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No text detected Ensinando a transgredir A educação como prática da liberdade bell hooks Tradução de Marcelo Brandão Cipolla wmfmartinsfontes SÃO PAULO 2013 ensinando a transgredir a educação como prática da liberdade bell hooks Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título TEACHING TO TRANSGRESS por Taylor Francis Group Copyright 1994 Gloria Watkins Tradução autorizada da edição inglesa publicada por Routledge Inc parte de Taylor Francis Group LLC Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida armazenada em sistemas eletrônicos recuperáveis nem transmitida por nenhuma forma ou meio eletrônico mecânico incluindo fotocópia gravação ou outros sem a prévia autorização por escrito dos Editores Copyright 2013 Editora WMF Martins Fontes Ltda São Paulo para a presente edição 1ª edição 2013 Tradução Marcelo Brandão Cipolla Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisões gráficas Renato da Rocha Carlos Marisa Rosa Teixeira Edição de arte Katia Harumi Terasaka Produção gráfica Geraldo Alves Paginação Moacir Katsumi Matsusaki Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Hooks Bell Ensinando a transgredir a educação como prática da liberdade bell hooks tradução de Marcelo Brandão Cipolla São Paulo Editora WMF Martins Fontes 2013 Título original Teaching to transgress ISBN 9788578277031 1 Ensino 2 Feminismo e educação 3 Pedagogia crítica 4 Pensamento críticoEstudo e ensino I Título 1305850 CDD370115 Índices para catálogo sistemático 1 Pedagogia Educação 370115 Todos os direitos desta edição reservados à Editora WMF Martins Fontes Ltda Rua Prof Laerte Ramos de Carvalho 133 01325030 São Paulo SP Brasil Tel 11 32938150 Fax 11 31011042 email infowmfmartinsfontescombr httpwwwwmfmartinsfontescombr a todos os meus alunos especialmente LaRon que está dançando com os anjos como agradecimento por todas as vezes em que começamos de novo do zero renovamos nossa alegria de aprender Ser capaz de recomeçar sempre de fazer de reconstruir de não se entregar de recusar burocratizarse mentalmente de entender e de viver a vida como processo como vir a ser Paulo Freire Sumário Introdução 9 Ensinando a transgredir 1 Pedagogia engajada 25 2 Uma revolução de valores 37 A promessa da mudança multicultural 3 Abraçar a mudança 51 O ensino num mundo multicultural 4 Paulo Freire 65 5 A teoria como prática libertadora 83 6 Essencialismo e experiência 105 7 De mãos dadas com minha irmã 127 Solidariedade feminista 8 Pensamento feminista 151 Na sala de aula agora 9 Estudos feministas 161 Acadêmicas negras 10 A construção de uma comunidade pedagógica 173 Um diálogo 11 A língua 223 Ensinando novos mundosnovas palavras 12 Confrontação da classe social na sala de aula 235 13 Eros erotismo e o processo pedagógico 253 14 Êxtase 265 Ensinar e aprender sem limites Índice remissivo 275 Introdução Ensinando a transgredir Durante algumas semanas antes de o Departamento de Inglês do Oberlin College decidir me efetivar como professora fui assombrada pelo sonho de fugir de desaparecer até mesmo de morrer O sonho não era uma reação ao medo de eu não conseguir a estabilidade no cargo Era uma reação à realidade de que eu ia conseguir a estabilidade Eu tinha medo de ficar presa na academia para sempre Em vez de ficar eufórica quando fui efetivada caí numa depressão profunda que me pôs a vida em risco Visto que todos ao meu redor achavam que eu devia me sentir aliviada contente orgulhosa sentime culpada por meus verdadeiros sentimentos e não consegui partilhálos com ninguém O ciclo de aulas me levou à ensolarada Califórnia e ao mundo new age da casa da minha irmã em Laguna Beach onde pude esfriar a cabeça por um mês Quando partilhei meus sentimentos com minha irmã ela é terapeuta ela me garantiu que eles não eram nem um pouco impróprios Disse Você nunca quis ser professora Desde quando éramos pequenas tudo o que você sempre quis foi escrever Ela tinha razão Todos sempre partiram do pressuposto de que eu seria professora No Sul na época do apartheid as meninas negras de classe trabalhadora tinham nas escolas exclusivamente negras era coisa do passado De repente o conhecimento passou a se resumir à pura informação Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar Já não tinha ligação com a luta antirracista Levados de ônibus a escolas de brancos logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência não o desejo ardente de aprender A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca Quando entramos em escolas brancas racistas e dessegregadas deixamos para trás um mundo onde os professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras De repente passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas Para as crianças negras a educação já não tinha a ver com a prática da liberdade Quando percebi isso perdi o gosto pela escola A sala de aula já não era um lugar de prazer ou de êxtase A escola ainda era um ambiente político pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os pressupostos racistas dos brancos de que éramos geneticamente inferiores menos capacitados que os colegas até incapazes de aprender Apesar disso essa política já não era contrahegemônica O tempo todo estávamos somente respondendo e reagindo aos brancos Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras como gente que não deveria estar ali me ensinou a diferença entre a educação como prática da liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação Os raros professores brancos que ousavam resistir que não permitiam que as parcialidades ra três opções de carreira Podíamos casar podíamos trabalhar como empregadas e podíamos nos tornar professoras de escola É visto que de acordo com o pensamento sexista da época os homens na verdade não gostavam de mulheres inteligentes partiase do pressuposto de que quaisquer sinais de inteligência selavam o destino da pessoa Desde o ensino fundamental eu estava destinada a me tornar professora Mas o sonho de me tornar escritora sempre esteve presente dentro de mim Desde a infância eu acreditava que iria lecionar e escrever O escrever seria o trabalho sério e o lecionar o emprego não tão sério de que eu precisava para ganhar a vida O escrever conforme pensava então era uma questão de anseio particular e glória pessoal enquanto o lecionar era um serviço uma forma de retribuir à comunidade Para os negros o lecionar o educar era fundamentalmente político pois tinha raízes na luta antirracista Com efeito foi nas escolas de ensino fundamental frequentadas somente por negros que eu tive a experiência do aprendizado como revolução Quase todos os professores da escola Booker T Washington eram mulheres negras O compromisso delas era nutrir nosso intelecto para que pudéssemos nos tornar acadêmicos pensadores e trabalhadores do setor cultural negros que usavam a cabeça Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo à vida do intelecto era um ato contrahegemônico um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista Embora não definissem nem formulassem essas práticas em termos teóricos minhas professoras praticavam uma peda gogia revolucionária de resistência uma pedagogia profundamente anticolonial Nessas escolas segregadas as crianças negras consideradas excepcionalmente dotadas recebiam atenção especial As professoras trabalhavam conosco e para nós a fim de garantir que realizássemos nosso destino intelectual e assim edifícássemos a raça Minhas professoras tinham uma missão Para cumprir essa missão as professoras faziam de tudo para nos conhecer Elas conheciam nossos pais nossa condição econômica sabiam a que igreja íamos como era nossa casa e como nossa família nos tratava Frequentei a escola num momento histórico em que era ensinada pelas mesmas professoras que haviam dado aula a minha mãe às irmãs e aos irmãos dela Meu esforço e minha capacidade para aprender sempre eram contextualizados dentro da estrutura de experiência das várias gerações da família Certos comportamentos gestos e hábitos de ser eram considerados hereditários Naquela época ir à escola era pura alegria Eu adorava ser aluna Adorava aprender A escola era o lugar do êxtase do prazer e do perigo Ser transformada por novas ideias era puro prazer Mas aprender ideias que contrariavam os valores e crenças aprendidos em casa era correr um risco entrar na zona de perigo Minha casa era o lugar onde eu era obrigada a me conformar à noção de outra pessoa acerca de quem e o que eu deveria ser A escola era o lugar onde eu podia esquecer essa noção e me reinventar através das ideias A escola mudou radicalmente com a integração racial O zelo messiânico de transformar nossa mente e nosso ser que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas de interesse não me impediu de me envolver com ideias feministas nem de participar da sala de aula feminista Essas salas de aula eram o único espaço onde as práticas pedagógicas eram questionadas onde se partia do princípio de que o conhecimento oferecido aos alunos os capacitaria a ser acadêmicos melhores e a viver com mais plenitude no mundo extraacadêmico A sala de aula feminista era o único espaço onde os alunos podiam levantar questões críticas sobre os processos pedagógicos Essas críticas nem sempre eram estimuladas ou bem recebidas mas eram permitidas Essa mínima aceitação do questionamento crítico era um desafio crucial que nos convidava como alunos a pensar seriamente sobre a pedagogia em sua relação com a prática da liberdade Quando fui dar minha primeira aula no curso de graduação me apoiei no exemplo das inspiradas mulheres negras que davam aula na minha escola de ensino fundamental na obra de Freire e no pensamento feminista sobre a pedagogia radical Eu tinha o desejo apaixonado de lecionar de um modo diferente daquele que eu conhecia desde o ensino médio O primeiro paradigma que moldou minha pedagogia foi a ideia de que a sala de aula deve ser um lugar de entusiasmo nunca de tédio E caso o tédio prevalecesse seriam necessárias estratégias pedagógicas que interviessem e alterassem a atmosfera até mesmo a perturbassem Nem a obra de Freire nem a pedagogia feminista trabalhavam a noção do prazer na sala de aula A ideia de que aprender deve ser empolgante às vezes até divertido era tema de discussão crítica entre os educadores que escreviam sobre as práticas pedagógicas no ensino fundamental e às vezes até no ensino médio Mas nem os educadores tradicionais nem os radicais pareciam interessados em discutir o papel do entusiasmo no ensino superior O entusiasmo no ensino superior era visto como algo que poderia perturbar a atmosfera de seriedade considerada essencial para o processo de aprendizado Entrar numa sala de aula de faculdade munida da vontade de partilhar o desejo de estimular o entusiasmo era um ato de transgressão Não exigia somente que se cruzassem as fronteiras estabelecidas não seria possível gerar o entusiasmo sem reconhecer plenamente que as práticas didáticas não poderiam ser regidas por um esquema fixo e absoluto Os esquemas teriam de ser flexíveis teriam de levar em conta a possibilidade de mudanças espontâneas de direção Os alunos teriam de ser vistos de acordo com suas particularidades individuais me inspirei nas estratégias que as professoras do ensino fundamental usavam para nos conhecer e a interação com eles teria de acompanhar suas necessidades nesse ponto Freire foi útil A reflexão crítica sobre minha experiência como aluna em salas de aula tediosas me habilitou a imaginar não somente que a sala de aula poderia ser empolgante mas também que esse entusiasmo poderia coexistir com uma atividade intelectual eou acadêmica séria e até promovêla Mas o entusiasmo pelas ideias não é suficiente para criar um processo de aprendizado empolgante Na comunidade da sala de aula nossa capacidade de gerar entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso interesse uns pelos outros por ouvir a voz uns dos outros por reconhecer a presença uns dos outros Visto que a grande maioria dos alunos aprende por meio de práticas educacionais tradicionais e conservadoras e só se interessa pela presença do professor qualquer pedagogia radical precisa insistir em que a presença de todos seja reconhecida E não basta simplesmente afirmar essa insistência É preciso demonstrála por meio de práticas pedagógicas Para começar o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada um Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula que todos contribuem Essas contribuições são recursos Usadas de modo construtivo elas promovem a capacidade de qualquer turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado Muitas vezes antes de o processo começar é preciso desconstruir um pouco a noção tradicional de que o professor é o único responsável pela dinâmica da sala Essa responsabilidade é proporcional ao status Fato é que o professor sempre será o principal responsável pois as estruturas institucionais maiores sempre depositarão sobre seus ombros a responsabilidade pelo que acontece em sala de aula Mas é raro que qualquer professor por eloquente que seja consiga gerar por meio de seus atos um entusiasmo suficiente para criar uma sala de aula empolgante O entusiasmo é gerado pelo esforço coletivo A visão constante da sala de aula como um espaço comunitário aumenta a probabilidade de haver um esforço coletivo para criar e manter uma comunidade de aprendizado Houve um semestre em que dei aula para uma turma muito difícil que fracassou completamente no nível comunitário Em todo aquele período concluí que a principal desvantagem a inibir o desenvolvimento de uma comunidade de aprendizado era o fato de a aula acontecer de que estava falando não só com os professores mas também com os alunos O campo acadêmico de escrever sobre a pedagogia crítica eou a pedagogia feminista continua sendo antes de tudo um discurso feito e ouvido por homens e mulheres brancos O próprio Freire não só em suas conversas comigo como também em várias obras escritas sempre reconheceu que se situa na posição do homem branco especialmente aqui nos Estados Unidos Mas em anos recentes a obra de vários pensadores da pedagogia radical para mim esse termo inclui as perspectivas crítica eou feminista passou a incluir um verdadeiro reconhecimento das diferenças determinadas pela classe social pela raça pela prática sexual pela nacionalidade e por aí afora Esse progresso entretanto não parece coincidir com uma presença significativamente maior de vozes negras ou de outras vozes não brancas nas discussões sobre as práticas pedagógicas radicais Minhas práticas pedagógicas nasceram da interação entre as pedagogias anticolonialista crítica e feminista cada uma das quais ilumina as outras Essa mistura complexa e única de múltiplas perspectivas tem sido um ponto de vista envolvente e poderoso a partir do qual trabalhar Transpondo as fronteiras ele possibilitou que eu imaginase e efetivasse práticas pedagógicas que implicam diretamente a preocupação de questionar as parcialidades que reforçam os sistemas de dominação como o racismo e o sexismo e ao mesmo tempo proporcionam novas maneiras de dar aula a grupos diversificados de alunos Neste livro quero partilhar ideias estratégias e reflexões críticas sobre a prática pedagógica Quero que estes ensaios interagir com a plateia de pensar na questão da reciprocidade Os professores não são atores no sentido tradicional do termo pois nosso trabalho não é um espetáculo Por outro lado esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais a se tornar partes ativas no aprendizado Assim como muda nossa maneira de atuar também nossa voz deve mudar Na vida cotidiana falamos de um jeito diferente com as diferentes plateias Para nos comunicar melhor escolhemos um jeito de falar determinado pelas particularidades e características únicas das pessoas a quem e com quem estamos falando Nesse espírito nem todos estes ensaios têm a mesma voz Refletem meu esforço de usar a linguagem de modo a levar em conta os contextos específicos bem como meu desejo de me comunicar com plateias diversificadas Para lecionar em comunidades diversas precisamos mudar não só nossos paradigmas mas também o modo como pensamos escrevemos e falamos A voz engajada não pode ser fixa e absoluta Deve estar sempre mudando sempre em diálogo com um mundo fora dela Estes ensaios refletem minha experiência de discussões críticas com professores alunos e pessoas que entraram nas minhas aulas como observadoras Em múltiplas camadas portanto eles querem se pôr como testemunhas depondo sobre a educação como prática da liberdade Muito antes de um público qualquer me reconhecer como pensadora ou escritora eu já era reconhecida pelos alunos na sala de aula era vista por eles como uma professora que dava duro para criar uma experiência dinâmica de aprendizado para todos nós Hoje em dia sou mais reconhecida pela prática intelectual insurgente Aliás o público acadêmico que encontro em minhas palestras sempre se mostra surpreso quando falo da sala de aula com intimidade e sentimento Esse público se surpreendeu mais ainda quando eu disse que estava escrevendo uma coletânea de ensaios sobre o ato de ensinar Essa surpresa é um triste lembrete de que o ensino é considerado um aspecto mais enfadonho e menos valorizado da atividade acadêmica Essa perspectiva sobre o ensino é comum mas tem de ser posta em questão para podermos atender às necessidades de nossos alunos para podermos devolver à educação e às salas de aula o entusiasmo pelas ideias e a vontade de aprender A educação está numa crise grave Em geral os alunos não querem aprender e os professores não querem ensinar Mais que em qualquer outro momento da história recente dos Estados Unidos os educadores têm o dever de confrontar as parcialidades que têm moldado as práticas pedagógicas em nossa sociedade e de criar novas maneiras de saber estratégias diferentes para partilhar o conhecimento Não poderemos enfrentar a crise se os pensadores críticos e os críticos sociais progressistas agirem como se o ensino não fosse um objeto digno da sua consideração A sala de aula continua sendo o espaço que oferece as possibilidades mais radicais na academia Há anos é um lugar onde a educação é solapada tanto pelos professores quanto pelos alunos que buscam todos usála como plataforma para seus interesses oportunistas em vez de fazer dela um lugar de aprendizado Com estes ensaios somo minha voz ao apelo coletivo pela renovação e pelo rejuvenes cimento de nossas práticas de ensino Pedindo a todos cistas determinassem seu modo de ensinar mantinham viva a crença de que o aprendizado em sua forma mais poderosa tem de fato um potencial libertador Alguns professores negros haviam se juntado a nós no processo de dessegregação E embora tivessem mais dificuldade continuaram apoiando os alunos negros mesmo diante da suspeita de estarem favorecendo sua própria raça Apesar das experiências intensamente negativas me formei na escola ainda acreditando que a educação é capacitante que ela aumenta nossa capacidade de ser livres Quando comecei o curso de graduação na Universidade Stanford me fascinei pelo processo de me tornar uma intelectual negra insurgente Fiquei surpresa e chocada ao assistir a aulas em que os professores não se entusiasmavam com o ato de ensinar em que pareciam não ter a mais vaga noção de que a educação tem a ver com a prática da liberdade Na faculdade reforçouse a principal lição tínhamos de aprender a obedecer à autoridade No curso de graduação a sala de aula se tornou um objeto de ódio mas era um lugar onde eu lutava para reivindicar e conservar o direito de ser uma pensadora independente A universidade e a sala de aula começaram a se parecer mais com uma prisão um lugar de castigo e reclusão e não de promessa e possibilidade Escrevi meu primeiro livro enquanto fazia o curso de graduação embora ele só tenha sido publicado anos depois Estava escrevendo mas mais importante estava me preparando para ser professora Aceitando a profissão de professora como meu destino eu me atormentava com a realidade das salas de aula que conhecera como aluna de graduação e pósgraduação A sejam uma intervenção contrapondose à desvalorização da atividade do professor e ao mesmo tempo tratando da urgente necessidade de mudar as práticas de ensino Eles têm o objetivo de ser um comentário construtivo Esperançosos e exuberantes transmitem o prazer e a alegria que sinto quando dou aula são ensaios de celebração Ressaltam que o prazer de ensinar é um ato de resistência que se contrapõe ao tédio ao desinteresse e à apatia onipresentes que tanto caracterizam o modo como professores e alunos se sentem diante do aprender e do ensinar diante da experiência da sala de aula Cada ensaio trata de temas comuns que sempre ressurgem nas discussões sobre pedagogia propondo maneiras de repensar as práticas de ensino e estratégias construtivas para melhorar o aprendizado Como foram escritos separadamente para os mais diversos contextos eles têm certos temas em comum ideias se repetem frases importantes são usadas várias vezes Embora eu proponha estratégias estas obras não oferecem modelos para transformar a sala de aula num lugar de entusiasmo pelo aprendizado Se eu fizesse isso iria contra a insistência com que a pedagogia engajada afirma que cada sala de aula é diferente que as estratégias têm de ser constantemente modificadas inventadas e reconceitualizadas para dar conta de cada nova experiência de ensino Ensinar é um ato teatral E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada turma Para abraçar o aspecto teatral do ensino temos de que abram a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável para pensar e repensar para criar novas visões celebro um ensino que permita as transgressões um movimento contra as fronteiras e para além delas É esse movimento que transforma a educação na prática da liberdade Pedagogia engajada A educação como prática da liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender Esse processo de aprendizado é mais fácil para aqueles professores que também creem que sua vocação tem um aspecto sagrado que creem que nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar informação mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual dos nossos alunos Ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas de nossos alunos é essencial para criar as condições necessárias para que o aprendizado possa começar do modo mais profundo e mais íntimo Ao longo de meus muitos anos como aluna e professora fui inspirada sobretudo por aqueles professores que tiveram coragem de transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como uma rotina de linha de produção Esses professores se aproximam dos alunos com a vontade e o desejo de responder ao ser único de cada um mesmo que a situação não permita o pleno surgimento de uma relação baseada no reconhecimento mútuo Por outro lado a possibilidade desse reconhecimento está sempre presente Paulo Freire e o monge budista vietnamita Thích Nhat Hanh são dois professores cuja obra me tocou profunda grande maioria dos nossos professores não dispunham de habilidades básicas de comunicação Não eram autoatualizados e frequentemente usavam a sala de aula para executar rituais de controle cuja essência era a dominação e o exercício injusto do poder Nesse ambiente aprendi muito sobre o tipo de professora que eu não queria ser Na pósgraduação constatei que eu me entediava com frequência na sala de aula O sistema de educação bancária baseado no pressuposto de que a memorização de informações e sua posterior regurgitação representam uma aquisição de conhecimentos que podem ser depositados guardados e usados numa data futura não me interessava Eu queria me tornar uma pensadora crítica Mas essa vontade era vista como uma ameaça à autoridade Os alunos brancos homens considerados excepcionais frequentemente tinham permissão para traçar por si mesmos o curso de sua jornada intelectual mas dos outros e particularmente dos de grupos marginais só se esperava que se conformassem Qualquer falta de conformidade da nossa parte era vista com suspeita como um gesto vazio de desafio cujo objetivo era mascarar a inferioridade ou um trabalho abaixo do padrão Naquela época os alunos oriundos de grupos marginais que tinham permissão para entrar em faculdades prestigiadas e predominantemente brancas eram levados a sentir que não estavam lá para aprender mas para provar que eram iguais aos brancos Estávamos lá para provar isso mostrando o quanto éramos capazes de nos tornar clones de nossos colegas À medida que nos deparávamos com os constantes preconceitos uma corrente oculta de tensão afetava nossa experiência de aprendizado mente Quando entrei na faculdade o pensamento de Freire me deu o apoio de que eu precisava para desafiar o sistema da educação bancária a abordagem baseada na noção de que tudo o que os alunos precisam fazer é consumir a informação dada por um professor e ser capazes de memorizála e armazenála Desde o começo foi a insistência de Freire na educação como prática da liberdade que me encorajou a criar estratégias para o que ele chamava de conscientização em sala de aula Traduzindo esse termo como consciência e engajamento críticos entrei nas salas de aula convicta de que tanto eu quanto todos os alunos tínhamos de ser participantes ativos não consumidores passivos A educação como prática da liberdade era continuamente solapada por professores ativamente hostis à noção de participação dos alunos A obra de Freire afirmava que a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos de trabalhar Essa noção de trabalho coletivo também é afirmada pela filosofia do budismo engajado de Thích Nhat Hanh focada na prática associada à contemplação Sua filosofia é semelhante à insistência de Freire na práxis agir e refletir sobre o mundo a fim de modificálo Em sua obra Thích Nhat Hanh sempre compara o professor a um médico ou curador Sua abordagem como a de Freire pede que os alunos sejam participantes ativos liguem a consciência à prática Enquanto Freire se ocupa sobretudo da mente Thích Nhat Hanh apresenta uma maneira de pensar sobre a pedagogia que põe em evidência a integridade uma união de mente corpo e espírito Sua abordagem holística ao aprendizado e à prática espiritual me permitiu vencer anos e anos de socialização que haviam me levado a acreditar que a sala de aula perde importância quando os alunos e professores encaram uns aos outros como seres humanos integrais buscando não somente o conhecimento que está nos livros mas também o conhecimento acerca de como viver no mundo Nestes vinte anos de experiência de ensino percebi que os professores qualquer que seja sua tendência política dão graves sinais de perturbação quando os alunos querem ser vistos como seres humanos integrais com vidas e experiências complexas e não como meros buscadores de pedacinhos compartimentalizados de conhecimento Quando eu era aluna de graduação os Estudos da Mulher estavam apenas começando a encontrar seu lugar na academia Aquelas aulas eram o único espaço em que as professoras estavam dispostas a admitir que existe uma ligação entre as ideias aprendidas no contexto universitário e as aprendidas pela prática da vida E apesar dos momentos em que os alunos abusavam dessa liberdade em sala de aula e queriam falar somente sobre sua experiência pessoal as salas de aula feministas eram no geral o lugar onde eu via as professoras buscando criar espaços participativos para a partilha de conhecimento Hoje em dia a maioria das professoras de Estudos da Mulher já não é tão comprometida com a exploração de novas estratégias pedagógicas Apesar dessa mudança muitos alunos ainda querem fazer os cursos feministas porque continuam acreditando que ali mais que em qualquer outro lugar na academia vão ter a oportunidade de experimentar a educação como prática da liberdade Para reagir a essa tensão e ao tédio e apatia onipresentes que tomavam conta das aulas eu imaginava modos pelos quais o ensino e a experiência de aprendizado poderiam ser diferentes Quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire meu primeiro contato com a pedagogia crítica encontrei nele um mentor e um guia alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador Com os ensinamentos dele e minha crescente compreensão de como a educação que eu recebera nas escolas exclusivamente negras do Sul havia me fortalecido comecei a desenvolver um modelo para minha prática pedagógica Já profundamente engajada no pensamento feminista não tive dificuldade em aplicar essa crítica à obra de Freire Significativamente eu sentia que esse mentor e guia que eu nunca vira pessoalmente estimularia e apoiaria minha contestação às suas ideias se fosse realmente comprometido com a educação como prática da liberdade Ao mesmo tempo eu usava seus paradigmas pedagógicos para criticar as limitações das salas de aula feministas Durante os anos que passei na graduação e na pósgraduação somente professoras brancas estavam envolvidas no desenvolvimento de programas de Estudos da Mulher E embora a primeira aula que dei como estudante de pósgraduação tenha falado sobre as escritoras negras de uma perspectiva feminista ela aconteceu no contexto de um programa de Estudos Negros Descobri naquela época que as professoras brancas não estavam muito dispostas a promover o interesse pelo pensamento feminista e pelos estudos feministas entre as alunas negras se esse interesse viesse acompanhado de alguma contestação crítica Mas essa falta A educação progressiva e holística a pedagogia engajada é mais exigente que a pedagogia crítica ou feminista convencional Ao contrário destas duas ela dá ênfase ao bemestar Isso significa que os professores devem ter o compromisso ativo com um processo de autoatualização que promova seu próprio bemestar Só assim poderão ensinar de modo a fortalecer e capacitar os alunos Thich Nhat Hanh ressalta que a prática do curador do terapeuta do professor ou de qualquer profissional de assistência deve ser dirigida primeiro para ele mesmo Se a pessoa que ajuda estiver infeliz não poderá ajudar a muita gente Nos Estados Unidos é raro ouvir alguém comparar os professores universitários a curadores E é ainda mais raro ouvir alguém afirmar que os professores têm a responsabilidade de ser indivíduos autoatualizados Antes de entrar na faculdade eu conhecia o trabalho dos intelectuais e acadêmicos principalmente a partir da ficção e da não ficção do século XIX e por isso tinha certeza de que a tarefa dos que escolhem essa vocação é a de buscar holisticamente a autoatualização Foi a experiência concreta da faculdade que perturbou essa imagem Foi ali que eu passei a me sentir terrivelmente ingênua a respeito da profissão Aprendi que longe de ser autoatualizada a universidade era vista antes como um porto seguro para pessoas competentes em matéria de conhecimento livresco mas inaptas para a interação social Por sorte durante o curso de graduação comecei a distinguir entre a prática de ser um intelectualprofessor e o papel de membro da academia Era difícil continuar fiel à ideia do intelectual como uma pessoa que buscava ser íntegra num contexto em que pouco se ressaltava o bemestar espiritual o cuidado da alma Com efeito a objetificação do professor dentro das estruturas educacionais burguesas parecia depreciar a noção de integridade e sustentar a ideia de uma cisão entre mente e corpo uma ideia que promove e apoia a compartimentalização Esse apoio reforça a separação dualista entre o público e o privado estimulando os professores e os alunos a não ver ligação nenhuma entre as práticas de vida os hábitos de ser e os papéis professorais A ideia da busca do intelectual por uma união de mente corpo e espírito tinha sido substituída pela noção de que a pessoa inteligente é intrinsecamente instável do ponto de vista emocional e só mostra seu melhor lado no trabalho acadêmico Isso queria dizer que pouco importava que os acadêmicos fossem drogados alcoólatras espancadores da esposa ou criminosos sexuais o único aspecto importante da nossa identidade era o fato de nossa mente funcionar ou não ou sermos capazes de fazer nosso trabalho na sala de aula Estava implícito que o eu desaparecia no momento em que entrávamos na sala deixando em seu lugar somente a mente objetiva livre de experiências e parcialidades Temiase que as condições do eu prejudicassem o processo de ensino Um dos luxos e privilégios atuais do papel de professor escolar ou universitário é a ausência do requisito de que o professor seja autoatualizado Não surpreende que os professores menos preocupados com o bemestar interior sejam os que mais se sentem ameaçados pela exigência estudantil de uma educação libertadora de processos pedagógicos que ajudem os alunos em sua luta pela autoatualização É certo que eu era ingênua ao imaginar durante o ensino médio que receberia orientação espiritual e intelectual da parte de escritores pensadores e acadêmicos no contexto universitário Encontrar uma tal coisa seria o mesmo que descobrir um tesouro precioso Aprendi junto com os outros alunos a me dar por contente se encontrasse um professor interessante capaz de falar de maneira envolvente A maioria dos meus professores não estavam nem um pouco interessados em nos esclarecer Mais que qualquer outra coisa pareciam fascinados pelo exercício do poder e da autoridade dentro do seu reininho a sala de aula Não quero dizer que não houvesse tiranos encantadores e benevolentes mas minha memória me diz que era raro extraordinariamente assombrosamente raro encontrar professores profundamente comprometidos com práticas pedagógicas progressistas Isso me desiludiu a maioria dos meus professores não me despertou o desejo de imitar seu estilo de ensino O compromisso com a busca de conhecimento me deu força para continuar assistindo às aulas Mas mesmo assim como eu não era conformista não era uma aluna passiva que não questiona alguns professores me tratavam com desprezo Eu estava aos poucos me distanciando da educação Em meio a esse distanciamento encontrar Freire foi fundamental para minha sobrevivência como estudante A obra dele me mostrou um caminho para compreender as limitações do tipo de educação que eu estava recebendo e ao mesmo tempo para descobrir estratégias alternativas de aprender e ensinar Uma coisa que me decepcionou muito foi conhecer professores brancos homens que afirmavam seguir o modelo de Freire ao mesmo tempo em que suas práticas pedagógicas estavam afundadas nas estruturas de dominação espelhando os estilos dos professores conservadores embora os temas fossem abordados de um ponto de vista mais progressista Quando conheci a obra de Paulo Freire fiquei ansiosa para saber se seu estilo de ensino incorporava as práticas pedagógicas que ele descrevia com tanta eloquência em sua obra No curto período em que estudei com ele fui profundamente tocada por sua presença pelo modo com que sua maneira de ensinar exemplificava sua teoria pedagógica Nem todos os estudantes interessados em Freire tiveram a mesma experiência Minha experiência com ele me devolveu a fé na educação libertadora Eu nunca quisera abandonar a convicção de que é possível dar aula sem reforçar os sistemas de dominação existentes Precisava ter certeza de que os professores não têm de ser tiranos na sala de aula Embora quisesse seguir carreira de professora eu acreditava que o sucesso pessoal estava intimamente ligado à autoatualização Minha paixão por essa busca me levou a questionar constantemente a cisão entre mente e corpo tantas vezes tomada como ponto pacífico A maioria dos professores eram radicalmente contra chegavam até a desprezar qualquer abordagem ao aprendizado nascida de um ponto de vista filosófico que enfatizasse a união de mente corpo e espírito e não a separação entre esses elementos Como tantos alunos para quem agora dou aula ouvi várias vezes de acadêmicos prestigiados a opinião de que era engano meu procurar aquele tipo de perspectiva na acade mia Durante os anos em que fui estudante senti uma profunda angústia interna Lembrome dessa dor quando ouço os alunos expressar o medo de não obter êxito nas profissões acadêmicas caso queiram se sentir bem caso repudiiem todo comportamento disfuncional e toda participação nas hierarquias coercitivas Esses alunos muitas vezes temem como eu temia que não haja na academia nenhum espaço onde a vontade de autoatualização possa ser afirmada Esse medo existe porque muitos professores reagem de modo profundamente hostil à visão da educação libertadora que liga a vontade de saber à vontade de vir a ser Nos círculos professorais muitos indivíduos se queixam amargamente de que os alunos querem que as aulas sejam uma espécie de terapia de grupo Embora seja irrazoável da parte dos alunos ter a expectativa de que as aulas sejam sessões de terapia é adequado terem a esperança de que o conhecimento recebido nesse contexto os enriqueça e os torne melhores Atualmente os alunos que encontro parecem muito menos convictos do projeto de autoatualização do que eu e minhas colegas estávamos há vinte anos Sentem que não há diretrizes éticas claras para moldar as ações Mas embora tenham perdido a esperança fazem questão de que a educação seja libertadora Querem e exigem mais dos professores do que a minha geração exigia Às vezes entro numa sala abarrotada de alunos que se sentem terrivelmente feridos na psique muitos fazem terapia mas não penso que eles queiram que eu seja a sua terapeuta Querem isto sim uma educação que cure seu espírito desinformado e ignorante Querem um conhecimento significativo Esperam com toda razão que eu e meus colegas não lhes ofereçamos informações sem tratar também da ligação entre o que eles estão aprendendo e sua experiência global de vida Essa exigência da parte dos alunos não significa que eles sempre vão aceitar nossa orientação Essa é uma das alegrias da educação como prática da liberdade pois permite que os alunos assumam a responsabilidade por suas escolhas Escrevendo sobre nossa relação de professoraluno num artigo para o Village Voice How to Run the Yard OffLine and into the Margins at Yale um aluno meu Gary Dauphin partilha as alegrias de trabalhar comigo bem como as tensões que surgiram entre nós quando ele começou a dedicar mais tempo a tentar ser aceito numa confraria universitária que ao cultivo de sua redação As pessoas acham que para acadêmicos como Gloria o nome que meus pais me deram o mais importante são as diferenças mas com ela eu aprendi principalmente sobre as semElhanças sobre o que eu como negro tenho em comum com as pessoas de cor com as mulheres os gays as lésbicas os pobres e qualquer outro que queira entrar Parte desse aprendizado eu adquiri pela leitura mas a maior parte veio por eu estar presente na periferia da vida dela Vivi assim por algum tempo transitando entre pontos altos na sala de aula e pontos baixos lá fora Gloria era um porto seguro Não há nada mais contrário às aulas dela do que o noviciado da confraria universitária nada está mais longe da cozinha amarela onde ela costumava partilhar o almoço com alunos que precisavam de vários tipos de sustento Isso é o que Gary escreveu sobre a alegria A tensão surgiu quando discutimos suas razões para querer entrar numa confraria e meu desprezo por essa decisão Gary comenta As confrarias representavam uma visão da masculinidade negra que ela abominava uma visão onde a violência e os maustratos eram os sinais principais da união e da identidade Descrevendo sua afirmação de autonomia em relação à minha influência ele escreve Mas ela também devia saber que até a influência dela sobre minha vida tinha limites que os livros e professores tinham limites No fim Gary concluiu que a decisão de entrar na confraria não era construtiva que eu havia lhe ensinado a abertura enquanto a confraria estimulava a fidelidade unidimensional Nossos intercâmbios durante essa experiência e depois dela foram exemplos de pedagogia engajada Por meio do