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Filosofia

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Fernando Mauricio da Silva A República de Platão uma introdução à filosofia A REPÚBLICA DE PLATÃO UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES Coordenador editorial Evandro Oliveira de Brito SÉRIE FILOSOFIA ARTE E EDUCAÇÃO Editor da série Jason de Lima e Silva UFSCBrasil Comitê Editorial Aline Medeiros Ramos UQAM e UQTRCanadá Alexandre Lima IFCBrasil Arthur Meucci UFVBrasil Caroline Izidoro Marim UFPEBrasil Charles Feldhaus UELBrasil Cleber Duarte Coelho UFSCBrasil Elizia Cristina Ferreira UNILABBrasil Ernesto Maria Giusti UNICENTROBrasil Evandro Oliveira de Brito UNICENTROBrasil Fernando Mauricio da Silva FMPBrasil Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann UFFSBrasil Gilmar Evandro Szczepanik UNICENTROBrasil Gislene Vale dos Santos UFBABrasil Gilson Luís Voloski UFFSBrasil Halina Macedo Leal FSLFURBBrasil Héctor Oscar Arrese Igor CONICETArgentina Jean Rodrigues Siqueira UNIFAIBrasil Joedson Marcos Silva UFMABrasil Joelma Marques de Carvalho UFCBrasil José Cláudio Morelli Matos UDESCBrasil Leandro Marcelo Cisneros UNIFEBEBrasil Lucio Lourenço Prado UNESPBrasil Luís Felipe Bellintani Ribeiro UFFBrasil Maicon Reus Engler UNICENTROBrasil Marciano Adílio Spica UNICENTROBrasil Marilia Mello Pisani UFABCBrasil Noeli Ramme UERJBrasil Paulo Roberto Monteiro de Araujo MackenzieBrasil Renato Duarte Fonseca UFSMBrasil Renzo Llorente Saint Louis UniversityEspanha Rogério Fabianne Saucedo Corrêa UFSMBrasil Vanessa Furtado Fontana UNIOESTEBrasil Fernando Maurício da Silva A REPÚBLICA DE PLATÃO UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA Apolodoro Virtual Edições 2017 APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES Direção editorial Evandro Oliveira de Brito Coordenadora Administrativa Simone Gonçales Diagramação Apolodoro Virtual Edições Capa Scuola di Atenas de Raffaello Sanzio 1510 httpaparencesnetwpcontentuploadsecoleathenesjpg Editor Jason de Lima e Silva Revisão Gabriel Geller Xavier Concepção da Série Grupo de Pesquisa Filosofia Arte e Educação MENUFSC Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP S586r A República de Platão uma introdução à filosofia Fernando Maurício da Silva 1 ed Guarapuava Apolodoro Virtual Edições 2017 289 p Bibliografia ISBN 9788593565045 ebook ISBN 9788593565052 papel 1 Filosofia Estudo e ensino 2 República 3 Platão I Silva Fernando Maurício II Título CDD 100 Atribuição Uso NãoComercial Vedada a Criação de Obras Derivadas APOLODORO VIRTUAL EDIÇÕES editoraapolodorovirtualcombr 42 33044645 Rua Coronel Luís Lustosa 1996 Batel GuarapuavaPR 85015344 A vida dizia Pitágoras é como um festival tal como alguns vêm ao festival para competir outros para fazer o seu negócio enquanto os melhores vêm como espectadores assim na vida os homens servis vão à caça de fama e lucro e os filósofos da verdade Diogenes Laercius VIII8 SUMÁRIO AGRADECIMENTOS 11 PREFÁCIO 13 INTRODUÇÃO 1ª Lição sem pés nem cabeça 17 CAPÍTULO I O discurso filosófico como um ser vivo 27 Introdução 27 2ª Lição a conveniência do discurso 27 3ª Lição estrutura musical do discurso filosófico 29 4ª Lição a demora da filosofia 34 5ª Lição a medicina da alma para a patologia das crenças imagéticas 36 6ª Lição prelúdio à essência do objeto desde a essência das qualidades 41 7ª Lição função da contradição na investigação dialética 48 8ª Lição a função da imagem para a iniciação dialética 57 9ª Lição estádios e elementos do conhecimento 61 10ª Lição topologia da alma 69 11ª Lição o método esfregatório e a analogia 74 12ª Lição o método do paradigma 77 13ª Lição os lugares objetuais nos estádios da alma 81 14ª Lição a questão dialética como função retroativa do nous à arque 85 15ª Lição método purgatório 88 10 Capítulo II A imagem no discurso filosófico 95 Introdução 95 16ª Lição enunciados imagéticos e contradição qualitativa na imagem 96 17ª Lição as hipóteses e a dialética da imagem 120 18ª Lição da função dialética das Hipóteses 124 19ª Lição A investigação genética 134 20ª Lição desvio metodológico desde a hipótese dialética 138 21ª Lição sistematização da imagem maior 143 22ª Lição nova função da imagem e da contradição 147 23ª Lição uso construtivo da hipótese e a literatura 155 24ª Lição abertura para o eidos e a harmonia 167 25ª Lição a abertura para o eidos e a ginástica 171 CAPÍTULO III 177 A definição no discurso filosófico 177 Introdução 177 26ª Lição o processo de retorno à questão essencial 177 27ª Lição do processo definicional 181 28ª Lição preparação para uma teoria do objeto 189 29ª Lição a teoria do objeto os modos dos objetos 206 30ª Lição fundamentos da ética platônica 217 31ª Lição A Ideia mítica de bem em si 235 32ª Lição sistematização do processo de definição da justiça 244 33ª Lição a justiça como virtude 251 34ª Lição conclusão do método residual a essência da justiça260 CONCLUSÃO 265 35ª Lição o valor do mito 266 BIBLIOGRAFIA 289 AGRADECIMENTOS Este livro foi redigido como resultado do programa de Extensão Civilização Interpretação e Reflexão Filosófica referente ao Projeto oficina de leitura e Interpretação de Textos que atende ao Edital PAEX 012011 da Universidade Estadual de Santa Catarina UDESC Este Programa de Extensão dirigese a três ações e objetivos as oficinas de leitura e Interpretação de Textos ministradas pelos gestores do Projeto e professores colaboradores em diversos Centros Acadêmicos como a UDESC a UFSC a USJ e a FMP o Colóquio Civilização 2012 2016 ocorridas no auditório da Faculdade Municipal de Palhoça e os Cursos de interpretação Filosófica de Textos estando este livro incluído em cada um destes objetivos Neste sentido agradecemos a Diretora de Extensão da UDESC Professora Dra Jimena Furlani e aos professores e amigos Dr José Claudio Matos Jason de Lima e Silva UFSC e Evandro Oliveira Brito USJ por contribuírem diretamente com a produção desta obra Também agradeço cordialmente ao trabalho minucioso de Gabriel Xavier quanto à revisão do texto argumentos e referencias da língua grega Meu agradecimento especial dirigese a meu mestre Dr Luís Felipe Bellintani Ribeiro não apenas por ter me honrado com o Prefácio aqui redigido mas antes por ter enriquecido minha formação com seus ensinamentos quanto à filosofia platônica e grega PREFÁCIO A ideia de introdução é uma metáfora a partir de uma experiência espacial Ela pressupõe a ideia de um lugar do qual se pode falar de um dentro e um fora e de um movimento de um para o outro entrar e sair Esse lugar no caso é a filosofia que numa metáfora análoga a gente chama de país da filosofia com suas planícies montanhas e depressões Quem está no interior do país da filosofia desfruta de uma paisagem bem peculiar Do exterior são outras paisagens com outras peculiaridades As coisas variam de cabo a rabo nestas variações de abordagens O problema é que entrar e sair são verbos intransitivos ao passo que introduzir pretende ser algo que um sujeito possa fazer com um objeto No caso da filosofia tratase da pretensão do professor de ensinar filosofia ao aluno ou do autor do texto de ensinar filosofia ao leitor Mas isso é possível fazer sair fazer entrar Ou é só a própria pessoa que entra e sai por si mesma Essa é questão preliminar em filosofia da educação Platão na antiguidade tratou do assunto usando dessa vez uma metáfora visual derivada da espacial como lhe era bem característico Ninguém pode ver no lugar de ninguém mas alguém pode de diferentes maneiras fazer com que o outro gire o pescoço sobre o tronco e se depare com outra paisagem outro semblante do real Num sentido é possível educar cercando o aprendiz de modelos visuais musicais conceituais etc e deixálos à sua imitação Não obstante o aprendiz tem uma tarefa que não pode transferir o pescoço deve ser girado voluntariamente para a educação funcionar e neste sentido não é possível educar como ação transitiva Uma introdução à filosofia não tem como ser uma filosofia light capaz de fazer entrar aos poucos no país da filosofia aquele que está fora Uma introdução à filosofia não pode ser senão a descrição do autor da experiência pela qual Luís Felipe Bellintani Ribeiro 14 ele próprio passa ao entrar na filosofia o que nas palavras do mesmo Platão implica uma reviravolta da alma inteira periagogè hóles tês psychês numa mudança tão descontínua e repentina mesmo que dure muitos anos como a que separa uma determinação dada qualquer idêntica a si mesma do seu outro A descrição do autor fica dada à apropriação pelo leitor de qualquer modo que seja em doses variadas de assimilação e rejeição de imitação e purificação Para uma introdução à filosofia é bem apropriado tomar o texto da República de Platão como modelo Texto que descreve a própria experiência de buscar um modelo a um só tempo individual e político pedagógico e estético metafísico e gnosiológico matemáticoastronômico e dialético numa articulação dos liames originários entre as principais dimensões da vida humana Texto que descreve o exercício de entrar no país da filosofia O texto que começa com a simples indagação sobre o melhor modo de levar a vida dirigida a um velho que se aproximava do momento de ter de deixála logo mostra que essa questão não pode ser respondida individualmente sem que se coloque a questão do sentido universal da justiça medida do bemviver e da areté em geral excelência moral ou virtude De moral o problema se torna desde logo político porquanto o indivíduo é carente e não se realiza sem pólis e viceversa ao ponto mesmo de a estrutura da alma do indivíduo e a estrutura da cidade serem vistas como congêneres análogas e conversíveis A cidade por seu turno ao mesmo tempo produtora da subsistência e do supérfluo do pão e do luxo do pasto e da arte do excesso e da nova carência correlata torna tragicamente o problema político um problema bélico que engendra o problema pedagógico de como educar para uma vida com guerra O liame entre estética e educação é ainda mais profundo que o fato nada desprezível de a educação do guerreiro se dar pela música pelas artes das musas e pela Prefácio 15 ginástica que modelam as almas e os corpos dos jovens Ele está em que todo colorir e dar forma sonorizar texturizar e perfumar todo moldar a aísthesis na fase de aprendiz pela natureza e pela arte ou falta dela seja esse processo consciente e voluntário ou não implica um modo determinado de formar o homem de preferência a outros modos possíveis É nesse processo que se perpetua e transforma o êthos de uma comunidade de homens incluindo aí a língua materna por cuja perspectiva as coisas reais desde sempre apareceram para os membros dessa comunidade A normatividade implícita na preferência estética de cada pedagogia constituirá o lastro ético da normatividade explícita do direito O verdadeiro legislador é o que decide qual poesia será mostrada aos jovens qual não E o legislador é o mais poderoso como já dizia Trasímaco uma constituição democrática promulga leis democráticas uma oligárquica oligárquicas e o justo em cada caso é obedecer às respectivas leis Mas se são as próprias coisas que estão em jogo nessas variações de perspectiva sobre as coisas vem a questão do critério que deve nortear a Legislação e essa questão já é ontológica metafísica Com efeito os discursos que estabelecem valor e medida costumam se justificar no próprio modo de ser do real e não num poder despótico e arbitrário de estabelecer qualquer coisa E mesmo que valha a tese tudo é estabelecimento despótico e arbitrário de valor essa já seria uma tese ontológica pelo tudo e pelo é Não é Platão quem subordina a política à metafísica estes domínios é que estão imbricados desde o princípio pois o poder político é em última instância o poder de proclamar o que é e o que não é nos diferentes sentidos do verbo ser Querendo ou não todo indivíduo já conta com alguma medida que oriente a série de decisões em direção a um fim último que torne a vida desejável por si mesma Não há como não ter que se ver com a ideia de bem A filosofia é apenas a assunção explícita dessa tarefa O problemático é como cada filósofo preenche a sua noção de bem Platão Luís Felipe Bellintani Ribeiro 16 parece apontar para um cosmo em que cada diferença realiza na medida sua forma sem faltar ou sobrar um mundo fundado em matemática no jogo do um e dos muitos Mas há vários outros candidatos a preencher o conteúdo do bem o prazer a virtude o conhecimento O que importa é que cada um provém de uma visada arquetípica específica e dessa contemplação resulta espontaneamente um engajamento prático radical É nas situações ordinárias e tópicas que vigora a utopia Da radicalidade prática própria da filosofia pelo menos a antiga advém a altivez de quem está dentro de seu país e a incompreensão e desprezo de quem está fora O que um valoriza é precisamente o que o outro despreza De um lado a consciência do caráter efêmero da vida individual e do despego correlato em favor de um estudo ocioso da ordem universal De outro o páthos rastejante e mesquinho regido pelo princípio da estreita utilidade o apego ao particular e a tendência a naturalizar o que é mera convenção Talvez a investigação do sentido da ideia de bem nunca chegue a um resultado definitivo mas prosseguir investigando faz toda diferença Como dizia Sócrates segundo Platão uma vida sem exame é uma vida inútil O indivíduo tem que se colocar na posição do legislador e do governante se quiser estar preparado para o debate na assembleia dos cidadãos e pôr claramente na mesa seus mitos constituintes e seus axiomas fundantes mesmo ciente da precariedade e falibilidade do gênero humano E cada qual que estabeleça para si seu paradigma utópico a partir de suas experiências Neste livro Fernando Maurício da Silva refaz o caminho de Platão o que não tem como não ser por um lado a inauguração de um caminho totalmente novo O leitor haverá de desbravar outro ainda sempre ao belo e clássico pretexto de refazer o caminho aberto por Platão Luís Felipe Bellintani Ribeiro INTRODUÇÃO 1ª Lição sem pés nem cabeça Este livro é resultado das lições que ministrei em 2011 na modalidade de Extensão ao ensino universitário Tais aulas e debates foram dirigidos para alunos de graduação em diversas áreas Assim além de registrar o conteúdo discorrido naquela ocasião e trazer ao público suas contribuições este livro tem por objetivo permitir ao aluno de qualquer graduação efetuar uma introdução crítica à filosofia A intenção é fazer da introdução uma formação e evitar que se torne uma simplificação Corremos o risco de tornar o assunto mais difícil mas também pretendemos fazêlo mais instigante O leitor seja qual for sua orientação teórica ou formação acadêmica deverá acompanhar o presente texto tendo em conta que os temas e conceitos serão apresentados e reapresentados algumas vezes para que os mesmos venham a ser compreendidos não por definição ostensiva mas por exposição dinâmica Imaginese que cada capítulo forneça uma Lição que se somará as restantes Assim se poderá lograr pouco a pouco uma introdução uma iniciação à filosofia Nosso objetivo principal é expor uma introdução à filosofia na forma de um itinerário Mas em que sentido tomamos o termo introdução Esta é uma importante questão Toda questão consiste em suspender algo É neste sentido que dizemos Pedro levantou uma questão Questionar é o ato de mostrar algo flutuante sem solo firme mas ainda o ato de pedir o fundamento daquilo que se levantou Por isso toda questão é um problema mas nem todo problema é negativo e nem todo problema pede resposta Por exemplo um problema matemático é positivo pois somente é matemático quando sua questão é erguida sobre as bases dos Fernando Maurício da Silva 18 mesmos axiomas que levam à resposta Um problema de saúde contudo não necessariamente admite solução e quando admite tal solução frequentemente traz novos problemas E os problemas e as questões filosóficas frequentemente são respondidos porém com a diferença de que toda solução filosófica pode se tornar mais uma vez problemática A questão o que é filosofia é uma questão filosófica do mesmo modo a questão como introduzirse no filosofar Por isso este livro é o exercício simultâneo de levantar tais perguntas e formular respostas possíveis É a isto que chamaremos aqui introdução E faremos isto através de um dos mais eminentes livros escritos na época do nascimento da filosofia a República de Platão Deste modo advertimos que aquilo que se segue não corresponde a uma introdução em sentido usual isto é aquilo que serve de abertura início ou começo para uma discussão Neste sentido ordinário uma introdução é sempre um começo breve ou melhor informações iniciais que sirvam de instrumento e preparação para o que se seguirá Mas é bastante duvidoso se isto é possível em filosofia uma vez que o rigor dos argumentos filosóficos não pode ser simplificado sem que com isso se perca justamente o seu caráter de rigoroso preciso cuidadoso etc Além disso a Introdução que pretendemos tecer também não deve ser entendida como uma exegese da filosofia de Platão Certamente levaremos em conta grande parte do debate contemporâneo entre os comentadores ou críticos do platonismo mas este método não nos servirá de ponto de partida ou inversamente de objetivo Outro método atualmente em voga está naquele formulado pela hermenêutica através da qual o sentido de um texto como é o caso da República deve ser interpretado tanto a partir de suas condições históricas quanto em função do sentido que pode ser nele reeditado Mais uma vez este expediente não poderá por nós ser ignorado e muitas vezes o leitor o reconhecerá em nossa abordagem Entrementes também não é Introdução 19 neste campo que esta Introdução deverá ser entendida pois na maior parte de nossa exposição iremos prescindir de critérios hermenêuticos e nos demorar mais propriamente em interesses argumentativos Sobre este ultimo termo que ainda teremos oportunidade de esclarecer o leitor se deparará com uma preocupação expositiva dos argumentos presentes na República em função do poder ou alcance de tais argumentos Veremos que o próprio Platão designou seu procedimento de dialético ou seja um tipo de discurso que pretendemos captar em seu próprio exercício Neste sentido nossos esforços estarão mais concentrados na reconstrução do discurso platônico enfatizando tanto as características de sua linguagem ou vocabulário quanto a validade de seus argumentos Portanto deve estar claro para o leitor que nossa pretensão orientase principalmente ainda que não apenas pela exposição dos argumentos e dos seus critérios através dos quais um filósofo pode introduzir seu leitor em alguma filosofia Trataremos da introdução à filosofia Com isto também se executará uma introdução a uma filosofia no sentido em que dizemos que executamos uma música pois discutir os modos de executar uma introdução à filosofia sempre já é introdução a uma filosofia Por causa disto este livro dirigese aos professores de filosofia que esperam algum meio pedagógico para o ensino E também aos alunos e todos aqueles jovens que de alguma maneira foram tocados pelo filosofar e sentem a própria capacidade reflexiva como um desejo Isto é o discurso que se apresentará pretende ser um motivo para a filosofia Porém ninguém ingressa em uma forma de discurso sem já praticar esse discurso mesmo quando se trata de um discurso teórico já que todo teorizar é enquanto ato um fazer Só é possível entrar na filosofia filosofando Se isto for verdadeiro então somente é possível ser introduzido na filosofia através de alguém que já esteja essencialmente nela ou seja através de um filósofo E apesar Fernando Maurício da Silva 20 da filosofia ser um desvio do olhar das coisas tampouco é olhar para dentro mas para fora capaz de ver um objeto que responde O aspecto mais relevante para distinguir a filosofia da ciência apesar das semelhanças no método está em que o cientista sempre faz afirmações sobre coisas mudas coisas que não reclamam contra as asserções da ciência enquanto o filósofo é aquele que somente faz afirmações contra aqueles objetos que são capazes de responder a saber os homens e seus discursos A filosofia se distingue das demais formas de conhecimento tal como se pode distinguir um pugilista que desfere golpes contra a parede e aquele que luta contra um adversário só no segundo caso o ataque é contrariado por um contraataque Se filosofia significa amor ao saber então introdução à filosofia significará encontrar em si mesmo a admiração e o desejo de cuidar do saber A aparência problemática e inútil que a filosofia possui ao inapto está nisso filosofia consiste na coragem que se mantém no interior da tensão dos discursos humanos Introdução à filosofia significa portanto instigar esta coragem e ingressar neste conflito neste lugar de diferenças O caminho que se seguirá se orienta justamente por este critério intrínseco introduzirse na filosofia já filosofando e já no interior do discurso de um filósofo Este filósofo será porém tomado não como doutrina mas como problema como tensão discursiva ou como ato ético de colocarse no lugar dos outros Estamos falando do encontro com um discurso filosófico particular Para entender isto imaginese estar lendo um texto ou ouvindo uma oratória Na presença do texto e do discurso em geral tendemos a esquecer do autor dando vida ao discurso lido ou escutado Porém ainda mais facilmente esquecemos a nós mesmos que temos nosso modo próprio de ler um modo próprio de se deixar levar ou não pela leitura A isto comumente se dá o nome de pré conceito de forma que não são poucos os préconceitos que advém numa leitura e que precisam ser questionados Introdução 21 conjuntamente com toda a questão Interpretar um discurso filosófico exige sempre questionar e seguir cuidadosamente a linguagem usada no texto É sempre difícil numa primeira leitura distinguir onde está o impessoal da linguagem e onde está o uso que o autor faz da linguagem tornandoa sua linguagem Em função dessa flexibilidade performativa da linguagem toda leitura filosófica deverá ter por préocupação o desejo de aprender a linguagem do autor como primeiro meio de introdução a uma filosofia embora não como fim do filosofar Filosofar exige aprender a se préocupar para aprender a não préjulgar Platão que foi poeta na juventude e em certo sentido pela vida inteira criara um estilo literário próprio em seus diálogos filosóficos com seus personagens viagens lugares situações histórias mitos e dramas Sua linguagem é construída para expressar e dar forma a esse drama A semelhança entre literatura e filosofia não está tanto na presença de um estilo contexto ou ficção mas no fato do texto literário e do texto filosófico serem lidos mais a favor da linguagem e sentido neles construídos que a favor da verdade e realidade neles defendidas Não ao acaso o nascimento da filosofia é também a transformação da literatura Platão compreendeu que a relação de identidade entre coisas por analogia e por definição não se confunde com sua identidade por modelo ou forma mas também necessitou de linguagem própria para aproximarse do drama que a alma vive quando pretende se dirigir aqueles modelos Com isso cunhara o termo eidos Forma para dizer o que somente o drama da alma conhece em seu próprio diálogo quando pretende chegar à identidade das coisas por meio de uma visão nem apenas lógica nem apenas empírica O eidos segundo sua linguagem filosófica é a forma com que a identidade de algo pode ser conhecida muitas vezes apenas expressa na forma de um mito Fernando Maurício da Silva 22 Platão utilizará os termos Forma Ideia Modelo e Paradigma de muitos modos mas em geral entenderemos por modelo e paradigma imagens mais ou menos bem delineadas e por forma e ideia delineações mais abstratas e superiores às imagens o que iremos explicitar posteriormente Mas que isto sirva provisoriamente de exemplo para entendermos que introduzirse na filosofia somente é possível introduzindose em uma filosofia e o passo inicial inevitável é aprender a linguagem de certo filósofo Assim é necessário ao aprendiz de filosofia um desejo de diálogo fazer questão em compartilhar o sentido que o outro dá a linguagem Somente deste modo alguém pode fazer parte num mesmo mundo de sentido Porém seguir uma linguagem não é algo simples nem eficaz por si mesmo pois frequentemente implica não ler o sentido mas em atribuílo a partir do próprio momento histórico Por exemplo se hoje podemos dizer corriqueiramente mas isto não tem pés nem cabeça não precisamos saber que esta forma de se exprimir e argumentar é grega e utilizada por Platão1 e que ao nos exprimirmos deste modo nos colocamos em uma forma popularizada de platonismo A maior dificuldade em ler um autor não consiste em estarmos mal familiarizados com sua linguagem nem apenas em estarmos carregados da nossa própria linguagem mas justamente em estarmos previamente familiarizados com o autor através de uma história não explicitada Não há pré conceito maior que este Neste sentido um platonismo seria o pior ponto de vista para se ler Platão 1Fedro 264c Como usual as obras de Platão serão referidas através de seu título e quando acompanharem as linhas do texto grego utilizaremos a Platonis Opera em cinco volumes organizada por John Burnet 18631928 e publicada em Oxford 19001907 Isto permitirá ao leitor consultar as referencias em qualquer edição portuguesa que contenha as mesmas referencias Assim o algarismo romano após o nome da obra indica o número do livro as letras indicam as páginas e parágrafos da edição de Henricus Stephanus e os números indicam as linhas do texto Por exemplo Rep I 213 b 13 ler República livro I p 213 parágrafo b linhas 1 a 7 Introdução 23 Não há exercício antecipado de leitura e interpretação Porém sempre já estamos inseridos em um universo de sentidos possíveis Por isso mesmo uma introdução à filosofia é antes de tudo a iniciação na arte de ouvir e silenciar diante de um discurso isto é ato de esperar o surgimento de um sentido A escuta é privilegiada porque a aproximação auditiva à linguagem é um distanciamento dos próprios préconceitos e préjuízos Tomemos como exemplo a seguinte passagem de Platão Todo discurso deve ser constituído como um ser vivo Ter um corpo próprio de modo a não ser nem sem pés nem sem cabeça mas a ter um meio e extremidades que sejam escritos de maneira a serem convenientes entre si e o todo2 O que ocorre de particular quando lemos este discurso de Platão A expressão sem pés nem cabeça nos é familiar Quando lemos esta passagem somos imediatamente levados para um mundo grego imaginário a partir do fato de reconhecermos entre nós e os gregos algo em comum registrado na expressão sem pés nem cabeça Assim o que reconhecemos não é apenas o texto de Platão mas algum parentesco Neste sentido ainda não o estamos lendo A leitura está por começar o sentido está sendo solicitando pelo texto Esta atitude que prepara a leitura em que nos tornamos solícitos ao ler nada mais é que a constatação de que o uso popular da expressão sem pés nem cabeça deve guardar algo de semelhante com o uso de Platão Será preciso afastar o sentido da expressão popular e aproximarse do sentido que a leitura do discurso platônico permite para tentar lecionar ou retirar uma interpretação A etimologia da palavra ler poderá nos auxiliar na compreensão do que chamamos aqui introdução Ler é o ato de interpretar um texto segundo algum contexto 2 Fedro 264c Tradução nossa Fernando Maurício da Silva 24 compreendido Como um leitor pode saber algo acerca de um discurso que ainda não leu Ora alguém somente pode saber disso por têlo ouvido ou lido de algum outro discurso Ou saberá algo de um texto quando lêlo ao menos uma segunda vez para tornálo outro texto Seja como for é sempre de um outro discurso que sabemos o que é um discurso É por esta razão que às vezes quando temos a impressão de compreender um discurso costumamos afirmar que poderíamos ter dito o mesmo que o autor Entretanto também é verdadeiro o inverso que chamamos de grande autor aquele que foi capaz de se antecipar e dizer aquilo que em geral a maioria pretendia ser capaz de dizer e não podia Este fenômeno de circularidade não é casual A leitura deve solicitar do próprio discurso sua clareza as leis de como lêlo o seu sentido deve ser destacado do próprio escrito ou do que foi dito assim como um grande autor somente enunciada verdades quando é capaz de perceber as leis de interpretação que estão dadas implicitamente em sua época O termo ler do latim legere guarda parentesco com lei também do latim lex possivelmente relacionado a lege A lei é a escritura ou registro que dá sentido à conduta e que pode se fixar como aquilo que há de ser lido e como tal não pode deixar de ser lido O que faz a lei Ela elege a conduta o governante etc Ler implica lei na medida em que fixa um sentido seja no sentido político linguístico literário etc Quando dizemos ler o futuro não estamos diante de uma escritura sequer de algo presente assim como em ele leu o ódio em seu rosto aplicamos o termo para dizer um sentido possível de ser fixado ou quando dizemos fulano lerá a mensagem ler significar falar orar Nestes casos ler não se refere apenas ao escrito mas também ao falado e ao expressado Por isso o termo lero apesar de derivar de ler e não de falar significa conversa mole3 Seja como for lego é eleger o que deve ser tomado e 3 No caso do termo lero alguns autores derivam lero de Lelu boca Introdução 25 legere é o que mostra ou deixa legível legibile o que pode ser eleito Voltemos ao nosso exemplo Quando Platão nos fala que um discurso deve ser um todo orgânico do princípio ao fim ou dos pés à cabeça temos a preocupação com a legibilidade do discurso de ponta a ponta de lés a lés Esta expressão de lés a lés oriunda do francês remete justamente a noção de colocar lado a lado o que por sua vez remete ao sentido do grego lógos dispor ou enfileirar ordenadamente No grego o substantivo palavra lógos deriva do verbo dizer legein Lógos é o elegido legein é o ato de eleger ou pegar e o que se elege ou se pega é sempre um item ou signo incluído em um conjunto legível que lhe dê sentido Daí o parentesco direto com o latim legere Tratase do lego escolha ou eleição É muito importante o fato deste parentesco ter sido mantido no idioma português A experiência de proferir um discurso que os autores das obras filosóficas vivem corresponde à capacidade de eleger no léxico pois o leitor terá acesso a estes termos que expressam o sentido daquilo que se quer tornar legível manifesto claro Esta legibilidade é a lei que torna o ler possível de modo que o ler consiste em compreender no texto porque sua legibilidade é supostamente possível apenas naquela linguagem Portanto não só um texto precisa ser escrito legivelmente ou seja elegendo bem de lés a lés sua ordenação mas também o ler precisa encontrar sua legibilidade precisa saber detectar o que há a ser eleito como indicador de interpretação Mas para exercer este tipo de respeito também é preciso saber escolher Em resumo nosso método consistirá em analisar a República com o intuito de executar uma introdução à filosofia através desta filosofia específica Para tanto teremos que preencher extensivamente os termos centrais de Platão através de referencias cruzadas por ele mesmo fornecidas em seus outros diálogos Com esta forma de proceder teremos uma introdução operativa cujo objetivo consiste na entrada em sua Fernando Maurício da Silva 26 linguagem Feito isso lograremos inclusive uma interpretação da obra que estará focada em responder duas questões presentes na República em que medida a ética de Platão ainda é contributiva para os debates atuais e qual o valor da linguagem mítica para a filosofia platônica Responderemos a primeira questão em nossa Lição 30 e 33 e a segunda na Lição 35 que compreenderá a conclusão Estas interpretações estarão mediadas por uma explicitação acerca dos valores das imagens virtudes e ortodoxia apresentada na Lição 7 Dividiremos tal percurso em três capítulos No Capítulo I discutiremos os critérios metodológicos de Platão para uma possível leitura da República No Capítulo II aplicaremos o método dialético antes estudado ao problema das imagens poéticas o que irá preparar nossa solução para a questão do valor do mito E finalmente no Capítulo III nos deteremos nos argumentos sobre a justiça e forneceremos uma interpretação possível da validade da ética platônica Em nossa Conclusão como ficou dito voltaremos ao tema do valor do mito e procuraremos interpretálo a partir dos critérios alcançados ao longo das Lições CAPÍTULO I O discurso filosófico como um ser vivo Introdução Neste primeiro capítulo iremos estudar os passos metodológicos da dialética em Platão Apesar de nosso objetivo ser descrever os argumentos da República o método platônico que iremos introduzir nos levará a um pequeno passeio por outros livros do autor principalmente o Político e a Carta VII Nosso estudo se ocupará dos discursos diversos que em uma sociedade se pretende autoridade como a literatura a política a sofística a ciência e a filosofia No que diz respeito ao conhecimento em geral veremos como diversas funções cognitivas são auxiliares como a sensação imaginação e o discurso Reconstruindo assim a dialética apresentada em alguns dos diálogos de Platão lograremos as condições necessárias para compreender o assunto da República tema do nosso próximo capítulo 2ª Lição a conveniência do discurso Se quiséssemos reconstruir o sistema platônico completo certamente teríamos que nos deter em todos seus escritos Nosso tema não é a teoria platônica do discurso mas nos servir do discurso de Platão como entrada para a filosofia Por isso nos utilizaremos deste autor no qual originalmente a teoria do discurso em geral e o seu próprio discurso particular estão bem articulados Entre as obras de Platão a República possui o privilégio de introduzir diversos assuntos em torno de um problema comum Será preciso eleger ao longo do texto Fernando Maurício da Silva 28 os critérios e o método da sua composição Tudo isso está escrito na obra porém não é o tema dela A questão geral da obra é o que é a justiça em sentido político a justiça na cidade e ético a justiça no homem Assim já temos uma questão para sua leitura por que as coisas se sucedem assim no pensamento platônico O que é necessário para pensar com Platão esta questão Mencionamos o familiar enunciado de Platão sobre a natureza do discurso lógos Todo discurso deve ser constituído como um ser vivo Ter um corpo próprio de modo a não ser nem sem cabeça nem sem pés mas a ter um meio e extremidades que sejam escritos de maneira a serem convenientes entre si e o todo4 Precisamos devolver este princípio ao texto platônico Em primeiro lugar falase do lógos como um todo e não das partes que o compõe Certamente os textos de Platão levam em consideração cada parte de um discurso porém segundo ele isso somente pode lograr resultado se já partir de um critério acerca da forma total do discurso Assim dos pés à cabeça os passos da argumentação devem respeitar o discurso como um todo de modo que princípio meio e fim sejam coerentes Como foi visto o critério de constituição do discurso é a conveniência entre as partes e o todo Conforme as passagens da República que tratam do discurso Livros VI e VII a conveniência ou constituição justa de cada parte dentro do todo significa que hipóteses ou princípios argumentos e suposições conclusões e demonstrações devem cada qual possuir uma função e lugar próprios Contudo atentemos ao fato de que não se pode concluir que o discurso tenha por finalidade no grego télos a conclusão que essa seja o fim ou acabamento do discurso pois o ato de levar a investigação ao seu fim depende de ser suficientemente fundada em princípios e não em hipóteses O fim acabamento e a finalidade objetivo do discurso não se 4 Idem nota 2 O Discurso Filosófico como um ser vivo 29 confundem um discurso pode chegar ao fim esgotar seus argumentos possíveis sem chegar a sua finalidade a sua fundamentação em princípios puros Isto ocorre porque o discurso lógos por si mesmo não é capaz de erguer a alma até a finalidade última da alma como diria Platão embora seja seu melhor meio cujo fim somente se alcança por intuição ou intelecção ainda veremos o uso que Platão faz deste conceito 3ª Lição estrutura musical do discurso filosófico Poderíamos ler todos os livros de Platão com o intuito de encontrar todas as passagens sobre certo tema mas restaria o problema de como ligálos convenientemente Onde Platão teria explicitado esta ligação conveniente A resposta é em todos os seus diálogos embora não tenha fornecido um sistema fechado em diálogo algum Por exemplo consideremos o modo como Platão inicia o diálogo República Sócrates vai ao Pireu com Glauco e na volta é abordado por Polemarco que dizendolhe estar em maior número que Sócrates forçao a permanecer e conversar Qualquer leitor se perguntaria diante disto Tendo Platão um tema e um objetivo com a obra por que não vai direto ao assunto O leitor que assim questiona não é um leitor desatento ao contrário é capaz de notar que o assunto está propositalmente se demorando Entretanto este leitor é preconceituoso além de apressado Ele acredita que esta demora é inconveniente e sem função dentro da obra Eis alguém impedido de ler por um preconceito o préjuízo de que uma discussão deve partir de um assunto previamente explícito Ao fim daquela passagem introdutória Sócrates questiona o apelo de Polemarco à força Porventura seríeis Fernando Maurício da Silva 30 capazes de nos persuadir se nos recusarmos a ouvirvos5 O que Platão está fazendo é opondo persuasão e apelo força o que será fio condutor para todo livro Logo depois se inicia a investigação acerca da justiça seguida pela discussão sobre a cidade sobre a educação a lei a filosofia o conhecimento etc O que todos estes temas têm em comum São opostos à força e a autoridade Talvez por isso a República tenha começado aludindo ao uso apelativo da força O político e o orador quando apelam à força infundada na verdade estarão sem razão Ainda que seja difícil dizer o que é a justiça ela se anula quando tirânica pois a injustiça é força sem poder de mandato Por um lado o método filosófico pode encaminhar alguém em uma discussão mas jamais pode enfiar o conhecimento à força dentro da alma Por outro lado este método consiste justamente em forçar a alma na direção da luz do conhecimento condição para libertarse da ignorância6 A República iniciase colocando um problema ainda não elaborado O que falta a este início é a colocação efetiva do objeto da investigação Parecenos que este ainda está sendo preparado E é verdade que Platão se demora algumas páginas nesta preparação como um músico que escreve um prelúdio ou um poeta que tece uma introdução Poderíamos esclarecer que Platão está apenas iniciando a obra de forma literária com a pretensão de preparar sua situação para o leitor Porém o leitor também precisa recordar que tais indagações não passam despercebidas para o autor de um texto Isto é esclarecido por Platão em outro diálogo o Político Ainda que as discussões tenham um assunto sobre o qual tratar isso não é feito por interesse no problema dado mas para tornálo 5República 327 O leitor poderá consultar as diversas passagens nos diálogos de Platão que a seguir ordenaremos para uma melhor compreensão dos conceitos explicitados ao longo destas Lições tendo em vista que as exposições que se seguem farão referências cruzadas aos diversos escritos de Platão 6República I 351 a III 412 IV 440 VI 509 VII 516 O Discurso Filosófico como um ser vivo 31 mais dialético em relação a todos os assuntos possíveis7 Assim podemos perceber que o estilo de Platão é composto para respeitar certo critério A finalidade do discurso filosófico não seria ensinar algo sobre certo problema mas preparálo na direção de levantaremse todas as suas dificuldades possíveis seus prós e contras suas teses e antíteses distinguíveis O discurso filosófico não tem por finalidade informar sobre alguma coisa mas formar o conhecimento O que motiva Platão a philia amizade que dirige sua sophia sabedoria não é a objetividade do discurso mas a possibilidade discursiva Os diálogos de Platão poderiam nos parecer a primeira vista pouco objetivos por abrirem muitas questões e possibilidades de respondêlas Esta é a impressão mais comum correta inicialmente pois percebe o caráter pouco analítico dos textos de Platão Mas precisamos compreender isto melhor O termo analítico deriva do grego analyein soltar afrouxar composto por ana através mais lysis afrouxamento Por isso chamamos a recordação de registros periódicos ou soltos de anais assim como ano designa certo período de tempo relativo aos eventos festivos ordenados em um calendário Porém o método de Platão não é analítico mas dialético do grego dialektike arte de discussão relativo ao latim dialogus do grego dialogos conversação a partir do verbo dialogesthai falar conversar formado por legein falar Do mesmo modo como Platão distinguirá informação e formação também possui um modo de