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Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons AtribuiçãoUsoNãoComercialObrasDerivadasProibidas 30 Unported Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Concepções de infância e infâncias Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil Conceptions of infancy and childhood A state of the art for the anthropology of children in Brazil Clarice Cohn Resumo Este artigo dedicase a uma leitura da produção em antropologia que foca suas pesquisas nas crianças sejam pesquisas sobre ou com crianças sejam elas sobre políticas públicas voltadas à infância ou sobre os direitos das crianças e dos adolescentes Tratando do campo da antropologia da criança no Brasil e debatendo metodologias e conceitos este levantamento da produção antropológica traz a proposta apresentada e discutida no texto de que toda pesquisa antropológica com ou sobre crianças instituições políticas e direitos deve ter em conta as concepções de infância que as perpassam e que informam suas formulações e ações Inclusive as das crianças que agem no mundo de acordo com a concepção de infância que este lhe apresenta com a qual interagem e às vezes entram em conflito Palavraschave Antropologia da criança Antropologia da infância Crianças indígenas Direitos das crianças Políticas da infância Abstract This paper proposes a bibliographical discussion on anthropological research focused on children and childhood in Brazil including studies about or with children and those centered on the politics of infancy and the rights of children and youth Synthesizing the anthropology of children in Brazil it debates concepts and methodologies and proposes as is argued throughout the text that any research with or about children their institutions rights and the policies focused on them should start from the notions of childhood at play including those of children who act and react sometimes in conflict with the notions of childhood they are presented with Keywords Anthropology of children Anthropology of childhood Indigenous children Childrens rights Social policies for infants Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo USP São Paulo Brasil professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos SP Brasil coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Antropologia da Criança Lepac UFSCar CNPq e do Observatório da Educação Escolar Indígena da UFSCar UFSCarCapesMEC clacohngmailcom 222 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Gostaria de começar com duas observações que para mim mostram o amadurecimento do campo de reflexão da Antropologia da Criança e da pesquisa que é seu cenário Uma delas o fato deste texto ter sido produzido no contexto de um evento sobre infância e família1 Sublinho a conjunção porque estes temas correlatos tratados como subespecialidades e que como tantos outros antropologia do estado do direito da educação frequentemente andam juntos são com a mesma frequência mantidos separados nas nossas atuações produções e reflexões sobre para onde ir Os debates ocorridos por ocasião do evento demonstraram quão fecundas essas conjunções podem ser o que nos fez querer continuálas A segunda observação é irmã desta venho cada vez mais me tornando consciente de que faz muitos anos que vimos dizendo que o campo da antropologia da criança é um campo em criação crescimento consolidação Com satisfação percebo que hoje se trata de um campo plenamente consolidado com ampla representação nos debates nacionais e internacionais em publicações e eventos de antropologia É hora de o consolidarmos sim mas em outro sentido não mais nos preocupando em legitimálo em nos fazer ouvir mas avaliando qual contribuição temos dado e podemos dar à antropologia Assim como qual contribuição a antropologia pode dar e tem dado ao campo dos estudos das crianças e das infâncias Isso não se faz sem desafios ou obstáculos Se comecei louvando a situação atual vou dar um segundo passo falando de algumas dificuldades que ainda encontramos Falarei a partir de minha própria especialidade a etnologia indígena Neste campo os estudos das infâncias indígenas e das crianças indígenas vêm florescendo Tassinari 2007 Nunes 2002 2003 e revelando muito do que as crianças têm a dizer de seu mundo Um mundo que às vezes como em outros campos de pesquisa só é acessível por meio delas já que embora conhecido é obliterado pelos adultos2 No entanto os estudos das crianças têm tido pouco efeito no debate da etnologia indígena em geral poucos etnólogos leem os estudos sobre as crianças dos povos com quem 1 Este texto foi desenvolvido a partir de minha apresentação na mesa Crianças e infância perspectivas antropológicas acompanhada de Carla Villalta e Claudia Fonseca com coordenação de Fernanda Bittencourt Ribeiro na II Jornada de Pesquisa sobre Infância e Família organizada pelo NACi da Ufrgs e pelo PGCS da Pucrs Agradeço enormemente a Fernanda B Ribeiro Claudia Fonseca e Patrice Schuch pelo convite para participar do evento e para a publicação e a todos pelos inspiradores debates Agradeço ainda aos alunos da UFSCar que comigo têm debatido este tema em conversas onde muitas destas ideias foram maturadas em especial aos membros do Lepac e a Antonella Tassinari e Andrea Szulc com quem tenho compartilhado espaços para o debate deste campo 2 Este obliterado não significa necessariamente negado ou recusado mas às vezes apenas não explicitado este fenômeno já havia sido marcado para a realidade das ilhas Fiji por Toren 1999 C Cohn Concepções de infância e infâncias 223 trabalham Este é um problema real que devemos reconhecer e enfrentar para que nossos estudos não falem apenas para nós mesmos reiterandose a si mesmos mas ganhem um alcance maior e mais efetivo nos debates da antropologia e no debate sobre o mundo Assim acho que os dois aspectos que enumerei são igualmente ver dadeiros temos um campo consolidado e reconhecido com grande produção com espaço em publicações na área e eventos mas ainda carecemos de uma entrada no debate maior da antropologia uma entrada que nos permita uma voz ampliada na compreensão dos vários fenômenos sobre os quais antropólogos se debruçam como pesquisadores e como cidadãos É este o estado da arte a antropologia dedicada às crianças e às infâncias se consolidou e a excelência a possibilidade metodológica analítica epistemológica e a legitimidade de nossos estudos são reconhecidas Porém ainda necessitamos ganhar maior abrangência tanto no debate antropológico como um todo quanto na intervenção e na atuação pública Por isso meu chamado aqui é por maior interlocução mais entrecruzamentos É também por manter o tema no debate atual da antropologia Um bom começo para tal é reconhecer o que os estudos com e sobre crianças têm podido revelar e que nem sempre é revelado pelos demais estudos Para tratar disso focarei algo que acho de extrema importância e que permeia silenciosamente todas as pesquisas que serão referidas a seguir Ou seja a necessidade de se analisar as concepções de infância e as noções de pessoa que estão implicadas em todos os processos que analisamos em uma perspectiva antropológica Entendo que isto deva ser sempre considerado para entendermos os mais variados fenômenos de que se trata quando falamos com e de crianças e infâncias E o farei seguindo o que se tem feito em antropologia da criança e da infância no Brasil Ou seja não estou pregando que se comece a reconhecer esta dimensão que não é devidamente reconhecida ao contrário quero mostrar como todos estes debates aos quais farei referência só são possíveis ao se considerar a concepção de infância que está em jogo em cada um destes casos3 Assim proponhome a fazer um estado da arte em que busco demonstrar o papel que as concepções de infância exercem não só nos fenômenos observados mas também na análise antropológica destes fenômenos Se 3 Obviamente este é apenas um apanhado que teve como mote o recorte que dei ao debate não sendo um levantamento exaustivo Muitos outros trabalhos poderiam ter sido comentados e referidos neste texto e só posso esperar que seus autores compreendam os limites de espaço que levam à omissão e possam se reconhecer e reconhecer seus esforços de pesquisa neste debate que aqui proponho 224 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 este papel nem sempre é reconhecido e explicitado nos textos o faço aqui exatamente para mostrar como eles são cruciais para entender o que as crianças fazem dizem e pensam e o que se faz com elas se pensa delas se diz sobre elas Concepções de infância Comecemos mais uma vez pela etnologia indígena Esta começou a olhar mais diretamente para as crianças nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil Foi quando estudos específicos sobre as infâncias indígenas começaram a ser realizados pela primeira vez observandoas no que elas são ouvindoas acompanhandoas em suas atividades e em seus passos Como se sabe desde que os primeiros colonizadores pisaram no Novo Mundo abundam referências sobre as crianças de seus habitantes primordiais4 O mesmo acontece na antropologia que desde sempre se referiu às crianças lembrando que elas sempre acompanhavam os e as antropólogos falando de ciclos de vida etc Mas foi só quase no final do século 20 que esforços concentrados e focados foram expedidos para buscar entender as crianças e suas vidas por elas mesmas5 A diferença então estava no fato de que estas pesquisas iriam prestar atenção nas crianças pelo que elas eram e não pelo que elas deveriam ser ou viriam a ser Assim também a diferença estava em que se buscava criar contextos métodos e técnicas de pesquisa e interlocução com as crianças de modo a que os antropólogos aprendessem a ouvilas no que elas têm a dizer Mas importante esforço foi também despendido em se desvendar o que é ser criança nestes lugares Para isso há duas respostas nem sempre igualmente exploradas ou mesmo conectadas em cada trabalho o que é ser criança para estas crianças com que se interage na pesquisa e o que é ser criança neste lugar ou em meus termos como se define a infância ou as infâncias nestes lugares Estas perguntas têm boas razões de serem feitas nestes contextos etnográficos A primeira evitar pressupor uma infância universal e para isso nos baseamos muito na demonstração clássica de Ariès 1981 de que a ideia de infância e o sentimento de infância tem uma origem histórica muito localizada e é portanto mais propriamente ocidental A segunda o fato de que a etnologia já vinha mostrando que a noção de pessoa e a fabricação dos corpos o idioma da corporalidade são cruciais para entender 4 Foi isto que permitiu o impressionante trabalho de Florestan Fernandes 1976 reconstituindo a infância tupinambá a partir dos relatos dos cronistas jesuítas e viajantes 5 Este esforço teve grande impulso no Mari Grupo de Educação Escolar Indígena na USP sob a coordenação de Aracy Lopes da Silva Lux Boelitz Vidal e Mariana Kawall Leal durante toda a década de 1990 ver Lopes da Silva et al 2002 C Cohn Concepções de infância e infâncias 225 os mundos indígenas e suas socialidades Cohn 2000c 2002b Assim se a noção de pessoa e a fabricação da pessoa e dos seus corpos são cruciais para os ameríndios elas deveriam ser fundamentais também para se entender suas noções de infância suas experiências de infância as experiências corpóreas destas crianças e as intervenções sobre estes corpos que se fazem Foi isto o que fiz quando pesquisei os Xikrin Buscando entender o que para eles é uma criança sua concepção de infância logo aprendi que ela estava ligada a uma concepção também de sentidos e percepção e portanto de aprendizagem e de possibilidades de conhecer e apreender o mundo e de corporalidade e fabricação dos corpos6 À minha incessante pergunta a mim mesma como para eles sobre o que é uma criança só tinha como resposta claro coisas vagas7 Até que uma resposta exatamente por não ser vaga mas aparentemente contraditória me surpreendeu foi quando o velho BepDjoti me explicou que as crianças tudo sabem porque tudo veem e nada sabem porque são crianças Assim meus focos de pesquisa passaram a ser a corporalidade o modo como se tratam olhos e ouvidos para aprender a ver ouvir e aprender a ornamentação corporal a alimentação os remédios a mobilidade a circulação o movimento destes pequenos corpos Foi então que percebi que tudo aquilo que se faz para as crianças faz seus corpos assim como os brinquedos que elas fazem são parte de um todo mais amplo que constituindo corpos e corporalidades constitui estas pessoas As crianças xikrin crescem para ser homens mulheres pais e mães e depois avós líderes caçadores pescadores agricultoras coletoras professores agentes indígenas de saúde E crescer é um longo e trabalhoso processo mediado por objetos que adornam seus corpos e que eles fabricam ou são fabricados por eles para brincar e intervir no mundo Cohn 2000a 2000b 2002a 2012 e por diversas relações de comensalidade de nominação de amizade formal Além da corporalidade importante local de produção da pessoa e da sua infância as crianças indígenas podem assumir também um importante papel o de mediadoras Habitualmente falase em mediação cosmológica apenas no 6 A importância dos sentidos e do desenvolvimento dos órgãos responsáveis por eles assim como a ornamentação corporal que o permite e produz já estava indicada na bibliografia sobre os povos jê de que fazem parte os Xikrin ver Seeger 1980 Turner 1995 Vidal 1992 7 Incidentalmente isso vale para qualquer pesquisa que lide com as concepções de infância e é um dos maiores desafios metodológicos do pesquisador qual a pergunta certa a fazer À pergunta o que é uma criança cada psicólogo juiz conselheiro tutelar xikrin camponês enfim terá uma resposta Além de reunir e analisar todas estas possibilidades de respostas que dirão muito a questão é então qual pergunta fazer e esta só pode ser aprendida em campo vendo o que é relevante para nossos interlocutores a que eles remetem quando tratam destes temas Os Xikrin remetem a ver a ouvir a aprender e eram estas as pistas que eu tinha portanto que seguir 226 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 caso dos xamãs mas a pesquisa etnográfica revelou que esta atuação pode estar também a cargo das crianças Este é o caso fascinante dos Maxakali de Minas Gerais cujas crianças são mediadoras entre os mundos as famílias as pessoas Diz Alvarez e este é só um exemplo é como ela começa a conversa A criança é o fio que tece as várias dimensões da sociabilidade Maxakali É através dela que se inaugura a relação com o outro De acordo com as regras de etiqueta Maxakali devese primeiro dirigirse às crianças particularmente aos bebês quando em visita a um grupo familiar aliado ou em qualquer outra situação de distância social Só após agradar as crianças carregar e acariciar os bebês é que o visitante deve dirigir o olhar e a palavra aos seus anfitriões adultos Alvarez 2004 p 53 As crianças maxakali são também o motor da vida ritual As crianças contanos a autora são o maior bem trocado entre as mulheres e os espíritos durante os rituais Na iniciação trocase o filho a ser iniciado que passa da casa doméstica materna à cerimonial masculina aos cuidados dos pais pelos filhos mortos espíritos para que as mães possam continuar cuidando deles São estes espíritos que mais do que cantores são o próprio canto Alvarez 2004 p 57 que dão aos viventes as músicas dos rituais Além disso a cada ritual são apenas as crianças e os jovens o suporte para a manifestação dos espíritos Com seus corpos transformados em yãmiy através das máscaras cerimoniais e as pinturas corporais especificas se transformam nos próprios espíritos presentes na terra Cantam e dançam para os humanos atualizam assim a união entre os viventes e os espíritos Alvarez 2004 p 6061 Sem crianças não há ritual sem ritual e canto não há formação de pessoas e não há maturação dos viventes Espíritos quando crianças devem também maturar no além cantando todo ano para os viventes até poderem mandar seus filhos feitos no além para cantar Sem eles não há ritual e novamente não há produção de pessoas