pensamento crítico processo que ele aprendeu lendo sobre teoria e analisando ativamente os textos Gary experimentou a educação como prática da liberdade Seus comentários finais sobre mim Gloria só mencionou o episódio uma vez depois que tudo acabou e isso simplesmente para me dizer que existem muitos tipos de escolha muitos tipos de lógica Desde que fosse sincero eu poderia fazer com que aqueles acontecimentos significassem qualquer coisa Citei extensamente o que ele escreveu porque é um depoimento a favor da pedagogia engajada Significa que minha voz não é o único relato do que acontece em sala de aula A pedagogia engajada necessariamente valoriza a expressão do aluno No ensaio Interrupting the Calls for Student Voice in Liberatory Education A Feminist Post structuralist Perspective Mimi Orner emprega uma abordagem foucaultiana para afirmar que Os meios e usos reguladores e punitivos da confissão nos lembram de práticas curriculares e pedagógicas em que os alunos são chamados a revelar publicamente e até a confessar informações sobre sua vida e sua cultura na presença de figuras de autoridade como os professores Quando a educação é a prática da liberdade os alunos não são os únicos chamados a partilhar a confessar A pedagogia engajada não busca simplesmente fortalecer e capacitar os alunos Toda sala de aula em que for aplicado um modelo holístico de aprendizado será também um local de crescimento para o professor que será fortalecido e capacitado por esse processo Esse fortalecimento não ocorrerá se nos recusarmos a nos abrir ao mesmo tempo em que encorajamos os alunos a correr riscos Os professores que esperam que os alunos partilhem narrativas confessionais mas não estão eles mesmos dispostos a partilhar as suas exercem o poder de maneira potencialmente coercitiva Nas minhas aulas não quero que os alunos corram nenhum risco que eu mesma não vou correr não quero que partilhem nada que eu mesma não partilharia Quando os professores levam narrativas de sua própria experiência para a discussão em sala de aula eliminase a possibilidade de atuarem como inquisidores oniscientes e silenciosos É produtivo muitas vezes que os professores sejam os primeiros a correr o risco ligando as narrativas confessionais às discussões acadêmicas para mostrar de que modo a experiência pode iluminar e ampliar nossa compreensão do material acadêmico Mas a maioria dos professores têm de treinar para estarem abertos em sala de aula estarem totalmente presentes em mente corpo e espírito Os professores progressistas que trabalham para transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas de dominação nem reflita mais nenhuma parcialidade são em geral os indivíduos mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer de sua prática de ensino um foco de resistência No ensaio On Race and Voice Challenges for Liberation Education in the 1990s Chandra Mohanty escreve que a resistência reside na interação consciente com os discursos e representações dominantes e normativos e na criação ativa de espações de oposição analíticos e culturais Evidentemente uma resistência aleatória e isolada não é tão eficaz quanto aquela mobilizada por meio da prática politizada e sistemática de ensinar e aprender Descobrir conhecimentos subjugados e tomar posse deles é um dos meios pelos quais as histórias alternativas podem ser resgatadas Mas para transformar radicalmente as instituições educacionais esses conhecimentos têm de ser compreendidos e definidos pedagogicamente não só como questão acadêmica mas como questão de estratégia e prática Os professores que abraçam o desafio da autoatualização serão mais capazes de criar práticas pedagógicas que envolvam os alunos proporcionandolhes maneiras de saber que aumentem sua capacidade de viver profunda e plenamente Perdi o contato com Ken depois da formatura embora ele sempre tenha ocupado um lugar especial em minhas lembranças Eu pensava nele toda vez que interagia com brancos que acreditavam que ter uma amiga negra era sinal de que não eram racistas que acreditavam sinceramente estar nos fazendo um favor quando nos ofereciam um contato amistoso pelo qual se achavam no direito de ser recompensados Pensei nele durante os anos em que vi os brancos brincar de desaprender o racismo mas se afastar sempre que encontravam obstáculos rejeição conflito e dor Nossa amizade de colegial não se formara porque ele era branco e eu negra mas porque víamos a realidade do mesmo modo A diferença racial nos obrigava a lutar para fazer valer a integridade daquele vínculo Não tínhamos ilusões Sabíamos que haveria obstáculos conflito e dor No patriarcado capitalista da supremacia branca palavras que nunca usamos na época sabíamos que teríamos de pagar um preço por aquela amizade que teríamos de ter coragem para defender nossa crença na democracia na justiça racial no poder transformador do amor O valor que dávamos ao nosso vínculo era suficiente para encararmos esse desafio Dias antes da confraternização lembrando a doçura daquela amizade me senti muito humilde quando percebi a quantas coisas nós renunciamos na juventude acreditando que algum dia vamos encontrar algo tão bom quanto aquilo ou melhor mas que acabamos não encontrando Perguntei a mim mesma como era possível que Ken e eu tivéssemos perdido o contato um com o outro Desde aquela época eu não havia conhecido nenhum branco que compreendesse a profundidade e a complexidade da injustiça racial e estivesse disposto a praticar a arte de viver sem racismo como as pessoas estavam naquela época Na vida adulta encontrei poucos brancos realmente dispostos a fazer o que é preciso para criar um mundo de igualdade racial brancos dispostos a correr riscos a ser corajosos a nadar contra a corrente Fui à confraternização na esperança de ter a oportunidade de encontrar Ken pessoalmente de lhe dizer o quanto eu tinha carinho por tudo o que havíamos partilhado de lhe dizer em palavras que eu nunca ousaria dizer a um branco naquela época simplesmente que eu o amava Lembrando desse passado o que mais me toca era nosso compromisso apaixonado com uma visão de transformação social baseada na crença fundamental numa ideia radicalmente democrática de liberdade e justiça para todos Nossas noções de mudança social não eram sofisticadas Não havia uma complexa teoria política pósmoderna moldando nossas ações Simplesmente tentávamos mudar a vida cotidiana para que nossos valores e hábitos de ser refletissem nosso compromisso com a liberdade Na época nossa principal preocupação era acabar com o racismo Hoje assistindo à ascensão da supremacia branca e ao crescente apartheid social e econômico que separa brancos e negros ricos e pobres homens e mulheres juntei à luta pelo fim do racismo um compromisso com o fim do sexismo e da opressão sexista e com a erradicação dos sistemas de exploração de classe Ciente de que vivemos numa cultura da dominação me pergunto agora como me perguntava há mais de vinte anos quais valores e hábitos de ser refletem meunosso compromisso com a liberdade Olhando para trás vejo que nos últimos vinte anos conheci muita gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça para todos mas seu modo de vida os valores e os hábitos de ser que essa gente institucionaliza no dia a dia em rituais públicos e privados ajudam a manter a cultura da dominação ajudam a criar um mundo sem liberdade No livro Where Do We Go From Here Chaos or Community Martin Luther King com intuição profética disse aos cidadãos deste país que não conseguiríamos avançar se não sofrêssemos uma verdadeira revolução dos valores Garantiunos que a estabilidade do mundo desta grande casa onde habitamos terá de envolver uma revolução de valores que acompanhe as revoluções científicas e libertárias que engolem a Terra Temos de deixar de ser uma sociedade orientada para as coisas e passar rapidamente a ser uma sociedade orientada para as pessoas Quando as máquinas e os computadores a ambição de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes que as pessoas tornase impossível vencer os gigantes trêsmos do racismo do materialismo e do militarismo É tão fácil a civilização naufragar diante da falência moral e espiritual quanto diante da falência financeira Hoje vivemos no meio desse naufrágio Vivemos no caos na incerteza de que será possível construir e manter uma comunidade As figuras públicas que mais nos falam sobre a volta a valores antigos incorporam os males que King descreve São as pessoas mais comprometidas com a manutenção de sistemas de dominação o racismo o sexismo a exploração de classe e o imperialismo Elas provem uma visão perversa de liberdade que a equipara ao materialismo Nos ensinam a crer que a dominação é natural que os fortes e poderosos têm o direito de governar os fracos e impotentes O que me espanta é que embora tanta gente afirme rejeitar esses valores nossa rejeição coletiva está longe de ser completa visto que eles ainda prevalecem em nossa vida cotidiana Ultimamente tenho sido levada a pensar em quais são as forças que nos impedem de avançar de sofrer aquela revolução de valores que nos permitiria viver de modo diferente King nos ensinou a compreender que para termos paz na Terra nossa fidelidade tem de transcender nossa raça nossa tribo nossa classe nosso país Muito antes de a palavra multiculturalismo entrar na moda ele nos encorajava a desenvolver uma perspectiva mundial Mas o que testemunhamos hoje em dia na vida cotidiana não é uma avidez por parte de pessoas próximas e distantes de desenvolver uma perspectiva mundial mas sim uma volta ao nacionalismo estreito ao isolacionismo e à xenofobia A Nova Direita e os neoconservadores costumam explicar essas mudanças como uma tentativa de impor ordem ao caos de voltar a um passado idealizado Na noção de família citada nessas discussões os papéis sexistas são proclamados como tradições estabilizadoras Não surpreende que essa visão da vida familiar seja associada a uma noção de segurança que implica que estamos sempre mais seguros junto à gente do nosso próprio grupo raça classe religião e assim por diante Por mais que as estatísticas de violência doméstica homicídio estupro e maustratos a crianças indiquem que a família patriarcal idealizada está longe de ser um espaço seguro que as vítimas de violência têm maior probabilidade de ser atacadas por pessoas semelhantes a elas que por estranhos misteriosos e diferentes esses mitos conservadores se perpetuam Está claro que uma das principais razões por que não sofremos uma revolução de valores é que a cultura de dominação necessariamente promove os vícios da mentira e da negação Essa mentira assume uma forma aparentemente inocente muitos brancos e até alguns negros afirmam que o racismo não existe mais e que as sólidas oportunidades de igualdade social atualmente existentes habilitam qualquer negro trabalhador a alcançar a autossuficiência econômica Vamos esquecer que o capitalismo implica a existência de uma massa de mão de obra excedente subprivilegiada Essa mentira toma a forma da criação pelos meios de comunicação de massa do mito de que o movimento feminista transformou completamente a sociedade a tal ponto que a política do poder patriarcal se inverteu e os homens especialmente os brancos mas também os negros castrados se tornaram vítimas de mulheres dominadoras Por isso dizem todos os homens especialmente os negros têm de se unir como nas audiências para a confirmação de Clarence Thomas para apoiar e reafirmar a dominação patriarcal Quando se acrescentam a isso as onipresentes suposições de que os negros as mulheres brancas e outras minorias estão tirando os empregos dos homens brancos e de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem fica mais do que evidente que a crise contemporânea é criada em parte por uma falta de acesso significativo à verdade Ou seja não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça Se examinarmos criticamente o papel tradicional da universidade na busca da verdade e na partilha de conhecimento e informação ficará claro infelizmente que as parcialidades que sustentam e mantêm a supremacia branca o imperialismo o sexismo e o racismo distorceram a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática da liberdade O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural por repensar os modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas de aula de como ensinamos e do que ensinamos foram revoluções necessárias que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e corrupta Quando todos começaram a falar sobre a diversidade cultural isso nos entusiasmou Para nós que estávamos à margem pessoas de cor gente da classe trabalhadora gays lésbicas e por aí afora e sempre tivéramos sentimentos ambivalentes sobre nossa presença numa instituição onde o conhecimento era partilhado de modo a reforçar o colonialismo e a dominação era emocionante pensar que a visão de justiça e democracia que estava no próprio âmago do movimento pelos direitos civis iria se realizar na acade zada está longe de ser um espaço seguro que as vítimas de violência têm maior probabilidade de ser atacadas por pessoas semelhantes a elas que por estranhos misteriosos e diferentes esses mitos conservadores se perpetuam Está claro que uma das principais razões por que não sofremos uma revolução de valores é que a cultura de dominação necessariamente promove os vícios da mentira e da negação Essa mentira assume uma forma aparentemente inocente muitos brancos e até alguns negros afirmam que o racismo não existe mais e que as sólidas oportunidades de igualdade social atualmente existentes habilitam qualquer negro trabalhador a alcançar a autossuficiência econômica Vamos esquecer que o capitalismo implica a existência de uma massa de mão de obra excedente subprivilegiada Essa mentira toma a forma da criação pelos meios de comunicação de massa do mito de que o movimento feminista transformou completamente a sociedade a tal ponto que a política do poder patriarcal se inverteu e os homens especialmente os brancos mas também os negros castrados se tornaram vítimas de mulheres dominadoras Por isso dizem todos os homens especialmente os negros têm de se unir como nas audiências para a confirmação de Clarence Thomas para apoiar e reafirmar a dominação patriarcal Quando se acrescentam a isso as onipresentes suposições de que os negros as mulheres brancas e outras minorias estão tirando os empregos dos homens brancos e de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem fica mais do que evidente que a crise contemporânea é criada em parte por uma falta de acesso significativo à verdade Ou seja não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça Se examinarmos criticamente o papel tradicional da universidade na busca da verdade e na partilha de conhecimento e informação ficará claro infelizmente que as parcialidades que sustentam e mantêm a supremacia branca o imperialismo o sexismo e o racismo distorceram a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática da liberdade O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural por repensar os modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas de aula de como ensinamos e do que ensinamos foram revoluções necessárias que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e corrupta Quando todos começaram a falar sobre a diversidade cultural isso nos entusiasmou Para nós que estávamos à margem pessoas de cor gente da classe trabalhadora gays lésbicas e por aí afora e sempre tivéramos sentimentos ambivalentes sobre nossa presença numa instituição onde o conhecimento era partilhado de modo a reforçar o colonialismo e a dominação era emocionante pensar que a visão de justiça e democracia que estava no próprio âmago do movimento pelos direitos civis iria se realizar na acade mia Até que enfim havia a possibilidade de uma comunidade de aprendizado um lugar onde as diferenças fossem reconhecidas onde todos finalmente compreenderiam aceitariam e afirmariam que nossas maneiras de conhecer são forjadas pela história e pelas relações de poder Por fim iríamos nos livrar da negação coletiva da academia e reconhecer que a educação que quase todos nós havíamos recebido e estávamos transmitindo não era e nunca é politicamente neutra Estava na cara que a mudança não seria imediata mas havia uma tremenda esperança de que o processo que havíamos desencadeado levasse à realização do sonho da educação como prática da liberdade De início muitos colegas participaram com relutância dessa mudança Muitos constataram que na tentativa de respeitar a diversidade cultural tinham de confrontar não só as limitações de seu conhecimento e formação como também uma possível perda de autoridade Com efeito o desmascaramento de certas verdades e preconceitos na sala de aula muitas vezes criava caos e confusão A ideia de que a sala de aula deve ser sempre um local seguro e harmônico foi posta em questão Os indivíduos tinham dificuldade para captar plenamente a noção de que o reconhecimento da diferença poderia também exigir de nós a disposição de ver a sala de aula mudar de figura de permitir mudanças nas relações entre os alunos Muita gente entrou em pânico O que viam à sua frente não era a reconfortante ideia de um caldeirão de diversidade cultural de um arcoíris coletivo onde todos estaríamos unidos em nossas diferenças mas sim todos sorrindo amarelo uns para os outros Era a essência da fantasia colonizadora uma per membros mais jovens do professorado de introduzir novos paradigmas capazes de produzir a mudança Num dos meus seminários sobre Toni Morrison à medida que as pessoas sentadas em círculo expunham reflexões críticas sobre a linguagem dessa escritora uma menina classicamente branca loira tipo colegial contou que um de seus outros professores de Língua Inglesa um branco mais velho cujo nome ninguém quis saber confessou que estava contente por encontrar uma aluna ainda interessada em ler literatura palavras a linguagem dos textos e não aquela papagaiada sobre raça e gênero Achando engraçada a suposição que ele tinha feito a respeito dela ela se perturbou com sua convicção de que os modos convencionais de abordagem crítica do romance não pudessem coexistir com aulas que também oferecessem novas perspectivas Então partilhei com a classe algo que me aconteceu numa festa de Halloween Um novo colega um branco com quem eu conversava pela primeira vez fez uma invectiva ao simplesmente ouvir falar do meu seminário sobre Toni Morrison Destacou que Cantares de Salomão era uma versão piorada de Por quem os sinos dobram de Hemingway Apaixonadamente hostil a Morrison e estudioso de Hemingway ele parecia estar manifestando a preocupação tantas vezes repetida de que as escritoras e pensadoras negras são imitações baratas de grandes homens brancos Como não queria naquele momento entrar nos assuntos Desaprender o Colonialismo Despojarse do Racismo e Primeira Aula sobre Sexismo optei pela estratégia que havia aprendido num livro de autoajuda que nega a existência do patriarcado institucionalizado Mulheres que amam demais simplesmente disse Ah Mais tarde lhe garanti que leria Por quem os sinos dobram de novo para ver se fazia a mesma relação Ambos os incidentes aparentemente banais revelam como é profundo o medo de que qualquer descentralização das civilizações ocidentais do cânone do homem branco seja na realidade um ato de genocídio cultural Certas pessoas acham que todos os que apoiam a diversidade cultural querem substituir uma ditadura do conhecimento por outra trocar um bloco de pensamento por outro Talvez seja essa a percepção mais errônea da diversidade cultural Embora haja entre nós um pessoal excessivamente zeloso que pretende substituir um conjunto de absolutos por outro mudando simplesmente o conteúdo essa perspectiva não representa com precisão as visões progressistas de como o compromisso com a diversidade cultural pode transformar construtivamente a academia Em todas as revoluções culturais há períodos de caos e confusão épocas em que graves enganos são cometidos Se tivermos medo de nos enganar de errar se estivermos a nos avaliar constantemente nunca transformaremos a academia num lugar culturalmente diverso onde tanto os acadêmicos quanto aquilo que eles estudam abarquem todas as dimensões dessa diferença Com a intensificação do recuo o corte de orçamentos a escassez cada vez maior de empregos várias das poucas intervenções progressistas feitas para mudar a academia para criar uma atmosfera favorável à mudança cultural correm o risco de ser solapadas ou eliminadas Essas ameaças não devem ser ignoradas Tampouco o nosso compromisso com a diversidade cultural deve mudar porque ainda não criamos e implementamos estratégias perfeitas Para criar uma academia culturalmente diversa temos de nos comprometer inteiramente Aprendendo com outros movimentos de mudança social com os esforços pelos direitos civis e pela liberação feminina temos de aceitar que nossa luta será longa e estar dispostos a permanecer pacientes e vigilantes Para nos comprometer com a tarefa de transformar a academia num lugar onde a diversidade cultural informe cada aspecto do nosso conhecimento temos de abraçar a luta e o sacrifício Não podemos nos desencorajar facilmente Não podemos nos desesperar diante dos conflitos Temos de afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade Buscando forças na vida e na obra de Martin Luther King sempre me lembro do profundo conflito interior que ele sofreu quando sentiu que suas crenças religiosas o obrigavam a se opor à Guerra do Vietnã Com medo de perder o apoio dos burgueses conservadores e de afastarse das Igrejas dos negros King meditou numa passagem da Epístola aos Romanos capítulo 12 versículo 2 que o lembrou da necessidade da dissensão do desafio e da mudança Não vos conformeis com este mundo mas transformaivos pela renovação da vossa mente Todos nós na academia e na cultura como um todo somos chamados a renovar nossa mente para transformar as instituições educacionais e a sociedade de tal modo que nossa maneira de viver ensinar e trabalhar possa refletir nossa alegria diante da diversidade cultural nossa paixão pela justiça e nosso amor pela liberdade ponto de vista multicultural deve levar em consideração o medo dos professores quando se lhes pede que mudem de paradigma É preciso instituir locais de formação onde os professores tenham a oportunidade de expressar seus temores e ao mesmo tempo aprender a criar estratégias para abordar a sala de aula e o currículo multiculturais Quando entrei no Oberlin College fiquei transtornada pelo que me parecia uma falta de compreensão de muitos professores sobre como poderia ser a sala de aula multicultural Chandra Mohanty minha colega de Estudos da Mulher tinha a mesma preocupação Embora nem eu nem ela fôssemos professoras titulares nossa forte crença de que o campus de Oberlin não estava encarando de frente a questão de mudar o currículo e as práticas de ensino de um jeito progressista que promovesse a inclusão nos levou a pensar em como intervir nesse processo Partimos do princípio de que a imensa maioria dos professores de Oberlin quase todos brancos eram essencialmente bemintencionados e se preocupavam com a qualidade da educação que os alunos recebiam no campus Portanto tenderiam a apoiar qualquer esforço no sentido da educação para a consciência crítica Juntas decidimos realizar uma série de seminários com foco na pedagogia transformadora e abertos a todos os professores De início também acolhíamos alunos mas percebemos que a presença deles tolhi a discussão sincera Na primeira noite por exemplo vários professores brancos fizeram comentários que poderiam ser interpretados como terrivelmente racistas e os alunos saíram da sala e espalharam por toda a faculdade o que tinha sido dito Vista que nossa intenção era educar para a consciência crítica não queríamos que ninguém se sentisse atacado ou tivesse sua reputação de professor manchada no espaço do seminário Queríamos porém que este fosse um espaço de confrontação construtiva e questionamento crítico Para garantir que isso acontecesse tivemos de excluir os alunos No primeiro encontro Chandra pedagoga por formação e eu falamos sobre os fatores que haviam influenciado nossas práticas pedagógicas Sublinhei o impacto da obra de Freire sobre o meu pensamento Uma vez que minha formação básica tinha se realizado em escolas segregadas por raça falei sobre a experiência de aprender quando as nossas próprias experiências são consideradas centrais e significativas e sobre como isso mudou com a dessegregação quando as crianças negras foram obrigadas a frequentar escolas onde eram vistas como objetos e não sujeitos Muitos professores presentes no primeiro encontro se sentiram perturbados pelo fato de discutirmos temas políticos abertamente Tivemos de lembrar a todos várias vezes que nenhuma educação é politicamente neutra Mostrando que o professor branco do departamento de literatura inglesa que só fala das obras escritas por grandes homens brancos está tomando uma decisão política tivemos de enfrentar e vencer a vontade avassaladora de muitos presentes de negar a política do racismo do sexismo do heterossexismo etc que determina o que ensinamos e como ensinamos Constatamos várias vezes que quase todos especialmente a velha guarda se perturbavam mais com o reconhecimento franco de o quanto nossas preferências políticas moldam nossa pedagogia do que com sua aceitação passiva de modos de ensinar e aprender que refletem parcialidades particularmente o ponto de vista da supremacia branca Para partilhar nosso esforço de intervenção convidamos professores universitários de todo o país a vir dar palestras formais e informais sobre o trabalho que desenvolviam no sentido de transformar o ensino e o aprendizado para possibilitar uma educação multicultural Convidamos Cornel West então professor de religião e filosofia em Princeton para dar uma palestra sobre descentralizar a civilização ocidental Esperávamos que sua formação muito convencional e sua prática progressista como pesquisador dessem a todos uma sensação de otimismo quanto à nossa capacidade de mudar Na sessão informal alguns professores brancos homens tiveram a coragem de dizer claramente que aceitavam a necessidade de mudar mas não tinham certeza de quais seriam as consequências da mudança Isso nos lembrou que as pessoas têm dificuldade de mudar de paradigma e precisam de um contexto onde deem voz a seus medos onde falem sobre o que estão fazendo como estão fazendo e por quê Uma das reuniões mais úteis foi aquela em que pedimos a professores de várias disciplinas inclusive de matemática e ciências que falassem informalmente sobre como seu ensino havia sido modificado pelo desejo de promover a inclusão A abordagem de ouvir as pessoas descrevendo estratégias concretas ajudava a dissipar o medo Era crucial que os professores mais tradicionais ou conservadores que tinham tido a disposição de fazer mudanças falassem sobre motivações e estratégias Quando as reuniões acabaram Chandra e eu sentimos de início uma tremenda decepção Não havíamos percebido o quanto o corpo docente precisava desaprender o racismo para aprender sobre a colonização e a descolonização e compreender plenamente a necessidade de criar uma experiência democrática de aprendizado das artes liberais Com demasiada frequência à vontade de incluir os considerados marginais não correspondia à disposição de atribuir a seus trabalhos o mesmo respeito e consideração dados aos trabalhos de outras pessoas Nos Estudos da Mulher por exemplo as professoras tratam das mulheres de cor somente no finalzinho do semestre ou juntam numa única parte do curso tudo o que se refere à raça e às diferenças Essa modificação próforma do currículo não é uma transformação multicultural mas sabemos que é a mudança que os professores mais tendem a fazer Vou dar outro exemplo Quando uma professora de inglês branca inclui uma obra de Toni Morrison no roteiro do curso mas fala sobre ela sem fazer nenhuma referência à raça ou à etnia o que isso significa Já ouvi várias mulheres brancas se gabarem de ter mostrado aos alunos que os escritores e escritoras negros são tão bons quanto os do cânone dos homens brancos mas elas não chamam a atenção para a questão da raça É claro que essa pedagogia não questiona as parcialidades estabelecidas pelos cânones convencionais ou quem sabe por todos os cânones É ao contrário mais um tipo de modificação próforma A falta de disposição de abordar o ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência da raça do sexo e da classe social tem suas raízes muitas vezes no medo de que a sala de aula se torne incontrolável que as emoções e paixões não sejam mais represadas Em certa medida todos nós sabemos que quando tratamos em sala de aula de temas acerca dos quais os alunos têm sentimentos apaixonados sempre existe a possibilidade de confrontação expressão vigorosa das ideias e até de conflito Em boa parte dos meus escritos sobre pedagogia sobretudo em salas de aula de grande diversidade falei sobre a necessidade de examinar criticamente o modo como nós professores conceituamos como deve ser o espaço de aprendizado Muitos professores universitários me confessaram seu sentimento de que a sala de aula deve ser um lugar seguro traduzindo isso em geral significa que o professor dá aula a um grupo de estudantes silenciosos que só respondem quando são estimulados A experiência dos professores universitários que educam para a consciência crítica indica que muitos alunos especialmente os de cor não se sentem seguros de modo algum nesse ambiente aparentemente neutro É a ausência do sentimento de segurança que muitas vezes promove o silêncio prolongado ou a falta de envolvimento dos alunos Fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir é um objetivo central da pedagogia transformadora Em toda a minha carreira de professora muitos professores universitários brancos me falaram de sua preocupação com os alunos não brancos que não falam À medida que a sala de aula se torna mais diversa os professores têm de enfrentar o modo como a política da dominação se reproduz no contexto educacional Os alunos brancos e homens por exemplo continuam sendo os que mais falam em nossas aulas Os alunos de cor e algumas mulheres brancas dizem ter medo de que os colegas os julguem intelectualmente inferiores Já dei aula a brilhantes alunos de cor alguns de idade avançada que conseguiram com muita habilidade nunca abrir a boca em sala de aula Alguns expressam o sentimento de que se simplesmente não afirmarem sua subjetividade terão menos probabilidade de ser agredidos Disseram que muitos professores universitários jamais manifestaram o menor interesse por ouvir a voz deles A aceitação da descentralização global do Ocidente a adoção do multiculturalismo obrigam os educadores a centrar sua atenção na questão da voz Quem fala Quem ouve E por quê Cuidar para que todos os alunos cumpram sua responsabilidade de contribuir para o aprendizado na sala de aula não é uma abordagem comum no sistema que Freire chamou de educação bancária onde os alunos são encarados como meros consumidores passivos Uma vez que tantos professores ensinam a partir desse ponto de vista é difícil criar uma comunidade de aprendizado que abrace plenamente o multiculturalismo Os alunos estão muito mais dispostos que os professores a abrir mão de sua dependência em relação à educação bancária Também estão muito mais dispostos a enfrentar o desafio do multiculturalismo Foi como professora no contexto da sala de aula que testemunhei o poder de uma pedagogia transformadora fundada no respeito pelo multiculturalismo Trabalhando com uma pedagogia crítica baseada em minha compreensão dos ensinamentos de Freire entro na sala partindo do princípio de que temos de construir uma comunidade para criar um clima de abertura e rigor intelectual Em vez de enfocar a questão da segurança penso que o sentimento de comunidade cria a sensação de um compromisso partilhado e de um bem comum que nos une Idealmente o que todos nós partilhamos é o desejo de aprender de receber ativamente um conhecimento que intensifique nosso desenvolvimento intelectual e nossa capacidade de viver mais plenamente no mundo Segundo minha experiência um dos jeitos de construir a comunidade na sala de aula é reconhecer o valor de cada voz individual Cada aluno das minhas turmas tem um diário Muitas vezes eles escrevem parágrafos durante a aula e os leem uns aos outros Isso acontece pelo menos uma vez qualquer que seja o tamanho da turma E a maioria das minhas turmas não é pequena Têm de trinta a sessenta alunos e houve circunstâncias em que dei aula para mais de cem Ouvir um ao outro o som de vozes diferentes escutar um ao outro é um exercício de reconhecimento Também garante que nenhum aluno permaneça invisível na sala Alguns deles se ressentem de ter de dar uma contribuição verbal por isso tenho de deixar claro desde o princípio que isso é um requisito nas minhas aulas Mesmo que a voz de um dos alunos não possa ser ouvida por meio da fala ele faz sentir sua presença por meio de sinalização mesmo que ninguém consiga ler os sinais Quando entrei pela primeira vez na sala de aula multicultural e multiétnica eu estava despreparada Não sabia como lidar eficazmente com tanta diferença Apesar da política progressista e do meu envolvimento profundo com o movimento feminista eu nunca havia sido obrigada a trabalhar num contexto verdadeiramente diverso e não tinha as habilidades necessárias É o caso da maioria dos educadores Muitos educadores nos Estados Unidos têm dificuldade para imaginar como ficará a sala de aula quando se confrontrarem com os dados demográficos que indicam que o ser branco pode deixar de ser a etnia normal em todos os níveis educacionais Logo os educadores estão mal preparados quando confrontam concretamente a diversidade É por isso que tantos se aferram obstinadamente aos velhos padrões Trabalhando para criar estratégias de ensino que abrissem espaço para o aprendizado multicultural constatai a necessidade de reconhecer aquilo que em outros textos de pedagogia chamei de diferentes códigos culturais Para ensinar eficazmente um corpo discente diverso tenho de aprender esses códigos E os alunos também têm Esse ato por si só transforma a sala de aula A partilha de ideias e informações nem sempre progride tão rápido quanto poderia progredir num contexto mais homogêneo Muitas vezes os professores e os alunos no contexto multicultural têm de aprender a aceitar diferentes maneiras de conhecer novas epistemologias Assim como é difícil para os professores mudar de paradigma também pode ser difícil para os alunos Sempre acreditei que os alunos têm de gostar de aprender Mas constatai que existe muito mais tensão no contexto da sala de aula diversa onde a filosofia de ensino é baseada na pedagogia crítica e no meu caso na pedagogia crítica feminista A presença da tensão e às vezes até de conflito fez com que frequentemente os alunos não gostassem nem das minhas aulas nem de mim sua professora como eu secretamente queria que gostassem Ensinando uma disciplina tradicional do ponto de vista da pedagogia crítí ca muitas vezes encontro alunos que fazem a seguinte queixa Achei que este curso era de inglês Por que estamos falando tanto de feminismo Às vezes acrescentam de raça de classe social Na sala de aula transformada é muito mais necessário explicar a filosofia a estratégia e a intenção do curso que no contexto normal No decorrer dos anos constatai que muitos alunos que se queixam sem parar durante meus cursos entram em contato comigo num momento posterior para dizer o quanto aquela experiência foi significativa para eles o quanto aprenderam No papel de professora tive de abrir mão da minha necessidade de afirmação imediata do sucesso no ensino embora parte da recompensa seja imediata e admitir que os alunos podem não compreender de cara o valor de um certo ponto de vista ou de um processo O aspecto empolgante de criar na sala de aula uma comunidade onde haja respeito pelas vozes individuais é que o retorno é bem maior pois os alunos se sentem de fato livres para falar e e responder E é verdade muitas vezes esse retorno assume a forma de crítica Deixar de lado a necessidade de afirmação imediata foi crucial para meu crescimento como professora Aprendi a respeitar o fato de que mudar de paradigma ou partilhar o conhecimento de maneira nova são desafios leva tempo para que os alunos sintam esses desafios como positivos Os alunos também me ensinaram que é preciso praticar a compaixão nesses novos contextos de aprendizado Não me esqueço do dia em que um aluno entrou na aula e me disse Nós fazemos seu curso Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico que leva em conta a raça o sexo e a classe social E não conseguimos mais curtir a vida Olhando para o resto da turma vi alunos de todas as raças etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal de assentimento E vi pela primeira vez que pode haver e geralmente há uma certa dor envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras formas Respeito essa dor E agora quando ensino trato de reconhecêla ou seja ensino a mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar Os alunos brancos que aprendem a pensar de maneira mais crítica sobre questões de raça e racismo vão para casa nas férias e de repente veem seus pais sob outra luz Podem reconhecer neles um pensamento retrógrado racista e assim por diante e podem se magoar pelo fato de a nova maneira de conhecer ter criado um distanciamento onde antes não havia nenhum Muitas vezes quando os alunos voltam de férias ou feriados peço que nos contem como as ideias aprendidas ou trabalhadas na sala de aula impactaram sua experiência lá fora Isso lhes dá tanto a oportunidade de saber que as experiências difíceis acontecem com todo o mundo quanto a prática de integrar teoria e práxis modos de conhecer e hábitos de ser Praticamos não só o questionamento das ideias como também o dos hábitos de ser Por meio desse processo construímos uma comunidade Apesar do foco na diversidade do nosso desejo de inclusão muitos professores ainda ensinam em salas de aula onde a maioria dos alunos é de brancos O espírito da inclusão próforma muitas vezes prevalece nesse contexto É por isso que é tão importante que o ser branco seja estudado compreendido discutido para todos aprenderem que a afirmação do multiculturalismo e uma perspectiva imparcial e inclusiva podem e devem estar presentes mesmo na ausência de pessoas de cor A transformação desse tipo de sala de aula é um desafio tão grande quanto o de ensinar bem num contexto de diversidade Muitas vezes se há somente uma pessoa de cor na sala de aula ela é objetificada pelos outros e obrigada a assumir o papel de informante nativo Estamos lendo por exemplo um romance de uma autora americana de origem coreana Os alunos brancos se voltam para a única aluna de origem coreana e pedem que ela explique o que eles não entendem Isso deposita uma responsabilidade injusta sobre os ombros dessa aluna Os professores podem intervir nesse processo deixando claro desde o início que a experiência não faz o especialista e talvez até explicando o que significa colocar outra pessoa no papel de informante nativo Devo dizer que o professor não deve intervir se também tende a ver os alunos como informantes nativos Muitos alunos já vieram ao meu escritório se queixar da falta de inclusão na aula de algum outro professor Um curso sobre o pensamento social e político nos Estados Unidos por exemplo não inclui nenhuma obra escrita por uma mulher Quando os alunos reclamam com o professor sobre essa falta de inclusão pedese que eles deem sugestões de obras a serem abordadas Muitas vezes isso deposita um fardo injusto sobre os ombros do aluno Também faz parecer que as parcialidades só precisam ser resolvidas quando alguém reclama Os alunos reclamam cada vez mais porque querem uma educação em