relacionar aquilo que posteriormente será chamado de analítico e dialético A filosofia dialética no sentido utilizado por Platão fornece um texto bem formado ainda que nem sempre seu intuito seja fechar todos os problemas levantados Inversamente um texto analítico compõese de notas periódicas a formarem um todo fechado mas não necessariamente significa atingir a finalidade da filosofia Por exemplo o jornal é ainda que 7República 285 Fernando Maurício da Silva 32 informal um escrito analítico termo oriundo da expressão francesa papier journal texto escrito a cada dia de papier matéria escrita e jornal derivado do Italiano giorno dia por sua vez oriundo do latim diurnum diário Um jornal é a inscrição diária do latim dies dia através Portanto o jornal é essencialmente informação jamais formação pois essa consiste nos escritos que obedecem alguma lei de conveniência entre suas partes o que é impossível em um diário Apesar dos diálogos de Platão serem escritos públicos não são jornalísticos nem analíticos pois o escrito dialético obedece não as leis do discurso que organizam ditos periódicos mas as leis da dianóia O grego dia significa neste caso através remetendo ao processo de divisão do noein intelecção pensamento do substantivo nous inteligência termo que dará origem a nota nó neuro Assim no sentido ordinário com que hoje usamos o termo se a analítica ordena informações através de notas diárias a dialética ordena as articulações ou nós dos próprios dias ou temas assim como o geômetra se guia pelos nós vértices das figuras geométricas Este é um bom modo de vislumbrar em que sentido a filosofia de Platão é dialética não tanto os passos dos argumentos está em questão mas a justificação com que se passa de um ponto para outro em tais articulações Podemos apresentar esta característica do método de Platão a partir de uma conhecida passagem quanto à solução de um problema apresentado encontrála de maneira mais fácil e pronta possível deve ser apenas uma preocupação secundária e não uma finalidade primordial caso demos crédito à razão que aconselha a preferir e colocar em primeiro lugar o método que prescreve a divisão por espécies8 8Político 286 d6 O Discurso Filosófico como um ser vivo 33 Platão em geral apresenta uma questão inicial escuta a resposta de seus interlocutores executa um escrutínio dessas respostas e quando necessário repete este método até que estes interlocutores estejam prontos para reconhecer Ideias Essas últimas são a boa resposta à pergunta socrática o que é isto pois sua expressão lógica é a definição O trecho do Político citado explicita que o método da divisão é rigoroso e sua resposta satisfatória mas por não ser fácil de ser alcançada é preciso também aceitar a impossibilidade de uma resposta rápida e pronta O discurso de Platão é filosófico e não científico O que inicia o discurso nunca é um objeto mas um problema pois os objetos sempre serão tributários de uma questão inicial Claro que muitas vezes o que se apresenta primeiro na conversação é um objeto por exemplo a justiça mas o primeiro passo da discussão será desmontar este objeto na forma de questões Na filosofia assim entendida não é possível definir um objeto sem antes depararse com os problemas que a ele levarão Mas o que significa questionar Qual a função de uma questão na obra de Platão O que é uma questão dialética Dissemos que a questão o que é a justiça é a questão geral da República Contudo o método platônico não pode partir de uma questão deste tipo Antes será necessário fazer esta questão aparecer no debate Para tanto Platão começa seus diálogos propondo uma questão retórica inicial por exemplo a virtude pode ser ensinada ou quantas são as virtudes passando para uma questão definicional geral o que é a virtude até chegar a uma questão principial final o que é o bem ao qual todas as virtudes se referem Além disso o método filosófico desenvolve o problema e não o objeto O critério lógico de divisão por espécies é aplicado ao desdobramento da questão diferentemente da atitude de dividir um objeto sem antes questionálo Platão está advertindo aos leitores que para lêlo adequadamente é preciso ser sensível a um determinado Fernando Maurício da Silva 34 problema Os objetos da filosofia só se tornam visíveis mediante um problema que força a vista para eles Os objetos filosóficos são primeiramente como uma parte do corpo que nunca se sentiu até doer em seu portador é necessária uma contraposição para conhecerlhe a existência 4ª Lição a demora da filosofia Entendemos porque os diálogos de Platão algumas vezes não vão direto ao assunto ou muitas vezes requerem escrutínio da opinião das personagens Aqui também ainda não estamos indo direto ao assunto Mas como veremos esta demora tem razão de ser Em todo caso porque tanta demora para mostrar o problema em questão Obedecendo também aquela razão metodológica ainda que um discurso seja muito longo devese permanecer a prosseguir se isto tornar mais hábil aquele que ouve9 Por um lado por que não dizer logo em lugar de fazer tantos rodeios e um conjunto de distinções inúteis10 por outro lado por que afinal falas tanto sobre isso e de tantas maneiras11 Observamos que Platão se colocou a questão da demora de muitos modos e em diversos escritos O discurso não tem somente sua harmonia conveniência das partes no todo mas seu ritmo relativo à escuta do interlocutor Platão chega a comparar a dialética com os momentos musicais ao afirmar que as ciências são prelúdios às árias do discurso dialético problemático Ele discute como este tempo do discurso se realiza e quais são seus momentos Por isso Platão se demora é preciso colocar o problema no tempo certo muitas vezes respeitando o ritmo do interlocutor As diversas distinções mencionadas no Político são certamente inúteis quanto ao 9Político 286e4 10Político 283b 11Protágoras 354e O Discurso Filosófico como um ser vivo 35 objeto mas centrais quanto ao problema cujo método de esclarecimento é justamente considerálo de todas as maneiras ou segundo todos os critérios possíveis A demora prepara o tempo de um problema Um discurso é problemático quando é tecido na consideração das possibilidades pertinentes a um objeto diferentemente do discurso assertórico ou necessário Estes são os três tipos de discursos embora Platão não utilizasse estes termos e é para o discurso problemático que se requer a demora dialética Esta demora é tanto um prelúdio quanto uma introdução ou melhor a iniciação em um tema filosófico Ainda que Platão conceba ideias puras e neste sentido necessárias sem o que não poderia falar em verdade essa nunca é o resultado de uma pesquisa do objeto mas aquilo que se mostra perante todas as possibilidades de ser de alguma coisa Quando algo chega a mostrar entre todas as suas possibilidades uma que consiste em sua própria possibilidade de mostrarse de ser dito ou intuído Platão nos fala da verdade O discurso problemático tem por função encontrar a conveniência das posições discursivas possíveis Neste sentido quando elogiamos ou censuramos a brevidade ou extensão de um discurso seja qual for o assunto é necessário julgar as extensões não umas em relações às outras mas conforme a arte de medir isto é em relação à conveniência12 O critério do discurso problemático não é a relação mútua entre suas partes mas um critério absoluto a conveniência o fato de que os entes não são no mesmo sentido em cada uma de suas possibilidades Assim a estrutura musical do discurso filosófico poderia ser dividida em três aspectos 1 Preparação do problema 2 Secundariedade do objeto 3 Demora do discurso13 12Político 286c 13 Advertimos que este tipo de divisão assim como outras que adotaremos ao longo de nossa exposição não foram apresentadas sistematicamente pelo próprio Platão Fernando Maurício da Silva 36 Dizer que esta estrutura é musical não alude apenas à passagem do Livro VII da República mas antes ao fato de que música entre os gregos designava toda forma de arte sonora incluindo o canto a literatura a poética e toda forma de letras que guardavam seu caráter harmônico conforme o Livro III da República A forma literária platônica é mais um caso apesar de seu estilo revolucionário Ainda teremos a oportunidade de discutir como Platão explicita este caráter musical do discurso filosófico 5ª Lição a medicina da alma para a patologia das crenças imagéticas Os três aspectos abordados na Lição anterior não esgotam o processo são apenas os mais imediatos para a leitura comum isto é apressada Este desdobramento dialético do discurso deverá ser considerado mais detidamente se quisermos avançar na compreensão destes Estádios14 Assim a República começa pela exigência de persuasão mas a passagem do Livro V ao VI é caracterizada por uma mudança de direção do discurso capaz de produzir um despertar do interlocutor para o fundamento do problema inicial No Livro VII dáse nova modificação a libertação da alma pelo conhecimento Portanto a demora filosófica é a preparação de uma mudança mas devem ser entendidas como um recorte metodológico possível orientado pelas comparação do vocabulário que Platão apresenta em diversos de seus diálogos Quando julgarmos necessário apresentaremos comentários sobre o uso técnicos destes termos Nos demais casos estes devem ser apreciados com valor didático em termos de reconstrução dos escritos de Platão 14 Conforme veremos a seguir Estádio é a divisão do espaço em regiões diferentemente de Estágio divisão do tempo em períodos Contudo conforme ainda discutiremos o termo pode ser aplicado aos textos de Platão no sentido amplo de período isto é como unidade de medida tanto espacial quanto temporal Estádio exprime o sentido modal ou problemático dos momentos dialéticos O Discurso Filosófico como um ser vivo 37 de direção da alma quanto ao conhecimento A persuasão o despertar e a libertação são os três Estádios que formam a estrutura geral da investigação dialética Podemos visualizar estes Estádios justamente nos momentos críticos do discurso quando é interrompido por alguma razão Tais interrupções se realizam no texto por conta do desenvolvimento do método mas são fundadas nas condições da alma para o conhecer No Crátilo15 Platão afirma que a dialética consiste em uma transformação de valores da vida humana comum Esta atitude parece uma zombaria em geral fundada na indisposição comum de avançar para além da reflexão imagética Isto significa que o método dialético sempre necessita começar preparando o interlocutor para uma mudança passar de uma compreensão imagética das coisas para outra forma de conhecimento Nos diálogos de Platão esta dificuldade se manifesta ao modo de protestos sejam os dos filisteus como no Teeteto 155 e os dos filhos da terra como no Sofista 248 c ou mesmo os dos homens de boa vontade por ainda provocar a perda da fruição sensória fundada na crença da realidade sensível Cada um destes tipos de interlocutores protesta a favor da fruição sensível origem do discurso de fundamento imagético A imaginação origina se nas sensações e é o amor às sensações que dá origem aos protestos daqueles que não querem mudar suas formas de compreender o mundo Portanto o início dialético problemático e demorado dos diálogos de Platão devese a necessidade de romper a crença imaginária no mundo sensível e seu prazer mutável É neste sentido que a dialética deve ser capaz de coagir tendo caráter persuasivo na direção de um despertar16 A dialética começa não na imaginação ou na imagem mas nos seus problemas Em geral Platão chama de sofística a arte de persuadir em favor das sensações ou da imaginação A 15Crátilo 439 ab 16República515 Fernando Maurício da Silva 38 sofística pretensão de saber distinguese da filosofia amor à sabedoria por manterse limitada à sua origem ao interesse político e financeiro e à crença empírica para satisfazer à paixão sensórioimagético A dialética tem por móbil outro páthos afecção afetação a admiração A admiração é o afeto que dá origem à persuasão dialética Existem quatro tipos de interlocutores nos Diálogos de Platão e três deles podem fazer esta experiência 1 Há interlocutores como Íon Eutífron e Hípias que não são capazes de reconhecer acerca de uma mesma coisa dois elementos que se contradizem por consideraremnos separadamente e nunca em conjunto Ora este primeiro caso não pode ser persuadido pois não adentra no mundo do lógos Porém nos ensina que a entrada nos estádios do conhecimento é necessária para chegarse ao despertar da essência esta em última instância não acessível sequer à linguagem Voltaremos a este ponto posteriormente 2 Diferentemente há os moralistas aqueles que são capazes de ver a contradição porém tememna como é caso claro do diálogo Filebo17 Estes mudam de posição freqüentemente ou recusamse em reconhecer verdades evidentes18 para não contradizeremse consigo mesmos19 Veremos a seguir a importância da contradição 3 Porém conforme se pode observar no Teeteto 166b mesmo um sofista no caso Protágoras reconhece o princípio de nãocontradição de onde a persuasão se torna possível de início marcando uma diferença com a adesão comum ao mundo sensível que este não é coerente e apresenta contradições que abalam o culto às imagens Este princípio é o pivô que define a persuasão e provoca a admiração consigo mesmo sobre o qual gira a mudança de perspectiva do Livro VI da República 17República 14a 18República 345cGórgias 499c 19República 348eGórgias 495a O Discurso Filosófico como um ser vivo 39 4 Entretanto há os homens de boa vontade quanto à razão aqueles que não discutem nem consigo nem com outros para ter razão a todo preço Na República 523 d67 esse tipo humano é aquele que não se inquieta com a imagem de um dedo que nunca parece ser outra coisa além de um dedo por exemplo ao comparar a pintura ou a escultura de um dedo com a aparência de um dedo real ou comparar o dedo médio e anular e não se perguntar por que ambos são chamados de dedo apesar das diferenças mantendo sua identidade sensível sem contradição homem que também jamais vê uma imagem como imagem distinta do real conferindolhe credibilidade As sensações imagens e realidades muitas vezes se contradizem entre si e por isso merecem ser cuidadosamente distinguidas As sensações são a fonte mais comum e enganosa de nossas crenças Mas a classificação dos tipos de interlocutores acima mencionados abala o culto à sensação O critério está na constatação da contradição ocorrente nas qualidades das coisas O exemplo que a República nos oferece para ler e eleger este critério é o do dedo Os objetos que não convidam o espírito à reflexão são todos aqueles que não conduzem simultaneamente às sensações contrárias os que conduzem colocoos entre os que convidam à reflexão sempre que a sensação quer venha de perto quer de longe não põe em evidência se se trata de um objeto se do seu contrário Compreenderás mais claramente o que digo da seguinte maneira Afirmamos que estão aqui três dedos o mínimo o indicador e o médio Imagina que estou a referirme a eles como se fossem vistos de perto Faz então as seguintes observações sobre eles Cada um deles parece igualmente um dedo e sob este aspecto não faz diferença alguma que seja visto no meio ou na extremidade que seja branco ou preto grosso ou fino e Fernando Maurício da Silva 40 todas as outras distinções deste gênero É que em todos estes casos a alma da maior parte das pessoas não é forçada a perguntar ao entendimento que coisa é um dedo porquanto em nenhuma ocasião a vista lhe indicou ao mesmo tempo que um dedo fosse algo de diferente de um dedo Portanto é natural que uma sensação como esta não convide o espírito à reflexão nem o desperte20 Todos constatamos a contradições nas sensações contrárias mas é necessário passar para a percepção das b contradições em nossas crenças ou entre crenças contrárias mais ainda c contradições entre discursos ou em um mesmo discurso e por fim d contradições em princípios e conceitos formais Agora deve se tornar claro como a contradição é o passo inicial que a preparação e a demora filosófica estavam buscando A origem da experiência filosófica é a experiência da contradição patologicamente traduzida como admiração ou amor com a própria crença cujo rompimento tem por efeito psicológico diminuir a força apelativa das imagens imprimidas na cera do imaginário A gênese da contradição é o fato do mundo sensível ser mutável devir não permanecer sempre o mesmo e comportar nos seus objetos a alteração dos seus estados Um mesmo dedo é pequeno na criança e maior no adulto A impermanência do estado do ser empírico é causa do espanto ou admiração àquele que percebe credulamente tal mundo A admiração é a verdadeira característica do filósofo Não tem outra origem a filosofia Ao que parece não foi mal genealogista quem disse que Íris era filha de Taumante21 Esta afecção produzida na alma pela contradição mostrada na dialética das imagens de origem empírica é o phármakon poção medicamento antídoto ao estado patológico de onde a metáfora platônica da filosofia como medicina da alma 20República 523525 21Teeteto155 d O Discurso Filosófico como um ser vivo 41 Até aqui vimos como e por quais razões a filosofia precisa de demora com certo ritmo para a colocação de seus problemas e enfim como deste modo chegase à admiração isto é a percepção de contradições nas sensações e imagens que formamos das coisas A seguir sempre acompanhando Platão aprofundaremos tais elementos Para isso nosso próximo passo consistirá em compreender o que o filósofo entende por essência 6ª Lição prelúdio à essência do objeto desde a essência das qualidades Demoremonos mais com Platão no exemplo do dedo que deverá servir de modelo para os demais exemplos da República Antes disso contudo convém explicitar provisoriamente o valor metodológico das imagens para a dialética de Platão 1 Os graus de valores das coisas visíveis Podemos considerar três aspectos Em primeiro lugar o exemplo do dedo por ser empírico permitirá verificar contradições entre as diversas qualidades dos dedos Em segundo lugar entretanto Platão utiliza em outros contextos imagens psíquicas ou estéticas como a memória ou a pintura de um cavalo mas estas imagens não são menos empíricas fenomênicas ainda que mais abstratas Em terceiro lugar muitos diálogos de Platão além da República fornecerão imagens ainda mais abstratas retiradas i de mitos ii da ciência ou iii do intelecto puro Na República como veremos ao longo de nossas Lições encontraremos o mito da caverna o mito do anel de Gides o mito do nascimento humano a partir da terra o mito de Ér e o mito do Hades Também encontraremos imagens retiradas da ciência como Fernando Maurício da Silva 42 hipóteses na astronomia figuras geométricas etc Encontraremos também imagens abstratas de indivíduos ou classes como nos termos gênero e espécie ou ainda entidade conjunto totalidade etc Vemos assim como os graus de abstração aumentam progressivamente mas nem por isso deixamos de estar diante de imagens modelos figuras ou formas mais ou menos abstratas Indo da imagem à ideia sempre estaremos diante de coisas visáveis ainda que nem sempre visíveis Para que possamos compreender como o valor de uma imagem modificase através de uma escala crescente chamaremos de Imagem Menor eídolon aquela cujas qualidades permitem exibir contradições coisas físicas figuras artísticas imagens mentais etc chamaremos Imagem Maior eidos aquelas boas imagens modelos que permitem ao método dialético visar um objeto puro ou livre de imagens mitos definições geométricas etc e chamaremos Ideia ou Forma idea aquele tipo de objeto visável sem conter qualquer elemento visível ou imagem Contudo Platão faz um uso complexo do termo eidos e idea que também podem significar imagem em alguns contextos ora para designar algum tipo de imagem maior ora para designar a definição ou concepção de algo no intelecto Por esta razão caso se queira seguir o uso que Platão faz em geral destes termos será aceitável entender por a eidos a Imagem Maior mas muitas vezes a Ideia ou Forma isto é a apreensão de uma imagem maior ou de uma intelecção pura uma definição uma essência por b idea também traduzível por Ideia ou Forma mas para além de toda imagem a intelecção de uma ideia purificada de todo campo imagético e sensível e por c eídolon eikóna etc a imagem figura e modelo nos diversos modos e graus de apreensão imagéticos empíricos ou imaginários Esta solução terá valor tão somente didático ou geral Como o próprio Platão nos dirá na República tudo se passa como se as imagens empíricas estivessem no extremo de O Discurso Filosófico como um ser vivo 43 uma linha e as Formas puras no outro extremo estando no meio uma variedade de graus imagéticos as imagens menores e as imagens maiores que poderão servir de estratégia dialética Passaremos a estudar como isto ocorre 2 O valor das qualidades imagéticas Voltemos ao exemplo do dedo uma imagem sensória e portanto imagem menor Ficou dito que a imagem do dedo nos permitirá perceber contradições em suas qualidades acerca do que poderemos ficar mais ou menos admirados Compreenderemos melhor isto considerando tanto a República quanto o Teeteto A admiração é provocada por um processo dialético sobre as imagens que formam e expressam a crença do interlocutor22 Toda imagem é de uma qualidade já que se forma na alma desde as sensações23 As qualidades de uma imagem são tais como cor textura tamanho peso aparência entre outros Deste modo o dedo terá qualidades como tamanho forma textura cor etc Mas como sabemos que as coisas possuem estas qualidades Sabemos disso através dos nossos órgãos especializados nas sensações Conforme Platão estas sensações deverão admitir quatro aspectos 1 Um órgão do sentido especializado 2 Sua função correspondente 3 Sua qualidade sensível própria 4 E sua causa específica 22Teeteto 1846 23Eutífron 6d11 Mênon 72c7 Fernando Maurício da Silva 44 Por exemplo 1 para o órgão dos olhos 2 corresponde à função ou finalidade da visão 3 que capta as qualidades de claro ou escuro nas cores 4 cuja causa é a luz quando atinge estes órgãos especializados em sentir suas qualidades próprias Assim teremos ÓRGÃO FUNÇÃO SENSAÇÃO QUALIDADES CAUSA Olhos Visão Cores Claro escuro etc Luz Ouvidos Audição Sons Agudos graves etc Movimento do ar Narinas Olfato Cheiros Fétido agradável etc Gazes Pele Tato Textura e temperatura Liso ou rugoso quente ou frio Matéria em geral Papilas Gustativas Gosto Sabor Doce salgado etc Matéria em geral Deste modo a qualidade das coisas ou conteúdo sensível é sempre relativa a um órgão sensório e sua função é sempre efeito de alguma qualidade da matéria A partir disso Platão pôde explicitar algumas coisas interessantes sobre as sensações 1 Um órgão está ligado a uma sensação de forma unilateral Os olhos enxergam mas nunca poderão ouvir assim como os ouvidos ouvem e nunca poderão enxergar Se alguém nasce cego jamais poderá entender o que é uma cor pois a cor somente é conhecida mediante a visão Se não há visão então não há cores se não há audição então não há sons etc Isto não significa que o cego não possa entender o que é o claro e escuro porém não pode sentir cores claras e escuras Entender não é o mesmo que sentir Porém se esta pessoa realiza uma cirurgia bem sucedida e volta a enxergar irá nos relatar que precisará de algumas semanas até aprender a utilizar os olhos do mesmo modo quando nós vestimos um óculo novo e estranhamos a visão nos primeiros dias O Discurso Filosófico como um ser vivo 45 2 Além disso Platão também compreendeu que as sensações podem nos enganar já que dependem de órgãos físicos e da qualidade das coisas físicas Uma pessoa pode estar com calor no mesmo ambiente em que outra sente frio De longe os objetos parecem pequenos e de perto parecem grandes Portanto as sensações possuem um problema a aparência Daí surgiu o famoso proverbio as aparências enganam Isto ocorre por dois motivos i devido ao isolamento das qualidades sensíveis e ii devido a sensação do movimento e repouso Por que isto ocorre Primeiro porque a aparência nada mais é que as qualidades sensíveis das coisas mas as coisas mudam o tempo todo e os nossos órgãos dos sentidos também mudam as vezes estão mais longe outras vezes mais perto há momentos em que estamos mais atentos noutros cansados saudáveis ou doentes etc Segundo porque a medida das coisas tamanho e o movimento ou repouso não podem ser diretamente sentidos pois não são qualidades mas quantidades e as sensações não captam quantidades Quem ouve música ouve sons mas ninguém ouve o movimento dos sons pois isto apenas entendemos e não sentimos Por isso o conhecimento nos diz Platão não pode se limitar às sensações e suas qualidades mas necessitase investigar as quantidades ou seja medidas do espaço e do tempo grandezas movimento e repouso etc Voltaremos ao valor da ciência do cálculo depois Por enquanto nos basta entender que são as qualidades sensíveis que por poderem enganar também permitem a admiração Esta teoria do conhecimento exposta no Teeteto encontra paralelo na República 523b1 quando se questiona se o conhecimento produzido pelas sensações é adequado íkanos A adequação entre a alma e o objeto necessita respeitar um princípio É evidente que o mesmo sujeito não poderá ao mesmo tempo fazer e sofrer coisas contrárias no Fernando Maurício da Silva 46 mesmo sentido e em relação à mesma coisa24 O critério diz respeito tanto ao mesmo quanto em relação ao mesmo Mas esta formulação platônica do principio de não contradição vale tanto para as sensações quanto para o discurso orientando o caminho dialético mas não é suficiente para a apreensão de Ideias idea Seja como for a contradição percebida na não adequação é o que permite a admiração na alma Entrementes o antes e o depois à admiração se caracterizam pela seguinte diferença enquanto as imagens e com elas o mundo sensível dão as qualidades à alma esta última busca a essência Como veremos corpo e alma se relacionam mas também se diferem de forma muito importante E o que diferencia qualidade e essência é o fato da contradição oposição e a impermanência participarem da primeira e jamais da segunda Conforme o exemplo da República o mesmo dedo pode parecer pequeno e grande fino e grosso etc As sensações devido as suas diversas qualidades podem enganar25 e por esta razão se questionou se sensação e conhecimento são idênticos26 É justamente quando qualidades opostas aparecem junto a uma mesma coisa que surge a pergunta o que é a grandeza ou o que é a pequenez Essas perguntas ainda não formam propriamente a questão pela essência mas prenunciam a pergunta o que é um dedo É a pergunta o que é isto que sempre deve ser preparada demoradamente e iniciar toda e qualquer investigação Aparentemente não há a necessidade de perguntarmos o que é um dedo pelo fato dos sentidos o ensinarem suficientemente Entretanto no mesmo dedo é possível advir a experiência da admiração pela contradição qualitativa ou porque um dedo é tanto fino quanto pequeno 24República 436 b910 25Teeteto 524c4 26Teeteto 164b O Discurso Filosófico como um ser vivo 47 ou porque pode parecer grande em relação a um e pequeno em relação a outro Posterior a este estádio qualitativo será o estádio essencial no qual a constância do objeto dedo na sensibilidade pode mostrarse como distinta da sua constância na essência A essência é justamente o nome para o fato de certa propriedade de algo ser absolutamente constante ou seja não sofrer alterações E objeto significa que um ente pode ser conhecido em sua entidade ou individualidade seja empírica ou teórica A característica dos objetos empíricos é modificaremse uns mais rapidamente e outros mais lentamente segundo o movimento e o repouso ao qual todos participam por natureza Mas a essência de um objeto será aquilo que nele permanece inalterado Isto se pode compreender observando que o conhecimento científico do médico sobre o dedo é diferente do conhecimento experimental comum o dedo para a ciência médica é o nome de algo constante em todos os dedos individuais O dedo como coisa somente tem função indicativa à essência não função enunciativa pois corresponde à imagem de algumas qualidades dedo pequeno grande etc e não a um modelo o ser do dedo tal e qual desde onde alguém poderia perceber um dedo independentemente das comparações com os outros A solução comum o define como imagem de uma forma nãohomônima por ser um caso no qual as percepções jamais podem dar a essência Contudo as percepções também não conduzem às qualidades e as qualidades se dão contraditórias27 isto é os dedos individuais existentes no mundo apresentam qualidade estranhas quando bem analisados e o conhecimento não pode estar baseado nisto Com o testemunho contraditório da percepção grandeza e pequenez espessura e delgadeza peso e leveza 27Carta VII Fernando Maurício da Silva 48 surge a exigência de investigação da essência das qualidades Uma coisa são as qualidades do objeto percebido outra são as qualidades da percepção outra ainda é a investigação sobre a essência do objeto independentemente da percepção e do percebido Não importa primeiro a percepção a visão do dedo nem o objeto percebido o dedo visto mas a essência da coisa que não está sendo alcançada por nenhuma percepção Chegase a persuasão de que as qualidades são formas grandeza e pequenez espessura e delgadeza peso e leveza e o objeto sensível é uma imagem destas formas não da essência mesma O interlocutor de Sócrates é sempre alguém que se afeta primeiro pelas qualidades da imagem e não pela essência Assim como os sentidos não sabem distinguir as qualidades a opinião não sabe distinguir a essência Cabe ao filósofo ensinar o interlocutor a afastarse dos sentidos e aproximarse da essência isto é questionar suas próprias opiniões para buscar o conhecimento 7ª Lição função da contradição na investigação dialética Tratamos até aqui da função da demora admiração e contradição no que tange a busca da essência Mas ainda precisamos aprofundar o terceiro destes critérios A contradição e a imagem possuem função importante para explicar o início do discurso dialético A contradição percebida na imagem acarreta a admiração na psique alma e a aporia no discurso O estudo da contradição possui dois lugares nos diálogos de Platão sua relação com as imagens qualidades e percepção e sua função restrita aos princípios lógicos e o método de conhecimento o que retomaremos depois Contudo também poderíamos compreender o valor metodológico da contradição sob outra perspectiva A O Discurso Filosófico como um ser vivo 49 contradição quanto aos valores humanos virtudes e costumes ortodoxos expressam formas de amor ou escolhas de vida Quanto à psiqué a contradição aí presente é exposta através da imagem da filosofia como medicina Com efeito no Górgias 477c o ofício que Platão confere a Sócrates conforme as próprias palavras deste personagem é curar os atenienses da doença da alma pois não há nada mais pernicioso psiquicamente que não saber e crer que se sabe28 A função da crença assim como as da imagem e a da contradição às quais se vincula possui duas direções e seu lugar será assunto do livro VII da República como veremos 1 A contradição dos valores Se a filosofia é um tipo de medicina a cura é possível pelo fato da contradição poder despertar a reflexão Certamente tal contradição é comum ocorrer junto à sensibilidade e quanto às qualidades dos dedos e objetos semelhantes mas este não é o único lugar nem o mais perturbador No primeiro caso o raciocínio intervém como antídoto das sensações contraditórias sendo a alma o próprio juiz Por exemplo quando alguém se perturba com a imagem de um dedo que parece simultaneamente pequeno e grande a medição ou o cálculo se apresentam como solução29 A experiência de sensações contraditórias também pode se apresentar para a alma de mais de um homem caso em que o apelo às ciências do cálculo e da medida oferece resultado incontestável mesmo diante das impressões opostas diversas as quais cada um poderia reclamar como sua e mais própria Neste segundo caso contudo temos as contradições de valores que se dão na própria alma pois neste caso as contradições 28Sofista 229c5 29República X 602d Fernando Maurício da Silva 50 opõem opiniões e não sensações de modo que neste nível a contradição entre os juízos de valor se dão frequentemente em muitas almas e em cada uma variam pouco incitando à reflexão Vejamos sinteticamente estes três casos 1 Alguém se admira com o fato de um de seus dedos ser pequeno em relação a outro e grande em relação a um terceiro não podendo decidir se o dedo por si mesmo tem a propriedade de ser grande ou pequeno Neste caso a contradição está nas percepções diversas de uma mesma coisa sensorialmente conhecida 2 Duas pessoas podem ter percepções diversas sobre uma mesma coisa e cada uma defender que sua perspectiva é melhor que a da outra 3 Uma ou mais pessoas podem possuir valores opostos para julgar uma mesma coisa caso em que a contradição estará não na sensação do objeto ou na perspectiva de alguém mas nos valores desde os quais algo é julgado Entretanto a segunda forma de contradição é redutível a esta terceira pois as perspectivas de pessoas diferentes são valores adotados por eles Portanto podemos ver que a contradição possui dois tópos lugares contradição dos valores qualidades e grandezas de sensações e contradição de valores anímicos opiniões e ortodoxias A primeira tem origem na relação entre alma e fenômenos a segunda entre duas ou mais almas 2 Amor e valor Observemos então que os juízos acerca de nós e dos outros quanto aos pensamentos e ações se dão em termos de bem e mal belo e feio ou justo e injusto Nestes últimos a O Discurso Filosófico como um ser vivo 51 dificuldade em despertar à reflexão devese a que todos julgamos ter um bomsenso um amor próprio muito sutil um interesse de tipo refinado enquanto pretensão com nobre aparência ainda que não possamos julgar que o bomsenso seja universal de forma a tornar insuportável todo julgamento diverso e a crítica aos nossos julgamentos e atos30 No Eutífron 7 d34 Platão afirma que o amor próprio nos persuade da justiça de nossas opiniões por não haver um arbítrio universal reconhecido que ofereça decisão satisfatória Esta crença em um autobomsenso é o obstáculo fundamental à dialética situado no tópos da contradição de valores Todas as alusões à cura da alma fundamse nisso É diante da suspeita de que uma imagem é contraditória que a alma de alguém protesta em nome do amor à própria sensibilidade O amor a si mesmo serve de apoio a este protesto de uma forma ainda mais eficaz quando as contradições dizem respeito aos próprios valores Esta erologia não diz entretanto que o amor seja um mal e que o desejo deva ser negado como podemos ler na República I e II a propósito das necessidades de uma cidade e seus cidadãos fundados na amizade e na defesa contra os inimigos Na mesma direção em que Platão investiga as divisões da alma também questiona pelos tipos de desejos e os tipos humanos Estes tipos são distinguidos deste modo a O philokrématon o que ama ou busca o ganho ou satisfação b Ophilokedrés o amigo do sucesso ou glória c E o philósophos o amigo da sabedoria31 Para a alma se libertar através do remédio do conhecimento seguindo a metáfora da filosofia como medicina da alma é preciso distinguir três formas de vida 30Filebo 49a 13 31República 579e Fernando Maurício da Silva 52 philokrématon é aquele que deseja o prazer philokedrés é aquele que deseja o sucesso e philósophos é aquele que deseja o saber Somente a terceira forma de vida é libertadora da alma desejar o saber sem chegar a julgarse sabedor As duas primeiras são formas de amor a si mesmo mas uma alma que ama a si mesma sempre acredita que já sabe o que precisa nunca se libertando das próprias opiniões Somente a vida de amor ao saber filosófica afastase do amor de si mesmo Recordando a tese do Banquete amar é sempre amar outra coisa e a outra coisa mais perfeita a se amar é a sabedoria Quem ama a si mesmo possui amor sensível ama ao prazer do corpo ou as honrarias sociais e quem ama a sabedoria possui amor intelectual Estes são os três tipos de vida conforme os três tipos de amor escolha de valores que cada uma cultiva dentro de si Diante dos obstáculos que o amorsensível e o amor próprio produzem à alma desde a crença nas imagens ou do próprio senso só se pode contrapor um amor ao saber Nada mais desagradável que ouvir alguém que baseado no próprio bomsenso supõemse inteligente ou sábio sem sêlo ou alguém que sendo efetivamente inteligente em todo caso possui uma inteligência sem vigor e sem paixão ou enfim alguém cuja inteligência é serva de paixões sustentadas pelo próprio senso pessoal Quando se trata de saber se o dedo é grande ou pequeno ou se o curso do navio deve ser este ou aquele a oposição sensória provoca admiração e se resolve na ciência e na técnica Porém a oposição valorativa provoca o bomsenso Por exemplo ainda que os personagens Protágoras e Ânito tenham dificuldades de reconhecer a virtude nos homens em geral reconhecem o seu valor O valor não parece ser negável mesmo quando a virtude permanece problemática Temos o valor das sensações e o valor dos hábitos humanos virtudes e ortodoxias A leitura comum da ética platônica nos diz que a questão que este problema levanta é se O Discurso Filosófico como um ser vivo 53 a virtude pode ser ensinada32 Esta pergunta é importante mas não é tudo pois o que é estabelecido como certo é que todos pretendem possuíla e declaramse justos33 Os exemplos do dedo e da virtude possuem obstáculos diferentes o amor sensível e o amorpróprio e soluções igualmente diferentes junto à sensibilidade e junto à opinião Onde lemos esta diferença na República Ao fim do Livro V Platão aproxima o verdadeiro filósofo do verdadeiro político pois o verdadeiro político é amigo da ortodoxia o que explicaria a grandeza política de Péricles34 entre outros de modo semelhante como o filósofo não é amigo da dóxa comum o que exige esclarecer previamente o que é a opinião em distinção da ciência35 Isto é feito em vista do amorpróprio ser distinguido do amor à sabedoria Em seguida no Livro VI retomase o problema agora distinguindo o filósofo do sofista36 Então ao fim do Livro VI Platão poderá não só distinguir o processo do conhecimento comum e o científico mas também o científico e o filosófico puro 3 A opinião comum A distinção entre as duas formas de contradição permitirá distinguir também os contrapontos da filosofia o cientista o sofista o político e o poeta enquanto quatro discursos de autoridade em que uma cidade pode ser fundada discursos constituídos sobre o amorsensível e o amorpróprio e em detrimento ao amoraosaber Platão falará em uma opiniãocomum e um desejocomum Vejamos primeiramente o que distingue o filósofo do vulgo O que se deve entender por sensocomum Os gregos costumavam 32Mênon 70 a 33Críton 48b 56 34Críton 52e 35República V 473478 36República VI 491497 Fernando Maurício da Silva 54 chamar os demais povos de bárbaros termo que significava aqueles que balbuciam ao falar ou aqueles que falam uma língua precária Contudo foram os pitagóricos que substituíram este mero preconceito distinguido no interior de sua própria escola os discípulos acusmáticos o que se limitavam a ouvir as lições e os discípulos matemáticos os que eram iniciados nos mistérios Heráclito também antes de Platão já distinguira o homem que vive no lógos e o homem que vive como se estivesse dormindo aquele caracterizado pela irreflexão e inexperiência de onde criticou o espírito da grande multidão Frag 104 Somente neste momento foi possível distinguir o homem que se guia pelo lógos e o que se acredita sábio irrefletidamente a multidão Seguindo este percurso Platão tornará este problema central em sua filosofia ao distinguir entre diversos tipos de discursos em graus variados de verdade e falsidade Primeiramente observase que temos desde a infância dogmas dógmata sobre as coisas justas e belas37 no sentido de crenças discursivas termo que ainda não era entendido no sentido forte de doutrina tal como o ceticismo de Pirro iria posteriormente introduzir Além disso a crença nomíxo e a opinião dóxa são as formas comuns ou vulgares de conhecimento somado ao amor próprio e em geral guiados por aparências Portanto foi Platão quem introduziu na filosofia a distinção forte entre conhecimento criterioso e sensocomum sensus communis muito embora não tenha utilizado este ultimo termo de forma sistemática como fará Aristóteles Em Sobre a Alma CapIII Aristóteles afirmará que sensações são as qualidades elementares da matéria claro escuro doce salgado etc e na Metafísica III 2 425b26 esclarece que sensação em ato é a coincidência atual com a causa física sobre a capacidade de nosso corpo de percebêla por exemplo o branco é a sensação em ato da visão no 37República 538c O Discurso Filosófico como um ser vivo 55 momento em que estamos olhando para algo branco Porém conforme Sobre o Sono e a Vigília II 445 a 14 e Sobre a Alma III 2 a sensação em específico significa as funções dos órgãos a visão a audição o olfato etc assim como se diz em Sobre as Partes dos Animais II 10 657a 3 que