve ter havido várias especulações verdadeiras gerais e úteis desde o início à maneira de plantas naturais da razão humana mas ao princípio eram muito poucas Os homens viviam baseados na experiência grosseira não havia método isto é não semeavam nem plantavam o conhecimento por si próprio separado das ervas daninhas e das plantas vulgares do erro e da conjetura E sendo a causa disso a falta de tempo devida à procura das necessidades da vida e à defesa contra os vizinhos era impossível até que se erigisse um grande Estado que as coisas se passassem de maneira diferente 0 ócio é o pai da f ilosofia e o Estado o pai da paz e do ócio Quando pela primeira vez surgiram grandes e florescentes cidades aí surgiu pela primeira vez o estudo da filosofia Os gimnosoftstas da Índia os magos da Pérsia e os sacerdotes da Caldéia e do Egito estão incluídos entre os mais antigos filósofos e aqueles países foram os reinos mais antigos A filosofia não surgiu entre os gregos e os outros povos do ocidente cujos Estados que não eram talvez maiores do que Lucca ou Gênova nunca tinham paz a não ser quando seus receios recíprocos eram iguais nem ócio para observar outra coisa além de se observarem mutuamente Por fim quando a guerra uniu muitas destas cidades gregas menores em cidades menos numerosas e maiores então começaram a adquirir a reputação de sábios sete homens de várias partes da Grécia alguns deles devido a máximas morais e políticas e outros devido ao saber dos caldeus e egípcios que era astronomia e geometria Mas ainda não ouvimos falar de quaisquer escolas de f ilosofia Depois que os atenienses pela derrota dos exércitos persas alcançaram o domínio do mar e portanto de todas as ilhas e cidades marítimas do Arquipélago tanto da Ásia como da Europa e se tornaram ricos não tinham nada que fazer nem em seu país nem fora dele exceto como diz São Lucas Atos 1721 contar e ouvir notícias ou discorrer publicamente sobre f ilosofia dirigindose aos jovens da cidade Todos os mestres escolheram um lugar para esse fim Platão em certos passeios públicos denominados academia derivado de Academus Aristóteles no caminho para o templo de Pan chamado Lyceum outros na Stoa ou caminho coberto onde as mercadorias dos comerciantes eram trazidas para terra outros em outros lugares nos quais passavam o tempo de seu ócio ensinando ou discutindo suas opiniões e alguns em qualquer lugar onde pudessem reunir a juventude da cidade para ouvilos falar E isto foi também o que fez Carnéades em Roma quando era embaixador o que levou Catão a aconselhar ao Senado que o mandasse embora rapidamente com receio de que ele corrompesse os costumes dos jovens que se encantavam ao ouvilo falar como eles pensavam belas coisas Daqui resultou que o lugar onde qualquer deles ensinava e discutia se chamava schola que em sua língua significava ócio e suas disputas diatribae o que significa passar o tempo Também os próprios filósofos tinham o nome de suas seitas algumas delas derivadas destas escolas pois aqueles que seguiam a doutrina de Platão eram denominados acadêmicos os seguidores de Aristóteles peripatéticos do nome do caminho onde ele ensinava e aqueles que Zenão ensinava estóicos de stoa como se denominássemos os homens a partir de Morefelds igreja de São Paulo e Bolsa porque eles ali se encontram muitas vezes para tagarelar e vaguear Contudo os homens estavam tão presos a este costume que com o tempo foi espalhando por toda a Europa e pela maior parte da África de tal modo que havia escolas publicamente erigidas e mantidas para conferências e discussões em quase todos os Estados Houve também antigamente escolas entre os judeus quer antes quer depois do tempo de nosso Salvador mas eram escolas de sua lei Pois muito embora fossem chamadas sinagogas isto é congregações do povo contudo na medida em que em todos os dias de sábado a lei era nelas lida exposta e discutida não diferiam de natureza mas apenas de nome das escolas públicas e não estavam apenas em Jerusalém mas em todas as cidades dos gentios onde os judeus habitavam Havia uma escola dessas em Damasco onde Paulo entrou para perseguir Havia outras em Antioquia Iconium e Tessalônica onde ele entrou para discutir e semelhante era a sinagoga dos libertinos cirenaicos alexandrinos cilicianos e as da Ásia isto é a escola de libertinos e de judeus que eram estrangeiros em Jerusalém E eram desta escola aqueles que discutiram com Santo Estêvão Mas qual tem sido a utilidade destas escolas Que ciência lá existe hoje adquirida por suas leituras e discussões Aquilo que possuímos de geometria que é a mãe de toda ciência natural não o devemos às escolas Platão que foi o melhor filósofo dos gregos proibiu a entrada de sua escola a todos aqueles que não fossem já de algum modo geõmetras Havia muitos que estudavam esta ciência para grande vantagem da humanidade mas não há menção de suas escolas nem havia nenhuma seita de geômetras nem eram conhecidos pelo nome de filósofos A filosofia natural dessas escolas era mais um sonho do que uma ciência e expendida numa linguagem sem sentido e insignificante o que não pode ser evitado por aqueles que ensinam filosofia sem terem primeiro atingido um grande conhecimento em geometria pois a natureza opera por movimento cujos modos e graus não podem ser conhecidos sem o conhecimento das proporções e das propriedades de linhas e figuras Sua filosofia moral não passa de uma descrição de suas próprias paixões Pois a regra dos costumes sem o governo civil é a lei de natureza e nela a lei civil que determina o que é honesto e desonesto o que é justo e injusto e geralmente o que é bom e mau ao passo que eles estabelecem as regras do bom e do mau conforme seu apreço ou desapreço pelo que dada uma tão grande variedade de gosto não existe nada em que haja concordância mas todos fazem na medida em que o ousam seja o que for que lhes pareça bom a seus próprios olhos para subversão do Estado Sua lógica que deveria ser o método de raciocinar nada mais é do que armadilhas de palavras e invenções de como confundir aqueles que intentarem propôlas Em conclusão nada há de absurdo que algum dos antigos filósofos não tenha defendido como diz Cícero que era um deles E acredito que dificilmente pode afirmarse alguma coisa mais absurda em filosofia natural do que aquilo que hoje se denomina a metafísica de Aristóteles nem mais repugnante ao governo do que a maior parte daquilo que disse em sua Política nem mais ignorante do que uma grande parte de sua Ética A escola dos judeus era originariamente uma escola da lei de Moisés o qual ordenou Deut 3110 que no fim de cada sete anos na festa dos tabernáculos ela fosse lida a todo o povo para que pudesse ouvila e aprendêla Portanto a leitura da lei que era de hábito depois do cativeiro em todo o dia de sábado não deve ter tido outro objetivo senão dar a conhecer ao povo os mandamentos que tinha de cumprir e exporlhe os escritos dos profetas Mas é manifesto pelas muitas repreensões que lhe foram feitas por nosso Salvador que eles corromperam o texto da lei com seus falsos comentários e vãs tradições e compreenderam tão mal os profetas que nem reconheceram Cristo nem suas obras que os profetas tinham profetizado De tal modo que por suas preleções e discussões nas sinagogas transformaram a doutrina de sua lei num tipo fantástico de filosofia referente à incompreensível natureza de Deus e dos espíritos que eles formaram a partir da vã filosofia e teologia dos gregos misturada com suas próprias fantasias tiradas dos mais obscuros textos das Escrituras e que podiam mais facilmente ser distorcidos para seu objetivo e tiradas também das tradições fabulosas de seus antepassados Aquilo que agora se chama uma Universidade é uma reunião e uma incorporação sob um governo de muitas escolas públicas numa única cidade Na qual as principais escolas foram ordenadas para as três profissões isto é da religião romana do direito romano e da arte da medicina E quanto ao estudo da filosofia não tinha outro lugar senão o de ajudante da religião romana e dado que a autoridade de Aristóteles é a única em curso nela esse estudo não é propriamente filosofia cuja natureza não depende de autores mas aristotelia E quanto à geometria até há muito pouco tempo não ocupava lugar absolutamente nenhum por não ser subserviente de nada exceto da rígida verdade E se alguém pelo engenho de sua própria natureza nela alcança algum grau de perfeição era geralmente considerado um mágico e sua arte tida por diabólica Para agora descermos aos tópicos particulares da vã filosofia derivada para as Universidades e daqui para a Igreja em parte proveniente de Aristóteles em parte da cegueira do entendimento considerarei em primeiro lugar seus princípios Há uma certa philosophia prima da qual todas as outras filosofias deviam depender e que consiste principalmente em limitar convenientemente as significações daquelas apelações ou nomes que são de todos os mais universais limitações essas que servem para evitar ambigüidade e equívocos no raciocínio e são comumente chamadas definições tais como as definições de corpo tempo espaço matéria forma essência sujeito substância acidente potência ato finito infinito quantidade qualidade movimento ação paixão e várias outras necessárias à explicação das concepções do homem referentes à natureza e geração dos corpos A explicação isto é o estabelecimento do sentido destes e de outros termos semelhantes é geralmente chamada nas escolas metafísica como sendo uma parte da filosofia de Aristóteles que tinha este título mas é em outro sentido pois aí significa livros escritos ou colocados depois da sua filosofia natural Mas as escolas encararamnos como livros de f losofia sobrenatural pois a palavra metafísica tem estes dois sentidos E na verdade aquilo que lá vem escrito está na maior parte das vezes tão longe