artes liberais democrática e imparcial O multiculturalismo obriga os educadores a reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo como o conhecimento é partilhado na sala de aula Obriga todos nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de todos os tipos de parcialidade e preconceito Os alunos estão ansiosos para derrubar os obstáculos ao saber Estão dispostos a se render ao maravilhamento de aprender e reaprender novas maneiras de conhecer que vão contra a corrente Quando nós como educadores deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da multiculturalidade do mundo podemos dar aos alunos a educação que eles desejam e merecem Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora Paulo Freire Este é um diálogo lúdico em que eu Gloria Watkins converso com bell hooks minha voz de escritora Quis falar sobre Paulo e sua obra deste jeito porque ele me proporciona uma intimidade uma familiaridade que não me parece possível alcançar na forma de ensaio E aqui encontrei um modo de partilhar a doçura a solidariedade sobre a qual falo Watkins Lendo seus livros Aint I a Woman Black Women and Feminism Feminist Theory From Margin to Center e Talking Back fica claro que seu desenvolvimento como pensadora crítica foi imensamente influenciado pela obra de Paulo Freire Você pode falar de por que a obra dele tocou tão profundamente a sua vida hooks Anos antes de conhecer Paulo Freire eu já tinha aprendido muito com o trabalho dele aprendido maneiras novas e libertadoras de pensar sobre a realidade social Muitas vezes quando os estudantes e professores universitários leem Freire eles abordam a sua obra a partir de um ponto de vista voyeurístico ção subjetiva do educador Freire em quem muitas vezes estão mais interessados do que nas ideias e temas de que ele fala e a posição dos grupos oprimidosmarginalizados de que ele fala Em relação a essas duas posições eles próprios se posicionam como observadores como quem está de fora Quando encontrei a obra de Freire bem num momento da minha vida em que estava começando a questionar profundamente a política da dominação o impacto do racismo do sexismo da exploração de classe e da colonização que ocorre dentro dos próprios Estados Unidos me senti fortemente identificada com os camponeses marginalizados de que ele fala e com meus irmãos e irmãs negros meus camaradas da GuinéBissau Veja você eu chegava à universidade com a experiência de uma negra da zona rural do Sul dos Estados Unidos Tinha vivido a luta pela dessegregação racial e estava na resistência sem ter uma linguagem política para formular esse processo Paulo foi um dos pensadores cuja obra me deu uma linguagem Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência Uma frase isolada de Freire se tornou um mantra revolucionário para mim Não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde Realmente é difícil encontrar palavras adequadas para explicar como essa afirmação era uma porta fechada e lutei comigo mesma para encontrar a chave e essa luta me engajou num processo transformador de pensamento crítico Essa experiência posicionou Freire na minha mente e no meu coração como um professor desafiador cuja obra alimentou minha própria luta contra o processo de colonização a mentalidade colonizadora GW Na sua obra você evidencia uma preocupação permanente com o processo de descolonização particularmente na medida em que afeta os afroamericanos que vivem dentro da cultura da supremacia branca nos Estados Unidos Você enxerga um elo entre o processo de descolonização e a insistência de Freire na conscientização bh Sem dúvida Pelo fato de as forças colonizadoras serem tão poderosas neste patriarcado capitalista de supremacia branca parece que os negros sempre têm de renovar um compromisso com um processo político descolonizador que deve ser fundamental para a nossa vida mas não é É assim a obra de Freire em seu entendimento global das lutas de libertação sempre enfatiza que este é o importante estágio inicial da transformação aquele momento histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mesmas e nossa identidade diante das nossas circunstâncias políticas Mais uma vez esse é um dos conceitos da obra de Freire e da minha que frequentemente é mal compreendido pelos leitores nos Estados Unidos Muita gente me diz que pareço estar afirmando que é suficiente que os indivíduos mudem sua maneira de pensar E veja até o uso da palavra suficiente me diz algo acerca da atitude com que eles encaram essa questão Ela tem uma sonoridade paternalista que não transmite um entendimento profundo de o quanto uma mudança de atitude e não somente o término de qualquer processo transformador pode ser significativa para um povo colonizadooprimido Repeditamente Freire tem de lembrar os leitores de que ele nunca falou da conscientização como um fim em si mas sempre na medida em que se soma a uma práxis significativa Gosto quando ele fala da necessidade de tornar real na prática o que já sabemos na consciência Isto significa enfatizemos que os seres humanos não sobrepassam a situação concreta a condição na qual estão por meio de sua consciência apenas ou de suas intenções por boas que sejam A possibilidade que tive de transcender os estreitos limites de uma cela de 170 m de comprimento por 60 centímetros de largura na qual me achava após o golpe militar brasileiro de 1º de abril de 1964 não era suficiente contudo para mudar minha condição de encarcerado Continuava dentro da cela sem liberdade apesar de poder imaginar o mundo lá fora Mas por outro lado a práxis não é a ação cega desprovida de intenção ou de finalidade É ação e reflexão Mulheres e homens são seres humanos porque se fizeram historicamente seres da práxis e assim se tornaram capazes de transformando o mundo dar significado a ele Creio que tantos movimentos políticos progressistas não conseguem ter impacto duradouro nos Estados Unidos exatamente por não terem uma compreensão suficiente da práxis É isso que me toca quando em Por uma pedagogia da pergunta Antonio Faundez afirma que uma das coisas que aprendemos no Chile nessa pré reflexão sobre a cotidianeidade era que as afirmações abstratas políticas religiosas ou morais que eram excelentes não se transformavam não se concretizavam nas ações individuais Éramos revolucionários em abstrato não na vida cotidiana Creio que a revolução começa justamente na revolução da vida cotidiana Sempre me espanto quando as pessoas progressistas agem como se a crença de que nossa vida deve ser um exemplo vivo de nossa política fosse de algum modo uma posição moral ingênua GW Muitas leitoras de Freire sentem que a linguagem sexista da obra dele que não foi modificada nem depois de ser questionada pelo movimento feminista contemporâneo e pela crítica feminista é um exemplo negativo Quando você leu Freire pela primeira vez qual foi sua reação ao sexismo da linguagem dele bh Enquanto lia Freire em nenhum momento deixei de estar consciente não só do sexismo da linguagem como também do modo com que ele e outros líderes políticos intelectuais e pensadores críticos progressistas do Terceiro Mundo como Fanon Memmi etc constrói um paradigma falocêntrico da libertação onde a liberdade e a experiência da masculinidade patriarcal estão ligadas como se fossem a mesma coisa Isso é sempre motivo de angústia para mim pois representa um ponto cego na visão de homens que têm uma percepção profunda Por outro lado não quero em nenhuma hipótese que a crítica desse ponto cego eclipse a capacidade de qualquer pessoa e particularmente das feministas de aprender com as percepções É por isso que é difícil para mim falar sobre o sexismo na obra de Freire é difícil encontrar uma linguagem que permita estruturar uma crítica e ao mesmo tempo continue reconhecendo tudo o que é valioso e respeitado na obra Pareceme que a oposição binária tão embutida no pensamento e na linguagem ocidentais torna quase impossível que se projete uma resposta complexa O sexismo de Freire é indicado pela linguagem de suas primeiras obras apesar de tantas coisas continuarem libertadoras Não é preciso pedir desculpas pelo sexismo O próprio modelo de pedagogia crítica de Freire acolhe o questionamento crítico dessa falha na obra Mas questionamento crítico não é o mesmo que rejeição GW Então você não vê contradição entre sua valorização da obra de Freire e seu compromisso com os estudos feministas bh É o pensamento feminista que me dá força para fazer a crítica construtiva da obra de Freire da qual eu precisava para que como jovem leitora de seus trabalhos não absorvesse passivamente a visão do mundo apresentada mas existem muitos outros pontos de vista a partir dos quais abordo sua obra e que me permitem perceber o valor dela permitem que essa obra toque o próprio âmago do meu ser Conversando com feministas da academia geralmente mulheres brancas que sentem que devem ou desconsiderar ou desvalorizar a obra de Freire por causa do sexismo vejo claramente que nossas diferentes reações são determinadas pelo ponto de vista a partir do qual encaramos a obra Encontrei Freire quando estava sedenta morrendo de sede com aquela sede aquela carência do sujeito colonizado marginalizado que ainda não tem certeza de como se libertar da prisão do status quo e encontrei na obra dele e na Malcolm X de Fanon etc um jeito de matar essa sede Encontrar uma obra que promove a nossa libertação é uma dádiva tão poderosa que se a dádiva tem uma falha isso não importa muito Imagine a obra como água que contém um pouco de terra Como estamos com sede o orgulho não vai nos impedir de separar a terra e ser nutridos pela água Para mim essa experiência é muito semelhante ao jeito com que os indivíduos privilegiados encaram o uso da água no contexto do Primeiro Mundo Quando você é privilegiado e vive num dos países mais ricos do mundo pode desperdiçar recursos E pode especialmente justificar o fato de jogar fora algo que considera impuro Veja o que a maioria das pessoas faz com a água neste país Muita gente compra água mineral porque considera a água de torneira impura e é claro que essa compra é um luxo Mesmo a nossa capacidade de considerar impura a água que sai da torneira é informada por uma perspectiva imperialista de con sumo É uma expressão de luxo e não simplesmente uma reação à condição da água Se encararmos o consumo de água de torneira a partir de uma perspectiva global vamos ter de falar sobre ele de outra maneira Vamos ter de levar em conta o que a grande maioria das pessoas do mundo têm de fazer para obter água quando estão com sede A obra do Paulo foi uma água viva para mim GW Em que medida você acha que sua experiência de ser afroamericana possibilitou que você se sintonizasse com a obra de Freire bh Como eu já dei a entender fui criada numa área rural do Sul agrário entre negros que trabalhavam a terra e me senti intimamente ligada à discussão da vida dos agricultores na obra de Freire e sua relação com a alfabetização Sabe não existem livros de história que realmente contem como era difícil a política da vida cotidiana para os negros no Sul segregacionista quando tantas pessoas não sabiam ler e frequentemente dependiam de gente racista para explicar ler e escrever E eu fiz parte de uma geração que aprendia essas habilidades que tinha um acesso à educação que ainda era novo A ênfase na educação como necessária para a libertação que os negros afirmavam na época da escravidão e depois durante a reconstrução informava nossa vida E por isso a ênfase de Freire na educação como prática da liberdade fez sentido imediatamente para mim Consciente desde a infância da necessidade da alfabetização levei comigo para a universidade a lembrança de ler para as pessoas de escrever para as pessoas Levei comigo as lembranças de professoras negras no sistema escolar segregado que tinham sido pedagogas críticas e tinham nos proporcionado paradigmas libertadores Foi essa experiência precoce de uma educação libertadora na Booker T Washington e na Crispus Attucks as escolas negras dos meus anos de formação que me deixou perpetuamente insatisfeita com a educação que recebi em ambientes predominantemente brancos E foram educadores como Freire que afirmaram que as dificuldades que eu tinha com o sistema de educação bancária com uma educação que nada tinha a ver com minha realidade social eram uma crítica importante Voltando à discussão do feminismo e do sexismo quero dizer que me senti incluída em Pedagogia do oprimido um dos primeiros livros de Freire que li muito mais do que me senti incluída em minha experiência de pessoa negra de origem rural nos primeiros livros feministas que li obras como The Feminine Mystique e Born Female Nos Estados Unidos não conversamos o suficiente sobre o modo com que a classe social molda nossa perspectiva da realidade Visto que tantos dos primeiros livros feministas refletiam um certo tipo de sensibilidade burguesa branca essas obras não tocaram profundamente muitas mulheres negras não porque não reconhecêssemos as experiências que todas as mulheres partilham mas porque esses pontos em comum eram mediados por diferenças profundas em nossas realidades criadas pelas políticas de raça e classe social GW Você pode falar da relação entre a obra de Freire e o desenvolvimento de sua obra de teoria feminista e crítica social bh Ao contrário das pensadoras feministas que fazem uma separação nítida entre o trabalho da pedagogia feminista e a obra e o pensamento de Paulo Freire para mim essas duas experiências convergem Profundamente comprometida com a pedagogia feminista peguei fios das obras de Paulo e tecios naquela versão de pedagogia feminista que acredito estar incorporada no meu trabalho de escritora e professora Quero afirmar mais uma vez que foi a interseção do pensamento de Paulo com a pedagogia vivida dos muitos professores negros da minha meninice mulheres em sua maioria que se viam cumprindo a missão libertadora de nos educar de maneira a nos preparar para resistir eficazmente ao racismo e à supremacia branca que teve profundo impacto sobre o meu pensamento a respeito da arte e da prática de ensinar Essas negras não defendiam abertamente o feminismo se é que conheciam a palavra mas o próprio fato de insistirem na excelência acadêmica e no pensamento crítico e aberto para as negras jovens era uma prática antissexista GW Fale de modo mais específico acerca dos trabalhos que você fez influenciados por Freire bh Quero dizer que escrevi Aint I a Woman Black Women and Feminism quando era estudante de graduação embora só tenha sido publicado muito depois O livro era a manifestação concreta da minha luta com a questão de deixar de ser objeto e passar a ser sujeito a própria questão que Paulo tinha proposto E agora que muitas estudiosas feministas se não a maioria estão dispostas a reconhecer o impacto da raça e da classe social como fatores que moldam a identidade feminina é fácil esquecer que no começo o movimento feminista não era um ambiente que acolhia bem a luta radical das mulheres negras para teorizar sobre sua subjetividade A obra de Freire e de muitos outros professores afirmava meu direito como sujeito de resistência de definir minha realidade Os escritos dele me proporcionaram um meio para situar a política do racismo nos Estados Unidos dentro de um contexto global onde eu via meu destino ligado ao dos negros que lutavam em toda parte para descolonizar transformar a sociedade Mais que na obra de muitas pensadoras feministas burguesas brancas na obra de Paulo havia o reconhecimento da subjetividade dos menos privilegiados dos que têm de carregar a maior parte do peso das forças opressoras exceto pelo fato de ele nem sempre reconhecer as realidades da opressão e da exploração distinguidas segundo os sexos Esse ponto de vista confirmava meu desejo de trabalhar a partir de uma compreensão vivida das vidas das mulheres negras pobres Só nos anos recentes apareceu nos Estados Unidos uma vertente de trabalho acadêmico que não vê a vida dos negros através de lentes burguesas um trabalho acadêmico fundamentalmente radical que afirma que a experiência dos negros das negras pode com efeito nos dizer mais sobre a experiência das mulheres em geral que uma análise que enfoca primeiro sobretudo e sempre as mulheres que moram em locais privilegiados Uma das razões pelas quais o livro Cartas à GuinéBissau registros de uma experiência em processo de Paulo foi importante para meu trabalho é que se trata de um exemplo crucial de como um pensador crítico privilegiado aborda a partilha de conhecimento e recursos com os necessitados É o Paulo num de seus momentos de sabedoria Ele escreve A ajuda autêntica não é demais insistir é aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar Somente numa tal prática em que os que ajudam e os que são ajudados se ajudam simultaneamente é que o ato de ajudar não se distorce em dominação do que ajuda sobre quem é ajudado Na sociedade americana onde o intelectual e especificamente o intelectual negro muitas vezes assimilou e traiu conceitos revolucionários pelo interesse de manter o poder da classe social é necessário e crucial que os intelectuais negros insurgentes tenham uma ética de luta que informe seu relacionamento com aqueles negros que não tiveram acesso aos modos de saber partilhados nas situações de privilégio GW Comente por favor sobre a disposição de Freire a aceitar críticas especialmente de pensadoras feministas ro Mundo e dar uma palestra pública Eu não tinha ouvido sequer um rumor de que ele estava vindo embora muita gente soubesse o quanto o trabalho dele significava para mim Então acabei descobrindo que ele vinha mas me disseram que todas as vagas para o seminário já estavam preenchidas Protestei No diálogo que se seguiu me disseram que eu não havia sido convidada para os encontros por medo de que levantando críticas feministas eu atrapalhasse a discussão de questões mais importantes Embora me tenham deixado participar quando alguém desistiu no último minuto meu peito já estava pesado com essa tentativa sexista de controlar minha voz de controlar o encontro E isso é claro criou uma guerra dentro de mim pois eu de fato queria interrogar Paulo Freire pessoalmente sobre o sexismo em sua obra Então com cortesia eu tomei a iniciativa na reunião No mesmo instante em que certas pessoas falaram contra o fato de eu levantar essas questões e desvalorizaram sua importância Paulo interveio para dizer que essas questões eram cruciais e as respondeu Nesse momento eu realmente tive amor por ele porque ele exemplificou com atos os princípios de sua obra Se ele tivesse tentado silenciar ou desvalorizar uma crítica feminista muitas coisas teriam mudado para mim E não era suficiente para mim que ele reconhecesse seu sexismo Eu queria saber por que ele não tinha mudado esse aspecto de sua obra anterior por que não tinha reagido a ele em seus escritos Então ele falou que se esforçaria mais para falar e escrever publicamente sobre essas questões fato que ficou claro em sua obra posterior GW Você foi mais afetada pela presença dele que pela obra dele bh Outro grande professor meu embora não tenhamos nos encontrado pessoalmente é o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh E ele diz em The Raft Is Not the Shore que os grandes seres humanos trazem consigo uma espécie de atmosfera santa e quando os procuramos sentimos paz sentimos amor e sentimos coragem Suas palavras definem adequadamente como foi para mim estar na presença do Paulo Passei horas sozinha com ele conversando ouvindo música tomando sorvete na minha lanchonete favorita A sério Thich Nhat Hanh ensina que uma certa atmosfera nasce ao mesmo tempo que um grande mestre E ele diz Quando você o mestre o professor vem e fica uma hora conosco traz consigo essa atmosfera É como se trouxesse uma vela para dentro da sala A vela está ali você traz consigo uma espécie de zona de luz Quando um sábio está lá e você se senta perto dele sente luz e sente paz A lição que aprendi vendo Paulo incorporar na prática aquilo que descreve na teoria foi profunda Entrou em mim me tocou de um jeito que nenhum escrito poderia tocar e me deu coragem Não tem sido fácil para mim fazer o trabalho que faço e me situar na academia ultimamente sinto que se tornou quase impossível mas a gente se inspira a perseverar vendo o exemplo dos outros A presença de Freire me inspirou Não que eu não visse um comportamento sexista da parte dele mas essas contradições são abraçadas como parte do processo de aprendizado parte daquilo que a pessoa luta para mudar e essa luta muitas vezes leva tempo GW Você tem mais alguma coisa a dizer sobre a resposta de Freire à crítica feminista bh Acho importante e significativo que apesar das críticas feministas à sua obra frequentemente ásperas Paulo reconheça que tem um papel a desempenhar nos movimentos feministas Ele declara isso em Por uma pedagogia da pergunta Se as mulheres forem críticas terão que aceitar nossa contribuição como homens assim como os trabalhadores têm que aceitar nossa contribuição como intelectuais porque é um dever e um direito que eu tenho de participar da transformação da sociedade Assim se as mulheres devem ter a principal responsabilidade em sua luta elas têm de saber que essa luta também é nossa isto é daqueles homens que não aceitam a posição machista no mundo O mesmo se dá com o racismo Enquanto homem branco aparentemente porque sempre digo que não tenho muita certeza da minha branquidão a questão é saber se eu estou realmente contra o racismo de forma radical Se estou então tenho o dever e o direito de lutar com o povo negro contra o racismo Paulo Freire 81 GW Freire continua influenciando a sua obra Em seus últimos trabalhos você não o menciona com tanta constância quanto nos primeiros livros bh Embora eu talvez não cite Freire com tanta frequência ele ainda me ensina Quando li Por uma pedagogia da pergunta bem numa época em que tinha começado a fazer reflexões críticas sobre o povo negro e o exílio havia ali tantas coisas sobre a experiência do exílio que me ajudaram E o livro me empolgou Tinha a qualidade daquele diálogo que é um verdadeiro gesto de amor de que Paulo falai em outras obras Assim foi lendo esse livro que decidi que seria útil fazer um trabalho dialógico com o filósofo Cornel West Fizemos o que Paulo chama de um livrodiálogo Breaking Bread É claro que meu grande desejo é fazer um livro desses com o Paulo Além disso já faz algum tempo que venho trabalhando nuns ensaios sobre a morte e o morrer particularmente os modos afroamericanos de morrer Então por uma incrível coincidência estava procurando uma epígrafe para esse trabalho e encontrei estas passagens belíssimas de Paulo que refletem com tamanha intimidade a minha visão de mundo que foi como se para usar uma velha frase do Sul dos Estados Unidos minha língua estivesse na boca do meu amigo Ele escreve Gosto de viver de viver minha vida intensamente Sou o tipo de pessoa que ama apaixonadamente a vida É claro que um dia vou morrer mas tenho a impressão de que quando morrer também vou morrer intensamente Vou morrer experimentando intensamente comigo mesmo Por isso vou morrer com um anseio imenso pela vida pois é assim que tenho vivido GW Isso Ouço você falando essas mesmas palavras Algum último comentário bh Somente que as palavras parecem não ser boas o suficiente para evocar tudo o que aprendi com Paulo Nosso encontro teve aquela qualidade de doçura que continua que perdura por toda a vida mesmo que você nunca mais fale com a pessoa nunca mais lhe veja o rosto sempre pode voltar em seu coração àquele momento em que vocês estiveram juntos e ser renovada é uma solidariedade profunda 5 A teoria como prática libertadora Cheguei à teoria porque estava machucada a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo Cheguei à teoria desesperada querendo compreender apreender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim Mais importante queria fazer a dor ir embora Vi na teoria na época um local de cura Cheguei à teoria jovem quando ainda era criança Em The Significance of Theory Terry Eagleton diz As crianças são os melhores teóricos pois não receberam a educação que nos leva a aceitar nossas práticas sociais rotineiras como naturais e por isso insistem em fazer as perguntas mais constrangedoramente gerais e universais encarandoas com um maravilhamento que nós adultos há muito esquecemos Uma vez que ainda não entendem nossas práticas sociais como inevitáveis não veem por que não poderíamos fazer as coisas de outra maneira Sempre que na infância eu tentava levar as pessoas ao meu redor a fazer as coisas de outra maneira a olhar o mundo de outra forma usando a teoria como intervenção como meio de desafiar o status quo eu era castigada Lem brome de ainda muito nova tentar explicar à Mamãe por que me parecia altamente injusto que o Papai esse homem que quase não falava comigo tivesse o direito de me disciplinar de me castigar fisicamente com cintadas A resposta dela foi dizer que eu estava perdendo o juízo e precisava ser castigada com mais frequência Imagine por favor esse jovem casal negro que batalhava antes de tudo para realizar a norma patriarcal de a mulher ficar em casa tomando conta do lar e dos filhos enquanto o homem trabalhava fora embora esse arranjo significasse que economicamente eles sempre viveriam com menos Tente imaginar como era a vida para eles cada qual trabalhando duro o dia inteiro lutando para sustentar os sete filhos e tendo de lidar com essa criança incansável que com um brilho no olhar questionava ousava desafiar a autoridade masculina se rebelava contra a própria norma patriarcal que eles tanto tentavam institucionalizar Eles deviam ter a impressão de que um monstro havia aparecido entre eles na forma e no corpo de uma criança uma figurinha demoníaca que ameaçava subverter e minar tudo o que eles buscavam construir Não admira então que a reação deles fosse a de reprimir conter punir Não admira que a Mamãe volta e meia me dissesse irritada e frustrada Não sei de onde você veio mas bem que eu gostaria de mandála de volta para lá Imagine também por favor minha dor de infância Eu não me sentia realmente ligada a essa gente estranha a esses familiares que não só não conseguiam entender minha visão de mundo como também sequer queriam ouvir falar dela Na infância eu não sabia de onde tinha vindo E existe brecha entre a teoria e a prática Com efeito o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas um processo que em última análise é recíproco onde uma capacita a outra A teoria não é intrinsecamente curativa libertadora e revolucionária Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim Quando era criança é certo que eu não chamava de teorização os processos de pensamento e crítica em que me envolvia Mas como afirmei em Feminist Theory From Margin to Center a posse de um termo não dá existência a um processo ou prática do mesmo modo uma pessoa pode praticar a teorização sem jamais conhecerpossuir o termo assim como podemos viver e atuar na resistência feminista sem jamais usar a palavra feminismo Muitas vezes as pessoas que empregam livremente certos termos como teoria ou feminismo não são necessariamente praticantes cujos hábitos de ser e de viver incorporam a ação a prática de teorizar ou se engajar na luta feminista Com efeito o ato privilegiado de nomear muitas vezes abre aos poderosos o acesso a modos de comunicação e os habilita a projetar uma interpretação uma definição uma descrição de seu trabalho e de seus atos que pode não ser exata pode esconder o que realmente está acontecendo O ensaio Producing Sex Theory and Culture GayStraight ReMappings in Contemporary Feminism em Conflicts in Feminism de Katie King faz uma discussão muito útil do modo pelo qual a produção acadêmica de teoria feminista formulada num ambiente hierárquico muitas vezes habilita certas mulheres de alto status e visibilidade particularmente as brancas a se apoiar nos trabalhos de pensadoras feministas que podem ter menos status ou status nenhum menos visibilidade ou visibilidade nenhuma sem reconhecer as fontes King discute o modo pelo qual os trabalhos são confiscados e o modo com que as leitoras frequentemente atribuem certas ideias a uma acadêmicapensadora feminista bem conhecida mesmo que essa pessoa tenha citado em sua obra que está construindo em cima de ideias obtidas em fontes menos conhecidas Enfocando particularmente a obra da teórica Chela Sandoval de origem mexicana King afirma Os trabalhos de Sandoval só foram publicados esporádica e excentricamente mas seus manuscritos não publicados em circulação são muito mais citados e frequentemente roubados embora seu raio de influência raras vezes seja compreendido Embora King corra o risco de se pôr no papel de babá quando assume retoricamente a postura de autoridade de feminista determinando o raio e a amplitude da influência de Sandoval o ponto crítico que ela pretende enfatizar é que a produção da teoria feminista é um fenômeno complexo que raras vezes é tão individual quanto parece e geralmente nasce de um envolvimento com fontes coletivas Ecoando teóricas feministas especialmente mulheres de cor que trabalharam com perseverança para resistir à construção de fronteiras críticas restritivas dentro do pensamento feminista King nos encoraja a ter um ponto de vista expansivo sobre o processo de teorização A reflexão crítica sobre a produção contemporânea da teoria feminista mostra com clareza que o distanciamento em relação às primeiras conceituações da teoria feminista que insistiam em que ela era mais eficaz quando estimulava e capacitava a prática feminista começa a ocorrer ou pelo menos se torna mais óbvio com a segregação e a institucionalização do processo de teorização feminista na academia com a atribuição de privilégio ao pensamentoteoria feminista escrito em detrimento das narrativas orais Concomitantemente os esforços das mulheres negras e de cor para desafiar e desconstruir a categoria mulher a insistência em reconhecer que o sexo não é o único fator que determina as construções de feminilidade foram uma intervenção crítica que produziu uma revolução profunda no pensamento feminista e realmente questionou e perturbou a teoria feminista hegemônica produzida principalmente por acadêmicas brancas em sua maioria No rastro dessa perturbação o ataque à supremacia branca manifestada na aliança entre as acadêmicas brancas e seus colegas brancos parece terse formado e crescido em torno de esforços comuns para formular e impor padrões de avaliação crítica que fossem usados para definir o que é teoria e o que não é Esses padrões frequentemente produziram o confisco eou a desvalorização dos trabalhos que não se encaixavam que de repente foram considerados não teóricos ou não suficientemente teóricos Em alguns ambientes parece haver uma ligação direta entre o fato de as acadêmicas feministas brancas acolherem obras e teorias críticas de homens brancos e o fato de deixarem de respeitar e valorizar plenamente as ideias críticas e as propostas teóricas de mulheres negras ou de cor Os trabalhos de mulheres de cor e de grupos marginalizados de mulheres brancas lésbicas e radicais sexuais por exemplo especialmente quando escritos num estilo que os torna acessíveis a um público leitor amplo são frequentemente deslegitimizados nos círculos acadêmicos mesmo que esses trabalhos possibilitem e promovam a prática feminista Embora sejam frequentemente roubados pelos próprios indivíduos que estabelecem os padrões críticos restritivos são esses trabalhos que esses indivíduos mais afirmam não serem teóricos Claramente um dos usos que esses indivíduos fazem da teoria é instrumental Usamna para criar hierarquias de pensamento desnecessárias e concorrentes que endossam as políticas de dominação na medida em que designam certas obras como inferiores ou superiores mais dignas de atenção ou menos King sublinha que a teoria encontra usos diferentes em lugares diferentes É evidente que um dos muitos usos da teoria no ambiente acadêmico é a produção de uma hierarquia de classes intelectuais onde as únicas obras consideradas realmente teóricas são as altamente abstratas escritas em jargão difíceis de ler e com referências obscuras Em A Conversation about Race and Class de Childers e hooks também publicada em Conflicts in Feminism a crítica literária Mary Childers declara ser altamente paradoxal que um certo tipo de desempenho teórico que só pode ser entendido por um círculo mínimo de pessoas tenha passado a ser visto como representativo de toda a produção crítica passível de ser reconhecida como teoria nos círculos acadêmicos É especialmente paradoxal que isso aconteça com a teoria feminista E é fácil imaginar lugares diferentes espaços fora da troca acadêmica onde uma teoria desse tipo seria considerada não somente inútil como também reacionária do ponto de vista político uma espécie de prática narcisista e autocomplacente que em geral procura criar uma brecha entre a teoria e a prática para perpetuar o elitismo de classe Existem tantos contextos neste país em que a palavra escrita tem um significado visual mínimo onde pessoas que não sabem ler nem escrever não encontram utilidade para nenhuma teoria publicada seja ela lúcida ou opaca Por isso nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa conversa cotidiana pode ser usada para educar o público Imagine a mudança que aconteceu dentro dos movimentos feministas quando as estudantes mulheres em sua maioria entraram nas aulas de Estudos da Mulher e leram o que lhes diziam ser teoria feminista mas descobriram que aquilo que liam não tinha sentido não podia ser entendido ou quando era entendido não tinha ligação nenhuma com as realidades vividas fora da sala de aula Como ativistas feministas podemos nos perguntar para que serve uma teoria feminista que agride as psique frágéis de mulheres que lutam para sacudir o jugo opressivo do patriarcado Podemos nos perguntar para que serve uma teoria feminista que literalmente as espanca as expulsa trôpegas e de olhos vidrados do contexto da sala de aula sentindose humilhadas sentindose como se estivessem de pé numa sala ou num quarto em algum lugar nuas na presença de alguém que as seduziu ou vai seduzilas alguém que as sujeita a um processo de interação humilhante que as despoja do sentído do seu valor Evidentemente uma teoria feminista que faz isso pode funcionar para legitimar os Estudos da Mulher e os Estudos Feministas aos olhos do patriarcado dominante mas solapa e subverte os movimentos feministas Talvez seja a existência dessa teoria feminista mais altamente visível que nos compele a falar do abismo entre a teoria e a prática Pois o objetivo dessa teoria é de fato o de dividir separar excluir manter à distância E uma vez que essa teoria continua sendo usada para silenciar censurar e desvalorizar várias vozes teóricas feministas não podemos simplesmente ignorála Por outro lado apesar de ser utilizada como instrumento de dominação ela também pode conter importantes ideias pensamentos e visões que se fossem usados de modo diferente poderiam ter uma função de cura e libertação Entretanto não podemos ignorar os perigos que ela representa para a luta feminista que deve ter suas raízes numa teoria que informe molde e possibilite a prática feminista Dentro dos círculos feministas muitas mulheres reagindo à teoria feminista hegemônica que não fala claramente conosco passaram a atacar toda teoria e em consequência a promover ainda mais a falsa dicotomia entre teoria e prática Assim entram em conluio com aquelas a quem se opõem Interiorizando o falso pressuposto de que a teoria não é uma prática social elas promovem dentro dos círculos feministas a formação de uma hierarquia potencialmente opressora onde toda ação concreta é vista como mais importante que qualquer teoria escrita ou falada Recentemente fui a uma reunião onde estavam presentes principalmente mulheres negras Aí discutimos se os líderes negros homens como Martin Luther King e Malcolm X devem ou não ser sujeitos a críticas feministas que questionem vigorosamente a posição deles diante dos assuntos de gênero A discussão toda durou menos de duas horas Quando estava terminando uma negra que estivera em silêncio disse que não estava interessada em toda aquela teoria e retórica toda aquela falação que estava mais interessada na ação em fazer algo e estava simplesmente cansada da falação A reação dessa mulher me perturbou é uma reação que conheço muito bem Talvez na vida cotidiana essa pessoa habite um mundo diferente do meu No mundo em que vivo meu dia a dia há poucas ocasiões em que pensadoras negras ou de cor se juntam para debater com rigor questões de raça gênero classe social e sexualidade Por isso eu não sabia qual era o ponto de partida dela quando disse que a discussão que estávamos tendo era comum comum a ponto de ser algo que poderíamos dispensar ou de que não precisávamos Senti que estávamos engajadas num processo de diálogo crítico e de teorização que há muito tempo era tabu Logo do meu ponto de vista nós estávamos mapeando novas jornadas tomando posse como mulheres negras de um território intelectual onde poderíamos começar a construção coletiva da teoria feminista Em muitos contextos negros assisti à rejeição dos intelectuais ao rebaixamento da teoria e fiquei calada Acabei percebendo que o silêncio é um ato de cumplicidade que ajuda a perpetuar a ideia de que podemos nos engajar na libertação negra revolucionária e na luta feminista sem a teoria Como muitos intelectuais negros insurgentes cujo trabalho intelectual e cujo ensino se dão num contexto predominantemente branco gosto muito de me engajar com um grupo coletivo de gente negra Por isso quando estou ali não quero agitar o ambiente nem me separar do grupo por discordar dele Nesses contextos quando o trabalho dos intelectuais é desvalorizado no passado eu quase nunca contestava os pressupostos prevalecentes nem falava afirmativamente ou entusiasmada sobre o processo intelectual Tinha medo de que se assumisse uma posição que insistia no valor do trabalho intelectual da teoria em particular ou se simplesmente afirmasse que pensava ser importante ler muito eu corresse o risco de ser vista como pretensiosa ou mandona Muitas vezes fiquei em silêncio Esses riscos ao ego hoje parecem banais quando comparados às crises que enfrentamos como afroamericanos com nossa necessidade premente de reavivar e manter acesa a chama da luta pela libertação negra Na reunião que mencionei tive coragem de falar Respondendo à afirmativa de que estávamos perdendo nosso tempo falando eu disse que via nossas palavras como uma ação que nosso esforço coletivo de discutir questões de gênero e negritude sem censura era uma prática subversiva Muitas questões que continuamos confrontando como negros baixa autoestima intensificação do niilismo e do desespero raiva e violência reprimidas que destroem nosso bemestar físico e psicológico não podem ser resolvidas por estratégias de sobrevivência que deram certo no passado Insisti em que precisávamos de novas teorias arraigadas na tentativa de compreender tanto a natureza da nossa situação atual quanto os meios pelos quais podemos nos engajar coletivamente numa resistência capaz de transformar nossa realidade Entretanto não fui tão rigorosa e insistente quanto seria num ambiente diferente no meu esforço para enfati zar a importância do trabalho intelectual da produção teórica como uma prática social que pode ser libertadora Embora não estivesse com medo de falar não queria ser vista como a estragaprazeres que desfaz a doce sensação coletiva de solidariedade na negritude Esse medo me lembrou de como era mais de dez anos atrás estar nos contextos feministas e fazer perguntas sobre a teoria e a prática particularmente sobre questões de raça e racismo que eram consideradas capazes de romper a irmandade e a solidariedade femininas Parecia paradoxal que numa reunião convocada para honrar Martin Luther King que tantas vezes