a sensação em sentido específico também designa os órgãos dos sentidos Como podemos deduzir foi esta teoria da sensação que permitiu a Aristóteles afirmar em Sobre o Sono e a Vigília II 445a 17 e Sobre a Alma III 2 246b 12 que a sensação é o senso comum sensus communis aquele conhecimento comum que temos e que é capaz de captar a qualidade das coisas e as próprias sensações ainda que em Aristóteles a julgar pela Metafísica A1 a sensação enquanto grau compartilhado de conhecimento entre todos os animais seja distinta quanto à extensão Esta guinada empirista de Aristóteles permitiu filósofos estoicos como Cícero e Sêneca dizer que a filosofia é a arte de desenvolver o sensus communis o conhecimento comum o costume ou maneira comum de viver e pensar Até que o pensador Vico afirmou definitivamente em 1744 que o sensocomum referese aos juízos sem reflexão expressão do arbítrio humano incerto e equivoco por natureza em distinção da reflexão filosófica racional e metódica Esta é a origem do significado de sensocomum como crença popular não refletida Deste modo devido a todo este movimento anacrônico o leitor deverá entender que a ocorrência do termo sensocomum em Platão referese às diversas formas de conhecimento aparente sensível e imagético crença dogma suposição opinião etc popular ou profissional sofistas políticos retóricos e poetas Podese dizer que é um juízo de valor que está por trás do conhecimento vulgar Será opiniãocomum endóxa ou sensocomum todo aquele que declarar a opinião do outro inaceitável dogmaticamente dogmáta Na República o desejo comum não possui a sabedoria por objeto não se move na direção da contradição de opiniões em vista da sua solução tal Fernando Maurício da Silva 56 como vimos quanto às sensações É preciso supor ainda que com particularidades o mesmo para ambas as formas de contradição Tratase de se reconhecer para ambas a ignorância38 Por isso lemos na República 506c que se os juízos de valor entre si e em cada alma são variados então são ignorados e as opiniões são cegas exigindose uma ciência que os julgue tal como a função da ciência do cálculo 4 Dos valores das sensações qualidades sensíveis aos valores das virtudes qualidades humanas Passamos do exemplo do dedo para o da virtude Mênon e da ortodoxia política Críton isto é da contradição das sensações para a contradição entre valores o bem a verdade e o belo É necessário conhecer a essência também no caso das virtudes em si e demais valores o belo no Hípias Maior a coragem no Laques e a justiça no Primeiro Alcibíades no Eutífron e na República Do mesmo modo no Críton 48b56 quanto ao sofista e demais autoridades da cidade e no que se refere ao sensocomum podemos averiguar que as Formas eidos constituem objeto necessário de conhecimento e ainda que o conhecimento das Formas não seja necessário para viver será necessário para viver bem Enfim vemos como a discussão da República que critica o vulgo em função da autoridade literária bem como o sofista em função da autoridade política fará passar da constatação da contradição para outra etapa que desperta para as essências e Formas 38Fedro 277 O Discurso Filosófico como um ser vivo 57 8ª Lição a função da imagem para a iniciação dialética A Lição anterior nos permitiu antever como a contradição pode ocorrer em sensações imagens virtudes e ortodoxias políticas Agora estamos em condições de descrever como Platão opera uma dialética das imagens Poderemos fazer isto nos ocupando de um tipo específico de imagem a poética Platão foi poeta na juventude Por que teria abandonado sua carreira de poeta em favor da dialética A poesia nada demonstra tal como a dialética pois ambas somente persuadem Porém ao que tudo indica a dialética e somente ela persuade segundo valores universais e jamais a partir de opiniões e imagens Como isto seria possível A dialética não é mais demonstrativa que persuasiva Mas não persuade através da linguagem mas forçando a alma A isto nos referimos quando mencionamos as Árias do conhecimento os Estádios do Despertar e da Libertação A partir da segunda metade do Livro VI da República 505511 explicitase a diferença entre a imagem e demais modos de objetos do conhecimento é o início da dialética das imagens seu fim e o direcionamento às Ideias puras eidos situadas além do discurso A dialética parte das imagens revela suas contradições chega ao discurso visualizando suas limitações e almeja as essências A imagem possui uma função geral para o conhecimento mas pode ser utilizada com uma função específica na dialética Sua função geral é a imitação É neste sentido que a República critica a literatura homérica rebaixando a autoridade do mithós poético ao lógos e depois deste último às Formas ou Ideias Certamente é muito importante compreender a distinção platônica entre mito e lógos assim como entre filosofia sofistica e retórica o que discutiremos em momento oportuno Em todo caso é o Fernando Maurício da Silva 58 próprio dialético que se utilizará de imagens mitos alegorias analogias etc para fazer valer o seu discurso Portanto o mito e demais formas de imagens podem admitir funções tanto negativas quanto positivas A República distingue três funções da imagem 1 a literária falsa 2 a literária verdadeira 3 a dialética Na primeira a imagem tem função de crença na segunda pedagógica na terceira metodológica O primeiro e o terceiro casos possuem algo em comum ambos são persuasivos Porém enquanto um persuade através do poder psicológico evocativo da imagem o mithós fundada na sensação e sua forma de satisfação o outro persuade desde um princípio do lógos a contradição Mas porque ambas as formas são persuasivas Porque ambos se dão através do mesmo meio a fala que sempre permanece um tipo de imagem forte na poética e fraca na ciência em seu sentido retórico É possível viver sem dialética mas não viver bem e do mesmo modo a fala pode utilizarse de imagens para aproximarse ou para afastarse do bem pois se um orador usar sua arte injustamente não é ao seu mestre que se deve acusar e expulsar da cidade mas apenas àquele que procedeu mal e não utilizou bem a arte retórica39 Com efeito mithós e lógos são sinônimos ambos os termos gregos podem ser traduzidos por palavra Mas a experiência grega com as palavras é dupla a palavra pode atingir a alma por meio da evocação imagética caso em que se utiliza mithós ou puramente por meio do discurso lógos Para Platão o começo da filosofia coincide com o começo da autoridade do lógos numa cidade Uma 39 Górgias 460 d O Discurso Filosófico como um ser vivo 59 demonstração nunca é mais ou menos nítida acerca de um mesmo objeto Ela é sempre demonstração Ou se demonstrou ou não o discurso adquire seu valor pela completa adesão ao princípio de não contradição em sua constituição Inversamente a imagem proferida por um mito pode ser mais ou menos clara o que depende do orador e da nitidez do objeto Enquanto o mito permanece relativo à imagem e a uma pessoa o discurso é juiz de ambos Porém isso não significa que a imagem não tenha valor para o discurso A imagem é indispensável na medida em que a intuição das Ideias mais elevadas não pode ser alcançada pelo discurso Não há palavras para o que está além do lógos não se pode enunciar Ideias como a do bem O próprio nome bem é uma imagem pois sua essência não corresponde a um objeto propriamente dito Tudo o que se pode é oferecerlhe uma imagem constituída pela força persuasiva calcada puramente no discurso desde seu princípio mais fundamental o de não contradição Assim o sol e a visão são imagens que encontramos nos livros VI e VII da República talvez a melhor que podemos produzir acerca da intuição de Ideia de bem nos diz Platão Do mesmo modo a cidade modelo descrita na República é uma imagem da cidade justa com caráter metodológico e que tem por função preparar a Ideia de uma cidade justa real A imagem da cidade perfeita a do guardião como cão de raça a das classes da alma como constituídas de metais diversos etc como ainda veremos são imagens boas por estarem fundadas na demonstração discursiva Por isso devese considerar que há imagens boas e imagens não boas É preciso atentar ao fato de que Platão usa a noção de modelo para falar deste tipo de imagem mas noutros contextos para tratar da própria essência Mas sempre uma imagemmodelo imitação é algo bom quando determinada pela Forma igual a si mesma e imutável Logo o termo modelo em Platão ora designará uma boa imagem ou mito ora a própria essência Fernando Maurício da Silva 60 Avancemos mais calmamente Uma coisa é comparar os dedos entre si para decidir se um é grande ou pequeno outra é medir este dedo por si mesmo segundo a noção de grandeza estipulada em um modelo de medição Uma imagem de uma coisa por exemplo a pintura de uma mesa é imitação do objeto sensível mas inversamente um modelopuro eidos é aquilo a ser imitado para se esculpir a mesa Neste caso toda imitação que se possa produzir jamais é equivalente ao modelo40 Porém a imitação pode se dar em dois casos distintos41 1 Como Arte da Cópia por exemplo a imitação matemática que reproduz as proporções idênticas ao modelo 2 Como Arte do Simulacro por exemplo a imitação artística que reproduz não as proporções reais mas apenas aquelas que produzem beleza Ambas as imitações são imagens de algo Porém na primeira o visível pela imagem são as proporções ocorrentes em objetos comuns na segunda a imagem torna visível tão somente a superfície aparente de certo objeto Em nome do princípio de não cair em contradição a imagem pode adquirir a função de direcionar para a verdade e afastar da aparência apesar dos fortes protestos que o impulso sensível poderá provocar A aparência ou a verdade relativas à distinção entre proferir miticamente e discursivamente dão sentido diverso à imitação imagética como simulacro ou cópia Por isso as imagens podem ser ponto de partida da persuasão dialética Se de fato é possível adquirir conhecimento das coisas tanto por meio dos nomes como por elas próprias qual das duas maneiras de aprender é a mais segura e bela Partiremos das imagens para considerálas em si mesmas e ver se foram bem concebidas e ficar desse modo conhecendo a verdade que elas representam ou da própria verdade para daí passarmos à 40Crátilo 432 b 41Sofista 235d7236c4 O Discurso Filosófico como um ser vivo 61 imagem e ver se foi trabalhada de maneira adequada42 A resposta consiste em ir da verdade para a imagem Por isso em cada passo que a República executa em sua investigação Platão fornece uma nova imagem Nestes passos metodológicos as imagens são produtos do discurso e portanto já contam com o princípio de nãocontradição A própria construção dessas imagens é geralmente demorada já que precisa ser formada pela força pura do discurso Sempre é uma imagem que se forma primeiro mas a cada vez a partir da verdade ou descobrimento alétheia Vemos enfim que a imagem tem função dialética fundada na divisão dos possíveis enunciados sobre um mesmo objeto a serem escolhidos pelo princípio do lógos E que o princípio de nãocontradição i vale para sensações imagens e discursos ii mas não alcança as Ideias 9ª Lição estádios e elementos do conhecimento A República fornece exemplos sobre a função iniciativa da imagem a ser sempre posteriormente abandonada em função do seu limite quanto às essências mas seu valor metodológico é explicitado na Carta VII É com o auxílio desta que poderemos compreender os desdobramentos que os três grandes estádios tratados na República a Persuasão o Despertar e a Libertação sofrem ao longo das diversas idas e vindas que a longa investigação dialético problemática precisa realizar para tornar mais hábil no lógos aquele que ouve43 Usamos o termo Estádio não no sentido comum de campo de ginástica ou no sentido matemático de unidade de medida topográfica mas conforme o sentido antigo da língua portuguesa período ou momento portanto 42Crátilo 439a b 43Político 286 e4 Fernando Maurício da Silva 62 como unidade de medida tanto espacial quanto temporal Estádio exprime o sentido modal ou problemático dos momentos dialéticos A República no Livro VII esclarece o critério deste modo temporal do conhecimento a teoria da memória o que poderíamos aproximar da teoria da reminiscência A reminiscência ou recordação o que será explicitado na Lição 33 implica que a verdade é buscada à frente progressivamente reconhecida estado sempre num passado relativo à alma a lembrança é de algo passado mas revivêla é possível buscandoa futuramente Por isso os Estádios são momentos de parada em regiões diferentes não níveis mas estações porque por eles se deve ir e vir em movimentos de recolocação inversão e retorno44 sobre o problema pouco a pouco implicando uma elevação Do mesmo modo não são simplesmente tópos lugares já que a simples parada sobre eles é criticável Nem mesmo a chegada ao topo da montanha do conhecimento puro implica num fim ou parada pois é justamente neste lugar que se inicia o retorno à caverna e à praça pública da linguagem que lá em cima havia sido ultrapassada conforme o conhecido mito da caverna que discutiremos a seguir O fim desta ascese da alma não é o mesmo que a finalidade da filosofia pois o primeiro não é o fim último da dialética Voltemos aos Estádios da alma Um esclarecimento sobre a ordem dos Estádios cognitivos relativo à República 509511 encontrase na seguinte passagem da Carta VII Para cada ser há três elementos que nos permitem adquirir a ciência deles o quarto é a própria ciência sendo o quinto a coisa conhecida e verdadeiramente real O primeiro é o nome o segundo a definição o terceiro a imagem e o quarto a 44República I335a6 Fédon 100d6 Mênon 78d O Discurso Filosófico como um ser vivo 63 ciência Para compreender melhor vejamos um exemplo e depois apliquemolo aos demais casos há o que se chama círculo cujo nome é o que acabamos de pronunciar a seguir vem a definição composta de substantivo e verbo o que tem sempre a mesma distancia entre as extremidades e o centro em terceiro lugar temos a forma que se pode desenhar ou apagar que se fabrica no torno e pode ser destruída enquanto o circulo em si mesmo ao qual tudo isso se refere por ser de todo em tudo diferente O quarto é a ciência a inteligência a opinião verdadeira relativas a estes mesmos objetos45 É preciso agrupálos num só conjunto por não residirem nem nos sons pronunciados nem nas figuras materiais mas nas almas sendo deste modo de natureza diferente da do círculo em si mesmo e dos três modos indicados De todos estes elementos o que mais se aproxima do quinto é a inteligência por afinidade e semelhança estando os demais muito afastados46 Podemos esquematizar esta passagem da seguinte forma Estádios Elementos Lugares Exemplo I Nome Sons e figuras materiais círculo Definição O que tem sempre a mesma distancia entre as extremidades e o centro Imagem A forma que se pode desenhar ou apagar ou que se fabrica no torno e pode ser destruída 45 A doutrina platônica apresentada na Carta VII e no Teeteto difere parcialmente daquela encontrada na República enquanto nesta o conhecimento difere totalmente da opinião tanto falsa quanto verdadeira naquelas o conhecimento é também pensado em termos de opinião verdadeira 46Carta VII 342 a7d2 Fernando Maurício da Silva 64 II Ciência Alma Referemse aos três modos acima Inteligência Opinião III Objeto real O círculo em si diferencia se de todos os casos acima A inteligência é o mais próximo por semelhança A partir disto podemos acompanhar a definição de cada um dos Estádios do conhecimento 1 O nome é convencional pois nada impede de darmos o qualificativo de retas às coisas que presentemente denominamos circulares ou de circulares às que chamamos de retas pois os nomes não chegam a ficar menos fixos após a mudança de suas aplicações47 2 A definição é o que participa da instabilidade de seus componentes de modo comum 3 A imagem concreta de algo é cheia de elementos contrários ao quinto como o círculo desenhado que toca em todos os seus lados a linha reta a definição que consiste no círculo em si mesmo não contém nem muito nem pouco da natureza contrária da sua48 4 A ciência inteligência e opinião são também modos imperfeitos porque somente podem oferecer a qualidade do objeto nunca sua essência Assim como o nome e a definição se inscrevem na matéria verbal e a imagem nas figuras corporais a ciência se inscreve na alma mas todos estes modos são exteriores ao objeto pois podem descrevêlo referi lo tocálo em suma copiálos mas não substituílo49 47Carta VII 343 b14 48Carta VII 343 a69 49Carta VII 343 8c2 O Discurso Filosófico como um ser vivo 65 5 O objeto real que serve de Forma para os demais casos não é algo que se possa enunciar ou discorrer de qualquer modo Sobre ele o elemento cognitivo que mais pode aproximarse é a inteligência Portanto somente por aproximação intelectual podese tratar do objeto em si e esta modalidade de discurso é o mito como recurso de imagem que se sabe imagem Por exemplo o conhecido mito da caverna é exemplo de um mito intelectual e não imagético Estes cinco elementos constituintes dos Estádios do conhecimento não são níveis mas podem ser valorados segundo um critério hierarquizante Permaneceria uma imagem insuficiente e não um conhecimento da verdade limitarse a um conhecimento das coisas que não chegasse a responder pelo ser destas coisas Isso quer dizer que somente considerando e partindo do ser de algo cujo modo inicial significa como vimos anteriormente responder o que é isto podemos iluminar a verdade dos nossos Estádios de conhecimentos porém o conhecimento nunca se encontra além destes momentos Por isso Platão pode falar em subida da alma na direção do ser e do bem metaforizado pela imagem da luz do sol para alguém não acostumado com a luz é necessário aproximarse dela pouco a pouco a fim de evitar sofrimento aos olhos olhando inicialmente sombras depois reflexos luminosos e enfim para o próprio sol Existem quatro elementos no conhecimento mas não suficientes para atingir o ser em si mesmo por serem todos cópias possíveis do objeto A hierarquia que existe é entre o que é cópia e o que é modelo segundo a seguinte imagem conhecer a aparência de algo é ter uma cópia similar a uma sombra ou reflexo mas conhecer a verdade de algo é ter um modelo similar à fonte de luz Deste modo do ponto de vista do conhecimento os quatro elementos são todos imitações e prelúdios da alma escravizada no amor próprio e no amor sensível Inclusive as ciências listadas na primeira parte do Livro VII da República são Fernando Maurício da Silva 66 chamadas de meros prelúdios 525528 É assim que deve ficar exposto como a dialética supera não apenas a retórica e a sofística quanto ao conhecimento da verdade mas também a ciência embora quanto a primeira e a última possa admitir algum parentesco mas jamais quanto à sofística Retomemos A Carta VII 342 enuncia cinco elementos do conhecimento sendo o quinto o objeto ou o ser da coisa em si mesma Se a inteligência somente pode se aproximar dele e não igualarse é porque deste elemento não é possível exposição oral ou escrita embora dê ocasião à refutação de exposições orais ou escritas Esta ressalva é o critério que permite Platão dar ao discursodemonstrativo uma natureza própria diferente de todo outro É importante compreender que existem cópias boas as cópias das proporções do objeto mas que não se confundem com a essência a definição de algo por ele mesmo E é a consideração de que só a inteligência aproximase do quinto elemento que permitirá ligar a teoria da cópia no Sofista ao sistema do conhecimento e das ciências na República VI e VII50 e àquela passagem na Carta VII Anteriormente tratamos dos efeitos nocivos do amor próprio e do amorsensível Este tema se desdobrou nas dificuldades dos quatro discursos de autoridade criticados por Platão Este desdobramento foi feito em virtude da distinção entre opinião e conhecimento cópia e modelo e então imagem e verdade Portanto estamos discorrendo acerca das formas do lógos discursos Na medida em que a República procura mostrar que a autoridade do político do orador do poeta e do sofista não são suficientes para oferecer justiça a uma cidade esvazia inteiramente o lógos de todas as formas populares de seu uso Purificase o lógos da visão dos mortais isto é da percepção impermanente das coisas Deste modo não é a 50 Na República VII 516 Platão também inclui o hábito ao lado da imagem cuja função é paralela a da crença e do desejo O Discurso Filosófico como um ser vivo 67 alma do escritor ou orador que se refuta senão a natureza de cada um dos quatro elementos essencialmente defeituosa51 no que diz respeito à realidade do objeto em si Ninguém é autoridade nem pode simplesmente autorizar a si mesmo quando o assunto é conhecer somente a verdade por si mesma pode servir de autorização do discurso Então os elementos listados no quadro anterior são partes do discurso não da alma Platão não está formulando uma psicologia nem uma teoria do conhecimento em sentido moderno mas uma filosofia do discurso Que exista de um lado qualidades morais e como veremos de outro qualidades intelectuais exige admitir uma hierarquia quanto ao real a Ideia ou Forma que expressa o ente em seu ser Para avançarmos nesta teoria do discurso precisaremos agora considerar a existência da mencionada ascensão ao quinto elemento do conhecimento Isso corresponde à passagem do Estádio da persuasão ao do despertar Nas considerações que se seguirão deveremos lembrar do primeiro ao último Estádio que é sempre o objeto em si algo em seu ser que dá sentido à investigação filosófica Por isso para Platão de algum modo a alma já persuadida deverá poder ascender e despertar para o ser e isso se deve ao fato de que sempre o objeto puro já está previamente intuído pela alma Entrementes poderíamos perguntar se por esta razão a hierarquia mencionada seria psicológica e não ontológica isto é se os cinco elementos do conhecimento discursivo originamse mais na alma humana que na realidade das coisas mesmas Podemos averiguar que não se trata disto não há na alma qualquer faculdade função ou elemento capaz de ter acesso ao ser por si mesmo 51Carta VII 343d Fernando Maurício da Silva 68 1 As funções da sensação da imaginação e do discurso não são suficientes para isso pois as Ideias puras não são coisas que possamos enunciar ou imaginar 2 Tampouco podemos apelar à inteligência entre os elementos do conhecimento pois apesar de mais próxima a inteligência somente pode oferecer boas cópias da Ideia pura nunca substituílas Portanto a solução não pode ser psicológica toda verdade que podemos conhecer acerca de algo particular sempre será em última instância uma analogia um similar uma imagem Entretanto disto não se segue que não possamos afirmar que a verdade existe a semelhança da inteligência com o ser do objeto servirá de fundamento das analogias necessárias para se direcionar a alma à verdade Ainda que a verdade não possa ser vista diretamente a alma pode dirigir seu olhar em sua direção a partir do fato de que imagens mitos e discursos refletem a verdade Por isso Platão constrói analogias imagens alegorias ou mitos para produzir indícios da existência de Formas eidos que nem a inteligência nem o discurso podem conhecer por si mesmos Mas o uso destas analogias imagéticas lógicas e intelectuais não pode ser confundido com a essência do próprio objetopuro Ainda na Carta VII 344a Platão esclarece que entre as faculdades intelectuais necessárias para o conhecimento é a afinidade com o objeto mais importante que a memória e a facilidade de aprender Porém não temos aí a suposição de uma afinidade da alma com o círculo a virtude o belo etc ou seja nenhum catálogo da multiplicidade dos objetos A afinidade cognitiva exigida é para com o objeto em si a essência e não cada objeto Jamais podemos esquecer esta distinção no uso do termo objeto Façamos uma síntese Os discursos são muitos e de muitos modos podemos falar de algo Mas enquanto alguns discursos são falsos outros se diferenciam em graus de verdade como a ciência mais verdadeira que a opinião Estes O Discurso Filosófico como um ser vivo 69 diversos conhecimentos ocorrem porque o discurso lógos admite graus de veracidade indo das sensações e imagens até a definição das coisas diferenças de graus quanto aos modelos imagéticos que fazemos da realidade e desta saltando dialeticamente para o objeto real o que é preparado pelo conhecimento da essência do objeto Isto não significa que partimos dos objetos reais na forma de pressupostos mas como o suporte ontológico das definições que são a contrapartida epistêmica do objeto ou a expressão lógica das Formas ou Ideias Assim até aqui não fizemos mais que compreender os critérios do discurso suas limitações e processo Deveremos pouco a pouco avançar na direção dos critérios dialéticos propriamente ditos para o conhecimento do ser das coisas 10ª Lição topologia da alma Como alguém poderia conhecer alguma coisa sem ter antes um mínimo de afinidade com ela Mas seria preciso dizer que tipo de afinidade Estaríamos diante de certa experiência com o objeto ou certo conhecimento prévio acerca de objetos Muitas perguntas e problemas podemos erguer sobre algo qual a causa disto Qual a origem disto Quantas são suas unidades e em quantos tipos se divide etc Mas não obstante todas estas perguntas serem importantes para a formação de uma ciência permaneceria duvidoso se suas respostas são corretas enquanto não respondêssemos esta pergunta primeira o que é tal coisa Com efeito se não sabemos o que é uma baleia se peixe ou mamífero jamais poderemos estar certos quanto a perguntas sobre sua causa tipos etc Do mesmo modo podemos perguntar como a dialética poderia avançar sua investigação diante um interlocutor que carece de afinidade com o objeto Qualquer Fernando Maurício da Silva 70 um se perderia a cada vez entre os objetos sobre os quais salta se antes não fosse capaz de reconhecer que cada um é objeto de qualquer modo seja lá qual for seu tipo Por exemplo os gregos chamavam suas esculturas de belas assim como os egípcios os chineses os árabes etc consideravam belas as suas próprias e cada um destes não reconheciam como bela as esculturas alheias Mas observemos atentamente justamente isso não torna a ideia de belo relativa a cada cultura mas absoluta gregos chineses árabes e egípcios discordam entre si sobre qual escultura é bela mas só podiam discordar porque todos eles querem eleger a escultura bela todo possuem invariavelmente a ideia do belo Então o conceito de belo o objeto belo em si mesmo coincide em todos estes povos variando apenas a maneira como praticam as suas belas artes em particular O que muda entre culturas diversas é a arte mas não a ideia de belo Discordase no campo das coisas qual escultura é bela mas não quanto ao campo das ideias em todo caso deverá haver alguma que é bela Todos têm a ideia de belo variando apenas a sua aplicação à escultura o que não poderia ser diferente na medida em que as esculturas são apenas tentativas de se chegar ao belo imitações que concretizam um ideal buscado Assim Platão chamará de comum ou universal as ideias que tal como a de belo são invariáveis ainda que varie as artes e culturas em torno delas Não é possível para a alma demonstrar qual escultura é a realmente bela tampouco dizer o que é o belo em si porém a alma não pode recusar esta ideia O termo belo expressa antes uma ideia que uma coisa e ideias deste tipo expressam modelos comuns e não simplesmente termos gerais Além disso termos como belo bem e verdade são valores irrecusáveis e é esta característica que Platão chama Ideia idea que grafaremos com maiúscula para denotar o sentido dado por Platão Portanto surge a pergunta desde onde e como a alma conhece a Ideia de belo O Discurso Filosófico como um ser vivo 71 Somente mediante esta pergunta Platão falará em tópos e não em Estádios bem como em ascensão da alma e não em seus elementos É esta nova questão que permitirá distinguir a teoria platônica sobre o lógos ou discurso a tese dos elementos e dos estádios cognitivos e a teoria do eidos Ideias referentes ao objeto em si Há muitas coisas belas e muitas coisas boas e outras da mesma espécie que dizemos que existem e que distinguimos pela linguagem E que existe o belo em si e o bom em si e do mesmo modo relativamente a todas as coisas que então postulamos como múltiplas e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia que é única e chamamos sua essência52 Vejamos este ponto Há muitas coisas belas e muitas coisas boas e outras da mesma espécie que dizemos que existem e distinguimos pela linguagem de modo a corresponder a estas multiplicidades uma Ideia comum chamada essência na medida em que aquelas são visíveis mas não inteligíveis ao passo que as ideias são inteligíveis mas não visíveis53 É assim que surge a questão Através de quais meios são visíveis as ideias se elas não são nem corpos nem imagens nem reflexos de imagens ou sombras de coisas Tratase da aplicação metodológica da função da imagem na dialética não é possível responder esta pergunta já que as Ideias não podem ser representadas na alma sem que já não tenhamos transformado e subvertido seu caráter de modelo Toda vez que tentamos pensar em uma Ideia imediatamente representamos uma imagem desta Ideia Quando a alma traz à frente de si uma ideia o faz ou através de uma figura ou através do discurso mas em qualquer um destes casos sempre se tem uma imagem nunca a Ideia mesma Tudo o que se sabe da Ideia é por contraposição às imagens as primeiras são puras e sem os resíduos da segunda Por isso a contradição lógica ou 52República VI 507a508 53República VI 507 Fernando Maurício da Silva 72 a contradição imagética dos predicados qualitativos de uma coisa são auxiliares na investigação pois se também as essências se deixam ver por contraposição então a primeira coisa que a alma deve aprender a ver é o próprio conflito entre visões contrárias Por causa disso a dialética somente tem como saída produzir uma boa Imagem ou seja aquela feita esfregando as funções da alma desde um critério intelectual não aquela oriunda da sensibilidade Esta boa imagem terá a função metodológica não de dizer mas de indicar para a alma a direção em que se pode encontrar a Ideia pura Esta é a razão da famosa tese pedagógica encontrada na primeira parte do Livro VII da República como veremos posteriormente Para ser coerente com esta descoberta Platão não encontrou outro meio para expressar o conhecimento por Ideias senão através de uma boa imagem a da própria visão Para haver visão deve haver não apenas a vista olhos o ato de ver função sensória e o visto a coisa mas também a iluminação A visão está nos olhos e as cores vistas estão nas coisas porém é necessário acrescentar a luz como terceiro elemento da vista o que os outros sentidos não exigem Além disso a visão é o único sentido capaz de ver o próprio elemento pelo qual exerce sua função a luz é o que permite a visão e a visão é capaz de ver a própria luz que lhe é causa Por isso aquelas quatro diferenças aceitam uma circularidade estrutural incapaz de ser fundamentada no princípio de não contradição ou nas qualidades contrárias presentes nos objetos sensíveis Este argumento consiste na estratégia platônica para seu interlocutor não se perder no efeito agradável que as metáforas têm sobre a alma o importante é o que a analogia quer mostrar ou fazer intuir noésis com este sentido específico de causa A analogia proporção lógica com conteúdo empírico é um tipo de imagem que indica uma semelhança que somente pode ser compreendida quando a atenção não é dirigida tanto para as qualidades comparadas ou para os elementos lógicos do argumento por proporção O Discurso Filosófico como um ser vivo 73 mas quando a atenção se dirige para a forma comum dos objetos análogos Consideremos a construção dialética quanto à analogia da luz do sol a ideia é a causa pela qual o intelecto nous pode demonstrar os múltiplos objetos que conhece mas o intelecto é a causa posterior pelo qual a alma descobre alétheia ou mostra a si noésis a existência principial arqué das Ideias É por isso que a República na sequência passa a investigar a diferença entre hipóteses e princípios Dito de outro modo a Ideia é o principio desde o qual o intelecto pode ser causa da produção de demonstração e da intuição do seu próprio princípio as Ideias ou Formas e isto é muito diferente do procedimento da ciência que sempre parte de hipóteses O processo dialético tem por ponto final chegar ao seu começo descobrir seu próprio princípio desde o qual sempre já se moveu que é uma Forma ou Ideia e como tal uma síntese objetual não imaginável ou enunciável que permite o conhecimento objetivo múltiplo É esta distinção entre o objetual e o objetivo no lugar da distinção moderna entre o subjetivo e o objetivo que torna o platonismo um realismo das ideias Quando a alma se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo ser compreendeo conheceo e parece inteligente porém quando se fixa num objeto ao qual se mistura a escuridão a confusão aparente do que nasce e morre só sabe ter opiniões vê mal alterando o seu parecer de alto a baixo e parece já não ter inteligência Por isso conclui Platão dizendo que o que dá a verdade aos objetos cognoscíveis e dá ao sujeito que conhece este poder é a ideia do bem sendo causa do saber e da verdade54 A verdade é uma espécie de estrada através da qual tanto se vai quanto se vem Por um lado a Ideia é causa primeira da verdade ser conhecida pelo intelecto caso em que 54República Livro VI 508e Fernando Maurício da Silva 74 se abandona as imagens e os discursos por outro lado empiricamente é o intelecto a causa material do caminho até a Ideia onde não se pode prescindir nem do discurso nem das imagens mesmo porque o intelecto nunca conhece a Ideia claramente durante o percurso mas dela sempre apenas suspeita por reconhecer junto às coisas a necessidade de um princípio Resta saber como o intelecto neste lugar secundário pode chegar a saber algo daquele lugar primordial Avançaremos na próxima Lição neste assunto procurando tornar cada vez mais precisos os critérios do saber dialético acompanhando as idas e vindas da República 11ª Lição o método esfregatório e a analogia O quinto elemento do conhecimento apenas se atinge por ascensão descrita por Platão na Carta VII 347b7 em termos de passagem repentina gerada a custo no espírito ou intelecto nous não em qualquer parte da alma ou psique e por força de um jogo dialético entre as partes da alma e dos elementos do conhecimento Se não aprendermos de um jeito ou de outro esses quatro elementos jamais alcançaremos o conhecimento perfeito do quinto55 pois é a força de considerálos subindo e descendo de um para o outro que se gera com muito trabalho no espírito naturalmente capaz a ciência56 considerando ciência no sentido de finalidade última de todo conhecimento e não como um de seus elementos É na República VII que os dois usos do termo episteme ciência conhecimento se esclarecem quando Platão considera por um lado o resultado da dialética e por outro as disciplinas que lhes servem de propedêutica ambos 55Carta VII 343b7 56Carta VII 342e13 O Discurso Filosófico como um ser vivo 75 nomeados com o termo episteme Isso significa que por episteme devemos entender tanto a dialética quanto toda disciplina que serve de preparação para ela Segundo Platão só depois de esfregarmos uns nos outros compararmos nomes definições visões sensações e discutilos em colóquios amistosos em que perguntas e respostas se formulam sem o menor ressaibo de inveja é que brilha sobre cada objeto a luz da sabedoria e da inteligência sophia e nous com a tensão máxima de que forem capazes as forças humanas57 Não existe uma função na alma cuja finalidade por natureza seria ver o ser dos objetos Porém a alma pode produzir um efeito no espírito nous através do exercício dialético com todas das suas partes e formas de conhecer A dialética é neste sentido um exercício de maximização da tensão das forças humanas em dois âmbitos epistemologicamente esfregando os elementos do conhecimento entre si de modo a subir e descer de um a outro na ausência de hierarquia entre eles logicamente discursivamente as perguntas e respostas em todas as suas possibilidades apartadas de protestos por amor de si Platão utiliza o verbo esfregar tribomena quando nos fala em um método de ir examinando lado a lado e esfregando tribontes um contra o outro58 Este caráter esfregatório da dialética cujo movimento é duplo entre os elementos epistêmicos descese e sobese entre eles e os discursivos colóquio entre perguntas e respostas é um dos pilares do método platônico Este primeiro aspecto deve fazer par com um segundo que como veremos adiante se encontrará a propósito da dialética das opiniões59 Para podermos compreender estes dois pilares do método platônico relacionando a Carta VII em 343 e o Sofista em 229 precisamos saber por qual razão é no nous que o efeito daquela tensão se sucede É a função dada ao nous que permitirá 57Carta VII 344b79 58República 434e 59Sofista 229e4 Fernando Maurício da Silva 76 retornar à leitura da República a partir da Carta VII Façamos agora este percurso Vimos acima que a inteligência é o que mais se aproxima do quinto elemento por semelhança como uma revelação pelo diálogo dialético Se a essência mesma escapa ao discurso é também em certo momento de uma discussão que intervém a luz que parece interromper a ordem discursiva A ascensão que leremos na República fala de uma hierarquia mas não de um progresso A ascensão da alma é um salto um encontro repentino da alma com o ser Enquanto ser designa aquilo que permite dizer o que é uma coisa objeto significa a entidade de algo a coisa ou ente apreendido por visão direta da alma já que não há imagem possível para ele O método esfregatório possui como recurso principal a analogia a friccionar objetos deferentes entre si segundo sua proporção de conteúdo empírico ou conteúdo lógico passando da forma de suas semelhanças para o indício de alguma diferença essencial b uma analogia escrevese na forma tal é como tal razão pela qual Platão precisa fazer a dialética exercer um bom uso da analogia modo próprio da linguagem ordinária Por exemplo no Laques 194e descobrese que uma ciência se define pela espécie de seu objeto regra lógica mas a sabedoria é ciência de si mesma e das demais ciências Ora se há ciência de espécies de objetos e também uma ciência de si mesma e de todas as demais então o conceito de ciência não é inteiramente determinado pela lógica Esta contradição em termos revela que deve haver uma diferença essencial Considerando ainda outro exemplo por analogia às artes da flauta e da lira podese afirmar que a coragem é a arte de temer e esperar porém esta definição é insuficiente à coragem O Discurso Filosófico como um ser vivo 77 pois em analogia com a arte do médico somente este conhece o que temer e esperar e nem por isso é chamado de corajoso Do mesmo modo no Hípias 295e o belo é o útil ou o vantajoso mas se uma causa deve ser diferente do seu efeito assim como o pai é diferente do filho e ao mesmo tempo manter uma relação de continuidade na natureza dos dois então o belo não pode gerar um efeito empírico que pertence à outra natureza No Lísis 218d todo objeto amado é amado em vista de algo mas o bem pode ser amado em vista de algo e também em vista de si mesmo Em todos estes casos de comparações e proporções as analogias fornecidas fracassam e entretanto Platão passa para uma nova e mais forte analogia nunca diretamente para a essência Isto ocorre porque as analogias podem ser operadas no campo das sensações discursos e da inteligência Já as essências são mais difíceis de apreender 12ª Lição o método do paradigma Vimos como o método esfregatório é efetuado mediante analogias e como estas sempre se esgotam Após o fracasso das primeiras analogias devese passar à analogia superior por exemplo se tudo que se move é movido por um motor anterior ou move outra coisa a alma entretanto move a si mesma bem como possui uma visão que vê a si mesma em analogia a um olho que se vê em um espelho60 Este segundo tipo de analogia fornece não uma simples imagem por semelhança mas uma imagem que servirá como paradigma παράδειγμα termo que Platão utiliza ora como sinônimo de Ideia ιδέα em seu sentido mais fraco ora como caso comum capaz de levar a uma Ideia O real se conquista pela purificação κάθαρση katarse que como tal é estágio final da dialética 60Carminides 168e7d7 Fernando Maurício da Silva 78 Se a virtude é conhecimento então virtude também é purificação a incluir a sabedoria conhecimento puro do objeto e de si mesmo O paradigma é aquele tipo de imagem que justamente foi purificada a exemplo do seu sentido no Político61 Chamase purgação a imagem do processo de purificação Se anteriormente se falou em um método esfregatório agora a noção de um método purgativo referese à purificação por um paradigma A purificação é aquilo que se alcança quando se chega à fonte de água ou de luz e no interior deste tipo de imagem a purificação expressa a dialética como ascensão da alma mas sempre