da possibilidade de ser compreendido e é tão contrário à razão natural que quem quer que pense que há algo para ser compreendido por ela precisa de considerála sobrenatural Dizemnos a partir desta metafísica que misturada com as Escrituras passa a constituir a Escolástica que há no mundo certas essências separadas dos corpos às quais chamam essências abstratas e formas substanciais Para a interpretação deste jargão é aqui exigida um pouco mais de atenção do que habitualmente e assim peço desculpas àqueles que não estão habituados a este tipo de discurso por consagrar me àqueles que o estão 0 mundo não quero dizer apenas a terra que denomina aqueles que a amam homens mundanos mas também o universo isto é toda a massa de todas as coisas que são é corpóreo isto é corpo e tem as dimensões de grandeza a saber comprimento largura e profundidade também qualquer parte do corpo é igualmente corpo e tem as mesmas dimensões e consequentemente qualquer parte do universo é corpo e aquilo que não é corpo não é parte do universo E porque o universo é tudo aquilo que não é parte dele não é nada e consequentemente está em nenhures Não se segue daqui que os espíritos não sejam nada pois têm dimensões e são portanto realmente corpos muito embora esse nome na linguagem comum seja dado apenas àqueles corpos que são visíveis ou palpáveis isto é que possuem algum grau de opacidade mas quanto aos espíritos chamamnos incorpóreos o que é um nome de mais honra e pode portanto ser atribuído com mais piedade ao próprio Deus no qual não consideramos que atributo expressa melhor sua natureza que é incompreensível mas o que melhor expressa nosso desejo de o venerarmos Para sabermos agora com que fundamento dizem que há essências abstratas ou formas substanciais devemos considerar o que é que estas palavras significam propriamente 0 uso das palavras destinase a registrar para nós próprios e a tornar manifesto para os outros os pensamentos e concepções do nosso espírito Algumas destas palavras são os nomes das coisas concebidas como os nomes de todas as espécies de corpos que atuam sobre os sentidos e deixam uma impressão na imaginação Outras são os nomes das próprias imaginações isto é daquelas idéias ou imagens mentais que temos de todas as coisas que vemos ou recordamos E outros finalmente são os nomes de nomes ou de diferentes tipos de discurso como universal plural e singular são os nomes de nomes e definição afirmação negação verdadeiro falso silogismo interrogação promessa contrato são os nomes de certas formas de discurso Outros servem para mostrar a conseqüência ou incompatibilidade de um nome em relação com outro como quando se diz um homem é um corpo pretendese que o nome corpo é necessariamente conseqüente ao nome homem como sendo apenas vários nomes da mesma coisa homem a qual conseqüência é significada através da ligação dos dois nomes com a palavra é E assim como usamos o verbo é os latinos usam o seu verbo est e os gregos o seu ésti em todas as suas declinações Não posso dizer se todas as outras nações do mundo têm em suas diferentes línguas uma palavra que lhe corresponda ou não mas tenho a certeza de que não têm necessidade dela pois colocar os dois nomes em ordem poderia servir para significar sua conseqüência se fosse esse o costume pois é o costume que dá às palavras sua força tal como as palavras é ou ser ou são e outras semelhantes E se assim fosse se houvesse uma língua sem qualquer verbo correspondente a est ou é ou ser os homens que dela se servissem não estariam de modo algum menos capacitados para inferir concluir e para toda espécie de raciocínio do que os gregos e latinos Mas então o que aconteceria com estes termos entidade essência essencial essencialidade que dele derivam e com muitos outros que dependem destes aplicados tão comumente como são Não são portanto nomes de coisas mas sinais pelos quais tornamos conhecido que concebemos a conseqüência de um nome ou atributo em relação a outro pois quando dizemos um homem é um corpo vivo não queremos dizer que o homem seja uma coisa o corpo vivo outra e o é ou sendo uma terceira mas que o homem e o corpo vivo é a mesma coisa porque a conseqüência se ele for um homem é um corpo vivo é uma conseqüência verdadeira significada por aquela palavra é Portanto ser um corpo caminhar falar viver ver e outros infinitos semelhantes é também corporeidade marcha fala vida vista e outros que significam exatamente o mesmo são os nomes de nada como já mostrei amplamente noutro lugar Mas qual o objetivo pode alguém perguntar de tais sutilezas numa obra desta natureza na qual nada mais pretendo do que aquilo que é necessário para a doutrina do governo e da obediência É com o seguinte objetivo que os homens possam deixar de ser enganados por aqueles que com esta doutrina das essências separadas construídas sobre a vã filosofia de Aristóteles os quiserem impedir de obedecer às leis de seu país com nomes vazios tal como os homens assustam os pássaros do trigo com um gibão vazio um chapéu e um cajado Pois é com este fundamento que quando um homem morre e é sepultado dizem que sua alma isto é sua vida pode andar separada do corpo e é vista de noite por entre os túmulos Com o mesmo fundamento dizem que a figura e a cor e o sabor de um pedaço de pão têm um ser lá onde eles dizem que não há pão E com o mesmo fundamento dizem que a e a sabedoria e outras virtudes são por vezes infundidas no homem outras vezes assopradas do céu para dentro dele como se o virtuoso e suas virtudes pudessem estar separados e muitas outras coisas que servem para diminuir a dependência dos súditos em relação ao soberano poder de seu país Pois quem tentará obedecer às leis se esperar que a obediência lhe seja infundida ou assoprada para dentro Ou quem não obedecerá a um padre que pode fazer Deus de preferência a seu soberano e mais de preferência ao próprio Deus Ou quem tendo medo dos fantasmas não terá mais respeito àqueles que sabem fazer a água benta capaz de afastálos dele E isto bastará como exemplo dos erros que advêm à Igreja das entidades e essências de Aristóteles Pode ser que este soubesse que era uma falsa filosofia mas escreveua como algo de consonante e de corroborativo de sua religião e temendo o destino de Sócrates Tendo uma vez caído neste erro das essências separadas vêemse necessariamente envolvidos em muitos outros absurdos dele decorrentes Pois dado que pretendem que estas formas são reais são obrigados a atribuirlhes algum espaço Mas porque mantêm que são incorpóreas sem a dimensão da quantidade e todos os homens sabem que espaço é dimensão que só pode ser ocupada por aquilo que é corpóreo são levados a defender seu ponto de vista com uma distinção que elas não estão na verdade em parte alguma circumscriptive mas definitive sendo estes termos apenas meras palavras e neste caso insignificantes e são apresentadas em latim a fim de sua vacuidade poder ser escondida Pois a circunscrição de uma coisa nada mais é do que a determinação ou definição de seu espaço e assim ambos os termos da distinção significam o mesmo E em particular da essência do homem que dizem eles é sua alma afirmam que ela está toda em seu dedo mindinho e toda em qualquer outra parte por mais pequena que seja de seu corpo e contudo não há mais alma em todo o corpo do que em qualquer uma destas partes Pode alguém supor que se serve a Deus com tais absurdos E contudo tudo isto é necessário para a crença para aqueles que acreditam na existência de uma alma incorpórea separada do corpo E quando chega a ocasião de explicar como pode uma substância incorpórea ser capaz de dor e ser atormentada no fogo do inferno ou do purgatório não encontram outra coisa para responder senão que é impossível saber como o fogo queima as almas Também visto que o movimento é mudança de lugar e as substâncias incorpóreas não são suscetíveis de lugar ficam embaraçados para fazer parecer possível que uma alma vá sem o corpo para o céu para o inferno ou para o purgatório e que os fantasmas dos homens e posso acrescentar os trajos com que aparecem caminhem de noite nas igrejas adros e outros lugares de sepultura A isto não sei o que possam responder a menos que digam que caminham definitive e não circumscriptive ou espiritualmente e não temporalmente pois tão egrégias distinções são igualmente aplicáveis a qualquer dificuldade Quanto ao significado de eternidade não querem que seja uma infindável sucessão de tempo pois nesse caso não seriam capazes de apresentar uma razão acerca de como é que a vontade de Deus e a preordenação das coisas que estão para vir não deveriam vir antes de sua presciência delas tal como a causa eficiente antes do efeito ou o agente antes da ação nem acerca de muitas outras atrevidas opiniões a respeito da natureza incompreensível de Deus Mas dirnosão que a eternidade é a manutenção do presente o nunc stans como as escolas lhe chamam que nem eles nem ninguém compreende tal como não compreenderiam um hicstans para uma infinita grandeza de espaço E visto que os homens dividem em pensamento um corpo enumerando suas partes e enumerando essas partes enumeram também as partes do espaço que ocupam só fazendo muitas partes podemos também fazer muitos lugares dessas partes de onde se segue que não podem ser concebidas no espírito de nenhum homem mais ou menos partes do que os lugares para elas contudo querem fazernos crer que pelo todo poderoso poder de Deus um corpo pode estar ao mesmo tempo em muitos lugares e muitos corpos ao mesmo tempo num só lugar como se fosse um reconhecimento do poder divino dizer que aquilo que é não é ou que aquilo que foi não foi E isto é apenas uma pequena parte das incongruências a que são forçados pelo fato de disputarem filosoficamente em vez de admirarem e de adorarem a natureza divina e incompreensível cujos atributos não podem