tivera coragem de falar e agir resistindo ao status quo algumas mulheres negras ainda negassem nosso direito de nos engajar em diálogos e debates políticos de oposição especialmente diante do fato de que essa ocorrência não é habitual nas comunidades negras Por que aquelas mulheres negras sentiam a necessidade de policiar umas às outras de negar às outras um espaço dentro da negritude onde pudéssemos falar de teoria sem sentir vergonha Por que quando tínhamos a oportunidade de celebrar juntas o poder de um pensador crítico negro que teve coragem de se pôr à parte por que essa ansiedade de reprimir qualquer ponto de vista que desse a entender que podíamos aprender coletivamente com as ideias e visões de intelectuaisteóricas negras insurgentes que pela própria natureza do trabalho que fazem estão necessariamente rompendo o estereótipo que nos faria crer que a verdadeira mulher negra é sempre aquela que fala visceralmente que prefere o concreto ao abstrato o material ao teórico A teoria como prática libertadora Infinitas vezes os esforços das mulheres negras para falar quebrar o silêncio e engajarse em debates políticos progressistas radicais enfrentam oposição Há um elo entre a imposição de silêncio que experimentamos a censura e o antiintelectualismo em contextos predominantemente negros que deveriam ser um lugar de apoio como um espaço onde só há mulheres negras e aquela imposição de silêncio que ocorre em instituições onde se diz às mulheres negras e de cor que elas não podem ser plenamente ouvidas ou escutadas porque seus trabalhos não são suficientemente teóricos Em Travelling Theory Cultural Politics of Race and Representation o crítico cultural Kobena Mercer nos lembra que a negritude é complexa e multifacetada e que os negros podem ser inseridos numa política reacionária e antidemocrática Assim como alguns acadêmicos de elite cujas teorias da negritude a transformam num território crítico onde só uns poucos escolhidos podem entrar acadêmicos que usam os trabalhos teóricos sobre a raça como meio para afirmar sua autoridade sobre a experiência dos negros negando o acesso democrático ao processo de construção teórica ameaçam a luta pela libertação coletiva dos negros aqueles entre nós que promovem o antiintelectualismo declarando que toda teoria é inútil fazem a mesma coisa Reforçando a ideia de uma cisão entre a teoria e a prática ou criando essa cisão ambos os grupos negam o poder da educação libertadora para a consciência crítica perpetuando assim condições que reforçam nossa exploração e repressão coletivas Há pouco tempo fui lembrada desse perigoso antiintelectualismo quando concordei em participar de um pro grama de rádio com um grupo de negras e negros para discutir The Blackmans Guide to Understanding the Blackwoman de Shahrazad Ali Todos os que falaram um após o outro expressaram desprezo pelo trabalho intelectual e se colocaram contra todo apelo em favor da produção teórica Uma negra insistiu veementemente em que não precisamos de teoria nenhuma O livro de Ali embora escrito em linguagem simples num estilo que faz um uso interessante do vernáculo dos negros tem uma base teórica Está radicado em teorias do patriarcado a crença essencialista e sexista de que a dominação do sexo feminino pelo masculino é natural por exemplo teorias de que a misoginia é a única reação possível dos homens negros diante de qualquer tentativa de plena autoatualização feminina Muitos nacionalistas negros abraçam com avidez a teoria e o pensamento críticos como armas necessárias na luta contra a supremacia branca mas de repente perdem a noção de que a teoria é importante quando o assunto é gênero é a análise do sexismo e da opressão sexista nos modos particulares e específicos com que ele se manifesta na experiência dos negros A discussão do livro de Ali é um dos muitos exemplos possíveis que ilustram o modo pelo qual o desprezo e a desconsideração pela teoria solapam a luta coletiva de resistência à opressão e à exploração Dentro dos movimentos feministas revolucionários dentro das lutas revolucionárias pela libertação dos negros temos de reivindicar continuamente a teoria como uma prática necessária dentro de uma estrutura holística de ativismo libertador Não basta chamar a atenção para os modos pelos quais a teoria é mal usada Não basta criticar o uso conservador e às vezes reacionário que algumas acadêmicas fazem da teoria feminista Temos de trabalhar ativamente para chamar a atenção para a importância de criar uma teoria capaz de promover movimentos feministas renovados destacando especialmente aquelas teorias que procuram intensificar a oposição do feminismo ao sexismo e à opressão sexista Fazendo isso nós necessariamente celebramos e valorizamos teorias que podem ser e são partilhadas não só na forma escrita mas também na forma oral Refletindo sobre meus próprios trabalhos de teoria feminista percebo que o texto escrito a conversa teórica é mais significativo quando convida as leitoras a se engajar na reflexão crítica e na prática do feminismo Para mim essa teoria nasce do concreto de meus esforços para entender as experiências da vida cotidiana de meus esforços para intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas Isso para mim é o que torna possível a transformação feminista Se o testemunho pessoal a experiência pessoal é um terreno tão fértil para a produção de uma teoria feminista libertadora é porque geralmente constitui a base da nossa teorização Enquanto trabalhamos para resolver as questões mais prementes da nossa vida cotidiana nossa necessidade de alfabetização o fim da violência contra mulheres e crianças a saúde da mulher seus direitos reprodutivos e a liberdade sexual para citar algumas nos engajamos num processo crítico de teorização que nos capacita e fortalece Continuo espantada com o fato de haver tanta produção de textos feministas mas de somente uma parte muito pequena da teoria feminista procurar falar com mulheres homens e crianças a respeito de como podemos transformar nossa vida mediante uma conversão à prática feminista Onde encontrar um corpo teórico feminista cujo objetivo seja ajudar os indivíduos a integrar o pensamento e a prática feministas em sua vida cotidiana Que teoria feminista por exemplo tem o objetivo de auxiliar os esforços das mulheres que vivem em lares sexistas para produzir uma mudança feminista Sabemos que nos Estados Unidos muitos indivíduos usaram o pensamento feminista para educarse de um modo que lhes permitiu transformar sua vida Costumo criticar o feminismo baseado num estilo de vida determinado pois temo que qualquer processo de transformação feminista que busque mudar a sociedade seja facilmente cooptado se não estiver radicado num compromisso político com um movimento feminista de massas No patriarcado capitalista da supremacia branca já assistimos à mercantilização do pensamento feminista assim como assistimos à mercantilização da negritude de um jeito tal que dá a impressão de que alguém pode participar do bem que esses movimentos produzem sem ter de se comprometer com uma política e uma prática transformadoras Nesta cultura capitalista o feminismo e a teoria feminista rapidamente se transformam numa mercadoria que só os privilegiados podem comprar Esse processo de mercantilização é perturbado e subvertido quando na qualidade de ativistas feministas afirmamos nosso compromisso com um movimento feminista politizado e revolucionário que tem como objetivo central a transformação da sociedade Desse ponto de partida automaticamente pensamos em criar uma teoria que fale com o público o mais amplo possível Já sendo lida estudada e comentada num ambiente de penitenciária Uma vez que o ambiente que mais me fez comentários críticos sobre o estudo da minha obra é geralmente acadêmico partilho esse fato com vocês não para me vangloriar nem por falta de modéstia mas para testemunhar para que vocês saibam a partir da minha experiência pessoal que toda a nossa teoria feminista que tem o objetivo de transformar a consciência que realmente quer falar com um público diversificado funciona não é uma fantasia ingênua Em palestras mais recentes falei de como me sinto abençoada pelo fato de minha obra ser afirmada desse modo por estar entre as teóricas feministas cujo trabalho cruza as falsas fronteiras e atua como catalisador da mudanca social No começo houve muitas vezes em que minha obra foi sujeita a formas de rejeição e desvalorização que criaram um desespero profundo dentro de mim Acho que esse desespero foi sentido por toda teóricapensadora negra ou de cor cuja obra é de oposição e nada contra a corrente Michele Wallace por exemplo escreveu de modo emocionante na introdução à reedição de Black Macho and the Myth of the Superwoman que ficou arrasada e por algum tempo foi silenciada pelas reações críticas negativas a seus primeiros trabalhos Sou grata por estar aqui e testemunhar que se nos ativermos à crença de que o pensamento feminista deve ser partilhado com todos quer por meio da fala quer da escrita e criarmos teorias tendo em mente esse programa poderemos promover um movimento feminista do qual as pessoas vão querer ansiar por participar Partilho o A teoria como prática libertadora escrevi em outros textos e disse em inúmeras palestras e conversas que minhas decisões sobre o estilo de redação o fato de eu não usar os formatos acadêmicos convencionais são decisões políticas motivadas pelo desejo de incluir de alcançar tantos leitores quanto possível no maior número possível de situações Essa decisão teve consequências positivas e negativas Os estudantes de várias instituições acadêmicas reclamam que não podem incluir minhas obras como leituras obrigatórias para os exames de conclusão de curso porque seus professores não as consideram suficientemente eruditas Todos nós que criamos teorias e escritos feministas num ambiente acadêmico onde somos continuamente avaliadas sabemos que os textos considerados não eruditos e não teóricos podem nos impedir de receber o reconhecimento e a consideração que merecemos Mas na minha vida essas reações negativas parecem insignificantes em comparação com as reações maciçamente positivas à minha obra tanto dentro quanto fora da academia Há pouco tempo recebi uma série de cartas de presidiários negros que leram meus livros e queriam me dizer que estão trabalhando para desaprender o sexismo Numa carta o escritor se gabou afetuosamente de ter transformado meu nome numa palavra que todos conhecem na penitenciária Esses homens falam de uma reflexão crítica solitária de usar essa obra feminista para compreender as implicações do patriarcado como força que molda sua identidade e sua ideia de masculinidade Depois de receber uma poderosa resposta crítica de um desses homens negros ao meu livro Yearning Race Gender and Cultural Politics fechei os olhos e tentei visualizar essa obra pensamento e a prática feministas onde quer que eu esteja Quando me pedem que eu fale num contexto universitário procuro outros contextos ou colaboro com os que me procuram para poder dar a qualquer pessoa as riquezas do pensamento feminista Às vezes os contextos surgem espontaneamente Num restaurante do Sul por exemplo cujos donos são negros me sentei durante horas com um grupo diversificado de negras e negros de várias classes sociais discutindo questões de raça gênero e classe Alguns tinham formação universitária outros não Tivemos uma discussão acalorada sobre o aborto debatendo se as negras devem ou não ter o direito de escolher Vários negros presentes afrocêntricos afirmavam que a escolha deve ser tanto do homem quanto da mulher Uma das negras feministas presentes diretora de uma clínica de saúde feminina falou de modo eloquente e convincente sobre o direito da mulher de escolher Durante essa discussão acalorada uma das negras presentes que havia ficado em silêncio por bastante tempo hesitando antes de entrar na conversa porque não sabia com certeza se seria capaz de comunicar a complexidade do seu pensamento no modo de falar dos negros de tal modo que nós os ouvintes a escutássemos e compreendêssemos e não zombássemos de suas palavras encontrou sua voz Quando eu estava indo embora essa irmã se aproximou me pegou firmemente pelas duas mãos e me agradeceu pela discussão Como prefácio a suas palavras de gratidão confidenciou que a conversa não só lhe permitiria dar voz a sentimentos e ideias que ela sempre guardara para si como também usando a voz ela conseguiria criar um espaço para que ela e o parceiro mudassem o pensamento e a ação Disse isso diretamente veementemente quando estávamos cara a cara Segurava minhas mãos e repetia Tinha uma dor tão grande dentro de mim Agradeceu porque nosso encontro nossa teorização sobre a raça o gênero e a sexualidade naquela tarde havia aliviado sua dor Testemunhou que sentiu a dor ir embora sentiu uma cura acontecendo dentro dela Segurando minhas mãos com o corpo colado ao meu olhos nos olhos ela me permitiu partilhar empaticamente o calor daquela cura Queria que eu testemunhasse ouvisse novamente tanto o nome da sua dor quanto o poder que surgiu quando sentiu a dor ir embora Não é fácil dar nome à nossa dor tornála lugar de teorização Patricia Williams no ensaio On Being the Object of Property em The Alchemy of Race and Rights escreve que até aqueles entre nós que são conscientes são obrigados a sentir a dor engendrada por todas as formas de dominação homofobia exploração de classe racismo sexismo imperialismo Há momentos na minha vida em que parece que perdi uma parte de mim Há dias em que me sinto tão invisível que não consigo lembrar em que dia da semana estamos em que me sinto tão manipulada que não consigo lembrar meu próprio nome em que me sinto tão perdida e com tanta raiva que não consigo dizer uma palavra bemeducada às pessoas que mais me amam É nesses momentos que vislumbro meu reflexo na vitrine de uma loja e me surpreendo ao ver uma pessoa inteira me olhando de lá Nesses momentos tenho de fechar os olhos e lembrar de mim mesma desenhar uma figura interna que seja inteira e bemacabada Não é fácil dar nome à nossa dor teorizar a partir desse lugar Sou grata às muitas mulheres e homens que ousam criar teoria a partir do lugar da dor e da luta que expõem corajosamente suas feridas para nos oferecer sua experiência como mestra e guia como meio para mapear novas jornadas teóricas O trabalho delas é libertador Além de nos permitir lembrar de nós mesmos e nos recuperar ele nos provoca e desafia a renovar nosso compromisso com uma luta feminista ativa e inclusiva Ainda temos de fazer uma revolução feminista no plano coletivo Sou grata porque como pensadorasteóricas feministas estamos coletivamente em busca de meios para fazer esse movimento acontecer Nossa busca nos leva de volta onde tudo começou àquele momento em que uma mulher ou uma criança que talvez se imaginasse completamente sozinha começou uma revolta feminista começou a dar nome à sua prática começou enfim a formular uma teoria a partir da experiência vivida Imaginemos que essa mulher ou criança estava sofrendo a dor do sexismo e da opressão sexista e queria que a dor fosse embora Sou grata por poder ser uma testemunha declarando que podemos criar uma teoria feminista uma prática feminista um movimento feminista revolucionário capaz de se dirigir diretamente à dor que está dentro das pessoas e oferecerlhes palavras de cura estratégias de cura uma teoria da cura Não há ninguém entre nós que não sentiu a dor do sexismo e da opressão sexista a angústia mada por um pensamento racista e sexista especificamente no que se refere à maneira com que as feministas percebem as mulheres negras e as mulheres de cor Esse problema dos estudos feministas que enfocam a raça e o gênero me chamou particularmente a atenção quando li Essentially Speaking Feminism Nature and Difference de Diana Fuss Intrigada pela discussão de Fuss a respeito dos debates atuais sobre o essencialismo e pelo modo com que ela problematiza a questão minha curiosidade intelectual despertou Em boa parte do livro ela faz uma análise brilhante permitindo que os críticos considerem as possibilidades positivas do essencialismo e ao mesmo tempo levantando pertinentes críticas às suas limitações Em meus textos sobre o assunto The Politics of Radical Black Subjectivity PostModern Blackness em Yearning embora não tenha enfocado tão especificamente o essencialismo quanto Fuss centrome em como as críticas do essencialismo conseguiram desconstruir proveitosamente a ideia de uma identidade e uma experiência negras monolíticas e homogêneas Também discuto como uma crítica totalizadora de subjetividade essência identidade pode parecer muito ameaçadora para os grupos marginalizados para quem a nomeação da própria identidade como parte da luta contra a dominação tem sido um gesto ativo de resistência política Essentially Speaking me forneceu uma estrutura crítica que aumentou minha compreensão do essencialismo mas quando cheguei na metade do livro de Fuss comecei a me sentir desanimada Esse desânimo começou quando li Race under Erasure Poststructuralist AfroAmerican Literary Theory que a dominação masculina pode criar na vida cotidiana a infelicidade e o sofrimento profundos e inesgotáveis Mari Matsuda nos disse que nos contam a mentira de que na guerra não existe dor e que o patriarcado torna essa dor possível Catharine MacKinnon nos lembra de que há certas coisas que sabemos na nossa vida e cujo conhecimento nós vivemos além de qualquer teoria que já tenha sido teorizada Fazer essa teoria é o nosso desafio Em sua produção jaz a esperança da nossa libertação em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome a toda a nossa dor de fazer toda a nossa dor ir embora Se criarmos teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência com base nas massas Não haverá brecha entre a teoria feminista e a prática feminista Nesse ensaio Fuss faz largas generalizações sobre a crítica literária afroamericana sem oferecer a menor pista sobre em qual corpo de trabalho se baseia para tirar suas conclusões Seus pronunciamentos sobre a obra de críticas feministas negras são particularmente perturbadores Fuss afirma Com a exceção dos trabalhos recentes de Hazel Carby e Hortense Spillers as críticas feministas negras têm relutado em renunciar às posições críticas essencialistas e às práticas literárias humanistas Curiosa para saber quais obras se encaixam nessa avaliação espanteime ao ver que Fuss só citava ensaios de Barbara Christian Joyce Joyce e Barbara Smith Embora essas pessoas façam críticas literárias válidas é certo que não representam o conjunto da crítica feminista negra particularmente da crítica literária Resumindo em poucos parágrafos suas perspectivas sobre a literatura feminista negra Fuss se concentra em Houston Baker e Henry Louis Gates críticos literários negros do sexo masculino citando uma porção significativa de seus escritos Parece que uma hierarquia de gênero racializada se estabelece nesse capítulo onde os escritos de homens negros sobre raça são considerados mais dignos de estudo aprofundado que a obra das críticas negras Quando ela rejeita e desvaloriza em uma frase o trabalho da maioria das críticas feministas negras questões problemáticas se levantam Visto que Fuss não quer examinar toda a amplitude do trabalho de crítica feminista feito por mulheres negras é difícil apreender os fundamentos intelectuais que servem de base para sua crítica Seus comentários sobre as críticas feministas negras parecem acréscimos a uma crítica que quando começou na verdade não incluía 6 Essencialismo e experiência As mulheres negras individuais engajadas no movimento feminista escrevendo teoria feminista persistiram em nossos esforços para desconstruir a categoria mulher e defenderam a ideia de que o gênero não é o único determinante da identidade feminina O sucesso desse esforço pode ser avaliado não somente pelo quanto as estudiosas feministas confrontaram questões de raça e racismo mas também pelos novos estudos que examinam o entrelaçamento de raça e gênero Muitas vezes se esquece que a esperança não era somente que as estudiosas e ativistas feministas enfocassem a raça e o gênero mas também que o fizessem de maneira a não endossar as hierarquias opressivas convencionais Em particular para a construção de um movimento feminista com base nas massas consideravase crucial que a teoria não fosse escrita de modo a eliminar e excluir ainda mais as mulheres negras e as mulheres de cor ou pior ainda a nos incluir em posições subordinadas Infelizmente boa parte dos estudos feministas frustra essas esperanças sobretudo porque os críticos não chegam a questionar o lugar desde onde levantam sua voz supondo como hoje é moda fazer que não há necessidade de questionar se a perspectiva a partir da qual escrevem é infor esses trabalhos em sua análise E na medida em que ela não explicita suas razões me pergunto por que precisou mencionar a obra das críticas feministas negras e por que a usou para situar a obra de Spillers e Carby como oposta aos escritos de outras críticas feministas negras Escrevendo desde o ponto de vista de uma negra inglesa de ascendência caribenha Carby não é de modo algum a primeira ou a única crítica feminista negra que como Fuss dá a entender nos leva a questionar o essencialismo da historiografia feminista tradicional que postula uma noção universalizante e hegemonizante da irmandade feminina global Se a obra de Carby é mais convincente para Fuss do que outros escritos de feministas negras que ela leu se é que de fato leu um grande número de obras feministas negras em seus comentários e em sua bibliografia tudo indica o contrário ela poderia ter afirmado essa apreciação sem diminuir outras críticas feministas negras Esse tratamento arrogante me lembra de como a inclusão próforma de mulheres negras nos estudos feministas e encontros profissionais assume aspectos desumanizantes As mulheres negras são tratadas como uma caixa de bombons dada de presente às mulheres brancas para o prazer destas que podem decidir para si mesmas e para as outras quais bombons são mais gostosos Paradoxalmente embora Fuss elogie a obra de Carby e de Spillers não é o trabalho delas o objeto das mais extensas interpretações críticas nesse capítulo Com efeito ela trata a subjetividade das mulheres negras como uma questão secundária Esse tipo de estudo só é admissível num contexto acadêmico que regularmente marginaliza as mulheres negras dedicadas à crítica Sempre me espanto com a absoluta ausência de referências aos trabalhos de mulheres negras nas obras críticas contemporâneas que pretendem tratar de modo inclusivo as questões de raça gênero feminismo póscolonialismo e assim por diante Quando eu e as demais críticas negras confrontamos nossas colegas a respeito dessa ausência elas em geral nos dizem que simplesmente não sabiam que esse material existia e estavam trabalhando com as fontes que conheciam Lendo Essentially Speaking supus que Diana Fuss ou não conhece o conjunto cada vez maior de obras de críticas feministas negras particularmente no campo da crítica literária ou exclui essas obras porque não as considera importantes Está claro que baseia sua avaliação nas obras que conhece fundamentando sua análise na experiência No último capítulo do livro Fuss critica especificamente o uso da experiência pessoal em sala de aula como base a partir da qual verdades totalizadoras são afirmadas Muitas limitações que ela aponta poderiam ser facilmente aplicadas ao modo como a experiência informa não só os temas sobre os quais escrevemos mas também o que escrevemos sobre esses temas os juízos que fazemos Mais que qualquer outro capítulo de Essentially Speaking esse último ensaio é especialmente perturbador Também solapa a inteligente discussão anterior de Fuss sobre o essencialismo Assim como minha experiência dos textos críticos escritos por pensadoras feministas negras me levaria a fazer avaliações diferentes das de Fuss e certamente mais complexas assim também minha reação ao capítulo Essentialism in the Classroom é em certa medida informada por minhas experiências pedagógicas diferentes Esse capítulo me proporcionou um texto com o qual pude me relacionar dialeticamente serviu como catalisador para eu clarear meus pensamentos sobre o essencialismo em sala de aula Segundo Fuss as questões de essência identidade e experiência irrompem na sala de aula principalmente devido à contribuição crítica dos grupos marginalizados Em todo o capítulo sempre que ela oferece um exemplo dos indivíduos que usam pontos de vista essencialistas para dominar a discussão para silenciar os outros invocando a autoridade da experiência esses indivíduos são membros de grupos que foram e ainda são oprimidos e explorados nesta sociedade Fuss não fala de como os sistemas de dominação já operantes na academia e na sala de aula silenciam as vozes de indivíduos dos grupos marginalizados e só lhes dão espaço quando é preciso falar com base na experiência Não explica que as próprias práticas discursivas que permitem a afirmação da autoridade da experiência já foram determinadas por uma política de dominação racial sexual e de classe social Fuss não afirma agressivamente que os grupos dominantes os homens os brancos os heterossexuais perpetuam o essencialismo Na sua narrativa o essencialista é sempre um outro marginalizado Mas a política da exclusão essencialista como meio de afirmação da presença da identidade é uma prática cultural que não nasce somente dos grupos marginalizados E quando esses grupos de fato empregam o essencialismo como meio de dominação em contextos institucionais eles estão em geral imitando os paradigmas de afirmação da subjetividade que fazem parte do mecanismo de controle nas estruturas de dominação É fato que muitos alunos brancos homens trouxeram à minha sala de aula uma insistência na autoridade da experiência que lhes permite sentir que vale a pena ouvir tudo o que eles têm a dizer ou mesmo que suas ideias e sua experiência devem ser o foco central da discussão em sala de aula A política da raça e do sexo no patriarcado da supremacia branca lhes dá essa autoridade sem que eles tenham de dar nome ao desejo que têm dela Eles nunca chegam na sala de aula e dizem Acho que sou intelectualmente superior aos meus colegas porque sou homem e branco e acho que minhas experiências são muito mais importantes que as de qualquer outro grupo Mas seu comportamento muitas vezes proclama esse modo de pensar a respeito de identidade essência e subjetividade Por que o capítulo de Fuss ignora as maneiras ocultas e ostensivas com que o essencialismo é expressado a partir de posições de privilégio Por que ela critica principalmente os maus usos do essencialismo centrando sua análise nos grupos marginalizados Isso os faz culpados pela perturbação da sala de aula por tornála um lugar inseguro Não é esse um dos modos convencionais com que o colonizador fala do colonizado o opressor do oprimido Fuss afirma Os problemas frequentemente começam na sala de aula quando os que estão por dentro só têm contato com outros que estão por dentro excluindo e marginalizando os que consideram estar fora do círculo mágico Essa observação que certamente poderia ser aplicada a qualquer grupo serve de prefácio à análise de um comentário crítico de Edward Said que reforça a crítica fussiana dos perigos do essencialismo Said aparece no livro como representante em exercício do Terceiro Mundo legitimando o argumento dela Ecoandocriticamente o que Said afirma Fuss comenta Para Said é perigoso e errôneo basear uma política de identidade em teorias rígidas da exclusão uma exclusão que estipula por exemplo que somente as mulheres podem compreender a experiência feminina somente os judeus podem compreender o sofrimento judaico somente os excolonizados podem compreender a experiência do colonialismo Concordo com a crítica de Said mas reitero que embora eu também critique o uso do essencialismo e da política de identidade como estratégias de exclusão e de dominação fico desconfiada quando alguma teoria diz que essa prática é danosa como forma de dar a entender que é uma estratégia empregada apenas por grupos marginalizados Minha desconfiança se baseia na percepção de que uma crítica do essencialismo que desafie somente os grupos marginalizados a questionar seu uso da política de identidade ou de um ponto de vista essencialista como meios de exercer poder coercitivo deixa incontroversas as práticas críticas de outros grupos que empregam as mesmas estratégias de diferentes maneiras e cujo comportamento excludente pode ser firmemente amparado por estruturas de dominação institucionalizadas que não o criticam nem o restringem Ao mesmo tempo não quero que as críticas à política de identidade possam se transformar num método novo e chique para silenciar os alunos de grupos marginais Fuss assinala que a fronteira artificial entre os de dentro e os de fora necessariamente contêm o conhecimento em vez de disseminálo Concordo mas me perturba o fato de ela nunca reconhecer que o racismo o sexismo e o elitismo de classe moldam a estrutura das salas de aula predeterminando uma realidade vivida de confronto entre os de dentro e os de fora que muitas vezes já está instalada antes mesmo de qualquer discussão começar Os grupos marginalizados raramente precisam introduzir essa oposição binária na sala de aula pois em geral ela já está em operação Podem simplesmente usála a serviço de seus interesses Encarada de um ponto de vista favorável a afirmação de um essencialismo excludente por parte dos alunos de grupos marginalizados pode ser uma resposta estratégica à dominação e à colonização uma estratégia de sobrevivência que pode com efeito inibir a discussão ao mesmo tempo em que resgata esses alunos de um estado de negação Fuss diz que faz parte da lei não escrita da sala de aula não confiar naqueles que não podem citar a experiência como fundamento indisputável do seu conhecimento Talvez essas leis não escritas sejam a maior ameaça à dinâmica da sala de aula na medida em que alimentam a desconfiança entre os que estão dentro do círculo e a culpa às vezes a raiva entre os que estão fora Mas ela não discute quem faz essas leis quem determina a dinâmica da sala de aula Será que ela afirma sua autoridade de maneira a desencadear inadvertidamente uma dinâmica de competição dando a entender que a sala de aula pertence ao professor mais que aos alunos pertence mais a alguns alunos que a outros Como professora reconheço que os alunos de grupos marginalizados têm aula dentro de instituições onde suas vozes não têm sido nem ouvidas nem acolhidas quer eles discutam fatos aqueles que todos nós podemos conhecer quer discutam experiências pessoais Minha pedagogia foi moldada como uma resposta a essa realidade Se não quero que esses alunos usem a autoridade da experiência como meio de afirmar sua voz posso contornar essa possibilidade levando à sala de aula estratégias pedagógicas que afirmem a presença deles seu direito de falar de múltiplas maneiras sobre diversos tópicos Essa estratégia pedagógica se baseia no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um conhecimento que vem da experiência e de que esse conhecimento pode de fato melhorar nossa experiência de aprendizado Se a experiência for apresentada em sala de aula desde o início como um modo de conhecer que coexiste de maneira não hierárquica com outros modos de conhecer será menor a possibilidade de ela ser usada para silenciar Quando falo sobre The Bluest Eye de Toni Morrison no curso introdutório sobre escritoras negras peço aos alunos que escrevam um parágrafo autobiográfico sobre uma lembrança racial do início de sua vida Cada pessoa lê seu parágrafo em voz alta para a classe O ato de ouvir coletivamente uns aos outros afirma o valor e a unicidade de cada voz Esse exercício ressalta a experiência sem privilegiar as vozes dos alunos de um grupo qualquer Ajuda a criar uma consciência comunitária da diversidade das nossas experiências e proporciona uma certa noção daquelas experiências que podem informar o modo como pensamos e o que dizemos Visto que esse exercício transforma a sala de aula num espaço onde a experiência é valorizada não negada nem considerada sem significado os alunos parecem menos tendentes a fazer do relato da experiência um lugar onde competem pela voz se é que de fato essa competição está acontecendo Na nossa sala de aula os alunos em geral não sentem a necessidade de competir pois o conceito da voz privilegiada da autoridade é desconstruído pela nossa prática crítica coletiva No capítulo Essentialism in the Classroom Fuss centra sua discussão na localização de uma voz particular de autoridade Aqui essa voz é a dela Quando ela levanta a questão de como devemos lidar com os alunos o uso da palavra lidar sugere imagens de manipulação E seu uso de um sujeito coletivo nós implica a noção de uma prática pedagógica unificada partilhada por outros professores Nas instituições onde ensinei o modelo pedagógico prevalecente é autoritário coercitivamente hierárquico e frequentemente dominador Nele a voz do professor é sem dúvida a transmissora privilegiada do conhecimento Em geral esses professores desvalorizam a inclusão da experiência pessoal na sala de aula Fuss admite desconfiar das tentativas de censurar a narração de histórias pessoais na sala de aula com base no fato de elas não terem sido suficientemente teorizadas mas indica em todo esse capítulo que lá no fundo não acredita que a partilha de experiências pessoais possa contribuir significativamente com as discussões em sala de aula Se essa parcialidade informa a pedagogia dela não surpreende que a invocação da experiência seja usada agressivamente para afirmar um modo privilegiado de conhecimento quer contra ela quer contra outros alunos Se a pedagogia do professor não for libertadora os estudantes provavelmente competirão pela valorização e pela voz em sala de aula O fato de pontos de vista essencialistas serem usados competitivamente não significa que seja a tomada dessas posições que crie a situação de conflito As experiências de Fuss na sala de aula podem refletir o modo pelo qual a competição pela voz se torna uma parte inseparável de sua prática pedagógica A maioria dos comentários e observações que ela faz sobre o essencialismo na sala de aula é baseada na sua experiência e talvez na dos seus colegas embora isso não seja explicitado Com base nessa experiência ela se sente à vontade para asseverar que permanece convicta de que os apelos à autoridade da experiência raramente promovem a discussão e frequentemente provocam confusão Para sublinhar ainda mais esse ponto ela diz Sempre me dou conta de que a introjeção de verdades experienciais nos debates em sala de aula leva a discussão para um beco sem saída Fuss recorre à sua experiência particular para fazer generalizações totalizadoras Como ela eu também já vi de que modo os pontos de vista essencialistas podem ser usados para silenciar ou afirmar a autoridade sobre a oposição mas com mais frequência vejo que a experiência e a narração das experiências pessoais podem ser incorporadas na sala de aula de maneira a aprofundar a discussão E o que mais me anima é quando a narração de experiências liga as discussões de fatos ou de construtos mais abstratos com a realidade concreta Minhas experiências na sala de aula talvez sejam diferentes das de Fuss porque falo com a voz de uma outra institucionalmente marginalizada e não tenho aqui a pretensão de assumir uma posição essencialista Há muitas professoras universitárias negras que não reivindicariam essa posição A maioria dos alunos que entram na nossa sala nunca tiveram aula com professoras negras Minha pedagogia é informada por esse conhecimento pois sei por experiência que essa falta de familiaridade pode superdeterminar o que acontece na aula Além disso ciente por experiência pessoal como aluna em instituições predominantemente brancas de o quanto é fácil um aluno se sentir isolado ou posto para fora me esforço particularmente por criar um processo de aprendizado na sala de aula que envolva a todos Por isso as parcialidades impostas por pontos de vista essencialistas ou pela política de identidade ao lado daquelas perspectivas que insistem que a experiência não tem lugar na sala de aula ambas as posições podem criar uma atmosfera de coerção e exclusão devem ser questionadas pelas práticas pedagógicas As estratégias pedagógicas podem determinar a medida com que todos os alunos aprendem a se envolver de modo mais pleno com ideias e questões que parecem não ter relação direta com sua experiência Fuss não afirma que os professores cientes dos múltiplos modos pelos quais os pontos de vista essencialistas podem ser usados para fechar a discussão podem construir uma pedagogia que intervenha criticamente antes de um grupo tentar silenciar outro Os próprios professores universitários especialmente os dos grupos dominantes às vezes empregam noções essencialistas para constranger as vozes de determinados alunos por isso todos nós temos de vigiar sempre as nossas práticas pedagógicas Sempre que os alunos partilham comigo a impressão de que mi Bell Hooks no livro Ensinando a Transgredir aborda a ideia de pedagogia engajada uma abordagem revolucionária na educação Segundo a autora a pedagogia engajada é muito mais do que apenas ensinar e transmitir conhecimentos tratase de um processo ativo que envolve a participação e o envolvimento emocional dos alunos Ela critica a educação bancária e a influência dos ideais neoliberais na educação Ela rejeita a abordagem tradicional que trata os alunos como receptores passivos de conhecimento depositando informações em suas mentes sem considerar suas experiências e identidades Condenase ainda a mentalidade competitiva e individualista promovida pelo neoliberalismo que transforma os alunos em rivais incentivandoos a derrubar uns aos outros para prosperar Em contraste ela defende uma pedagogia engajada que promova a colaboração a empatia e a cooperação visando superar as estruturas opressivas e construir uma educação mais justa e solidária Para Bell Hooks a pedagogia engajada é uma prática de ensino que busca desafiar as normas e estruturas opressivas presentes na sociedade Ela encoraja os educadores a se posicionarem como agentes de mudança estimulando os estudantes a questionarem e desafiarem as desigualdades e injustiças que permeiam nossa realidade Ao adotar uma abordagem engajada a autora enfatiza a importância de promover o diálogo aberto e inclusivo na sala de aula onde todas as vozes são ouvidas e respeitadas Ela defende que os educadores devem criar um ambiente seguro e acolhedor onde os alunos se sintam incentivados a expressar suas opiniões compartilhar suas experiências e contribuir ativamente para o aprendizado coletivo Para Bell Hooks a pedagogia engajada também valoriza a conexão entre teoria e prática Ela encoraja os educadores a relacionarem o conteúdo curricular com a vida cotidiana dos estudantes demonstrando como os conceitos aprendidos podem ser aplicados de maneira significativa fora da sala de aula Dessa forma a educação se torna relevante e estimulante capacitando os alunos a se tornarem agentes de transformação em suas próprias vidas e comunidades Em resumo para Bell Hooks a pedagogia engajada vai além de transmitir conhecimentos é um convite à participação ativa à reflexão crítica e à transformação social É uma abordagem que busca empoderar os estudantes promovendo o diálogo a inclusão e a aplicação prática do conhecimento criando assim uma educação mais justa libertadora e autêntica