desde um paradigma Podemos observar o uso que Platão faz do termo παράδειγμαnas seguintes passagens 1 Por um lado com o auxilio de um paradigma é possível fazer um novo esforço metodológico para o entendimento dos negócios da cidade62 pois o método por paradigma não pode ser economizado em uma investigação63 por exemplo é necessário alcançar a Forma da piedade como paradigma para decidir qual homem é piedoso e qual é ímpio64 para apanhar o Sofista com as duas mãos difícil de ser definido devido a suas múltiplas aparências é necessário um paradigma embora neste caso insuficiente65 2 Por outro lado o único paradigma possível para responder o que é a alma se dá pela analogia do olho que vê a si mesmo em um espelho66 o que há de essencialmente comum entre coisas diversas é o que é preciso explicar caso em que o paradigma é ele mesmo um modelo para a definição de uma essência67 e quanto a justiça podese imaginar uma cidade 61Político 303 e 62Político 278e 63Político 277d 64Eutífron 6e 4 65Sofista 226a8 66Primeiro Alcibíades 132d23 67Eutífron 6e Menon 72c O Discurso Filosófico como um ser vivo 79 como caso paradigmático cuja forma releva não só a essência da justiça mas também o próprio agir justo68 3 Entretanto ocasionalmente Platão substitui o método do paradigma pelo método da divisão69 do esquema70 ou do esboço71 os dois últimos mais próximos do sentido das imagens inferiores assim o método do paradigma tem por finalidade produzir a divisão ou separação entre o político e seus inimigos72 ou para a mesma operação levar a eliminação de certas partes da analogia73 ou ainda para determinar de que espécie algo se trata74 enfim o sol enquanto fonte da visão é paradigma para compreender o bem e a divisão proporcional da alma também em analogia com a divisão de uma linha75 Em todos os casos mencionados uma analogia é paradigma quando consiste em visão comum de todas as analogias anteriores assim como o belo na arquitetura constitui uma simetria do todo com relação às proporções de cada parte Na República as analogias paradigmáticas serão a cidade a linha o sol e a caverna i todos são casos de divisões de partes de conteúdos diferentes ii em proporções iguais iii tal que uma das partes também serve de regra geral que harmoniza as demais partes por exemplo a justiça é uma das virtudes e ao mesmo tempo harmonia entre as virtudes o conhecimento noético é um grau extremo do conhecer mas também é o critério para julgar todos os demais Platão também oferece duas analogias para compreender a apreensão repentina do nous 68República VI 484c 501b 69República 532533 70Filebo 61a 71Político 268c 72Político 279a17 73Político 287 74Alcibíades 132b 75República VI 508509 Fernando Maurício da Silva 80 1 Por um lado lemos que o órgão visual do corpo é simultaneamente o que vê por meio da luz e funciona graças à mesma bem como o nous quanto ao ser76 2 Por outro lado a alma é simultaneamente espelho e olho da essência77 na medida em que precisa oferecer ao objeto uma superfície perfeita de receptividade e aproximarse dele com sua parte mais semelhante mais divina o nous Conforme a analogia da luz do sol os olhos do corpo somente podem ver através da luz mas também podem vêla o que não ocorre com os demais sentidos Analogamente é por meio do ser que o intelecto pode visualizar os objetos mas tal como os olhos exercitados podem pouco a pouco se voltarem para o próprio sol fonte de luz o nous intelecto espírito pode se voltar para o próprio ser por meio do método esfregatório da dialética Para tanto porém a alma terá que ser purificada até tornarse como um espelho límpido suficientemente receptivo o que dirá respeito ao segundo aspecto do método A primeira analogia diz respeito à fricção metodológica dos quatro elementos do conhecimento e a segunda à purificação dialética das opiniões que só se realiza no nível do colóquio corajoso e sem inveja Vale a máxima enunciada na República 430 b A coragem é a salvação em todas as circunstâncias da opinião reta e legítima relativamente às coisas temíveis e as que não o são Os quatro modos do conhecer inteligência entendimento opinião e suposição se desdobram livremente na discussão e provocam o brilho da inteligência e da sabedoria ou seja provocam a visão do ser e da parte mais luminosa do ser78 através de uma visão direta que revela a essência Conforme nos esclarecerá Platão isto significa que o pensamento discursivo ainda que não seja capaz de nos levar ao ser pode levar à 76República VII 511 77Primeiro Alcibíades 132d133a 78República VII518c910 O Discurso Filosófico como um ser vivo 81 intuição noésis79 A noésis intuição intelecção é o ato do nous espírito intelécto capaz de perceber o eidos Forma mas a noésis não é função psíquica assim como o nous pertence à própria physis natureza embora somente a alma e não o corpo possa deles se aproximar Para podermos ler as considerações platônicas sobre a noésis precisamos antes entender melhor como opera o método dialético em seus dois pilares sobre o nous elevando se ao princípio último passando então a vincular todas as conseqüências que dele dependem e descer assim a conclusão última80 avançando até o limite máximo da ordem do discurso 13ª Lição os lugares objetuais nos estádios da alma Passaremos à leitura da República VI 509511 com o intuito de desdobrar o caráter esfregatório do método Os argumentos desta passagem partem de uma investigação ontológica sobre a diferença entre os dois lugares em que a alma pode se encontrar quando considera os dois tipos de objetos aos quais pode se dirigir Partiremos da diferença relativa aos quatro segmentos da alma Platão nos fala em suas quatro operações 1º O lugar visível e o lugar inteligível são dois 2º Cada um dividese em dois segmentos distintos segundo a claridade e obscuridade 3º O lugar visível corresponde à seção das imagens divididas em sombras e reflexos na água e nos corpos 4º No lugar inteligível dos objetos por sua vez teremos 79República VII518 c910 80República VII518c910 Fernando Maurício da Silva 82 a Em uma parte a alma servese dos objetos como de imagens imitandoos sendo forçada a investigar a partir de hipóteses para a conclusão sem poder caminhar aos princípios a geometria aritmética e ciência do gênero admitem o par e ímpar figuras espécies de ângulos dandoas por sabidas e consideramnas como hipótese sem supor necessidade de prestar conta por serem tomadas como evidentes por si mesmas de onde partem e concluem Consideram figuras visíveis mas raciocinam segundo o quadrado ou a diagonal em si servindose dos desenhos sombras e reflexos como de imagens procurando ver o invisível por meio do pensamento Assim se servem de hipóteses para a investigação sem irem aos princípios por não poderem se elevar acima das hipóteses utilizando como imagens os próprios originais com que se fazem os objetos da seção inferior b Em outra dispensando as imagens partese de hipóteses e conduzse ao princípio absoluto por meio apenas de Ideias Estas o raciocínio atinge pela dialética fazendo das hipóteses não princípios mas hipóteses de fato ponto de apoio para chegar àquilo que não admite hipótese que é o princípio de tudo fixandose em todas as consequências até chegar à conclusão passando de umas as outras e terminando em Ideias Portanto temos os seguintes modos relativos às ciências que trabalham com hipóteses I Inteligência II Entendimento III Fé opinião IV Suposição Platão fornece ainda uma segunda maneira de visualizar este paradigma Há dois topos τόπος onde a alma busca objetos topos horatós e tópos noetós lugar visívelsensível e lugar inteligívelintuitivo O que distingue estes lugares é a obscuridade ou clareza dos seus objetos daí serem chamados genericamente dóxa δόξα e episteme έπιστήμη opinião e ciência Tais objetos são mais obscuros na medida em que O Discurso Filosófico como um ser vivo 83 estão mais próximos das imagens de corpos sensíveis e mais claros quando destes se afastam reflexos são imagens não diretamente de corpos bem como o desenho de um círculo é a imagem de algo incorpóreo um objeto intelectual Assim enquanto no topos horatós se pode distinguir como temas a dóxa a eikasia εἰκασία suposição81 e a pístis πίστις fé82 no tópos noetós distinguese dianóia διάνοια demonstração83 e noésis νόησις intuição84 Quando a alma se encontra com seus objetos no lugar do intelecto noetós ou os mostra à luz da divisão dianoemática demonstrativa ou à luz de um modo direto de mostrar ou fazer ver A distinção em questão é entre demonstração e mostração exposição revelação a primeira indireta por depender de uma hipótese não mostrada a segunda direta por mostrar a Ideia exclusivamente desde outras formas igualmente mostradas ou vistas Nos três primeiros casos eikasia pístis e dianóia é sempre da imagem que o conhecimento depende mesmo o geômetra apesar de supor o círculo objetivo investigao através de sua imagem num desenho ou na imaginação Aqui a hipótese que é uma imagem ainda é objeto de culto uma crença demonstrativa Podemos traduzir noésis por intelecção com a ressalva de que esta não seria efeito do intelecto em sentido de raciocínio lógico ou por intuição com as ressalva que este termo não seja compreendido anacronicamente em sentido psicológico e que não esqueçamos que dianóia e noésis são no grego palavras de raiz comum A tradução de dianóia por demonstração não pode ocultar sua relação terminológica com noésis intuição como um mostrar direto que não passa pelo jogo demonstrativo que esfrega as teses entre si 81República 511e 82 República 506c 83República 533d 84República 533e Fernando Maurício da Silva 84 Vejamos a seguir uma esquematização dos dois tópos lugares desde onde o intelecto parte para compreender seus objetos TÓPOS GÊNESE SEGMENTOS divididos cf a claridade ou obscuridade Conhecimentos Tópos Horatós Imagens nos corpos sombras reflexos Eikasia Suposição Imagens na água reflexos crenças Pístis Opinião fé crença Tópos Noetós Objetos como imagens Dianóia Parte das hipóteses para a conclusão sem poder elevarse aos princípios Geometria aritmética e ciência do gênero Ideias Noésis Parte de hipóteses de fato para o princípio absoluto que não admite hipóteses somente por meio de Ideias Dialética Notemos que Platão usa o termo elevarse em referência às hipóteses Falanos em elevarse sobre as hipóteses apenas através de IdeiasFormas quando capaz de ir aos princípios A Ideia não é o inicio arché princípio que serve de fundamento para a analítica demonstrativa de conclusões futuras Antes sendo a Ideia o ponto mais alto pode ser o resultado gnosiológico da síntese problemática do efeito de fracasso da alma consigo mesma no processo demonstrativo provocando uma reminiscência específica São elas 1 ou a alma parte de imagens como imitações em forma de simulacros e chega às conclusões O Discurso Filosófico como um ser vivo 85 2 ou parte de imagens na forma de hipóteses até as conclusões que neste caso estarão orientadas por imagens iniciais sua arqué não é verdadeiramente intelectual ou mostradora na medida em que é uma imagem 3 ou enfim parte de hipóteses como mero ponto de apoio já que reconhecidas como imagens para retornar e não avançar aos princípios efetivamente mostradores do objeto 14ª Lição a questão dialética como função retroativa do nous à arque Tudo o que tratamos até aqui se derivou do tema inicial da função filosófica da Demora Agora iremos ingressar em uma segunda grande estratégia do método dialético a função da Parada e do Retorno Como o intelecto pode voltar intuitivamente ao seu princípio desde o qual opera Essa pergunta equivale a indagar por que e como Platão realiza metodologicamente uma parada nos diversos momentos investigativos dos diálogos e um retorno aos pontos anteriores Quando lemos a República nos deparamos com a aplicação frequente deste movimento de retorno Que movimento é esse e qual sua função Sabemos que este movimento de retorno é o que explica porque a Ideia encontrada no fim do processo dialético mostrase à alma ou é intuída como estando num lugar anterior como se os objetos puros fossem um passado para o nous espírito intelecto enquanto causa material do conhecimento ainda que um futuro para a dianoésis exercida por ele Os diálogos platônicos possuem caráter dramático dado que os personagens se encontram em aporia diante da problemática produzida pelas questões quando dialeticamente colocadas A dialética platônica caracterizase por um método problemático que contém dois eixos um aqui Fernando Maurício da Silva 86 chamado método esfregatório e outro método purgatório85 termo provavelmente oriundo da medicina ou devido a analogia que Platão fará entre filosofia e medicina Uma questão inicial leva à postulação de teses possíveis e da pura possibilidade se extrai não uma solução mas outra questão Todo método esfregatório que discutimos até aqui se refere àquela iniciação persuasiva no domínio do lógos pela dialética Reconsideremos a estrutura musical do discurso platônico Ou não saberemos nós que tudo isto é o prelúdio da ária que temos de aprender86 Esta estrutura musical do discurso dividiuse em três Estádios Persuasão Despertar e Libertação E Platão nesta passagem chama de prelúdios em outros lugares rapsódia aquelas ciências mais bem principiadas cujas hipóteses que lhes servem de princípio são retiradas de imagens intelectuais e não sensíveis como a matemática a astronomia e a geometria Neste sentido filosofar é escutar esta musicalidade distinguindo seu prelúdio e árias e nestes o coro narrativa dramática da discussão os deuses a verdade os personagens teses dos interlocutores e o palco a cidade Esta estrutura musical do discurso filosófico pode ser dividida em três aspectos 1 A preparação inicial do problema 2 A secundariedade dos objetos de referência diante da primordialidade do objeto em si 3 A demora do discurso sendo que o método problemático ainda exige a um processo de Repetição das perguntas e teses b e a Parada Repetição Desvio e Retorno da questão dialética em seus desdobramentos 85Sofista 229e4 86República VII531e O Discurso Filosófico como um ser vivo 87 Esta questão dialética corresponde à modalidade do método problemático e tem por função teorética agir desconstrutivamente sobre o eídolon a imagem cujo exemplo comum são as artes para o nous o intelecto cujo exemplo comum são as ciências matemáticas e retrospectivamente deste para a arché onde não há nem imagens nem discurso nem essências em última instância já que o bem não é uma essência por estar acima e para além da essência pela sua dignidade e poder87 A desconstrução parte da imagem e se dirige para a essência e a retrospecção aprende com esta para lograr dirigir a visão para a Ideia A República é escrita neste duplo movimento da memória desconstrução e retrospecção A analogia para isto são os momentos musicais Esta é a técnica platônica seu método problemático cuja função dialética é desconstruir imagens por meio da contradição parar e demorar por meio de paradigma se retroagir aos princípios no intelecto por meio da essência Ler um diálogo é eleger as etapas deste movimento que são sempre legíveis nas questões e nas manobras questionadoras que Platão coloca a seus interlocutores A questão dialética respeita ao seguinte modelo genérico inicialmente se coloca um problema através de uma indagação persuasiva sobre as imagens sensíveis posteriormente se refaz a mesma questão através de uma forma interrogativa baseada em imagens intelectuais Como existem dois tópos para o começo do conhecimento o modo platônico de questionar é realizado de acordo com a teoria segundo a qual há uma direção da sensibilidade e outra da intuição que por ser retrospectiva se dá por reminiscência É com o objetivo de auxiliar seu interlocutor na reminiscência da Ideia e do princípio necessário que está por trás de uma problemática que Platão discorre de forma demorada e lenta desconstrutiva e retrospectivamente 87República VI509b Fernando Maurício da Silva 88 Consideremos este duplo movimento O critério é ir de um começo até o princípio Portanto metodologicamente podemos distinguir 1 a Questão Inicial caracterizada como questão inicialretórica colocada no começo e abandonada ao final 2 e a Questão Principial como questãoinicial dialética que se ignora inicialmente mas mostrase noésis ao fim como aquilo que deveria estar colocado desde o inicio Expliquemos um problema ou fato é inicialmente mobilizador da reflexão em função da coisa ou imagem de coisa mobilizadora mas posteriormente recolocase como questão pelo ser daquela coisa Tratamos disso ao final de nossa 3ª Lição Neste sentido a República é mais um exemplo do jogo dialético entre a pergunta inicial e a pergunta principial pois neste diálogo 1 a questão inicial é pela justiça no indivíduo que se tece dialeticamente em digressões em outras direções para a sua melhor elaboração e apropriação 2 cujo preparo psicológico e científico produz posteriormente uma parada e retomada através de um escopo ontológico próprio para a sua solução Na próxima Lição veremos uma última consideração metodológica para que no Capítulo II possamos aplicar esta introdução à dialética aos argumentos da República 15ª Lição método purgatório Vimos como a justiça é investigada na República segundo o método problemático dialético Este se move desconstrutivamente do eídolon ao nous e retrospectivamente deste à arché Este problema se elabora através de um interrogatório que vai da questão retórica inicial até a questão principial final Platão se utiliza da retórica e da lógica como O Discurso Filosófico como um ser vivo 89 imagens da definição das coisas assim como admitirá certa relevância da política e da ciência mas sustentará sempre suas críticas contra a sofística e algumas artes pictóricas Todo este caminho passa por três etapas da retórica que o interlocutor amante de si mesmo chamará de desnecessária preparação inicial do problema ausência da colocação imediata do objeto e demora do discurso Mas esta demora ocorre pela necessidade discursiva de Parar Repetir Desviar e Retornar ao problema inicial segundo os Estádios que a investigação precisa passar neste processo para chegar ao eidos Porém toda esta metodologia explica como uma filosofia problemática discorre mas não por quê A resposta diz respeito às Ideias mais difíceis de desconstruir por dependerem não só do amor sensível e a crença naturalista no mundo mutável mas também do amor próprio somado à crença num autosenso positivo Como já vimos uma opinião acerca de algo sensível é um culto das aparências imagéticas mas uma opinião acerca de um valor é um culto ao próprio bomsenso este mais difícil de desconstruir pela contradição Consideremos como este método é aplicado na República Platão inicia questionando o que é o homem e a vida justa Livro I então abandona essa questão inicial e passa a investigar a justiça na cidade Livro IIV cuja incompletude da resposta obriga a questionar a justiça em relação à educação do nous Livro VII antes de esclarecer por que a vida justa é melhor e preferível na cidade Livro VIIIX Concluise que existe uma relação entre a Ideia Forma moral e a educação Deste modo a questão o que é a justiça movese de um Estádio individual para outro geral mediante o seguinte argumento se finalidade da justiça é produzir o maior bem possível e se somente é possível ser justo em uma sociedade justa então a justiça no indivíduo e na sociedade deverá ser similar Restará apenas responder como é possível alcançar a justiça o que será respondido a partir do livro VI Fernando Maurício da Silva 90 O diálogo Sofista é auxiliar neste ponto nessa obra os educadores conhecem dois métodos um tradicional e um purgatório88 O método purgatório das opiniões possuiria os seguintes passos89 1 Propõem ao seu interlocutor questões as quais acreditando resolver algo valioso ele não responde nada de valor Estas questões têm por característica insistir na indagação sobre o ser de um objeto de forma a especificar exaustivamente as posições contrárias possíveis o que normalmente termina por confundir admirar ou cansar o interlocutor O que há de novidade nesta passagem em relação àquela que consideramos anteriormente acerca do caráter esfregatório do método é que aqui se fala do valor que um interlocutor crê ter sua solução o amor em seu próprio senso opinativo 2 Depois verificando facilmente a variedade de opiniões tão instáveis colocam sem cessar as opiniões à prova as aproximam em seus raciocínios e as confrontam umas com as outras Neste segundo momento a verificação das opiniões consiste numa reconsideração técnica das posições antes enunciadas pelo interlocutor que conforme o passo anterior agora se encontra em questão Tratase de verificar que duas teses até então concebidas isoladamente sem problemas são contraditórias o que acarreta uma questão de segunda ordem chamada confronto ou seja questionase pelas questões até então colocadas 3 Por meio deste confronto demonstram que a propósito do mesmo objeto sob os mesmos pontos de vista e nas mesmas relações elas são mutuamente contraditórias Assim se chega à colocação do princípio de nãocontradição o que significa que este procedimento metodológico sobre os 88Sofista 229e4 89Sofista 230bd O Discurso Filosófico como um ser vivo 91 valores opinativos acompanha até aqui o uso da contradição na desconstrução das imagens 4 Ao percebêla os interlocutores irritamse contra si mesmos mas se tornam conciliadores com os outros e desta maneira são libertados das opiniões arrogantes e intransigentes O sentimento de irritação consigo mesmo para além da admiração marca que neste aspecto do método o que está em questão é a desconstrução do valor fundado no amor de si Resumidamente temos os seguintes passos I Admiração cansaço ou confusão II Confronto III Contradição IV Irritação intelectual No início da República perguntase provisória e retoricamente o que é a justiça o ato de Sócrates agradar Trasímaco consiste na aplicação de uma benevolência para com o interlocutor90 a ser observada em toda discussão tal como na Carta VII 344 b6 Isto se deve ao fato de que não seria possível atacar diretamente a suposição pessoal em que cada um acredita estar com a verdade devendose ser solícito com o interlocutor até que este ataque purificador se dê a partir dele mesmo O efeito disto será a libertação da alma que conforme o Livro VII da República é a verdadeira libertação e finalidade do conhecimento purificador e direcionador da alma A libertação é a finalidade deste método Aí está a melhor de todas as libertações para o ouvinte e a mais sólida para quem a sofre91 o que segundo o Górgias é a mais bela e útil Tal método não se sustenta enquanto é tecido mas segue 90República I354a 91Górgias 511c Fernando Maurício da Silva 92 um critério Há na realidade um princípio que inspira aqueles que praticam este método purgativo o mesmo que diz ao médico do corpo que da alimentação que se lhe dá não poderia o corpo tirar qualquer proveito enquanto os obstáculos internos não fossem removidos A propósito da alma formaram o mesmo conceito ela não alcançará do que se lhe possa ingerir de ciência benefício algum até que se tenha submetido à refutação causandolhe vergonha de si mesma até que se tenha desembaraçado das opiniões que cerram as vias do ensino e que se tenha levado ao estado de manifesta pureza e a acreditar saber justamente o que ela sabe nada além92 A analogia que Platão usa para exprimir este princípio do método purgatório é a medicina no sentido de que o método é purgativo por produzir purificação como princípio de tratamento sendo que aquilo de que se deve purificar são as opiniões contraditórias Tal como anteriormente se utilizou a música como imagem do método agora a medicina serve de analogia na medida em i o médico deve conhecer o que temer e o que esperar sobre a saúde93 bem e doença mal ii de modo a medir o pharmakon purificador a ser prescrito ao paciente Platão divide as artes da medida métron em duas94 1 Primeiro as que medem o número altura e largura comprimento e velocidade ou seja a medida desde o contrário caso em que métron significa a relação entre grandeza e unidade 2 Segundo as que medem a relação do justo meio ou as determinações que estão entre dois extremos conveniente oportuno caso em que medida significa critério do verdadeiro ou do bem ou ainda justa medida harmonia ou ordem95 por exemplo na sentença o melhor é a medida ou 92Sofista 230bd 93Laques 94Político 284e 95Filebo 24 cd O Discurso Filosófico como um ser vivo 93 como pretendeu Protágoras o homem é a medida de todas as coisas Quando a medicina é pensada no segundo sentido então serve de paradigma pois o lógos discurso é ele mesmo um pharmakon tanto remédio quanto droga Quanto a este último existe um ponto onde se sustenta a possibilidade de alguém admirarse com as teses contraditórias uma vergonha de si num primeiro momento manifestado como irritação consigo mesmo Platão está criticando os diversos tipos de autoridades referentes ao conhecimento que seriam 1 Autoridade anímicopessoal interna o senso de verdade de cada um que por amor de si não quer abalarse 2 Autoridade de sensocomum externa endóxas opiniões mais bem aceitas enunciadas por indivíduos cuja fama dá força as suas teses como o sofista o poeta o político e o retórico 3 Autoridade do tópos intelectual externo intuição da Ideia em si via um método de investigação cujo daimon gênio de Sócrates seria exemplar Esta pedra de toque este abalo no próprio senso é sempre um efeito contra a autoridade tal como são autoridades de senso externo o sofista o poeta e o retórico diferentemente do daimon gênio de Sócrates não psicológico já que externo porém capaz de levar a uma autoridade livre de todo contrassenso a verdade A admiração com as teses contraditórias que aparentavam verdade imageticamente e a vergonha de si diante das próprias contradições internas um eixo metodológico esfregatório e outro purgatório formam o método problemático dialético de Platão Poderemos agora tomar como exemplo a justiça tema central para a constelação de questões que compõem a República e descrever como Platão executa a iniciação filosófica segundo o método até aqui estudado Capítulo II A imagem no discurso filosófico Introdução Aplicaremos os princípios do método no primeiro grande passo da investigação a imagem A compreensão dos passos acima descritos servirá de orientação para não faltarmos com a lógica interna dos textos de Platão Os princípios estudados foram às funções da imagem e os tópicos que constituem seu conteúdo a contradição e a qualidade A imagem se explicou segundo Estádios e estes segundo dois critérios metodológicos gerais o método esfregatório e o método purgatório Precisaremos ir e vir na consulta do livro folheando suas páginas e conferindo suas citações bem como estabelecer ligações entre elas observando critérios próprios a cada uma O mesmo deve valer para o uso dos outros Diálogos de Platão quando forem necessários pois ainda que não se deva pecar em buscar referências que fogem do nosso assunto tornando a investigação demasiadamente penosa também não se pode perder os pontos primordiais Para um melhor aproveitamento do texto que se segue é aconselhável uma leitura prévia da República Devese ter em conta que nesta obra Platão utilizase de diversos personagens para representarem tipos de discursos conforme ficou descrito no capítulo anterior Sócrates expressa o processo dialético Céfalo a boa opinião baseada na experiência Simônides enuncia a concepção poética Trasímaco defende uma abordagem sofística Polemarco fornece uma concepção política e Glauco exemplifica um interlocutor pouco apegado ao amor próprio e capaz de aceitar as idas e vindas da dialética Fernando Maurício da Silva 96 16ª Lição enunciados imagéticos e contradição qualitativa na imagem Na República a dialética começa com a pergunta pelos benefícios de uma vida justa inicialmente atestada por Céfalo e leva a pergunta o que é a justiça Há diversos momentos retóricos da questão inicial até chegar à formulação da questão principial Ao todo teremos os seguintes passos na formulação da questão retórica inicial 1 Primeiro momento da indagação quais os benefícios de uma vida justa 2 Segundo momento da indagação é melhor ser justo ou injusto 3 Terceiro momento da indagação o que é a justiça em uma pessoa 4 Quarto momento da indagação o que é a justiça em uma cidade O mesmo podemos ler em uma conhecida passagem do Mênon a propósito da virtude Quem não sabe o que uma coisa é como poderia saber que tipo de coisa ela é Mênon procurando uma só virtude encontrei um enxame delas pousado junto a ti E aproveitando esta imagem do enxame se eu perguntasse sobre o ser da abelha o que ela é dissesses que elas são muitas e assumem toda variedade de formas dizes serem elas muitas e de toda variedade de formas e diferentes umas das outras quanto a serem abelhas ou quanto a isso elas em nada diferem96 O fracasso em responder a questão inicial a virtude pode ser ensinada leva a uma crise que obrigará colocar uma questão 96Mênon 7172 A imagem no discurso filosófico 97 definicional o que é a virtude O que se procura é a definição de virtude que conforme a analogia com a abelha apesar de existir em diversos números e tipos deverá ter algo em comum para que todos os casos variados mereçam sempre o nome de virtude Antes de Platão os chamados filósofos présocráticos questionavam as causas e princípios das coisas A natureza physis era compreendida como princípio material do movimento de si mesma e inerente às coisas isto é a natureza era a ordenação de diversas matérias em movimento e cada coisa era por sua vez ordenação das mesmas matérias elementares Sendo a natureza movimento da matéria elegeram quatro matérias primordiais Água fogo ar e terra são as forças motoras e motrizes do mundo a exemplo das marés dos vulcões das tempestades e dos terremotos ou nos seres vivos do sangue dos impulsos dos gases e dos ossos respectivamente Por exemplo concluíam que baleias são peixes porque seu movimento vital determinase pela força motora e material da água O equivoco estava em pressupor princípios causas e regras lógicas antes de definir o que uma coisa é em sua essência Não se pode pretender dizer a que tipo de classe algo pertence como se divide de onde se origina como ocorre ou como se classifica sem antes responder a pergunta pelo seu ser Neste sentido conhecer o que é implica em conhecer o que não é uma coisa já que são objetos de uma mesma ciência97 de forma que bastará definir o ser para poder definir o nãoser98 Consideremos outros exemplos de Platão no Cármides 167 o sábio sabe o que sabe e o que ignora no Eutífron 5cd a definição de piedade exige igualmente a definição da impiedade no Íon 531d o juízo poético sobre a boa expressão permite o juízo poético sobre sua má expressão 97Fédon 97d 98Sofista 250e Fernando Maurício da Silva 98 no Filebo 31b o estudo do prazer só é possível quando se estuda também a dor no Mênon 72a o conhecimento das virtudes implica o dos vícios e na República é necessário investigar a justiça e a injustiça e se cada qual é preferível ou rejeitável como inclusão possível da problemática de uma mesma ciência Duas teses com critérios diferentes serão apresentadas sobre o justo e o injusto e em ambas deverseá averiguar se aos contrários se predicou o mesmo se se ofereceu uma imagem segundo a mesma qualidade rejeitando ambos os contrários ou preferindoos Vejamos agora o percurso metodológico realizado na República segundo o método que estudamos no capítulo I 1 Questão Retórica Inicial A República Livro I iniciase com uma demora ao colocar a justiça como objeto de investigação o personagem Sócrates pergunta ao ancião Céfalo se uma vida justa contribui para uma boa velhice99 Há uma etapa inicial aparentemente de caráter apenas retórico antes de surgir no texto o seu objeto Logo depois a entrada de Polemarco como herdeiro do diálogo de Céfalo diz que a partir dali começa nova etapa deixovos na discussão disse Céfalo pois tenho que ir trabalhar no sacrifício Então não sou eu disse Polemarco o teu herdeiro100 Porém toda a República está estruturada neste primeiro momento que oferece os objetos centrais que a investigação sobre a justiça deverá passar Que a fala inicial do diálogo com Céfalo seja sobre a velhice aparentemente desconectada do restante da obra implica a condição mortal de todo humano numa cidade no que se situa a justiça A boa velhice é a imagem retórica que prepara o tema da justiça em geral Céfalo deixa claro que é a velhice e a morte 99República I327a331 100República I331e A imagem no discurso filosófico 99 que colocam comumente a questão de se é vantajoso levar a vida de forma justa ou não Por isso ele trata da velhice segundo quatro critérios a o prazer paixões b o bemestar felicidade c a utilidade riqueza d e o caráter Estes itens serão desdobrados ao longo da República como a objeto de amor do corpo e da alma b virtudes c economia da cidade d e o problema da natureza e educação da alma E isto de tal maneira que em Céfalo a velhice é compreendida como uma libertação das dívidas e injustiças cometidas tema que irá advir na obra após a definição de justiça Vejamos cada um destes elementos morais 1 Diálogo e o prazer no diálogo a primeira discussão de Sócrates diz respeito à possibilidade da própria discussão onde se afirma que a persuasão não é possível se o interlocutor recusarse a ouvir101 Notese que o fundamento oferecido a isto não é o conhecimento mas o prazer do diálogo o que aumenta com a velhice o que a torna boa 2 Dos prazeres físicos e a boa disposição de ânimoas causas do malestar ou mauviver da velhice são a a saudade dos prazeres da juventude gozos do amor bebida comida e outros bens corporais e b os insultos sofridos pelos parentes 101República I327e Fernando Maurício da Silva 100 A ocorrência da noção de saudade é importante por implicar uma relação com o passado na velhice ou seja na ação de um homem em sua vida pública O mesmo vale para os insultos provocados pelos outros quanto ao próprio presente da velhice Em todo caso o problema é o malestar que esta etapa da vida acarreta 3 Do caráter a felicidade e o bomviver ou bemestar da velhice são definidas como libertação das paixões Assim se resolve o item 2 do malestar a causa das paixões e dos insultos parentais é o caráter da própria pessoa se sensato e bem disposto a velhice é menos penosa se é mau caráter a juventude e a velhice serão penosas O problema inicial da mortalidade individual perante a vida pública levou a uma psicologia dos valores morais 4 Da riqueza advém como contraponto à possibilidade da riqueza tornar a velhice agradável e na sua falta causarlhe malestar Porém a favor da tese anterior constatase que aqueles que por si mesmos adquirem riqueza estimamna em dobro que outras pessoas tal como os poetas amam seus versos e os pais amam os filhos sendo de difícil convívio por não exaltarem outra coisa Assim se pode valorar a riqueza desde outro lugar o próprio problema da mortalidade próximas da morte as pessoas são acometidas de temor e preocupação por questões antes ignoradas sobre as injustiças a serem expiadas no Hades o que lhes afeta a alma Devido ou a debilidade da velhice ou visão das coisas do além por se estar mais próximas delas não se pode decidir os indivíduos passam a examinar suas injustiças por temor e atemorizamse ainda mais segundo as injustiças que encontram na própria vida despertando muitas vezes no sono ou ficando em expectativa de desgraça Diferente daquele que não encontra injustiça em si sentindo doce esperança bondosa ama da velhice segundo Píndaro Assim é que a riqueza pode ser auxiliar no pagamento das dívidas caso existam tornando a velhice tranquila e a morte honrosa A imagem no discurso filosófico 101 5 Da justiça portanto a riqueza é positiva não para todo homem mas para o comedido e prudente que não ludibriou ninguém pela mentira nem ficou a dever aos deuses ou homens podendo morrer sem nada dever segundo a contribuição da riqueza Assim o problema que lemos é o da justiça em função da mortalidade Esta é a introdução da música dialética ou a iniciação no problema o que não pode ser perdido de vista ao longo da investigação LIVRO I QUESTÃO INICIAL MOTIVADORA VELHICE COMO LIBERTAÇÃO Prazer paixões bemestar felicidade utilidade riqueza e caráter 1 Diálogo e o prazer no diálogo A persuasão não é possível se o interlocutor recusarse a ouvir I327e Fundamento prazer do diálogo o que aumenta com a velhice 2 Dos prazeres físicos e boa disposição de ânimo Causas do malestar ou mauviver da velhice 1 saudades dos prazeres da juventude 2 insultos sofridos pelos parentes 3 Do caráter Bemestar da velhice libertação das paixões Logo a causa das paixões e insultos parentais é o caráter da pessoa se sensato e bem disposto velhice menos penosa se é mau caráter a juventude e a velhice serão penosas 4 Da riqueza Aqueles que por si mesmos adquirem riqueza a estimam em dobro que outras pessoas Próximas à morte as pessoas passam a examinar suas injustiças por temor diferente daquele que não encontra injustiça em si doce esperança bondosa ama da velhice 5 Da justiça A riqueza é positiva para o comedido que não ludibriou ninguém pela mentira nem ficou a dever aos deuses piedade ou homens justiça 2 Desvio Purgativo da Questão Inicial Fernando Maurício da Silva 102 A questão inicial se desdobrará nas teses possíveis acerca da justiça a serem metodologicamente purgadas Como o problema inicial é sobre a qualidade de vida do indivíduo idoso frente ao seu passado público e seu futuro mortal Platão iniciará a investigação pela justiça no indivíduo desviandose à justiça nos mitos e enfim retornando à justiça na cidade Em uma primeira grande Ária da República são analisadas duas teses sobre a essência da justiça e no interior desta parte são operados Desvios metodológicos para dar conta das condições destas posições Hipótese 1 Polemarco dizer a verdade e restituir o que se recebeu A discussão prossegue com Polemarco referindose à autoridade poética de Simônides segundo o qual justo é restituir a cada um o que se lhe deve Devemos ler nesta asserção não uma definição mas uma imagem pois uma definição que não dê conta de todos os casos de justiça não é uma definição satisfatória mas ainda se mantém no âmbito da imagem de justiça A justiça é restituir a cada um o que lhe convém é a restituição do que é devido Sendo esse enunciado apenas uma definição aparente então sua condição de imagem merecerá críticas As objeções de Platão terão por função preparar o caminho à contradição em termos acarretando a necessidade de passar à análise de outra tese possível Para que se possa colocar a possibilidade à prova o método nos diz que é preciso tornar problemático o juízo da Hipótese 1 Por exemplo a hipótese afirma que é justo devolver ao proprietário o que lhe é de direito entretanto não seria justo devolver uma arma a um amigo que ao retornar de viajem e exigir sua restituição encontrase privado de razão e lucidez Não sendo justo restituir um bem a alguém privado de razão o justo é fazer o bem aos amigos e nunca o mal entendendose A imagem no discurso filosófico 103 por amigo alguém de razão confiável capaz de assumir sua posição política correta pois a restituição do que se deve não é direita se não for amigo aquele que recebe o que se restitui Formalizemos as quatro objeções apresentadas por Platão quanto ao conceito puro de dever que precisa passar pelos seguintes critérios autonomia razão utilidade e amizade Vejamos Objeção 1 segundo o critério da razão sanidade Problema 1 como restituir o devido a alguém privado de razão Suposição 1 o justo consiste na verdade e segundo esta restituir aquilo que se tomou de alguém Suposição 2 destas mesmas coisas umas vezes é justa outras injusta fazêlos Imagem a A primeira imagem é dada através de um exemplo se alguém recebesse armas de um amigo em perfeito juízo e depois tomado de loucura a reclamasse não seria justo restituíla nem consentir em dizerlhe toda verdade102 Objeção 2 segundo o critério da utilidade Problema 2 o Problema 1 mostrou que a Hipótese 1 tem por critério o conceito de dever no sentido de conveniência porém o que é devido não pode ser considerado universalmente como conveniência A imagem aqui é tecida não por um exemplo mas por uma analogia assim como a medicina dá ao corpo os remédios a comida e bebida e a culinária dá aos alimentos o tempero também a justiça deve dar ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos O problema que essa analogia levanta é o seguinte como aplicar 102 Entendemos que Platão trata uma definição insuficiente como aquela que ainda se baseia em suposições ou hipóteses o que corresponderia a certa modalidade de imagem Fernando Maurício da Silva 104 ao conceito de justiça o oxímoro referente à ajuda e prejuízo Se para quem não está doente o médico é inútil do mesmo modo a justiça seria inútil durante a paz Do mesmo modo assim como em finalidade do médico não podemos incluir doença mas apenas saúde ou cura também em justiça não se poderia incluir produzi dano mas