significar o que Deus é mas devem significar nosso desejo de venerálo com as melhores apelações que pudermos imaginar Mas aqueles que se aventuram a raciocinar sobre sua natureza a partir destes atributos de honra perdendo sua compreensão logo na primeira tentativa caem de uma inconveniência para outra sem fim nem conta do mesmo modo que um homem ignorante das cerimônias da corte ao verse na presença de uma pessoa de maior distinção do que aquelas a que está habituado a falar tropeçando ao entrar para evitar cair deixa escorregar a capa para recuperar a capa deixa cair o chapéu e de um embaraço para outro desvenda seu espanto e rudeza Quanto à física isto é o conhecimento das causas subordinadas e secundárias dos eventos naturais não apresentam nenhuma só palavras vazias Se desejardes saber por que razão um certo tipo de corpos cai naturalmente no chão enquanto outros se elevam dele naturalmente as escolas dirvosão baseadas em Aristóteles que os corpos que caem são pesados e que este peso é que faz que eles desçam Mas se lhes perguntardes o que entendem por peso definiloão como uma tendência para se dirigir ao centro da terra de tal modo que a causa pela qual as coisas caem é uma tendência para estar embaixo o que é o mesmo que dizer que os corpos descem ou sobem porque o fazem Ou dirvosão que o centro da terra é o lugar de repouso e conservação para coisas pesadas e portanto eles tendem a ir para lá como se as pedras e os metais tivessem desejos ou pudessem discernir em que lugar querem estar como o homem ou amassem o repouso ao contrário do homem ou como se um pedaço de vidro estivesse menos a salvo numa janela do que caindo na rua Se quiséssemos saber por que razão o mesmo corpo parece maior sem que nada lhe tivesse sido acrescentado umas vezes do que outras dizem que quando parece menor está condensado quando parece maior rarefeito 0 que é condensado e rarefeito Condensado é quando há na mesma matéria menos quantidade do que antes e rarefeito quando há mais Como se pudesse haver matéria sem uma determinada quantidade quando a quantidade nada mais é do que a determinação de matéria isto é de corpo pelo que dizemos que um corpo é maior ou menor do que outro tanto ou quanto Ou como se um corpo estivesse feito sem qualquer quantidade e que mais tarde fosse nele colocada mais ou menos conforme se pretendesse que o corpo fosse mais ou menos denso Quanto à causa da alma do homem dizem creatur infundendo e creando infunditur isto é é criada por infusão e infundida pelo criador Quanto à causa da sensação uma ubiqüidade de species isto é das aparições dos objetos as quais quando são aparições ao olhar é vista à orelha ouvido ao palato gosto ao nariz cheiro e quanto ao resto do corpo sentir Quanto à causa da vontade para fazer determinada ação a qual é denominada volitio atribuemna à faculdade isto é à capacidade em geral que os homens têm para quererem umas vezes uma coisa outras vezes outra a qual é chamada voluntas fazendo da potência a causa do ato como se se atribuísse como causa dos bons e maus atos dos homens sua capacidade para praticálos E em muitas ocasiões apontam como causa de eventos naturais a sua própria ignorância mas disfarçada em outras palavras como quando dizem que a fortuna é a causa das coisas contingentes isto é das coisas de que não conhecem a causa e como quando atribuem muitos efeitos a qualidades ocultas isto é qualidades de qualquer outro homem E a simpatia antipatia antiperistasis qualidades específicas e outros termos semelhantes que não significam nem o agente que os produz nem a operação pela qual são produzidos Se uma metafísica e uma física como estas não forem vã filosofia então nunca houve nenhuma nem teria sido necessário que São Paulo nos avisasse para a evitarmos E quanto a sua filosofia moral e civil tem os mesmos ou maiores absurdos Se alguém praticar um ato de injustiça isto é um ato contrário à lei Deus dizem eles é a primeira causa da lei e também a primeira causa daquela e de todas as outras ações mas não é de modo algum causa da injustiça a qual é a inconformidade da ação com a lei Isto é vã filosofia Poderia igualmente dizerse que um homem faz quer a linha reta quer a linha curva e um outro faz sua incongruência E esta é a filosofia de todos os homens que decidem acerca de suas conclusões antes de conhecerem suas premissas pretendendo compreender aquilo que é incompreensível e que decidem acerca dos atributos da honra para fazer atributos da natureza na medida em que esta distinção foi feita para defender a doutrina do livre arbítrio isto é de uma vontade do homem não sujeita à vontade de Deus Aristóteles e outros filósofos pagãos definem o bem e o mal pelo apetite dos homens e isto é correto enquanto os considerarmos governados cada um por sua própria lei pois na condição de homens que não têm outra lei além de seu próprio apetite não pode haver uma regra geral das boas e más ações Mas num Estado esta medida é falsa não é o apetite dos homens privados que constitui a medida mas a lei que é a vontade e o apetite do Estado E contudo é ainda defendida esta doutrina e os homens julgam da bondade ou da malvadez de suas próprias ações ou das dos outros homens e das ações do próprio Estado por suas próprias paixões e ninguém chama bom ou mau senão aquilo que o é a seus próprios olhos sem qualquer preocupação com as leis públicas exceto apenas os monges e frades que estão ligados por voto àquela simples obediência a seu superior à qual qualquer súdito devia considerarse obrigado pela lei de natureza perante o soberano civil E esta medida privada do bem é uma doutrina não apenas vã mas também perniciosa ao Estado público Constitui também vã e falsa filosofia dizer que o casamento repugna à castidade ou continência e portanto transformálo em vício moral como o fazem aqueles que alegam castidade e continência para negarem o casamento do clero Pois confessam que se trata apenas de uma constituição da Igreja que exige daquelas ordens sagradas que continuamente servem o altar e administram a eucaristia uma contínua abstinência de mulheres sob a alegação de contínua castidade continência e pureza Portanto chamam ao legítimo uso da esposa falta de castidade e de continência e assim fazem do casamento um pecado ou pelo menos uma coisa tão impura e suja que torna um homem impróprio para o altar Se a lei fosse feita porque o uso de mulheres é incontinência e contrário à castidade então todo o casamento seria vício se é porque se trata de uma coisa demasiado impura e suja para um homem consagrado a Deus muito mais outras ocupações naturais necessárias e diárias que todos os homens têm tornariam os homens impróprios para serem padres porque são muito mais sujas Mas o fundamento secreto desta proibição do casamento dos padres não se encontra provavelmente nesses erros de filosofia moral nem mesmo na preferência pela vida de solteiro em relação ao estado do matrimônio que resultou da sabedoria de São Paulo o qual se deu conta de como era inconveniente para aqueles que naqueles tempos de perseguição eram pregadores do Evangelho e se viam obrigados a fugir de um país para outro serem entravados pelos cuidados com mulher e filhos mas sim no desígnio dos Papas e padres dos tempos subseqüentes de se tornarem no clero isto é únicos herdeiros do reino de Deus neste mundo para o que era necessário tirar deles o hábito do casamento por que nosso Salvador disse que quando chegasse seu reino os filhos de Deus não casarão nem serão dados em casamento mas serão como os anjos do céu isto é espirituais Dado que então tinham tomado para si o nome de espirituais teria sido uma incongruência permitiremse quando não havia necessidade disso a propriedade de esposas Com a filosofia civil de Aristóteles aprenderam a chamar a todos os Estados que não fossem populares como era então o Estado de Atenas tiranias A todos os reis chamaram tiranos e à aristocracia dos trinta governadores ali estabelecidos pelos lacedemónios que os subjugaram os trinta tiranos Como também aprenderam a chamar à condição do povo sob a democracia liberdade Originariamente um tirano significava simplesmente um monarca mas quando mais tarde na maior parte da Grécia aquela forma de governo foi abolida o nome começou a significar não apenas a coisa como antes mas com ela o ódio que os Estados populares lhe tinham Assim como também o nome de rei se tornou odioso depois da deposição dos reis em Roma como sendo uma coisa natural a todos os homens conceberem alguma grande falta como sendo significada em qualquer atributo que é dado com despeito e a um grande inimigo E quando os mesmos homens ficarem descontentes com aqueles que têm a administração da democracia ou aristocracia não vão procurar nomes desagradáveis com os quais possam exprimir sua cólera mas imediatamente chamam a uma anarquia e à outra oligarquia ou a tirania de alguns E aquilo que ofende o povo não é outra coisa senão o fato de ser governado não como cada um deles o faria mas como o representante público quer se trate de um homem ou de uma assembléia de homens julgar conveniente isto é por um governo arbitrário pelo que atribuem maus epítetos a seus superiores desconhecendo sempre até talvez um pouco depois de uma guerra civil que sem esse governo arbitrário tal guerra seria perpétua e que são os homens e as armas não as palavras e promessas que fazem a força e o poder das leis E portanto este é um outro erro da política de Aristóteles a saber que num Estado bem ordenado não são os homens que governam mas sim as leis Qual é o homem dotado de seus sentidos naturais muito embora não saiba ler nem escrever que não se encontra governado por aqueles que teme e que acredita o podem matar ou ferir se ele não lhes obedecer Ou que acredite que a lei o pode ferir isto é palavras e papel sem as mãos e as espadas