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No text detected Ensinando a transgredir A educação como prática da liberdade bell hooks Tradução de Marcelo Brandão Cipolla wmfmartinsfontes SÃO PAULO 2013 ensinando a transgredir a educação como prática da liberdade bell hooks Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título TEACHING TO TRANSGRESS por Taylor Francis Group Copyright 1994 Gloria Watkins Tradução autorizada da edição inglesa publicada por Routledge Inc parte de Taylor Francis Group LLC Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida armazenada em sistemas eletrônicos recuperáveis nem transmitida por nenhuma forma ou meio eletrônico mecânico incluindo fotocópia gravação ou outros sem a prévia autorização por escrito dos Editores Copyright 2013 Editora WMF Martins Fontes Ltda São Paulo para a presente edição 1ª edição 2013 Tradução Marcelo Brandão Cipolla Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisões gráficas Renato da Rocha Carlos Marisa Rosa Teixeira Edição de arte Katia Harumi Terasaka Produção gráfica Geraldo Alves Paginação Moacir Katsumi Matsusaki Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Hooks Bell Ensinando a transgredir a educação como prática da liberdade bell hooks tradução de Marcelo Brandão Cipolla São Paulo Editora WMF Martins Fontes 2013 Título original Teaching to transgress ISBN 9788578277031 1 Ensino 2 Feminismo e educação 3 Pedagogia crítica 4 Pensamento críticoEstudo e ensino I Título 1305850 CDD370115 Índices para catálogo sistemático 1 Pedagogia Educação 370115 Todos os direitos desta edição reservados à Editora WMF Martins Fontes Ltda Rua Prof Laerte Ramos de Carvalho 133 01325030 São Paulo SP Brasil Tel 11 32938150 Fax 11 31011042 email infowmfmartinsfontescombr httpwwwwmfmartinsfontescombr a todos os meus alunos especialmente LaRon que está dançando com os anjos como agradecimento por todas as vezes em que começamos de novo do zero renovamos nossa alegria de aprender Ser capaz de recomeçar sempre de fazer de reconstruir de não se entregar de recusar burocratizarse mentalmente de entender e de viver a vida como processo como vir a ser Paulo Freire Sumário Introdução 9 Ensinando a transgredir 1 Pedagogia engajada 25 2 Uma revolução de valores 37 A promessa da mudança multicultural 3 Abraçar a mudança 51 O ensino num mundo multicultural 4 Paulo Freire 65 5 A teoria como prática libertadora 83 6 Essencialismo e experiência 105 7 De mãos dadas com minha irmã 127 Solidariedade feminista 8 Pensamento feminista 151 Na sala de aula agora 9 Estudos feministas 161 Acadêmicas negras 10 A construção de uma comunidade pedagógica 173 Um diálogo 11 A língua 223 Ensinando novos mundosnovas palavras 12 Confrontação da classe social na sala de aula 235 13 Eros erotismo e o processo pedagógico 253 14 Êxtase 265 Ensinar e aprender sem limites Índice remissivo 275 Introdução Ensinando a transgredir Durante algumas semanas antes de o Departamento de Inglês do Oberlin College decidir me efetivar como professora fui assombrada pelo sonho de fugir de desaparecer até mesmo de morrer O sonho não era uma reação ao medo de eu não conseguir a estabilidade no cargo Era uma reação à realidade de que eu ia conseguir a estabilidade Eu tinha medo de ficar presa na academia para sempre Em vez de ficar eufórica quando fui efetivada caí numa depressão profunda que me pôs a vida em risco Visto que todos ao meu redor achavam que eu devia me sentir aliviada contente orgulhosa sentime culpada por meus verdadeiros sentimentos e não consegui partilhálos com ninguém O ciclo de aulas me levou à ensolarada Califórnia e ao mundo new age da casa da minha irmã em Laguna Beach onde pude esfriar a cabeça por um mês Quando partilhei meus sentimentos com minha irmã ela é terapeuta ela me garantiu que eles não eram nem um pouco impróprios Disse Você nunca quis ser professora Desde quando éramos pequenas tudo o que você sempre quis foi escrever Ela tinha razão Todos sempre partiram do pressuposto de que eu seria professora No Sul na época do apartheid as meninas negras de classe trabalhadora tinham nas escolas exclusivamente negras era coisa do passado De repente o conhecimento passou a se resumir à pura informação Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar Já não tinha ligação com a luta antirracista Levados de ônibus a escolas de brancos logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência não o desejo ardente de aprender A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca Quando entramos em escolas brancas racistas e dessegregadas deixamos para trás um mundo onde os professores acreditavam que precisavam de um compromisso político para educar corretamente as crianças negras De repente passamos a ter aula com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas Para as crianças negras a educação já não tinha a ver com a prática da liberdade Quando percebi isso perdi o gosto pela escola A sala de aula já não era um lugar de prazer ou de êxtase A escola ainda era um ambiente político pois éramos obrigados a enfrentar a todo momento os pressupostos racistas dos brancos de que éramos geneticamente inferiores menos capacitados que os colegas até incapazes de aprender Apesar disso essa política já não era contrahegemônica O tempo todo estávamos somente respondendo e reagindo aos brancos Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras como gente que não deveria estar ali me ensinou a diferença entre a educação como prática da liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação Os raros professores brancos que ousavam resistir que não permitiam que as parcialidades ra três opções de carreira Podíamos casar podíamos trabalhar como empregadas e podíamos nos tornar professoras de escola É visto que de acordo com o pensamento sexista da época os homens na verdade não gostavam de mulheres inteligentes partiase do pressuposto de que quaisquer sinais de inteligência selavam o destino da pessoa Desde o ensino fundamental eu estava destinada a me tornar professora Mas o sonho de me tornar escritora sempre esteve presente dentro de mim Desde a infância eu acreditava que iria lecionar e escrever O escrever seria o trabalho sério e o lecionar o emprego não tão sério de que eu precisava para ganhar a vida O escrever conforme pensava então era uma questão de anseio particular e glória pessoal enquanto o lecionar era um serviço uma forma de retribuir à comunidade Para os negros o lecionar o educar era fundamentalmente político pois tinha raízes na luta antirracista Com efeito foi nas escolas de ensino fundamental frequentadas somente por negros que eu tive a experiência do aprendizado como revolução Quase todos os professores da escola Booker T Washington eram mulheres negras O compromisso delas era nutrir nosso intelecto para que pudéssemos nos tornar acadêmicos pensadores e trabalhadores do setor cultural negros que usavam a cabeça Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo à vida do intelecto era um ato contrahegemônico um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista Embora não definissem nem formulassem essas práticas em termos teóricos minhas professoras praticavam uma peda gogia revolucionária de resistência uma pedagogia profundamente anticolonial Nessas escolas segregadas as crianças negras consideradas excepcionalmente dotadas recebiam atenção especial As professoras trabalhavam conosco e para nós a fim de garantir que realizássemos nosso destino intelectual e assim edifícássemos a raça Minhas professoras tinham uma missão Para cumprir essa missão as professoras faziam de tudo para nos conhecer Elas conheciam nossos pais nossa condição econômica sabiam a que igreja íamos como era nossa casa e como nossa família nos tratava Frequentei a escola num momento histórico em que era ensinada pelas mesmas professoras que haviam dado aula a minha mãe às irmãs e aos irmãos dela Meu esforço e minha capacidade para aprender sempre eram contextualizados dentro da estrutura de experiência das várias gerações da família Certos comportamentos gestos e hábitos de ser eram considerados hereditários Naquela época ir à escola era pura alegria Eu adorava ser aluna Adorava aprender A escola era o lugar do êxtase do prazer e do perigo Ser transformada por novas ideias era puro prazer Mas aprender ideias que contrariavam os valores e crenças aprendidos em casa era correr um risco entrar na zona de perigo Minha casa era o lugar onde eu era obrigada a me conformar à noção de outra pessoa acerca de quem e o que eu deveria ser A escola era o lugar onde eu podia esquecer essa noção e me reinventar através das ideias A escola mudou radicalmente com a integração racial O zelo messiânico de transformar nossa mente e nosso ser que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas de interesse não me impediu de me envolver com ideias feministas nem de participar da sala de aula feminista Essas salas de aula eram o único espaço onde as práticas pedagógicas eram questionadas onde se partia do princípio de que o conhecimento oferecido aos alunos os capacitaria a ser acadêmicos melhores e a viver com mais plenitude no mundo extraacadêmico A sala de aula feminista era o único espaço onde os alunos podiam levantar questões críticas sobre os processos pedagógicos Essas críticas nem sempre eram estimuladas ou bem recebidas mas eram permitidas Essa mínima aceitação do questionamento crítico era um desafio crucial que nos convidava como alunos a pensar seriamente sobre a pedagogia em sua relação com a prática da liberdade Quando fui dar minha primeira aula no curso de graduação me apoiei no exemplo das inspiradas mulheres negras que davam aula na minha escola de ensino fundamental na obra de Freire e no pensamento feminista sobre a pedagogia radical Eu tinha o desejo apaixonado de lecionar de um modo diferente daquele que eu conhecia desde o ensino médio O primeiro paradigma que moldou minha pedagogia foi a ideia de que a sala de aula deve ser um lugar de entusiasmo nunca de tédio E caso o tédio prevalecesse seriam necessárias estratégias pedagógicas que interviessem e alterassem a atmosfera até mesmo a perturbassem Nem a obra de Freire nem a pedagogia feminista trabalhavam a noção do prazer na sala de aula A ideia de que aprender deve ser empolgante às vezes até divertido era tema de discussão crítica entre os educadores que escreviam sobre as práticas pedagógicas no ensino fundamental e às vezes até no ensino médio Mas nem os educadores tradicionais nem os radicais pareciam interessados em discutir o papel do entusiasmo no ensino superior O entusiasmo no ensino superior era visto como algo que poderia perturbar a atmosfera de seriedade considerada essencial para o processo de aprendizado Entrar numa sala de aula de faculdade munida da vontade de partilhar o desejo de estimular o entusiasmo era um ato de transgressão Não exigia somente que se cruzassem as fronteiras estabelecidas não seria possível gerar o entusiasmo sem reconhecer plenamente que as práticas didáticas não poderiam ser regidas por um esquema fixo e absoluto Os esquemas teriam de ser flexíveis teriam de levar em conta a possibilidade de mudanças espontâneas de direção Os alunos teriam de ser vistos de acordo com suas particularidades individuais me inspirei nas estratégias que as professoras do ensino fundamental usavam para nos conhecer e a interação com eles teria de acompanhar suas necessidades nesse ponto Freire foi útil A reflexão crítica sobre minha experiência como aluna em salas de aula tediosas me habilitou a imaginar não somente que a sala de aula poderia ser empolgante mas também que esse entusiasmo poderia coexistir com uma atividade intelectual eou acadêmica séria e até promovêla Mas o entusiasmo pelas ideias não é suficiente para criar um processo de aprendizado empolgante Na comunidade da sala de aula nossa capacidade de gerar entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso interesse uns pelos outros por ouvir a voz uns dos outros por reconhecer a presença uns dos outros Visto que a grande maioria dos alunos aprende por meio de práticas educacionais tradicionais e conservadoras e só se interessa pela presença do professor qualquer pedagogia radical precisa insistir em que a presença de todos seja reconhecida E não basta simplesmente afirmar essa insistência É preciso demonstrála por meio de práticas pedagógicas Para começar o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada um Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula que todos contribuem Essas contribuições são recursos Usadas de modo construtivo elas promovem a capacidade de qualquer turma de criar uma comunidade aberta de aprendizado Muitas vezes antes de o processo começar é preciso desconstruir um pouco a noção tradicional de que o professor é o único responsável pela dinâmica da sala Essa responsabilidade é proporcional ao status Fato é que o professor sempre será o principal responsável pois as estruturas institucionais maiores sempre depositarão sobre seus ombros a responsabilidade pelo que acontece em sala de aula Mas é raro que qualquer professor por eloquente que seja consiga gerar por meio de seus atos um entusiasmo suficiente para criar uma sala de aula empolgante O entusiasmo é gerado pelo esforço coletivo A visão constante da sala de aula como um espaço comunitário aumenta a probabilidade de haver um esforço coletivo para criar e manter uma comunidade de aprendizado Houve um semestre em que dei aula para uma turma muito difícil que fracassou completamente no nível comunitário Em todo aquele período concluí que a principal desvantagem a inibir o desenvolvimento de uma comunidade de aprendizado era o fato de a aula acontecer de que estava falando não só com os professores mas também com os alunos O campo acadêmico de escrever sobre a pedagogia crítica eou a pedagogia feminista continua sendo antes de tudo um discurso feito e ouvido por homens e mulheres brancos O próprio Freire não só em suas conversas comigo como também em várias obras escritas sempre reconheceu que se situa na posição do homem branco especialmente aqui nos Estados Unidos Mas em anos recentes a obra de vários pensadores da pedagogia radical para mim esse termo inclui as perspectivas crítica eou feminista passou a incluir um verdadeiro reconhecimento das diferenças determinadas pela classe social pela raça pela prática sexual pela nacionalidade e por aí afora Esse progresso entretanto não parece coincidir com uma presença significativamente maior de vozes negras ou de outras vozes não brancas nas discussões sobre as práticas pedagógicas radicais Minhas práticas pedagógicas nasceram da interação entre as pedagogias anticolonialista crítica e feminista cada uma das quais ilumina as outras Essa mistura complexa e única de múltiplas perspectivas tem sido um ponto de vista envolvente e poderoso a partir do qual trabalhar Transpondo as fronteiras ele possibilitou que eu imaginase e efetivasse práticas pedagógicas que implicam diretamente a preocupação de questionar as parcialidades que reforçam os sistemas de dominação como o racismo e o sexismo e ao mesmo tempo proporcionam novas maneiras de dar aula a grupos diversificados de alunos Neste livro quero partilhar ideias estratégias e reflexões críticas sobre a prática pedagógica Quero que estes ensaios interagir com a plateia de pensar na questão da reciprocidade Os professores não são atores no sentido tradicional do termo pois nosso trabalho não é um espetáculo Por outro lado esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais a se tornar partes ativas no aprendizado Assim como muda nossa maneira de atuar também nossa voz deve mudar Na vida cotidiana falamos de um jeito diferente com as diferentes plateias Para nos comunicar melhor escolhemos um jeito de falar determinado pelas particularidades e características únicas das pessoas a quem e com quem estamos falando Nesse espírito nem todos estes ensaios têm a mesma voz Refletem meu esforço de usar a linguagem de modo a levar em conta os contextos específicos bem como meu desejo de me comunicar com plateias diversificadas Para lecionar em comunidades diversas precisamos mudar não só nossos paradigmas mas também o modo como pensamos escrevemos e falamos A voz engajada não pode ser fixa e absoluta Deve estar sempre mudando sempre em diálogo com um mundo fora dela Estes ensaios refletem minha experiência de discussões críticas com professores alunos e pessoas que entraram nas minhas aulas como observadoras Em múltiplas camadas portanto eles querem se pôr como testemunhas depondo sobre a educação como prática da liberdade Muito antes de um público qualquer me reconhecer como pensadora ou escritora eu já era reconhecida pelos alunos na sala de aula era vista por eles como uma professora que dava duro para criar uma experiência dinâmica de aprendizado para todos nós Hoje em dia sou mais reconhecida pela prática intelectual insurgente Aliás o público acadêmico que encontro em minhas palestras sempre se mostra surpreso quando falo da sala de aula com intimidade e sentimento Esse público se surpreendeu mais ainda quando eu disse que estava escrevendo uma coletânea de ensaios sobre o ato de ensinar Essa surpresa é um triste lembrete de que o ensino é considerado um aspecto mais enfadonho e menos valorizado da atividade acadêmica Essa perspectiva sobre o ensino é comum mas tem de ser posta em questão para podermos atender às necessidades de nossos alunos para podermos devolver à educação e às salas de aula o entusiasmo pelas ideias e a vontade de aprender A educação está numa crise grave Em geral os alunos não querem aprender e os professores não querem ensinar Mais que em qualquer outro momento da história recente dos Estados Unidos os educadores têm o dever de confrontar as parcialidades que têm moldado as práticas pedagógicas em nossa sociedade e de criar novas maneiras de saber estratégias diferentes para partilhar o conhecimento Não poderemos enfrentar a crise se os pensadores críticos e os críticos sociais progressistas agirem como se o ensino não fosse um objeto digno da sua consideração A sala de aula continua sendo o espaço que oferece as possibilidades mais radicais na academia Há anos é um lugar onde a educação é solapada tanto pelos professores quanto pelos alunos que buscam todos usála como plataforma para seus interesses oportunistas em vez de fazer dela um lugar de aprendizado Com estes ensaios somo minha voz ao apelo coletivo pela renovação e pelo rejuvenes cimento de nossas práticas de ensino Pedindo a todos cistas determinassem seu modo de ensinar mantinham viva a crença de que o aprendizado em sua forma mais poderosa tem de fato um potencial libertador Alguns professores negros haviam se juntado a nós no processo de dessegregação E embora tivessem mais dificuldade continuaram apoiando os alunos negros mesmo diante da suspeita de estarem favorecendo sua própria raça Apesar das experiências intensamente negativas me formei na escola ainda acreditando que a educação é capacitante que ela aumenta nossa capacidade de ser livres Quando comecei o curso de graduação na Universidade Stanford me fascinei pelo processo de me tornar uma intelectual negra insurgente Fiquei surpresa e chocada ao assistir a aulas em que os professores não se entusiasmavam com o ato de ensinar em que pareciam não ter a mais vaga noção de que a educação tem a ver com a prática da liberdade Na faculdade reforçouse a principal lição tínhamos de aprender a obedecer à autoridade No curso de graduação a sala de aula se tornou um objeto de ódio mas era um lugar onde eu lutava para reivindicar e conservar o direito de ser uma pensadora independente A universidade e a sala de aula começaram a se parecer mais com uma prisão um lugar de castigo e reclusão e não de promessa e possibilidade Escrevi meu primeiro livro enquanto fazia o curso de graduação embora ele só tenha sido publicado anos depois Estava escrevendo mas mais importante estava me preparando para ser professora Aceitando a profissão de professora como meu destino eu me atormentava com a realidade das salas de aula que conhecera como aluna de graduação e pósgraduação A sejam uma intervenção contrapondose à desvalorização da atividade do professor e ao mesmo tempo tratando da urgente necessidade de mudar as práticas de ensino Eles têm o objetivo de ser um comentário construtivo Esperançosos e exuberantes transmitem o prazer e a alegria que sinto quando dou aula são ensaios de celebração Ressaltam que o prazer de ensinar é um ato de resistência que se contrapõe ao tédio ao desinteresse e à apatia onipresentes que tanto caracterizam o modo como professores e alunos se sentem diante do aprender e do ensinar diante da experiência da sala de aula Cada ensaio trata de temas comuns que sempre ressurgem nas discussões sobre pedagogia propondo maneiras de repensar as práticas de ensino e estratégias construtivas para melhorar o aprendizado Como foram escritos separadamente para os mais diversos contextos eles têm certos temas em comum ideias se repetem frases importantes são usadas várias vezes Embora eu proponha estratégias estas obras não oferecem modelos para transformar a sala de aula num lugar de entusiasmo pelo aprendizado Se eu fizesse isso iria contra a insistência com que a pedagogia engajada afirma que cada sala de aula é diferente que as estratégias têm de ser constantemente modificadas inventadas e reconceitualizadas para dar conta de cada nova experiência de ensino Ensinar é um ato teatral E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada turma Para abraçar o aspecto teatral do ensino temos de que abram a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável para pensar e repensar para criar novas visões celebro um ensino que permita as transgressões um movimento contra as fronteiras e para além delas É esse movimento que transforma a educação na prática da liberdade Pedagogia engajada A educação como prática da liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender Esse processo de aprendizado é mais fácil para aqueles professores que também creem que sua vocação tem um aspecto sagrado que creem que nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar informação mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual dos nossos alunos Ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas de nossos alunos é essencial para criar as condições necessárias para que o aprendizado possa começar do modo mais profundo e mais íntimo Ao longo de meus muitos anos como aluna e professora fui inspirada sobretudo por aqueles professores que tiveram coragem de transgredir as fronteiras que fecham cada aluno numa abordagem do aprendizado como uma rotina de linha de produção Esses professores se aproximam dos alunos com a vontade e o desejo de responder ao ser único de cada um mesmo que a situação não permita o pleno surgimento de uma relação baseada no reconhecimento mútuo Por outro lado a possibilidade desse reconhecimento está sempre presente Paulo Freire e o monge budista vietnamita Thích Nhat Hanh são dois professores cuja obra me tocou profunda grande maioria dos nossos professores não dispunham de habilidades básicas de comunicação Não eram autoatualizados e frequentemente usavam a sala de aula para executar rituais de controle cuja essência era a dominação e o exercício injusto do poder Nesse ambiente aprendi muito sobre o tipo de professora que eu não queria ser Na pósgraduação constatei que eu me entediava com frequência na sala de aula O sistema de educação bancária baseado no pressuposto de que a memorização de informações e sua posterior regurgitação representam uma aquisição de conhecimentos que podem ser depositados guardados e usados numa data futura não me interessava Eu queria me tornar uma pensadora crítica Mas essa vontade era vista como uma ameaça à autoridade Os alunos brancos homens considerados excepcionais frequentemente tinham permissão para traçar por si mesmos o curso de sua jornada intelectual mas dos outros e particularmente dos de grupos marginais só se esperava que se conformassem Qualquer falta de conformidade da nossa parte era vista com suspeita como um gesto vazio de desafio cujo objetivo era mascarar a inferioridade ou um trabalho abaixo do padrão Naquela época os alunos oriundos de grupos marginais que tinham permissão para entrar em faculdades prestigiadas e predominantemente brancas eram levados a sentir que não estavam lá para aprender mas para provar que eram iguais aos brancos Estávamos lá para provar isso mostrando o quanto éramos capazes de nos tornar clones de nossos colegas À medida que nos deparávamos com os constantes preconceitos uma corrente oculta de tensão afetava nossa experiência de aprendizado mente Quando entrei na faculdade o pensamento de Freire me deu o apoio de que eu precisava para desafiar o sistema da educação bancária a abordagem baseada na noção de que tudo o que os alunos precisam fazer é consumir a informação dada por um professor e ser capazes de memorizála e armazenála Desde o começo foi a insistência de Freire na educação como prática da liberdade que me encorajou a criar estratégias para o que ele chamava de conscientização em sala de aula Traduzindo esse termo como consciência e engajamento críticos entrei nas salas de aula convicta de que tanto eu quanto todos os alunos tínhamos de ser participantes ativos não consumidores passivos A educação como prática da liberdade era continuamente solapada por professores ativamente hostis à noção de participação dos alunos A obra de Freire afirmava que a educação só pode ser libertadora quando todos tomam posse do conhecimento como se este fosse uma plantação em que todos temos de trabalhar Essa noção de trabalho coletivo também é afirmada pela filosofia do budismo engajado de Thích Nhat Hanh focada na prática associada à contemplação Sua filosofia é semelhante à insistência de Freire na práxis agir e refletir sobre o mundo a fim de modificálo Em sua obra Thích Nhat Hanh sempre compara o professor a um médico ou curador Sua abordagem como a de Freire pede que os alunos sejam participantes ativos liguem a consciência à prática Enquanto Freire se ocupa sobretudo da mente Thích Nhat Hanh apresenta uma maneira de pensar sobre a pedagogia que põe em evidência a integridade uma união de mente corpo e espírito Sua abordagem holística ao aprendizado e à prática espiritual me permitiu vencer anos e anos de socialização que haviam me levado a acreditar que a sala de aula perde importância quando os alunos e professores encaram uns aos outros como seres humanos integrais buscando não somente o conhecimento que está nos livros mas também o conhecimento acerca de como viver no mundo Nestes vinte anos de experiência de ensino percebi que os professores qualquer que seja sua tendência política dão graves sinais de perturbação quando os alunos querem ser vistos como seres humanos integrais com vidas e experiências complexas e não como meros buscadores de pedacinhos compartimentalizados de conhecimento Quando eu era aluna de graduação os Estudos da Mulher estavam apenas começando a encontrar seu lugar na academia Aquelas aulas eram o único espaço em que as professoras estavam dispostas a admitir que existe uma ligação entre as ideias aprendidas no contexto universitário e as aprendidas pela prática da vida E apesar dos momentos em que os alunos abusavam dessa liberdade em sala de aula e queriam falar somente sobre sua experiência pessoal as salas de aula feministas eram no geral o lugar onde eu via as professoras buscando criar espaços participativos para a partilha de conhecimento Hoje em dia a maioria das professoras de Estudos da Mulher já não é tão comprometida com a exploração de novas estratégias pedagógicas Apesar dessa mudança muitos alunos ainda querem fazer os cursos feministas porque continuam acreditando que ali mais que em qualquer outro lugar na academia vão ter a oportunidade de experimentar a educação como prática da liberdade Para reagir a essa tensão e ao tédio e apatia onipresentes que tomavam conta das aulas eu imaginava modos pelos quais o ensino e a experiência de aprendizado poderiam ser diferentes Quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire meu primeiro contato com a pedagogia crítica encontrei nele um mentor e um guia alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador Com os ensinamentos dele e minha crescente compreensão de como a educação que eu recebera nas escolas exclusivamente negras do Sul havia me fortalecido comecei a desenvolver um modelo para minha prática pedagógica Já profundamente engajada no pensamento feminista não tive dificuldade em aplicar essa crítica à obra de Freire Significativamente eu sentia que esse mentor e guia que eu nunca vira pessoalmente estimularia e apoiaria minha contestação às suas ideias se fosse realmente comprometido com a educação como prática da liberdade Ao mesmo tempo eu usava seus paradigmas pedagógicos para criticar as limitações das salas de aula feministas Durante os anos que passei na graduação e na pósgraduação somente professoras brancas estavam envolvidas no desenvolvimento de programas de Estudos da Mulher E embora a primeira aula que dei como estudante de pósgraduação tenha falado sobre as escritoras negras de uma perspectiva feminista ela aconteceu no contexto de um programa de Estudos Negros Descobri naquela época que as professoras brancas não estavam muito dispostas a promover o interesse pelo pensamento feminista e pelos estudos feministas entre as alunas negras se esse interesse viesse acompanhado de alguma contestação crítica Mas essa falta A educação progressiva e holística a pedagogia engajada é mais exigente que a pedagogia crítica ou feminista convencional Ao contrário destas duas ela dá ênfase ao bemestar Isso significa que os professores devem ter o compromisso ativo com um processo de autoatualização que promova seu próprio bemestar Só assim poderão ensinar de modo a fortalecer e capacitar os alunos Thich Nhat Hanh ressalta que a prática do curador do terapeuta do professor ou de qualquer profissional de assistência deve ser dirigida primeiro para ele mesmo Se a pessoa que ajuda estiver infeliz não poderá ajudar a muita gente Nos Estados Unidos é raro ouvir alguém comparar os professores universitários a curadores E é ainda mais raro ouvir alguém afirmar que os professores têm a responsabilidade de ser indivíduos autoatualizados Antes de entrar na faculdade eu conhecia o trabalho dos intelectuais e acadêmicos principalmente a partir da ficção e da não ficção do século XIX e por isso tinha certeza de que a tarefa dos que escolhem essa vocação é a de buscar holisticamente a autoatualização Foi a experiência concreta da faculdade que perturbou essa imagem Foi ali que eu passei a me sentir terrivelmente ingênua a respeito da profissão Aprendi que longe de ser autoatualizada a universidade era vista antes como um porto seguro para pessoas competentes em matéria de conhecimento livresco mas inaptas para a interação social Por sorte durante o curso de graduação comecei a distinguir entre a prática de ser um intelectualprofessor e o papel de membro da academia Era difícil continuar fiel à ideia do intelectual como uma pessoa que buscava ser íntegra num contexto em que pouco se ressaltava o bemestar espiritual o cuidado da alma Com efeito a objetificação do professor dentro das estruturas educacionais burguesas parecia depreciar a noção de integridade e sustentar a ideia de uma cisão entre mente e corpo uma ideia que promove e apoia a compartimentalização Esse apoio reforça a separação dualista entre o público e o privado estimulando os professores e os alunos a não ver ligação nenhuma entre as práticas de vida os hábitos de ser e os papéis professorais A ideia da busca do intelectual por uma união de mente corpo e espírito tinha sido substituída pela noção de que a pessoa inteligente é intrinsecamente instável do ponto de vista emocional e só mostra seu melhor lado no trabalho acadêmico Isso queria dizer que pouco importava que os acadêmicos fossem drogados alcoólatras espancadores da esposa ou criminosos sexuais o único aspecto importante da nossa identidade era o fato de nossa mente funcionar ou não ou sermos capazes de fazer nosso trabalho na sala de aula Estava implícito que o eu desaparecia no momento em que entrávamos na sala deixando em seu lugar somente a mente objetiva livre de experiências e parcialidades Temiase que as condições do eu prejudicassem o processo de ensino Um dos luxos e privilégios atuais do papel de professor escolar ou universitário é a ausência do requisito de que o professor seja autoatualizado Não surpreende que os professores menos preocupados com o bemestar interior sejam os que mais se sentem ameaçados pela exigência estudantil de uma educação libertadora de processos pedagógicos que ajudem os alunos em sua luta pela autoatualização É certo que eu era ingênua ao imaginar durante o ensino médio que receberia orientação espiritual e intelectual da parte de escritores pensadores e acadêmicos no contexto universitário Encontrar uma tal coisa seria o mesmo que descobrir um tesouro precioso Aprendi junto com os outros alunos a me dar por contente se encontrasse um professor interessante capaz de falar de maneira envolvente A maioria dos meus professores não estavam nem um pouco interessados em nos esclarecer Mais que qualquer outra coisa pareciam fascinados pelo exercício do poder e da autoridade dentro do seu reininho a sala de aula Não quero dizer que não houvesse tiranos encantadores e benevolentes mas minha memória me diz que era raro extraordinariamente assombrosamente raro encontrar professores profundamente comprometidos com práticas pedagógicas progressistas Isso me desiludiu a maioria dos meus professores não me despertou o desejo de imitar seu estilo de ensino O compromisso com a busca de conhecimento me deu força para continuar assistindo às aulas Mas mesmo assim como eu não era conformista não era uma aluna passiva que não questiona alguns professores me tratavam com desprezo Eu estava aos poucos me distanciando da educação Em meio a esse distanciamento encontrar Freire foi fundamental para minha sobrevivência como estudante A obra dele me mostrou um caminho para compreender as limitações do tipo de educação que eu estava recebendo e ao mesmo tempo para descobrir estratégias alternativas de aprender e ensinar Uma coisa que me decepcionou muito foi conhecer professores brancos homens que afirmavam seguir o modelo de Freire ao mesmo tempo em que suas práticas pedagógicas estavam afundadas nas estruturas de dominação espelhando os estilos dos professores conservadores embora os temas fossem abordados de um ponto de vista mais progressista Quando conheci a obra de Paulo Freire fiquei ansiosa para saber se seu estilo de ensino incorporava as práticas pedagógicas que ele descrevia com tanta eloquência em sua obra No curto período em que estudei com ele fui profundamente tocada por sua presença pelo modo com que sua maneira de ensinar exemplificava sua teoria pedagógica Nem todos os estudantes interessados em Freire tiveram a mesma experiência Minha experiência com ele me devolveu a fé na educação libertadora Eu nunca quisera abandonar a convicção de que é possível dar aula sem reforçar os sistemas de dominação existentes Precisava ter certeza de que os professores não têm de ser tiranos na sala de aula Embora quisesse seguir carreira de professora eu acreditava que o sucesso pessoal estava intimamente ligado à autoatualização Minha paixão por essa busca me levou a questionar constantemente a cisão entre mente e corpo tantas vezes tomada como ponto pacífico A maioria dos professores eram radicalmente contra chegavam até a desprezar qualquer abordagem ao aprendizado nascida de um ponto de vista filosófico que enfatizasse a união de mente corpo e espírito e não a separação entre esses elementos Como tantos alunos para quem agora dou aula ouvi várias vezes de acadêmicos prestigiados a opinião de que era engano meu procurar aquele tipo de perspectiva na acade mia Durante os anos em que fui estudante senti uma profunda angústia interna Lembrome dessa dor quando ouço os alunos expressar o medo de não obter êxito nas profissões acadêmicas caso queiram se sentir bem caso repudiiem todo comportamento disfuncional e toda participação nas hierarquias coercitivas Esses alunos muitas vezes temem como eu temia que não haja na academia nenhum espaço onde a vontade de autoatualização possa ser afirmada Esse medo existe porque muitos professores reagem de modo profundamente hostil à visão da educação libertadora que liga a vontade de saber à vontade de vir a ser Nos círculos professorais muitos indivíduos se queixam amargamente de que os alunos querem que as aulas sejam uma espécie de terapia de grupo Embora seja irrazoável da parte dos alunos ter a expectativa de que as aulas sejam sessões de terapia é adequado terem a esperança de que o conhecimento recebido nesse contexto os enriqueça e os torne melhores Atualmente os alunos que encontro parecem muito menos convictos do projeto de autoatualização do que eu e minhas colegas estávamos há vinte anos Sentem que não há diretrizes éticas claras para moldar as ações Mas embora tenham perdido a esperança fazem questão de que a educação seja libertadora Querem e exigem mais dos professores do que a minha geração exigia Às vezes entro numa sala abarrotada de alunos que se sentem terrivelmente feridos na psique muitos fazem terapia mas não penso que eles queiram que eu seja a sua terapeuta Querem isto sim uma educação que cure seu espírito desinformado e ignorante Querem um conhecimento significativo Esperam com toda razão que eu e meus colegas não lhes ofereçamos informações sem tratar também da ligação entre o que eles estão aprendendo e sua experiência global de vida Essa exigência da parte dos alunos não significa que eles sempre vão aceitar nossa orientação Essa é uma das alegrias da educação como prática da liberdade pois permite que os alunos assumam a responsabilidade por suas escolhas Escrevendo sobre nossa relação de professoraluno num artigo para o Village Voice How to Run the Yard OffLine and into the Margins at Yale um aluno meu Gary Dauphin partilha as alegrias de trabalhar comigo bem como as tensões que surgiram entre nós quando ele começou a dedicar mais tempo a tentar ser aceito numa confraria universitária que ao cultivo de sua redação As pessoas acham que para acadêmicos como Gloria o nome que meus pais me deram o mais importante são as diferenças mas com ela eu aprendi principalmente sobre as semElhanças sobre o que eu como negro tenho em comum com as pessoas de cor com as mulheres os gays as lésbicas os pobres e qualquer outro que queira entrar Parte desse aprendizado eu adquiri pela leitura mas a maior parte veio por eu estar presente na periferia da vida dela Vivi assim por algum tempo transitando entre pontos altos na sala de aula e pontos baixos lá fora Gloria era um porto seguro Não há nada mais contrário às aulas dela do que o noviciado da confraria universitária nada está mais longe da cozinha amarela onde ela costumava partilhar o almoço com alunos que precisavam de vários tipos de sustento Isso é o que Gary escreveu sobre a alegria A tensão surgiu quando discutimos suas razões para querer entrar numa confraria e meu desprezo por essa decisão Gary comenta As confrarias representavam uma visão da masculinidade negra que ela abominava uma visão onde a violência e os maustratos eram os sinais principais da união e da identidade Descrevendo sua afirmação de autonomia em relação à minha influência ele escreve Mas ela também devia saber que até a influência dela sobre minha vida tinha limites que os livros e professores tinham limites No fim Gary concluiu que a decisão de entrar na confraria não era construtiva que eu havia lhe ensinado a abertura enquanto a confraria estimulava a fidelidade unidimensional Nossos intercâmbios durante essa experiência e depois dela foram exemplos de pedagogia engajada Por meio do pensamento crítico processo que ele aprendeu lendo sobre teoria e analisando ativamente os textos Gary experimentou a educação como prática da liberdade Seus comentários finais sobre mim