apenas produzir o bem O expediente que elimina o oxímoro também refuta a suposta definição Solução mas assim como a agricultura é útil a justiça é útil em tempos de paz ao permitir estabelecer contrato entre os concidadãos Portanto assim como o melhor parceiro para quem precisa de uma cítara é o citarista o justo é o mais útil quando é preciso fazer uso de dinheiro como depósito com segurança quando não há necessidade de usar o dinheiro sendo este momentaneamente improdutivo ou inútil Mas fazendo a viravolta uma vez aceita esta imagem como solução da Hipótese 1 estabelecese o problema que esta implica se a justiça é útil para as coisas que não são utilizadas o homem justo é uma espécie de ladrão e a justiça é uma arte de furtar para a vantagem de amigos e dano dos inimigos Assim conforme a República I 333 em tudo e para cada coisa a justiça é inútil quando nos servimos dela e útil quando não nos servimos Objeção 3 segundo o critério da amizade103 Problema 3 ainda que se diga que a justiça é um dever relativo aos amigos alguém pode parecer amigo quando não o é realmente É natural amar a quem nos parece honesto e odiar quem nos parece mal É justo prejudicar os injustos e ajudar os justos Com isso para muitos quando errarem em seu juízo acerca dos homens será justo prejudicar os amigos por serem maus aos seus olhos e ajudar os inimigos por considerálos 103República I334 A imagem no discurso filosófico 105 bons Portanto amigo é o que parece e é realmente honesto e o mesmo sobre o inimigo O que parece mas não é aparenta ser amigo sem o ser Deste problema seguese a refutação da Hipótese 1 a definição de homem justo somente seria possível segundo um critério universal de bem Até aqui três problemas foram mostrados no interior da Hipótese 1 quanto às qualidades que ela enuncia para a sanidade utilidade e amizade Como sabemos as qualidades podem ser contraditórias entre si num mesmo objeto quanto este for uma imagem ou corpo Que o enunciado de Simônides e suas demais correções sejam uma mera imagem e não uma definição ficou demonstrado através desta tripla constatação da contradição qualitativa Os homens se tornam piores em relação à perfeição humana quando se lhes faz mal Portanto passase a sintetizar este resultado através de uma nova analogia Imagem b assim como um músico não pode tornar os outros ignorantes na música por meio de sua arte ou os tratadores de cavalo com sua arte respectiva tornar os outros incapazes de montar os justos não poderiam tornar os outros injustos ou os bons tornarem os outros maus por meio de sua perfeição E assim como a ação do calor é aquecer e não refrescar a do homem bom é fazer o bem e nunca o mal seja ao amigo seja ao inimigo Portanto referindose a justiça à perfeição humana fazendo mal aos homens eles se tornam mais injustos Notese que isto não é a demonstração da essência da justiça nem sua definição mas o conquistado pela purgação de sua imagem Como isto se efetuou através de um princípio o de contradição a consequência de que ao homem justo caberá a ação de fazer o bem a qualquer um corresponde à descoberta da universalidade como exigência a universalização do bem Esta é a contribuição desta imagem Fernando Maurício da Silva 106 Inversão de perspectiva Uma vez que ainda não se chegou nem na essência nem na definição da justiça o critério da conveniência pode ainda ser retomado dentro de outra possibilidade não mais a razão a utilidade e a amizade mas a força Deste modo a Hipótese 2 que veremos a seguir consistirá em aceitar a exigência de universalização que faltou à Hipótese 1 segundo o critério da conveniência que lhe era conteúdo Tratase de aplicar ao mesmo conteúdo o novo conceito descoberto a forma à matéria Para tanto Trasímaco entrará no diálogo através de uma exigência metodológica com o que Platão considera os passos que permitirão chegar ao juízo problemático acerca da possibilidade da Hipótese 1104 Vejamos os passos metodológicos através dos quais Platão prepara esta reviravolta 1 A via do interrogatório de uma e outra tese sem dar a réplica limitandose aos conceitos pressupostos sem atacar o conceito temático gera a dificuldade deste 1º passo em termos de falta de clareza e objetividade conforme a crítica levantada contra Sócrates na República I 336b Se realmente queres saber o que é a justiça não te limites a interrogar nem procures a celebridade para refutar quem te responde reconhecendo que é mais fácil perguntar que dar a réplica 2 A simulação de ignorância levando à exaltação do interlocutor para incitarlhe a falar funcionará como persuasão ao discurso de acordo com o que se lê na continuação da passagem anterior da República I336b E veja bem não me digas que é o dever ou a utilidade ou a vantagem o proveito ou a conveniência O que disseres diz me clara e concisamente pois se te exprimires por meio de frivolidades desta ordem não as aceitarei Neste instante Sócrates entra na narrativa em primeira pessoa e simula Se 104República I336337 A imagem no discurso filosófico 107 cometemos qualquer erro ao examinar os argumentos tanto ele como eu fica sabendo claramente que o nosso erro foi involuntário Sócrates admite que para mudar de perspectiva quanto ao assunto discutido ele mesmo deverá colocarse em outro lugar metodológico 3 A ironia que leva ao reconhecimento da ignorância como exemplifica esta passagem da República I 337a Mas acreditame meu amigo parece que não temos força para tanto Ao ouvir isso desatou num riso sardônico e exclamou Ó Hércules Eis a célebre e costumada ironia de Sócrates 4 A exigência da fala do outro que não é possível a discussão sem que o outro fale Mas meu excelente amigo como é que uma pessoa há de responder sem saber Mas é tu que naturalmente deves falar I 337e 5 Por fim a maiêutica parto das ideias Eis a esperteza de Sócrates não quer ser ele a ensinar mas vai a toda parte aprender com os outros sem sequer lhes ficar grato 338a Após esta crítica ao método Trasímaco passa a dar sua definição de justiça Porém como veremos não é capaz de compreender a pretensão metodológica da dialética contradizer o caráter problemático de toda imagem Trasímaco representa o status quo da Atenas da época a democracia decadente sustentando tanto uma definição imagética de justiça quanto o mau uso da razão por parte do indivíduo que vive nesta decadência reunindo a definição insuficiente de justiça tanto no individual quanto do coletivo Seja como for passemos a hipótese de Trasímaco que pretende superar a de Simônides Fernando Maurício da Silva 108 Hipótese 2 Trasímaco A justiça é a conveniência do mais forte105 Segundo esta hipótese haveria apenas um modelo de justiça em todos os Estados o que convém aos poderes constituídos a justiça é a mesma em toda parte a conveniência do mais forte Diferentemente da poética de Simônides a sofística de Trasímaco respeita o critério de universalização Não se trata da justiça ser a vontade do homem fisicamente mais forte A justiça é a instituição da lei estabelecida conforme cada governo segundo sua conveniência punindo os transgressores da lei a título de injustos Nesta segunda hipótese o método dialético deverá trazer para a ordem do juízo problemático o critério qualificativo a injustiça é conveniência Objeção 1 segundo o critério das leis A imagem de mais forte como aquele que faz temer a lei implica na presença de duas qualidades contraditórias dizse que a justiça é obedecer aos que governam e o justo é obedecer às ordens mas os governantes por engano ou ignorância podem dar ordens que lhes são prejudiciais Com isso a justiça passaria a definirse como dar ao mais forte o que lhe convém e o que não lhe convém Assim se fazer bem as leis é promulgar o que convém e não as fazer bem é promulgar o que lhes é prejudicial seria justo fazer o que convém e o que é prejudicial ao mais forte Pois os governantes prescrevem atos aos súditos mas às vezes se enganam quanto ao que é melhor para si mesmos mantendo como justo que os súditos lhes façam até mesmo aquilo que ordenaram mal por ignorância Quando os governantes dão ordens que lhes são prejudiciais dizer que é justo que os 105República I338 A imagem no discurso filosófico 109 súditos obedeçam consiste em admitir que é justo cometer atos prejudiciais aos governantes quando estes involuntariamente os prescrevem aos súditos Justiça é mandar segundo as leis mas o governante deveria poder obedecer às mesmas leis sem prejuízo ao seu mandato Portanto o problema devese ao fato da hipótese de Trasímaco levar a admitir que justiça é simultaneamente mandar o obedecer ContraObjeção 1 Trasímaco responde que o problema apresentado é de segunda ordem pois constitui apenas uma parada que pode ser resolvida Por isso rejeita a crítica de Sócrates considerando que o critério de universalização deve ser aplicado à função do governante como mais forte mas não à noção de conveniência fazendo a justiça passar a definirse por aquele e não por esta Platão nos esclarece através das palavras de Trasímaco que a conveniência do mais forte pode ser entendida não como o que este julga ser sua conveniência na medida em que pode errar Imagem cpara responder esta contraobjeção e devolver o critério de universalidade ao qualitativo conveniência já que é este o definendum aquilo a ser definido da Hipótese 2 Platão retoma a analogia dos artistas e seus ofícios A estrutura comum é a relação entre a ação a arte e suas qualidades Não se chama de médico àquele que se engana quanto ao paciente precisamente por se enganar nem de matemático aquele que se engana nos cálculos mas assim os chamamos quando não erram Do mesmo modo chamamos artífice artesão e governante os agentes que não se enganam quando cumprem a sua função Aquele que tenta governar e erra não chamamos de governante Como poderíamos chamar governante aquele que ao tentar dirigir um navio não sabe como fazêlo O governante não se engana na medida em que Fernando Maurício da Silva 110 está no governo promulgando a lei que é melhor para ele e a ser cumprida pelos súditos Enfim com a crítica à imagem de governante surge o critério para avaliar seu conceito pressuposto na Hipótese 2 Objeção 2 segundo o critério do governante Continuamos a ler a mesma imagem analógica quanto à arte em relação ao seu objeto ou finalidade permitindo agora colocála como fim em si mesma tanto material quanto formalmente Isto deverá valer também para a arte de governar caso aceitemos a generalidade da noção de arte o verdadeiro médico é o que busca tratar o doente e não ganhar dinheiro o piloto é chefe dos marinheiros e não marinheiro o que não muda se ele está dentro ou fora do navio já que não é piloto pelo fato de navegar para o corpo não basta ser corpo tendo necessidade de outra coisa a arte da medicina que lhe restitui o que é útil a saúde por ser sujeito a defeitos que exigem a cura Assim o objeto de uma arte pode ser sujeito a defeitos mas não a própria arte que não pode carecer de outra para procurar o conveniente à sua própria imperfeição A verdadeira arte é incorruptível e pura é inteiramente o que é Ser artista é justamente pretender alcançar os fins de uma arte nunca forçar uma arte aos limites das habilidades de alguém Esta analogia pretende estabelecer em que lugar se encontra a conveniência ou seja o bem que por consequência resulta do cumprimento da finalidade da arte sobre seu objeto Assim a medicina não procura a conveniência de si mas a do corpo nem nenhuma outra arte que domina e governa aqueles a quem pertence prescrevendo o vantajoso não aos mais fortes mas ao mais fraco e por ela governado Do mesmo modo portanto todo governante busca à conveniência o bem que se dá pela finalidade daquele que governa súdito o objeto da arte de governar de onde retira o sentido de sua profissão com o que diz o que diz e faz tudo o A imagem no discurso filosófico 111 que faz nunca a sua própria A leitura deste argumento deve permitir eleger a introdução da noção de finalidade e bem como critérios para demonstração da universalidade Este é o escopo desta analogia já que não haveria analogia entre coisas que não guardassem algo em comum Sem isso o Desvio posterior na direção da Ideia de bem parecerá deslocado O fato de que é este critério que interessa na imagem e não a imagem mesma fica explícito na contraobjeção prescrita a essa objeção 2 uma vez que Trasímaco se utilizará também de uma imagem nem por isso adequada aos olhos de Sócrates personagem que representa o processo dialético ou seja incapaz de auxiliar na direção da definição segundo Platão Contraobjeção 2 segundo o máximo valor da injustiça Trasímaco faz a réplica partindo de outra analogia nada mais coerente tendo em vista que é esta a ferramenta que Sócrates vinha utilizando muito embora a imagem presta tanto ao bom quanto ao mau uso Os pastores velam pelas ovelhas as engordam e as tratam não com outro fim senão eles próprios não sendo diferente a disposição daqueles que governam Estados Por isso o justo e a justiça são um bem alheio consistindo na vantagem dos que governam sendo próprio de quem obedece ter prejuízos E a injustiça e o injusto são o contrário referindose àquele que manda nos verdadeiramente ingênuos e justos onde os justos tornam felizes aos que mandam e de modo algum a si mesmos Assim em tudo o homem justo fica por baixo do injusto 1 nos consórcios e associações entre si quanto se dissociam o justo sempre terá menos 2 nas questões civis de contribuição a pagar o justo em condições iguais paga contribuição maior 3 tratandose de receber um nada lucra o outro lucra muito 4 ocupando cargo de comando o justo apenas fica com seus bens em má posição e sem ganhar nada do Estado 5 cria Fernando Maurício da Silva 112 inimizade com parentes e conhecidos ao recusar servilos contra a justiça 6 na máxima injustiça a tirania que arrebata os bens alheios por fraude e violência sejam sagrados ou profanos privados ou públicos não aos poucos mas de uma só vez dáse a máxima felicidade ao injusto e a máxima infelicidade ao justo A razão é que se alguém comete tais malefícios isoladamente é chamado ladrão ou traficante mas se um homem além de roubar os bens faz dos outros escravos e os torna servos será qualificado de bemaventurado e feliz por todos que souberem de sua injustiça completa Pois se critica a injustiça por temer sofrêla mas não por recear praticála A injustiça em certo grau é mais livre déspota e potente que a justiça sendo a vantagem do mais forte a justiça e a injustiça o que lhe é útil e vantajoso Como havia ocorrido nas contraobjeções anteriores feitas por Trasímaco aqui também se recupera as exigências platônicas dos problemas levantados Neste caso a primeira exigência de universalidade somase a de finalidade Todas estas contraobjeções sobretudo a última são logicamente corretas Porém a lógica em Platão assim como em geral era entendida entre os gregos não era uma ciência mas um organon instrumento como parte da dialética mas ainda ao campo da imagem ainda que intelectual não servindo de apoio suficiente para chegar à verdade tal como a dialética seria capaz de fazer É correto que a contradição é o fundamento desde onde o método problemático pode efetuar se porém ela é um princípio metafísico e não físico podese constatar a contradição entre as qualidades de uma imagem ou corpo ou entre enunciados possíveis acerca de um mesmo ente porém este segundo caso ocorre porque aqueles enunciados são imagens intelectuais Portanto não só a sensibilidade mas também o discurso são contrapontos do ser e do bem em última instância A lógica enquanto instrumento somente pode oferecer imagens pelo intelecto já que o lógos ainda é lugar de imagens lógicas e não imaginárias Do ponto A imagem no discurso filosófico 113 de vista da verdade noética intuitiva intelectiva todo discurso é obscuro por não ser puramente formal mas tão somente imagem imitadora da Ideia As imagens lidas até aqui são todas formadoras de hipóteses que por sua vez permitirão chegar a uma definição Portanto o método platônico está em desconstruir tanto o tópos imaginárioimitativo quanto o tópos lógicodiscursivo e através do que nele restar alcançar algum vislumbre do tópos real Haveria um tópos real para o qual a imagem e o discurso acenam Sua epistemologia afirma que este real não pode ser percebido ou conhecido diretamente mas sua metafísica afirma que somente acerca do real há conhecimento puro já que o imagético e o discursivo são mediados por sensações ou palavras A seguir quando passarmos a ler o processo que leva das hipóteses à definição poderemos compreender este valor da lógica para a dialética Por enquanto precisamos esgotar os argumentos e objeções sobre a definição de justiça Objeção 3 segundo o critério do prazer O prazer será entendido aqui como expressão prática da essência de uma arte Se Platão pretende refutar a contra objeção acima precisará mostrar que ela compreende mal a função da imagem anterior que formava universalidade quanto à finalidade das artes diante de seus objetos Portanto devese mostrar que a analogia do pastor não é suficientemente considerada ao supor que ele trata de engordar as ovelhas não em vista do que é melhor para elas mas para regalálas ou vendêlas como um homem de negócios e não um pastor com o que por analogia o governante governa na finalidade do seu prazer ou bemestar Corrigese a proporção da analogia segundo a inclusão de mais uma medida o prazer A contradição qualitativa está no fato de que como homem alguém pode assumir funções múltiplas como pastor ou negociante cuja finalidade pode ter Fernando Maurício da Silva 114 objetos diversos A imagem era insuficiente e precisava de esclarecimentos pois a arte que se está imaginando não é absoluta mas relativa ao homem que a executa A problematização desta imagem permitirá esgotála de onde a investigação deverá efetuar uma Parada e moverse numa direção cada vez mais norteadora de definição O que faltava ao primeiro momento da imagem da arte era junto ao universal e ao finalismo acrescentarlhe a diferença entre essência e as demais qualidades não essenciais Com isso se conquistará definitivamente o critério de como usar uma imagem em uma discussão A contraobjeção parte de uma questão o governante governa por prazer106 O lucro é efeito e não essência de uma arte Nos restantes cargos ninguém quer exercer por vontade própria mas exige salário lucro supondo que não há proveito pessoal mas só aos súditos Entretanto cada arte diferenciase de outra por ter potência específica Um médico não é mais nem melhor médico por lucrar muito com sua arte e a arte da medicina não se torna mais útil aos doentes quando um médico lucra com ela Assim a medicina não se chamará arte dos lucros se alguém ao curar alguém lucrar com isso O lucro lhe é efeito possível mas não em específico um bem por suas consequências e não por si mesmo Com isso a vantagem dos artífices no ganho de salário advém de aplicarem uma faculdade adicional à arte dos lucros não advindo de sua própria arte a vantagem do salário pois mesmo sem lucro uma arte é útil Logo nenhuma arte proporciona o que é útil a si mesma mas proporciona e prescreve ao objeto cuja conveniência é sua finalidade E no que diz respeito ao tema presente o objeto da arte de governar é o súdito O exercício desta arte jamais prescreve o melhor para si mas para o súdito de modo que se deve proporcionar recompensa dinheiro honraria ou castigo ao que consente em governar 106República I345c A imagem no discurso filosófico 115 Com este argumento Platão consegue levar ao limite a imagem da finalidade essencial que seria universal às artes À lista de candidatos aos predicados de justiça dever autonomia razão utilidade amizade força conveniência da lei e prazer lucro ficará faltando apenas um item a virtude obediência desde o qual se chegará definitivamente ao conceito de bem A partir daqui este apelo à imagem sensível se tornará insuficiente e passarseá para outro modo Retomando a Hipótese 2 cujo definiendum é a noção de governante como o mais forte podese enunciar sua deficiência escolhemos alguém melhor que nós para nos governar107 os mais perfeitos nos quais o amor às honrarias e às riquezas é considerado vergonha Estes não governam por riquezas ou honrarias por não quererem ser tratados por mercenários ao exigir abertamente recompensa nem ladrões tirando vantagem de sua posição sendo que o mercenário e o ladrão devem ser castigados se desejarem governar ato em que se arriscam já que é considerado vergonha ir voluntariamente ao poder sem aguardar a necessidade de tal Notemos que esta forma de qualificar o artista esta imagem qualificadora do governante é descrita de acordo com sua qualidade essencial e potência específica marcandose como sinal de ausência desta qualidade a ação de governar segundo uma finalidade não essencial o desejo de benefício próprio Os bons não vão ao poder nem para se beneficiar nem para usufruir mas por consentirem ser necessários dado que são os melhores Por isso o pior castigo é ser governado por alguém pior do que nós quando não queremos governar a nós mesmos 107República I347c Fernando Maurício da Silva 116 Contraobjeção 3 segundo as qualificações do justo e injusto108 A ambiguidade na noção de qualidade foi purificada agora se pode passar a falar da qualidade da forma de justiça e não das qualidades de suas imagens possíveis Porém antes disso Trasímaco procura recolocar a Hipótese 2 pela especificação da qualidade da injustiça sobre o que opera um passo definitivo na direção da essência não o conceito de dever como na Hipótese 1 mas o de virtude é que estaria sendo pensado sob a tese da lei do mais forte porém de modo invertido A Hipótese 2 estaria dizendo que a injustiça mais útil é mais perfeita que a justiça mais útil porque se qualifica a primeira de virtude por ser proveitosa e a segunda de vício a justiça é sublime ingenuidade Enquanto a justiça é ingenuidade a injustiça que não é mau caráter é prudência sendo sensatos e bons os perfeitamente injustos os que submetem autoridade aos Estados Trasímaco parte da imagem de justiça como obediência especifica sua universalidade finalidade e potência essenciais e enfim reconhece que esta potência específica da justiça exigelhe um conceito intelectual que lhe dá sentido o gênero virtude no qual a injustiça se inclui Metodologicamente a problemática teria levado Trasímaco a reconhecer junto à imagem um conceito intelectual virtude que estaria estruturando a sua tese Ao desconstruir isso a Hipótese 2 recairá em contradição por não ser capaz de recuperar posteriormente a definição de virtude segundo o mesmo critério imagético que vinha defendendo até aqui Assim ficou explicitada a contradição na imagem hipotética o que permitirá nova objeção 108República I348a A imagem no discurso filosófico 117 Objeção 4 segundo a relação entre o homem justo e o injusto109 A refutação da Hipótese 2 baseiase neste argumento o justo não quer exceder o semelhante mas seu oposto e o injusto quer exceder tanto ao semelhante quanto ao seu oposto Ou seja o homem justo não se considera digno de exceder em atos justos a outros homens justos mas o homem injusto considerase digno de prevalecer sobre o justo pois pretende superar toda gente As qualidades essenciais pressupostas para o homem justo e injusto segundo a virtude e seu oposto são estas o injusto é inteligente e bom e o justo nem um nem outro Para mostrar o equivoco recorrese novamente a imagem da arte pois ainda não se iniciou o momento da definição propriamente dita um músico quando afina a lira não pretende superar outro músico na tensão das cordas nem se considera digno de ultrapassálo mas um não músico sim por exemplo um médico ou outros técnicos que dominam outras artes Logo o homem bom e sábio não quer exceder o semelhante mas o diverso e oposto e o mau e ignorante quer prevalecer sobre seu semelhante e seu contrário Logo o justo assemelhase ao homem sábio e bom sendo sabedoria e virtude e o injusto ao mau e ignorante sendo maldade e ignorância Dialética sobre a hipótese a injustiça é força110 Os injustos exército ladrões piratas ou outros não poderiam exercer a injustiça ou a ilegalidade se não observassem a justiça uns com os outros pois a injustiça acarreta ódio e revoltas enquanto a justiça acarreta concórdia e amizade Portanto devese reformular a Hipótese 2 segundo 109República I349a 110República I351a Fernando Maurício da Silva 118 uma nova hipótese a injustiça sempre leva a discórdia interna e externa A injustiça tem uma força que em toda entidade em que ocorre primeiro incapacita a atuar de acordo consigo mesma devido às discordâncias e segundo torna inimigos de si mesmos dos semelhantes e dos seus contrários justos De onde os justos são mais capazes melhores e mais sábios em atuar A injustiça tem força tal que em todo lugar que se origine Estado nação exército e no individuo a incapacita de atuar de acordo consigo mesma devido à discórdia Isto significa que mesmo aqueles que querem agir por lucro ou beneficio próprio lograriam maior êxito se aderissem à justiça Logo os injustos são incapazes de atuar em conjunto e os justos são melhores virtude e mais capazes função de modo que os injustos não poupariam uns aos outros se fossem totalmente injustos Portanto não há o completamente injusto não se pode chamar completamente injusto alguém que alguma vez foi capaz de levar a cabo uma empresa em comum E de um ponto de vista ideal alguém poderia almejar ser completamente justo sem com isso ser acusado de incoerente ainda que assim fosse idealista mas jamais almejar ser completamente injusto em tudo ou com todos pois isso é tanto incoerente e irracional quanto impossível Com isso fica demonstrada a existência da contradição da própria ideia de injustiça como virtude não podendo ser essencial aquilo que é contraditório Dialética sobre a hipótese o injusto tem vida melhor111 O elemento que surgiu pouco a pouco na discussão passou a ser a virtude Por isso se iniciará o argumento através 111República I353a A imagem no discurso filosófico 119 de uma imagem capaz de esclarecer a função ou finalidade de algo isto é a sua virtude específica Isto responderá à imagem do pastor oferecida por Trasímaco a função de um cavalo é aquela que se pode exercer só por meio dele ou com a maior perfeição do mesmo modo não é possível ver senão pela visão podemos podar uma vide com faca lanceta ou outros instrumentos mas não perfeitamente senão pelo instrumento feito para isso que tem esta função Portanto aquilo que tem uma função tem também uma virtude o fazer perfeito Os olhos não cumpririam bem sua função se lhes faltasse a virtude própria devido a um defeito de modo que em cada coisa a função é bem desempenhada conforme a virtude própria Assim a alma não pode desempenhar bem sua função na falta de sua virtude uma alma má governa mal e uma alma boa bem Sendo a justiça uma virtude da alma e a injustiça um defeito a alma do homem justo viverá bem e será feliz ao passo que o injusto não e será desgraçado não havendo vantagem em ser desgraçado mas sim em ser feliz com o que a injustiça jamais será mais vantajosa Mas concluindo tudo isso só poderá ser verdadeiro se soubermos o que é a justiça Com isso o método leva a cabo a exigência de definição além da imagem a exigência não ainda a definição mesma Este momento da obra está marcado por uma Parada clara que tem duas funções prescrever um sumário da Hipótese 2 com vistas a estabelecer seus critérios e situar o método dialético utilizado até aqui Estes dois recursos permitirão direcionar a continuidade da investigação que terá dois momentos investigação da origem e investigação da essência da justiça sendo que ao contrário do que ocorria comumente no pensamento présocrático a essência é o lugar do princípio e não a gênese Fernando Maurício da Silva 120 17ª Lição as hipóteses e a dialética da imagem Vimos até aqui como operar dialeticamente com as imagens Estas são modos de conhecimentos que podem produzir aparentes enunciados essenciais não sendo mais que figurações originadas nas perspectivas humanas Seu problema está em quando se tornam objetos de crenças valorativas caso em que se tomam estas figurações por verdades autênticas O portador da crença nas imagens como verdades se torna uma autoridade cujo valor não pode ser contestado por outra crença do mesmo tipo pelo fato de em nenhuma destas posições ser possível reconhecer a origem de sua formulação nem seus princípios Assim as Hipóteses 1 e 2 acerca da justiça enunciadas até aqui pelos interlocutores de Sócrates precisaram passar pelo crivo da dialética Porém esta demonstração da estrutura problemática das hipóteses possíveis precisa ainda gerar enunciados positivos capazes de encaminhar a investigação para formulações essenciais ou seja definições De acordo com a República estes enunciados começam justamente ao modo de Hipóteses112 O Livro II da República é a realização deste passo na direção da sistematização das duas Hipóteses precedentes a serem enfim superadas Se o leitor não compreende a razão que levou à divisão dos Livros nos momentos em que estão apresentados deve procurar tais critérios na metodologia da investigação e na estruturação dialética da mesma Platão revisará a tese de Trasímaco com vistas a formular uma hipótese acerca da essência da justiça E ainda que a essência seja mais fundamental para a formulação da definição a gênese de algo no sentido empírico de causa merece ser investigada por permitir enunciar a possibilidade em termos hipotéticos Com isso alcançase a primeira luz na direção da 112República VI510 A imagem no discurso filosófico 121 essência os princípios Portanto a função dialética das imagens é permitir a formulações de hipóteses encaminhadoras da essência Qual resultado o Livro I da República alcançou Uma variedade de pontos dispersos cuja origem é uma multiplicidade de imagens Por que esta diversidade está dispersa Porque lhe falta por princípio o critério capaz de unificar estas imagens secundárias numa essência Assim conforme o Fedro se esfregamos as imagens umas nas outras até aqui exigese passar a reduzir a uma única Forma graças a uma visão de conjunto theoré o que está disperso de mil maneiras para que pela definição de cada unidade se possa tornar evidente o tópico que se deseja ensinar em cada caso 265d 35 Temos aqui enunciado uma espécie de Reducionismo Formal em que imagens diversas sintetizamse numa única Ideia O critério da redução é a visão de conjunto certo tipo de síntese intuitiva Qual seria este acontecimento que afeta a alma gerando nela este tipo de visão Sabemos que este momento da investigação ocorre nos diálogos toda vez que os interlocutores irritamse cansamse ou desistem das imagens A investigação sofre uma parada ou suspensão Certamente a expressão mais adequada estaria na ocorrência de uma revelação à alma um momento em que a alma fala por inspiração divina como podemos ler no Lísis 216d Porém quando no Eutífron 11e o personagem experimenta a Parada Sócrates diz ser necessário o ensino tal como na República VII Por que para o mesmo passo do método Platão nos fala num lugar de inspiração e noutro de ensino Insistirá na metáfora da Luz quando no Laquês 194 c d diz à Nícias que a continuidade da investigação fornecerá nova luz à discussão porém sem a imagem do divino ocorrente na metáfora do Lísis ou da iniciação de Delfos no Cármides 164 de Notemos que justamente na República II a imagem do divino se fará presente porém analisada exclusivamente em função de seu valor pedagógico na Fernando Maurício da Silva 122 literatura113 o que trataremos posteriormente E novamente podemos recorrer ao Hípias Maior para encontrarmos a simples exigência do interlocutor quanto a produção de enunciados não facilmente refutáveis114 Assim sempre após a Parada produzida pela desconstrução das imagens é constante a exigência de uma nova visão Porém esta recebe metáforas igualmente diversas o divino a luz o oráculo ou simplesmente o ensino O que há em comum entre todas estas metáforas para a visão de conjunto Esfregouse e desconstruiuse a diversidade das imagens com isso chegou se a uma suspensão ou Parada Para continuar a caminhar é necessária uma nova forma de enunciação capaz de abandonar aquelas facilmente refutáveis o que consiste na redução a uma Forma única O critério para tanto é uma visão de conjunto em oposição a uma visão múltipla em perspectivas Sabemos que a opinião se contrapõe à verdade do mesmo modo que a sofística à filosofia por serem formas de apelo à autoridade e não a pura investigação115 Também podemos ler no Mênon 98a 34 que falta à opinião o raciocínio causal Deste modo a visão de conjunto se contrapõe à formulação opinativa por não respeitar o critério do Fedro segundo o qual à redução das imagens deve se seguir uma única Forma que as delimite Porém havíamos lido na Carta VII 342d que um dos elementos do conhecimento é a opinião verdadeira o que portanto devemos distinguir de uma mera opinião pois a primeira é opinião formada desde imagens intelectuais e a segunda desde imagens sensíveis A opinião sensível é imagem sem raciocínio causal e por isso facilmente refutável enquanto a opinião intelectual não é mais sensível mas ainda é opinião Porém a noção de visão de conjunto segundo uma 113República II380 114Hípias Maior 293d 115República VI 492 A imagem no discurso filosófico 123 única Ideia116 justamente distingue fé e ciência correspondendo à opinião sensível e opinião intelectual em função dos seus diferentes modos de utilizar metodologicamente uma hipótese a fé não formula hipóteses a ciência parte de hipótese e não de princípios e a visão eidética ou Formal utilizase de hipóteses para chegar aos princípios que são evidentes para todos117 sem confundilos Deste modo é possível falar metaforicamente de três degraus de hipóteses hipótese sensível hipótese intelectual e princípio sendo que só o último escapa à opinião118 Deste modo não é função da dialética produzir hipóteses mas servirse delas Se frequentemente as hipóteses sensíveis são sínteses de imagens eídolon não fundadas em Ideias Formas bem como as hipóteses intelectuais são opiniões comumente aceitas por diversas autoridades endóxas ou a arte de governar bem depende de guiarse pelos costumes aceitos ortodóxa os princípios são formulações descobertas unicamente a partir de Ideias119 idea Se a origem das hipóteses sensíveis são os corpos e os acontecimentos em todo caso o mundo empírico a das hipóteses intelectuais são as opiniões de autoridades sofísticas poéticas políticas e retóricas mas esta segunda forma de gênese tem algo em comum com os princípios ambos parecem surgir abruptamente no discurso conferindo lhes uma imagem de enigma Mas esta enigmaticidade não é oracular o primeiro caso devese a que a hipótese carece de fundamento e o segundo ao fato de que um princípio é justamente aquilo para o qual não se pode pedir princípios Por isso Platão coerentemente afirma que as Ideias ou Formas puras escapam ao domínio do lógos exigindo um método capaz de levar à alma a produzir intuições noéticas das Ideias 116República VI507508 117República VI510c 118República VI 511a 119República VI511c Fernando Maurício da Silva 124 o que o Fédro chamou visão de conjunto e o que a República enfatiza como evidência para todos A continuidade da investigação dialética consistirá em considerar as hipóteses geradas pelas imagens diversas até aqui analisadas E a República nos dá a dica de como fazêlo no modo como demonstra a contradição nas qualidades das imagens Segundo o teu raciocínio não só é justo fazer aquilo que convém ao mais forte mas também inversamente aquilo que lhe é prejudicial120 Platão já havia aludido anteriormente a esta inversão prostheké do discurso121 bem como em outras obras como Mênon 78d e Fédon 100d6 é sobre a prostheké que a desconstrução dialética pode fazer ver a contradição e estabelecer qual hipótese lhe sintetiza enunciativamente O Livro II da República começa desse modo por avaliar as hipóteses que estariam assim estruturadas Passemos a aplicação destes critérios 18ª Lição da função dialética das Hipóteses Como Platão reconsidera as Hipóteses do Livro I na direção da visão de conjunto Consideremos o quadro a seguir HIPÓTESES OBJEÇÕES IMAGEM QUESTÕES Hipótese 1 Polemarco Justiça é dizer a verdade e 1ª Objeção segundo o critério da razão sanidade Se alguém recebesse armas de um amigo em perfeito juízo e depois tomado de loucura à reclamasse não seria justo restituíla nem consentir em dizerlhe toda verdade Como restituir o devido a alguém privado de razão 120República I339b3 121República I335a6 A imagem no discurso filosófico 125 restituir o que se recebeu 2ª Objeção segundo o critério da utilidade Assim como a medicina dá ao corpo os remédios a comida e bebida e a culinária dá aos alimentos o tempero também a justiça deve dar ajuda aos amigos e prejuízo aos inimigos Se para quem não está doente o médico é inútil do mesmo modo a justiça seria inútil durante a paz 3ª Objeção segundo o critério da amizade O que parece mas não é aparenta ser amigo sem o ser Ainda que se diga que a justiça é um dever relativo aos amigos alguém pode parecer amigo quando não o é realmente Hipótese 2 Trasímaco A justiça é a conveniência do mais forte 1ª Objeção segundo o critério das leis Os governantes prescrevem atos aos súditos e as vezes se enganam quanto ao que é melhor para eles mantendose justo que os súditos lhes façam A imagem de mais forte como aquele que temem a lei implica na presença de duas qualidades contraditórias 1ª Contra objeção Não se chama de médico àquele que se engana quanto ao paciente por se enganar nem de matemático aquele que se engana nos cálculos mas assim os chamamos quando não erram donde artífice artesão governante não se enganam quando cumprem a sua função A conveniência do mais forte pode ser entendida não como o que este julga ser sua conveniência na medida em que pode errar 2ª Objeção segundo o critério do O verdadeiro médico é o que busca tratar o doente e não ganhar O objeto de uma arte pode ser sujeito a Fernando Maurício da Silva 126 governante dinheiro o piloto é chefe dos marinheiros e não marinheiro o que não muda se ele está dentro ou fora do navio defeitos mas não a própria arte que não pode carecer de outra para procurar o conveniente a sua própria imperfeição Assim todo governante busca à conveniência do governado 2ª Contra objeção segundo o máximo valor da injustiça Os pastores velam pelas ovelhas as engordam e as tratam não com outro fim senão eles próprios não sendo diferente a disposição daqueles que governam Estados O justo e a justiça são um bem alheio consistindo na vantagem dos que governam sendo próprio de quem obedece ter prejuízos 3ª Objeção segundo o critério do prazer como expressão prática da essência de uma arte Cada arte diferenciase de outra por ter potência específica Assim a medicina não se chamará arte dos lucros se alguém ao curar alguém lucrar com isso O lucro lhe é efeito possível mas não em específico Questão se o governante governa por prazer pois o lucro é efeito e não essência de uma arte 3ª Contra objeção segundo as Qualificaçõe s do justo e injusto Não o conceito de Dever na Hipótese 1 mas o de Virtude seria o critério da Tese da lei do mais forte porém de modo invertido Enquanto a justiça é ingenuidade a injustiça que não é mau caráter é prudência sendo sensatos e A imagem no discurso filosófico 127 bons os perfeitamente injustos os que submetem autoridade aos Estados 4ª Objeção segundo a relação entre o homem justo e o injusto O músico ao afinar a lira não pretende superar outro músico na tensão das cordas nem se considera digno de ultrapassálo mas um não músico sim tal como nas outras artes Logo o homem bom e sábio não quer exceder o semelhante mas o diverso e oposto e o mau e ignorante quer prevalecer sobre seu semelhante e seu contrário O justo não quer exceder o semelhante mas seu oposto e o injusto quer exceder tanto ao semelhante quanto ao seu oposto Através desta tabela podemos visualizar como o método dialético coloca em questão as duas primeiras teses demonstrando a presença de critérios hipotéticos infundados segundo qualidades opostas nas imagens dos mesmos objetos Bastante diferentes são os passos finais em que a dialética utilizase de imagens com o intuito de produzir refutação por partir do princípio de contradição Neste caso as imagens auxiliam a alma a voltarse na direção da definição REFUTAÇÕES IMAGEM QUESTÃO Refutação da Hipótese 1 definição de homem justo segundo o critério Um músico não torna os outros ignorantes na música por meio de sua arte ou os tratadores tornam os outros incapazes de montar também os justos não poderiam tornar os outros Portanto referindose a justiça a perfeição humana fazendo mal Fernando Maurício da Silva 128 universal de bem injustos ou os bons tornarem os outros maus por meio de sua perfeição E assim como a ação do calor é aquecer e não refrescar a do homem bom é fazer o bem e nunca o mal seja ao amigo seja ao inimigo aos homens eles se tornam mais injustos Refutação à Hipótese 2 quanto a injustiça é força Em todo