dos homens E este pertence ao número dos erros perniciosos pois induz os homens sempre que eles não gostam de seus governantes a aderir àqueles que lhes chamam tiranos e a pensar que é legítimo fazer guerra contra eles E contudo são muitas vezes exaltados do púlpito pelo clero Há um outro erro em sua filosofia civil o qual nunca aprenderam com Aristóteles nem com Cícero nem com qualquer outro dos pagãos para aumentar o poder da lei a qual é apenas a regra das ações a ponto de abarcar os próprios pensamentos e consciências dos homens por meio de exame e de inquisição daquilo que eles sustentam apesar da conformidade de seu discurso e de suas ações Pelo que os homens ou são punidos por responderem a verdade de seus pensamentos ou constrangidos a responder uma mentira com medo ao castigo É verdade que o magistrado civil ao pretender atribuir a um ministro o cargo de ensinar pode inquirir a seu respeito se ele fica contente por ensinar estas e aquelas doutrinas e em caso de recusa pode negarlhe o emprego Mas forçálo a acusarse de opiniões quando suas ações não são proibidas pela lei é contra a lei de natureza e especialmente naqueles que ensinam que o homem será condenado a tormentos eternos e extremos se morrer com uma falsa opinião a respeito de um artigo da fé cristã Pois quem há que sabendo existir um tão grande perigo num erro não seja levado pelo natural cuidado de si próprio a não arriscar sua alma com seu próprio juízo de preferência ao de qualquer outro homem que nada tem que ver com sua danação Pois um particular sem a autoridade do Estado isto é sem a permissão de seu representante para interpretar a lei por seu próprio espírito constitui um outro erro em política mas não tirado de Aristóteles nem de qualquer dos outros filósofos pagãos Pois nenhum deles nega senão que no poder de fazer as leis está também compreendido o poder de explicálas quando disso há necessidade E não são as Escrituras em todos os textos que constituem lei feitas lei pela autoridade do Estado e consequentemente uma parte da lei civil Um erro do mesmo tipo é também quando alguém exceto o soberano restringe em qualquer homem aquele poder que o Estado não restringiu como fazem aqueles que se apropriam da pregação do Evangelho para uma certa ordem de homens quando as leis o permitiram Se o Estado me dá a liberdade para pregar ou ensinar isto é não mo proíbe nenhum homem mo pode proibir Se me encontro entre os idólatras da América deverei pensar que eu que sou um cristão muito embora não tenha ordens cometo um pecado se pregar Jesus Cristo até Ter recebido ordens de Roma Ou que tendo pregado não devo responder a suas dúvidas e fazerlhes uma exposição das Escrituras isto é que não devo ensinar Mas para isso podem alguns dizer assim como também para administrarlhes os sacramentos a necessidade será levada em conta para tal missão o que é verdade Mas é também verdade que para seja o que for é exigida uma dispensa para a necessidade pois os mesmos não precisam de dispensa quando não há nenhuma lei que o proíba Portanto negar estas funções àqueles a quem o soberano civil não as negou é tirar uma liberdade legítima que é contrária à doutrina do governo civil Mais exemplos da vã filosofia trazida para a religião pelos doutores da Escolástica podiam ainda ser apresentados mas outros homens podem se quiserem observálos por si próprios Acrescentarei apenas isto que os escritos dos escolásticos nada mais são em sua maioria do que torrentes insignificantes de estranhas e bárbaras palavras ou de palavras usadas de outro modo portanto no uso comum da língua latina tal como a usariam Cícero e Varrão e todos os gramáticos da antiga Roma 0 que se alguém quiser ver provado vejamos como já disse antes se é capaz de traduzir algum escolástico para qualquer das línguas modernas como francês inglês ou qualquer outra copiosa língua pois aquilo que na maior parte destas línguas não pode ser tornado inteligível não é inteligível em latim Muito embora eu não possa apresentar esta insignificância de linguagem como falsa filosofia contudo ela possui o dom não só de esconder a verdade mas também de levar os homens a pensarem que a encontraram desistindo de novas buscas Finalmente quanto aos erros provenientes de uma história incerta e falsa não serão fábulas de velhas todas as lendas de milagres fictícios nas vidas dos santos e todas as histórias de aparições e fantasmas alegadas pelos doutores da Igreja romana para apoiar suas doutrinas do inferno e do purgatório o poder do exorcismo e outras doutrinas que não têm nenhum aval nem na razão nem nas Escrituras como também todas aquelas tradições a que chamam a palavra oral de Deus Donde muito embora encontrem alguma coisa dispersa nos escritos dos antigos padres contudo aqueles padres eram homens que podiam com demasiada facilidade acreditar em falsas narrativas e o fato de apresentar suas opiniões como testemunho da verdade daquilo em que acreditavam não tem mais força junto daqueles que segundo o conselho de São João 1 Epist cap 4 vers 1 examinam os espíritos do que em todas as coisas que se referem ao poder da Igreja romana de cujo abuso eles não suspeitavam ou do qual recebiam bene6cios desacreditar seu testemunho no que se refere a uma crença demasiado temerária nas narrativas à qual os homens mais sinceros sem grande conhecimento das causas naturais como eram os padres estão geralmente mais sujeitos pois naturalmente os melhores homens são aqueles que menos suspeitam de fins fraudulentos 0 Papa Gregório e São Bernardo têm algo sobre aparições de fantasmas que lhes disseram estarem no purgatório e também o nosso Beda tem alguma coisa mas creio sempre por relato de outrem Mas se eles ou quaisquer outros relatarem tais histórias de seu próprio conhecimento não mais confirmarão com isso tais relatos vãos mas desvendarão sua própria enfermidade ou fraude A introdução da falsa filosofia podemos também acrescentar a supressão da verdadeira filosofia por parte daqueles homens que nem por autoridade legítima nem por estudo suficiente são juízes competentes da verdade Nossas próprias navegações tornam manifesto e todos os homens versados em ciências humanas agora reconhecem que há antípodas E todos os dias se torna cada vez mais visível que os anos e os dias são determinados pelos movimentos da terra Contudo os homens que em seus escritos supõem esta doutrina como uma ocasião para apresentar as razões pró e contra têm sido por causa dela punidos pela autoridade eclesiástica Mas que razão há para isso Será por que tais opiniões são contrárias à verdadeira religião Não podem sêlo se são verdadeiras Deixemos portanto que a verdade seja primeiro examinada por juízes competentes ou refutada por aqueles que pretendem conhecer o contrário Será porque são contrárias à religião estabelecida Deixemos que sejam silenciadas pelas leis daqueles a quem estão sujeitos seus professores isto é pelas leis civis pois a desobediência pode ser legalmente punida naqueles que contra as leis ensinam até mesmo a verdadeira filosofia Será porque tendem à desordem no governo por favorecerem rebeliões ou sedições Deixemos então que sejam silenciadas e os professores punidos por virtude do poder a quem está entregue o cuidado do sossego público que é a autoridade civil Pois seja qual for o poder eclesiástico que assumam em qualquer lugar onde estejam sujeitos ao Estado seu próprio direito muito embora lhe chamem o direito de Deus não passa de usurpação CAPÍTULO XLVII Do benefício resultante de tais trevas e a quem aproveita Cícero faz uma honrosa menção de um dos Cássios severo juiz dos romanos por causa de um costume que tinha nas causas criminais quando o depoimento das testemunhas não era suficiente de perguntar aos acusadores Cui óono isto é que lucro honra ou outro proveito o acusado obtinha ou esperava pelo fato Pois entre as conjeturas não há nenhuma que mostre com tanta evidência o autor do que o beneficio da ação Pela mesma regra pretendo neste lugar examinar quem pode ser que tenha durante tanto tempo dominado o povo nesta parte da cristandade com estas doutrinas contrárias às pacíficas sociedades humanas Em primeiro lugar ao seguinte erro que a atual Igreja agora militante sobre a terra é o reino de Deus isto é o reino de glória ou terra da promissão não o reino da graça que é apenas uma promessa da terra estão ligados os benefícios terrenos que se seguem primeiro que os pastores e professores da Igreja estão habilitados como ministros públicos de Deus ao direito de governar a Igreja e consequentemente porque a Igreja e o Estado são a mesma pessoa a serem reitores e governantes do Estado Por este título é que o Papa prevaleceu sobre os súditos de todos os príncipes cristãos levandoos a acreditar que desobedecerlhe era desobedecer ao próprio Cristo e em todos os diferendos entre ele e outros príncipes fascinados com a expressão poder espiritual a abandonar seus legítimos soberanos o que com efeito é uma monarquia universal sobre toda a cristandade Pois muito embora tenham primeiro sido investidos no direito de serem os supremos mestres da doutrina cristãs pelos imperadores cristãos dentro dos limites do império romano como é reconhecido por eles próprios com o titulo de Pontifex Maximus que era um funcionário sujeito ao Estado civil contudo depois que o império foi dividido não foi difícil introduzir junto do povo já a eles sujeito um outro título a saber o direito de São Pedro não apenas para conservar intacto seu pretenso poder mas também para ampliálo sobre as mesmas províncias cristãs embora estas não estivessem mais unidas no império de Roma Este beneficio de uma monarquia universal considerando o desejo dos homens de terem uma autoridade constitui uma conjetura suficiente de que os Papas que a ela pretenderam e que durante muito tempo a desfrutaram