maxakali E com as crianças as casas as famílias as pessoas se ligam mensagens chegam e as crianças levam as palavras para que a conversa daqueles que não podem se falar diretamente possa acontecer Os Maxakali e este belo texto são para mim o melhor exemplo de como para os indígenas as crianças são importantes consideradas em sua condição atual cuidadas mas parte crucial de seu mundo São seres em maturação que devem ser cuidados em vida e na morte enquanto lá também maturam que devem ser instruídos e o texto nos apresenta uma bela descrição dos momentos em que o são que não são confundidos com os adultos mas que têm uma atuação crucial no cotidiano e no ritual tornando possível e efetiva C Cohn Concepções de infância e infâncias 227 as relações entre os vivos e entre os vivos e os mortos E que torna possível a própria maturação e construção de pessoas8 As muitas infâncias indígenas Assim a experiência da infância e seu valor é diversa para cada socie dade indígena Por isso não podemos confundir suas concepções de infância com as nossas Nem umas com as outras Por isso a cada vez que nos dedicarmos a estudar com e sobre as crianças indígenas temos que nos debruçar primeiro sobre como as crianças e a infância são pensadas nestes lugares Não podemos pressupor uma criança e uma infância universais mas talvez não possamos também pressupor uma noção de infância particular mas sempre válida Assim temos belíssimas descrições de como os indígenas veem suas crianças e como elas atuam em seus aprendizados Codonho 2007 em espaços de mediação nas escolas Marqui 2012 Limulja 2007 nas suas andanças e circulação pelos espaços Correia da Silva 2011 Temos também ótimas descrições sobre como a infância é pensada a partir de passagens e categorias de idade Fernandes 1976 Cohn 2000a Nunes 2003 Mas nada nos indica terminantemente que temos uma noção de infância para os indígenas Como para os Maxakali temos sempre a percepção da sua condição percepção esta respeitosa das condições efetivas dela e de sua autonomia e capacidade Tassinari 2007 cuidados especiais práticas para sua maturação e para garantir seu aprendizado e que estejam prontas para aprender práticas de ensino e aprendizagem Mas não uma elaboração como esta que fizemos no ocidente sobre esta sua condição especial As crianças xikrin são os peque nos meprire como para o maxakali são filhos como o são também os filhotes kitoko Nestes mundos perspectivos em que a humanidade e o paren tesco são sempre construídos ver Viveiros de Castro 2002a Souza 2004 Lima 1996 crianças são como todos e continuamente humanizadas pessoa lizadas Condizente com a importância da noção de pessoa para os ameríndios perguntarse sobre as infâncias indígenas é portanto perguntarse sobre como um processo que é mais geral incide sobre as crianças e é vivido por elas9 8 Este papel de mediadoras é exercido também pelas crianças Guarani de Mbiguaçu como aponta Oliveira 2005 em especial com o mundo dos nãoindígenas tomando uma frente e uma im portância para o coletivo que desafia a noção de infância como incompletude e incapacidade 9 Sugeri que falar de criança neste sentido é sempre mais seguro que falar em infância termo carregado de sentido do qual é difícil se despregar e desapegar Cohn 2005a O que afirmo aqui não está em contradição com isso Ou seja não significa relativizar a infância fazendo um inventário de infâncias possíveis um exercício que não me parece propriamente antropológico mas perceber sempre que o modo como se pensa a experiência que as crianças podem e devem ter informa o modo como se age sobre elas e também informa mas não determina o modo como elas agem sobre o mundo Ao longo do texto teremos oportunidade de discutir o gerenciamento que as crianças fazem de suas infâncias 228 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Mais que isso não devemos trocar seis por meia dúzia e acreditar que poderemos isolar infâncias indígenas particulares Ou seja na recusa da infância ocidental como definidora das indígenas buscar as infâncias indígenas como se elas pudessem ser definidas como esta a ocidental Mais devemos pensar que pode haver muitas infâncias nestes mundos indígenas muitas infâncias xikrin muitas infâncias guarani maxakali10 Este risco de se passar a definir infâncias indígenas pode ser discutido por Mantovanelli 2010 2011Quando foi estudar a infância kaingang em Icatu SP tendo lido a bibliografia sobre estas crianças em diversos povos indígenas Mantovanelli se imaginou chegando à aldeia e sendo rodeada por crianças No entanto por muito tempo seu campo foi marcado por uma busca contínua destas crianças que sempre pareciam dela fugir Tudo foi se esclarecendo quando ela percebeu a importância do espaço doméstico para as mulheres e suas crianças e a permanência destas nos seus quintais e que ela e as crianças estavam sendo ensinadas na ética do respeito e da restrição que devem reger as relações De fato as crianças que via eram as que entravam e saíam das casas em que a antropóloga tinha maior convivência Sua pesquisa rendeu uma reflexão sobre as concepções de infância para estes Kaingang a partir da noção de restrição e através das mulheres companhias frequentes da antropóloga e que sempre tinham uma história para contar ou para disputar sobre as graças de suas crianças Mas rendeu também uma reflexão metodológica que vale aqui retomar a invisibilidade das crianças kaingang lhe revelou o quanto ela havia ido a campo com uma espécie de noção generalizante da infância indígena como se ser criança indígena fosse igual em todo lugar em todo o mundo indígena Obviamente as etnografias lhe mostravam as particularidades destes modos de ser criança mas parecia sempre haver algo em comum sua mobilidade sua autonomia sua circulação pelas casas seu papel de mediadoras que contrastava fortemente com o que via em Icatu Assim devemos cuidar para não cair em outros essencialismos ao negar essencialismos anteriores Como nos conta Mantovanelli 2010 p 10 É nesse cenário profilático que coloco as crianças do Icatu Antídoto Pois sua invisibilidade foi o antídoto para meu olhar viciado Se essas crianças foramme invisíveis é porque eu tinha de antemão pintado suas cores Ou seja como não vi aquilo que imaginei que veria elas desapareceram E só depois elas reaparecem para dizer 10 Agradeço a Bruno Henrique Rodrigues de Oliveira pela provocação certeira feita no debate durante as Jornadas sobre como eu poderia estar certa de definir uma infância para os Xikrin e se não seria mais produtivo supor como estávamos exercitando em outros campos a possibilidade de várias infâncias mesmo entre os Xikrin C Cohn Concepções de infância e infâncias 229 nas minhas anotações de caderno de campo que não se tratava de invisibilidade factual mas de uma maneira específica de lidar com as relações sociais e os espaços no mundo Se invisíveis ou reclusas em seus quintais de um lado de outro as crianças são os assuntos favoritos das rodas vespertinas nas varandas das mulheres Com um tom de uma quase disputa mulheres exibem na fala seus filhos e netos destacandoos como protagonistas do que há de melhor em termos de existência humana Assim as crianças do Icatu SP que estavam longe dos meus olhos estavam em meus ouvidos trazidas pelas falas de suas parentas Mas como as crianças indígenas veem os seus mundos Este é um investimento analítico menos feito Neste texto ele é importante para mostrar a relação entre estas abordagens e o investimento que a meu ver ainda devemos fazer Correia da Silva 2011 acompanhou os meninos em suas andanças pela aldeia e seus arredores e nos descreveu suas atividades e como se relacionam com o mundo e com as pessoas Oliveira 2005 mostrou como elas ocupam e atuam em diversos espaços a escola o coral a casa de reza e atuam como mediadoras Marqui 2012 mostrou como elas vivenciam a escola e também os momentos não escolares Mas talvez pouco se tenha feito ainda para entender como elas entendem o seu mundo Fiz alguns esforços a este respeito sobre as crianças xikrin lendo e interpretando seus desenhos uma atividade que elas adoram fazer desde que na escola aprenderam a desenhar em papel Tenho um grande repertório de desenhos que ganhei deste seu gosto por desenhar em todos os lugares Tendo levado uma vez comigo papel sulfite e lápis de cor por sugestão de minha então orientadora Lux Vidal tive o material requisitado a todo o momento e passei dias semanas acompanhando diversos grupos de crianças desenhando11 Vários deles subsequentemente me deram o desenho Depois de feitos os desenhos não lhes servem mais e não necessitam ser conservados mostrados para todos ou comentados Logo estão amassados rasgados e são jogados fora Guardados mesmo só na escola e pelas antropólogas12 Fiz uma primeira leitura deste material em minha dissertação Cohn 2000a mostrando como estas crianças viam seu mundo neles estava tudo o que lhes interessava e o modo como elas organizavam as coisas no papel e se organizavam para desenhar eram todas muito reveladoras Depois reli o material que foi crescendo com o tempo e mostrei como estas crianças reagiram a uma tarefa escolar que consistia em desenhar sua cultura Na realização desta tarefa ficou 11 Por sugestão de minha orientadora Lux Vidal a quem agradeço por esta e pelas demais sugestões e pela orientação que me permitiu entender um pouco mais das crianças xikrin 12 Fiz uma reflexão sobre o uso de desenhos em estudos com crianças em Cohn 2005b 230 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 muito clara suas percepções do valor que a cultura ganhou no mundo atual e do valor político de cultura Carneiro da Cunha 2009 Elas desenharam então para seus professores nãoindígenas sua cultura sua tradição Se como eu tinha observado num mesmo desenho poderiam conviver como convivem em seu mundo aviões pescarias cubos escolares motivos de pintura corporal futebol danças e máscaras rituais para esta tarefa desenharam apenas o que aos olhos dos professores aos olhos nãoindígenas seria sua cultura os meninos desenharam as danças e seus apetrechos arcos e flechas canoas enquanto as meninas dedicaramse exclusivamente à pintura corporal Este trabalho mostra claramente como estas crianças são conscientes de sua condição de crianças e indígenas respondendo neste contexto escolar com muita clareza sobre como deveriam se apresentar como crianças que desenham e que são indígenas Cohn 2008 2010 Assim o modo como elas atuam como crianças é informado pelo modo como se define o que é ser criança nestes lugares Assim também elas respondem a outra necessidade de definição aquela que remete ao ser indígena o que igualmente define sua condição de sujeito neste mundo atual Como apontarei ao longo do texto as crianças atuam em resposta e cientes ao modo como se pensa sua infância Crianças em cenários institucionais A educação é uma das áreas mais frequente e diretamente relacionadas à infância e tem cada vez mais se voltado a uma conexão com a sociologia da infância com resultados muito frutíferos Por ela se tem feito etnografias de escolas que buscam mostrar o modo como as crianças interagem e agem nas escolas Estes trabalhos nos permitem ver concepções de infância e as práticas nas escolas por parte dos adultos e das crianças Este campo vasto merece um tratamento amplo e torna difícil a seleção de textos exemplares para comentários aqui Mas antropólogos também têm se dedicado a estudos em escolas Em geral estes estudos referemse a experiências escolares que têm as populações indígenas como público Este campo vastíssimo e com grande produção é particularmente interessante por desafiar a ideia de escola ou colocar a escola em seu limite mesmo quando a expectativa indígena parece ser a de ter uma escola como a dos brancos Cohn 2005b Tassinari e Cohn 2009 Em geral também falta à análise sobre a prática escolar indígena uma reflexão sobre as infâncias indígenas que deveriam ser respeitadas em cada desenho de uma nova escola indígena Cohn 2009 Mas esforços têm sido feitos também para dar conta de experiências escolares nãoindígenas Refirome à excelente etnografia e análise de Malheiros Moraes para ilustrar como a análise antropológica da experiência C Cohn Concepções de infância e infâncias 231 escolar pode revelar a construção de uma infância neste caso a infância escolarizada Malheiros Moraes 2012 p 34 A etnografia em uma escola de ensino infantil revelou a regência da fala das crianças Estes seres definidos como sem fala infante de modo a darselhes ordem e sentido assim como a constituição de um corpo dócil e ao mesmo tempo participativo Sobre eles normalmente a atenção é focada em processos de ensinoaprendizagem regidos pela professora sobretudo em sala de aula e em uma constituição de hábitos que frequentemente se busca extrapolar para a família que deve agir de modo coerente com os ritmos e as disciplinas criados pela escola Neste trabalho Malheiros nos permite ver como se aprende a ser aluno Malheiros Moraes 2012 p 184 em um drama que deslinda e sobre o qual lembra O problema que se apresenta à instituição escolar é como manter este drama e resolvêlo de modo adequado a despeito de toda resistência ibid p 173 Neste contexto escolar o pedagógico e o pediárquico conceitos que empresta de Victor Turner complementamse para fazer o bom e o mau aluno Um o que responde bem à regência pedagógica e ganha a possibilidade de brincar no parquinho o outro que ao contrário faz bagunça e falha portanto na relação pedagógica tendo negado assim o jogo pediárquico Espaços e tempos o da sala de aula e afins e o do parquinho se complementam ao ponto da passagem ao ensino fundamental cuja vivência foi acompanhada pelo pesquisador ser sentida exatamente pela perda do parquinho substituído pela quadra esportiva Este processo leva as crianças a uma idade da razão e da memória e ao lamento da perda do parquinho e da possibilidade de têlo visto reformado Malheiros Moraes 2012 p 188 Esta excelente etnografia nos demonstra exatamente que concepções de infância informam a atuação sobre as crianças tendo por fim constituir certa infância esta infância pressuposta e como lembra o autor aparecendo como ameaçada Afinal se a escola de educação infantil enfatiza um determinado modo de ser criança é porque essa infância parece ameaçada Malheiros Moraes 2012 p 53 Em diversas ocasiões demonstradas pelo autor ela extra pola seus muros ao afirmar os modos escolares como os adequados e devendo ser seguidos pelas famílias Ou seja a escola busca produzir certa infância e o faz Mas demonstra também que as crianças a isso resistem constantemente como por exemplo no momento da bagunça subversão da condição de aluno É por isso que o problema da escola é manter o drama apesar das resistências porque à constituição de certa infância a escolarizada as crianças reagem tanto quanto aprendem a ser alunos Mais uma vez concepções de infância que têm seu papel em ambos os lados do jogo informam as interações de adultos e crianças e a construção mesmo desta infância 232 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Malheiros Moraes nos provoca igualmente sobre a condição de pesquisador de infâncias afinal não somos parte deste mesmo drama Se Tassinari 2009 já problematizava a possibilidade de pesquisadores escolarizados pesquisarem com eficácia infâncias nãoescolarizadas Malheiros Moraes problematiza o pressuposto de dar voz às crianças o que ademais é parte importante da prática pedagógica nas escolas Em momento de otimismo mas que não se apresenta como resolução dogmática sugere que a pesquisa antropológica se faz possível por enfatizar a escuta da fala das crianças ao contrário da prática pedagógica que é de regência destas falas Tassinari 2009 p 68 Mas algo a mais se coloca a qualidade intercorpórea da experiência do pesquisador em campo Malheiros Moraes 2012 p 68 que faz dele aos olhos das crianças algo entre um aluno e um bom aluno um corpo dócil sentado atento observante e um adulto13 Lembranos portanto que a concepção de infância é algo que o antropólogo deve cuidar para não levar a campo Lembranos também que é em determinada condição