lugar que a injustiça se origine Estado nação exército e no individuo incapacita de atuar de acordo consigo mesma devido à discórdia tornandose inimiga de si mesma e do seu contrário o justo A injustiça sempre leva à discórdia interna e externa Refutação à Hipótese 2 quanto ao injusto tem vida melhor A função de um cavalo é aquela que se pode exercer só por meio dele ou com a maior perfeição do mesmo modo não é possível ver senão pela visão se pode podar uma vide com faca lanceta ou outros instrumentos mas não perfeitamente senão pelo instrumento feito para isso que tem esta função Aquilo que tem uma função tem também uma virtude o fazer perfeito Enfim se compararmos estes dois momentos das Imagens nossa leitura poderá eleger o que a dialética foi capaz de conquistar de essencial Na Hipótese 1 a primeira questão exige a razão a segunda exige a função ou finalidade utilidade o para quê algo é e a terceira prescreve a importante diferença entre realidade e aparência Por sua vez a discussão da Hipótese 2 leva os seguintes critérios em consideração primeiro reconhecese o princípio de contradição depois distinguindose entre a causa e o efeito a arte e seu objeto mostrase como a perfeição que prepara a essência somente pode estar ao lado da causa seguese mostrando que o lucro também é efeito e apesar de possível não é necessário mas ocasional e por fim quando a última contraobjeção se executa pela noção de virtude concluise A imagem no discurso filosófico 129 mostrando que a justiça é chamada de virtude porque seu valor está nela própria valor absoluto e não é relativa nem depende de outros valores nem de seu inverso é um bem em si mesma Serão estes critérios que o Livro II irá perseguir partindo diretamente do último conquistado na conclusão e refutação final A análise das Hipóteses será feita por um novo interlocutor Glauco e também numa nova perspectiva122 Esta se inicia considerando a existência de três tipos de Bens 1 o bem estimado por si mesmo 2 o bem estimado por si mesmo e por suas consequências 3 o bem estimado pela utilidade ou consequência Glauco é o personagem que representará um novo passo na investigação dialética não apenas a justiça sequer a virtude mas o próprio conceito de bem ainda mais formal que os dois anteriores servirá de ponto de partida Assim a análise de Glauco difere do Livro I formularse segundo critérios cuja relação não é tirada de imagens empíricas ser por si por consequências e por utilidade Além disso esta distinção se segue daquela já preparada nas objeções acima ou seja que obter lucro é um efeito da arte e não essência da arte o que equivale a afirmar que o bem estimado por si mesmo é essencial e o bem estimado por outra coisa ou consequência é um efeito A tese de Glauco é a justiça é um bem estimado pelas consequências ou utilidade 3º caso A dialética ainda deverá avaliar o valor daqueles três casos mas de qualquer maneira Glauco já adianta a direção para a essência com a sentença a justiça é um bem123 Uma vez que esta noção de bem é 122República II 357a 123República II 358 Fernando Maurício da Silva 130 tributária da discussão com Trasímaco seguese a necessidade metodológica de reconsiderar a Hipótese 2 desde critérios rígidos 1 retomar o argumento de Trasímaco dizendo o que é a justiça e qual sua origem 2 se todos a praticam contra a vontade como necessária e não como boa 3 e se é natural proceder assim por ser melhor a vida do injusto Passaremos agora para a parte genética da investigação isto é o momento dialético que busca solucionar problemas avaliando a origem imagética de certas ideias 1º INICIO começo imagético da investigação genética É importante notar que esta investigação genética é reconhecida dentro do método platônico de um modo não fortuito mas faz parte importante de sua reforma filosófica perante a tradição Com efeito os pensadores présocráticos davam às perguntas do tipo desde onde algo advém qual a origem de algo qual o princípio de algo um valor tão forte quanto o que Platão dará a pergunta o que algo é a partir de sua herança socrática Porém a dialética platônica não está a indicar um erro naquelas formas de interrogação mas sim a situálas em outro lugar secundário Se o conhecimento hipotético é tão somente apoio mas nem por isso rejeitável do mesmo modo o conhecimento genético é o trampolim importante para julgar adequadamente as Hipóteses e conquistar posteriormente a essência através dos princípios alcançados Vejamos a seguir os três momentos inicias A Enunciado hipotético segundo a Natureza A investigação genética começa por analisar qual A imagem no discurso filosófico 131 physis natureza a Hipótese 2 estaria oferecendo à justiça A injustiça é por natureza um bem e sofrêla é um mal e ser vitima da injustiça é mal maior que o bem em cometêla124 Devido à injustiça praticada entre pessoas vem a parecer vantajoso constituir o acordo mútuo para não cometer nem ser vítima de injustiça originando leis e convenções e a designação de legal e justo para as prescrições da lei Estaria aí a relação entre lei e justiça que a Hipótese 2 supunha Portanto a natureza da justiça está situada a meio caminho entre o maior bem não pagar a pena das injustiças e o maior mal impossibilidade de vingar uma injustiça com o que a justiça é o honrável na impossibilidade de se praticar a injustiça mas na possibilidade de praticála a aceitação da convenção seria considerada loucura B Imagem Diferentemente dos tipos de imagens que vimos até aqui será o próprio Sócrates quem recorrerá a um mito O recurso a um mito é o apelo a uma autoridade No inicio da República isto já havia ocorrido a Hipótese 1 sobre a justiça partiu da autoridade de um sábio Simônides Agora em defesa da Hipótese 2 evocase a autoridade de um mito comum cujo valor é diferente sobretudo dos mitos que o próprio Platão construirá posteriormente Não estamos ainda diante da boa imagem mas já se está prenunciando o uso do mito na imagética metodológica a saber o Mito do anel de Gides Gides encontra após uma tempestade e terremoto um anel de ouro junto a um cadáver que jaz numa fenda no solo Quando Gides com seu anel estava junto aos demais pastores deuse conta que ao girar o engate do anel sobre o dedo e na direção interna da mão tornavase invisível voltando ao estado normal através do giro inverso Com este poder pode aproximarse do rei atacálo seduzir sua mulher e então subir ao poder125 Com esta imagem se pode concluir 124República II 359 125República II 359 Fernando Maurício da Silva 132 que a justiça é praticada contra a vontade pois se for dado o poder de fazer o que quiser tanto ao homem justo quanto ao injusto ambos procurarão a ambição como um bem Esta conclusão que a imagem permite faz com que do problema da natureza da justiça migrese para o da vontade C Conseqüência da imagem segundo a vontade Este momento da investigação não só é marcante para o método mas para toda história da filosofia É nele que pela primeira vez a filosofia determina a solução de uma Ideia transferindo o problema do lugar da natureza externa para a natureza do indivíduo a vontade Assim segundo o mito de Gides ninguém é justo por vontade mas apenas forçado pois a justiça não é um bem para si Por isso é crença comum pensar a injustiça mais vantajosa individualmente e defender a justiça mentirosamente por receio de ser vitima da injustiça Porém como não há o anel de Gides é o próprio desejo de injustiça que se torna invisível consenso tácito Haviam de elogiálo em presença um dos outros enganandose reciprocamente com respeito de serem vítimas de alguma injustiça126 O uso do mito de Gides traz à discussão o senso comum numa imagem embora também implique na possibilidade de recuperar mitos melhores como ocorrerá posteriormente Aqui nos afastamos consideravelmente do domínio do imagético e nos aproximamos do domínio do real por meio desta inversão prostheké do modo de ver o anel de Gides não existe no mundo real senão na imaginação e deste modo para a própria justiça não recair em uma imagem mito torna se necessário reconhecer em que sentido ela é real sua verdade e não sua aparência Uma vez porém que se marcou a passagem da pergunta pela natureza da justiça para a vontade de justiça é a consequência dessa vontade que deverá ser 126República II 360e A imagem no discurso filosófico 133 indagada na sequência A pergunta desdobrase em termos de melhor forma de vida para o homem justo ou para o injusto sendo a felicidade já prenunciada por Céfalo que está em questão127 Conforme as condições enunciadas acima qual a melhor forma de vida ou quem possui uma vida mais feliz o homem justo ou injusto Devese ter em conta que o problema da justiça está sendo atrelado à relação vontade ou contra vontade e felicidadesofrimento metodologicamente separados ou purificados Por um lado se seguirmos as consequências da imagem anterior o homem perfeitamente injusto deve praticar seus atos passando despercebido de forma que o suprasumo da injustiça é parecer justo sem o ser Por outro lado o homem perfeitamente justo não quer parecer ser justo mas sêlo pois parecendo justo terá honrarias e não poderá determinar porque é justo já que se prova um homem justo pela má fama ou pelas conseqüências de seus atos ao longo de toda a vida Notemos que este argumento responsabilizou definitivamente o homem pela justiça não mais a justiça segundo uma natureza que lhe seria pertinente E também definiu o homem justo como aquele que não quer a aparência de justo mas ser justo verdadeiramente sendo este o primeiro momento em que verdade e aparência se mostram como opostos Além disso ficou dialeticamente concluído que a ação justa tem uma origem a vontade da alma humana E o conceito de origem deixou de ser uma imagem confusa para se tornar uma imagem útil na definição de justiça Veremos que quando o mito de Gides se esgotar como potência imagética para a investigação o problema se desdobrará numa psicologia prenunciada por Céfalo em termos de caráter Resumidamente este passo metodológico logra os seguistes critérios 127República II 361 Fernando Maurício da Silva 134 A Passagem do conceito de natureza da justiça para o de vontade de justiça B Passagem do conceito de utilidade da justiça para o de caráter do homem justo C Passagem do conceito de aparência da vida justa para o de verdade do ser justo Por que a investigação deverá neste instante efetuar a Parada mencionada Porque o critério inicial do bem se derivou de um anterior a aparência O justo será castigado torturado e preso Por isso parece ser preferível parecer ser justo mas não sêlo sendo que o injusto não quer parecer ser injusto mas sêlo logrando governar a cidade e da própria vontade enriquecendo e podendo fazer bem aos amigos e mal aos inimigos e prestar honrarias magníficas aos deuses Como se está operando por imagem concluise a favor da aparência Devese retomar a argumentação e mostrar que é universal o fato do bem nunca admitir relação com a aparência 19ª Lição A investigação genética Como vimos o inicio da investigação genética fracassou Tudo que se conquistou foi sair do caminho da discussão a natureza da justiça que explicitaria sua origem enveredando para a causa da ação justa em função de suas consequências a saber a vontade A felicidade surgiu como finalidade da justiça bem como a alma é seu motor Nada disso contudo foi suficiente para passar das hipóteses aos princípios capazes de dirigir à essência Ainda o discurso platônico demorase na imagem e não consegue ingressar na definição Esta parada é expressa no diálogo pelo reinício da analítica feita agora por outro personagem Adimanto o representante das endóxas ou opiniões mais aceitas A imagem no discurso filosófico 135 2º PARADA suspenção da investigação genética Só resta refazer a análise considerando os novos critérios conquistados pela última imagem Uma vez que a importância do mito de Gides recai na opinião de tipo comum esta nova análise considera a defesa comum da justiça argumentos dos leigos e dos poetas a ser classificada nos seguintes tópicos a partir da República II 363 1 Argumentos fundados nas consequências a justiça é recomendada não por si mas por seu nome e pelas consequências em se parecer justo Assim educam os pais em função da honra e riqueza e os mitos educam prometendo fortuna 2 Argumentos fundados na felicidade da vida a temperança e a justiça são boas e belas mas difíceis e trabalhosas enquanto os contrários são suaves e fáceis de alcançar odiosas apenas à fama e à lei A injustiça é mais vantajosa e os maus são felizes quando ricos e poderosos enquanto os pobres e fracos são desprezíveis ainda que melhores 3 Argumentos fundados nos deuses e na virtude os deuses atribuem desgraças aos homens de bem e o contrário aos maus Assim pobres e mendigos vãos aos ricos persuadi los que tem o poder de curálos e perdoálos de crimes próprios ou de antepassados em nome dos deuses 4 Argumentos fundados na aparência ser justo sem parecêlo não permite proveito algum mas somente castigos e penas e ser injusto parecendo ser justo permite vida divina A aparência subjuga a verdade e é senhora da felicidade O Problema que neste caso podese levantar é i Não é possível passar despercebido aos deuses Neste caso se os deuses não existem então não há motivo para se preocupar em passar despercebido se existem só ouvimos falar deles pelos poetas e pelas Leis mas estes Fernando Maurício da Silva 136 mesmos dizem que os deuses se deixam dobrar Portanto se existem devese ser injusto e fazer sacrifícios a eles pelo poder de nossa injustiça ii Quanto à possibilidade de no Hades espécie de purgatório na mitologia grega terse que pagar pena às injustiças as iniciações e os deuses libertadores têm poder sobre isso É assim que a justiça deve ser preferida em nome de sua aparência que garante suas boas consequências 5 Argumentos fundados na vontade não há justiça voluntária Alguém possuidor de forte ânimo capacidade física e econômica não honrará a justiça Ninguém é justo voluntariamente mas por fraqueza ou covardia e apenas censura a injustiça por ser incapaz de cometêla Sócrates não poderá responder diretamente à Adimanto permanecendo no nível das opiniões formadas desde imagens Terá que reconsiderar a conquista feita pela crítica à Hipótese 2 quando se refutou a relação entre justiça injustiça e virtudevício como inversão ou aposição prósthitemi Assim no lugar de refutar o mito o método mostra toda a sua importância e faz sua exigência Certamente em todos os tempos só se honrou a justiça em função das honrarias derivadas de onde cada um é guardião da injustiça no outro128 Este mito da injustiça fundase inteiramente nas suas consequências tópico 1 a 4 ou na causa motora tópico 5 caracterizando uma opiniãosensível Contudo nunca foram demonstrados os efeitos que produzem a virtude própria na alma de seu possuidor oculta de homens e deuses onde cada um seria guardião de si mesmo Não se pode negar que a alma seja a causa motora e a aparência de virtude a causa que dá valor às conseqüências mas somente quando aceitamos uma relação extrínseca da alma com as conseqüências Todo mito e todas as imagens até aqui estão a 128República II 366e A imagem no discurso filosófico 137 ignorar a relação causal da virtude na alma Este é o levantamento de um critério possível e ainda não investigado ou seja o levantamento da possibilidade de uma nova hipótese Como não se pode assegurarse do valor das Hipóteses anteriores sem antes avaliar todas as outras possibilidades está dada a exigência de uma nova tarefa demonstrar se a justiça vale mais que a injustiça e os motivos segundo os efeitos por ser o bem ou o mal que cada uma produz por si mesma em quem a possui despercebida ou não pelos homens ou deuses129 É aqui que Platão faz a enunciação explícita do método observar a semelhança do maior na forma do menor ou seja partir de algo semelhante e mais fácil começando pela justiça como aparece na formação de uma cidade e depois executando o mesmo no individuo130 A relação entre gênero maior e gênero menor conforme a semelhança e diferença é o critério para chegarse a uma definição Portanto estamos lendo o momento do diálogo em que após a Parada na analítica da imagem dáse um Desvio investigativo na direção da definição Ainda se permanecerá no modo da imagem mas esta sofrerá uma modificação fundamental a imagem agora é a de uma cidade justa construída imaginária e hipoteticamente uma utopia ideal que dá sentido a uma realização Agora enfim o recurso dialético à imagem torna se definitivamente um uso intelectual com fins à alcançar o princípio de algo e então chegarse à definição Que talvez exista a justiça em escala mais ampla e mais fácil de aprender131 implica a colocação de uma hipótese A investigação sobre a origem através da natureza da coisa da justiça originada na cidade será retomada neste outro lugar hipotéticogenético Investigaremos primeiro qual a sua natureza nas cidades Quando tivermos feito essa indagação 129República II 367e 130República II 369a 131República II 396a Fernando Maurício da Silva 138 executálaemos em relação ao indivíduo observando a semelhança do maior na forma do menor podendose definir a justiça no segundo desde o primeiro Portanto se considerarse em imaginação132 a origem da justiça no caso maior poderseá chegar aos critérios para a sua definição com o que o método dialético terá logrado sucesso Assim começa o importante desvio metodológico da República 20ª Lição desvio metodológico desde a hipótese dialética Passemos ao terceiro momento que se segue à análise genética da justiça Chamaremos este momento de Desvio 3º DESVIO redirecionamento da investigação genética A partir deste ponto Platão inicia um longo desvio metodológico133 Ele será demorado porque terá que resolver todo efeito opinativosensível das imagens em geral revelando uma boa função destas na direção do conhecimento da verdade Não é por acaso que só a partir de agora o autor começa a fazer um novo uso das imagens trazendo ao discurso analogias metáforas e mitos de cunho intelectual e com finalidade teórica de demonstração de princípios Deveremos ter em conta que esse longo período do texto consiste na realização de inúmeros desdobramentos imagéticos menores todos dentro de uma só Imagem Maior a cidade perfeitamente justa cidade cujo modelo não é possível pensar em maior grau de perfeição em uma escala possível Consideremos todas as imagens vistas até aqui como 132República II 396b 133República II 396 até o fim do Livro VI A imagem no discurso filosófico 139 subconjuntos a serem mais uma vez avaliados no interior da Imagem Maior da cidade justa Somente compreendendo a função desta Hipótese Maior poderemos aproveitar a passagem e a retomada posterior para o modo da definição IMAGEM A imagem é a da cidade ideal construída através da imaginação e com valor de paradigma Imaginarseá como ela se forma para então retirar daí a origem da justiça134 À princípio exigese a investigação dentro desta Imagem Maior mas não ainda a imagem de uma cidade perfeita o que somente será necessário posteriormente A investigação iniciase colocando uma primeira hipótese retirada da opinião comum Uma cidade tem sua origem no fato de cada um de nós não ser autossuficiente mas sim necessitar de muita coisa135 Com esta hipótese fundase a cidade na necessidade e na carência portanto em causas empíricas caracterizadas pela mutabilidade do devir Do mesmo modo no Filebo 62 a investigação sobre a essência do prazer começa pela gênese dos prazeres enfatizandose os necessários e só depois chegando aos prazeres puros O recurso à necessidade empírica na formulação da imagem geral não é casual Na República posteriormente o desdobramento desta investigação para a educação dos guardiões precisará comparar a disciplina do corpo para tratar desta na alma sentido empírico mas concluirá que é a alma boa que torna o corpo bom sentido real e não o contrário de forma que os cuidados do corpo devem ser imitativos daqueles prescritos ao espírito136 Da mesma forma no Timeu 34c e nas Leis X 894d a dialética acompanha a ordem empírica o mundo das necessidades múltiplas iniciando no corpo e indo na direção da alma para 134República II369a 135República II369c 136República III403d Fernando Maurício da Silva 140 apenas posteriormente reconsiderar a ordem real explicitada na passagem supracitada da República Por isso estamos diante de uma imagem e não diante de uma demonstração as formulações que se poderão fazer depois a partir do critério do bem do belo e da virtude137 estarão guiadas por um novo elemento metodológico que ainda está por iniciarse a definição É quando a República chega neste momento que se entende que por ora o discurso está sendo tecido junto à opinião e portanto semelhantemente ao modo já empregado no Timeu 34c 4 pronunciado um tanto por acaso pois não se pode conjecturar nada de imediato antes de se esfregar os elementos constitutivos da hipótese A hipótese central acerca da origem da cidade é para a imaginação a necessidade Fundemos em imaginação uma cidade Serão ao que parece as nossas necessidades que hão de fundála138 Da necessidade se segue a consequência da divisão do trabalho já que a contingência e a comodidade139 implicam a insuficiência humana de ser causa de todo o necessário para si conforme nos atesta não só a República II 369e mas também o Carmides 161e 6 PROBLEMAS 1 Esta formulação da hipótese acerca da Imagem Maior sustentada na necessidade empírica e especificada na divisão do trabalho terá por consequência metodológica a impossibilidade de encontrar a origem da justiça Desde a carência a cidade organiza as necessidades em função da comodidade mas na troca da divisão dos produtos tanto a justiça quanto a injustiça podem ocorrer140 quando por 137República II383c 138República II369c 139República 370a 140República II370a A imagem no discurso filosófico 141 exemplo homens de função subalterna pretendem tomar o cargo de funções superiores141 o que também é frisado no Político 290 Enfim o problema da economia política aparece como a dificuldade de estabelecerse a justiça numa cidade 2 Existe um segundo problema o aumento da cidade Ainda pensada segundo a hipótese empírica da origem da cidade nas necessidades a cidade deixa de ser sadia142 quando os desejos do que é necessário somamse aos desejos pelo nãonecessário143 fazendo habitarem juntos os funcionários responsáveis pelas necessidades básicas e pelo luxo144 Repleta de humores145 a cidade passa a sofrer da dificuldade de administrar suas próprias necessidades O que estes dois problemas representam na função metodológica Assim como no Filebo a investigação parte da imagem dos prazeres necessários e chega ao problema dos prazeres nãonecessários e nas Leis vaise dos bens menores às constituições sediciosas do mesmo modo na República as necessidades incham e crescem respeitando um movimento quantitativamente ascendente e indo do bem para o mal qualitativamente O critério a ser tornado objeto de investigação é a tipologia dos desejos e a necessidade de certos prazeres o que discutiremos posteriormente de onde o auxílio que o Filebo presta a esta passagem Uma vez que este tipo de desejo no Teeteto 176a 67 compreendido como tentação dos mortais corresponde à necessidade como princípio então respeitando este caráter empírico da hipótese podese admitir imaginar a cidade composta de uma multidão de imitadores que trabalham para os objetos 141República II369d 142República II372e 78 143República II372 b 144República II373b 145República II372e Fernando Maurício da Silva 142 dos desejos de segundo tipo146 É assim que a hipótese se renova para que possa ser esgotada pois talvez assim como observa Platão147 se possa chegar à origem da justiça e da injustiça numa cidade de luxo Estamos tratando de uma hipótese cuja origem é a opinião comum procedimento iniciado por Adimanto O método nos diz que esta opinião deve ser purgada para o que se precisa constatar a sua contradição interna entre as qualidades A dialética da imagem da cidade realizou até aqui um desdobramento ascendente quantitativamente da cidade sã limitada às necessidades básicas para a de luxo Este desdobramento corresponde à i divisão do trabalho que acompanha as formas de carências necessárias alimento vestiário moradia etc e ii desejos secundários banquetes assessórios e imitações de todos os tipos etc A culminação desta progressão é o surgimento da iii guerra derivada da necessidade de expansão territorial O critério da necessidade só se sustenta na medida em que é elevado cada vez mais em todas as partes da cidade Mas com o aumento da necessidade é ela mesma que inviabiliza a continuidade da existência da cidade Portanto a pura necessidade é insuficiente para engendrar a cidade se não houver para ela um princípio regulador Assim com a necessidade da guerra e com ela do especialista em guerra dáse o limite do problema o risco do poder dado ao guardião Aumentando o território e as necessidades surge a fronteira e interesse pelos bens das outras cidades e portanto o risco de guerra porém devido a isto surge também iv a necessidade de guardiões que representam um segundo risco ao receberem da cidade um poder maior baseado em confiança e devido às necessidades Devido a esta aparente contradição a investigação sofrerá novo desvio mas agora na direção de um princípio a educação 146República II 373b 147República 373a A imagem no discurso filosófico 143 parece ser o regulador necessário do uso justo das grandes necessidades de uma cidade expandida Este desvio está marcado pela presença de uma imagem específica a do cão de guarda148 21ª Lição sistematização da imagem maior Vimos que a cidade é a Imagem Maior desde onde se poderá investigar a origem da justiça Iniciase investigando a origem da cidade para averiguar junto a esta a origem da justiça A própria noção de origem pede a consideração de causas materiais daí o recurso à opinião comum da necessidade Neste primeiro desdobramento da hipótese genética da imagem temos os seguintes argumentos149 1 No fato de um homem precisar de outro para uma necessidade e ainda outro para outra sendo a cidade esta reunião de ajudantes numa habitação As necessidades que fundam a cidade são 1º a alimentação 2º a habitação 3º a vestimenta etc 2 Tais necessidades exigem tipos de funcionários lavrador pedreiro tecelão a acrescentar outros artífices que se ocupem do corpo sapateiro 3 Cada homem deverá executar seu trabalho próprio em comum a todos ocupando maior tempo para isso e não cada um produzirá todo o necessário para si sem partilhar com os outros É neste momento que Platão oferece a causa da origem das necessidades secundárias cada homem não nasceu igual ao outro mas com natureza diferente e para a execução de uma 148República II 373e 149República II 369371 Fernando Maurício da Silva 144 tarefa Deste modo se cada um fizer uma só coisa segundo sua natureza e na ocasião própria o resultado é mais rico mais belo e mais fácil 4 Quatro grupos de cidadãos serão insuficientes pois cada um trabalhador necessitará de muitos outros para produzir os instrumentos de que necessita carpinteiros ferreiros e artífices 5 Isso torna a cidade mais povoada tornando o lugar de fundação da cidade insuficiente o que torna impossível sua fundação sem importações 6 As importações exigem a existência de um mensageiro que não logra regressar com instrumentos necessários se nada exportar tornando necessário produzirse na cidade não só o necessário mas também na qualidade e quantidade que os outros necessitem 7 A necessidade passa a ser a de um excedente de funcionários lavradores artífices e especialmente mais mensageiros sendo estes os comerciantes 8 Se o comércio se fizer por mar necessitase da marinha ou qualquer outro labuta de comércio 9 Tornase necessário também um meio de troca de compra e venda a moeda e o comércio 10 Ao mercado poderão chegar produtos não a tempo daqueles que necessitam da mercadoria surgindo a necessidade de a mercadores os que se instalam no mercado como intermédio na compra e venda os mais fracos frágeis débeis fisicamente e inúteis para outros trabalhos que permanecerão em praça pública para comprar em dinheiro os que precisam vender e novamente vender por dinheiro aos que necessitam fazer compra e b de negociantes os que viajam pelas cidades 11 E os assalariados aqueles que não sendo admissíveis na cidade por seu intelecto mas sendo úteis por sua força física para trabalhos pesados A imagem no discurso filosófico 145 vendem a utilidade de sua força chamando de salário ao seu preço Considerando este argumento e descrição temos 1 as necessidades físicas levam à 2 necessidade de funcionários 3 o que requer excedente de tempo para a produção 4 cuja qualidade depende do respeito à natureza de cada indivíduo que assim trabalha 5 mas como o trabalho especializado praticado por indivíduos especiais leva a necessidade da fabricação de instrumentos específicos 6 os recursos da cidade tornamse insuficientes provocando a necessidade de importações 7 e para tanto os mensageiros e exportadores 8 a gerar outro excedente de funcionários os comerciantes assim é que 9 surge na cidade cada meio necessário para o comércio 10 bem como a moeda onde se o exerce em termos de compra e venda 11 com o que enfim o tempo ocioso durante os períodos de troca em que o excedente de funcionários inutilizase exige a sua manutenção funcional ao modo dos mercadores e dos assalariados A progressão da necessidade é esta necessidade funcionários 1º excedente especialização do trabalho fabricação de instrumentos importações mensageiros e exportadores comerciantes 2º excedente labutas e moeda mercadores e assalariados Nesta progressão em que a necessidade se excede Platão menciona dois excedentes fundamentais a exigência de um excedente de tempo para a produção por parte dos funcionários de primeiro tipo e posteriormente um excedente do já produzido a ser administrado pelo comerciante Para se produzir maior quantidade de objetos em suas qualidades necessárias para a satisfação dos múltiplos prazeres excedese a necessidade de tipos humanos funcionários que em dois momentos levam as necessidades físicas da produção para a produção da produção Assim temos o mercador como o primeiro momento de inutilidade política de homens mal formados inutilidade física Fernando Maurício da Silva 146 compensada por uma utilidade intelectual que sendo útil não é intelecto propriamente pois o intelecto propriamente dito deve ser desinteressado para ser livre A utilidade política recebe fundamento posterior em função do segundo momento de inutilidade de homens mal formados a inutilidade intelectual compensada pela utilidade física cujo momento originário são os comerciantes o excedente Assim uma cidade se torna coisa objeto de usufruto e não princípio quando o excedente se torna o objeto de desejo supostamente originário de onde se esqueceu das necessidades físicas surge a vida cultural popular no modo do excedente Desse modo Platão faz o excedente das necessidades humanas girar em torno da relação desejoobjeto de produção A cidade amplificada tornase um modo de organização desta relação Temos a passagem da Necessidade ao Luxo e do Luxo às Artes 1 Necessidade necessidade de maior complexidade dos alimentos A vida organizada exige não só produção de trigo vinho vestuário e calçado como na cidade sã que passa a ser insuficiente mas do melhoramento destes conforme as condições e necessidades como condutos para alimentos pintura colorido e preciosidades Enunciase a origem não só da cidade mas da cidade de luxo o que irá permitir melhor compreender a origem da justiça e da injustiça numa cidade 2 Luxo a numa cidade de luxo tornase necessário todo tipo de artífice sobretudo para os artigos femininos afirma Platão e produto que não se encontram no interior da cidade sã como todo tipo de caçadores incluindo os sofistas e imitadores como os pintores e músicos os poetas e seus servidores sobretudo de mais servidores pedagogos amas criados cozinheiros b Tornamse necessários mais médicos do que na primeira cidade c e roubar a terra vizinha para ter se o suficiente na lavoura o que será mútuo se a cidade vizinha também for luxuosa A imagem no discurso filosófico 147 3 Artes assim o próprio cidadão não será suficiente tornandose necessário uma cidade maior com maior exército dado que não é possível que uma só pessoa exercite sozinha as diversas artes Como a luta é uma arte e passa a ser mais importante que a do sapateiro e dado que numa arte se obtém perfeição pela prática exclusiva desde a infância devemse escolher aqueles de qualidade e natureza apropriadas para a guarda A inflação destes três setores necessidade luxo e arte consiste na exposição dialética de uma contradição interna na existência de uma cidade Cada um destes setores deverá ser reavaliado para sabermos se é possível corrigir ou ao menos minimizar suas contradições Surge assim a exigência de um princípio no desenvolvimento da cidade e não a simples progressão da divisão do trabalho Este princípio dará à cidade não uma simples organização mas sentido nesta organização Para tanto não dispensará a lógica do funcionário especializado que segundo sua natureza deverá ser educado desde a infância severamente O governante ocupará o lugar do próprio excedente para que este se torne significativo e não destrutivo seu prazer intelectual o colocará no ápice da inutilidade primária porém na função mais fundamental para a realização do princípio numa cidade o conhecimento da verdade 22ª Lição nova função da imagem e da contradição Vimos acima a passagem da necessidade ao luxo e do luxo às artes A primeira ocorrência de expansão da necessidade consiste na exigência de funcionários especializados em seus trabalhos Como o objetivo disto é tornar o produto o melhor e mais útil e a produção a mais eficaz e rápida concluiuse a Fernando Maurício da Silva 148 necessidade do trabalho ser exercido segundo a natureza de cada um Depois o problema revelou que a progressão desta necessidade chegaria a desdobrarse na guerra o que pediria por homens especializados também segundo a natureza Como este é o limite da progressão e o ponto de dificuldade quanto à injustiça tornase relevante indagar pela natureza humana a ser educada para tais ofícios Este será o ponto em que a investigação sofre um complexo Desvio a tratarse da alma e do corpo bem como da educação básica infantil destes Assim iniciase um segmento da investigação que tem por função esclarecer e indicar os critérios teóricos para se exercer a dialética e o conhecimento da essência no caso da justiça Depois um novo Desvio permitirá fixar os critérios metodológicos da investigação e só então a pergunta pelo valor da vida justa poderá ser resolvida quanto ao indivíduo e a cidade Veremos agora a relação entre a imagem analogia do cão de raça com as artes e a educação Na próxima Lição iniciaremos a dialética das artes literárias e outras mas antes precisamos concluir nosso estudo sobre as contradições inerentes aos setores da cidade e responder a questão como da necessidade luxo e artes desdobrase provisoriamente a educação Isso é efetuado seguindo o já conhecido modelo metodológico a partir de uma imagem e seus problemas a analogia entre o guardião e o cão de raça IMAGEM A analogia do cão de boa raça orientará a investigação Consiste numa imagemintelectual com função metodológica clara dirigir o discurso para a definição Os desdobramentos desta imagem são os seguintes A imagem no discurso filosófico 149 1 Como vimos anteriormente a relação primeira submetida a exame é aquela entre natureza e educação do guardião150 2 Assim como todo funcionário necessita ter aptidões ou capacitações também um guardião soldado delas precisará Por isso colocase primeiro a questão pelas disposições naturais do guardião como eles deverão ser quanto às qualidades psíquicas151 mas enveredase imediatamente para a avaliação da educação pois ainda não há condições de se tratar explicitamente da alma pois as qualidades naturais imediatamente exigidas parecem contraditórias Será a própria investigação sobre a educação que abrirá espaço definitivo para isso 3 Do mesmo modo como se partiu da necessidade e avançouse progressivamente em suas divisões agora se começa a investigação propriamente dita sobre educação pela opinião comum na educação tradicional e com elas suas divisões152 4 Só assim se poderá passar ao modelo de escolha dos guardiões conforme os critérios pedagógicos conquistados153 Visualizemos estes desdobramentos no quadro a seguir 150República II374e 151República II375c 152República II376412 153República II412b Fernando Maurício da Silva 150 A imagem no discurso filosófico 151 O argumento inicia por considerar quais qualidades são necessárias no ânimo de um guardião154 quando se faz a analogia não há diferença entre um bom cão e um jovem bem nascido pois precisam ter um ânimo comum perspicazes para descobrir o inimigo rápidos para perseguir e fortes para combater Mas esta imagem parece implicar a necessidade de uma natureza com ânimos contrários aparentemente simultaneamente impossíveis ânimo brando com o compatriota e acerbo com o inimigo feitio doce e impetuoso ao mesmo tempo Pois o que é um bom cão de raça senão aquele que é dócil para com o dono e ao mesmo tempo bravo para com os estranhos Assim se faz a analogia entre o guardião e o cão de raça manso com os conhecidos ainda que estes nunca lhes tenham feito qualquer benefício e o inverso aos desconhecidos ainda que estes não lhes tenham feito qualquer mal A ênfase está no conhecer o amigo e inimigo Constituise numa amiga do saber não se pode distinguir a visão amiga e inimiga senão na circunstância de conhecêla Do mesmo modo o homem para ser brando com os familiares e conhecidos necessita de natureza filosófica além de ser vigoroso e forte PROBLEMA Não pode passar despercebido que o uso problemático desta imagem é positivo diferentemente de todos os casos anteriores Esta é a primeira vez no diálogo que uma imagem é mais produtiva que inútil estamos diante de uma boa imagem analogia Mas a questão que se impõe é Como educar e criar estes homens155 A analogia feita não ajuda a resolver essa questão Ressaltemos que a resposta a este problema será capaz de descobrir os motivos de todas as 154República II375 155República II376c Fernando Maurício da Silva 152 indagações acerca de como a justiça e a injustiça se originam numa cidade156 Assim o desvio metodológico de educar em imaginação estes homens como se estivéssemos a inventar uma história e como se estivéssemos desocupados é aceito por todos os interlocutores ainda que se dê o caso de ser um pouco demorado157 Está marcado o momento metodológico e o problema que a imagem permitiu desdobrar A imagem do cão de guarda é de caráter inteiramente positivo no lugar de ser desconstruída em suas possibilidades até ser rejeitada ela servirá de fio condutor para a divisão da educação A analogia mostra que na natureza é possível se dar qualidades opostas num mesmo ser sem contradição A imagem é boa porque permitiu descobrir um critério lógico e não apenas físico oposição não é o mesmo que contradição Enquanto nas imagenssensíveis do Livro I era a presença das qualidades contraditórias que acarretando o reconhecimento do princípio de contradição obrigava a se negar a hipótese agora o princípio de contradição deve ele mesmo ser criticado Uma vez que num bom guardião não pode faltar o caráter brando nem o impetuoso uma vez que estas duas qualidades são contrárias entre si onde achar um feitio doce e impetuoso ao mesmo tempo158 Mas este problema é um falso problema pois se deve ao afastamento do modelo proposto afinal há temperamentos que não imaginamos dotados destas qualidades opostas159 O cão de boa raça é um exemplo e é surpreendente que não se o note Neste passo da argumentação Platão rejeitou o princípio de contradição em seu sentido amplo Por que o teria feito A entrada da imagem do cão de guarda no texto ocorre por negação do princípio que até então servira para negar as imagenssensíveis Somente ao sustentar a imagem possível do 156República II376e 157República II376e 158República II375b 159República II375c A imagem no discurso filosófico 153 cão multiqualitativo em detrimento da contradição a pergunta pela educação do guardião surge obviamente com espanto Mas como se pode educar assim a despeito das qualidades contrárias160 Poderíamos resolver o problema lógico deste momento do texto dizendo que os contrários e o contraditório não se confundem o que seria correto tecnicamente mas seria uma falta com o platonismo Platão não apresentou uma distinção sistemática destes termos embora se poderia dizer que operava com uma distinção deste tipo além disso não poderíamos desconsiderar que em Platão o princípio de contradição tem duplo valor e não é fundamento último do conhecimento embora o autor também não tenha deixado de distinguir entre ser e nãoser Sofista nos termos daquele princípio Todo o platonismo sustentase justamente nisso o mundo sensível admite a contradição nas qualidades e o mundo