Gloria só mencionou o episódio uma vez depois que tudo acabou e isso simplesmente para me dizer que existem muitos tipos de escolha muitos tipos de lógica Desde que fosse sincero eu poderia fazer com que aqueles acontecimentos significassem qualquer coisa Citei extensamente o que ele escreveu porque é um depoimento a favor da pedagogia engajada Significa que minha voz não é o único relato do que acontece em sala de aula A pedagogia engajada necessariamente valoriza a expressão do aluno No ensaio Interrupting the Calls for Student Voice in Liberatory Education A Feminist Post structuralist Perspective Mimi Orner emprega uma abordagem foucaultiana para afirmar que Os meios e usos reguladores e punitivos da confissão nos lembram de práticas curriculares e pedagógicas em que os alunos são chamados a revelar publicamente e até a confessar informações sobre sua vida e sua cultura na presença de figuras de autoridade como os professores Quando a educação é a prática da liberdade os alunos não são os únicos chamados a partilhar a confessar A pedagogia engajada não busca simplesmente fortalecer e capacitar os alunos Toda sala de aula em que for aplicado um modelo holístico de aprendizado será também um local de crescimento para o professor que será fortalecido e capacitado por esse processo Esse fortalecimento não ocorrerá se nos recusarmos a nos abrir ao mesmo tempo em que encorajamos os alunos a correr riscos Os professores que esperam que os alunos partilhem narrativas confessionais mas não estão eles mesmos dispostos a partilhar as suas exercem o poder de maneira potencialmente coercitiva Nas minhas aulas não quero que os alunos corram nenhum risco que eu mesma não vou correr não quero que partilhem nada que eu mesma não partilharia Quando os professores levam narrativas de sua própria experiência para a discussão em sala de aula eliminase a possibilidade de atuarem como inquisidores oniscientes e silenciosos É produtivo muitas vezes que os professores sejam os primeiros a correr o risco ligando as narrativas confessionais às discussões acadêmicas para mostrar de que modo a experiência pode iluminar e ampliar nossa compreensão do material acadêmico Mas a maioria dos professores têm de treinar para estarem abertos em sala de aula estarem totalmente presentes em mente corpo e espírito Os professores progressistas que trabalham para transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas de dominação nem reflita mais nenhuma parcialidade são em geral os indivíduos mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer de sua prática de ensino um foco de resistência No ensaio On Race and Voice Challenges for Liberation Education in the 1990s Chandra Mohanty escreve que a resistência reside na interação consciente com os discursos e representações dominantes e normativos e na criação ativa de espações de oposição analíticos e culturais Evidentemente uma resistência aleatória e isolada não é tão eficaz quanto aquela mobilizada por meio da prática politizada e sistemática de ensinar e aprender Descobrir conhecimentos subjugados e tomar posse deles é um dos meios pelos quais as histórias alternativas podem ser resgatadas Mas para transformar radicalmente as instituições educacionais esses conhecimentos têm de ser compreendidos e definidos pedagogicamente não só como questão acadêmica mas como questão de estratégia e prática Os professores que abraçam o desafio da autoatualização serão mais capazes de criar práticas pedagógicas que envolvam os alunos proporcionandolhes maneiras de saber que aumentem sua capacidade de viver profunda e plenamente Perdi o contato com Ken depois da formatura embora ele sempre tenha ocupado um lugar especial em minhas lembranças Eu pensava nele toda vez que interagia com brancos que acreditavam que ter uma amiga negra era sinal de que não eram racistas que acreditavam sinceramente estar nos fazendo um favor quando nos ofereciam um contato amistoso pelo qual se achavam no direito de ser recompensados Pensei nele durante os anos em que vi os brancos brincar de desaprender o racismo mas se afastar sempre que encontravam obstáculos rejeição conflito e dor Nossa amizade de colegial não se formara porque ele era branco e eu negra mas porque víamos a realidade do mesmo modo A diferença racial nos obrigava a lutar para fazer valer a integridade daquele vínculo Não tínhamos ilusões Sabíamos que haveria obstáculos conflito e dor No patriarcado capitalista da supremacia branca palavras que nunca usamos na época sabíamos que teríamos de pagar um preço por aquela amizade que teríamos de ter coragem para defender nossa crença na democracia na justiça racial no poder transformador do amor O valor que dávamos ao nosso vínculo era suficiente para encararmos esse desafio Dias antes da confraternização lembrando a doçura daquela amizade me senti muito humilde quando percebi a quantas coisas nós renunciamos na juventude acreditando que algum dia vamos encontrar algo tão bom quanto aquilo ou melhor mas que acabamos não encontrando Perguntei a mim mesma como era possível que Ken e eu tivéssemos perdido o contato um com o outro Desde aquela época eu não havia conhecido nenhum branco que compreendesse a profundidade e a complexidade da injustiça racial e estivesse disposto a praticar a arte de viver sem racismo como as pessoas estavam naquela época Na vida adulta encontrei poucos brancos realmente dispostos a fazer o que é preciso para criar um mundo de igualdade racial brancos dispostos a correr riscos a ser corajosos a nadar contra a corrente Fui à confraternização na esperança de ter a oportunidade de encontrar Ken pessoalmente de lhe dizer o quanto eu tinha carinho por tudo o que havíamos partilhado de lhe dizer em palavras que eu nunca ousaria dizer a um branco naquela época simplesmente que eu o amava Lembrando desse passado o que mais me toca era nosso compromisso apaixonado com uma visão de transformação social baseada na crença fundamental numa ideia radicalmente democrática de liberdade e justiça para todos Nossas noções de mudança social não eram sofisticadas Não havia uma complexa teoria política pósmoderna moldando nossas ações Simplesmente tentávamos mudar a vida cotidiana para que nossos valores e hábitos de ser refletissem nosso compromisso com a liberdade Na época nossa principal preocupação era acabar com o racismo Hoje assistindo à ascensão da supremacia branca e ao crescente apartheid social e econômico que separa brancos e negros ricos e pobres homens e mulheres juntei à luta pelo fim do racismo um compromisso com o fim do sexismo e da opressão sexista e com a erradicação dos sistemas de exploração de classe Ciente de que vivemos numa cultura da dominação me pergunto agora como me perguntava há mais de vinte anos quais valores e hábitos de ser refletem meunosso compromisso com a liberdade Olhando para trás vejo que nos últimos vinte anos conheci muita gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça para todos mas seu modo de vida os valores e os hábitos de ser que essa gente institucionaliza no dia a dia em rituais públicos e privados ajudam a manter a cultura da dominação ajudam a criar um mundo sem liberdade No livro Where Do We Go From Here Chaos or Community Martin Luther King com intuição profética disse aos cidadãos deste país que não conseguiríamos avançar se não sofrêssemos uma verdadeira revolução dos valores Garantiunos que a estabilidade do mundo desta grande casa onde habitamos terá de envolver uma revolução de valores que acompanhe as revoluções científicas e libertárias que engolem a Terra Temos de deixar de ser uma sociedade orientada para as coisas e passar rapidamente a ser uma sociedade orientada para as pessoas Quando as máquinas e os computadores a ambição de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes que as pessoas tornase impossível vencer os gigantes trêsmos do racismo do materialismo e do militarismo É tão fácil a civilização naufragar diante da falência moral e espiritual quanto diante da falência financeira Hoje vivemos no meio desse naufrágio Vivemos no caos na incerteza de que será possível construir e manter uma comunidade As figuras públicas que mais nos falam sobre a volta a valores antigos incorporam os males que King descreve São as pessoas mais comprometidas com a manutenção de sistemas de dominação o racismo o sexismo a exploração de classe e o imperialismo Elas provem uma visão perversa de liberdade que a equipara ao materialismo Nos ensinam a crer que a dominação é natural que os fortes e poderosos têm o direito de governar os fracos e impotentes O que me espanta é que embora tanta gente afirme rejeitar esses valores nossa rejeição coletiva está longe de ser completa visto que eles ainda prevalecem em nossa vida cotidiana Ultimamente tenho sido levada a pensar em quais são as forças que nos impedem de avançar de sofrer aquela revolução de valores que nos permitiria viver de modo diferente King nos ensinou a compreender que para termos paz na Terra nossa fidelidade tem de transcender nossa raça nossa tribo nossa classe nosso país Muito antes de a palavra multiculturalismo entrar na moda ele nos encorajava a desenvolver uma perspectiva mundial Mas o que testemunhamos hoje em dia na vida cotidiana não é uma avidez por parte de pessoas próximas e distantes de desenvolver uma perspectiva mundial mas sim uma volta ao nacionalismo estreito ao isolacionismo e à xenofobia A Nova Direita e os neoconservadores costumam explicar essas mudanças como uma tentativa de impor ordem ao caos de voltar a um passado idealizado Na noção de família citada nessas discussões os papéis sexistas são proclamados como tradições estabilizadoras Não surpreende que essa visão da vida familiar seja associada a uma noção de segurança que implica que estamos sempre mais seguros junto à gente do nosso próprio grupo raça classe religião e assim por diante Por mais que as estatísticas de violência doméstica homicídio estupro e maustratos a crianças indiquem que a família patriarcal idealizada está longe de ser um espaço seguro que as vítimas de violência têm maior probabilidade de ser atacadas por pessoas semelhantes a elas que por estranhos misteriosos e diferentes esses mitos conservadores se perpetuam Está claro que uma das principais razões por que não sofremos uma revolução de valores é que a cultura de dominação necessariamente promove os vícios da mentira e da negação Essa mentira assume uma forma aparentemente inocente muitos brancos e até alguns negros afirmam que o racismo não existe mais e que as sólidas oportunidades de igualdade social atualmente existentes habilitam qualquer negro trabalhador a alcançar a autossuficiência econômica Vamos esquecer que o capitalismo implica a existência de uma massa de mão de obra excedente subprivilegiada Essa mentira toma a forma da criação pelos meios de comunicação de massa do mito de que o movimento feminista transformou completamente a sociedade a tal ponto que a política do poder patriarcal se inverteu e os homens especialmente os brancos mas também os negros castrados se tornaram vítimas de mulheres dominadoras Por isso dizem todos os homens especialmente os negros têm de se unir como nas audiências para a confirmação de Clarence Thomas para apoiar e reafirmar a dominação patriarcal Quando se acrescentam a isso as onipresentes suposições de que os negros as mulheres brancas e outras minorias estão tirando os empregos dos homens brancos e de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem fica mais do que evidente que a crise contemporânea é criada em parte por uma falta de acesso significativo à verdade Ou seja não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça Se examinarmos criticamente o papel tradicional da universidade na busca da verdade e na partilha de conhecimento e informação ficará claro infelizmente que as parcialidades que sustentam e mantêm a supremacia branca o imperialismo o sexismo e o racismo distorceram a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática da liberdade O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural por repensar os modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas de aula de como ensinamos e do que ensinamos foram revoluções necessárias que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e corrupta Quando todos começaram a falar sobre a diversidade cultural isso nos entusiasmou Para nós que estávamos à margem pessoas de cor gente da classe trabalhadora gays lésbicas e por aí afora e sempre tivéramos sentimentos ambivalentes sobre nossa presença numa instituição onde o conhecimento era partilhado de modo a reforçar o colonialismo e a dominação era emocionante pensar que a visão de justiça e democracia que estava no próprio âmago do movimento pelos direitos civis iria se realizar na acade zada está longe de ser um espaço seguro que as vítimas de violência têm maior probabilidade de ser atacadas por pessoas semelhantes a elas que por estranhos misteriosos e diferentes esses mitos conservadores se perpetuam Está claro que uma das principais razões por que não sofremos uma revolução de valores é que a cultura de dominação necessariamente promove os vícios da mentira e da negação Essa mentira assume uma forma aparentemente inocente muitos brancos e até alguns negros afirmam que o racismo não existe mais e que as sólidas oportunidades de igualdade social atualmente existentes habilitam qualquer negro trabalhador a alcançar a autossuficiência econômica Vamos esquecer que o capitalismo implica a existência de uma massa de mão de obra excedente subprivilegiada Essa mentira toma a forma da criação pelos meios de comunicação de massa do mito de que o movimento feminista transformou completamente a sociedade a tal ponto que a política do poder patriarcal se inverteu e os homens especialmente os brancos mas também os negros castrados se tornaram vítimas de mulheres dominadoras Por isso dizem todos os homens especialmente os negros têm de se unir como nas audiências para a confirmação de Clarence Thomas para apoiar e reafirmar a dominação patriarcal Quando se acrescentam a isso as onipresentes suposições de que os negros as mulheres brancas e outras minorias estão tirando os empregos dos homens brancos e de que as pessoas são pobres e desempregadas porque querem fica mais do que evidente que a crise contemporânea é criada em parte por uma falta de acesso significativo à verdade Ou seja não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz Quando o consumo cultural coletivo da desinformação e o apego à desinformação se aliam às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça Se examinarmos criticamente o papel tradicional da universidade na busca da verdade e na partilha de conhecimento e informação ficará claro infelizmente que as parcialidades que sustentam e mantêm a supremacia branca o imperialismo o sexismo e o racismo distorceram a educação a tal ponto que ela deixou de ser uma prática da liberdade O clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural por repensar os modos de conhecimento e pela desconstrução das antigas epistemologias bem como a exigência concomitante de uma transformação das salas de aula de como ensinamos e do que ensinamos foram revoluções necessárias que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e corrupta Quando todos começaram a falar sobre a diversidade cultural isso nos entusiasmou Para nós que estávamos à margem pessoas de cor gente da classe trabalhadora gays lésbicas e por aí afora e sempre tivéramos sentimentos ambivalentes sobre nossa presença numa instituição onde o conhecimento era partilhado de modo a reforçar o colonialismo e a dominação era emocionante pensar que a visão de justiça e democracia que estava no próprio âmago do movimento pelos direitos civis iria se realizar na acade mia Até que enfim havia a possibilidade de uma comunidade de aprendizado um lugar onde as diferenças fossem reconhecidas onde todos finalmente compreenderiam aceitariam e afirmariam que nossas maneiras de conhecer são forjadas pela história e pelas relações de poder Por fim iríamos nos livrar da negação coletiva da academia e reconhecer que a educação que quase todos nós havíamos recebido e estávamos transmitindo não era e nunca é politicamente neutra Estava na cara que a mudança não seria imediata mas havia uma tremenda esperança de que o processo que havíamos desencadeado levasse à realização do sonho da educação como prática da liberdade De início muitos colegas participaram com relutância dessa mudança Muitos constataram que na tentativa de respeitar a diversidade cultural tinham de confrontar não só as limitações de seu conhecimento e formação como também uma possível perda de autoridade Com efeito o desmascaramento de certas verdades e preconceitos na sala de aula muitas vezes criava caos e confusão A ideia de que a sala de aula deve ser sempre um local seguro e harmônico foi posta em questão Os indivíduos tinham dificuldade para captar plenamente a noção de que o reconhecimento da diferença poderia também exigir de nós a disposição de ver a sala de aula mudar de figura de permitir mudanças nas relações entre os alunos Muita gente entrou em pânico O que viam à sua frente não era a reconfortante ideia de um caldeirão de diversidade cultural de um arcoíris coletivo onde todos estaríamos unidos em nossas diferenças mas sim todos sorrindo amarelo uns para os outros Era a essência da fantasia colonizadora uma per membros mais jovens do professorado de introduzir novos paradigmas capazes de produzir a mudança Num dos meus seminários sobre Toni Morrison à medida que as pessoas sentadas em círculo expunham reflexões críticas sobre a linguagem dessa escritora uma menina classicamente branca loira tipo colegial contou que um de seus outros professores de Língua Inglesa um branco mais velho cujo nome ninguém quis saber confessou que estava contente por encontrar uma aluna ainda interessada em ler literatura palavras a linguagem dos textos e não aquela papagaiada sobre raça e gênero Achando engraçada a suposição que ele tinha feito a respeito dela ela se perturbou com sua convicção de que os modos convencionais de abordagem crítica do romance não pudessem coexistir com aulas que também oferecessem novas perspectivas Então partilhei com a classe algo que me aconteceu numa festa de Halloween Um novo colega um branco com quem eu conversava pela primeira vez fez uma invectiva ao simplesmente ouvir falar do meu seminário sobre Toni Morrison Destacou que Cantares de Salomão era uma versão piorada de Por quem os sinos dobram de Hemingway Apaixonadamente hostil a Morrison e estudioso de Hemingway ele parecia estar manifestando a preocupação tantas vezes repetida de que as escritoras e pensadoras negras são imitações baratas de grandes homens brancos Como não queria naquele momento entrar nos assuntos Desaprender o Colonialismo Despojarse do Racismo e Primeira Aula sobre Sexismo optei pela estratégia que havia aprendido num livro de autoajuda que nega a existência do patriarcado institucionalizado Mulheres que amam demais simplesmente disse Ah Mais tarde lhe garanti que leria Por quem os sinos dobram de novo para ver se fazia a mesma relação Ambos os incidentes aparentemente banais revelam como é profundo o medo de que qualquer descentralização das civilizações ocidentais do cânone do homem branco seja na realidade um ato de genocídio cultural Certas pessoas acham que todos os que apoiam a diversidade cultural querem substituir uma ditadura do conhecimento por outra trocar um bloco de pensamento por outro Talvez seja essa a percepção mais errônea da diversidade cultural Embora haja entre nós um pessoal excessivamente zeloso que pretende substituir um conjunto de absolutos por outro mudando simplesmente o conteúdo essa perspectiva não representa com precisão as visões progressistas de como o compromisso com a diversidade cultural pode transformar construtivamente a academia Em todas as revoluções culturais há períodos de caos e confusão épocas em que graves enganos são cometidos Se tivermos medo de nos enganar de errar se estivermos a nos avaliar constantemente nunca transformaremos a academia num lugar culturalmente diverso onde tanto os acadêmicos quanto aquilo que eles estudam abarquem todas as dimensões dessa diferença Com a intensificação do recuo o corte de orçamentos a escassez cada vez maior de empregos várias das poucas intervenções progressistas feitas para mudar a academia para criar uma atmosfera favorável à mudança cultural correm o risco de ser solapadas ou eliminadas Essas ameaças não devem ser ignoradas Tampouco o nosso compromisso com a diversidade cultural deve mudar porque ainda não criamos e implementamos estratégias perfeitas Para criar uma academia culturalmente diversa temos de nos comprometer inteiramente Aprendendo com outros movimentos de mudança social com os esforços pelos direitos civis e pela liberação feminina temos de aceitar que nossa luta será longa e estar dispostos a permanecer pacientes e vigilantes Para nos comprometer com a tarefa de transformar a academia num lugar onde a diversidade cultural informe cada aspecto do nosso conhecimento temos de abraçar a luta e o sacrifício Não podemos nos desencorajar facilmente Não podemos nos desesperar diante dos conflitos Temos de afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade Buscando forças na vida e na obra de Martin Luther King sempre me lembro do profundo conflito interior que ele sofreu quando sentiu que suas crenças religiosas o obrigavam a se opor à Guerra do Vietnã Com medo de perder o apoio dos burgueses conservadores e de afastarse das Igrejas dos negros King meditou numa passagem da Epístola aos Romanos capítulo 12 versículo 2 que o lembrou da necessidade da dissensão do desafio e da mudança Não vos conformeis com este mundo mas transformaivos pela renovação da vossa mente Todos nós na academia e na cultura como um todo somos chamados a renovar nossa mente para transformar as instituições educacionais e a sociedade de tal modo que nossa maneira de viver ensinar e trabalhar possa refletir nossa alegria diante da diversidade cultural nossa paixão pela justiça e nosso amor pela liberdade ponto de vista multicultural deve levar em consideração o medo dos professores quando se lhes pede que mudem de paradigma É preciso instituir locais de formação onde os professores tenham a oportunidade de expressar seus temores e ao mesmo tempo aprender a criar estratégias para abordar a sala de aula e o currículo multiculturais Quando entrei no Oberlin College fiquei transtornada pelo que me parecia uma falta de compreensão de muitos professores sobre como poderia ser a sala de aula multicultural Chandra Mohanty minha colega de Estudos da Mulher tinha a mesma preocupação Embora nem eu nem ela fôssemos professoras titulares nossa forte crença de que o campus de Oberlin não estava encarando de frente a questão de mudar o currículo e as práticas de ensino de um jeito progressista que promovesse a inclusão nos levou a pensar em como intervir nesse processo Partimos do princípio de que a imensa maioria dos professores de Oberlin quase todos brancos eram essencialmente bemintencionados e se preocupavam com a qualidade da educação que os alunos recebiam no campus Portanto tenderiam a apoiar qualquer esforço no sentido da educação para a consciência crítica Juntas decidimos realizar uma série de seminários com foco na pedagogia transformadora e abertos a todos os professores De início também acolhíamos alunos mas percebemos que a presença deles tolhi a discussão sincera Na primeira noite por exemplo vários professores brancos fizeram comentários que poderiam ser interpretados como terrivelmente racistas e os alunos saíram da sala e espalharam por toda a faculdade o que tinha sido dito Vista que nossa intenção era educar para a consciência crítica não queríamos que ninguém se sentisse atacado ou tivesse sua reputação de professor manchada no espaço do seminário Queríamos porém que este fosse um espaço de confrontação construtiva e questionamento crítico Para garantir que isso acontecesse tivemos de excluir os alunos No primeiro encontro Chandra pedagoga por formação e eu falamos sobre os fatores que haviam influenciado nossas práticas pedagógicas Sublinhei o impacto da obra de Freire sobre o meu pensamento Uma vez que minha formação básica tinha se realizado em escolas segregadas por raça falei sobre a experiência de aprender quando as nossas próprias experiências são consideradas centrais e significativas e sobre como isso mudou com a dessegregação quando as crianças negras foram obrigadas a frequentar escolas onde eram vistas como objetos e não sujeitos Muitos professores presentes no primeiro encontro se sentiram perturbados pelo fato de discutirmos temas políticos abertamente Tivemos de lembrar a todos várias vezes que nenhuma educação é politicamente neutra Mostrando que o professor branco do departamento de literatura inglesa que só fala das obras escritas por grandes homens brancos está tomando uma decisão política tivemos de enfrentar e vencer a vontade avassaladora de muitos presentes de negar a política do racismo do sexismo do heterossexismo etc que determina o que ensinamos e como ensinamos Constatamos várias vezes que quase todos especialmente a velha guarda se perturbavam mais com o reconhecimento franco de o quanto nossas preferências políticas moldam nossa pedagogia do que com sua aceitação passiva de modos de ensinar e aprender que refletem parcialidades particularmente o ponto de vista da supremacia branca Para partilhar nosso esforço de intervenção convidamos professores universitários de todo o país a vir dar palestras formais e informais sobre o trabalho que desenvolviam no sentido de transformar o ensino e o aprendizado para possibilitar uma educação multicultural Convidamos Cornel West então professor de religião e filosofia em Princeton para dar uma palestra sobre descentralizar a civilização ocidental Esperávamos que sua formação muito convencional e sua prática progressista como pesquisador dessem a todos uma sensação de otimismo quanto à nossa capacidade de mudar Na sessão informal alguns professores brancos homens tiveram a coragem de dizer claramente que aceitavam a necessidade de mudar mas não tinham certeza de quais seriam as consequências da mudança Isso nos lembrou que as pessoas têm dificuldade de mudar de paradigma e precisam de um contexto onde deem voz a seus medos onde falem sobre o que estão fazendo como estão fazendo e por quê Uma das reuniões mais úteis foi aquela em que pedimos a professores de várias disciplinas inclusive de matemática e ciências que falassem informalmente sobre como seu ensino havia sido modificado pelo desejo de promover a inclusão A abordagem de ouvir as pessoas descrevendo estratégias concretas ajudava a dissipar o medo Era crucial que os professores mais tradicionais ou conservadores que tinham tido a disposição de fazer mudanças falassem sobre motivações e estratégias Quando as reuniões acabaram Chandra e eu sentimos de início uma tremenda decepção Não havíamos percebido o quanto o corpo docente precisava desaprender o racismo para aprender sobre a colonização e a descolonização e compreender plenamente a necessidade de criar uma experiência democrática de aprendizado das artes liberais Com demasiada frequência à vontade de incluir os considerados marginais não correspondia à disposição de atribuir a seus trabalhos o mesmo respeito e consideração dados aos trabalhos de outras pessoas Nos Estudos da Mulher por exemplo as professoras tratam das mulheres de cor somente no finalzinho do semestre ou juntam numa única parte do curso tudo o que se refere à raça e às diferenças Essa modificação próforma do currículo não é uma transformação multicultural mas sabemos que é a mudança que os professores mais tendem a fazer Vou dar outro exemplo Quando uma professora de inglês branca inclui uma obra de Toni Morrison no roteiro do curso mas fala sobre ela sem fazer nenhuma referência à raça ou à etnia o que isso significa Já ouvi várias mulheres brancas se gabarem de ter mostrado aos alunos que os escritores e escritoras negros são tão bons quanto os do cânone dos homens brancos mas elas não chamam a atenção para a questão da raça É claro que essa pedagogia não questiona as parcialidades estabelecidas pelos cânones convencionais ou quem sabe por todos os cânones É ao contrário mais um tipo de modificação próforma A falta de disposição de abordar o ensino a partir de um ponto de vista que inclua uma consciência da raça do sexo e da classe social tem suas raízes muitas vezes no medo de que a sala de aula se torne incontrolável que as emoções e paixões não sejam mais represadas Em certa medida todos nós sabemos que quando tratamos em sala de aula de temas acerca dos quais os alunos têm sentimentos apaixonados sempre existe a possibilidade de confrontação expressão vigorosa das ideias e até de conflito Em boa parte dos meus escritos sobre pedagogia sobretudo em salas de aula de grande diversidade falei sobre a necessidade de examinar criticamente o modo como nós professores conceituamos como deve ser o espaço de aprendizado Muitos professores universitários me confessaram seu sentimento de que a sala de aula deve ser um lugar seguro traduzindo isso em geral significa que o professor dá aula a um grupo de estudantes silenciosos que só respondem quando são estimulados A experiência dos professores universitários que educam para a consciência crítica indica que muitos alunos especialmente os de cor não se sentem seguros de modo algum nesse ambiente aparentemente neutro É a ausência do sentimento de segurança que muitas vezes promove o silêncio prolongado ou a falta de envolvimento dos alunos Fazer da sala de aula um contexto democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir é um objetivo central da pedagogia transformadora Em toda a minha carreira de professora muitos professores universitários brancos me falaram de sua preocupação com os alunos não brancos que não falam À medida que a sala de aula se torna mais diversa os professores têm de enfrentar o modo como a política da dominação se reproduz no contexto educacional Os alunos brancos e homens por exemplo continuam sendo os que mais falam em nossas aulas Os alunos de cor e algumas mulheres brancas dizem ter medo de que os colegas os julguem intelectualmente inferiores Já dei aula a brilhantes alunos de cor alguns de idade avançada que conseguiram com muita habilidade nunca abrir a boca em sala de aula Alguns expressam o sentimento de que se simplesmente não afirmarem sua subjetividade terão menos probabilidade de ser agredidos Disseram que muitos professores universitários jamais manifestaram o menor interesse por ouvir a voz deles A aceitação da descentralização global do Ocidente a adoção do multiculturalismo obrigam os educadores a centrar sua atenção na questão da voz Quem fala Quem ouve E por quê Cuidar para que todos os alunos cumpram sua responsabilidade de contribuir para o aprendizado na sala de aula não é uma abordagem comum no sistema que Freire chamou de educação bancária onde os alunos são encarados como meros consumidores passivos Uma vez que tantos professores ensinam a partir desse ponto de vista é difícil criar uma comunidade de aprendizado que abrace plenamente o multiculturalismo Os alunos estão muito mais dispostos que os professores a abrir mão de sua dependência em relação à educação bancária Também estão muito mais dispostos a enfrentar o desafio do multiculturalismo Foi como professora no contexto da sala de aula que testemunhei o poder de uma pedagogia transformadora fundada no respeito pelo multiculturalismo Trabalhando com uma pedagogia crítica baseada em minha compreensão dos ensinamentos de Freire entro na sala partindo do princípio de que temos de construir uma comunidade para criar um clima de abertura e rigor intelectual Em vez de enfocar a questão da segurança penso que o sentimento de comunidade cria a sensação de um compromisso partilhado e de um bem comum que nos une Idealmente o que todos nós partilhamos é o desejo de aprender de receber ativamente um conhecimento que intensifique nosso desenvolvimento intelectual e nossa capacidade de viver mais plenamente no mundo Segundo minha experiência um dos jeitos de construir a comunidade na sala de aula é reconhecer o valor de cada voz individual Cada aluno das minhas turmas tem um diário Muitas vezes eles escrevem parágrafos durante a aula e os leem uns aos outros Isso acontece pelo menos uma vez qualquer que seja o tamanho da turma E a maioria das minhas turmas não é pequena Têm de trinta a sessenta alunos e houve circunstâncias em que dei aula para mais de cem Ouvir um ao outro o som de vozes diferentes escutar um ao outro é um exercício de reconhecimento Também garante que nenhum aluno permaneça invisível na sala Alguns deles se ressentem de ter de dar uma contribuição verbal por isso tenho de deixar claro desde o princípio que isso é um requisito nas minhas aulas Mesmo que a voz de um dos alunos não possa ser ouvida por meio da fala ele faz sentir sua presença por meio de sinalização mesmo que ninguém consiga ler os sinais Quando entrei pela primeira vez na sala de aula multicultural e multiétnica eu estava despreparada Não sabia como lidar eficazmente com tanta diferença Apesar da política progressista e do meu envolvimento profundo com o movimento feminista eu nunca havia sido obrigada a trabalhar num contexto verdadeiramente diverso e não tinha as habilidades necessárias É o caso da maioria dos educadores Muitos educadores nos Estados Unidos têm dificuldade para imaginar como ficará a sala de aula quando se confrontrarem com os dados demográficos que indicam que o ser branco pode deixar de ser a etnia normal em todos os níveis educacionais Logo os educadores estão mal preparados quando confrontam concretamente a diversidade É por isso que tantos se aferram obstinadamente aos velhos padrões Trabalhando para criar estratégias de ensino que abrissem espaço para o aprendizado multicultural constatai a necessidade de reconhecer aquilo que em outros textos de pedagogia chamei de diferentes códigos culturais Para ensinar eficazmente um corpo discente diverso tenho de aprender esses códigos E os alunos também têm Esse ato por si só transforma a sala de aula A partilha de ideias e informações nem sempre progride tão rápido quanto poderia progredir num contexto mais homogêneo Muitas vezes os professores e os alunos no contexto multicultural têm de aprender a aceitar diferentes maneiras de conhecer novas epistemologias Assim como é difícil para os professores mudar de paradigma também pode ser difícil para os alunos Sempre acreditei que os alunos têm de gostar de aprender Mas constatai que existe muito mais tensão no contexto da sala de aula diversa onde a filosofia de ensino é baseada na pedagogia crítica e no meu caso na pedagogia crítica feminista A presença da tensão e às vezes até de conflito fez com que frequentemente os alunos não gostassem nem das minhas aulas nem de mim sua professora como eu secretamente queria que gostassem Ensinando uma disciplina tradicional do ponto de vista da pedagogia crítí ca muitas vezes encontro alunos que fazem a seguinte queixa Achei que este curso era de inglês Por que estamos falando tanto de feminismo Às vezes acrescentam de raça de classe social Na sala de aula transformada é muito mais necessário explicar a filosofia a estratégia e a intenção do curso que no contexto normal No decorrer dos anos constatai que muitos alunos que se queixam sem parar durante meus cursos entram em contato comigo num momento posterior para dizer o quanto aquela experiência foi significativa para eles o quanto aprenderam No papel de professora tive de abrir mão da minha necessidade de afirmação imediata do sucesso no ensino embora parte da recompensa seja imediata e admitir que os alunos podem não compreender de cara o valor de um certo ponto de vista ou de um processo O aspecto empolgante de criar na sala de aula uma comunidade onde haja respeito pelas vozes individuais é que o retorno é bem maior pois os alunos se sentem de fato livres para falar e e responder E é verdade muitas vezes esse retorno assume a forma de crítica Deixar de lado a necessidade de afirmação imediata foi crucial para meu crescimento como professora Aprendi a respeitar o fato de que mudar de paradigma ou partilhar o conhecimento de maneira nova são desafios leva tempo para que os alunos sintam esses desafios como positivos Os alunos também me ensinaram que é preciso praticar a compaixão nesses novos contextos de aprendizado Não me esqueço do dia em que um aluno entrou na aula e me disse Nós fazemos seu curso Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico que leva em conta a raça o sexo e a classe social E não conseguimos mais curtir a vida Olhando para o resto da turma vi alunos de todas as raças etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal de assentimento E vi pela primeira vez que pode haver e geralmente há uma certa dor envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras formas Respeito essa dor E agora quando ensino trato de reconhecêla ou seja ensino a mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar Os alunos brancos que aprendem a pensar de maneira mais crítica sobre questões de raça e racismo vão para casa nas férias e de repente veem seus pais sob outra luz Podem reconhecer neles um pensamento retrógrado racista e assim por diante e podem se magoar pelo fato de a nova maneira de conhecer ter criado um distanciamento onde antes não havia nenhum Muitas vezes quando os alunos voltam de férias ou feriados peço que nos contem como as ideias aprendidas ou trabalhadas na sala de aula impactaram sua experiência lá fora Isso lhes dá tanto a oportunidade de saber que as experiências difíceis acontecem com todo o mundo quanto a prática de integrar teoria e práxis modos de conhecer e hábitos de ser Praticamos não só o questionamento das ideias como também o dos hábitos de ser Por meio desse processo construímos uma comunidade Apesar do foco na diversidade do nosso desejo de inclusão muitos professores ainda ensinam em salas de aula onde a maioria dos alunos é de brancos O espírito da inclusão próforma muitas vezes prevalece nesse contexto É por isso que é tão importante que o ser branco seja estudado compreendido discutido para todos aprenderem que a afirmação do multiculturalismo e uma perspectiva imparcial e inclusiva podem e devem estar presentes mesmo na ausência de pessoas de cor A transformação desse tipo de sala de aula é um desafio tão grande quanto o de ensinar bem num contexto de diversidade Muitas vezes se há somente uma pessoa de cor na sala de aula ela é objetificada pelos outros e obrigada a assumir o papel de informante nativo Estamos lendo por exemplo um romance de uma autora americana de origem coreana Os alunos brancos se voltam para a única aluna de origem coreana e pedem que ela explique o que eles não entendem Isso deposita uma responsabilidade injusta sobre os ombros dessa aluna Os professores podem intervir nesse processo deixando claro desde o início que a experiência não faz o especialista e talvez até explicando o que significa colocar outra pessoa no papel de informante nativo Devo dizer que o professor não deve intervir se também tende a ver os alunos como informantes nativos Muitos alunos já vieram ao meu escritório se queixar da falta de inclusão na aula de algum outro professor Um curso sobre o pensamento social e político nos Estados Unidos por exemplo não inclui nenhuma obra escrita por uma mulher Quando os alunos reclamam com o professor sobre essa falta de inclusão pedese que eles deem sugestões de obras a serem abordadas Muitas vezes isso deposita um fardo injusto sobre os ombros do aluno Também faz parecer que as parcialidades só precisam ser resolvidas quando