aquela a ele atribuída pelas crianças e pelos lugares com quem e onde desenvolve sua pesquisa que as crianças lhe falam Situação que jamais podemos deixar de ter em mente em nossas pesquisas Nas políticas públicas de saúde as concepções de infância entram fortemente em jogo Este é o caso de um exemplo extremo o dos diagnósticos da depressão infantil Eunice Nakamura 2004 2009 acompanhou casos em que crianças após inúmeros périplos e passagens por diversos equipamentos de saúde e especialidades médicas recebem o diagnóstico de depressão Em visita a estas crianças e suas famílias ela também ouviu sua versão sobre a doença o diagnóstico o tratamento A etnografia é interessantíssima e instigante Em especial porque revela que este diagnóstico é sempre feito tendo por referência uma imagem de infância normal ou seja uma concepção de infância Há muito se demonstra que a saúde define a normalidade e o anormal e que isto afeta também a definição de família de maternidade e de sua normalidade14 O trabalho de Nakamura demonstra que a medicina atua também na definição de uma normalidade da infância É muito relevante o 13 Se o pesquisador era visto como aluno e adulto pelas crianças e tratado de tio apropriação de termo de parentesco que o autor discute ele é visto pelas professoras como uma espécie de estagiário alguém de quem não se teme a crítica uma espécie de iniciante a quem se ensina Sua afirmação de que apresentará seu trabalho ao seu professor na universidade parece exercer um importante papel nisto 14 Para o Brasil especificamente ver Freire da Costa 1979 e Rohden 2009 Em tempo este último livro nos liga a outra questão aqui não tratada ver Cohn 2005 o próprio debate sobre o aborto e o infanticídio referese à questão sobre quando inicia a vida Este debate está muito presente nas discussões e a enorme polêmica sobre o infanticídio indígena Em todos estes casos concepções de infância e de pessoa estão em debate e embate C Cohn Concepções de infância e infâncias 233 que dizem os médicos de seus pacientes diagnosticados com depressão Nas palavras de Nakamura 2004 p 119120 A percepção que os profissionais têm de determinados com portamentos infantis segue assim padrões de normalidade e de anormalidade em geral semelhantes àqueles identificados no discurso popular pois tratase em ambos os casos de adultos falando de crianças de seus comportamentos e de sua adaptação ou inadequação a normas A grande diferença nesse contexto está no fato de os médicos associarem a anormalidade à patologia o desvio à doença Esses comportamentos infantis são considerados adequados quando expressam determinados padrões esperados e culturalmente aceitos sendo inadequados todos aqueles que se encontram fora dos padrões vigentes de acordo com as seguintes características 1 Sociabilidade Padrão normal aceito crianças devem ter amigos brincar Padrão anormal observado crianças não têm amigos não brincam e são quietas 2 Obrigações e deveres na escola ou na família Padrão normal aceito crianças devem ser organizadas e adaptadas Padrão anormal observado crianças não obedecem a regras apresentam prejuízo no comportamento adaptativo não querem ir à escola faltalhes atenção e apresentam queda no rendimento escolar 3 Manifestações de humor e de temperamento Padrão normal aceito crianças devem ser felizes bem humoradas Padrão anormal observado crianças são inquietas agitadas agressivas irritadas 4 Maneiras adequadas de agir Padrão normal aceito crianças devem saber lidar com o mundo e com situações adversas têm de ter autoestima e segurança Padrão anormal observado crianças têm dificuldade para lidar com situações que exigem muito ou que as pressionam Assim ao basear seus diagnósticos no que Nakamura 2004 p 120 2009 chama de estereótipos positivos ou negativos os médicos estão estabelecendo a normalidade da infância ou nos meus termos estão tomando por referência uma concepção de infância para julgar se cada criança está adequada ou não a esta condição mesmo a da infância Trocando em miúdos este seria outro modo e não aquele a que o senso comum sempre se refere de negar a infância às crianças julgando seus modos como nãoinfantis ou seja como de uma infância errada a ser corrigida 234 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Neste excerto Nakamura nos chama atenção para a coincidência entre o julgar do médico e da família todos em sua condição de adultos Se olharmos para as famílias que como nos conta passam de atordoadas a aliviadas com o diagnóstico que lhes permite reorganizar a vida familiar perceberemos algo diverso mas complementar O discurso das famílias aponta para uma explicação popular da depressão infantil que é insuficiente para abarcar toda a variedade de alterações de comportamentos infantis por outro lado a explicação médica parece plausível mas não é incorporada Nessa aparente lacuna entre uma noção relacionada à doença e a ausência de outra noção convincente configurase uma conotação popular sobre depressão infantil que expressa a teia de significados sobre a qual se sustentam as experiências populares de depressão infantil ou daquilo que se poderia denominar simplesmente estados infantis alterados As famílias quando falam sobre depressão infantil expressam uma noção mais ampla e profunda a qual se opõe à noção médico científica da patologia Tratando de um problema que não dominam mas que passa a fazer parte de suas preocupações cotidianas as famílias revelam mediante suas experiências algo mais sobre os comportamentos das crianças ao mesmo tempo em que evidenciam determinadas formas de organização social e de manifestação da cultura pautadas pela maneira como os adultos se relacionam com as crianças Nakamura 2004 p 149150 Olhando para as famílias vemos algo mais do que os estereótipos de que fazem uso os médicos vemos também as relações que os adultos efetivamente estabelecem com suas crianças Neste caso relações que se apoiam no discurso no diagnóstico e na prescrição médica para se reorganizar mas e isso é muito relevante relações15 Em outro contexto embora na cena hospitalar mas colocando em jogo outros atores Rafael Fioravanti reflete sobre a recompensa do trabalho voluntário exercido no hospital infantil Pequeno Príncipe em Curitiba Lembrandonos que o voluntariado ligase à dádiva e portanto à troca e que esta deve ser vista em sentido amplo e jamais simplista ele enumera de início e com facilidade uma série de trocas que partem dos voluntários aos demais crianças que são alegradas famílias cujas crianças são alegradas profissionais de saúde cujo trabalho pode ser facilitado o hospital na 15 O estudo trata das relações familiares mas seria muito interessante complementálo com a visão que as crianças têm de sua condição diagnóstico e tratamento e então das relações que estabelecem e como as veem C Cohn Concepções de infância e infâncias 235 possibilidade por exemplo de diminuir o tempo de internação Mas o autor levanta uma questão bem menos simples de responder e objeto de sua pesquisa o que os voluntários recebem ou esperam receber em troca Trago aqui a descrição do pesquisador de dois dos muitos momentos de sua etnografia em que vê se revelar a pista a ser tomada ou seja a referência à alegria das crianças como a retribuição do esforço Uma de minhas entrevistadas disse numa certa ocasião As crianças esquecem que estão doentes Este comentário me fez refletir sobre como as crianças eram percebidas pelos voluntários Durante a pesquisa de campo eu notava que as crianças estavam conscientes sobre a sua condição de doente ou então eram lembradas sendo pelo fato de estarem longe das suas relações familiares amigos colegas de escola e de estarem fora dos espaços que costumavam frequentar e até mesmo pelo uso de recursos médicos ou pelo acesso intravenoso geralmente em seus braços presos por uma tala de madeira ou plástico que impossibilitava os movimentos de uma de suas mãos Uma noite quando acompanhava Marta voluntária de 51 anos edu cadora durante uma visita à enfermaria da Clínica Geral perguntei sobre a sua experiência com o trabalho voluntário Chorando muito ela falou que se sentia feliz ao conseguir fazer uma criança sorrir por mais fechada que a criança esteja Era no sorriso das crianças que estava o reconhecimento que ela encontrava no trabalho voluntário Conseguir ter feito uma criança parar de chorar e começar a sorrir era a sua recompensa Fioravanti 2006 p 9192 Estes momentos indicam ao pesquisador o que de fato está em jogo restituir a estas crianças sua infância Porque os voluntários parecem considerar que as crianças internadas no Pequeno Príncipe tiveram a sua infância interrompida pela doença Fioravanti 2006 p 96 Ou seja novamente confrontamonos com uma concepção de infância que define a atuação do adulto neste caso um voluntário em um hospital para crianças das quais se espera respostas que lembrem a condição infantil sorrisos alegria despreocupação falta de dor Não seria de se espantar que estas crianças lidassem com estas expectativas ao se defrontar com fami liares médicos e voluntários O autor não se dedica a estudar as crianças e suas expectativas embora registre os gritos de euforia com que recebem os voluntários e os materiais que trazem para as atividades mas não seria de se espantar que elas estivessem absolutamente conscientes não exatamente de sua condição não é este o ponto mas das expectativas a elas devo tadas 236 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 A proteção da infância Voltando nossa atenção para a questão da proteção à infância temos a possibilidade de ver um jogo em que a parte das crianças pode ou não ser vista pelos pesquisadores Vejamos dois estudos um em que a voz dos no caso adolescentes não é ouvida ao longo do processo observado e a pesquisadora não busca ouvilos e outro em que as ações as percepções e as relações estabelecidas pelas crianças sob tutela do estado são o foco mesmo da pesquisa Iniciemos com uma pesquisa etnográfica nas audiências de conhecimento nas Varas Especiais da Infância e da Juventude na cidade de São Paulo Neste caso a análise tem por foco o próprio processo judicial e sua cena e busca ver como se define a culpabilidade e a pena dos jovens infratores acusados Aqui não se discute a fundo a parte que jogam os adolescentes em julgamento Mesmo porque como diz a autora eles são figurantes assim como seus familiares os promotores e os advogados de defesa frente ao juiz que tem o papel principal Miraglia 2005 p 9293 Se não é o papel ativo do adolescente que está em jogo nesta análise quetem por foco o processo judiciárioexatamente por isso ela nos é particularmente interessante para mostrar que é uma concepção de infância que está em jogo Analisando as cenas em que o estado os adolescentes e suas famílias disputam sua culpabilidade e definem as medidas socioeducativas adequadas ao ato infracional e demonstrando a supremacia do juiz nestas cenas e o papel de figurante de família e adolescentes Miraglia demonstra ser este um espaço de poder em que entre outras coisas está em disputa a ideia mesmo de menoridade Diferente é a abordagem de Ribeiro 2011 focada no modo como as crianças atuam em uma situação literal de insulamento quando são mandados com suas famílias tidas como de risco à ilha dYeu França para um período de residência provisória na associação Caval e que visa a reestruturação familiar Claramente aqui estão em jogo tudo o que temos arrolado acima uma concepção de infância de família de normalidade E tratase de um caso de intervenção estatal em famílias consideradas incapazes de criar seus filhos sozinhas Vivendo em uma ilha cercados de famílias igualmente consideradas desestruturadas de pais incapazes de criar seus filhos além dos educadores e da população local com quem também convivem estas crianças estabelecem uma série de relações e de estratégias que têm por pano de fundo o estigma Fazendo a ligação entre os adultos que delas se ocupam mas também entre suas famílias e a população local Ribeiro 2011 p 48 elas vivenciam relações com colegas de escolas os pais muitas vezes apenas o pai ou a mãe nestas famílias majoritariamente monoparentais as assistentes maternais C Cohn Concepções de infância e infâncias 237 cujas casas frequentam e conhecem mais a ilha que os seus pais que também foram designados a morar lá como disse uma mãe à pesquisadora O mais rico e mesmo desconcertante do artigo é a demonstração de como nesta teia de relações as crianças os grandes acima de seis anos de quem se espera capacidade de raciocínio e discernimento Ribeiro 2011 p 43 atuam de modo a passar da cumplicidade e cooperação aos pais à recusa em se ver identificados a eles Assim quando defendem seus pais atuam para contribuir com a melhora da situação da família porém quando silenciam e aqui a autora chama a atenção para a diferença entre silêncio e palavra ao terem presenciado as transgressões da mãe ou do pai às regras da instituição e que são também do conhecimento dos educadores eles estão fazendo bem mais do que cooperar ou defender os pais estão se diferenciando destes Ribeiro 2011 p 53 Em especial com as assistentes maternais chamadas tata podem estabelecer ligações que extrapolam seu tempo de permanência na ilha criando relações que poderão ser ativadas em outros momentos da vida Assim entre cooperar com os pais e diferenciarse deles convivendo em família e nas famílias das crianças de Caval e com a população local com educadores e assistentes maternais estas crianças colocam em atuação não só seu discernimento e raciocínio em reconhecer as situações lindamente demonstrados no artigo mas também em reconhecer as concepções de infância e de família que lhes levaram a esta situação insular e que lhes pode retirar delas ou permitirlhes retornar em outra condição Esta capacidade dos meninos e das meninas de se ver com sua condição sempre me impressionou também na rica etnografia feita por Gregori 2000a que dentre outras coisas demonstra como elas respondem aos diversos atores institucionais de acordo com as expectativas destes Esta é parte importante de sua viração e permite a circulação que elas fazem entre famílias abrigos e grupos nas ruas Criando e mantendo diversas relações entre estes ambientes eles permitem que se vivencie a infância de modos diversos e para se habilitar a cada um deles capacidades e incapacidades diversas propriedades ou misérias riquezas ou lacunas têm que ser ressaltadas Longe de viver em desorganização e abandono organizamse em grupos com relações muito estabelecidas relacionamse cooperativa ou conflitantemente com a vizinhança permanecem mudamse retornam à família vão aos abrigos Enfim não só vivem sua infância como reagem com destreza a todos os estereótipos que lhes são voltados fazendo uso deles em sua circulação e viração Esta capacidade é mais aparente e impactante na etnografia realizada por Calaf 2008 entre os meninos de rua em Brasília Ambas as situações são 238 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 semelhantes em um ponto que sempre acho importante ressaltar estas crianças de rua o são não por falta de casa ou família mas por valorizarem sua liberdade Em ambos os casos transitam entre casa e rua Mas para a Galera em Brasília um aspecto se incorpora a este cenário o discurso a prática e a disposição para a sexualidade São crianças que transitam também como já se apontava na etnografia de Gregori como já se viu com os grandes de Caval entre a infância e sua recusa Eles marcam esta sua infância exatamente na diferença que estabelecem com outra infância a de apartamento daqueles a que se referem como filhinhos de papai ou bodinho A diferença não está na condição de ser criança que eles não recusam mas na tutela Neste sentido os meninos e meninas da Galera não aceitam sua posição de crianças não querem ser tutelados e não aceitam estarem situados em uma posição relacional de subjugação frente aos adultos Afirmam então serem crianças sim mas crianças diferentes são donas de si pensandose e repensandose continuamente e tentando fugir aos mecanismos de controle e submissão Calaf 2008 p 44 Estes meninos e