intelectual não de modo que este segundo não pode pretender negar esta possibilidade à sensibilidade sem deixar de compreender sua natureza A relação de contradição não se confunde com a relação de oposição a alma pode desejar e temer um mesmo objeto mas estes impulsos apesar de opostos não são contraditórios Se as qualidades parecerem respeitar ao princípio de contradição tratarseá do equivoco no qual se confunde as qualidades mesmas com as Ideias destas qualidades Portanto assim como se deve separar verdade e aparência também serão distinguidas realidade física fenômenos e realidade teorética Ideias Não são poucos os exemplos que poderíamos consultar nos diálogos de Platão em que se rejeitam regras lógicas mas os que encontramos no Laques e no Carmides servem bem ao nosso propósito A própria República reconhece a regra segundo a qual toda a ciência definese por seu objeto específico porém quando Sócrates chega à hipótese de que a 160República II 376c Fernando Maurício da Silva 154 coragem é uma ciência rejeita esta regra pela seguinte razão ela é a ciência e seu objeto é a ideia de objeto não sendo possível oferecer definição em sentido lógico Laques 194 Do mesmo modo quando se trata de definir a sabedoria perguntase pelo seu objeto com o que então seria a ciência que tem por objeto a si e as outras ciências Carmides 166e o que faria da sabedoria uma ciência à parte ao menos no sentido de que a sabedoria é princípio e causa do conhecimento em geral É esta propriedade de ser à parte que o platonismo pretende alcançar nas Ideias e que torna a filosofia um conhecimento que passa dos limites lógicos Enquanto as ciências empíricas tem um objeto externo que lhes define e produzem uma obra também específica ciências como a geometria não produzem nada alheio a elas desde seus objetos específicos Mas a sabedoria seria um conhecimento com objeto próprio si mesma e ao mesmo tempo exterior todas as outras Sua definição não pode respeitar o princípio de contradição porque é ciência do todo Portanto é preciso compreender que para o lugar das Formas ou Ideias o uso noético intelectual intuitivo da lógica pode levar ao erro como ocorre com o personagem Eutífron ao enunciar que o piedoso é justo e não admite o contrário para não ferir a regra segundo a qual a relação predicativa não permanece verdadeira em sua contrária Eutífron não consegue compreender como o piedoso também pode ser injusto Voltando à República recordemos que Sócrates cedeu ao raciocínio lógico de Céfalo no inicio do Livro I quando este argumentou a partir das evidências sensíveis e das opiniões comuns sobre o que seria uma vida justa e livre de dívidas Mas isto não permite chegar à definição eidética de justiça Por que justamente quando a imagem adquire uma função positiva o princípio de contradição deixa de ser o único critério e não se tolera nem o raciocínio empírico nem o lógico Porque se tem em vista a definição eidética definição pela Ideia e esta por sua natureza não se deixa dizer A imagem no discurso filosófico 155 logicamente pois o discurso lógico ainda é uma imagem apesar de superior as imagens sensíveis O mito o faz muito melhor quando se trata da necessidade de falar Aliás esta dificuldade é ápice na República através justamente de um mito sobre o aprender e educar o mito da caverna como veremos mais tarde 23ª Lição uso construtivo da hipótese e a literatura Passaremos a descrever os argumentos de Platão sobre a arte poética literatura música etc Este assunto abrirá espaço para a discussão tanto da justiça quanto da educação Também preparará a distinção sobre o valor do mito O discurso de Platão será retomado através de outra imagem incluída dentro dos desdobramentos da imagem principal Como entendêla considerando que se afirmou que o texto neste momento se encontra num novo momento Mais uma vez deveremos procurar as dicas para solucionar este tipo de questão no próprio texto Sendo verdade que a República é uma purificação das autoridades gregas razão pela qual a poética de Homero é fortemente criticada e muitíssimo exemplificada disso não se segue que o mito narrativas poéticas não tenha valor para a dialética O mito precisa ser distinguido entre seus tipos que encaminham ou não para a verdade de forma que tal como a hipótese no nível lógico o mito também é um meio para o processo cognitivo como veremos em momento oportuno Certamente a República é conhecida por dar ao mito poético um lugar depreciável mas isso não vale para toda forma de mito já que a própria República é uma literatura e repleta de mitos Assim se Platão analisa criticamente os mitos narrativa literária e fábulas sobre o heroísmo a morte os deuses e as divindades 392a no Livro III 396 classifica três tipos de narrativas segundo o grau de imitação e de Fernando Maurício da Silva 156 veracidade retomando os critérios já mencionados de aparência e verdade E não é sem importância o fato desta solução sobre o valor do mito ser simultânea à crítica da imitação Platão trata dos mitos e da poética quanto ao seu valor teórico e pedagógico de modo que quanto ao último tem por projeto uma nova forma de literatura capaz de utilizarse formativamente dos mitos Como exemplo de uma literatura deste tipo a própria obra República seria o melhor caso Com efeito poderíamos dizer que os diálogos de Platão têm por forma o drama não a tragédia pura ou a epopéia pois apesar de drama não ser um gênero literário entre os gregos mas apenas a forma escrita para ser encenada e apesar do drama em alguns diálogos platônico não poder ser entendido como a narrativa orientada pelo sujeito o que somente ocorrerá na modernidade ainda assim poderíamos compreender um caráter dramático na busca do conhecimento com o perdão do anacronismo do termo Possivelmente é o primeiro texto literário em que a narrativa é feita em primeira pessoa pelo personagem de Sócrates em conformidade com aquilo que Platão chamou de narrativa verdadeira Se o poeta não se ocultasse em ocasião alguma toda a sua poesia e narrativa seria criação sem imitação161 O homem que julgo moderado quando na sua narrativa chegar à ocasião de contar um dito ou feito de uma pessoa de bem quererá exprimirse como se fosse o próprio162 Além disso a República é o diálogo que mais claramente se utilizou do modo mítico da imagem com fins teóricos já que há uma maneira de falar e narrar pela qual se exprime o verdadeiro homem de bem163 O livro III da República inicia a construção da educação imaginária do guardião como em narrativas Parte se da opinião comum que oferece um modelo tradicional do 161Republica III 393c 162República 396d 163República 396c A imagem no discurso filosófico 157 ensino assim como a Carta VII ao investigar o método de conhecimento parte também dos modelos dados como já vimos Repetese o meio imagético do processo caracterizado agora como histórico ou narrativo e continuase a investigação de forma divisória e ascendente Porém a novidade é que esta ascendência não culmina numa crise mas num critério A hipótese é a da melhor educação encontrada ao longo dos anos com vistas à possibilidade de formação de um homem com duas qualidades contrárias mas necessárias para a sua função É preciso reconhecer que o começo é o mais difícil em qualquer empreendimento pois é neste momento que se molda a matriz em que se imprimirá uma pessoa Isto implica na questão pelas formas de ensino em conformidade com a natureza do educando Esta conformidade entre ensino conhecimento e natureza culminará no Livro VI e VII da República na relação entre verdade e objeto A divisão hipotética é a seguinte I MÚSICA primeira forma de ensino endereçada à alma É importante mencionar que o termo música no grego significava literalmente arte das musas e referiase à toda arte sonora incluindo o canto a oratória e as letras Do mesmo modo que a física é o estudo da physis ou a ética é o estudo do éthos a música é a arte e conhecimento das mousas de forma que a arte dos sons é só um caso de música juntamente com a literatura história etc Por isso o estudo da música incluirá a literatura e o canto Devese começar por vigiar os autores das fábulas selecionando as boas e proscrevendo as más pois a criança não pode distinguir o alegórico do que não é por meio do raciocínio É notável na leitura desta passagem que o critério verdadeirofalso já está sendo aplicado muito embora seja explicitado num sentido Fernando Maurício da Silva 158 não lógico mas ontológico pois verdade está para real assim como falsidade para aparência 1 LITERATURA Devese distinguir a literatura quanto a sua forma e quanto ao seu conteúdo A FORMA DA LITERATURA A forma da literatura admite tipos diversos Tipologia segundo a imitação como veremos após Platão examinar os conteúdos da literatura disponível em sua época encontrará por trás dos seus temas mais típicos deuses heróis e Hades os seguintes critérios a verdade o bem e a justiça Com o princípio de verdade em mãos o autor poderá tecer uma classificação das formas literárias segundo os graus de imitação Nossa leitura encontrase agora no limiar da função da imagem para a dialética pois é a própria imitação que passa a ser examinada segundo o princípio de verdade e portanto as imagenssensíveis que sempre são modos da imitação Uma vez que toda poética e prosa é narrativa de acontecimentos passados presentes e futuros sua execução pode ser dividida do seguinte modo164 LITERATURA Tipologia segundo a imitação a Por simples narrativa até Ilíada I 1516 é o poeta quem fala sem levar o leitor para outro lugar como se outra pessoa estivesse a falar Se o poeta não se ocultasse em momento algum toda sua narrativa seria simples sem imitação Exemplo deste caso são os ditirambos tipo de música festiva comum nos ritos dionisíacos 164República III394 e 397 A imagem no discurso filosófico 159 b Por imitação após a Ilíada I 16 o poeta Homero fala como se fosse o próprio personagem Crises tirandose a voz do poeta e ficando só o diálogo onde seu estilo deve o mais possível assemelharse ao da pessoa que fala tornando se semelhante a alguém na voz e na aparência imitação Assim a tragédia e comédia são pura imitação c Por narrativa e imitação o poeta imita umas coisas e outras não a questionaremse as espécies destas coisas a serem imitadas Exemplo a epopeia sempre composta Este exame exige da literatura uma inovação grandiosa entre os gregos acerca da qual a República é que serve de exemplo a narrativa em primeira pessoa Diferentemente de toda tendência moderna Platão valoriza o texto em primeira pessoa pelo fato de ser a única forma de não ocultar o orador que deve encarnar a nobreza do discurso Isto levará à investigação sobre a formação da alma e suas disposições tipológicas Esta divisão dos modos de narrativas desdobrase na questão que espécie de coisas se deve e não se deve imitar em nome da formação nobre do guardião O mesmo é perguntar se os guardiões devem ser imitadores ou não Como se fixou antes por princípio cada um só exerce bem uma profissão e não muitas sem o que falharia em alcançar reputação Não se pode imitar bem muitas coisas como a uma só Por isso a pergunta genérica por trás destas é a da natureza humana que parece estar fragmentada em pequenas partes por não poder imitar bem muitas coisas nem executar bem aquelas coisas das quais a imitação é cópia Por isso os guardiões definemse como os artífices escrupulosos da liberdade do Estado a não ocuparemse nem imitar nada mais mas apenas aquilo que lhes convém desde a infância coragem sensatez pureza liberdade e qualidades desta espécie Esta incapacidade e não dever em imitar a baixeza e demais vícios partindo da imitação até o gozo da realidade deixase resumir na fórmula Devese conhecer os loucos e os Fernando Maurício da Silva 160 maus mas não imitálos Pois as imitações perseveradas desde a infância tornamse hábitos e natureza para o próprio corpo a voz e a inteligência Que o termo hábito tenha no grego raiz comum com ética habitar e morar implica nesta passagem que o problema ético da justiça está sendo desenvolvido em termos de formação humana ou seja que o problema da virtude é o mesmo da nobreza o aperfeiçoamento na direção do bem para o qual um ser é o que é Em função deste ser se pode reduzir toda narrativa a duas formas a verdadeira e a falsa Como o que está em questão é a imitação do próprio guardião a formar a sua nobreza então o homem moderado narra feitos de pessoas de bem se exprimindo como se fosse o próprio sem envergonharse desta imitação não querendo copiar exemplos inferiores a ele a não ser superficialmente e com vergonha mas só quando tiver praticado algo honesto por sentirse próximo às epopeias Quanto maior a mediocridade do orador mais ele considerará tudo digno de si e imitará tudo constituindo seu discurso mais de vozes e gestos imitação e menos de narração Esta propriedade epopeica ou heroica do caráter marcada pela vergonha de si em oposição ao amordesi e ao autosenso de verdade é o que funda a narrativa em primeira pessoa o próprio platonismo De acordo com isso a divisão anterior das formas literárias pode ser novamente classificada segundo o grau de alteração e permanência que as imitações sofrem ao longo da narrativa Tipologia segundo a variação distinguese nas seguintes formas LITERATURA Tipologia segundo a variação a 1ª forma de narração a que experimenta poucas alterações mantendo essa correção quando se dá à narração a A imagem no discurso filosófico 161 harmonia e o ritmo convenientes por serem pequenas as mudanças e os ritmos aproximados b 2ª forma de narração aquela que precisa de todas as harmonias e ritmos para exprimirse convenientemente por comportar toda forma de variação c 3ª forma de narração modo misto Se a forma mista é mais aprazível não é útil e de bem para a formação nobre do homem é vantajosa às crianças preceptores e à multidão mas não se adéqua ao governo que não comporta homens múltiplos e duplos que exercem mais de um oficio O ser verdadeiro ou falso de uma narrativa corresponde à permanência ou variabilidade de sua forma de modo a refletir em seu conteúdo B CONTEÚDO DA LITERATURA 1 O primeiro conteúdo a ser ensinado é a literatura falsa fábulas às crianças antes do ginásio razão pela qual se deve começar pela música antes da ginástica As fábulas são mentiras no conjunto embora contenham verdades Com o mesmo critério que deu início à imagem da cidade determina se aqui começar pelo exame das fábulas maiores desde onde se pode examinar as menores por terem possivelmente a mesma matriz As fábulas falsas maiores Hesíodo e Homero contam mentiras sem nobreza má imitação do modo de ser de deuses e heróis por exemplo ambos mentem enganam matam roubam etc Pois isso quando for forçosa a sua referência devese escutála em segredo ao menor número e amenizar o desagradável Notemos novamente que Platão aplica aqui o termo dever segundo o critério de verdade porém neste momento temos a ocorrência de um conteúdo ético a noção de nobreza Esta é a nomeação da imagem do cão de boa raça de raça nobre melhor A educação implica esta forma nobre e aliada à verdade dirige o discurso para o justo Assim é este o Fernando Maurício da Silva 162 critério para examinarse o sentido das fábulas falsas maiores as fábulas falsas a serem contadas às crianças devem ser compostas da maior nobreza possível e orientadas pela virtude Compreendemos agora como o tema da educação do guardião serviu de pretexto para a dialética purificar a imagem inicial do cão Depois disto passase a analisar o conteúdo destas composições as narrativas que falam dos deuses das divindades dos heróis e do Hades165 Acompanhemos os passos a Fabulas sobre deus critérios moldes para a produção poética referentes à teologia166 A regra é confabular tal como é deus realmente na poesia épica lírica ou trágica 1ª Lei dos moldes poéticos relativos à teologia Deus não é causa de tudo mas só dos bens Contra Homero como por exemplo na Ilíada IV 69126 onde lemos no limiar de Zeus repousam duas vasilhas cheias de destinos uns bons outros maus argumentase da seguinte maneira 1 Deus é essencialmente bom 2 Nada que seja bom é prejudicial 3 O que não é prejudicial não é nocivo 4 O que não é prejudicial não faz nenhum mal 5 Aquilo que não faz nenhum mal não pode ser causa do mal 6 O bom é vantajoso e é causa de benefício 7 Mas o bem não é causa de tudo mas só de bens e não de males 165República II392a 166República II379 A imagem no discurso filosófico 163 C1 Logo se deus é bom não é causa de tudo mas apenas de um pequeno número de coisas que acontecem às pessoas C2 E dado que nossos bens são em menor número haverá para os males outra causa que não deus 2ª Lei dos moldes poéticos relativos à teologia Deus tem forma simples e é o ser menos capaz de sair de sua própria forma Argumentase deste modo 1 Deus não é um feiticeiro capaz de traiçoeiramente aparecer de formas diversas estando presente com aspectos diferentes iludindo e simulando aparições 2 Se algo sai de sua forma ou se transforma ou é transformado por outrem 3 As coisas melhores são as menos sujeitas à transformação alheia por exemplo o corpo mais saudável e forte é o que menos se altera pela ação da comida bebida e esforço ou uma planta sujeita ao sol ou a alma é mais corajosa quanto menos se abala por acidente externo 4 Todos os objetos compostos se bem feitos ou em estado perfeito alteramse o mínimo pelo efeito do tempo e demais acidentes 5 Ora deus é em tudo melhor 6 Então é o que menos tem formas 7 Se puder alterarse ou metamorfosearse fará para pior já que não carece de nenhuma beleza ou virtude 8 Mas ninguém voluntariamente deus ou homem quer tornarse inferior C Logo é impossível um deus querer transformarse pois sendo cada divindade a mais bela e a melhor permanece sendo de uma só forma que lhe é própria 3ª Lei dos moldes poéticos relativos à teologia167 167República II382 Fernando Maurício da Silva 164 Deus é absolutamente verdadeiro e simples em palavras e atos nem se altera nem ilude por aparições falas ou sinais em vigília ou em sono Se a primeira lei tratou da noção de causa a segunda da forma esta terceira determina a noção de verdade ninguém desejaria que sua alma permanecesse no erro em relação à verdade ou seja na ignorância Por isso a verdadeira mentira é ignorância que existe na alma de pessoas enganadas de modo que esta expressão verdadeira mentira faz com que a noção de mentira participe da noção de verdade Além desta temos secundariamente a mentira por palavra que é imitação do que a alma experimenta podendo ser tornada útil em dois casos i quando em relação aos amigos querse praticar má ação ii na composição de fábulas por não saberse onde está a verdade relativa ao passado acomodandose o máximo a mentira à verdade b Fábulas sobre a morte critérios moldes para a produção poética referentes à tanatologia168 i O ensino sobre o Hades e seus terrores faz temer a morte Por isso devese ensinar palavras que façam as crianças temerem a morte o menos possível para conservar a coragem pois o que caracteriza os homens livres é temerem a escravatura mais que a morte ii Rejeitar os nomes relativos ao Hades como por exemplo Cocito e Estige rios do Hades e noções como os que estão em baixo da terra espectros e toda designação que faz arrepiar e amolecer iii Rejeitar gemidos e lamentos dos homens célebres como lemos na Ilíada XVIII 168 quando se diz Ai de mim Desgraçada Ai Mãe infeliz do mais valente dos homens Pois o homem honesto não considera terrível a morte de outro homem honesto e não a lamenta pois para ele é menos terrível 168República III386 A imagem no discurso filosófico 165 ser privado de um parente riqueza ou qualquer outro bem Por isso as lamentações devem ser entregues às mulheres sem mérito diz Platão e aos homens covardes para que não suportem o procedimento da guarda iv Rejeitar representar homens dignos e deuses como amigos do riso pois quase sempre que se estraga ao riso violento também sucedendo mudança violenta Antes de concluir o exame dos tópicos da literatura com o conquistado até aqui Platão já é capaz de fornecer o fundamento da literatura falsa a saber o valor político da mentira Pois a literatura falsa não está sendo excluída da cidade mas apropriadamente situada e minimizada Com isso também a mentira precisa encontrar seu lugar útil a mentira é inútil aos deuses mas útil aos homens como remédio para chefiarem o benefício da cidade e cidadãos de modo a se castigar todo aquele que mentir na cidade como introdutor de costume que a faz perder mas a aceitarse a mentira por parte do governante que prescreve por exemplo as fábulas falsas a serem ensinadas Isto significa que o platonismo coloca o conceito de virtude acima do conceito de dever e não torna este último o critério para a definição do bem que sendo um fim pode incluir males úteis Assim como Platão pretende colocar a verdade na frente da opinião verdadeira também pretende criticar a ortodoxia bons costumes e deveres reconhecidos politicamente a favor da areté virtude A consequência ética para a literatura é a necessidade de ensinar a temperança cujo ponto cardeal é a obediência obedecer aos chefes e ser senhor de si quanto aos prazeres de Afrodite bebida e comida Introduzse no discurso uma virtude e se fundamenta a literatura na direção da formação virtuosa do caráter169 Assim se determina o mal ensinado e justificado a literatura deve dizer aquilo que ensina o domínio de si firmeza sobre os próprios desejos e não o arrebatamento pelo 169República III390 Fernando Maurício da Silva 166 desejo e a ambição tal como estimulada em Homero onde se atribui atos maléficos aos deuses e heróis 1 por ser falso que o mal venha dos deuses 2 por ser prejudicial a quem ouve ao oferecer justificativas para o proceder mal desde o exemplo de deuses e heróis Esta síntese das regras literárias teológicas e tanatológicas do grego tánatos morte trazem a verdade e o bem para o patamar de princípios A análise da hipótese sobre a educação foi capaz de oferecer duas pedras sólidas para Platão poder voltar às virtudes e com estas à definição de justiça c Fábulas sobre os homens critérios moldes para a produção poética referentes à antropologia170 Os poetas e prosadores comentem os maiores erros acerca dos homens devido à seguinte tese a muitas pessoas injustas são felizes e as justas são desgraçadas b que é vantajoso cometer injustiça se não forem descobertas c e que a justiça é um bem nos outros e nociva para o próprio individuo Notemos que o problema aqui não é simplesmente ético embora assim pudesse ser chamado num uso mais amplo do termo A preocupação não é apenas com o agir bem pois a noção de virtude implica na melhor potência para a ação sua perfeição ou nobreza ἀρετή areté O problema ético platônico é antes com a nobreza humana o seu aperfeiçoamento ou melhora dependentes da formação ou educação e com esta da vida na cidade Não basta seguir a ortodoxia deveres reconhecidos mas é preciso buscar a virtude da justiça Indivíduos eticamente bons porém 170República III392a A imagem no discurso filosófico 167 medíocres não atestariam a Ideia de bem pois seriam um passo contrário na direção do verdadeiro homem de bem Chegamos então aos três princípios da formação do homem a verdade o bem e a justiça Conforme nos explica o Livro VI da República é a partir destes princípios que o conhecimento pode se elevar das hipóteses para a definição do ser em si de algo Agora estamos diante do problema filosófico propriamente dito se os princípios foram conquistados por que não passar imediatamente à definição de justiça Porque ela própria é um dos princípios Assim como no Laques a coragem é difícil de definir por ser uma ciência que não possui certo objeto mas ocuparse do objeto bem como no Cármides a sabedoria é ciência do todo de si e de todas as ciências aqui a justiça é um dos princípios para a sua própria definição Este tipo de assunto justiça bem sabedoria coragem tec nos coloca em um círculo e por isso não pode ser resolvido partindo de hipóteses na direção de conclusões Não se pode portanto simplesmente avançar em conformidade com as regras lógicas Será preciso antes compreender o sentido disto que se mostrou no enunciado a justiça é princípio 24ª Lição abertura para o eidos e a harmonia Quando examinamos os tipos literários chegamos às noções de verdade bem e justiça como princípios ou seja os moldes teológicos exigiram da literatura a boa referência à causa à forma e à verdade como propriedades de deus Na segunda divisão da música a melodia o que importará será a retomada da noção de forma aqui compreendida no termo belo representando o primeiro exemplo explícito da República sobre a Ideia idea O mesmo vale para toda arte Por serem a fealdade a arritmia e a desarmonia irmãs da linguagem perversa e do mau caráter então a educação pela música tornase capital pois o ritmo e a harmonia penetram Fernando Maurício da Silva 168 mais profundo na alma e afetamna mais fortemente trazendo consigo a perfeição e tornandoa perfeita Isto implica na perfeição do trabalho e da constituição natural ensina a odiar o feio desde a infância antes mesmo de formarse a razão e uma vez na idade da razão leva à afinidade com ela Sendo que o mais belo é o mais desejável não é possível conhecer a música sem antes conhecer as qualidades do caráter pois a música se encanta mais com homens bem constituídos Assim se configuram como condições da formação nobre do caráter o amor o desejo e o prazer com o belo não pode haver relação entre temperança e demais virtudes e prazer excessivo por ser este tão excitante quanto à dor A finalidade da música é o amor ao belo intuição de estar diante de um objeto que imita a Ideia do belo como modelo 2 A MELODIA Continuando a divisão da música após a literatura teremos a melodia que corresponde ao que modernamente chamamos de música em sentido estrito Uma vez que as palavras não diferem do discurso não cantado e harmonia e ritmo devem acompanhálas devemos examinar os elementos que compõe a melodia o que segundo a tradição musical grega dividese em três palavras harmonia e ritmo Vejamos no quadro a seguir A HARMONIAS O critério consiste em rejeitar as harmonias moles e lamentosas São estes os casos de harmonias listadas por Platão na República a Harmonias lamentosas mixolídia sintonolídia lídia e outras a serem excluídas por serem inúteis às mulheres e homens quando devem ser honestos A imagem no discurso filosófico 169 b Harmonias moles e dos banquetes jônia e lídia Não servem na formação de guerreiros pois nada convém menos aos guardiões que a moleza a embriaguez e a preguiça Deste modo resta apenas como aceitáveis as formas c dória e frigia ou seja a forma violenta aquelas que imitam a voz e inflexões de valentia e violência d e a voluntária aquelas que se encontram em atos de persuasão e moderação B RITMOS Neste caso o critério é procurar os correspondentes a uma vida corajosa e ordenada 1 a beleza ou fealdade de forma dependem do bom ou mau ritmo 2 o bom ritmo depende do bom estilo 3 a harmonia depende de o ritmo adaptarse à palavra 4 e todos estes dependem do caráter A imagem reguladora do cão de raça nos trouxe algumas ideias diretrizes a causa a forma ou o belo como a presença da forma a verdade o bem e a justiça A primeira dá sentido às outras pois em comum todas são princípios A segunda como vimos implica na intuição noética intelectual da finalidade da música o belo Podemos exemplificar é correto dizer que é bela ou que é feia uma música egípcia grega chinesa brasileira islâmica etc e sobre esta variedade cada um achará que a sua música é mais bela que a do outro Este relativismo é possível pelo fato de cada uma destas tradições conceberem a música segundo critérios próprios oriundos de sua cultura ortodoxa Porém apesar desta enorme Fernando Maurício da Silva 170 variedade quanto à matéria da música não há variação quando a forma com que a arte e a obra musical é concebida e executada todos reconhecem a música como música sem precisar comparar a música com a pintura ou as demais artes mas bastando considerar a sua forma própria e em todos os casos concretos de músicas sempre se pretende chegar ao belo e se julga a própria música e a alheia segundo o critério do belo Isto significa que por mais que variem os tipos de músicas e opiniões sobre elas todos julgam a própria música desde um critério comum o belo Por isso também são capazes de julgar quando estão diante de uma música bem ou mal formada Portanto a música grega e a egípcia são exemplos de imitações do belo e deste se aproximam tanto quanto podem mas o belo mesmo enquanto finalidade da forma de todas as músicas permanece inalcançável para toda matéria sonora apreensível apenas dialeticamente Independentemente do tipo de música em questão e de sua origem chamamos de bela aquela música que for bem formada do mesmo modo que um instrumento não é dito bem afinado segundo o ouvido de cada um mas segundo a própria afinação Notemos contudo que consiste em intuir diante de um exemplar sonoro da música se há boa ou má forma Mas o critério do bem é mais fundamental Mesmo a verdade depende do bem como princípio a verdade é um bem ou seja se dá como Forma segundo uma finalidade E mesmo o belo é encontrado por uma arte podemos acrescentar quando esta atinge a sua finalidade isto é seu bem Sendo o bem a finalidade própria de cada coisa e se uma música somente é bela quando foi formada segundo sua finalidade musical por si mesma então uma música somente é bela quando é boa em sua forma e finalidade Por isso a República concluirá esta parte da investigação quando chegar a Ideia ou Forma de bem e constatar que para os objetos do conhecimento não só a possibilidade de serem conhecidos lhes é proporcionada pela A imagem no discurso filosófico 171 ideia de bem mas também o ser e a essência pois o bem não é uma essência e está acima e para além das essências171 A Ideia de bem é indicada inicialmente através da imagem do Hades ou seja da morte em referência a vida de bem aludida por Céfalo e finalmente mostrase como além da essência além da definição discursiva das coisas O bem está além do mundo da vida porque é possível viver sem conhecimento do bem mas não viver bem que é finalidade da própria vida E o bem está acima da essência porque esta somente é um valor ou possui validade para o conhecimento porque também busca um bem ou finalidade É por isso que só após a análise das formas de ensino o método dialético estará em condições de ir à essência da justiça 25ª Lição a abertura para o eidos e a ginástica Tratamos da poesia e da música e é preciso passar à ginástica ou educação do corpo A seguinte hipótese deve ser demonstrada nesta etapa é a alma boa que torna o corpo bom e não o contrário Mas isto só se encontra após fracassar o exame da ginástica segundo a opinião comum que a fundamenta no corpo Supostamente após tratar da educação do espírito deverseia passar a considerar os modelos de cuidados com o corpo absterse da embriaguez não precisar de outro guardião regime que não o torne precário e sonolento para a luta As qualidades da educação do corpo são consideradas por analogia à música já que assim como a música gera a temperança na alma a ginástica gera saúde no corpo tornando a dieta comparável aos ritmos e harmonias 171República VI509a Fernando Maurício da Silva 172 II GINÁSTICA segunda forma de ensino endereçada à alma Será neste momento que o último Desvio demorado poderá ser esgotado em sua primeira vertente e com isso dadas as condições para definir a justiça a partir de seus princípios correlativos o bem o belo e o verdadeiro Este passo metodológico é possível porque ao seguir a divisão tradicional do cuidado com o corpo a medicina e a higiene e utilizar a imagem do médico perfeito mito de Asclépios uma das divindades da medicina grega chegase a imagem da própria filosofia como medicina da alma Como a perfeição do oficio de Asclépios devese ao fato deste ser mais político que médico o médico da alma precisará ser comparado também ao político o que será possível pelo fato do governante ser alguém que somente pode julgar de modo justo se o fizer conforme a verdade O primeiro argumento consiste em mostrar a relação entre medicina e política ou médico e juiz que a medicina pode ser um sintoma político se a libertinagem e a doença se multiplicam na cidade abremse numerosos tribunais e enfermarias as chicanas e medicinas não são veneradas A maior prova do vício e má educação na cidade é a necessidade de médicos e juízos eminentes para as pessoas simples e para os criados Do mesmo modo é sinal de não educação necessitar da justiça de outrem por falta de justiça própria bem como a maior vergonha além de passar a vida nos tribunais como réu ou acusador é ser capaz de arquitetar todas as partidas tal como um médico que pretende curar tudo Por isso devese ter em conta que as doenças naturais distinguemse das doenças por hábitos caso em que se precisa de medicina não para curar ferimentos ou enfermidades climáticas mas devido a indolência ou a dieta enchendose de humores ou ventosidades flatulências e catarros Observase também que a medicina antiga dos asclepíades é diferente da A imagem no discurso filosófico 173 medicina atual de Heródico que mistura ginástica e dieta atormentando primeiro a si próprio por dilatar sua morte pois acompanhou passo a passo sua doença sem curarse atravessando a vida a tratarse sem ocuparse de mais nada acarretando a morte devido ao seu saber Este é o caso da medicina tornada doença política diferentemente de Asclépios como político O cuidado prolongado com o corpo a mania de cultivar doenças e o excessivo cuidado com o corpo que ultrapassa o regime saudável impede o exercício do trabalho e impede a reflexão pois provoca a fadiga cerebral e a vertigem Assim Asclépios ensinou a medicina para expulsar as doenças por meio de remédios e incisões prescrevendo a dieta habitual e não tratando prolongadamente com infusões e longas e dolorosas purgas os corpos minados pelas doenças para não prejudicar os negócios políticos e os próprios pacientes Portanto do mesmo modo que é preciso bons médicos também são igualmente necessários bons juízes na cidade sendo maior o número quanto maior for o de doentes e variadas as naturezas Por outro lado o melhor médico diferenciase do melhor juiz quanto ao seu objeto pois o corpo não se trata por meio do corpo mas pela alma e esta se doente não é possível tratar com êxito O juiz governa a alma por meio da alma o qual não convém ser criado junto àquelas almas perversas nem ter percorrido todas as injustiças para conjecturar o crime dos outros pelo seu próprio exemplo Antes deve ser inexperiente e intacto dos maus costumes da juventude razão pela qual as pessoas de bem são fáceis de ludibriar na juventude pelos injustos por não terem em si o modelo de tais sentimentos Por isso o bom juiz é idoso aprendendo tarde o que é a justiça apercebendose dela sem alojála na alma mas por observação alheia por longo tempo compreendendo o mal pelo saber e não pela experiência O que sabe por experiência própria parece astuto junto aos seus parece sábio e não ignorante por conviver mais com os maus que com os bons Fernando Maurício da Silva 174 mas junto aos bons revelase tolo desconfiado e desconhecedor do que seja um caráter são por não ter em si o modelo Logo este princípio de que o juiz deve ser bom por meio da sabedoria e não da experiência já que conhecer o vício pelo saber é diferente de conhecêlo pela experiência estabelece o conhecimento da verdade como princípio para o juízo de justiça pelo governante Enfim a justiça encontrou seu princípio de possibilidade A analogia entre o político como juiz da alma e o médico como político do corpo somada a constatação problemática de que não é possível medicina da alma exige então a avaliação da natureza da alma para que se possa compreender como o governante pode conhecer e julgar por meio dela Só assim a metáfora do filósofo simultaneamente como médico e como político poderá ser apreciada Há um sistema na análise platônica sobre a educação infantil iniciada e tecida a partir da analogia do cão de raça A hipótese inicial recordemos foi analisar separadamente a música e a ginástica onde se supunha uma para o corpo e outra para a alma Podemos agora entender que esta hipótese não foi inteiramente aceita pois mesmo a ginástica deve ser compreendida como referente à alma pois depende mais da força do ânimo que da saúde do corpo É assim que surge o problema da alma explicitamente na República Para podermos avançar quanto a este aspecto consideremos no gráfico a seguir os desdobramentos feitos por Platão em torno da imagem do cão de raça A imagem no discurso filosófico 175 CAPÍTULO III A definição no discurso filosófico Introdução Enfim chegamos aquele momento em que a dialética alcança seu extremo e tomando para si conceitos mais puros executa uma viravolta ou caminho de retorno aos itens debatidos Empreendemos até aqui um estudo do método dialético de discurso Capítulo I e da função dialética das imagens Capítulo II e passaremos ao estudo da definição de ideias dialeticamente purificadas Capítulo III A partir disto estaremos aptos para o estudo dos mitos positivos para o conhecimento dialético o que faremos em nossa conclusão 26ª Lição o processo de retorno à questão essencial A investigação sobre o valor político da ginástica terminou com a síntese de que todo ensino é exercido sobre a alma e nunca dirigido ao corpo Com isso o Desvio é concluído e retornase a determinação final de como escolher o homem que fora verdadeiramente formado para o governo Disto se derivará um segundo desvio psicológico paralelo ao primeiro pedagógico Esta divisão confluirá na definição de justiça Fernando Maurício da Silva 178 A definição no discurso filosófico 179 O argumento conclusivo é construído do seguinte modo172 1 Supõese que os que assentam a educação pela música e a ginástica o fazem para educar o corpo por uma e a alma por outra 2 Por um lado os que se dedicam exclusivamente à ginástica são grosseiros e duros e por outro os que se dedicam exclusivamente à música são moles e doces de modo que sua natureza dá lugar à grosseria dureza e irascibilidade mas se fossem cultivados daria lugar à coragem 3 Apesar de a doçura ser apanágio de natureza voltada à filosofia quando se afrouxa tornase mais mole que convém mas se bem dirigida tornase doce e ordenada 4 Os guardiões precisam ter ambas as naturezas necessitando conciliálas harmonia que resulta em uma alma moderada e corajosa ou covarde e grosseira pela desarmonia 5 Portanto é o ânimo que é educado pela ginástica não o corpo A música e a ginástica são duas artes dadas não ao corpo e a alma mas às duas faces da alma corajosa e filosófica a fim de se harmonizarem Com isso a investigação não chegou à harmonia entre corpo e alma mas a alma harmônica em suas partes Não se trata de buscar a harmonia entre corpo são e alma lúcida mas a harmonia entre as partes da alma A música e a ginástica são portanto as duas artes concedidas pela divindade para exercitarem as duas faces da alma que lhes correspondem a corajosa e a filosófica173 Platão define coragem como capacidade da alma em manterse na verdade174 Isso permite compreender perfeitamente que em ambos os casos estamos diante do amor 172República III410 e 411 173República III411e 174República IV429 Fernando Maurício da Silva 180 ao saber como a imagem do cão de raça havia indicado Seja como for está colocada a exigência de investigar se a alma tem realmente parte ou se é simples Mas os passos metodológicos da República indicam que a pergunta o que é a justiça não exige o esgotamento do problema da alma mas apenas sua suposição Isto será exigido para responder não a questão inicial mas a primordial enunciada secundariamente na ordem cronológica do texto se a vida justa é mais vantajosa que a injusta Esta investigação permite chegar à definição de justiça porque dá o primeiro passo concludente no processo analógico onde as divisões dos tipos humanos e as divisões da alma se tornam correspondentes a serem incluídas posteriormente na divisão do conhecimento e das classes sociais de uma cidade Portanto vejamos qual imagem tem o poder de oferecer a suposição da divisão da alma de forma suficiente para definir a justiça na cidade A vertente psicológica do Desvio metodológico inicia se por uma imagem Tratase do mito do nascimento humano desde a terra175 que deveria compor parte da literatura falsa a ser contada na infância do guardião Estamos diante de uma mentira mito necessária MITO DA ORIGEM DOS TIPOS HUMANOS Os guardiões e suas armas foram moldados e criados no interior da terra e uma vez forjados a terra como sua mãe os deu à luz devendo cuidar e defender o lugar em que se encontram como a uma mãe Por isso todos são irmãos nesta terra mas o deus moldou com ouro os aptos ao governo sendo mais preciosos prata aos auxiliares ferro e bronze aos lavradores e demais artífices gerandose filhos na maior parte das vezes semelhantes embora seja possível a ocorrência de alterações neste sistema de onde o deus recomendou aos