alguém reclama Os alunos reclamam cada vez mais porque querem uma educação em artes liberais democrática e imparcial O multiculturalismo obriga os educadores a reconhecer as estreitas fronteiras que moldaram o modo como o conhecimento é partilhado na sala de aula Obriga todos nós a reconhecer nossa cumplicidade na aceitação e perpetuação de todos os tipos de parcialidade e preconceito Os alunos estão ansiosos para derrubar os obstáculos ao saber Estão dispostos a se render ao maravilhamento de aprender e reaprender novas maneiras de conhecer que vão contra a corrente Quando nós como educadores deixamos que nossa pedagogia seja radicalmente transformada pelo reconhecimento da multiculturalidade do mundo podemos dar aos alunos a educação que eles desejam e merecem Podemos ensinar de um jeito que transforma a consciência criando um clima de livre expressão que é a essência de uma educação em artes liberais verdadeiramente libertadora Paulo Freire Este é um diálogo lúdico em que eu Gloria Watkins converso com bell hooks minha voz de escritora Quis falar sobre Paulo e sua obra deste jeito porque ele me proporciona uma intimidade uma familiaridade que não me parece possível alcançar na forma de ensaio E aqui encontrei um modo de partilhar a doçura a solidariedade sobre a qual falo Watkins Lendo seus livros Aint I a Woman Black Women and Feminism Feminist Theory From Margin to Center e Talking Back fica claro que seu desenvolvimento como pensadora crítica foi imensamente influenciado pela obra de Paulo Freire Você pode falar de por que a obra dele tocou tão profundamente a sua vida hooks Anos antes de conhecer Paulo Freire eu já tinha aprendido muito com o trabalho dele aprendido maneiras novas e libertadoras de pensar sobre a realidade social Muitas vezes quando os estudantes e professores universitários leem Freire eles abordam a sua obra a partir de um ponto de vista voyeurístico ção subjetiva do educador Freire em quem muitas vezes estão mais interessados do que nas ideias e temas de que ele fala e a posição dos grupos oprimidosmarginalizados de que ele fala Em relação a essas duas posições eles próprios se posicionam como observadores como quem está de fora Quando encontrei a obra de Freire bem num momento da minha vida em que estava começando a questionar profundamente a política da dominação o impacto do racismo do sexismo da exploração de classe e da colonização que ocorre dentro dos próprios Estados Unidos me senti fortemente identificada com os camponeses marginalizados de que ele fala e com meus irmãos e irmãs negros meus camaradas da GuinéBissau Veja você eu chegava à universidade com a experiência de uma negra da zona rural do Sul dos Estados Unidos Tinha vivido a luta pela dessegregação racial e estava na resistência sem ter uma linguagem política para formular esse processo Paulo foi um dos pensadores cuja obra me deu uma linguagem Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência Uma frase isolada de Freire se tornou um mantra revolucionário para mim Não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde Realmente é difícil encontrar palavras adequadas para explicar como essa afirmação era uma porta fechada e lutei comigo mesma para encontrar a chave e essa luta me engajou num processo transformador de pensamento crítico Essa experiência posicionou Freire na minha mente e no meu coração como um professor desafiador cuja obra alimentou minha própria luta contra o processo de colonização a mentalidade colonizadora GW Na sua obra você evidencia uma preocupação permanente com o processo de descolonização particularmente na medida em que afeta os afroamericanos que vivem dentro da cultura da supremacia branca nos Estados Unidos Você enxerga um elo entre o processo de descolonização e a insistência de Freire na conscientização bh Sem dúvida Pelo fato de as forças colonizadoras serem tão poderosas neste patriarcado capitalista de supremacia branca parece que os negros sempre têm de renovar um compromisso com um processo político descolonizador que deve ser fundamental para a nossa vida mas não é É assim a obra de Freire em seu entendimento global das lutas de libertação sempre enfatiza que este é o importante estágio inicial da transformação aquele momento histórico em que começamos a pensar criticamente sobre nós mesmas e nossa identidade diante das nossas circunstâncias políticas Mais uma vez esse é um dos conceitos da obra de Freire e da minha que frequentemente é mal compreendido pelos leitores nos Estados Unidos Muita gente me diz que pareço estar afirmando que é suficiente que os indivíduos mudem sua maneira de pensar E veja até o uso da palavra suficiente me diz algo acerca da atitude com que eles encaram essa questão Ela tem uma sonoridade paternalista que não transmite um entendimento profundo de o quanto uma mudança de atitude e não somente o término de qualquer processo transformador pode ser significativa para um povo colonizadooprimido Repeditamente Freire tem de lembrar os leitores de que ele nunca falou da conscientização como um fim em si mas sempre na medida em que se soma a uma práxis significativa Gosto quando ele fala da necessidade de tornar real na prática o que já sabemos na consciência Isto significa enfatizemos que os seres humanos não sobrepassam a situação concreta a condição na qual estão por meio de sua consciência apenas ou de suas intenções por boas que sejam A possibilidade que tive de transcender os estreitos limites de uma cela de 170 m de comprimento por 60 centímetros de largura na qual me achava após o golpe militar brasileiro de 1º de abril de 1964 não era suficiente contudo para mudar minha condição de encarcerado Continuava dentro da cela sem liberdade apesar de poder imaginar o mundo lá fora Mas por outro lado a práxis não é a ação cega desprovida de intenção ou de finalidade É ação e reflexão Mulheres e homens são seres humanos porque se fizeram historicamente seres da práxis e assim se tornaram capazes de transformando o mundo dar significado a ele Creio que tantos movimentos políticos progressistas não conseguem ter impacto duradouro nos Estados Unidos exatamente por não terem uma compreensão suficiente da práxis É isso que me toca quando em Por uma pedagogia da pergunta Antonio Faundez afirma que uma das coisas que aprendemos no Chile nessa pré reflexão sobre a cotidianeidade era que as afirmações abstratas políticas religiosas ou morais que eram excelentes não se transformavam não se concretizavam nas ações individuais Éramos revolucionários em abstrato não na vida cotidiana Creio que a revolução começa justamente na revolução da vida cotidiana Sempre me espanto quando as pessoas progressistas agem como se a crença de que nossa vida deve ser um exemplo vivo de nossa política fosse de algum modo uma posição moral ingênua GW Muitas leitoras de Freire sentem que a linguagem sexista da obra dele que não foi modificada nem depois de ser questionada pelo movimento feminista contemporâneo e pela crítica feminista é um exemplo negativo Quando você leu Freire pela primeira vez qual foi sua reação ao sexismo da linguagem dele bh Enquanto lia Freire em nenhum momento deixei de estar consciente não só do sexismo da linguagem como também do modo com que ele e outros líderes políticos intelectuais e pensadores críticos progressistas do Terceiro Mundo como Fanon Memmi etc constrói um paradigma falocêntrico da libertação onde a liberdade e a experiência da masculinidade patriarcal estão ligadas como se fossem a mesma coisa Isso é sempre motivo de angústia para mim pois representa um ponto cego na visão de homens que têm uma percepção profunda Por outro lado não quero em nenhuma hipótese que a crítica desse ponto cego eclipse a capacidade de qualquer pessoa e particularmente das feministas de aprender com as percepções É por isso que é difícil para mim falar sobre o sexismo na obra de Freire é difícil encontrar uma linguagem que permita estruturar uma crítica e ao mesmo tempo continue reconhecendo tudo o que é valioso e respeitado na obra Pareceme que a oposição binária tão embutida no pensamento e na linguagem ocidentais torna quase impossível que se projete uma resposta complexa O sexismo de Freire é indicado pela linguagem de suas primeiras obras apesar de tantas coisas continuarem libertadoras Não é preciso pedir desculpas pelo sexismo O próprio modelo de pedagogia crítica de Freire acolhe o questionamento crítico dessa falha na obra Mas questionamento crítico não é o mesmo que rejeição GW Então você não vê contradição entre sua valorização da obra de Freire e seu compromisso com os estudos feministas bh É o pensamento feminista que me dá força para fazer a crítica construtiva da obra de Freire da qual eu precisava para que como jovem leitora de seus trabalhos não absorvesse passivamente a visão do mundo apresentada mas existem muitos outros pontos de vista a partir dos quais abordo sua obra e que me permitem perceber o valor dela permitem que essa obra toque o próprio âmago do meu ser Conversando com feministas da academia geralmente mulheres brancas que sentem que devem ou desconsiderar ou desvalorizar a obra de Freire por causa do sexismo vejo claramente que nossas diferentes reações são determinadas pelo ponto de vista a partir do qual encaramos a obra Encontrei Freire quando estava sedenta morrendo de sede com aquela sede aquela carência do sujeito colonizado marginalizado que ainda não tem certeza de como se libertar da prisão do status quo e encontrei na obra dele e na Malcolm X de Fanon etc um jeito de matar essa sede Encontrar uma obra que promove a nossa libertação é uma dádiva tão poderosa que se a dádiva tem uma falha isso não importa muito Imagine a obra como água que contém um pouco de terra Como estamos com sede o orgulho não vai nos impedir de separar a terra e ser nutridos pela água Para mim essa experiência é muito semelhante ao jeito com que os indivíduos privilegiados encaram o uso da água no contexto do Primeiro Mundo Quando você é privilegiado e vive num dos países mais ricos do mundo pode desperdiçar recursos E pode especialmente justificar o fato de jogar fora algo que considera impuro Veja o que a maioria das pessoas faz com a água neste país Muita gente compra água mineral porque considera a água de torneira impura e é claro que essa compra é um luxo Mesmo a nossa capacidade de considerar impura a água que sai da torneira é informada por uma perspectiva imperialista de con sumo É uma expressão de luxo e não simplesmente uma reação à condição da água Se encararmos o consumo de água de torneira a partir de uma perspectiva global vamos ter de falar sobre ele de outra maneira Vamos ter de levar em conta o que a grande maioria das pessoas do mundo têm de fazer para obter água quando estão com sede A obra do Paulo foi uma água viva para mim GW Em que medida você acha que sua experiência de ser afroamericana possibilitou que você se sintonizasse com a obra de Freire bh Como eu já dei a entender fui criada numa área rural do Sul agrário entre negros que trabalhavam a terra e me senti intimamente ligada à discussão da vida dos agricultores na obra de Freire e sua relação com a alfabetização Sabe não existem livros de história que realmente contem como era difícil a política da vida cotidiana para os negros no Sul segregacionista quando tantas pessoas não sabiam ler e frequentemente dependiam de gente racista para explicar ler e escrever E eu fiz parte de uma geração que aprendia essas habilidades que tinha um acesso à educação que ainda era novo A ênfase na educação como necessária para a libertação que os negros afirmavam na época da escravidão e depois durante a reconstrução informava nossa vida E por isso a ênfase de Freire na educação como prática da liberdade fez sentido imediatamente para mim Consciente desde a infância da necessidade da alfabetização levei comigo para a universidade a lembrança de ler para as pessoas de escrever para as pessoas Levei comigo as lembranças de professoras negras no sistema escolar segregado que tinham sido pedagogas críticas e tinham nos proporcionado paradigmas libertadores Foi essa experiência precoce de uma educação libertadora na Booker T Washington e na Crispus Attucks as escolas negras dos meus anos de formação que me deixou perpetuamente insatisfeita com a educação que recebi em ambientes predominantemente brancos E foram educadores como Freire que afirmaram que as dificuldades que eu tinha com o sistema de educação bancária com uma educação que nada tinha a ver com minha realidade social eram uma crítica importante Voltando à discussão do feminismo e do sexismo quero dizer que me senti incluída em Pedagogia do oprimido um dos primeiros livros de Freire que li muito mais do que me senti incluída em minha experiência de pessoa negra de origem rural nos primeiros livros feministas que li obras como The Feminine Mystique e Born Female Nos Estados Unidos não conversamos o suficiente sobre o modo com que a classe social molda nossa perspectiva da realidade Visto que tantos dos primeiros livros feministas refletiam um certo tipo de sensibilidade burguesa branca essas obras não tocaram profundamente muitas mulheres negras não porque não reconhecêssemos as experiências que todas as mulheres partilham mas porque esses pontos em comum eram mediados por diferenças profundas em nossas realidades criadas pelas políticas de raça e classe social GW Você pode falar da relação entre a obra de Freire e o desenvolvimento de sua obra de teoria feminista e crítica social bh Ao contrário das pensadoras feministas que fazem uma separação nítida entre o trabalho da pedagogia feminista e a obra e o pensamento de Paulo Freire para mim essas duas experiências convergem Profundamente comprometida com a pedagogia feminista peguei fios das obras de Paulo e tecios naquela versão de pedagogia feminista que acredito estar incorporada no meu trabalho de escritora e professora Quero afirmar mais uma vez que foi a interseção do pensamento de Paulo com a pedagogia vivida dos muitos professores negros da minha meninice mulheres em sua maioria que se viam cumprindo a missão libertadora de nos educar de maneira a nos preparar para resistir eficazmente ao racismo e à supremacia branca que teve profundo impacto sobre o meu pensamento a respeito da arte e da prática de ensinar Essas negras não defendiam abertamente o feminismo se é que conheciam a palavra mas o próprio fato de insistirem na excelência acadêmica e no pensamento crítico e aberto para as negras jovens era uma prática antissexista GW Fale de modo mais específico acerca dos trabalhos que você fez influenciados por Freire bh Quero dizer que escrevi Aint I a Woman Black Women and Feminism quando era estudante de graduação embora só tenha sido publicado muito depois O livro era a manifestação concreta da minha luta com a questão de deixar de ser objeto e passar a ser sujeito a própria questão que Paulo tinha proposto E agora que muitas estudiosas feministas se não a maioria estão dispostas a reconhecer o impacto da raça e da classe social como fatores que moldam a identidade feminina é fácil esquecer que no começo o movimento feminista não era um ambiente que acolhia bem a luta radical das mulheres negras para teorizar sobre sua subjetividade A obra de Freire e de muitos outros professores afirmava meu direito como sujeito de resistência de definir minha realidade Os escritos dele me proporcionaram um meio para situar a política do racismo nos Estados Unidos dentro de um contexto global onde eu via meu destino ligado ao dos negros que lutavam em toda parte para descolonizar transformar a sociedade Mais que na obra de muitas pensadoras feministas burguesas brancas na obra de Paulo havia o reconhecimento da subjetividade dos menos privilegiados dos que têm de carregar a maior parte do peso das forças opressoras exceto pelo fato de ele nem sempre reconhecer as realidades da opressão e da exploração distinguidas segundo os sexos Esse ponto de vista confirmava meu desejo de trabalhar a partir de uma compreensão vivida das vidas das mulheres negras pobres Só nos anos recentes apareceu nos Estados Unidos uma vertente de trabalho acadêmico que não vê a vida dos negros através de lentes burguesas um trabalho acadêmico fundamentalmente radical que afirma que a experiência dos negros das negras pode com efeito nos dizer mais sobre a experiência das mulheres em geral que uma análise que enfoca primeiro sobretudo e sempre as mulheres que moram em locais privilegiados Uma das razões pelas quais o livro Cartas à GuinéBissau registros de uma experiência em processo de Paulo foi importante para meu trabalho é que se trata de um exemplo crucial de como um pensador crítico privilegiado aborda a partilha de conhecimento e recursos com os necessitados É o Paulo num de seus momentos de sabedoria Ele escreve A ajuda autêntica não é demais insistir é aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar Somente numa tal prática em que os que ajudam e os que são ajudados se ajudam simultaneamente é que o ato de ajudar não se distorce em dominação do que ajuda sobre quem é ajudado Na sociedade americana onde o intelectual e especificamente o intelectual negro muitas vezes assimilou e traiu conceitos revolucionários pelo interesse de manter o poder da classe social é necessário e crucial que os intelectuais negros insurgentes tenham uma ética de luta que informe seu relacionamento com aqueles negros que não tiveram acesso aos modos de saber partilhados nas situações de privilégio GW Comente por favor sobre a disposição de Freire a aceitar críticas especialmente de pensadoras feministas ro Mundo e dar uma palestra pública Eu não tinha ouvido sequer um rumor de que ele estava vindo embora muita gente soubesse o quanto o trabalho dele significava para mim Então acabei descobrindo que ele vinha mas me disseram que todas as vagas para o seminário já estavam preenchidas Protestei No diálogo que se seguiu me disseram que eu não havia sido convidada para os encontros por medo de que levantando críticas feministas eu atrapalhasse a discussão de questões mais importantes Embora me tenham deixado participar quando alguém desistiu no último minuto meu peito já estava pesado com essa tentativa sexista de controlar minha voz de controlar o encontro E isso é claro criou uma guerra dentro de mim pois eu de fato queria interrogar Paulo Freire pessoalmente sobre o sexismo em sua obra Então com cortesia eu tomei a iniciativa na reunião No mesmo instante em que certas pessoas falaram contra o fato de eu levantar essas questões e desvalorizaram sua importância Paulo interveio para dizer que essas questões eram cruciais e as respondeu Nesse momento eu realmente tive amor por ele porque ele exemplificou com atos os princípios de sua obra Se ele tivesse tentado silenciar ou desvalorizar uma crítica feminista muitas coisas teriam mudado para mim E não era suficiente para mim que ele reconhecesse seu sexismo Eu queria saber por que ele não tinha mudado esse aspecto de sua obra anterior por que não tinha reagido a ele em seus escritos Então ele falou que se esforçaria mais para falar e escrever publicamente sobre essas questões fato que ficou claro em sua obra posterior GW Você foi mais afetada pela presença dele que pela obra dele bh Outro grande professor meu embora não tenhamos nos encontrado pessoalmente é o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh E ele diz em The Raft Is Not the Shore que os grandes seres humanos trazem consigo uma espécie de atmosfera santa e quando os procuramos sentimos paz sentimos amor e sentimos coragem Suas palavras definem adequadamente como foi para mim estar na presença do Paulo Passei horas sozinha com ele conversando ouvindo música tomando sorvete na minha lanchonete favorita A sério Thich Nhat Hanh ensina que uma certa atmosfera nasce ao mesmo tempo que um grande mestre E ele diz Quando você o mestre o professor vem e fica uma hora conosco traz consigo essa atmosfera É como se trouxesse uma vela para dentro da sala A vela está ali você traz consigo uma espécie de zona de luz Quando um sábio está lá e você se senta perto dele sente luz e sente paz A lição que aprendi vendo Paulo incorporar na prática aquilo que descreve na teoria foi profunda Entrou em mim me tocou de um jeito que nenhum escrito poderia tocar e me deu coragem Não tem sido fácil para mim fazer o trabalho que faço e me situar na academia ultimamente sinto que se tornou quase impossível mas a gente se inspira a perseverar vendo o exemplo dos outros A presença de Freire me inspirou Não que eu não visse um comportamento sexista da parte dele mas essas contradições são abraçadas como parte do processo de aprendizado parte daquilo que a pessoa luta para mudar e essa luta muitas vezes leva tempo GW Você tem mais alguma coisa a dizer sobre a resposta de Freire à crítica feminista bh Acho importante e significativo que apesar das críticas feministas à sua obra frequentemente ásperas Paulo reconheça que tem um papel a desempenhar nos movimentos feministas Ele declara isso em Por uma pedagogia da pergunta Se as mulheres forem críticas terão que aceitar nossa contribuição como homens assim como os trabalhadores têm que aceitar nossa contribuição como intelectuais porque é um dever e um direito que eu tenho de participar da transformação da sociedade Assim se as mulheres devem ter a principal responsabilidade em sua luta elas têm de saber que essa luta também é nossa isto é daqueles homens que não aceitam a posição machista no mundo O mesmo se dá com o racismo Enquanto homem branco aparentemente porque sempre digo que não tenho muita certeza da minha branquidão a questão é saber se eu estou realmente contra o racismo de forma radical Se estou então tenho o dever e o direito de lutar com o povo negro contra o racismo Paulo Freire 81 GW Freire continua influenciando a sua obra Em seus últimos trabalhos você não o menciona com tanta constância quanto nos primeiros livros bh Embora eu talvez não cite Freire com tanta frequência ele ainda me ensina Quando li Por uma pedagogia da pergunta bem numa época em que tinha começado a fazer reflexões críticas sobre o povo negro e o exílio havia ali tantas coisas sobre a experiência do exílio que me ajudaram E o livro me empolgou Tinha a qualidade daquele diálogo que é um verdadeiro gesto de amor de que Paulo falai em outras obras Assim foi lendo esse livro que decidi que seria útil fazer um trabalho dialógico com o filósofo Cornel West Fizemos o que Paulo chama de um livrodiálogo Breaking Bread É claro que meu grande desejo é fazer um livro desses com o Paulo Além disso já faz algum tempo que venho trabalhando nuns ensaios sobre a morte e o morrer particularmente os modos afroamericanos de morrer Então por uma incrível coincidência estava procurando uma epígrafe para esse trabalho e encontrei estas passagens belíssimas de Paulo que refletem com tamanha intimidade a minha visão de mundo que foi como se para usar uma velha frase do Sul dos Estados Unidos minha língua estivesse na boca do meu amigo Ele escreve Gosto de viver de viver minha vida intensamente Sou o tipo de pessoa que ama apaixonadamente a vida É claro que um dia vou morrer mas tenho a impressão de que quando morrer também vou morrer intensamente Vou morrer experimentando intensamente comigo mesmo Por isso vou morrer com um anseio imenso pela vida pois é assim que tenho vivido GW Isso Ouço você falando essas mesmas palavras Algum último comentário bh Somente que as palavras parecem não ser boas o suficiente para evocar tudo o que aprendi com Paulo Nosso encontro teve aquela qualidade de doçura que continua que perdura por toda a vida mesmo que você nunca mais fale com a pessoa nunca mais lhe veja o rosto sempre pode voltar em seu coração àquele momento em que vocês estiveram juntos e ser renovada é uma solidariedade profunda 5 A teoria como prática libertadora Cheguei à teoria porque estava machucada a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo Cheguei à teoria desesperada querendo compreender apreender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim Mais importante queria fazer a dor ir embora Vi na teoria na época um local de cura Cheguei à teoria jovem quando ainda era criança Em The Significance of Theory Terry Eagleton diz As crianças são os melhores teóricos pois não receberam a educação que nos leva a aceitar nossas práticas sociais rotineiras como naturais e por isso insistem em fazer as perguntas mais constrangedoramente gerais e universais encarandoas com um maravilhamento que nós adultos há muito esquecemos Uma vez que ainda não entendem nossas práticas sociais como inevitáveis não veem por que não poderíamos fazer as coisas de outra maneira Sempre que na infância eu tentava levar as pessoas ao meu redor a fazer as coisas de outra maneira a olhar o mundo de outra forma usando a teoria como intervenção como meio de desafiar o status quo eu era castigada Lem brome de ainda muito nova tentar explicar à Mamãe por que me parecia altamente injusto que o Papai esse homem que quase não falava comigo tivesse o direito de me disciplinar de me castigar fisicamente com cintadas A resposta dela foi dizer que eu estava perdendo o juízo e precisava ser castigada com mais frequência Imagine por favor esse jovem casal negro que batalhava antes de tudo para realizar a norma patriarcal de a mulher ficar em casa tomando conta do lar e dos filhos enquanto o homem trabalhava fora embora esse arranjo significasse que economicamente eles sempre viveriam com menos Tente imaginar como era a vida para eles cada qual trabalhando duro o dia inteiro lutando para sustentar os sete filhos e tendo de lidar com essa criança incansável que com um brilho no olhar questionava ousava desafiar a autoridade masculina se rebelava contra a própria norma patriarcal que eles tanto tentavam institucionalizar Eles deviam ter a impressão de que um monstro havia aparecido entre eles na forma e no corpo de uma criança uma figurinha demoníaca que ameaçava subverter e minar tudo o que eles buscavam construir Não admira então que a reação deles fosse a de reprimir conter punir Não admira que a Mamãe volta e meia me dissesse irritada e frustrada Não sei de onde você veio mas bem que eu gostaria de mandála de volta para lá Imagine também por favor minha dor de infância Eu não me sentia realmente ligada a essa gente estranha a esses familiares que não só não conseguiam entender minha visão de mundo como também sequer queriam ouvir falar dela Na infância eu não sabia de onde tinha vindo E existe brecha entre a teoria e a prática Com efeito o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas um processo que em última análise é recíproco onde uma capacita a outra A teoria não é intrinsecamente curativa libertadora e revolucionária Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e dirigimos nossa teorização para esse fim Quando era criança é certo que eu não chamava de teorização os processos de pensamento e crítica em que me envolvia Mas como afirmei em Feminist Theory From Margin to Center a posse de um termo não dá existência a um processo ou prática do mesmo modo uma pessoa pode praticar a teorização sem jamais conhecerpossuir o termo assim como podemos viver e atuar na resistência feminista sem jamais usar a palavra feminismo Muitas vezes as pessoas que empregam livremente certos termos como teoria ou feminismo não são necessariamente praticantes cujos hábitos de ser e de viver incorporam a ação a prática de teorizar ou se engajar na luta feminista Com efeito o ato privilegiado de nomear muitas vezes abre aos poderosos o acesso a modos de comunicação e os habilita a projetar uma interpretação uma definição uma descrição de seu trabalho e de seus atos que pode não ser exata pode esconder o que realmente está acontecendo O ensaio Producing Sex Theory and Culture GayStraight ReMappings in Contemporary Feminism em Conflicts in Feminism de Katie King faz uma discussão muito útil do modo pelo qual a produção acadêmica de teoria feminista formulada num ambiente hierárquico muitas vezes habilita certas mulheres de alto status e visibilidade particularmente as brancas a se apoiar nos trabalhos de pensadoras feministas que podem ter menos status ou status nenhum menos visibilidade ou visibilidade nenhuma sem reconhecer as fontes King discute o modo pelo qual os trabalhos são confiscados e o modo com que as leitoras frequentemente atribuem certas ideias a uma acadêmicapensadora feminista bem conhecida mesmo que essa pessoa tenha citado em sua obra que está construindo em cima de ideias obtidas em fontes menos conhecidas Enfocando particularmente a obra da teórica Chela Sandoval de origem mexicana King afirma Os trabalhos de Sandoval só foram publicados esporádica e excentricamente mas seus manuscritos não publicados em circulação são muito mais citados e frequentemente roubados embora seu raio de influência raras vezes seja compreendido Embora King corra o risco de se pôr no papel de babá quando assume retoricamente a postura de autoridade de feminista determinando o raio e a amplitude da influência de Sandoval o ponto crítico que ela pretende enfatizar é que a produção da teoria feminista é um fenômeno complexo que raras vezes é tão individual quanto parece e geralmente nasce de um envolvimento com fontes coletivas Ecoando teóricas feministas especialmente mulheres de cor que trabalharam com perseverança para resistir à construção de fronteiras críticas restritivas dentro do pensamento feminista King nos encoraja a ter um ponto de vista expansivo sobre o processo de teorização A reflexão crítica sobre a produção contemporânea da teoria feminista mostra com clareza que o distanciamento em relação às primeiras conceituações da teoria feminista que insistiam em que ela era mais eficaz quando estimulava e capacitava a prática feminista começa a ocorrer ou pelo menos se torna mais óbvio com a segregação e a institucionalização do processo de teorização feminista na academia com a atribuição de privilégio ao pensamentoteoria feminista escrito em detrimento das narrativas orais Concomitantemente os esforços das mulheres negras e de cor para desafiar e desconstruir a categoria mulher a insistência em reconhecer que o sexo não é o único fator que determina as construções de feminilidade foram uma intervenção crítica que produziu uma revolução profunda no pensamento feminista e realmente questionou e perturbou a teoria feminista hegemônica produzida principalmente por acadêmicas brancas em sua maioria No rastro dessa perturbação o ataque à supremacia branca manifestada na aliança entre as acadêmicas brancas e seus colegas brancos parece terse formado e crescido em torno de esforços comuns para formular e impor padrões de avaliação crítica que fossem usados para definir o que é teoria e o que não é Esses padrões frequentemente produziram o confisco eou a desvalorização dos trabalhos que não se encaixavam que de repente foram considerados não teóricos ou não suficientemente teóricos Em alguns ambientes parece haver uma ligação direta entre o fato de as acadêmicas feministas brancas acolherem obras e teorias críticas de homens brancos e o fato de deixarem de respeitar e valorizar plenamente as ideias críticas e as propostas teóricas de mulheres negras ou de cor Os trabalhos de mulheres de cor e de grupos marginalizados de mulheres brancas lésbicas e radicais sexuais por exemplo especialmente quando escritos num estilo que os torna acessíveis a um público leitor amplo são frequentemente deslegitimizados nos círculos acadêmicos mesmo que esses trabalhos possibilitem e promovam a prática feminista Embora sejam frequentemente roubados pelos próprios indivíduos que estabelecem os padrões críticos restritivos são esses trabalhos que esses indivíduos mais afirmam não serem teóricos Claramente um dos usos que esses indivíduos fazem da teoria é instrumental Usamna para criar hierarquias de pensamento desnecessárias e concorrentes que endossam as políticas de dominação na medida em que designam certas obras como inferiores ou superiores mais dignas de atenção ou menos King sublinha que a teoria encontra usos diferentes em lugares diferentes É evidente que um dos muitos usos da teoria no ambiente acadêmico é a produção de uma hierarquia de classes intelectuais onde as únicas obras consideradas realmente teóricas são as altamente abstratas escritas em jargão difíceis de ler e com referências obscuras Em A Conversation about Race and Class de Childers e hooks também publicada em Conflicts in Feminism a crítica literária Mary Childers declara ser altamente paradoxal que um certo tipo de desempenho teórico que só pode ser entendido por um círculo mínimo de pessoas tenha passado a ser visto como representativo de toda a produção crítica passível de ser reconhecida como teoria nos círculos acadêmicos É especialmente paradoxal que isso aconteça com a teoria feminista E é fácil imaginar lugares diferentes espaços fora da troca acadêmica onde uma teoria desse tipo seria considerada não somente inútil como também reacionária do ponto de vista político uma espécie de prática narcisista e autocomplacente que em geral procura criar uma brecha entre a teoria e a prática para perpetuar o elitismo de classe Existem tantos contextos neste país em que a palavra escrita tem um significado visual mínimo onde pessoas que não sabem ler nem escrever não encontram utilidade para nenhuma teoria publicada seja ela lúcida ou opaca Por isso nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa conversa cotidiana pode ser usada para educar o público Imagine a mudança que aconteceu dentro dos movimentos feministas quando as estudantes mulheres em sua maioria entraram nas aulas de Estudos da Mulher e leram o que lhes diziam ser teoria feminista mas descobriram que aquilo que liam não tinha sentido não podia ser entendido ou quando era entendido não tinha ligação nenhuma com as realidades vividas fora da sala de aula Como ativistas feministas podemos nos perguntar para que serve uma teoria feminista que agride as psique frágéis de mulheres que lutam para sacudir o jugo opressivo do patriarcado Podemos nos perguntar para que serve uma teoria feminista que literalmente as espanca as expulsa trôpegas e de olhos vidrados do contexto da sala de aula sentindose humilhadas sentindose como se estivessem de pé numa sala ou num quarto em algum lugar nuas na presença de alguém que as seduziu ou vai seduzilas alguém que as sujeita a um processo de interação humilhante que as despoja do sentído do seu valor Evidentemente uma teoria feminista que faz isso pode funcionar para legitimar os Estudos da Mulher e os Estudos Feministas aos olhos do patriarcado dominante mas solapa e subverte os movimentos feministas Talvez seja a existência dessa teoria feminista mais altamente visível que nos compele a falar do abismo entre a teoria e a prática Pois o objetivo dessa teoria é de fato o de dividir separar excluir manter à distância E uma vez que essa teoria continua sendo usada para silenciar censurar e desvalorizar várias vozes teóricas feministas não podemos simplesmente ignorála Por outro lado apesar de ser utilizada como instrumento de dominação ela também pode conter importantes ideias pensamentos e visões que se fossem usados de modo diferente poderiam ter uma função de cura e libertação Entretanto não podemos ignorar os perigos que ela representa para a luta feminista que deve ter suas raízes numa teoria que informe molde e possibilite a prática feminista Dentro dos círculos feministas muitas mulheres reagindo à teoria feminista hegemônica que não fala claramente conosco passaram a atacar toda teoria e em consequência a promover ainda mais a falsa dicotomia entre teoria e prática Assim entram em conluio com aquelas a quem se opõem Interiorizando o falso pressuposto de que a teoria não é uma prática social elas promovem dentro dos círculos feministas a formação de uma hierarquia potencialmente opressora onde toda ação concreta é vista como mais importante que qualquer teoria escrita ou falada Recentemente fui a uma reunião onde estavam presentes principalmente mulheres negras Aí discutimos se os líderes negros homens como Martin Luther King e Malcolm X devem ou não ser sujeitos a críticas feministas que questionem vigorosamente a posição deles diante dos assuntos de gênero A discussão toda durou menos de duas horas Quando estava terminando uma negra que estivera em silêncio disse que não estava interessada em toda aquela teoria e retórica toda aquela falação que estava mais interessada na ação em fazer algo e estava simplesmente cansada da falação A reação dessa mulher me perturbou é uma reação que conheço muito bem Talvez na vida cotidiana essa pessoa habite um mundo diferente do meu No mundo em que vivo meu dia a dia há poucas ocasiões em que pensadoras negras ou de cor se juntam para debater com rigor questões de raça gênero classe social e sexualidade Por isso eu não sabia qual era o ponto de partida dela quando disse que a discussão que estávamos tendo era comum comum a ponto de ser algo que poderíamos dispensar ou de que não precisávamos Senti que estávamos engajadas num processo de diálogo crítico e de teorização que há muito tempo era tabu Logo do meu ponto de vista nós estávamos mapeando novas jornadas tomando posse como mulheres negras de um território intelectual onde poderíamos começar a construção coletiva da teoria feminista Em muitos contextos negros assisti à rejeição dos intelectuais ao rebaixamento da teoria e fiquei calada Acabei percebendo que o silêncio é um ato de cumplicidade que ajuda a perpetuar a ideia de que podemos nos engajar na libertação negra revolucionária e na luta feminista sem a teoria Como muitos intelectuais negros insurgentes cujo trabalho intelectual e cujo ensino se dão num contexto predominantemente branco gosto muito de me engajar com um grupo coletivo de gente negra Por isso quando estou ali não quero agitar o ambiente nem me separar do grupo por discordar dele Nesses contextos quando o trabalho dos intelectuais é desvalorizado no passado eu quase nunca contestava os pressupostos prevalecentes nem falava afirmativamente ou entusiasmada sobre o processo intelectual Tinha medo de que se assumisse uma posição que insistia no valor do trabalho intelectual da teoria em particular ou se simplesmente afirmasse que pensava ser importante ler muito eu corresse o risco de ser vista como pretensiosa ou mandona Muitas vezes fiquei em silêncio Esses riscos ao ego hoje parecem banais quando comparados às crises que enfrentamos como afroamericanos com nossa necessidade premente de reavivar e manter acesa a chama da luta pela libertação negra Na reunião que mencionei tive coragem de falar Respondendo à afirmativa de que estávamos perdendo nosso tempo falando eu disse que via nossas palavras como uma ação que nosso esforço coletivo de discutir questões de gênero e negritude sem censura era uma prática subversiva Muitas questões que continuamos confrontando como negros baixa autoestima intensificação do niilismo e do desespero raiva e violência reprimidas que destroem nosso bemestar físico e psicológico não podem ser resolvidas por estratégias de sobrevivência que deram certo no passado Insisti em que precisávamos de novas teorias arraigadas na tentativa de compreender tanto a natureza da nossa situação atual quanto os meios pelos quais podemos nos engajar coletivamente numa resistência capaz de transformar nossa realidade Entretanto não fui tão rigorosa e insistente quanto seria num ambiente diferente no meu esforço para enfati zar a importância do trabalho intelectual da produção teórica como uma prática social que pode ser libertadora Embora não estivesse com medo de falar não queria ser vista como a estragaprazeres que desfaz a doce sensação coletiva de solidariedade na negritude Esse medo me lembrou de como era mais de dez anos atrás estar nos contextos feministas