meninas desafiam a noção de infância naquilo que ela tem de mais central porque eles afirmam e praticam sua sexualidade e sua maternidade e paternidade E o fazem como modo de definir sua infância na Galera a disposição ativa perene para o sexo é fator fundamental na construção das identidades masculinas e femininas constituindose o status de saber mais sobre o sexo o ser quente condição e prova de não ser mais criança Se a sexualidade das mulheres tal como as identidades sexuais masculinas é na Galera atrelada ao desejo e ao prestígio é também tal como aparece em um segundo momento de conversas orientada em direção à construção de si por meio de categorias como o respeito e a vergonha Calaf 2008 p 88 A etnografia fina nos mostra que esta prática e este discurso sobre a sexualidade que faz gente grande ou muleques são marcados pelo aprendizado e também pelo segredo É necessário dominar a técnica e é necessário para isso aprender o que demanda esperteza tríade valorizada e definidora Calaf 2008 p 101 E para as meninas o controle da vontade de sexo de seus parceiros que é definidora de sua própria sexualidade e também de seu controle contraceptivo na Galera as meninas se colocam em posição de iniciativa sexual de assumir o desejo sexual mas também de deverem controlar o desejo a sua reputação e a reprodução Calaf 2008 p 126 C Cohn Concepções de infância e infâncias 239 A contracepção e a concepção são controversas se se evita se pode também tirar se pode também assumir o projeto da maternidade e da paternidade Mas esta leva a um novo equilíbrio entre a casa e a rua e a uma nova negociação sobre a autonomia desta criança que fez criança E se esta autonomia não é respeitada se a jovem mãe é tratada em casa como criança o retorno às ruas levando o filho é a solução Calaf 2008 p 142 Afinal ser pai e ser mãe deve ser coerente com os valores de liberdade desta vez associados à responsabilidade por outrem que só reforça o primeiro ter filho é não mais ter que obedecer como filho ou filha Calaf 2008 p 149 Tudo isso aqui tão esquematizado acontece em meio à violência sofrida às disputas ao abandono dos companheiros a arrependimentos a perdas de amigos Nada aqui diz que essa é uma infância mais feliz ou mesmo mais infeliz Mas o que importa reter e deve sempre ser dito é que tudo aqui diz que essa é uma infância E é como todas uma infância gerenciada também pelas crianças que em suas práticas definem sua própria condição infantil Casos extremos como este crianças que fazem crianças como Calaf intitula sua dissertação mostram com clareza o gerenciamento que as crianças fazem de suas infâncias Uma clareza que elas nos cospem na cara e que em outros lugares não reconhecemos como na tirania cotidiana exercida pelas crianças em suas famílias burguesas definindo o que a família vai fazer onde vai passar as férias o que vai comer o que vai ver na TV A dificuldade em conceber outras infâncias Termino este artigo lembrando mais uma vez da dificuldade que nós antropólogos temos de reconhecer estas outras infâncias Já havíamos visto esta dificuldade reaparecendo na etnologia indígena nos estudos sobre as crianças indígenas e nas pesquisas feitas em contextos escolares Agora levanto outra provocação Durante todo o texto tenho chamado a atenção para o modo como a antropologia nos permite entender outros modos de ser criança que nem sempre são reconhecidos nas políticas públicas de saúde educação e no direito mesmo naquelas políticas mais bemintencionadas e mais afeitas aos direitos da criança e do adolescente Porém algumas situações nos revelam que não são só os nossos préconceitos antropológicos como foi o caso da expectativa que Mantovanelli levou a campo que limitam o bom exercício da antropologia são também nossos pressupostos como cidadãos que somos como humanos que somos e que também arriscamos carregar a campo Estes preconceitos agora assim mesmo preconceitos já impediram que víssemos as crianças como sujeitos plenos e capazes já impediram que 240 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 víssemos as crianças indígenas em suas especificidades e não como parte de uma suposta universalidade da infância ou pior como os infantes da infância da humanidade que eram os indígenas até poucas dezenas de anos atrás e ainda o são no senso comum já impediram que escutássemos e não regêssemos suas vozes já impediram que víssemos em geral as crianças e as infâncias em suas multiplicidades e em seus modos de gerenciar suas infâncias Agora nos regozijamos com a nossa recémadquirida capacidade de trazer à antropologia as vozes e as experiências das crianças e reconhecer suas ações relações e capacidades Mas nem sempre isso é feito sem que barreiras reapareçam Parece que até para antropólogos os limites se impõem Isso foi discutido por Begnami 2010 ao refletir sobre o modo como outros antropólogos e antropólogas reagiram à sua etnografia Assim como Calaf ela ouviu das crianças durante a pesquisa de campo num bairro periférico de São Carlos SP relatos sobre suas práticas sexuais e suas sexualidades Foi questionada mais de uma vez se não deveria denunciar o abuso sexual sofrido por estas crianças ou se deveria realmente ter acreditado no que elas diziam Obviamente diziase a ela essas histórias eram mentira dado que crianças não tem vida sexual À questão de ética ficam as dúvidas e quando como no caso que acabamos de comentar da Galera de Brasília e era também o caso no Gonzaga a sexualidade não é vivida como violência não é imposta é entre pares e define uma infância particular tratase aí também de um caso de denúncia No caso da flagrante mentira fica a questão estamos realmente prontos para ouvir das crianças o que quer que seja que elas venham nos contar Outros antropólogos já viveram esta situação e alguns refletiram sobre isso Viveiros de Castro 2002b já disse que a pergunta se devemos acreditar nos nativos é em si mesma um erro conceitual Goldman 2003 que se pegou acreditando no que não imaginava crível acabou por concluir que não faz a mínima diferença ele achar que é ou não verdade Toren 2006 propôs um exercício sobre as condições de avaliação de veracidade dos ou seja pelos nativos Assim quando questionada sobre a veracidade das falas dos meus interlocutores as crianças a própria antropologia foi questionada pois a questão da verdade é própria da antropologia As crianças do Gonzaga mantêm relações sexuais não devemos duvidar disso apenas pensar sobre o tratamento antropológico que daremos a isto elas fazem sexo temos que acreditar nisso Begnami 2010 p 45 Assim acrescento logo ao final este novo desafio como ouvir realmente as crianças Como efetivamente escutar suas falas como pergunta Malheiros Moraes Esta questão se coloca como uma extensão do estado da arte que C Cohn Concepções de infância e infâncias 241 apresentei de uma antropologia da criança consolidada mas que tem que se ver ainda com o diálogo e com a capacidade de debater e intervir no campo mais amplo da antropologia e no campo mais amplo ainda da atuação no mundo Uma atuação que seja efetivamente condizente com o que as crianças fazem e querem fazer de suas infâncias neste mundo em que as possibilidades de infâncias e de ser criança são inúmeras Para fazêlo devemos sempre levar em conta que de um lado a concepção de infância informa sempre as ações voltadas às crianças e de outro que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupálo seja para expandilo ou negálo É a partir dele que agem ou é contra ele que agem Por isso a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianças aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos das políticas públicas a elas voltadas de ações educacionais etc e aquela que atenta para o ponto de vista das crianças Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo ou todos os lados destas realidades multifacetadas ao menos devemos ter isso em mente que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como as crianças atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir mesmo que contra desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem Assim podemos inclusive deixar de debater qual a melhor abordagem a das crianças ou das políticas por exemplo na condição de admitir que serão sempre incompletas se desconsiderarem o outro lado mesmo quando não o abordem diretamente Referências ALVAREZ Myriam M Kitoko Maxakali a criança indígena e os processos de formação aprendizagem e escolarização Revista Anthropologicas Recife v 15 n 1 p 4978 2004 ARIÈS Phillipe História social da criança e da família 2 ed Rio de Janeiro LTC 1981 BEGNAMI Patrícia As crianças como interlocutoras das pesquisas antropológicas In II Seminário de grupos de pesquisa sobre crianças e infâncias Rio de Janeiro 2010 CALAF Priscila P Criança faz criança desconstruindo sexualidade e infância com meninos e meninas de rua Dissertação de Mestrado Universidade de Brasília UnB 2008 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Cultura com aspas São Paulo CosacNaify 2009 CODONHO Camila G Aprendendo entre pares a transmissão horizontal de saberes entre as crianças indígenas GalibiMarwono Dissertação de Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina 2007 242 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 COHN Clarice A criança indígena a concepção xikrin de infância e aprendizado Dissertação de Mestrado São Paulo Universidade de São Paulo 2000a Crescendo como um Xikrin uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os KayapóXikrin do Bacajá Revista de Antropologia São Paulo v 43 n 2 p 195222 2000b Noções sociais de infância e desenvolvimento infantil Cadernos de Campo São Paulo v 10 n 9 p 1326 2000c A experiência da infância e o aprendizado entre os Xikrin In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002a p 117149 A criança o aprendizado e a socialização na antropologia In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002b p 213235 Antropologia da criança Rio de Janeiro Zahar 2005a O desenho das crianças e o antropólogo reflexões a partir das crianças mebengokré xikrin Comunicação apresentada na 6ª Reunión de antropología del Mercosur Montevidéo Uruguai 2005b Educação escolar indígena para uma discussão de cultura criança e cidadania ativa Perspectiva Florianópolis v 1 n 1 p 485515 juldez 2005c A tradução de cultura os MebengokréXikrin 26ª Reunião Brasileira de Antropologia Porto Seguro 2008 wwwabantorgbrconteudoANAISCD Virtual26RBAgruposdetrabalhotrabalhosGT2033clarice20cohnpdf A infância nas propostas de educação escolar indígena diferenciada no Brasil 8ª Reunião de Antropologia do Mercosul Buenos Aires 2009 A tradução de cultura para os Mebengokré da perspectiva de suas crianças 27ª Reunião Brasileira de Antropologia Belém 2010 Children death and the dead the MebengokréXikrin case Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 selected editon 2010 CORREIA DA SILVA Rogério Circulando com os meninos infância participação e aprendizagens de meninos indígenas Xakriabá Tese Doutorado Faculdade de Educação Universidade Federal de Minas Gerais 2011 FERNANDES Florestan Aspectos da educação na sociedade Tupinambá In SCHADEN E Leituras de etnologia brasileira São Paulo Companhia Editora Nacional 1976 p 6386 FIORAVANTI Raphael H Voluntários do coração uma abordagem antropológica sobre o trabalho voluntário no Hospital Pequeno Príncipe Dissertação Mestrado Uni versidade Federal do Paraná 2006 httpdspacec3slufprbrdspacebitstream handle 18848362DissertacaoPequenoPrincipeRaphaelFioravantipdfsequence1 FREIRE DA COSTA J Ordem médica e norma familiar Rio de Janeiro Graal 1979 GOLDMAN Marcio Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos etnografia antropologia e política em Ilhéus Bahia Revista de Antropologia São Paulo v 46 n 2 2003 p 423444 C Cohn Concepções de infância e infâncias 243 GREGORI Maria Filomena Viração experiências de meninos de rua São Paulo Companhia das Letras 2000a GREGORI Maria Filomena SILVA Cátia A Meninos de rua e instituições tramas disputas e desmanche São Paulo ContextoUnesco 2000b LIMA Tânia Stolze O dois e seu múltiplo reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi Mana Rio de Janeiro v 42 n 12 p 113132 1996 LIMULJA Hanna C L R Uma etnografia da Escola Indígena FenNó à luz da noção de corpo e das experiências das crianças kaingang e guarani Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina 2007 LOPES DA SILVA A MACEDO A V L S NUNES A Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002 MALHEIROS MORAES Marcos Vinicius A construção de uma infância em uma escola pública de educação infantil da cidade de São Paulo Dissertação Mestrado Universidade de São Paulo 2012 MANTOVANELLI DA SILVA Thaís Regina Relações sociais e espacialidade das crianças do Icatu SP a casa e o quintal II Seminário de grupos de pesquisa sobre crianças e infâncias Rio de Janeiro 2010 Crianças invisíveis da reserva indígena Icatu SP Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos 2011 MARQUI Amanda Rodrigues Tornarse alunoa indígena uma etnografia de uma escola Guarani Mbya Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos 2012 MIRAGLIA Paula Aprendendo a lição uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude Novos Estudos Cebrap São Paulo n 72 p 7998 jul 2005 NAKAMURA Eunice A noção médicocientífica de depressão infantil uma visão histórica e sóciocultural do discurso de adultos sobre a infância In MOTA A SCHRAIBER L B Orgs Infância e saúde perspectivas históricas São Paulo Hucitec 2009 p 234264 Depressão na infância uma abordagem antropológica Tese Doutorado São Paulo Universidade de São Paulo 2004 NUNES Ângela O lugar da criança nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002b p 236277 Brincando de ser Criança contribuições da etnologia indígena brasileira à antropologia da infância Tese Doutorado Departamento de Antropologia do Instituto Universitário de Lisboa 2003 OLIVEIRA Melissa S Nhanhemboé infância educação e religião entre os Guarani de Mbiguaçu Cadernos de Campo São Paulo v 14 n 13 p 7589 2005 RIBEIRO Fernanda Bittencourt Lealdades silêncios e conflitos ser um dos grandes num abrigo para famílias Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v 11 n 1 p 4055 janabr 2011 244 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Fiocruz 2009 SEEGER Anthony O significado dos ornamentos corporais In Os índios e nós Rio de Janeiro Editora Campus 1980 p 4360 SOUZA Marcela Coelho de Parentes de sangue incesto substância e relação no pensamento Timbira Mana Rio de Janeiro v 10 n 1 2560 abr 2004 TASSINARI Antonella Concepções indígenas de infância no Brasil Revista Tellus Campo Grande v 7 n 13 p 1125 2007 Múltiplas Infâncias o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi a escola ou a sociedade contra a escola 33º Encontro Anual da Anpocs Caxambu 2009 wwwanpocsorgportalindexphpoptioncomdocmantaskdoc viewgid1935Itemid229 TASSINARI Antonella COHN Clarice Opening to the other schooling among the Karipuna and MebengokréXikrin of Brazil Anthropology Education Quarterly v 40 n 2 p 150169 Jun 2009 TOREN Christina Mind materiality and history explorations in Fijian ethnography London Routledge 1999 Como sabemos o que é verdade O caso do mana em Fiji Mana Rio de Janeiro v 12 n 2 p 449477 out 2006 TURNER Terence Social body and embodied subject bodiliness subjectivity and sociality among the Kayapo Cultural Anthropology Durham v 10 n 2 p 143170 May 1995 VIDAL Lux A pintura corporal e a arte gráfica entre os kayapóxikrin do Cateté In Grafismo indígena São Paulo Nobel 1992 p 143189 VIVEIROS DE CASTRO Eduardo B A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia São Paulo Cosac Naify 2002a O nativo relativo Mana Rio de Janeiro v 8 n 1 p 113148 abr 2002b Autora correspondente Clarice Cohn Programa de PósGraduação em Antropologia Social PPGAS Rod Washington Luís km 235 13565905 São Carlos SP Brasil Recebido em 12 set 2012 Aprovado em 9 out 2013