eram os autores da doutrina pela qual foi obtida a saber que a Igreja agora sobre a terra é o reino de Cristo Pois aceite isto tem de se aceitar que Cristo tenha um representante entre nós para dizer nos quais são suas ordens Depois que certas Igrejas renunciaram a este poder universal do Papa seria razoável esperar que os soberanos civis em todas aquelas Igrejas recuperariam dele tanto quanto era seu próprio direito antes de o terem deixado ir embora inadvertidamente e estava em suas próprias mãos E na Inglaterra isso aconteceu efetivamente exceto que aqueles através dos quais os reis administravam o governo da religião sustentando que seu cargo era de direito divino pareceram usurpar se não uma supremacia pelo menos uma independência do poder civil e pareciam usurpálo ao mesmo tempo que reconheciam no rei o direito de despojálos a seu belprazer do exercício de suas funções Mas naqueles lugares em que o presbitério assumiu aquele cargo embora muitas outras doutrinas da Igreja de Roma estivessem proibidas de serem ensinadas contudo esta doutrina de que o reino de Cristo já chegou e começou com a ressurreição de nosso Salvador continuou ainda a ser sustentada Mas cui bono Que vantagem esperavam dela A mesma que os Papas esperavam ter poder soberano sobre o povo Pois o que é para os homens excomungar seu legítimo soberano senão afastálo de todos os lugares do serviço público de Deus em seu próprio reino E com força para lhe resistir quando ele pela força tenta corrigilos Ou o que é sem autoridade do soberano civil excomungar uma pessoa senão retirarlhe sua legítima liberdade isto é usurpar um poder ilegítimo sobre seus irmãos Portanto os autores destas trevas na religião são o clero romano e o clero presbiteriano Neste ponto refiro também todas aquelas doutrinas que lhes servem para manter a posse desta soberania espiritual depois que foi alcançada Em primeiro lugar aquela de que o Papa na capacidade pública não pode errar Pois quem é que acreditando ser isto verdade não lhe obedecerá prontamente em tudo aquilo que lhe aprouver ordenar Em segundo lugar que todos os outros bispos seja em que Estado for não recebem seu direito nem imediatamente de Deus nem mediatamente de seus soberanos civis mas do Papa é uma doutrina pela qual acabam existindo em todos os Estados cristãos muitos homens poderosos pois assim o são os bispos que são dependentes do Papa e que lhe devem obediência embora ele seja um príncipe estrangeiro por meio do que é capaz de como muitas vezes o fez instigar uma guerra civil contra o Estado que não se submeter a ser governado segundo seu prazer e interesse Em terceiro lugar a isenção destes e de todos os outros padres e de todos os monges e frades em relação ao poder das leis civis Pois deste modo muitos súditos de todos os Estados usufruem o beneficio das leis e são protegidos pelo poder do Estado civil sem contudo pagar nenhuma parte da despesa pública nem estar sujeitos às penas devidas a seus crimes como os outros súditos e consequentemente não receiam ninguém exceto o Papa e aderem apenas a ele para defender sua monarquia universal Em quarto lugar dar a seus padres que no Novo Testamento nada mais são do que presbíteros isto é anciãos o nome de sacerdote isto é sacrificadores que era o título do soberano civil e dos seus ministros públicos entre os judeus quando Deus era seu rei Também o fato de fazer da ceia do Senhor um sacrifico serviu para levar o povo a acreditar que o Papa tinha o mesmo poder sobre todos os cristãos que Moisés e Aarão tinham sobre os judeus isto é todo o poder quer civil quer eclesiástico como então tinha o Sumo Sacerdote Em quinto lugar o fato de ensinar que o matrimônio é um sacramento deu ao clero o juízo sobre a legitimidade dos casamentos e portanto sobre quais os filhos que são legítimos e consequentemente sobre o direito de sucessão a reinos hereditários Em sexto lugar a negação do casamento aos padres serviu para assegurar este poder do Papa sobre os reis Pois se um rei for padre não pode casar e transmitir seu reino a sua posteridade se não for padre o Papa passa a pretender ter esta autoridade eclesiástica sobre ele e sobre seu povo Em sétimo lugar pela confissão auricular obtém para a manutenção de seu poder um melhor conhecimento dos desígnios dos príncipes e dos grandes personagens do Estado civil do que estes podem obter acerca dos desígnios do Estado eclesiástico Em oitavo lugar pela canonização dos santos e pela declaração de quais são mártires asseguram seu poder na medida em que induzem os homens simples a uma obstinação contra as leis e as ordens de seus soberanos civis até à própria morte se pela excomunhão dos Papas eles forem declarados hereges ou inimigos da Igreja isto é de acordo com sua interpretação inimigos do Papa Em nono lugar asseguram o mesmo pelo poder que atribuem a todos os padres de fazerem Cristo e pelo poder de ordenar a penitência e de remir ou reter os pecados Em décimo lugar pela doutrina do purgatório da justificação pelos atos externos e das indulgências o clero se enriquece Em undécimo lugar por sua demonologia e pelo uso do exorcismo e outras coisas com isso relacionadas conservam ou julgam conservar mais o povo sob o domínio de seu poder Finalmente a metafísica a ética e a política de Aristóteles as distinções frívolas os termos bárbaros e a linguagem obscura dos escolásticos ensinada nas Universidades que foram todas erigidas e regulamentadas pela autoridade papal servemlhes para evitar que estes erros sejam detectados e para levar os homens a confundirem o ignis fatuus da vã filosofia com a luz do Evangelho Se estes exemplos não fossem suficientes poderseiam acrescentar outras de suas obscuras doutrinas cujas vantagens se revelam de forma evidente para o estabelecimento de um poder ilegítimo sobre os legítimos soberanos do povo cristão ou para a manutenção do mesmo quando está estabelecido ou para os bens terrenos a honra e a autoridade daqueles que o detêm E portanto pela supracitada regra do cui bono podemos com razão considerar como autores de todas estas trevas espirituais o Papa e o clero romano e também todos aqueles que tentam colocar no espírito dos homens esta doutrina errônea de que a Igreja agora sobre a terra é aquele Reino de Deus mencionado no Antigo e no Novo Testamento Mas os imperadores e outros soberanos cristãos sob cujo governo estes erros e as semelhantes usurpações dos eclesiásticos em seu cargo pela primeira vez surgiram para perturbação de suas possessões e da tranqüilidade de seus súditos muito embora tenham suportado os mesmos por falta de previsão de suas seqüèlas e por falta de visão profunda dos desígnios de seus mestres podem contudo ser considerados cúmplices de seu prejuízo próprio e público pois sem sua autoridade desde o início nenhuma doutrina sediciosa teria podido ser pregada publicamente Digo que podiam ter sido atalhados desde o início mas uma vez o povo possuído por esses homens espirituais não havia nenhum remédio humano que pudesse ser aplicado nenhum que algum homem fosse capaz de inventar E quanto aos remédios que Deus devia providenciar o qual nunca deixou a seu tempo de destruir todas as maquinações dos homens contra a verdade temos de esperar sua boa vontade a qual muitas vezes suportou que a prosperidade de seus inimigos juntamente com sua ambição chegasse a um ponto tal que sua violência abrisse os olhos que a precaução de seus predecessores tinha antes fechado e fizesse dá homens abarcar demais para nada segurar assim como a rede de Pedro rebentou dèvido à luta de uma quantidade demasiado grande de peixes visto que a impaciência daqueles que lutam para resistir a tal usurpação antes de os olhos de seus súditos estarem abertos apenas contribuiu para aumentar o poder a que resistiam Não censuro portanto o Imperador Frederico por deter a agitação em relação a nosso compatriota Papa Adriano pois tal era a disposição de seus súditos nessa ocasião que se não o tivesse feito provavelmente não teria sucedido no império Mas censuro aqueles que no princípio quando seu poder estava inteiro suportaram que essas doutrinas fossem forjadas nas Universidades de seus próprios domínios e contiveram a agitação contra todos os sucessivos Papas enquanto estes subiam sobre os tronos de todos os soberanos cristãos para os dominar e cáiìsar quer eles quer seus povos a seu bei prazer Mas assim como as invenções dos homens são tecidas assim também são desfeitas o processo é o mesmo mas a ordem é inversa a teia começa nos primeiros elementos de poder que são a sabedoria a humildade a sinceridade e outras virtudes dos apóstolos a quem todos os povos convertidos obedeceram por reverência e não por obrigação Suas consciências eram livres e suas palavras e ações só estavam sujeitas ao poder civil Mais tarde os presbíteros à medida que os rebanhos de Cristo aumentavam reunindose para discutirem o que deviam ensinar e portanto obrigandose a nada ensinar contra os decretos de suas assembléias fizeram crer que o povo estava por conseguinte obrigado a seguir sua doutrina e quando ele se recusou a fazêlo recusaram mantêlo em sua companhia a isso se chamou então excomunhão não por serem infiéis mas por serem desobedientes E este foi o primeiro nó em sua liberdade E aumentando o número de presbíteros os presbíteros da principal cidade ou província assumiram uma autoridade sobre os presbíteros paroquiais e apropriaramse do nome de bispos E este foi um segundo nó na liberdade cristã Finalmente o bispo de Roma no que se refere à cidade imperial assumiu uma autoridade em parte pela vontade dos próprios imperadores e pelo título de Pontifex Maximus e finalmente quando os imperadores estavam enfraquecidos pelos privilégios de São Pedro sobre todos os outros bispos do império o que constituiu o terceiro e último nó e toda a síntese e