e fazer perguntas sobre a teoria e a prática particularmente sobre questões de raça e racismo que eram consideradas capazes de romper a irmandade e a solidariedade femininas Parecia paradoxal que numa reunião convocada para honrar Martin Luther King que tantas vezes tivera coragem de falar e agir resistindo ao status quo algumas mulheres negras ainda negassem nosso direito de nos engajar em diálogos e debates políticos de oposição especialmente diante do fato de que essa ocorrência não é habitual nas comunidades negras Por que aquelas mulheres negras sentiam a necessidade de policiar umas às outras de negar às outras um espaço dentro da negritude onde pudéssemos falar de teoria sem sentir vergonha Por que quando tínhamos a oportunidade de celebrar juntas o poder de um pensador crítico negro que teve coragem de se pôr à parte por que essa ansiedade de reprimir qualquer ponto de vista que desse a entender que podíamos aprender coletivamente com as ideias e visões de intelectuaisteóricas negras insurgentes que pela própria natureza do trabalho que fazem estão necessariamente rompendo o estereótipo que nos faria crer que a verdadeira mulher negra é sempre aquela que fala visceralmente que prefere o concreto ao abstrato o material ao teórico A teoria como prática libertadora Infinitas vezes os esforços das mulheres negras para falar quebrar o silêncio e engajarse em debates políticos progressistas radicais enfrentam oposição Há um elo entre a imposição de silêncio que experimentamos a censura e o antiintelectualismo em contextos predominantemente negros que deveriam ser um lugar de apoio como um espaço onde só há mulheres negras e aquela imposição de silêncio que ocorre em instituições onde se diz às mulheres negras e de cor que elas não podem ser plenamente ouvidas ou escutadas porque seus trabalhos não são suficientemente teóricos Em Travelling Theory Cultural Politics of Race and Representation o crítico cultural Kobena Mercer nos lembra que a negritude é complexa e multifacetada e que os negros podem ser inseridos numa política reacionária e antidemocrática Assim como alguns acadêmicos de elite cujas teorias da negritude a transformam num território crítico onde só uns poucos escolhidos podem entrar acadêmicos que usam os trabalhos teóricos sobre a raça como meio para afirmar sua autoridade sobre a experiência dos negros negando o acesso democrático ao processo de construção teórica ameaçam a luta pela libertação coletiva dos negros aqueles entre nós que promovem o antiintelectualismo declarando que toda teoria é inútil fazem a mesma coisa Reforçando a ideia de uma cisão entre a teoria e a prática ou criando essa cisão ambos os grupos negam o poder da educação libertadora para a consciência crítica perpetuando assim condições que reforçam nossa exploração e repressão coletivas Há pouco tempo fui lembrada desse perigoso antiintelectualismo quando concordei em participar de um pro grama de rádio com um grupo de negras e negros para discutir The Blackmans Guide to Understanding the Blackwoman de Shahrazad Ali Todos os que falaram um após o outro expressaram desprezo pelo trabalho intelectual e se colocaram contra todo apelo em favor da produção teórica Uma negra insistiu veementemente em que não precisamos de teoria nenhuma O livro de Ali embora escrito em linguagem simples num estilo que faz um uso interessante do vernáculo dos negros tem uma base teórica Está radicado em teorias do patriarcado a crença essencialista e sexista de que a dominação do sexo feminino pelo masculino é natural por exemplo teorias de que a misoginia é a única reação possível dos homens negros diante de qualquer tentativa de plena autoatualização feminina Muitos nacionalistas negros abraçam com avidez a teoria e o pensamento críticos como armas necessárias na luta contra a supremacia branca mas de repente perdem a noção de que a teoria é importante quando o assunto é gênero é a análise do sexismo e da opressão sexista nos modos particulares e específicos com que ele se manifesta na experiência dos negros A discussão do livro de Ali é um dos muitos exemplos possíveis que ilustram o modo pelo qual o desprezo e a desconsideração pela teoria solapam a luta coletiva de resistência à opressão e à exploração Dentro dos movimentos feministas revolucionários dentro das lutas revolucionárias pela libertação dos negros temos de reivindicar continuamente a teoria como uma prática necessária dentro de uma estrutura holística de ativismo libertador Não basta chamar a atenção para os modos pelos quais a teoria é mal usada Não basta criticar o uso conservador e às vezes reacionário que algumas acadêmicas fazem da teoria feminista Temos de trabalhar ativamente para chamar a atenção para a importância de criar uma teoria capaz de promover movimentos feministas renovados destacando especialmente aquelas teorias que procuram intensificar a oposição do feminismo ao sexismo e à opressão sexista Fazendo isso nós necessariamente celebramos e valorizamos teorias que podem ser e são partilhadas não só na forma escrita mas também na forma oral Refletindo sobre meus próprios trabalhos de teoria feminista percebo que o texto escrito a conversa teórica é mais significativo quando convida as leitoras a se engajar na reflexão crítica e na prática do feminismo Para mim essa teoria nasce do concreto de meus esforços para entender as experiências da vida cotidiana de meus esforços para intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas Isso para mim é o que torna possível a transformação feminista Se o testemunho pessoal a experiência pessoal é um terreno tão fértil para a produção de uma teoria feminista libertadora é porque geralmente constitui a base da nossa teorização Enquanto trabalhamos para resolver as questões mais prementes da nossa vida cotidiana nossa necessidade de alfabetização o fim da violência contra mulheres e crianças a saúde da mulher seus direitos reprodutivos e a liberdade sexual para citar algumas nos engajamos num processo crítico de teorização que nos capacita e fortalece Continuo espantada com o fato de haver tanta produção de textos feministas mas de somente uma parte muito pequena da teoria feminista procurar falar com mulheres homens e crianças a respeito de como podemos transformar nossa vida mediante uma conversão à prática feminista Onde encontrar um corpo teórico feminista cujo objetivo seja ajudar os indivíduos a integrar o pensamento e a prática feministas em sua vida cotidiana Que teoria feminista por exemplo tem o objetivo de auxiliar os esforços das mulheres que vivem em lares sexistas para produzir uma mudança feminista Sabemos que nos Estados Unidos muitos indivíduos usaram o pensamento feminista para educarse de um modo que lhes permitiu transformar sua vida Costumo criticar o feminismo baseado num estilo de vida determinado pois temo que qualquer processo de transformação feminista que busque mudar a sociedade seja facilmente cooptado se não estiver radicado num compromisso político com um movimento feminista de massas No patriarcado capitalista da supremacia branca já assistimos à mercantilização do pensamento feminista assim como assistimos à mercantilização da negritude de um jeito tal que dá a impressão de que alguém pode participar do bem que esses movimentos produzem sem ter de se comprometer com uma política e uma prática transformadoras Nesta cultura capitalista o feminismo e a teoria feminista rapidamente se transformam numa mercadoria que só os privilegiados podem comprar Esse processo de mercantilização é perturbado e subvertido quando na qualidade de ativistas feministas afirmamos nosso compromisso com um movimento feminista politizado e revolucionário que tem como objetivo central a transformação da sociedade Desse ponto de partida automaticamente pensamos em criar uma teoria que fale com o público o mais amplo possível Já sendo lida estudada e comentada num ambiente de penitenciária Uma vez que o ambiente que mais me fez comentários críticos sobre o estudo da minha obra é geralmente acadêmico partilho esse fato com vocês não para me vangloriar nem por falta de modéstia mas para testemunhar para que vocês saibam a partir da minha experiência pessoal que toda a nossa teoria feminista que tem o objetivo de transformar a consciência que realmente quer falar com um público diversificado funciona não é uma fantasia ingênua Em palestras mais recentes falei de como me sinto abençoada pelo fato de minha obra ser afirmada desse modo por estar entre as teóricas feministas cujo trabalho cruza as falsas fronteiras e atua como catalisador da mudanca social No começo houve muitas vezes em que minha obra foi sujeita a formas de rejeição e desvalorização que criaram um desespero profundo dentro de mim Acho que esse desespero foi sentido por toda teóricapensadora negra ou de cor cuja obra é de oposição e nada contra a corrente Michele Wallace por exemplo escreveu de modo emocionante na introdução à reedição de Black Macho and the Myth of the Superwoman que ficou arrasada e por algum tempo foi silenciada pelas reações críticas negativas a seus primeiros trabalhos Sou grata por estar aqui e testemunhar que se nos ativermos à crença de que o pensamento feminista deve ser partilhado com todos quer por meio da fala quer da escrita e criarmos teorias tendo em mente esse programa poderemos promover um movimento feminista do qual as pessoas vão querer ansiar por participar Partilho o A teoria como prática libertadora escrevi em outros textos e disse em inúmeras palestras e conversas que minhas decisões sobre o estilo de redação o fato de eu não usar os formatos acadêmicos convencionais são decisões políticas motivadas pelo desejo de incluir de alcançar tantos leitores quanto possível no maior número possível de situações Essa decisão teve consequências positivas e negativas Os estudantes de várias instituições acadêmicas reclamam que não podem incluir minhas obras como leituras obrigatórias para os exames de conclusão de curso porque seus professores não as consideram suficientemente eruditas Todos nós que criamos teorias e escritos feministas num ambiente acadêmico onde somos continuamente avaliadas sabemos que os textos considerados não eruditos e não teóricos podem nos impedir de receber o reconhecimento e a consideração que merecemos Mas na minha vida essas reações negativas parecem insignificantes em comparação com as reações maciçamente positivas à minha obra tanto dentro quanto fora da academia Há pouco tempo recebi uma série de cartas de presidiários negros que leram meus livros e queriam me dizer que estão trabalhando para desaprender o sexismo Numa carta o escritor se gabou afetuosamente de ter transformado meu nome numa palavra que todos conhecem na penitenciária Esses homens falam de uma reflexão crítica solitária de usar essa obra feminista para compreender as implicações do patriarcado como força que molda sua identidade e sua ideia de masculinidade Depois de receber uma poderosa resposta crítica de um desses homens negros ao meu livro Yearning Race Gender and Cultural Politics fechei os olhos e tentei visualizar essa obra pensamento e a prática feministas onde quer que eu esteja Quando me pedem que eu fale num contexto universitário procuro outros contextos ou colaboro com os que me procuram para poder dar a qualquer pessoa as riquezas do pensamento feminista Às vezes os contextos surgem espontaneamente Num restaurante do Sul por exemplo cujos donos são negros me sentei durante horas com um grupo diversificado de negras e negros de várias classes sociais discutindo questões de raça gênero e classe Alguns tinham formação universitária outros não Tivemos uma discussão acalorada sobre o aborto debatendo se as negras devem ou não ter o direito de escolher Vários negros presentes afrocêntricos afirmavam que a escolha deve ser tanto do homem quanto da mulher Uma das negras feministas presentes diretora de uma clínica de saúde feminina falou de modo eloquente e convincente sobre o direito da mulher de escolher Durante essa discussão acalorada uma das negras presentes que havia ficado em silêncio por bastante tempo hesitando antes de entrar na conversa porque não sabia com certeza se seria capaz de comunicar a complexidade do seu pensamento no modo de falar dos negros de tal modo que nós os ouvintes a escutássemos e compreendêssemos e não zombássemos de suas palavras encontrou sua voz Quando eu estava indo embora essa irmã se aproximou me pegou firmemente pelas duas mãos e me agradeceu pela discussão Como prefácio a suas palavras de gratidão confidenciou que a conversa não só lhe permitiria dar voz a sentimentos e ideias que ela sempre guardara para si como também usando a voz ela conseguiria criar um espaço para que ela e o parceiro mudassem o pensamento e a ação Disse isso diretamente veementemente quando estávamos cara a cara Segurava minhas mãos e repetia Tinha uma dor tão grande dentro de mim Agradeceu porque nosso encontro nossa teorização sobre a raça o gênero e a sexualidade naquela tarde havia aliviado sua dor Testemunhou que sentiu a dor ir embora sentiu uma cura acontecendo dentro dela Segurando minhas mãos com o corpo colado ao meu olhos nos olhos ela me permitiu partilhar empaticamente o calor daquela cura Queria que eu testemunhasse ouvisse novamente tanto o nome da sua dor quanto o poder que surgiu quando sentiu a dor ir embora Não é fácil dar nome à nossa dor tornála lugar de teorização Patricia Williams no ensaio On Being the Object of Property em The Alchemy of Race and Rights escreve que até aqueles entre nós que são conscientes são obrigados a sentir a dor engendrada por todas as formas de dominação homofobia exploração de classe racismo sexismo imperialismo Há momentos na minha vida em que parece que perdi uma parte de mim Há dias em que me sinto tão invisível que não consigo lembrar em que dia da semana estamos em que me sinto tão manipulada que não consigo lembrar meu próprio nome em que me sinto tão perdida e com tanta raiva que não consigo dizer uma palavra bemeducada às pessoas que mais me amam É nesses momentos que vislumbro meu reflexo na vitrine de uma loja e me surpreendo ao ver uma pessoa inteira me olhando de lá Nesses momentos tenho de fechar os olhos e lembrar de mim mesma desenhar uma figura interna que seja inteira e bemacabada Não é fácil dar nome à nossa dor teorizar a partir desse lugar Sou grata às muitas mulheres e homens que ousam criar teoria a partir do lugar da dor e da luta que expõem corajosamente suas feridas para nos oferecer sua experiência como mestra e guia como meio para mapear novas jornadas teóricas O trabalho delas é libertador Além de nos permitir lembrar de nós mesmos e nos recuperar ele nos provoca e desafia a renovar nosso compromisso com uma luta feminista ativa e inclusiva Ainda temos de fazer uma revolução feminista no plano coletivo Sou grata porque como pensadorasteóricas feministas estamos coletivamente em busca de meios para fazer esse movimento acontecer Nossa busca nos leva de volta onde tudo começou àquele momento em que uma mulher ou uma criança que talvez se imaginasse completamente sozinha começou uma revolta feminista começou a dar nome à sua prática começou enfim a formular uma teoria a partir da experiência vivida Imaginemos que essa mulher ou criança estava sofrendo a dor do sexismo e da opressão sexista e queria que a dor fosse embora Sou grata por poder ser uma testemunha declarando que podemos criar uma teoria feminista uma prática feminista um movimento feminista revolucionário capaz de se dirigir diretamente à dor que está dentro das pessoas e oferecerlhes palavras de cura estratégias de cura uma teoria da cura Não há ninguém entre nós que não sentiu a dor do sexismo e da opressão sexista a angústia mada por um pensamento racista e sexista especificamente no que se refere à maneira com que as feministas percebem as mulheres negras e as mulheres de cor Esse problema dos estudos feministas que enfocam a raça e o gênero me chamou particularmente a atenção quando li Essentially Speaking Feminism Nature and Difference de Diana Fuss Intrigada pela discussão de Fuss a respeito dos debates atuais sobre o essencialismo e pelo modo com que ela problematiza a questão minha curiosidade intelectual despertou Em boa parte do livro ela faz uma análise brilhante permitindo que os críticos considerem as possibilidades positivas do essencialismo e ao mesmo tempo levantando pertinentes críticas às suas limitações Em meus textos sobre o assunto The Politics of Radical Black Subjectivity PostModern Blackness em Yearning embora não tenha enfocado tão especificamente o essencialismo quanto Fuss centrome em como as críticas do essencialismo conseguiram desconstruir proveitosamente a ideia de uma identidade e uma experiência negras monolíticas e homogêneas Também discuto como uma crítica totalizadora de subjetividade essência identidade pode parecer muito ameaçadora para os grupos marginalizados para quem a nomeação da própria identidade como parte da luta contra a dominação tem sido um gesto ativo de resistência política Essentially Speaking me forneceu uma estrutura crítica que aumentou minha compreensão do essencialismo mas quando cheguei na metade do livro de Fuss comecei a me sentir desanimada Esse desânimo começou quando li Race under Erasure Poststructuralist AfroAmerican Literary Theory que a dominação masculina pode criar na vida cotidiana a infelicidade e o sofrimento profundos e inesgotáveis Mari Matsuda nos disse que nos contam a mentira de que na guerra não existe dor e que o patriarcado torna essa dor possível Catharine MacKinnon nos lembra de que há certas coisas que sabemos na nossa vida e cujo conhecimento nós vivemos além de qualquer teoria que já tenha sido teorizada Fazer essa teoria é o nosso desafio Em sua produção jaz a esperança da nossa libertação em sua produção jaz a possibilidade de darmos nome a toda a nossa dor de fazer toda a nossa dor ir embora Se criarmos teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor não teremos dificuldade para construir uma luta feminista de resistência com base nas massas Não haverá brecha entre a teoria feminista e a prática feminista Nesse ensaio Fuss faz largas generalizações sobre a crítica literária afroamericana sem oferecer a menor pista sobre em qual corpo de trabalho se baseia para tirar suas conclusões Seus pronunciamentos sobre a obra de críticas feministas negras são particularmente perturbadores Fuss afirma Com a exceção dos trabalhos recentes de Hazel Carby e Hortense Spillers as críticas feministas negras têm relutado em renunciar às posições críticas essencialistas e às práticas literárias humanistas Curiosa para saber quais obras se encaixam nessa avaliação espanteime ao ver que Fuss só citava ensaios de Barbara Christian Joyce Joyce e Barbara Smith Embora essas pessoas façam críticas literárias válidas é certo que não representam o conjunto da crítica feminista negra particularmente da crítica literária Resumindo em poucos parágrafos suas perspectivas sobre a literatura feminista negra Fuss se concentra em Houston Baker e Henry Louis Gates críticos literários negros do sexo masculino citando uma porção significativa de seus escritos Parece que uma hierarquia de gênero racializada se estabelece nesse capítulo onde os escritos de homens negros sobre raça são considerados mais dignos de estudo aprofundado que a obra das críticas negras Quando ela rejeita e desvaloriza em uma frase o trabalho da maioria das críticas feministas negras questões problemáticas se levantam Visto que Fuss não quer examinar toda a amplitude do trabalho de crítica feminista feito por mulheres negras é difícil apreender os fundamentos intelectuais que servem de base para sua crítica Seus comentários sobre as críticas feministas negras parecem acréscimos a uma crítica que quando começou na verdade não incluía 6 Essencialismo e experiência As mulheres negras individuais engajadas no movimento feminista escrevendo teoria feminista persistiram em nossos esforços para desconstruir a categoria mulher e defenderam a ideia de que o gênero não é o único determinante da identidade feminina O sucesso desse esforço pode ser avaliado não somente pelo quanto as estudiosas feministas confrontaram questões de raça e racismo mas também pelos novos estudos que examinam o entrelaçamento de raça e gênero Muitas vezes se esquece que a esperança não era somente que as estudiosas e ativistas feministas enfocassem a raça e o gênero mas também que o fizessem de maneira a não endossar as hierarquias opressivas convencionais Em particular para a construção de um movimento feminista com base nas massas consideravase crucial que a teoria não fosse escrita de modo a eliminar e excluir ainda mais as mulheres negras e as mulheres de cor ou pior ainda a nos incluir em posições subordinadas Infelizmente boa parte dos estudos feministas frustra essas esperanças sobretudo porque os críticos não chegam a questionar o lugar desde onde levantam sua voz supondo como hoje é moda fazer que não há necessidade de questionar se a perspectiva a partir da qual escrevem é infor esses trabalhos em sua análise E na medida em que ela não explicita suas razões me pergunto por que precisou mencionar a obra das críticas feministas negras e por que a usou para situar a obra de Spillers e Carby como oposta aos escritos de outras críticas feministas negras Escrevendo desde o ponto de vista de uma negra inglesa de ascendência caribenha Carby não é de modo algum a primeira ou a única crítica feminista negra que como Fuss dá a entender nos leva a questionar o essencialismo da historiografia feminista tradicional que postula uma noção universalizante e hegemonizante da irmandade feminina global Se a obra de Carby é mais convincente para Fuss do que outros escritos de feministas negras que ela leu se é que de fato leu um grande número de obras feministas negras em seus comentários e em sua bibliografia tudo indica o contrário ela poderia ter afirmado essa apreciação sem diminuir outras críticas feministas negras Esse tratamento arrogante me lembra de como a inclusão próforma de mulheres negras nos estudos feministas e encontros profissionais assume aspectos desumanizantes As mulheres negras são tratadas como uma caixa de bombons dada de presente às mulheres brancas para o prazer destas que podem decidir para si mesmas e para as outras quais bombons são mais gostosos Paradoxalmente embora Fuss elogie a obra de Carby e de Spillers não é o trabalho delas o objeto das mais extensas interpretações críticas nesse capítulo Com efeito ela trata a subjetividade das mulheres negras como uma questão secundária Esse tipo de estudo só é admissível num contexto acadêmico que regularmente marginaliza as mulheres negras dedicadas à crítica Sempre me espanto com a absoluta ausência de referências aos trabalhos de mulheres negras nas obras críticas contemporâneas que pretendem tratar de modo inclusivo as questões de raça gênero feminismo póscolonialismo e assim por diante Quando eu e as demais críticas negras confrontamos nossas colegas a respeito dessa ausência elas em geral nos dizem que simplesmente não sabiam que esse material existia e estavam trabalhando com as fontes que conheciam Lendo Essentially Speaking supus que Diana Fuss ou não conhece o conjunto cada vez maior de obras de críticas feministas negras particularmente no campo da crítica literária ou exclui essas obras porque não as considera importantes Está claro que baseia sua avaliação nas obras que conhece fundamentando sua análise na experiência No último capítulo do livro Fuss critica especificamente o uso da experiência pessoal em sala de aula como base a partir da qual verdades totalizadoras são afirmadas Muitas limitações que ela aponta poderiam ser facilmente aplicadas ao modo como a experiência informa não só os temas sobre os quais escrevemos mas também o que escrevemos sobre esses temas os juízos que fazemos Mais que qualquer outro capítulo de Essentially Speaking esse último ensaio é especialmente perturbador Também solapa a inteligente discussão anterior de Fuss sobre o essencialismo Assim como minha experiência dos textos críticos escritos por pensadoras feministas negras me levaria a fazer avaliações diferentes das de Fuss e certamente mais complexas assim também minha reação ao capítulo Essentialism in the Classroom é em certa medida informada por minhas experiências pedagógicas diferentes Esse capítulo me proporcionou um texto com o qual pude me relacionar dialeticamente serviu como catalisador para eu clarear meus pensamentos sobre o essencialismo em sala de aula Segundo Fuss as questões de essência identidade e experiência irrompem na sala de aula principalmente devido à contribuição crítica dos grupos marginalizados Em todo o capítulo sempre que ela oferece um exemplo dos indivíduos que usam pontos de vista essencialistas para dominar a discussão para silenciar os outros invocando a autoridade da experiência esses indivíduos são membros de grupos que foram e ainda são oprimidos e explorados nesta sociedade Fuss não fala de como os sistemas de dominação já operantes na academia e na sala de aula silenciam as vozes de indivíduos dos grupos marginalizados e só lhes dão espaço quando é preciso falar com base na experiência Não explica que as próprias práticas discursivas que permitem a afirmação da autoridade da experiência já foram determinadas por uma política de dominação racial sexual e de classe social Fuss não afirma agressivamente que os grupos dominantes os homens os brancos os heterossexuais perpetuam o essencialismo Na sua narrativa o essencialista é sempre um outro marginalizado Mas a política da exclusão essencialista como meio de afirmação da presença da identidade é uma prática cultural que não nasce somente dos grupos marginalizados E quando esses grupos de fato empregam o essencialismo como meio de dominação em contextos institucionais eles estão em geral imitando os paradigmas de afirmação da subjetividade que fazem parte do mecanismo de controle nas estruturas de dominação É fato que muitos alunos brancos homens trouxeram à minha sala de aula uma insistência na autoridade da experiência que lhes permite sentir que vale a pena ouvir tudo o que eles têm a dizer ou mesmo que suas ideias e sua experiência devem ser o foco central da discussão em sala de aula A política da raça e do sexo no patriarcado da supremacia branca lhes dá essa autoridade sem que eles tenham de dar nome ao desejo que têm dela Eles nunca chegam na sala de aula e dizem Acho que sou intelectualmente superior aos meus colegas porque sou homem e branco e acho que minhas experiências são muito mais importantes que as de qualquer outro grupo Mas seu comportamento muitas vezes proclama esse modo de pensar a respeito de identidade essência e subjetividade Por que o capítulo de Fuss ignora as maneiras ocultas e ostensivas com que o essencialismo é expressado a partir de posições de privilégio Por que ela critica principalmente os maus usos do essencialismo centrando sua análise nos grupos marginalizados Isso os faz culpados pela perturbação da sala de aula por tornála um lugar inseguro Não é esse um dos modos convencionais com que o colonizador fala do colonizado o opressor do oprimido Fuss afirma Os problemas frequentemente começam na sala de aula quando os que estão por dentro só têm contato com outros que estão por dentro excluindo e marginalizando os que consideram estar fora do círculo mágico Essa observação que certamente poderia ser aplicada a qualquer grupo serve de prefácio à análise de um comentário crítico de Edward Said que reforça a crítica fussiana dos perigos do essencialismo Said aparece no livro como representante em exercício do Terceiro Mundo legitimando o argumento dela Ecoandocriticamente o que Said afirma Fuss comenta Para Said é perigoso e errôneo basear uma política de identidade em teorias rígidas da exclusão uma exclusão que estipula por exemplo que somente as mulheres podem compreender a experiência feminina somente os judeus podem compreender o sofrimento judaico somente os excolonizados podem compreender a experiência do colonialismo Concordo com a crítica de Said mas reitero que embora eu também critique o uso do essencialismo e da política de identidade como estratégias de exclusão e de dominação fico desconfiada quando alguma teoria diz que essa prática é danosa como forma de dar a entender que é uma estratégia empregada apenas por grupos marginalizados Minha desconfiança se baseia na percepção de que uma crítica do essencialismo que desafie somente os grupos marginalizados a questionar seu uso da política de identidade ou de um ponto de vista essencialista como meios de exercer poder coercitivo deixa incontroversas as práticas críticas de outros grupos que empregam as mesmas estratégias de diferentes maneiras e cujo comportamento excludente pode ser firmemente amparado por estruturas de dominação institucionalizadas que não o criticam nem o restringem Ao mesmo tempo não quero que as críticas à política de identidade possam se transformar num método novo e chique para silenciar os alunos de grupos marginais Fuss assinala que a fronteira artificial entre os de dentro e os de fora necessariamente contêm o conhecimento em vez de disseminálo Concordo mas me perturba o fato de ela nunca reconhecer que o racismo o sexismo e o elitismo de classe moldam a estrutura das salas de aula predeterminando uma realidade vivida de confronto entre os de dentro e os de fora que muitas vezes já está instalada antes mesmo de qualquer discussão começar Os grupos marginalizados raramente precisam introduzir essa oposição binária na sala de aula pois em geral ela já está em operação Podem simplesmente usála a serviço de seus interesses Encarada de um ponto de vista favorável a afirmação de um essencialismo excludente por parte dos alunos de grupos marginalizados pode ser uma resposta estratégica à dominação e à colonização uma estratégia de sobrevivência que pode com efeito inibir a discussão ao mesmo tempo em que resgata esses alunos de um estado de negação Fuss diz que faz parte da lei não escrita da sala de aula não confiar naqueles que não podem citar a experiência como fundamento indisputável do seu conhecimento Talvez essas leis não escritas sejam a maior ameaça à dinâmica da sala de aula na medida em que alimentam a desconfiança entre os que estão dentro do círculo e a culpa às vezes a raiva entre os que estão fora Mas ela não discute quem faz essas leis quem determina a dinâmica da sala de aula Será que ela afirma sua autoridade de maneira a desencadear inadvertidamente uma dinâmica de competição dando a entender que a sala de aula pertence ao professor mais que aos alunos pertence mais a alguns alunos que a outros Como professora reconheço que os alunos de grupos marginalizados têm aula dentro de instituições onde suas vozes não têm sido nem ouvidas nem acolhidas quer eles discutam fatos aqueles que todos nós podemos conhecer quer discutam experiências pessoais Minha pedagogia foi moldada como uma resposta a essa realidade Se não quero que esses alunos usem a autoridade da experiência como meio de afirmar sua voz posso contornar essa possibilidade levando à sala de aula estratégias pedagógicas que afirmem a presença deles seu direito de falar de múltiplas maneiras sobre diversos tópicos Essa estratégia pedagógica se baseia no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um conhecimento que vem da experiência e de que esse conhecimento pode de fato melhorar nossa experiência de aprendizado Se a experiência for apresentada em sala de aula desde o início como um modo de conhecer que coexiste de maneira não hierárquica com outros modos de conhecer será menor a possibilidade de ela ser usada para silenciar Quando falo sobre The Bluest Eye de Toni Morrison no curso introdutório sobre escritoras negras peço aos alunos que escrevam um parágrafo autobiográfico sobre uma lembrança racial do início de sua vida Cada pessoa lê seu parágrafo em voz alta para a classe O ato de ouvir coletivamente uns aos outros afirma o valor e a unicidade de cada voz Esse exercício ressalta a experiência sem privilegiar as vozes dos alunos de um grupo qualquer Ajuda a criar uma consciência comunitária da diversidade das nossas experiências e proporciona uma certa noção daquelas experiências que podem informar o modo como pensamos e o que dizemos Visto que esse exercício transforma a sala de aula num espaço onde a experiência é valorizada não negada nem considerada sem significado os alunos parecem menos tendentes a fazer do relato da experiência um lugar onde competem pela voz se é que de fato essa competição está acontecendo Na nossa sala de aula os alunos em geral não sentem a necessidade de competir pois o conceito da voz privilegiada da autoridade é desconstruído pela nossa prática crítica coletiva No capítulo Essentialism in the Classroom Fuss centra sua discussão na localização de uma voz particular de autoridade Aqui essa voz é a dela Quando ela levanta a questão de como devemos lidar com os alunos o uso da palavra lidar sugere imagens de manipulação E seu uso de um sujeito coletivo nós implica a noção de uma prática pedagógica unificada partilhada por outros professores Nas instituições onde ensinei o modelo pedagógico prevalecente é autoritário coercitivamente hierárquico e frequentemente dominador Nele a voz do professor é sem dúvida a transmissora privilegiada do conhecimento Em geral esses professores desvalorizam a inclusão da experiência pessoal na sala de aula Fuss admite desconfiar das tentativas de censurar a narração de histórias pessoais na sala de aula com base no fato de elas não terem sido suficientemente teorizadas mas indica em todo esse capítulo que lá no fundo não acredita que a partilha de experiências pessoais possa contribuir significativamente com as discussões em sala de aula Se essa parcialidade informa a pedagogia dela não surpreende que a invocação da experiência seja usada agressivamente para afirmar um modo privilegiado de conhecimento quer contra ela quer contra outros alunos Se a pedagogia do professor não for libertadora os estudantes provavelmente competirão pela valorização e pela voz em sala de aula O fato de pontos de vista essencialistas serem usados competitivamente não significa que seja a tomada dessas posições que crie a situação de conflito As experiências de Fuss na sala de aula podem refletir o modo pelo qual a competição pela voz se torna uma parte inseparável de sua prática pedagógica A maioria dos comentários e observações que ela faz sobre o essencialismo na sala de aula é baseada na sua experiência e talvez na dos seus colegas embora isso não seja explicitado Com base nessa experiência ela se sente à vontade para asseverar que permanece convicta de que os apelos à autoridade da experiência raramente promovem a discussão e frequentemente provocam confusão Para sublinhar ainda mais esse ponto ela diz Sempre me dou conta de que a introjeção de verdades experienciais nos debates em sala de aula leva a discussão para um beco sem saída Fuss recorre à sua experiência particular para fazer generalizações totalizadoras Como ela eu também já vi de que modo os pontos de vista essencialistas podem ser usados para silenciar ou afirmar a autoridade sobre a oposição mas com mais frequência vejo que a experiência e a narração das experiências pessoais podem ser incorporadas na sala de aula de maneira a aprofundar a discussão E o que mais me anima é quando a narração de experiências liga as discussões de fatos ou de construtos mais abstratos com a realidade concreta Minhas experiências na sala de aula talvez sejam diferentes das de Fuss porque falo com a voz de uma outra institucionalmente marginalizada e não tenho aqui a pretensão de assumir uma posição essencialista Há muitas professoras universitárias negras que não reivindicariam essa posição A maioria dos alunos que entram na nossa sala nunca tiveram aula com professoras negras Minha pedagogia é informada por esse conhecimento pois sei por experiência que essa falta de familiaridade pode superdeterminar o que acontece na aula Além disso ciente por experiência pessoal como aluna em instituições predominantemente brancas de o quanto é fácil um aluno se sentir isolado ou posto para fora me esforço particularmente por criar um processo de aprendizado na sala de aula que envolva a todos Por isso as parcialidades impostas por pontos de vista essencialistas ou pela política de identidade ao lado daquelas perspectivas que insistem que a experiência não tem lugar na sala de aula ambas as posições podem criar uma atmosfera de coerção e exclusão devem ser questionadas pelas práticas pedagógicas As estratégias pedagógicas podem determinar a medida com que todos os alunos aprendem a se envolver de modo mais pleno com ideias e questões que parecem não ter relação direta com sua experiência Fuss não afirma que os professores cientes dos múltiplos modos pelos quais os pontos de vista essencialistas podem ser usados para fechar a discussão podem construir uma pedagogia que intervenha criticamente antes de um grupo tentar silenciar outro Os próprios professores universitários especialmente os dos grupos dominantes às vezes empregam noções essencialistas para constranger as vozes de determinados alunos por isso todos nós temos de vigiar sempre as nossas práticas pedagógicas Sempre que os alunos partilham comigo a impressão de que mi Bell Hooks no livro Ensinando a Transgredir aborda a ideia de pedagogia engajada uma abordagem revolucionária na educação Segundo a autora a pedagogia engajada é muito mais do que apenas ensinar e transmitir conhecimentos tratase de um processo ativo que envolve a participação e o envolvimento emocional dos alunos Ela critica a educação bancária e a influência dos ideais neoliberais na educação Ela rejeita a abordagem tradicional que trata os alunos como receptores passivos de conhecimento depositando informações em suas mentes sem considerar suas experiências e identidades Condenase ainda a mentalidade competitiva e individualista promovida pelo neoliberalismo que transforma os alunos em rivais incentivandoos a derrubar uns aos outros para prosperar Em contraste ela defende uma pedagogia engajada que promova a colaboração a empatia e a cooperação visando superar as estruturas opressivas e construir uma educação mais justa e solidária Para Bell Hooks a pedagogia engajada é uma prática de ensino que busca desafiar as normas e estruturas opressivas presentes na sociedade Ela encoraja os educadores a se posicionarem como agentes de mudança estimulando os estudantes a questionarem e desafiarem as desigualdades e injustiças que permeiam nossa realidade Ao adotar uma abordagem engajada a autora enfatiza a importância de promover o diálogo aberto e inclusivo na sala de aula onde todas as vozes são ouvidas e respeitadas Ela defende que os educadores devem criar um ambiente seguro e acolhedor onde os alunos se sintam incentivados a expressar suas opiniões compartilhar suas experiências e contribuir ativamente para o aprendizado coletivo Para Bell Hooks a pedagogia engajada também valoriza a conexão entre teoria e prática Ela encoraja os educadores a relacionarem o conteúdo curricular com a vida cotidiana dos estudantes demonstrando como os conceitos aprendidos podem ser aplicados de maneira significativa fora da sala de aula Dessa forma a educação se torna relevante e estimulante capacitando os alunos a se tornarem agentes de transformação em suas próprias vidas e comunidades Em resumo para Bell Hooks a pedagogia engajada vai além de transmitir conhecimentos é um convite à participação ativa à reflexão crítica e à transformação social É uma abordagem que busca empoderar os estudantes promovendo o diálogo a inclusão e a aplicação prática do conhecimento criando assim uma educação mais justa libertadora e autêntica