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Os conteúdos deste periódico de acesso aberto estão licenciados sob os termos da Licença Creative Commons AtribuiçãoUsoNãoComercialObrasDerivadasProibidas 30 Unported Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Concepções de infância e infâncias Um estado da arte da antropologia da criança no Brasil Conceptions of infancy and childhood A state of the art for the anthropology of children in Brazil Clarice Cohn Resumo Este artigo dedicase a uma leitura da produção em antropologia que foca suas pesquisas nas crianças sejam pesquisas sobre ou com crianças sejam elas sobre políticas públicas voltadas à infância ou sobre os direitos das crianças e dos adolescentes Tratando do campo da antropologia da criança no Brasil e debatendo metodologias e conceitos este levantamento da produção antropológica traz a proposta apresentada e discutida no texto de que toda pesquisa antropológica com ou sobre crianças instituições políticas e direitos deve ter em conta as concepções de infância que as perpassam e que informam suas formulações e ações Inclusive as das crianças que agem no mundo de acordo com a concepção de infância que este lhe apresenta com a qual interagem e às vezes entram em conflito Palavraschave Antropologia da criança Antropologia da infância Crianças indígenas Direitos das crianças Políticas da infância Abstract This paper proposes a bibliographical discussion on anthropological research focused on children and childhood in Brazil including studies about or with children and those centered on the politics of infancy and the rights of children and youth Synthesizing the anthropology of children in Brazil it debates concepts and methodologies and proposes as is argued throughout the text that any research with or about children their institutions rights and the policies focused on them should start from the notions of childhood at play including those of children who act and react sometimes in conflict with the notions of childhood they are presented with Keywords Anthropology of children Anthropology of childhood Indigenous children Childrens rights Social policies for infants Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo USP São Paulo Brasil professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos SP Brasil coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Antropologia da Criança Lepac UFSCar CNPq e do Observatório da Educação Escolar Indígena da UFSCar UFSCarCapesMEC clacohngmailcom 222 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Gostaria de começar com duas observações que para mim mostram o amadurecimento do campo de reflexão da Antropologia da Criança e da pesquisa que é seu cenário Uma delas o fato deste texto ter sido produzido no contexto de um evento sobre infância e família1 Sublinho a conjunção porque estes temas correlatos tratados como subespecialidades e que como tantos outros antropologia do estado do direito da educação frequentemente andam juntos são com a mesma frequência mantidos separados nas nossas atuações produções e reflexões sobre para onde ir Os debates ocorridos por ocasião do evento demonstraram quão fecundas essas conjunções podem ser o que nos fez querer continuálas A segunda observação é irmã desta venho cada vez mais me tornando consciente de que faz muitos anos que vimos dizendo que o campo da antropologia da criança é um campo em criação crescimento consolidação Com satisfação percebo que hoje se trata de um campo plenamente consolidado com ampla representação nos debates nacionais e internacionais em publicações e eventos de antropologia É hora de o consolidarmos sim mas em outro sentido não mais nos preocupando em legitimálo em nos fazer ouvir mas avaliando qual contribuição temos dado e podemos dar à antropologia Assim como qual contribuição a antropologia pode dar e tem dado ao campo dos estudos das crianças e das infâncias Isso não se faz sem desafios ou obstáculos Se comecei louvando a situação atual vou dar um segundo passo falando de algumas dificuldades que ainda encontramos Falarei a partir de minha própria especialidade a etnologia indígena Neste campo os estudos das infâncias indígenas e das crianças indígenas vêm florescendo Tassinari 2007 Nunes 2002 2003 e revelando muito do que as crianças têm a dizer de seu mundo Um mundo que às vezes como em outros campos de pesquisa só é acessível por meio delas já que embora conhecido é obliterado pelos adultos2 No entanto os estudos das crianças têm tido pouco efeito no debate da etnologia indígena em geral poucos etnólogos leem os estudos sobre as crianças dos povos com quem 1 Este texto foi desenvolvido a partir de minha apresentação na mesa Crianças e infância perspectivas antropológicas acompanhada de Carla Villalta e Claudia Fonseca com coordenação de Fernanda Bittencourt Ribeiro na II Jornada de Pesquisa sobre Infância e Família organizada pelo NACi da Ufrgs e pelo PGCS da Pucrs Agradeço enormemente a Fernanda B Ribeiro Claudia Fonseca e Patrice Schuch pelo convite para participar do evento e para a publicação e a todos pelos inspiradores debates Agradeço ainda aos alunos da UFSCar que comigo têm debatido este tema em conversas onde muitas destas ideias foram maturadas em especial aos membros do Lepac e a Antonella Tassinari e Andrea Szulc com quem tenho compartilhado espaços para o debate deste campo 2 Este obliterado não significa necessariamente negado ou recusado mas às vezes apenas não explicitado este fenômeno já havia sido marcado para a realidade das ilhas Fiji por Toren 1999 C Cohn Concepções de infância e infâncias 223 trabalham Este é um problema real que devemos reconhecer e enfrentar para que nossos estudos não falem apenas para nós mesmos reiterandose a si mesmos mas ganhem um alcance maior e mais efetivo nos debates da antropologia e no debate sobre o mundo Assim acho que os dois aspectos que enumerei são igualmente ver dadeiros temos um campo consolidado e reconhecido com grande produção com espaço em publicações na área e eventos mas ainda carecemos de uma entrada no debate maior da antropologia uma entrada que nos permita uma voz ampliada na compreensão dos vários fenômenos sobre os quais antropólogos se debruçam como pesquisadores e como cidadãos É este o estado da arte a antropologia dedicada às crianças e às infâncias se consolidou e a excelência a possibilidade metodológica analítica epistemológica e a legitimidade de nossos estudos são reconhecidas Porém ainda necessitamos ganhar maior abrangência tanto no debate antropológico como um todo quanto na intervenção e na atuação pública Por isso meu chamado aqui é por maior interlocução mais entrecruzamentos É também por manter o tema no debate atual da antropologia Um bom começo para tal é reconhecer o que os estudos com e sobre crianças têm podido revelar e que nem sempre é revelado pelos demais estudos Para tratar disso focarei algo que acho de extrema importância e que permeia silenciosamente todas as pesquisas que serão referidas a seguir Ou seja a necessidade de se analisar as concepções de infância e as noções de pessoa que estão implicadas em todos os processos que analisamos em uma perspectiva antropológica Entendo que isto deva ser sempre considerado para entendermos os mais variados fenômenos de que se trata quando falamos com e de crianças e infâncias E o farei seguindo o que se tem feito em antropologia da criança e da infância no Brasil Ou seja não estou pregando que se comece a reconhecer esta dimensão que não é devidamente reconhecida ao contrário quero mostrar como todos estes debates aos quais farei referência só são possíveis ao se considerar a concepção de infância que está em jogo em cada um destes casos3 Assim proponhome a fazer um estado da arte em que busco demonstrar o papel que as concepções de infância exercem não só nos fenômenos observados mas também na análise antropológica destes fenômenos Se 3 Obviamente este é apenas um apanhado que teve como mote o recorte que dei ao debate não sendo um levantamento exaustivo Muitos outros trabalhos poderiam ter sido comentados e referidos neste texto e só posso esperar que seus autores compreendam os limites de espaço que levam à omissão e possam se reconhecer e reconhecer seus esforços de pesquisa neste debate que aqui proponho 224 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 este papel nem sempre é reconhecido e explicitado nos textos o faço aqui exatamente para mostrar como eles são cruciais para entender o que as crianças fazem dizem e pensam e o que se faz com elas se pensa delas se diz sobre elas Concepções de infância Comecemos mais uma vez pela etnologia indígena Esta começou a olhar mais diretamente para as crianças nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil Foi quando estudos específicos sobre as infâncias indígenas começaram a ser realizados pela primeira vez observandoas no que elas são ouvindoas acompanhandoas em suas atividades e em seus passos Como se sabe desde que os primeiros colonizadores pisaram no Novo Mundo abundam referências sobre as crianças de seus habitantes primordiais4 O mesmo acontece na antropologia que desde sempre se referiu às crianças lembrando que elas sempre acompanhavam os e as antropólogos falando de ciclos de vida etc Mas foi só quase no final do século 20 que esforços concentrados e focados foram expedidos para buscar entender as crianças e suas vidas por elas mesmas5 A diferença então estava no fato de que estas pesquisas iriam prestar atenção nas crianças pelo que elas eram e não pelo que elas deveriam ser ou viriam a ser Assim também a diferença estava em que se buscava criar contextos métodos e técnicas de pesquisa e interlocução com as crianças de modo a que os antropólogos aprendessem a ouvilas no que elas têm a dizer Mas importante esforço foi também despendido em se desvendar o que é ser criança nestes lugares Para isso há duas respostas nem sempre igualmente exploradas ou mesmo conectadas em cada trabalho o que é ser criança para estas crianças com que se interage na pesquisa e o que é ser criança neste lugar ou em meus termos como se define a infância ou as infâncias nestes lugares Estas perguntas têm boas razões de serem feitas nestes contextos etnográficos A primeira evitar pressupor uma infância universal e para isso nos baseamos muito na demonstração clássica de Ariès 1981 de que a ideia de infância e o sentimento de infância tem uma origem histórica muito localizada e é portanto mais propriamente ocidental A segunda o fato de que a etnologia já vinha mostrando que a noção de pessoa e a fabricação dos corpos o idioma da corporalidade são cruciais para entender 4 Foi isto que permitiu o impressionante trabalho de Florestan Fernandes 1976 reconstituindo a infância tupinambá a partir dos relatos dos cronistas jesuítas e viajantes 5 Este esforço teve grande impulso no Mari Grupo de Educação Escolar Indígena na USP sob a coordenação de Aracy Lopes da Silva Lux Boelitz Vidal e Mariana Kawall Leal durante toda a década de 1990 ver Lopes da Silva et al 2002 C Cohn Concepções de infância e infâncias 225 os mundos indígenas e suas socialidades Cohn 2000c 2002b Assim se a noção de pessoa e a fabricação da pessoa e dos seus corpos são cruciais para os ameríndios elas deveriam ser fundamentais também para se entender suas noções de infância suas experiências de infância as experiências corpóreas destas crianças e as intervenções sobre estes corpos que se fazem Foi isto o que fiz quando pesquisei os Xikrin Buscando entender o que para eles é uma criança sua concepção de infância logo aprendi que ela estava ligada a uma concepção também de sentidos e percepção e portanto de aprendizagem e de possibilidades de conhecer e apreender o mundo e de corporalidade e fabricação dos corpos6 À minha incessante pergunta a mim mesma como para eles sobre o que é uma criança só tinha como resposta claro coisas vagas7 Até que uma resposta exatamente por não ser vaga mas aparentemente contraditória me surpreendeu foi quando o velho BepDjoti me explicou que as crianças tudo sabem porque tudo veem e nada sabem porque são crianças Assim meus focos de pesquisa passaram a ser a corporalidade o modo como se tratam olhos e ouvidos para aprender a ver ouvir e aprender a ornamentação corporal a alimentação os remédios a mobilidade a circulação o movimento destes pequenos corpos Foi então que percebi que tudo aquilo que se faz para as crianças faz seus corpos assim como os brinquedos que elas fazem são parte de um todo mais amplo que constituindo corpos e corporalidades constitui estas pessoas As crianças xikrin crescem para ser homens mulheres pais e mães e depois avós líderes caçadores pescadores agricultoras coletoras professores agentes indígenas de saúde E crescer é um longo e trabalhoso processo mediado por objetos que adornam seus corpos e que eles fabricam ou são fabricados por eles para brincar e intervir no mundo Cohn 2000a 2000b 2002a 2012 e por diversas relações de comensalidade de nominação de amizade formal Além da corporalidade importante local de produção da pessoa e da sua infância as crianças indígenas podem assumir também um importante papel o de mediadoras Habitualmente falase em mediação cosmológica apenas no 6 A importância dos sentidos e do desenvolvimento dos órgãos responsáveis por eles assim como a ornamentação corporal que o permite e produz já estava indicada na bibliografia sobre os povos jê de que fazem parte os Xikrin ver Seeger 1980 Turner 1995 Vidal 1992 7 Incidentalmente isso vale para qualquer pesquisa que lide com as concepções de infância e é um dos maiores desafios metodológicos do pesquisador qual a pergunta certa a fazer À pergunta o que é uma criança cada psicólogo juiz conselheiro tutelar xikrin camponês enfim terá uma resposta Além de reunir e analisar todas estas possibilidades de respostas que dirão muito a questão é então qual pergunta fazer e esta só pode ser aprendida em campo vendo o que é relevante para nossos interlocutores a que eles remetem quando tratam destes temas Os Xikrin remetem a ver a ouvir a aprender e eram estas as pistas que eu tinha portanto que seguir 226 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 caso dos xamãs mas a pesquisa etnográfica revelou que esta atuação pode estar também a cargo das crianças Este é o caso fascinante dos Maxakali de Minas Gerais cujas crianças são mediadoras entre os mundos as famílias as pessoas Diz Alvarez e este é só um exemplo é como ela começa a conversa A criança é o fio que tece as várias dimensões da sociabilidade Maxakali É através dela que se inaugura a relação com o outro De acordo com as regras de etiqueta Maxakali devese primeiro dirigirse às crianças particularmente aos bebês quando em visita a um grupo familiar aliado ou em qualquer outra situação de distância social Só após agradar as crianças carregar e acariciar os bebês é que o visitante deve dirigir o olhar e a palavra aos seus anfitriões adultos Alvarez 2004 p 53 As crianças maxakali são também o motor da vida ritual As crianças contanos a autora são o maior bem trocado entre as mulheres e os espíritos durante os rituais Na iniciação trocase o filho a ser iniciado que passa da casa doméstica materna à cerimonial masculina aos cuidados dos pais pelos filhos mortos espíritos para que as mães possam continuar cuidando deles São estes espíritos que mais do que cantores são o próprio canto Alvarez 2004 p 57 que dão aos viventes as músicas dos rituais Além disso a cada ritual são apenas as crianças e os jovens o suporte para a manifestação dos espíritos Com seus corpos transformados em yãmiy através das máscaras cerimoniais e as pinturas corporais especificas se transformam nos próprios espíritos presentes na terra Cantam e dançam para os humanos atualizam assim a união entre os viventes e os espíritos Alvarez 2004 p 6061 Sem crianças não há ritual sem ritual e canto não há formação de pessoas e não há maturação dos viventes Espíritos quando crianças devem também maturar no além cantando todo ano para os viventes até poderem mandar seus filhos feitos no além para cantar Sem eles não há ritual e novamente não há produção de pessoas maxakali E com as crianças as casas as famílias as pessoas se ligam mensagens chegam e as crianças levam as palavras para que a conversa daqueles que não