construção do poder pontifical Portanto a análise ou resolução é pelo mesmo processo mas começando com o laço que foi o último a ser atado como podemos ver na dissolução do preterpolítico governo da Igreja na Inglaterra Primeiro o poder dos Papas foi totalmente dissolvido pela Rainha Isabel e os bispos que antes exerciam suas funções pelo direito do Papa passaram depois a exercer o mesmo pelo direito da rainha e seus sucessores muito embora retendo a expressão jure divino se pudesse pensar que eles o recebiam de Deus por direito imediato E assim foi desatado o primeiro nó Depois disto os presbiterianos obtiveram ultimamente na Inglaterra a queda do episcopado e assim foi desamarrado o segundo nó E quase ao mesmo tempo o poder foi também tirado aos presbiterianos e deste modo estamos reduzidos à independência dos primitivos cristãos para seguirmos Paulo ou Cefas ou Apoio segundo o que cada homem preferir 0 que se ocorrer sem luta e sem avaliar a doutrina de Cristo por nossa afeição à pessoa de seu ministro a falta que o apóstolo censurou aos coríntios é talvez o melhor Primeiro porque não deve haver nenhum poder sobre as consciências dos homens a não ser da própria palavra produzindo fé em cada um nem sempre de acordo com o objetivo daqueles que plantam e regam mas do próprio Deus que dá a geração e segundo porque é desarrazoado naqueles que ensinam que existe tamanho perigo no mais pequeno erro exigir de um homem dotado de razão própria que siga a razão de qualquer outro homem ou da maioria de vezes de muitos outros homens o que é pouco melhor do que arriscar sua salvação jogando cara ou coroa Nem deviam esses mestres ficar aborrecidos com esta perda de sua antiga autoridade pois ninguém melhor do que eles devia saber que o poder é conservado pelas mesmas virtudes com que é adquirido isto é pela sabedoria pela humildade pela clareza de doutrina e sinceridade de linguagem e não pela supressão das ciências naturais e da moralidade da razão natural nem por uma linguagem obscura nem arrogandose mais conhecimento do que aquele que realmente possuem nem por fraudes beatas nem por essas outras faltas que nos pastores da Igreja de Deus não são apenas faltas mas também escândalos capazes de fazer que os homens mais cedo ou mais tarde tropecem na supressão de sua autoridade Mas depois que esta doutrina que a Igreja agora militante é o reino de Deus referido no Antigo e no Novo Testamento foi aceite no mundo a ambição e a solicitação de cargos que lhe estão adstritos e especialmente o grande cargo de ser o representante de Cristo e a pompa daqueles que obtiveram assim os principais cargos públicos tornouse gradualmente tão evidente que perderam a reverência interior devida à função pastoral de tal modo que os homens mais sábios entre aqueles que possuíam qualquer poder no Estado civil só precisavam da autoridade de seus príncipes para lhes negarem obediência Pois desde a época em que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como bispo universal pela pretensão de suceder a São Pedro toda sua hierarquia ou reino das trevas pode ser comparado adequadamente ao reino das fadas isto é às fábulas contadas por velhas na Inglaterra referentes aos fantasmas e espíritos e às proezas que praticavam de noite E se alguém atentar no original deste grande domínio eclesiástico verá facilmente que o Papado nada mais é do que o fantasma do defunto império romano sentado de coroa na cabeça sobre o túmulo deste pois assim surgiu de repente o Papado das ruínas do poder pagão Também a linguagem que eles usam quer nas igrejas quer nos atos públicos sendo o latim que não é comumente usado por qualquer nação hoje existente o que é senão o fantasma da antiga figura romana As fadas seja qual for a nação onde habitem só têm um rei universal que alguns de nossos poetas denominam rei Oberon mas as Escrituras denominam Belzebu príncipe dos demônios Do mesmo modo os eclesiásticos seja qual for o domínio em que se encontrem só reconhecem um rei universal o Papa Os eclesiásticos são homens espirituais e padres fantasmagóricos As fadas são espíritos e fantasmas As fadas e os fantasmas habitam as trevas as solidões e os túmulos Os eclesiásticos caminham na obscuridade da doutrina em mosteiros igrejas e claustros Os eclesiásticos têm suas igrejas catedrais as quais seja qual for a vila onde são erguidas por virtude da água benta e de certos encantos denominados exorcismos possuem o poder de transformar essas vilas em cidades isto é em sedes do império Também as fadas têm seus castelos encantados e alguns fantasmas gigantescos que dominam as regiões circunvizinhas As fadas não podem ser presas nem levadas a responder pelo mal que fazem Do mesmo modo os eclesiásticos desaparecem dos tribunais da justiça civil Os eclesiásticos tiram dos jovens o uso da razão por meio de certos encantos compostos de metafísica e milagres e tradições e Escrituras deturpadas pelo que estes ficam incapazes seja para o que for exceto para executarem aquilo que lhes for ordenado Do mesmo modo as fadas segundo se diz tiram as crianças de seus berços e transformamnas em loucos naturais a que o vulgo chama duendes e que têm tendência para praticar o mal As velhas não especificaram em que oficina ou laboratório as fadas fabricam seus encantamentos mas os laboratórios do clero são bem conhecidos como sendo as Universidades que receberam sua disciplina da autoridade pontifícia Quando alguém desagrada às fadas dizse que estas enviam seus duendes para beliscálo Os eclesiásticos quando algum Estado civil lhes desagrada também mandam seus duendes isto é súditos supersticiosos e encantados para beliscarem seus príncipes pregando a sedição ou um príncipe encantado com promessas para beliscar outro As fadas não se casam mas entre elas há incubi que copulam com gente de carne e osso Os padres também não se casam Os eclesiásticos tiram a nata da terra por meio de donativos de homens ignorantes que têm medo deles e por meio de dízimos o mesmo acontece na fábula das fadas segundo a qual elas entram nas leitarias e banqueteiamse com a nata que retiram do leite A história também não conta que tipo de dinheiro corre no reino das fadas Mas os eclesiásticos naquilo que recebem aceitam a mesma moeda que nós muito embora quando têm de fazer algum pagamento o façam com canonizações indulgências e missas A estas e outras semelhanças entre o Papado e o reino das fadas se pode acrescentar mais uma que assim como as fadas só têm existência na fantasia de gente ignorante que se alimenta das tradições contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas também o poder espiritual do Papa fora dos limites de seu próprio domínio civil consiste apenas no medo em que se encontra o povo seduzido de ser excomungado por ouvir os falsos milagres as falsas tradições e as falsas interpretações das Escrituras Não foi portanto muito difícil expulsálos a Henrique VIII por seu exorcismo e à Rainha Isabel pelo dela Mas quem sabe se este espírito de Roma que agora desapareceu e que vagueando por missões através dos lugares desertos da China do Japão e das índias ainda produziu escassos frutos não pode voltar ou melhor uma assembléia de espíritos ainda mais maléfica do que ele para habitar esta casa asseada e limpa tornando portanto o fim ainda pior do que o princípio Pois não é só o clero romano que pretende que o Reino de Deus é deste mundo e que portanto ele tem um poder distinto do poder do Estado civil E isto era tudo o que eu tinha a intenção de dizer no que se refere à doutrina da política 0 que quando tiver sido por mim revisto apresentarei de boa vontade à censura de meu país REVISÃO E CONCLUSÃO Da contrariedade entre algumas das faculdades naturais do espírito assim como também entre as paixões e de sua referência ao convívio humano se tem tirado um argumento para inferir a impossibilidade de qualquer homem estar suficientemente disposto a todas as espécies de dever civil A severidade do juízo dizem eles torna os homens intransigentes e difíceis de perdoar os erros e enfermidades dos outros e por outro lado a celeridade da fantasia torna os pensamentos menos estáveis do que é necessário para distinguir exatamente entre o certo e o errado Por outro lado em todas as deliberações e em todos os pleitos é necessária a faculdade de raciocinar com solidez pois sem ela as decisões dos homens são precipitadas e suas sentenças injustas e contudo se não houver uma eloqüência poderosa que chame a atenção e o consenso será pequeno o efeito da razão Mas estas são faculdades contrárias baseandose a primeira nos princípios de verdade e a outra nas opiniões já recebidas verdadeiras ou falsas e nas paixões e interesses dos homens que são diferentes e mutáveis E entre as paixões a coragem pela qual entendo o desprezo das feridas e da morte violenta inclina os homens para a vingança pessoal e ás vezes para a tentativa de perturbar a paz pública e a timidez muitas vezes predispõe para a deserção da defesa pública Não se podem encontrar ambas dizem eles na mesma pessoa Considerando a contrariedade das opiniões e costumes dos homens em geral é dizem impossível manter uma amizade civil constante com todos aqueles com os quais os negócios do mundo nos obrigam a conviver o que quase sempre consiste apenas numa perpétua luta por honras riquezas e autoridade Ao que respondo que estas são sem dúvida grandes dificuldades mas não impossibilidade pois pela educação e disciplina podem ser e algumas vezes são reconciliadas 0 juízo e a fantasia podem ter lugar no mesmo homem mas alternadamente conforme o exigir o objetivo que se propôs Assim como os israelitas no Egito eram por vezes apressados em seu trabalho de fazer tijolos e outras eram mandados para fora para pegar palha assim também o juízo pode às vezes ser fixado numa determinada consideração e outras