podem se falar diretamente possa acontecer Os Maxakali e este belo texto são para mim o melhor exemplo de como para os indígenas as crianças são importantes consideradas em sua condição atual cuidadas mas parte crucial de seu mundo São seres em maturação que devem ser cuidados em vida e na morte enquanto lá também maturam que devem ser instruídos e o texto nos apresenta uma bela descrição dos momentos em que o são que não são confundidos com os adultos mas que têm uma atuação crucial no cotidiano e no ritual tornando possível e efetiva C Cohn Concepções de infância e infâncias 227 as relações entre os vivos e entre os vivos e os mortos E que torna possível a própria maturação e construção de pessoas8 As muitas infâncias indígenas Assim a experiência da infância e seu valor é diversa para cada socie dade indígena Por isso não podemos confundir suas concepções de infância com as nossas Nem umas com as outras Por isso a cada vez que nos dedicarmos a estudar com e sobre as crianças indígenas temos que nos debruçar primeiro sobre como as crianças e a infância são pensadas nestes lugares Não podemos pressupor uma criança e uma infância universais mas talvez não possamos também pressupor uma noção de infância particular mas sempre válida Assim temos belíssimas descrições de como os indígenas veem suas crianças e como elas atuam em seus aprendizados Codonho 2007 em espaços de mediação nas escolas Marqui 2012 Limulja 2007 nas suas andanças e circulação pelos espaços Correia da Silva 2011 Temos também ótimas descrições sobre como a infância é pensada a partir de passagens e categorias de idade Fernandes 1976 Cohn 2000a Nunes 2003 Mas nada nos indica terminantemente que temos uma noção de infância para os indígenas Como para os Maxakali temos sempre a percepção da sua condição percepção esta respeitosa das condições efetivas dela e de sua autonomia e capacidade Tassinari 2007 cuidados especiais práticas para sua maturação e para garantir seu aprendizado e que estejam prontas para aprender práticas de ensino e aprendizagem Mas não uma elaboração como esta que fizemos no ocidente sobre esta sua condição especial As crianças xikrin são os peque nos meprire como para o maxakali são filhos como o são também os filhotes kitoko Nestes mundos perspectivos em que a humanidade e o paren tesco são sempre construídos ver Viveiros de Castro 2002a Souza 2004 Lima 1996 crianças são como todos e continuamente humanizadas pessoa lizadas Condizente com a importância da noção de pessoa para os ameríndios perguntarse sobre as infâncias indígenas é portanto perguntarse sobre como um processo que é mais geral incide sobre as crianças e é vivido por elas9 8 Este papel de mediadoras é exercido também pelas crianças Guarani de Mbiguaçu como aponta Oliveira 2005 em especial com o mundo dos nãoindígenas tomando uma frente e uma im portância para o coletivo que desafia a noção de infância como incompletude e incapacidade 9 Sugeri que falar de criança neste sentido é sempre mais seguro que falar em infância termo carregado de sentido do qual é difícil se despregar e desapegar Cohn 2005a O que afirmo aqui não está em contradição com isso Ou seja não significa relativizar a infância fazendo um inventário de infâncias possíveis um exercício que não me parece propriamente antropológico mas perceber sempre que o modo como se pensa a experiência que as crianças podem e devem ter informa o modo como se age sobre elas e também informa mas não determina o modo como elas agem sobre o mundo Ao longo do texto teremos oportunidade de discutir o gerenciamento que as crianças fazem de suas infâncias 228 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Mais que isso não devemos trocar seis por meia dúzia e acreditar que poderemos isolar infâncias indígenas particulares Ou seja na recusa da infância ocidental como definidora das indígenas buscar as infâncias indígenas como se elas pudessem ser definidas como esta a ocidental Mais devemos pensar que pode haver muitas infâncias nestes mundos indígenas muitas infâncias xikrin muitas infâncias guarani maxakali10 Este risco de se passar a definir infâncias indígenas pode ser discutido por Mantovanelli 2010 2011Quando foi estudar a infância kaingang em Icatu SP tendo lido a bibliografia sobre estas crianças em diversos povos indígenas Mantovanelli se imaginou chegando à aldeia e sendo rodeada por crianças No entanto por muito tempo seu campo foi marcado por uma busca contínua destas crianças que sempre pareciam dela fugir Tudo foi se esclarecendo quando ela percebeu a importância do espaço doméstico para as mulheres e suas crianças e a permanência destas nos seus quintais e que ela e as crianças estavam sendo ensinadas na ética do respeito e da restrição que devem reger as relações De fato as crianças que via eram as que entravam e saíam das casas em que a antropóloga tinha maior convivência Sua pesquisa rendeu uma reflexão sobre as concepções de infância para estes Kaingang a partir da noção de restrição e através das mulheres companhias frequentes da antropóloga e que sempre tinham uma história para contar ou para disputar sobre as graças de suas crianças Mas rendeu também uma reflexão metodológica que vale aqui retomar a invisibilidade das crianças kaingang lhe revelou o quanto ela havia ido a campo com uma espécie de noção generalizante da infância indígena como se ser criança indígena fosse igual em todo lugar em todo o mundo indígena Obviamente as etnografias lhe mostravam as particularidades destes modos de ser criança mas parecia sempre haver algo em comum sua mobilidade sua autonomia sua circulação pelas casas seu papel de mediadoras que contrastava fortemente com o que via em Icatu Assim devemos cuidar para não cair em outros essencialismos ao negar essencialismos anteriores Como nos conta Mantovanelli 2010 p 10 É nesse cenário profilático que coloco as crianças do Icatu Antídoto Pois sua invisibilidade foi o antídoto para meu olhar viciado Se essas crianças foramme invisíveis é porque eu tinha de antemão pintado suas cores Ou seja como não vi aquilo que imaginei que veria elas desapareceram E só depois elas reaparecem para dizer 10 Agradeço a Bruno Henrique Rodrigues de Oliveira pela provocação certeira feita no debate durante as Jornadas sobre como eu poderia estar certa de definir uma infância para os Xikrin e se não seria mais produtivo supor como estávamos exercitando em outros campos a possibilidade de várias infâncias mesmo entre os Xikrin C Cohn Concepções de infância e infâncias 229 nas minhas anotações de caderno de campo que não se tratava de invisibilidade factual mas de uma maneira específica de lidar com as relações sociais e os espaços no mundo Se invisíveis ou reclusas em seus quintais de um lado de outro as crianças são os assuntos favoritos das rodas vespertinas nas varandas das mulheres Com um tom de uma quase disputa mulheres exibem na fala seus filhos e netos destacandoos como protagonistas do que há de melhor em termos de existência humana Assim as crianças do Icatu SP que estavam longe dos meus olhos estavam em meus ouvidos trazidas pelas falas de suas parentas Mas como as crianças indígenas veem os seus mundos Este é um investimento analítico menos feito Neste texto ele é importante para mostrar a relação entre estas abordagens e o investimento que a meu ver ainda devemos fazer Correia da Silva 2011 acompanhou os meninos em suas andanças pela aldeia e seus arredores e nos descreveu suas atividades e como se relacionam com o mundo e com as pessoas Oliveira 2005 mostrou como elas ocupam e atuam em diversos espaços a escola o coral a casa de reza e atuam como mediadoras Marqui 2012 mostrou como elas vivenciam a escola e também os momentos não escolares Mas talvez pouco se tenha feito ainda para entender como elas entendem o seu mundo Fiz alguns esforços a este respeito sobre as crianças xikrin lendo e interpretando seus desenhos uma atividade que elas adoram fazer desde que na escola aprenderam a desenhar em papel Tenho um grande repertório de desenhos que ganhei deste seu gosto por desenhar em todos os lugares Tendo levado uma vez comigo papel sulfite e lápis de cor por sugestão de minha então orientadora Lux Vidal tive o material requisitado a todo o momento e passei dias semanas acompanhando diversos grupos de crianças desenhando11 Vários deles subsequentemente me deram o desenho Depois de feitos os desenhos não lhes servem mais e não necessitam ser conservados mostrados para todos ou comentados Logo estão amassados rasgados e são jogados fora Guardados mesmo só na escola e pelas antropólogas12 Fiz uma primeira leitura deste material em minha dissertação Cohn 2000a mostrando como estas crianças viam seu mundo neles estava tudo o que lhes interessava e o modo como elas organizavam as coisas no papel e se organizavam para desenhar eram todas muito reveladoras Depois reli o material que foi crescendo com o tempo e mostrei como estas crianças reagiram a uma tarefa escolar que consistia em desenhar sua cultura Na realização desta tarefa ficou 11 Por sugestão de minha orientadora Lux Vidal a quem agradeço por esta e pelas demais sugestões e pela orientação que me permitiu entender um pouco mais das crianças xikrin 12 Fiz uma reflexão sobre o uso de desenhos em estudos com crianças em Cohn 2005b 230 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 muito clara suas percepções do valor que a cultura ganhou no mundo atual e do valor político de cultura Carneiro da Cunha 2009 Elas desenharam então para seus professores nãoindígenas sua cultura sua tradição Se como eu tinha observado num mesmo desenho poderiam conviver como convivem em seu mundo aviões pescarias cubos escolares motivos de pintura corporal futebol danças e máscaras rituais para esta tarefa desenharam apenas o que aos olhos dos professores aos olhos nãoindígenas seria sua cultura os meninos desenharam as danças e seus apetrechos arcos e flechas canoas enquanto as meninas dedicaramse exclusivamente à pintura corporal Este trabalho mostra claramente como estas crianças são conscientes de sua condição de crianças e indígenas respondendo neste contexto escolar com muita clareza sobre como deveriam se apresentar como crianças que desenham e que são indígenas Cohn 2008 2010 Assim o modo como elas atuam como crianças é informado pelo modo como se define o que é ser criança nestes lugares Assim também elas respondem a outra necessidade de definição aquela que remete ao ser indígena o que igualmente define sua condição de sujeito neste mundo atual Como apontarei ao longo do texto as crianças atuam em resposta e cientes ao modo como se pensa sua infância Crianças em cenários institucionais A educação é uma das áreas mais frequente e diretamente relacionadas à infância e tem cada vez mais se voltado a uma conexão com a sociologia da infância com resultados muito frutíferos Por ela se tem feito etnografias de escolas que buscam mostrar o modo como as crianças interagem e agem nas escolas Estes trabalhos nos permitem ver concepções de infância e as práticas nas escolas por parte dos adultos e das crianças Este campo vasto merece um tratamento amplo e torna difícil a seleção de textos exemplares para comentários aqui Mas antropólogos também têm se dedicado a estudos em escolas Em geral estes estudos referemse a experiências escolares que têm as populações indígenas como público Este campo vastíssimo e com grande produção é particularmente interessante por desafiar a ideia de escola ou colocar a escola em seu limite mesmo quando a expectativa indígena parece ser a de ter uma escola como a dos brancos Cohn 2005b Tassinari e Cohn 2009 Em geral também falta à análise sobre a prática escolar indígena uma reflexão sobre as infâncias indígenas que deveriam ser respeitadas em cada desenho de uma nova escola indígena Cohn 2009 Mas esforços têm sido feitos também para dar conta de experiências escolares nãoindígenas Refirome à excelente etnografia e análise de Malheiros Moraes para ilustrar como a análise antropológica da experiência C Cohn Concepções de infância e infâncias 231 escolar pode revelar a construção de uma infância neste caso a infância escolarizada Malheiros Moraes 2012 p 34 A etnografia em uma escola de ensino infantil revelou a regência da fala das crianças Estes seres definidos como sem fala infante de modo a darselhes ordem e sentido assim como a constituição de um corpo dócil e ao mesmo tempo participativo Sobre eles normalmente a atenção é focada em processos de ensinoaprendizagem regidos pela professora sobretudo em sala de aula e em uma constituição de hábitos que frequentemente se busca extrapolar para a família que deve agir de modo coerente com os ritmos e as disciplinas criados pela escola Neste trabalho Malheiros nos permite ver como se aprende a ser aluno Malheiros Moraes 2012 p 184 em um drama que deslinda e sobre o qual lembra O problema que se apresenta à instituição escolar é como manter este drama e resolvêlo de modo adequado a despeito de toda resistência ibid p 173 Neste contexto escolar o pedagógico e o pediárquico conceitos que empresta de Victor Turner complementamse para fazer o bom e o mau aluno Um o que responde bem à regência pedagógica e ganha a possibilidade de brincar no parquinho o outro que ao contrário faz bagunça e falha portanto na relação pedagógica tendo negado assim o jogo pediárquico Espaços e tempos o da sala de aula e afins e o do parquinho se complementam ao ponto da passagem ao ensino fundamental cuja vivência foi acompanhada pelo pesquisador ser sentida exatamente pela perda do parquinho substituído pela quadra esportiva Este processo leva as crianças a uma idade da razão e da memória e ao lamento da perda do parquinho e da possibilidade de têlo visto reformado Malheiros Moraes 2012 p 188 Esta excelente etnografia nos demonstra exatamente que concepções de infância informam a atuação sobre as crianças tendo por fim constituir certa infância esta infância pressuposta e como lembra o autor aparecendo como ameaçada Afinal se a escola de educação infantil enfatiza um determinado modo de ser criança é porque essa infância parece ameaçada Malheiros Moraes 2012 p 53 Em diversas ocasiões demonstradas pelo autor ela extra pola seus muros ao afirmar os modos escolares como os adequados e devendo ser seguidos pelas famílias Ou seja a escola busca produzir certa infância e o faz Mas demonstra também que as crianças a isso resistem constantemente como por exemplo no momento da bagunça subversão da condição de aluno É por isso que o problema da escola é manter o drama apesar das resistências porque à constituição de certa infância a escolarizada as crianças reagem tanto quanto aprendem a ser alunos Mais uma vez concepções de infância que têm seu papel em ambos os lados do jogo informam as interações de adultos e crianças e a construção mesmo desta infância 232 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Malheiros Moraes nos provoca igualmente sobre a condição de pesquisador de infâncias afinal não somos parte deste mesmo drama Se Tassinari 2009 já problematizava a possibilidade de pesquisadores escolarizados pesquisarem com eficácia infâncias nãoescolarizadas Malheiros Moraes problematiza o pressuposto de dar voz às crianças o que ademais é parte importante da prática pedagógica nas escolas Em momento de otimismo mas que não se apresenta como resolução dogmática sugere que a pesquisa antropológica se faz possível por enfatizar a escuta da fala das crianças ao contrário da prática pedagógica que é de regência destas falas Tassinari 2009 p 68 Mas algo a mais se coloca a qualidade intercorpórea da experiência do pesquisador em campo Malheiros Moraes 2012 p 68 que faz dele aos olhos das crianças algo entre um aluno e um bom aluno um corpo dócil sentado atento observante e um adulto13 Lembranos portanto que a concepção de infância é algo que o antropólogo deve cuidar para não levar a campo Lembranos também que é em determinada condição aquela a ele atribuída pelas crianças e pelos lugares com quem e onde desenvolve sua pesquisa que as crianças lhe falam Situação que jamais podemos deixar de ter em mente em nossas pesquisas Nas políticas públicas de saúde as concepções de infância entram fortemente em jogo Este é o caso de um exemplo extremo o dos diagnósticos da depressão infantil Eunice Nakamura 2004 2009 acompanhou casos em que crianças após inúmeros périplos e passagens por diversos equipamentos de saúde e especialidades médicas recebem o diagnóstico de depressão Em visita a estas crianças e suas famílias ela também ouviu sua versão sobre a doença o diagnóstico o tratamento A etnografia é interessantíssima e instigante Em especial porque revela que este diagnóstico é sempre feito tendo por referência uma imagem de infância normal ou seja uma concepção de infância Há muito se demonstra que a saúde define a normalidade e o anormal e que isto afeta também a definição de família de maternidade e de sua normalidade14 O trabalho de Nakamura demonstra que a medicina atua também na definição de uma normalidade da infância É muito relevante o 13 Se o pesquisador era visto como aluno e adulto pelas crianças e tratado de tio apropriação de termo de parentesco que o autor discute ele é visto pelas professoras como uma espécie de estagiário alguém de quem não se teme a crítica uma espécie de iniciante a quem se ensina Sua afirmação de que apresentará seu trabalho ao seu professor na universidade parece exercer um importante papel nisto 14 Para o Brasil especificamente ver Freire da Costa 1979 e Rohden 2009 Em tempo este último livro nos liga a outra questão aqui não tratada ver Cohn 2005 o próprio debate sobre o aborto e o infanticídio referese à questão sobre quando inicia a vida Este debate está muito presente nas discussões e a enorme polêmica sobre o infanticídio indígena Em todos estes casos concepções de infância e de pessoa estão em debate e embate C Cohn Concepções de infância e infâncias 233 que dizem os médicos de seus pacientes diagnosticados com depressão Nas palavras de Nakamura 2004 p 119120 A percepção que os profissionais têm de determinados com portamentos infantis segue assim padrões de normalidade e de anormalidade em geral semelhantes àqueles identificados no discurso popular pois tratase em ambos os casos de adultos falando de crianças de seus comportamentos e de sua adaptação ou inadequação a normas A grande diferença nesse contexto está no fato de os médicos associarem a anormalidade à patologia o desvio à doença Esses comportamentos infantis são considerados adequados quando expressam determinados padrões esperados e culturalmente aceitos sendo inadequados todos aqueles que se encontram fora dos padrões vigentes de acordo com as seguintes características 1 Sociabilidade Padrão normal aceito crianças devem ter amigos brincar Padrão anormal observado crianças não têm amigos não brincam e são quietas 2 Obrigações e deveres na escola ou na família Padrão normal aceito crianças devem ser organizadas e adaptadas Padrão anormal observado crianças não obedecem a regras apresentam prejuízo no comportamento adaptativo não querem ir à escola faltalhes atenção e apresentam queda no rendimento escolar 3 Manifestações de humor e de temperamento Padrão normal aceito crianças devem ser felizes bem humoradas Padrão anormal observado crianças são inquietas agitadas agressivas irritadas 4 Maneiras adequadas de agir Padrão normal aceito crianças devem saber lidar com o mundo e com situações adversas têm de ter autoestima e segurança Padrão anormal observado crianças têm dificuldade para lidar com situações que exigem muito ou que as pressionam Assim ao basear seus diagnósticos no que Nakamura 2004 p 120 2009 chama de estereótipos positivos ou negativos os médicos estão estabelecendo a normalidade da infância ou nos meus termos estão tomando por referência uma concepção de infância para julgar se cada criança está adequada ou não a esta condição mesmo a da infância Trocando em miúdos este seria outro modo e não aquele a que o senso comum sempre se refere de negar a infância às crianças julgando seus modos como nãoinfantis ou seja como de uma infância errada a ser corrigida 234 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 Neste excerto Nakamura nos chama atenção para a coincidência entre o julgar do médico e da família todos em sua condição de adultos Se olharmos para as famílias que como nos conta passam de atordoadas a aliviadas com o diagnóstico que lhes permite reorganizar a vida familiar perceberemos algo diverso mas complementar O discurso das famílias aponta para uma explicação popular da depressão infantil que é insuficiente para abarcar toda a variedade de alterações de comportamentos infantis por outro lado a explicação médica parece plausível mas não é incorporada Nessa aparente lacuna entre uma noção relacionada à doença e a ausência de outra noção convincente configurase uma conotação popular sobre depressão infantil que expressa a teia de significados sobre a qual se sustentam as experiências populares de depressão infantil ou daquilo que se poderia denominar simplesmente estados infantis alterados As famílias quando falam sobre depressão infantil expressam uma noção mais ampla e profunda a qual se opõe à noção médico científica da patologia Tratando de um problema que não dominam mas que passa a fazer parte de suas preocupações cotidianas as famílias revelam mediante suas experiências algo mais sobre os comportamentos das crianças ao mesmo tempo em que evidenciam determinadas formas de organização social e de manifestação da cultura pautadas pela maneira como os adultos se relacionam com as crianças Nakamura 2004 p 149150 Olhando para as famílias vemos algo mais do que os estereótipos de que fazem uso os médicos vemos também as relações que os adultos efetivamente estabelecem com suas crianças Neste caso relações que se apoiam no discurso no diagnóstico e na prescrição médica para se reorganizar mas e isso é muito relevante relações15 Em outro contexto embora na cena hospitalar mas colocando em jogo outros atores Rafael Fioravanti reflete sobre a recompensa do trabalho voluntário exercido no hospital infantil Pequeno Príncipe em Curitiba Lembrandonos que o voluntariado ligase à dádiva e portanto à troca e que esta deve ser vista em sentido amplo e jamais simplista ele enumera de início e com facilidade uma série de trocas que partem dos voluntários aos demais crianças que são alegradas famílias cujas crianças são alegradas profissionais de saúde cujo trabalho pode ser facilitado o hospital na 15 O estudo trata das relações familiares mas seria muito interessante complementálo com a visão que as crianças têm de sua condição diagnóstico e tratamento e então das relações que estabelecem e como as veem C Cohn Concepções de infância e infâncias 235 possibilidade por exemplo de diminuir o tempo de internação Mas o autor levanta uma questão bem menos simples de responder e objeto de sua pesquisa o que os voluntários recebem ou esperam receber em troca Trago aqui a descrição do pesquisador de dois dos muitos momentos de sua etnografia em que vê se revelar a pista a ser tomada ou seja a referência à alegria das crianças como a retribuição do esforço Uma de minhas entrevistadas disse numa certa ocasião As crianças esquecem que estão doentes Este comentário me fez refletir sobre como as crianças eram percebidas pelos voluntários Durante a pesquisa de campo eu notava que as crianças estavam conscientes sobre a sua condição de doente ou então eram lembradas sendo pelo fato de estarem longe das suas relações familiares amigos colegas de escola e de estarem fora dos espaços que costumavam frequentar e até mesmo pelo uso de recursos médicos ou pelo acesso intravenoso geralmente em seus braços presos por uma tala de madeira ou plástico que impossibilitava os movimentos de uma de suas mãos Uma noite quando acompanhava Marta voluntária de 51 anos edu cadora durante uma visita à enfermaria da Clínica Geral perguntei sobre a sua experiência com o trabalho voluntário Chorando muito ela falou que se sentia feliz ao conseguir fazer uma criança sorrir por mais fechada que a criança esteja Era no sorriso das crianças que estava o reconhecimento que ela encontrava no trabalho voluntário Conseguir ter feito uma criança parar de chorar e começar a sorrir era a sua recompensa Fioravanti 2006 p 9192 Estes momentos indicam ao pesquisador o que de fato está em jogo restituir a estas crianças sua infância Porque os voluntários parecem considerar que as crianças internadas no Pequeno Príncipe tiveram a sua infância interrompida pela doença Fioravanti 2006 p 96 Ou seja novamente confrontamonos com uma concepção de infância que define a atuação do adulto neste caso um voluntário em um hospital para crianças das quais se espera respostas que lembrem a condição infantil sorrisos alegria despreocupação falta de dor Não seria de se espantar que estas crianças lidassem com estas expectativas ao se defrontar com fami liares médicos e voluntários O autor não se dedica a estudar as crianças e suas expectativas embora registre os gritos de euforia com que recebem os voluntários e os materiais que trazem para as atividades mas não seria de se espantar que elas estivessem absolutamente conscientes não exatamente de sua condição não é este o ponto mas das expectativas a elas devo tadas 236 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 A proteção da infância Voltando nossa atenção para a questão da proteção à infância temos a possibilidade de ver um jogo em que a parte das crianças pode ou não ser vista pelos pesquisadores Vejamos dois estudos um em que a voz dos no caso adolescentes não é ouvida ao longo do processo observado e a pesquisadora não busca ouvilos e outro em que as ações as percepções e as relações estabelecidas pelas crianças sob tutela do estado são o foco mesmo da pesquisa Iniciemos com uma pesquisa etnográfica nas audiências de conhecimento nas Varas Especiais da Infância e da Juventude na cidade de São Paulo Neste caso a análise tem por foco o próprio processo judicial e sua cena e busca ver como se define a culpabilidade e a pena dos jovens infratores acusados Aqui não se discute a fundo a parte que jogam os adolescentes em julgamento Mesmo porque como diz a autora eles são figurantes assim como seus familiares os promotores e os advogados de defesa frente ao juiz que tem o papel principal Miraglia 2005 p 9293 Se não é o papel ativo do adolescente que está em jogo nesta análise quetem por foco o processo judiciárioexatamente por isso ela nos é particularmente interessante para mostrar que é uma concepção de infância que está em jogo Analisando as cenas em que o estado os adolescentes e suas famílias disputam sua culpabilidade e definem as medidas socioeducativas adequadas ao ato infracional e demonstrando a supremacia do juiz nestas cenas e o papel de figurante de família e adolescentes Miraglia demonstra ser este um espaço de poder em que entre outras coisas está em disputa a ideia mesmo de menoridade Diferente é a abordagem de Ribeiro 2011 focada no modo como as crianças atuam em uma situação literal de insulamento quando são mandados com suas famílias tidas como de risco à ilha dYeu França para um período de residência provisória na associação Caval e que visa a reestruturação familiar Claramente aqui estão em jogo tudo o que temos arrolado acima uma concepção de infância de família de normalidade E tratase de um caso de intervenção estatal em famílias consideradas incapazes de criar seus filhos sozinhas Vivendo em uma ilha cercados de famílias igualmente consideradas desestruturadas de pais incapazes de criar seus filhos além dos educadores e da população local com quem também convivem estas crianças estabelecem uma série de relações e de estratégias que têm por pano de fundo o estigma Fazendo a ligação entre os adultos que delas se ocupam mas também entre suas famílias e a população local Ribeiro 2011 p 48 elas vivenciam relações com colegas de escolas os pais muitas vezes apenas o pai ou a mãe nestas famílias majoritariamente monoparentais as assistentes maternais C Cohn Concepções de infância e infâncias 237 cujas casas frequentam e conhecem mais a ilha que os seus pais que também foram designados a morar lá como disse uma mãe à pesquisadora O mais rico e mesmo desconcertante do artigo é a demonstração de como nesta teia de relações as crianças os grandes acima de seis anos de quem se espera capacidade de raciocínio e discernimento Ribeiro 2011 p 43 atuam de modo a passar da cumplicidade e cooperação aos pais à recusa em se ver identificados a eles Assim quando defendem seus pais atuam para contribuir com a melhora da situação da família porém quando silenciam e aqui a autora chama a atenção para a diferença entre silêncio e palavra ao terem presenciado as transgressões da mãe ou do pai às regras da instituição e que são também do conhecimento dos educadores eles estão fazendo bem mais do que cooperar ou defender os pais estão se diferenciando destes Ribeiro 2011 p 53 Em especial com as assistentes maternais chamadas tata podem estabelecer ligações que extrapolam seu tempo de permanência na ilha criando relações que poderão ser ativadas em outros momentos da vida Assim entre cooperar com os pais e diferenciarse deles convivendo em família e nas famílias das crianças de Caval e com a população local com educadores e assistentes maternais estas crianças colocam em atuação não só seu discernimento e raciocínio em reconhecer as situações lindamente demonstrados no artigo mas também em reconhecer as concepções de infância e de família que lhes levaram a esta situação insular e que lhes pode retirar delas ou permitirlhes retornar em outra condição Esta capacidade dos meninos e das meninas de se ver com sua condição sempre me impressionou também na rica etnografia feita por Gregori 2000a que dentre outras coisas demonstra como elas respondem aos diversos atores institucionais de acordo com as expectativas destes Esta é parte importante de sua viração e permite a circulação que elas fazem entre famílias abrigos e grupos nas ruas Criando e mantendo diversas relações entre estes ambientes eles permitem que se vivencie a infância de modos diversos e para se habilitar a cada um deles capacidades e incapacidades diversas propriedades ou misérias riquezas ou lacunas têm que ser ressaltadas Longe de viver em desorganização e abandono organizamse em grupos com relações muito estabelecidas relacionamse cooperativa ou conflitantemente com a vizinhança permanecem mudamse retornam à família vão aos abrigos Enfim não só vivem sua infância como reagem com destreza a todos os estereótipos que lhes são voltados fazendo uso deles em sua circulação e viração Esta capacidade é mais aparente e impactante na etnografia realizada por Calaf 2008 entre os meninos de rua em Brasília Ambas as situações são 238 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 semelhantes em um ponto que sempre acho importante ressaltar estas crianças de rua o são não por falta de casa ou família mas por valorizarem sua liberdade Em ambos os casos transitam entre casa e rua Mas para a Galera em Brasília um aspecto se incorpora a este cenário o discurso a prática e a disposição para a sexualidade São crianças que transitam também como já se apontava na etnografia de Gregori como já se viu com os grandes de Caval entre a infância e sua recusa Eles marcam esta sua infância exatamente na diferença que estabelecem com outra infância a de apartamento daqueles a que se referem como filhinhos de papai ou bodinho A diferença não está na condição de ser criança que eles não recusam mas na tutela Neste sentido os meninos e meninas da Galera não aceitam sua posição de crianças não querem ser tutelados e não aceitam estarem situados em uma posição relacional de subjugação frente aos adultos Afirmam então serem crianças sim mas crianças diferentes são donas de si pensandose e repensandose continuamente e tentando fugir aos mecanismos de controle e submissão Calaf 2008 p 44 Estes meninos e meninas desafiam a noção de infância naquilo que ela tem de mais central porque eles afirmam e praticam sua sexualidade e sua maternidade e paternidade E o