vezes a fantasia andar vagueando pelo mundo Do mesmo modo a razão e a eloqüência embora não talvez nas ciências naturais mas pelo menos nas ciências morais podem muito bem estar juntas Pois na medida em que há lugar para enfeitar e preferir o erro muito mais lugar há para adornar e preferir a verdade se a quiserem adornar Como também não há incompatibilidade alguma entre temer as leis e não recear um inimigo público nem entre absterse de ofensas e perdoálas aos outros Não há portanto essa inconsistência entre a natureza humanas deveres civis que alguns supõem Tenho visto clareza de juízo e largueza de fantasia força de razão e graciosa elocução coragem para a guerra e temor das leis e tudo de forma notável num só homem que foi meu muito nobre e venerado amigo Sidnei Godolphin o qual não odiando ninguém nem sendo odiado de ninguém foi contudo morto no início da última guerra civil na querela pública por uma mão indiscernível e destituída de discernimento As leis de natureza enunciadas no capítulo 15 gostaria de acrescentar que todo o homem é impelido pela natureza na medida em que isso lhe é possível a proteger na guerra a autoridade pela qual é protegido em tempo de paz Pois aquele que pretende ser um direito de natureza a preservação de seu próprio corpo não pode pretender que seja um direito de natureza destruir aquele graças a cuja força ele é preservado é uma manifesta contradição de si próprio E muito embora esta lei possa ser enunciada como conseqüência de algumas daquelas que já foram mencionadas contudo os tempos exigem que ela seja inculcada e lembrada E porque vejo em vários livros ingleses recentemente publicados que as guerras civis ainda não ensinaram suficientemente os homens quando um súdito se torna obrigado ao conquistador nem o que é conquista nem como acontece ela obrigar os homens a obedeceram às leis do conquistador para maior satisfação dos homens portanto direi que um homem se torna súdito de um conquistador quando tendo a liberdade para submeterselhe consente ou por palavras expressas ou por outro sinal suficiente em ser seu súdito Quando um homem tem a liberdade de submeterse foi algo que mostrei no fim do capítulo 21 a saber que para quem não tem outra obrigação para com seu primitivo soberano a não ser a de um vulgar súdito é quando os meios de sua vida estão dentro das guardas e das guarnições do inimigo pois é então que ele deixa de receber proteção dele e passa a ser protegido pelo partido contrário devido a sua contribuição Dado que portanto tal contribuição é por toda a parte considerada legítima como uma coisa inevitável não obstante ser uma ajuda ao inimigo não pode ser considerada iligítima uma submissão total que é apenas uma ajuda ao inimigo Além disso se alguém atentar que os que se submetem ajudam o inimigo apenas com parte de seus domínios visto recusarem ajudálo com a totalidade não há motivo para chamar a sua submissão ou composição uma ajuda mas antes um detrimento ao inimigo Mas se um homem além da obrigação como súdito tetra uma obrigação como soldado então não possui a liberdade de submeterse a um novo poder enquanto o antigo se conservar no campo de batalha e lhe fornecer os meios de subsistência ou em seus exércitos ou em suas guarnições pois neste caso não pode queixarse de falta de proteção e de meio para viver como soldado Mas quando também isso falha um soldado pode também procurar sua proteção onde tiver mais esperança de encontrála e pode legitimamente submeterse a um novo senhor E é tudo quanto ao momento em que pode fazêlo legitimamente se o quiser Se portanto o fizer está sem dúvida alguma obrigado a ser um verdadeiro súdito pois um contrato feito legitimamente não pode legitimamente ser desfeito Por aqui também se compreende quando se pode dizer que os homens são conquistados e em que consiste a natureza da conquista e o direito do conquistador pois esta submissão implica todos eles A conquista não é a própria vitória mas a aquisição pela vitória de um direito sobre as pessoas dos homens Portanto aquele que é morto é vencido mas não conquistado aquele que é aprisionado e levado para o cárcere ou acorrentado não é conquistado muito embora seja vencido pois é ainda um inimigo e pode fugir se conseguir Mas aquele que com promessa de obediência recebeu a vida e a liberdade então está conquistado e é um súdito mas não antes Os romanos costumavam dizer que seu general tinha pacificado tal província isto é em nossa língua que a tinha conquistado e que o país foi pacificado pela vitória quando seu povo tinha prometido Imperata facere isto é Fazer o que o povo romano lhe tinha ordenado isto era ser conquistado Mas esta promessa pode ser expressa ou tácita expressa por promessa tácita por outros sinais Como por exemplo um homem que não tenha sido chamado a fazer uma tal promessa expressa por ser alguém cujo poder talvez não seja considerável contudo se viver abertamente sob sua proteção se considera que se submeteu ao governo Mas se lá viver secretamente está sujeito a tudo o que pode acontecer a um espião e inimigo do Estado Não digo que ele faça qualquer injustiça pois os atos de hostilidade declarada não recebem esse nome mas que ele pode com justiça ser condenado à morte Do mesmo modo se um homem quando seu país é conquistado se encontra fora dele não fica conquistado nem submetido mas se ao regressar se submeter ao governo é obrigado a obedecerlhe De tal maneira que a conquista para a definirmos é a aquisição do direito de soberania por vitória Direito esse que é adquirido com a submissão do povo pela qual este faz um contrato com o vencedor prometendo obediência a troco de vida e liberdade No capítulo 29 mencionei como uma das causas da dissolução dos Estados sua geração imperfeita consistindo na falta de um poder legislativo absoluto e arbitrário na ausência do qual o soberano civil está condenado a segurar a espada da justiça de maneira inconstante e como se ela fosse demasiado fogosa para suas mãos Uma das razões disto que ali não mencionei é esta que todos eles justificam a guerra pela qual seu poder foi pela primeira vez alcançado e da qual segundo pensam seu direito depende e não da posse Como se por exemplo o direito dos reis da Inglaterra dependesse da excelência da causa de Guilherme o Conquistador e através de sua descedëncia linear e direta pelo que talvez não houvesse hoje nenhum vínculo de obediência dos súditos a seu soberano em todo o mundo no que enquanto sem necessidade pensam justificarse justificam todas as rebeliões triunfantes que a ambição levantar contra eles e contra seus sucessores Portanto aponto como uma das mais ativas sementes da morte de qualquer Estado que os conquistadores exijam não apenas a submissão das ações dos homens a eles no futuro mas também uma aprovação de todas as suas ações passadas quando há poucos Estados no mundo cujos primórdios possam em consciência ser justificados E porque o nome de tirania não significa nem mais nem menos do que o nome de soberania esteja ela em um ou em muitos homens a não ser que de quem usa a primeira palavra se entende ser contrário aos que chama tiranos penso que a tolerância de um ódio professo da tirania é uma tolerância do ódio ao Estado em geral e uma outra má semente não muito diferente da primeira Pois para a justificação da causa de um conquistador a censura da causa dos conquistados é na maior parte das vezes necessária mas nenhuma delas necessária para a obrigação dos conquistados E foi isto tudo o que me pareceu adequado dizer na revisão da primeira e da segunda parte deste discurso No capítulo 35 mostrei suficientemente com textos das Escrituras que no Estado dos judeus o próprio Deus foi feito soberano por pacto com o povo que foi portanto chamado seu povo eleito para distinguilo do resto do mundo sobre o qual Deus não reinava por consentimento mas por seu próprio poder E que neste reino Moisés era o representante de Deus sobre a terra e que foi ele quem lhes disse quais as leis que Deus tinha dado para eles se governarem Mas omiti a referência de quais eram os funcionários indicados para executálas especialmente nas penas capitais não pensando então que esta matéria fosse de uma consideração tão necessária como depois verifiquei que era Sabemos que geralmente em todos os Estados a execução dos castigos corporais era entregue ou a guardas ou a outros soldados do poder soberano ou entregue àqueles que por falta de meios desprezo da honra e dureza de coração eram adequados para um tal oficio Mas entre os israelitas era uma lei positiva de Deus seu soberano que quem fosse culpado de crime capital devia ser apedrejado até a morte pelo povo e que as testemunhas deviam lançar a primeira pedra e depois das testemunhas o resto do povo Esta era uma lei que designava quem deviam ser os executores mas não que alguém devesse lançar uma pedra nele antes da culpa formada e da sentença na qual a congregação era juiz As testemunhas deviam contudo ser ouvidas antes de que se procedesse à execução a menos que o fato tivesse sido cometido na presença da própria congregação ou à vista dos legítimos juízes pois nesse caso não eram necessárias outras testemunhas além dos próprios juízes Contudo não sendo esta maneira de proceder totalmente compreendida ela deu ocasião a uma perigosa opinião que qualquer homem pode matar outro em alguns casos por um direito de zelo como se as execuções feitas sobre os ofensores no reino de Deus nos tempos antigos não resultassem da ordem soberana mas da autoridade do zelo particular o que se atentarmos nos textos que parecem favorecêla é totalmente ao contrário Em primeiro lugar quando os levitas caíram sobre o povo que tinha feito e adorado um bezerro de ouro e mataram três mil pessoas foi por ordem de Moisés pela boca de Deus como é manifesto Ëx 3227 E quando o filho de uma