fazem como modo de definir sua infância na Galera a disposição ativa perene para o sexo é fator fundamental na construção das identidades masculinas e femininas constituindose o status de saber mais sobre o sexo o ser quente condição e prova de não ser mais criança Se a sexualidade das mulheres tal como as identidades sexuais masculinas é na Galera atrelada ao desejo e ao prestígio é também tal como aparece em um segundo momento de conversas orientada em direção à construção de si por meio de categorias como o respeito e a vergonha Calaf 2008 p 88 A etnografia fina nos mostra que esta prática e este discurso sobre a sexualidade que faz gente grande ou muleques são marcados pelo aprendizado e também pelo segredo É necessário dominar a técnica e é necessário para isso aprender o que demanda esperteza tríade valorizada e definidora Calaf 2008 p 101 E para as meninas o controle da vontade de sexo de seus parceiros que é definidora de sua própria sexualidade e também de seu controle contraceptivo na Galera as meninas se colocam em posição de iniciativa sexual de assumir o desejo sexual mas também de deverem controlar o desejo a sua reputação e a reprodução Calaf 2008 p 126 C Cohn Concepções de infância e infâncias 239 A contracepção e a concepção são controversas se se evita se pode também tirar se pode também assumir o projeto da maternidade e da paternidade Mas esta leva a um novo equilíbrio entre a casa e a rua e a uma nova negociação sobre a autonomia desta criança que fez criança E se esta autonomia não é respeitada se a jovem mãe é tratada em casa como criança o retorno às ruas levando o filho é a solução Calaf 2008 p 142 Afinal ser pai e ser mãe deve ser coerente com os valores de liberdade desta vez associados à responsabilidade por outrem que só reforça o primeiro ter filho é não mais ter que obedecer como filho ou filha Calaf 2008 p 149 Tudo isso aqui tão esquematizado acontece em meio à violência sofrida às disputas ao abandono dos companheiros a arrependimentos a perdas de amigos Nada aqui diz que essa é uma infância mais feliz ou mesmo mais infeliz Mas o que importa reter e deve sempre ser dito é que tudo aqui diz que essa é uma infância E é como todas uma infância gerenciada também pelas crianças que em suas práticas definem sua própria condição infantil Casos extremos como este crianças que fazem crianças como Calaf intitula sua dissertação mostram com clareza o gerenciamento que as crianças fazem de suas infâncias Uma clareza que elas nos cospem na cara e que em outros lugares não reconhecemos como na tirania cotidiana exercida pelas crianças em suas famílias burguesas definindo o que a família vai fazer onde vai passar as férias o que vai comer o que vai ver na TV A dificuldade em conceber outras infâncias Termino este artigo lembrando mais uma vez da dificuldade que nós antropólogos temos de reconhecer estas outras infâncias Já havíamos visto esta dificuldade reaparecendo na etnologia indígena nos estudos sobre as crianças indígenas e nas pesquisas feitas em contextos escolares Agora levanto outra provocação Durante todo o texto tenho chamado a atenção para o modo como a antropologia nos permite entender outros modos de ser criança que nem sempre são reconhecidos nas políticas públicas de saúde educação e no direito mesmo naquelas políticas mais bemintencionadas e mais afeitas aos direitos da criança e do adolescente Porém algumas situações nos revelam que não são só os nossos préconceitos antropológicos como foi o caso da expectativa que Mantovanelli levou a campo que limitam o bom exercício da antropologia são também nossos pressupostos como cidadãos que somos como humanos que somos e que também arriscamos carregar a campo Estes preconceitos agora assim mesmo preconceitos já impediram que víssemos as crianças como sujeitos plenos e capazes já impediram que 240 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 víssemos as crianças indígenas em suas especificidades e não como parte de uma suposta universalidade da infância ou pior como os infantes da infância da humanidade que eram os indígenas até poucas dezenas de anos atrás e ainda o são no senso comum já impediram que escutássemos e não regêssemos suas vozes já impediram que víssemos em geral as crianças e as infâncias em suas multiplicidades e em seus modos de gerenciar suas infâncias Agora nos regozijamos com a nossa recémadquirida capacidade de trazer à antropologia as vozes e as experiências das crianças e reconhecer suas ações relações e capacidades Mas nem sempre isso é feito sem que barreiras reapareçam Parece que até para antropólogos os limites se impõem Isso foi discutido por Begnami 2010 ao refletir sobre o modo como outros antropólogos e antropólogas reagiram à sua etnografia Assim como Calaf ela ouviu das crianças durante a pesquisa de campo num bairro periférico de São Carlos SP relatos sobre suas práticas sexuais e suas sexualidades Foi questionada mais de uma vez se não deveria denunciar o abuso sexual sofrido por estas crianças ou se deveria realmente ter acreditado no que elas diziam Obviamente diziase a ela essas histórias eram mentira dado que crianças não tem vida sexual À questão de ética ficam as dúvidas e quando como no caso que acabamos de comentar da Galera de Brasília e era também o caso no Gonzaga a sexualidade não é vivida como violência não é imposta é entre pares e define uma infância particular tratase aí também de um caso de denúncia No caso da flagrante mentira fica a questão estamos realmente prontos para ouvir das crianças o que quer que seja que elas venham nos contar Outros antropólogos já viveram esta situação e alguns refletiram sobre isso Viveiros de Castro 2002b já disse que a pergunta se devemos acreditar nos nativos é em si mesma um erro conceitual Goldman 2003 que se pegou acreditando no que não imaginava crível acabou por concluir que não faz a mínima diferença ele achar que é ou não verdade Toren 2006 propôs um exercício sobre as condições de avaliação de veracidade dos ou seja pelos nativos Assim quando questionada sobre a veracidade das falas dos meus interlocutores as crianças a própria antropologia foi questionada pois a questão da verdade é própria da antropologia As crianças do Gonzaga mantêm relações sexuais não devemos duvidar disso apenas pensar sobre o tratamento antropológico que daremos a isto elas fazem sexo temos que acreditar nisso Begnami 2010 p 45 Assim acrescento logo ao final este novo desafio como ouvir realmente as crianças Como efetivamente escutar suas falas como pergunta Malheiros Moraes Esta questão se coloca como uma extensão do estado da arte que C Cohn Concepções de infância e infâncias 241 apresentei de uma antropologia da criança consolidada mas que tem que se ver ainda com o diálogo e com a capacidade de debater e intervir no campo mais amplo da antropologia e no campo mais amplo ainda da atuação no mundo Uma atuação que seja efetivamente condizente com o que as crianças fazem e querem fazer de suas infâncias neste mundo em que as possibilidades de infâncias e de ser criança são inúmeras Para fazêlo devemos sempre levar em conta que de um lado a concepção de infância informa sempre as ações voltadas às crianças e de outro que as crianças atuam desde este lugar seja para ocupálo seja para expandilo ou negálo É a partir dele que agem ou é contra ele que agem Por isso a concepção de infância deve ser sempre considerada nas duas pontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianças aquela que avalia o lugar da criança e trata de seus direitos das políticas públicas a elas voltadas de ações educacionais etc e aquela que atenta para o ponto de vista das crianças Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo ou todos os lados destas realidades multifacetadas ao menos devemos ter isso em mente que as ações voltadas às crianças e o lugar que lhes é destinado são definidos por concepções de infância na mesma medida em que o modo como as crianças atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir mesmo que contra desta posição que lhes é oferecida e que elas conhecem e reconhecem Assim podemos inclusive deixar de debater qual a melhor abordagem a das crianças ou das políticas por exemplo na condição de admitir que serão sempre incompletas se desconsiderarem o outro lado mesmo quando não o abordem diretamente Referências ALVAREZ Myriam M Kitoko Maxakali a criança indígena e os processos de formação aprendizagem e escolarização Revista Anthropologicas Recife v 15 n 1 p 4978 2004 ARIÈS Phillipe História social da criança e da família 2 ed Rio de Janeiro LTC 1981 BEGNAMI Patrícia As crianças como interlocutoras das pesquisas antropológicas In II Seminário de grupos de pesquisa sobre crianças e infâncias Rio de Janeiro 2010 CALAF Priscila P Criança faz criança desconstruindo sexualidade e infância com meninos e meninas de rua Dissertação de Mestrado Universidade de Brasília UnB 2008 CARNEIRO DA CUNHA Manuela Cultura com aspas São Paulo CosacNaify 2009 CODONHO Camila G Aprendendo entre pares a transmissão horizontal de saberes entre as crianças indígenas GalibiMarwono Dissertação de Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina 2007 242 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 COHN Clarice A criança indígena a concepção xikrin de infância e aprendizado Dissertação de Mestrado São Paulo Universidade de São Paulo 2000a Crescendo como um Xikrin uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os KayapóXikrin do Bacajá Revista de Antropologia São Paulo v 43 n 2 p 195222 2000b Noções sociais de infância e desenvolvimento infantil Cadernos de Campo São Paulo v 10 n 9 p 1326 2000c A experiência da infância e o aprendizado entre os Xikrin In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002a p 117149 A criança o aprendizado e a socialização na antropologia In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002b p 213235 Antropologia da criança Rio de Janeiro Zahar 2005a O desenho das crianças e o antropólogo reflexões a partir das crianças mebengokré xikrin Comunicação apresentada na 6ª Reunión de antropología del Mercosur Montevidéo Uruguai 2005b Educação escolar indígena para uma discussão de cultura criança e cidadania ativa Perspectiva Florianópolis v 1 n 1 p 485515 juldez 2005c A tradução de cultura os MebengokréXikrin 26ª Reunião Brasileira de Antropologia Porto Seguro 2008 wwwabantorgbrconteudoANAISCD Virtual26RBAgruposdetrabalhotrabalhosGT2033clarice20cohnpdf A infância nas propostas de educação escolar indígena diferenciada no Brasil 8ª Reunião de Antropologia do Mercosul Buenos Aires 2009 A tradução de cultura para os Mebengokré da perspectiva de suas crianças 27ª Reunião Brasileira de Antropologia Belém 2010 Children death and the dead the MebengokréXikrin case Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 selected editon 2010 CORREIA DA SILVA Rogério Circulando com os meninos infância participação e aprendizagens de meninos indígenas Xakriabá Tese Doutorado Faculdade de Educação Universidade Federal de Minas Gerais 2011 FERNANDES Florestan Aspectos da educação na sociedade Tupinambá In SCHADEN E Leituras de etnologia brasileira São Paulo Companhia Editora Nacional 1976 p 6386 FIORAVANTI Raphael H Voluntários do coração uma abordagem antropológica sobre o trabalho voluntário no Hospital Pequeno Príncipe Dissertação Mestrado Uni versidade Federal do Paraná 2006 httpdspacec3slufprbrdspacebitstream handle 18848362DissertacaoPequenoPrincipeRaphaelFioravantipdfsequence1 FREIRE DA COSTA J Ordem médica e norma familiar Rio de Janeiro Graal 1979 GOLDMAN Marcio Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos etnografia antropologia e política em Ilhéus Bahia Revista de Antropologia São Paulo v 46 n 2 2003 p 423444 C Cohn Concepções de infância e infâncias 243 GREGORI Maria Filomena Viração experiências de meninos de rua São Paulo Companhia das Letras 2000a GREGORI Maria Filomena SILVA Cátia A Meninos de rua e instituições tramas disputas e desmanche São Paulo ContextoUnesco 2000b LIMA Tânia Stolze O dois e seu múltiplo reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi Mana Rio de Janeiro v 42 n 12 p 113132 1996 LIMULJA Hanna C L R Uma etnografia da Escola Indígena FenNó à luz da noção de corpo e das experiências das crianças kaingang e guarani Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina 2007 LOPES DA SILVA A MACEDO A V L S NUNES A Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002 MALHEIROS MORAES Marcos Vinicius A construção de uma infância em uma escola pública de educação infantil da cidade de São Paulo Dissertação Mestrado Universidade de São Paulo 2012 MANTOVANELLI DA SILVA Thaís Regina Relações sociais e espacialidade das crianças do Icatu SP a casa e o quintal II Seminário de grupos de pesquisa sobre crianças e infâncias Rio de Janeiro 2010 Crianças invisíveis da reserva indígena Icatu SP Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos 2011 MARQUI Amanda Rodrigues Tornarse alunoa indígena uma etnografia de uma escola Guarani Mbya Dissertação Mestrado Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de São Carlos 2012 MIRAGLIA Paula Aprendendo a lição uma etnografia das Varas Especiais da Infância e da Juventude Novos Estudos Cebrap São Paulo n 72 p 7998 jul 2005 NAKAMURA Eunice A noção médicocientífica de depressão infantil uma visão histórica e sóciocultural do discurso de adultos sobre a infância In MOTA A SCHRAIBER L B Orgs Infância e saúde perspectivas históricas São Paulo Hucitec 2009 p 234264 Depressão na infância uma abordagem antropológica Tese Doutorado São Paulo Universidade de São Paulo 2004 NUNES Ângela O lugar da criança nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras In LOPES DA SILVA A et al Orgs Crianças indígenas ensaios antropológicos São Paulo Global 2002b p 236277 Brincando de ser Criança contribuições da etnologia indígena brasileira à antropologia da infância Tese Doutorado Departamento de Antropologia do Instituto Universitário de Lisboa 2003 OLIVEIRA Melissa S Nhanhemboé infância educação e religião entre os Guarani de Mbiguaçu Cadernos de Campo São Paulo v 14 n 13 p 7589 2005 RIBEIRO Fernanda Bittencourt Lealdades silêncios e conflitos ser um dos grandes num abrigo para famílias Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v 11 n 1 p 4055 janabr 2011 244 Civitas Porto Alegre v 13 n 2 p 221244 maioago 2013 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Fiocruz 2009 SEEGER Anthony O significado dos ornamentos corporais In Os índios e nós Rio de Janeiro Editora Campus 1980 p 4360 SOUZA Marcela Coelho de Parentes de sangue incesto substância e relação no pensamento Timbira Mana Rio de Janeiro v 10 n 1 2560 abr 2004 TASSINARI Antonella Concepções indígenas de infância no Brasil Revista Tellus Campo Grande v 7 n 13 p 1125 2007 Múltiplas Infâncias o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi a escola ou a sociedade contra a escola 33º Encontro Anual da Anpocs Caxambu 2009 wwwanpocsorgportalindexphpoptioncomdocmantaskdoc viewgid1935Itemid229 TASSINARI Antonella COHN Clarice Opening to the other schooling among the Karipuna and MebengokréXikrin of Brazil Anthropology Education Quarterly v 40 n 2 p 150169 Jun 2009 TOREN Christina Mind materiality and history explorations in Fijian ethnography London Routledge 1999 Como sabemos o que é verdade O caso do mana em Fiji Mana Rio de Janeiro v 12 n 2 p 449477 out 2006 TURNER Terence Social body and embodied subject bodiliness subjectivity and sociality among the Kayapo Cultural Anthropology Durham v 10 n 2 p 143170 May 1995 VIDAL Lux A pintura corporal e a arte gráfica entre os kayapóxikrin do Cateté In Grafismo indígena São Paulo Nobel 1992 p 143189 VIVEIROS DE CASTRO Eduardo B A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia São Paulo Cosac Naify 2002a O nativo relativo Mana Rio de Janeiro v 8 n 1 p 113148 abr 2002b Autora correspondente Clarice Cohn Programa de PósGraduação em Antropologia Social PPGAS Rod Washington Luís km 235 13565905 São Carlos SP Brasil Recebido em 12 set 2012 Aprovado em 9 out 2013

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