mulher de Israel blasfemou contra Deus aqueles que o ouviram não o mataram mas levaramno à presença de Moisés que o pôs sob custódia até que Deus desse semtença contra ele como aparece no Lev 2511 s Também Núm 256s quando Fincas matou Zimri e Cosbi não foi por direito de zelo particular seu crime foi cometido na presença da assembléia não havia necessidade de testemunhas a lei era conhecida e ele o herdeiro aparente à soberania e o que é o ponto principal a legalidade de seu ato dependia totalmente de uma posterior ratificação de Moisés da qual ele não tinha nenhuma razão para duvidar E esta suposição de uma futura ratificação é às vezes necessária para a segurança de um Estado como numa inesperada rebelião qualquer homem que possa dominála por seu próprio poder na região onde ela começar sem lei ou comissão expressa pode legalmente fazêlo e providenciar para que seu ato seja ratificado ou perdoado enquanto o estiver praticando ou depois de têlo praticado Também em Núm 3530 se diz expressamente Aquele que matar o assassino matáloá pela palavra das testemunhas mas as testemunhas pressupõem uma judicatura formal e consequentemente condenam aquela pretensão de um jus zelotarum A lei de Moisés referente àquele que atrai para a idolatria isto é no Reino de Deus para uma renúncia a sua lealdade Dt 138 proíbe escondêlo e ordena ao acusador que faça com que seja condenado à morte e lhe atire a primeira pedra mas não que o mate antes de ele ser condenado E Dt 17 vers 45 e 6 o processo contra a idolatria está mencionado com exatidão pois ali Deus falou ao povo como juiz e ordenou lhe que quando alguém fosse acusado de idolatria inquirisse com toda a diligência acerca do fato e vindo a verificar que era verdadeiro que então o apedrejasse mas ainda a mão da testemunha lançava a primeira pedra Isto não é zelo particular mas sim condenação pública De maneira semelhante quando um pai tem um filho rebelde a lei diz Dt 2118 que deverá leválo perante os juízes da cidade e que todo o povo da cidade o apedrejará Finalmente foi com base nestas leis que Santo Estêvão foi apedrejado e não com base no zelo particular pois antes de ser levado à execução ele tinha pleiteado sua causa perante o Sumo Sacerdote Não há nada nisto tudo nem em qualquer outra parte da Bíblia que apóiem as execuções por zelo particular as quais sendo na maior parte das vezes uma conjunção da ignorância e da paixão são contra a justiça e a paz do Estado No capítulo 36 disse que não se declara qual a maneira como Deus falou sobrenaturalmente a Moisés nem que ele lhe não falou algumas vezes por sonhos e visões e por uma voz sobrenatural como a outros profetas pois a maneira como lhe falou de seu assento de misericórdia está expressamente mencionada Núm 789 com estas palavras Daquele momento em diante quando Moisés entrava no tabernáculo da congregação para falar com Deus ouvia uma voz que lhe falava de cima do assento de misericórdia que se encontra sobre a arca do testemunho de entre os querubins lhe falava Mas não se declara em que consiste a preeminência da maneira de Deus falar a Moisés sobre daquela como falava aos outros profetas como a Samuel e Abraão a quem também falou por uma voz isto é por visão a menos que a diferença consista na clareza da visão Pois face a face e boca a boca não podem ser entendidas literalmente a respeito da infinitude e da incompreensibilidade da natureza divina Quanto ao conjunto da doutrina afiguraseme que seus princípios são verdadeiros e adequados e que seus raciocínios são sólidos Pois fundamento o direito civil dos soberanos e tanto o dever como a liberdade dos súditos nas conhecidas inclinações naturais da humanidade e nos artigos da lei de natureza os quais ninguém que aspire a raciocinar o suficiente para governar sua família particular deve ignorar E quanto ao poder eclesiástico dos mesmos soberanos fundamentoo naqueles textos que são em si evidentes e consoantes com o objetivo de todas as Escrituras Estou portanto persuadido de que quem as ler com a única finalidade de ser informado será por elas informado Mas quanto àqueles que por escritos ou discursos públicos ou por suas ações eminentes já se comprometeram a defender opiniões contrárias esses não ficarão satisfeitos tão facilmente Pois em tais casos é natural que os homens ao mesmo tempo continuem a ler e desviem sua atenção à procura de objeções àquilo que já leram antes as quais numa época em que os interesses dos homens estão mudados dado que uma grande parte daquela doutrina que serviu para estabelecer o novo governo tem necessariamente de ser contrária àquela que conduziu à dissolução do antigo não podem deixar de ser muitas Naquela parte que trata de um Estado cristão há algumas doutrinas novas que num Estado onde as doutrinas contrárias estivessem já completamente adotadas poderia constituir uma falta serem divulgadas sem permissão na medida em que seria uma usurpação do cargo de professor Mas nesta época em que os homens não aspiram apenas à paz mas também à verdade oferecer essas doutrinas que julgo verdadeiras e que manifestamente tendem para a paz e para a lealdade à consideração daqueles que ainda se encontram em fase de deliberação nada mais é do que oferecer vinho novo para ser colocado em barril novo para que ambos possam ser preservados juntamente E suponho que então quando a novidade não alimentar nenhuma perturbação nem desordem num Estado os homens não estarão tão propensos a reverenciar a antiguidade que prefiram os antigos erros a uma verdade nova e bem provada Não há nada em que confie menos do que em minha elocução a qual contudo tenho esperança excetuadas as fatalidades da impressão que não seja obscura Que eu tenha desprezado o ornamento de citar os antigos poetas oradores e filósofos ao contrário do costume dos últimos tempos quer eu tenha procedido bem ou mal nisso resulta de meu próprio juízo apoiado em muitas razões Pois em primeiro lugar toda a verdade da doutrina depende ou da razão ou das Escrituras ambas as quais dão crédito a muitos autores mas nunca o recebem de nenhum Em segundo lugar as matérias em questão não são de fato mas de direito em que não há lugar para testemunhas Raros são aqueles antigos autores que não se contradigam às vezes a si próprios ou aos outros o que torna seus testemunhos insuficientes Em quarto lugar aquelas opiniões que são levadas em conta apenas devido ao crédito da antiguidade não são intrinsecamente o juízo daqueles que as citam mas palavras que passam como bocejos de boca em boca Quinto é muitas vezes com um desígnio fraudulento que os homens pregam sua doutrina corrupta com os cravos da sabedoria dos outros homens Sexto não acho que os antigos por eles citados considerassem um ornamento fazer o mesmo com aqueles que escreveram antes deles Sétimo é um argumento de indigestão quando as frases gregas e latinas não mastigadas surgem novamente como eles costumam fazer sem serem modificadas Finalmente embora eu respeite aqueles homens dos tempos antigos que ou escreveram a verdade claramente ou nos puseram no bom caminho para a descobrirmos nós próprios contudo penso que nada é devido à antiguidade em si pois se reverenciamos a época a presente é a mais antiga Se se tratar da antiguidade do autor não tenho certeza de que aqueles a quem dão tal honra fossem mais antigos quando escreveram do que eu que estou escrevendo Mas se atentarmos bem o louvor dos autores antigos resulta não do respeito dos mortos mas sim da competição e da inveja mútua dos vivos Para concluir não há nada em todo este discurso nem naquele que escrevi antes sobre o mesmo assunto em latim tanto quanto posso percebêlo de contrário à palavra de Deus ou aos bons costumes ou à manutenção da tranqüilidade pública Penso portanto que pode ser impresso com vantagem e com mais vantagem ainda ensinado nas Universidades no caso de também o pensarem aqueles a quem compete o juizo sobre tais matérias Pois dado que as Universidades são as fontes da doutrina civil e moral com cuja água os pregadores e os fidalgos tirandoa tal como a encontram costumam borrifar o povo tanto do púlpito como na conversação devia certamente haver grande cuidado em conservála pura quer em relação ao veneno dos políticos pagãos quer em relação ao encantamento dos espíritos enganadores E por este meio os homens em sua maioria conhecendo seus deveres estarão menos sujeitos a servir à ambição de alguns descontentes em seus desígnios contra o Estado e ficarão menos agravados com as contribuições necessárias para a paz e defesa e os próprios governantes terão menos razão para manter à custa do público um exercito maior do que é necessário para defender a liberdade pública contra as invasões e as usurpações dos inimigos externos Em assim cheguei ao fim de meu discurso sobre o governo civil e eclesiástico ocasionado pelas desordens dos tempos presentes sem parcialidade sem servilismo e sem outro objetivo senão colocar diante dos olhos dos homens a mútua relação entre proteção e obediência de que a condição da natureza humana e as leis divinas quer naturais quer positivas exigem um cumprimento inviolável E muito embora na revolução dos Estados não possa haver uma constelação muito propícia ao aparecimento de verdades desta natureza tendo um aspecto desfavorável para os que dissolvem o antigo governo e vendo apenas as costas dos que erigem um novo contudo não posso acreditar que seja condenado nesta época quer pelo juiz público da doutrina quer por alguém que deseje a continuação da paz pública E com esta esperança volto para minha interrompida especulação sobre os corpos naturais na qual se Deus me der saúde para acabála espero que a novidade agrade tanto quanto desagradou nesta doutrina do corpo artificial Pois a verdade que não se opõe aos interesses ou aos prazeres do homem é bem recebida por todos