chefes exercer vigilância sobre as 175República III414e A definição no discurso filosófico 181 crianças quanto à composição e mistura de suas almas em sua descendência Assim como a conclusão sobre o teor psicológico no Desvio pedagógico permitiu retornar à educação do guardião e determinar como escolhêlo aqui a ideia de unidade social que esta imagem indica permite retornar ao problema da divisão do trabalho e dos bens e solucionar a divisão das propriedades O Livro III da República pode ser concluído juntamente com seu primeiro Desvio e o Livro IV retomará o Desvio psicológico quanto ao problema das partes da alma sem o que não haveria como decidir pelo valor do juízo político antes posto hipoteticamente 27ª Lição do processo definicional Após retornar tratar e prescrever as condições das leis em sua relação com o luxo e a medicina na cidade Platão inicia o processo definicional da justiça176 Temos portanto a cidade já fundada177 condição que havia sido exigida para darse a definição e o princípio para avançarse além das hipóteses levantadas até aqui é o bem Espero por conseguinte descobrilo deste modo creio que a nossa cidade se de fato foi bem fundada é totalmente boa178 Logo é uma Ideia que serve de critério para o processo da definição partindose não de uma imagemsensível mas das virtudes que são imagens intelectuais do modelo de bem É evidente portanto que a cidade é sábia corajosa sensata e justa 179 Passemos portanto para a leitura da definição da justiça 176República IV 427c 433d 177República IV 427d 178República IV 427d 179República 427e Fernando Maurício da Silva 182 O que é uma definição e como se processa uma definição em Platão Esta pergunta significa querer saber como ler platonicamente a definição de justiça operada na República Mais uma vez será preciso julgar o texto apropriandose dos próprios critérios e princípios com que ele é escrito de modo a assim nos apropriarmos da linguagem de Platão na mesma medida em que o acompanhamos 1 Primeiro elemento do processo definicional a obediência à ideia Toda definição iniciase após o exame de uma hipótese maior e outra menor elaboradas através de uma Imagem Maior resultante do desdobramento de imagens sensíveis e opiniões igualmente sensíveis anteriores Do mesmo modo que a pergunta o que é a coragem não se resolve dizendo que está entre as coisas belas180 já que com a sabedoria por exemplo ocorre o mesmo181 e entretanto assim como se pode dizer que a sabedoria além de bela é boa182 a coragem também pode assim ser predicada Portanto no momento que o interlocutor do Laques reconhece o enunciado a coragem é boa ainda que não se esteja diante de uma definição nem de sua essência a atribuição de bem implica em tornar a coragem ou qualquer outro definendum conceito a ser definido um eidos De acordo com Platão o bem não é uma essência e está acima e para além das essências183 Isto porque o bem não pode ser compreendido como imagem não podemos formar uma imagem mental ou sensível do bem ou como discurso também não podemos formar uma definição analítica do bem sequer atribuílo como propriedade de algo sem que já não estejamos a pressupor a 180Laques 129c 181Carmides 159c 182Carmides 160c 183República VI509a A definição no discurso filosófico 183 Ideia de bem mas sempre é apreendido através de um círculo no qual tanto pressupomos o bem para atribuílo às coisas quanto reconhecemos em diversas coisas a universalidade do bem Neste sentido o bem não é uma essência porque esta dele depende o reconhecimento do bem em algum objeto consiste em exigir deste último uma essência já que para os objetos do conhecimento não só a possibilidade de serem conhecidos lhes é proporcionada pela Ideia de bem mas também o ser e a essência184 Segundo uma metáfora de Platão ter que enunciar a essência de algo em função do reconhecimento de seu valor não é algo que queremos mas o método consiste em apreender o que quer a Ideia que se examina em obedecer ao que se vê nas noções185 Justamente o exame precedente sobre a questão da justiça permitiu ver que atribuir justiça à qualidade de bem faz dela um valor ou sentido em si mesmo Platão nos diz que a definição tem por ponto fundamental a obediência à Ideia Além do critério do bem ou sentido transcendental à essência também o ser em si e não o ser em relação a serve de exigência para iniciarse a obediência na direção da Ideia Assim do mesmo modo que se constata que o piedoso é amado por si mesmo Eutífron 10d que o sábio é tal enquanto conhece que é sábio Carmides 164a não se poderá ter o princípio do processo de definição enquanto se considerar a justiça em termos relativos a injustiça é força é restituir o devido é sublime ingenuidade etc186 Pois o bom se basta a si mesmo187 por não prescindir das essências188 Como descrevemos anteriormente foi após a constatação de uma prosthítemi aposição na hipótese de Trasímaco que o discurso pôde direcionarse para uma 184República VI509a 185Sofista 252e 186República 509 187Lisis 215a 188 República 351a 412 e 440 Fernando Maurício da Silva 184 imagem superior de onde chegamos à hipótese da justiça como um tipo de bem com Glauco e então passamos a colocação e ao exame da hipótese superior Por isso somente é possível partir da constatação prévia de Glauco que diante dos três tipos de bens189 o bem estimado por si mesmo o estimado por si e por suas consequências e o estimado pela utilidade ou consequência reconhece em todo caso que a justiça é um bem Esta constatação enunciativa é o que exige a obediência à Ideia resultantes da crítica às hipóteses imagéticas que predicam do objeto qualidades múltiplas contraditórias unilaterais ou acidentais Pois estas hipótesessensíveis e intelectuais menores possuem sempre o teor de problema elas só podem oferecer por consequências desdobramentos na direção de outras imagens nunca à essência Entretanto as Hipóteses Maiores ainda que criticadas e refutadas despertam o valor ou essência do objeto em questão de modo que o problema que elas desdobram não é outro caso imagético mas a própria questão pelo ser da coisa Seja como for neste momento do Livro VI da República estamos ainda diante de uma obediência ao valor do objeto restrito do conhecimento não em condições de dirigir a alma para o conhecimento transcendente como será exigido posteriormente190 O que Desperta para o problema da essência é a surgimento do valor ou sentido da Ideia ou Forma Uma Ideia tem valor quando é suficientemente geral para dar conta de todos os problemas possíveis que lhe são propostos na ordem da imagem Platão sempre investiga segundo este critério quando por exemplo no Hipias Maior após investigar vários sentidos de belo pergunta se haveria algum sentido comum entre todos eles ou assim como no Menon após este fornecer diversas formulações do que vem a ser a virtude indagase pelo sentido comum entre os diversos enunciados 189República 357a 190República VI509a A definição no discurso filosófico 185 Ou seja dizer de um objeto que ele é bom que pertence à Ideia de bem significa atribuílo à propriedade de geral de onde se segue como consequência a necessidade de sua essência em oposição a sua contingência que as imagens levavam a crer Todas as hipóteses da República que foram possíveis antes do Desvio eram opinião e não conhecimento porque não predicavam uma qualidade geral Esta obediência ao geral coloca em marcha o processo definicional na direção da Ideia propriamente transcendente 2 Segundo elemento do processo definicional a suspensão Além da obediência ao que se vê nas noções o método purgatório da República tem a potência de pôr em dúvida a força e coerência argumentativa dos interlocutores terminando sempre numa espécie de suspensão191 ou perplexidade ἀπορία aporía192 Esta suspensão afetiva aporía tem função semelhante a da admiração thaumazo já que ambas são modos de mudança de visão do mundo pois explicar o justo dikáion é difícil193 O método dialético conduz para uma coisa que de certo modo inquieta tal como inquietou muitas vezes noutras alturas ao ponto de entrar em grande dificuldade ἀπορίᾳ quer perante mim mesmo quer perante terceiros por não ser capaz de dizer que é esta afecção πάθος páthos que se dá em nós e de que forma surge em nós194 Estes dois elementos para o começo da definição a Obediência e a Aporía não possuem ordem específicas nos 191Crátilo 422a 192Crátilo 409d 193Crátilo 412c 194Teeteto 187d16 Fernando Maurício da Silva 186 diálogos mas ambos implicam num só passo a inspiração de Sócrates Anteriormente a propósito do Livro II da República aludimos a isso para tornar possível a eleição da função das hipóteses A variedade de resultados atingidos ao fim do Livro I implicou em 1 a aporia que produzia a suspensão daquelas imagens hipotéticas levando então 2 à postulação da imagem superior Mas o que deve ser abstraído do texto neste momento é o fato de que o próprio Sócrates é quem coloca a nova hipótese a da investigação da cidade Seu objetivo é dirigir a investigação no sentido de reunir o disperso de mil maneiras e reduzilos a uma única forma pela definição de cada unidade segundo uma visão de conjunto195 O texto está a ponto de concluir a definição de cada unidade faltando apenas as virtudes necessárias a uma cidade Uma vez isto feito a visão de conjunto acerca da justiça será dada ou seja a sua definição Para tanto bastará obedecer às noções que cada unidade formal ofereceu Por isso é Sócrates quem dá impulso para o discurso continuar devido ao silêncio aporético em que se encontram seus interlocutores Arranja em qualquer parte a luz suficiente chama o teu irmão Polemarco e os outros para ver se conseguimos descortinar onde poderá estar a justiça pois é preciso que vós ajudeis196 É com esta passagem que se inicia o passo da última unidade as virtudes na cidade 3 A experiência da definição como mathémata Observemos que a metáfora da luz ao fim do Livro VI marca a exigência de inspiração por parte de Sócrates semelhantemente ao que ocorre em outras duas obras Laques 194cd e Cármides 164 de Foi a partir disso que chamamos a consequência desta etapa metodológica de Despertar Ora 195Fedro 265d35 196República III427d A definição no discurso filosófico 187 isto confluirá para a investigação sobre o ensino no Livro VII da República Do mesmo modo no Eutífron justamente no momento em que surge a necessidade socrática de inspiração para levar o discurso à definição também se fala novamente em ensino sem trazer à mão outra metáfora Por isso podemos concluir que as imagens da luz e do divino referem se ao mathémata ensinar aprender termo que se inscrevia na porta de entrada da academia de Platão Qual seria a relação entre o mathémata o matemático aquilo cujo aprender já é saber ensinar e a experiência da visão de conjunto a exigência de nova visão Entre os modernos a matemática é uma disciplina fundamental entre as ciências entre os medievais era uma das artes liberais porém ambos os casos são modificações do sentido grego já aludido por Platão nos seus diálogos Mas não pode passar despercebido que é a República que vincula diretamente a ciência matemática e a ciência pura em termos de visão transcendente Há quem enumere quatro sentidos ordinários para tá mathémata o matemático 1 as coisas físicas 2 as coisas produzidas pelos homens 3 as coisas que se pode usar e estão disponíveis podendo ser as físicas e as produzidas 4 as coisas úteis e práticas para o fazer HEIDEGGER 1992 A partir do significado comum as coisas na medida em que então o matemático diz respeito sempre às coisas em alguma perspectiva e relação Em seguida indagando de onde surgiria a relação tão bem aceita entre tá mathémata e os números podese dizer que não é o matemático que é numérico mas os números é que são também uma coisa matemática É neste ponto que se introduz a raiz do termo grego máthesis aprender explicitando que mathemata diz as coisas que são visadas na medida em que se pode aprender Acontece que nos quatro usos que os gregos ordinariamente faziam de mathámata notase que utensílios ferramentas e produtos em geral não são aprendidos propriamente mas aquilo que se aprende nestas coisas é o seu Fernando Maurício da Silva 188 uso É com este uso por meio do exercício que se chega a conhecer uma coisa no sentido de aprendêla ou apropriarse dela Este modo de aprender assemelhase ao ensinar não no sentido de dar o ensinável mas dar ou oferecer as indicações ou direção para aquilo que somente alguém é capaz de apreender e dar a si mesmo E podemos acrescentar os pitagóricos já haviam usado o termo matemático para expressar aqueles discípulos já iniciados e capazes de aprender por si mesmos Podemos supor que Platão estava familiarizado com este uso do termo grego Retornando aos argumentos da República consideremos agora a seguinte questão como para o grego a mathésis pode adquirir esta ambiguidade entre aprender e ensinar O fato da matemática posteriormente tornarse nome para a ciência do cálculo não é a delimitação da matemática mas um caso exemplar junto às ciências objetivas Assim notamos que na República não se usa o termo mathémata em nenhum momento para falar daquilo que no Livro VII se intitula ciência do cálculo aritmética Deste modo por exemplo um professor de aritmética não pode ensinar sem a reciprocidade do aluno pois não há como ensinar a fazer um cálculo tudo o que se pode fazer é oferecendo suas condições valores fórmulas princípios e questões exercitarse nos cálculos até que estes se tornem um uso apropriado um mathémata Por isso se poderia interpretar a frase colocada na porta da Academia a escola de Platão ageométretos medeís eisíto ninguém pode ter aqui entrada se não tiver compreendido o matemático como uma exigência das condições do saber ou seja a capacidade de acompanhar o discurso purgatoriamente aprendendo simultaneamente a tecêlo e aquilo que por ele se pode eleger sua forma e seu conteúdo reciprocamente Sendo assim podemos deduzir que em Platão a lógica é instrumento e não fim do conhecimento e quando tomada como fim é obstáculo para se passar à Ideia A ciência do cálculo é intelectual mas ainda imagética A A definição no discurso filosófico 189 matéria que se aprende em um discurso ou melhor a mathésis é uma coisa um conteúdo que diz respeito ao todo que se faz visível visão de conjunto esta que abrange contorna dá forma ou define um objeto A exigência da Academia pela mathémata é a exigência de obediência ao objeto enquanto objeto antes de se pretender tratar de qualquer coisa temática O tema de um matema exige obediência dialética Obedecer ao que é devido ao que é exigido de cima para baixo o bem significa que a dialética não busca valores mas antes os respeita Por isso o tema do governo de si mesmo ou da cidade está associado à obediência ao bem Além disso veremos também como Platão posteriormente defenderá certas artes como a música e ciências como a geométrica como modos de iniciação à filosofia dialética 28ª Lição preparação para uma teoria do objeto Começaremos agora a estudar aquele conceito que constitui o fundamento do pensamento platônico quanto ao problema das Ideias o objeto ou ente puro Muito embora seja correto distinguir entre ontologia da entidade e da formalidade Platão justamente se caracteriza por entender que há certos objetos formais que são entidades Nem toda entidade é física mas existiriam entidades não físicas que são não obstante Reais Acerca dessas o platonismo compreende que uma formação noética no intelecto é privilegiada a theoré contemplação visão de conjunto O estudo desta importante noção permitirá distinguir criteriosamente real e ilusório conhecimento e opinião bem como o valor intrínseco do objeto de conhecimento Fernando Maurício da Silva 190 1 Unidade do objeto a diferença entre realidade e ilusão Nosso estudo está se movendo no Estádio do Despertar Analisamos desde as imagens até as hipóteses na República agora daremos um salto na direção do problema da questão essencial sobre a justiça Após esse salto a definição estará por ser conquistada Entretanto como o discurso chegou aqui desde a imagem do cão de raça até o mito do nascimento pela terra não se pode adentrar ainda em um espaço puro sem a devida purificação da imagem Platão define a justiça na cidade já no livro IV através da questão pedagógica ficando por retornar à definição da justiça no indivíduo o que se dará junto ao acabamento do problema psicológico Mas é somente no Livro VI e VII que se esclarece o processo dialético e nele a essência da definição ou melhor o fato de que seu fundamento está além de toda essência Já vimos que os dois elementos do processo definicional a obediência e a aporia são meios para colocar a exigência de uma nova inspiração para a investigação prosseguir cujas metáforas mais popularizadas são a da luz e da divindade Entretanto se o Estádio da persuasão girou em torno da imagem e da mera opinião e chegou ao seu limite na formulação crítica das hipóteses a obediência às noções referentes à Ideia que permite a definição obriga passarse à ciência e desta para a essência Só assim se poderá lograr uma Forma única como nos fala o Fedro Enfim somente deste modo poderemos compreender o momento limite do conhecimento aquilo para o qual se pode dar uma imagem como para todo objeto mas que desta não se pode avançar ou seja aquilo para o qual só se pode falar miticamente a visão Como se considerou acima o direcionamento do discurso para a definição começa com a constatação de que em todo caso a justiça é boa isto é que o predicado bem A definição no discurso filosófico 191 se aplica a ela197 Isso só se entende quando se dá a distinção entre a Ideia pura capaz de dar valor às coisas e as ideias imitativas que se encontram qualitativamente aplicadas nos corpos imagens e palavras Assim exemplifica Platão uma vez que o belo é contrário do feio são dois e sendo dois cada um deles é um o que deve valer para o justo e injusto bem e mal e todas as ideias Sendo assim Platão nos diz que cada uma de per si é uma mas por aparecerem combinadas aos corpos e entre si aparentam ser múltiplas198 Por isso é necessário dirigir a alma juntamente com o desejo para a Forma única Sendo assim é possível concluir nosso pensamento mediante três fatores 1 O primeiro passo de toda investigação dialética consiste em considerar a multiplicidade das ideias nas coisas como belo e feio justo e injusto bem e mal 2 A relação entre elas não se dá por uma regra lógica nem por uma regra eidética ideal formal que se acrescente como terceiro termo mas sim por poderem ser aplicadas conjuntamente aos corpos e imagens 3 Por um lado existem ideias isoladas e coisas individuais corpos e imagens de corpos por outro as ideias podem ser misturadas nos corpos ou entre si mesmas A unidade e a participação das Ideias é o que há a ser distinguido como processo purificador na direção da definição Na próxima Lição estaremos em condições de tratar diretamente da teoria do objeto Neste momento contudo precisamos nos deter no significado da noção de despertar para as Ideias como forma de entender o que é um objeto de conhecimento 197República II357a 198República IV476 Fernando Maurício da Silva 192 2 Sonho sono e escuridão Queremos despertar para as ideias em si mesmas e distinguilas da multiplicidade de suas aplicações às coisas Diante disto Crátilo e Teeteto serão diálogos que favorecerão nossa compreensão da questão presente na República A questão é sobre o bem em si o belo em si ou a justiça em si mesma Acontece que ideias como bem são discutidas tão somente a partir de alegorias A imagem maior acerca das Ideias é sempre a da visão e como vimos esta pressupõe a luz O contraponto à luz é a escuridão e se a luz referese também a vigília então tal contraponto remeterá também ao sono e ao sonho Heráclito já havia tratado o tema do lógos diferenciando aqueles que vivem como se estivesse dormindo e aqueles que estão despertos No Crátilo 427d440e a metáfora do sonho é utilizada de forma positiva Sócrates afirma que há muito tempo tem se espantado thaumátisie com um problema e sonhado com isso explicitando que há uma ideia de belo em si e bem em si que não obstante serem comuns a todos os homens não podem ser diretamente aplicadas às coisas assim como os nomes das coisas não são as próprias coisas É controverso se o uso do verbo sonhar tem sentido onírico ou penas metafórico mas esta passagem exemplifica como Platão às vezes investe uma mesma imagem a do sonho neste caso com diversos sentidos Com efeito a discussão sobre a natureza dos nomes no Crátilo é recolocada no sonho de Sócrates presente no Teeteto 201d8202c5 desta vez enunciando a necessidade do lógos e não apenas dos nomes para haver conhecimento os elementos que compõem as coisas são apenas a percepção e os nomes com o que não é possível dizer se são ou se não são enquanto não for acrescentado o lógos não bastando a crença verdadeira Portanto a imagem do sonho permite prescrever o valor enganador das crenças nos nomes e nas percepções A definição no discurso filosófico 193 O tema do sonho também ocorre no Críton Baseio minha suposição em um sonho que tive esta noite há poucos instantes Ainda bem que não me acordastes naquele momento199 sobre o que o próprio Sócrates esclarece que a bela mulher de manto branco com que sonhara seria uma deusa De forma semelhante Sócrates interpreta seu próprio sonho no Fédon Frequentemente e diversa vezes ao longo da minha vida tenho o mesmo sonho ora sob uma e ora sob outra visão mas sempre dizendome as mesmas palavras Sócrates compõe e pratica a arte das musas200 caso em que a imagem do sonho confirma positivamente a tese que já reconhecemos na República A filosofia é a mais alta forma de música e outra não era portanto a minha ocupação201 Disto se segue ainda em conformidade com a teoria literária da República que Platão concebe o filósofo como alguém que deve dedicarse à poesia Achei conveniente voltarme para a poesia para sendo assim não cair em desobediência pois era mais seguro não desviarme deste dever prescrito pelo sonho202 É por esta razão que defendemos que a República também deve ser lida como uma forma de literatura que inclui a produção de mitos literatura próprios Hypnos é a divindade grega do sono irmão de Thánatos a morte cuja família dará lugar ao sonho junto à deusa Noite a medonha e é através do sonho que Zeus envia sua mensagem enganadora à Agamémnon203 passagem que Platão diz desaprovar por falsear o que seja a justiça e a virtude204 Platão reflete na Apologia 40ce que se todo sentimento cessa e tudo o que há é como um sono em que nada se vê nem em sonho então a morte será um benefício 199Críton 44a 200Fédon 60e 201Fédon 61a 202Fédon 61a 203Ilíada II vv 141 204República 383b Fernando Maurício da Silva 194 maravilhoso Se aqui o problema é a separação entre alma e corpo na República a imagem do sonho é retomada para mostrar que a própria alma dividese em parte racional e partes não racionais Acerca dos que despertam durante o sono toda vez que a parte da alma dotada de razão adormece separada e senhora da outra e quando a parte animal e impulsiva se agita saciada de comida e bebida repudia o sono e procura avançar e satisfazer seus desejos205 E uma vez que a imagem do sonho serve aqui para explicitar que é a parte racional da alma que se relaciona com o bem acrescentase que adormecer com um coração não agitado mas apenas após ter tranquilizado as outras duas partes da alma e de ter posto em movimento a terceira onde mora a razão assim se entregando ao descanso sabes muito bem que é nestas condições que se atinge a verdade e que surgem menos as visões anômalas dos sonhos206 A discussão neste momento diz respeito ao desejo e os objetos de sua escolha O que queremos saber é o seguinte que há em cada pessoa uma espécie de desejo terrível selvagem e sem leis até mesmo naqueles que entre nós são comedidos E é nos sonhos que este fato se torna evidente207 Enfim ainda na República a imagem do sonho se repete no momento da narração do mito do nascimento da terra para explicitar que tudo o que antes se acreditava conhecer não passava de sonho208 Portanto o tema do sonho em Platão parece estar ligado a três usos i o sonho como expressão das divisões da alma entre razão e desejo ii os sonhos como critério para distinguir crença e conhecimento e iii os sonhos ligados a mensagens divinas Já discutimos como a República aborda o item iii ao criticar a poesia clássica Neste momento é da questão do conhecimento que nos ocuparemos 205República IX 571cd 206República IX 572ab 207República IX 572b 208República III414e A definição no discurso filosófico 195 Platão continua exemplificando que há os amantes de espetáculos amigos das artes e homens de ação que se encantam com as belas vozes cores e formas mas seu espírito é incapaz de discernir e amar o belo em si Acreditar que há coisas belas e não que existe a beleza em si nem deixarse conduzir pelo caminho de seu conhecimento é viver em sonho e não em realidade isto é crer em nomes e percepções pois sonhar acordado ou dormindo é julgar que um objeto semelhante a outro não é semelhante ou é o próprio objeto com que parece Por isso entender que existe o belo em si contemplálo na sua essência e nas coisas que participa é viver na realidade Observemos que nesta passagem duas instâncias são referidas pelas metáforas sonho e visão 1 O que define o sonho é o juízo ilusório em que se confunde realidade e participação ou seja a não distinção entre duas aparências ou entre uma aparência e um objeto pois uma Ideia uma Forma única é diferente não só de outra Ideia mas também de uma coisa da qual participa 2 Além disso por um lado supor que sabemos que vermelho e azul são cores ao compararmos suas semelhanças é ilusão já que em nada se assemelham enquanto ocorrências perceptivas de casos de cor Por outro lado ser vermelho e não azul ser cor e não incolor etc é atribuir o sentido de unidade ao objeto é fazer esse objeto ser um objeto um inconfundível um singular portanto um possivelmente definível pelo discurso A possibilidade de algo ser trazido ao discurso Platão chama de essência seu dizerse em termos de ser e sua necessidade está no que assim é dito Por exemplo que a aritmética e a geometria sejam casos de imagens ainda que intelectuais seguese do mesmo critério o algarismo 1 é uma imagem e não se confunde com a Ideia de unidade Com efeito 3 é um número e sua quantidade é contar por três mas não se pode dizer por isso que sua quantidade é 1 1 1 pois o algarismo 3 pode ser também 2 1 1 2 etc o Fernando Maurício da Silva 196 que vale para todos os outros algarismos que se seguem Teríamos que ter uma matemática de 1 a 2 e outra de 3 em diante o que não se poderia fundamentar devido ao fato de que todo número e poderíamos incluir o zero modernamente é um número independente de sua quantidade Não fosse assim não haveria matemática dos conjuntos nem mesmo fórmulas matemáticas cujo valor de cálculo está assegurado a despeito da infinidade de experiências quantitativas que se teria que fazer para proválas Esta é a idealidade do número que está em questão todos dependem da Ideia de unidade todos tem valor de ser E notese a possibilidade de dizer que algo é um valor ou algo é uma Forma implica em sua idealidade não em sua existência pois jamais se dá o caso por exemplo da cidade modelo poder ser concretizada empiricamente209 A realidade está do lado da ideia ser uma não na sua participação entre elas ou com as coisas É somente nos sonhos que alguém chega a crer que coisas são nomes ou percepções 3 Dóxa Endóxa e Ortodóxa Nossa digressão sobre a imagem do sonho permitiu entender que sem o lógos estamos fadados à crença limitados aos nomes e percepções das coisas tal como ocorre nos sonhos isto é a um modo falso de conhecimento incapaz de distinguir entre o ser e o nãoser de algo Passaremos agora a explicitar em que medida a crença opinião e ortodoxias diferem da b ciência episteme assim como esta difere e não alcança c a sabedoria eidética sophia Platão ao tratar da poética clássica nos fala em narrativas verdadeiras narrativas falsas e narrativas mistas Vimos que isto se aplica as imagens de diversos tipos Ora o mesmo pode ocorrer com a opinião dóxa com o que 209República V472 A definição no discurso filosófico 197 falaríamos em opinião verdadeira e opinião falsa Sempre o que está em jogo é a diferença entre verdade o que é visível plenamente e aparência o que é nebuloso obscuro ou enganador É o verbo dokein aparentar que permite compreender como a dóxa sempre exprime algum grau de aparência enquanto na forma verbal dokein temos o ato de aparentar o substantivo dóxa significa elogio em seu uso comum isto é aquilo que afirmamos acerca da aparência de algo ou alguém Por isso ainda que a opinião dóxa esteja muito acima da crença ela pode ser opinião verdadeira ou opinião falsa Isto ocorre porque a dóxa sempre envolve algum grau de aparência pode ser uma endóxa opinião mais aceita opinião pública compartilhada ou ortodoxa opinião entendida como correta costumes públicos politicamente estabelecidos Enquanto o tema das virtudes e do bem exige criticar as dóxas e endóxas a justiça em particular também exige a crítica às ortodoxias políticas O problema é que a dóxa seja endóxa ou ortodoxa não porta o próprio critério de verdade e consequentemente sempre poderá ser confrontada com uma opinião contrária ou opinião diferente uma heterodóxa É exatamente isto o que Sócrates ensina a Platão não limitarse a concepção de virtude e justiça ortodoxa em sua época ensinando o filósofo a ser heterodoxo E Platão ainda acrescenta à heterodoxia socrática um método dialético capaz de mostrar por trás de toda imagem crença e opinião a existência de contradições e paradoxos literalmente oposto à dóxa O que se chama correto ortho pode ser mera aparência e a importância dos paradoxos dialéticos e contradições lógicas está no fato de nos produzirem admiração ou perplexidade Portanto ainda que a lógica esteja muito acima da opinião bem como esta está acima da crença somente podemos nos guiar pela lógica teoria analítica do discurso e pela opinião nos limites da imagem Fernando Maurício da Silva 198 4 Amor ao objeto a diferença entre conhecimento e opinião De modo geral Platão chama conhecimento o ato de pensar o real e chama opinião a ilusão com a participação de muitas coisas em uma ideia comum O conhecimento não é aparência pois saber que a aparência é aparência e não realidade é conhecer e não opinar Enquanto o conhecimento se funda na Ideia a opinião se funda na aparência Esta é uma diferença por princípio enquanto a primeira tem por princípio a Forma única a segunda tem por princípio a participação múltipla das Ideias pois a distinção formal entre estes dois tipos de entidades corresponde à distinção eidética entre uno e múltiplo Sendo assim no caso da opinião nunca se pode falar propriamente de princípios mas de hipóteses supostas como princípios Portanto uma opinião pode ser verdadeira mas nem por isso é conhecimento situandose entre o conhecimento e a ignorância Deste modo a primeira questão metodológica é como persuadir à verdade aquele que se acha na opinião Foi por esta razão que se falou em Estádio persuasivo Platão argumenta do seguinte modo Quem conhece conhece algo e não nada algo que é pois não se pode conhecer o que não é em qualquer sentido pois o que existe absolutamente é absolutamente cognoscível e o que não existe absolutamente é absolutamente incognoscível210 Observamos que se houver algo que existe e não existe ficará entre o ser e o nãoser absoluto o que é reconhecido persuasivamente por todo interlocutor que se depara com a contradição junto ao objeto que imagina ser O platonismo não funda o conhecimento no princípio de contradição mas o admite metodologicamente este princípio é parcial pois possui suposições eidéticas ainda que não 210República V477 A definição no discurso filosófico 199 demonstráveis O contrário de uma tese também pode ser verdadeiro bem como o intermediário também existe no campo eidético ainda que não no campo lógico A separação entre ser e nãoser também se aplica ao próprio conhecimento Uma coisa é o conhecimento demonstrativo lógico que parte de hipóteses e chega às conclusões construtivamente outra é o conhecimento descobridor dialético que desconstrutivamente ou purgatoriamente obedece ao que inicialmente são apenas noções e deixa mostrar o que já era de algum modo Não ao acaso a justiça definese desta forma governar a multiplicidade das partes da alma ou das classes sociais na medida em que obedece a unidade unidade da alma ou da cidade Se o conhecimento respeita ao ser e o desconhecimento ao nãoser a posição intermédia deve ter objeto intermédio entre ignorância e ciência O critério está em que a ciência se define por seu objeto específico211 argumento que faz uso da regra lógica pois ainda não se encontra no Estádio da libertação e da visão pura caso em que a lógica tornase obstáculo como visto no Laques 194 O Livro IV da República trata dos objetos imagens do objeto e por isso da distinção entre ciência e opinião Porém posteriormente o Livro VII esclarecerá que a dificuldade pedagógicopsicológica está em fazer a alma voltarse ao objeto em si para poder aprendêlo Até lá o caminho se faz obedecendose noções A alma que deseja procura sempre seu objeto em função do seu tipo de amor ou desejo que possui212 O desejo tem por fim o objeto onde se originou e não depende de sua qualidade pois a sede em si é apenas sede de bebida quente ou fria muito ou pouca pois as qualidades dependem não da sede mas da bebida Logo é possível concluir que 1 Cada desejo em si é apenas o desejo de cada objeto em vista do qual se originou e o desejo de uma coisa 211 República IV437 212República IV437d Fernando Maurício da Silva 200 determinada depende desta ou daquela qualidade adicional213 2 De modo que todo desejo é pelo que seja bom 3 Contudo todo objeto admite qualidade em relação a outro objeto pois um objeto é maior na qualidade de ser maior que alguma coisa Do mesmo modo a ciência em si é do conhecimento ou objeto a darlhe essência mas uma ciência determinada é de um objeto específico por exemplo a arquitetura é ciência de construir casas estando assim separada das demais Isto ocorre devido a três fatores 1 Uma ciência é tal pelo fato de ter características que não possui nenhuma das outras 2 Uma ciência adquire estas características após aplicarse a um determinado objeto 3 Uma ciência entretanto não adquire a qualidade do objeto pois o que se relaciona com certo objeto não é por isso semelhante a tal objeto como se a ciência da saúde e da doença fosse saudável ou doentia ou a ciência do bem e do mal boa ou má Pois a ciência não é em si mas sim ciência de um objeto particular como é caso da ciência médica que só é ciência em virtude de seu objeto Porém quanto a este último ponto é preciso observar que a ciência distinguese da thecné conhecimento produtivo ou técnica por superioridade assim como da sabedoria por inferioridade Portanto o bem e o mal podem ser objetos particulares de ciências especificas mas o bem eidético é objeto específico por duas razões primeiro porque o mal não é seu contrário e segundo porque o bem é objeto puro o que significa dizer que sua ciência a ética também é um bem pois evidentemente defender que a ética é um mal já é má ação ato imoral e ignorância 213República 437 A definição no discurso filosófico 201 5 Da voluntariedade da opinião Neste momento da argumentação Platão está tratando da ciência que não é em si e a ciência está sendo definida como desejo de objeto distinto dela mesma e por contraposição à noção de opinião a ser determinada segundo a vontade e não segundo a natureza O argumento prossegue deste modo uma opinião sai do espírito voluntária ou involuntariamente 1 Voluntariamente a que é falsa Por exemplo quando a pessoa se desiludiu 2 Involuntariamente toda que é verdadeira Os homens se privam dos bens involuntariamente e dos males volutariamente ser iludido sobre a verdade é um mal e estar na verdade é um bem ter opiniões certas Assim é por roubo por dissuasão ou esquecimento que arrebata ao tempo ou a razão sem que se perceba impostura quando alguém está fascinado pelo prazer ou atemorizado por receio ou violência desgostos que modificam a opinião que se é privado involuntariamente Esta diferença significa à ilusão mal privase voluntariamente e à verdade bem privase involuntariamente O bem é o critério que torna o objeto verdadeiro algo necessariamente desejável pois assim como o conhecimento é conhecimento de um objeto desejar é desejar o que é bom não sendo possível nem conhecimento de nada nem desejo do mal Como o conhecimento depende do desejo pelo ser é o bem que dá a este ser seu valor de desejo 6 O objeto da ciência e da opinião Nossa discussão sobre o sonho mostrou que neste os objetos conhecidos e as ideias destes objetos não participam corretamente deixam na escuridão ou obscuridade o que é e o que não é algo Estamos aptos agora à discutir em que sentido Fernando Maurício da Silva 202 uma ciência é tal e qual quando se pode tratar de seu objeto em termos de ser e nãoser Como vimos há pouco a ciência específica ou ciência não em si foi definida como desejo de certo objeto Como o que é distinto sempre é distinto de alguma outra coisa o objeto de desejo científico não pode ser objeto puro ou absoluto mas objeto relativo a Portanto Platão não está falando aqui de ciência pura de modo que a asserção a ciência se caracteriza por aplicarse ao objeto sem adquirir as qualidades deste regra lógica segundo a qual a relação entre causa e efeito não é reversível não se aplicaria as Ideias ou Formas como a sabedoria no exemplo do Cármides Isto explica que o termo ciência tem mais de um sentido e que a razão disto é o limite da lógica para o conhecimento Com o intuito de esclarecer esta diferença nas ciências em função do objeto Platão insiste no raciocínio objetual para pôlo à prova 1 A opinião visa a um objeto a ciência a outro cada um relativo à uma potência própria 2 A potência é um gênero de ser pelo qual podemos fazer aquilo que podemos por exemplo a vista e o ouvido pertencem às potências 3 Nas potências não há cor ou figura nem qualquer predicado onde se possam distinguir nos objetos suas qualidades mas numa potência apenas se repara no objeto e seus efeitos sendo idênticas entre si as potências que se aplicam ao mesmo objeto e produzem o mesmo resultado 4 Conclusão a ciência é uma potência e a opinião é outra e tendo cada uma efeitos diversos têm finalidades diversas a ciência se aplica ao ser e a conhecêlo e a opinião à aparência sendo impossível o mesmo objeto se aplicar à ambas pois cada potência tem objeto próprio A definição no discurso filosófico 203 Porém o que Platão quer com esta argumentação não é fundamentar sua tese em uma lógica da predicação teoria que afirma que para todo termo de um enunciado é preciso conectar uma propriedade particular que lhe determine mas o contrário mostrar que toda esta argumentação comete um erro o fato de seguir apenas a regra lógica e deixarse cegar por ela Diferentemente de seguir exclusivamente regras lógicas que não são princípios últimos já que não demonstrados Platão pensa que aquilo que se deve seguir para se chegar ao conhecimento o que se deve obedecer são as noções que direcionam a alma para à intuição das Formas únicas não havendo razão em tributar obediência às regras lógicas em última instância Com efeito o objeto da ciência é o ser e o da opinião deverá ser o nãoser porém o nãoser não pode ser objeto da opinião pois não se pode formar opinião sobre o que não exista já que formar opinião é formar opinião sobre algo Aliás todo conhecimento é de algum objeto e é por isso que o objeto enquanto tal tem que estar posto por princípio para o conhecimento pretender marchar na sua direção O nãoser não é algo mas nada e ao nãoser atribuise a ignorância e ao ser o conhecimento A opinião parece mais obscura que a ciência e mais clara que a ignorância parecendo ficar entre uma e outra Logo a opinião fica em uma posição intermédia entre ser e nãoser não podendo haver sobre ela nem ciência nem ignorância sendo objeto da opinião algo que participa do ser e do nãoser de modo não puro Portanto saindo do critério da potência e recuperando o do desejo a dificuldade da opinião é uma dificuldade de amor por si próprio Na opinião o amor pelo objeto ou pela Forma única está inteiramente ausente movimentandose de um objeto a outro e através de todas as suas participações possíveis Assim admitir coisas ao mesmo tempo com qualidade e quantidades duplas é enunciar com duplo sentido como o enigma infantil Fernando Maurício da Silva 204 do eunuco que bate no morcego214 não podendo haver destas coisas concepção fixa como sendo ou não sendo como sendo ambas ou nenhuma não sendo mais claras nem obscuras rolando estas opiniões entre ser e nãoser absolutos215 A opinião equivale ao relativismo e é a defesa da ambiguidade que se situa entre ser e nãoser Tratase de contemplar a multiplicidade das cosias belas sem ver a beleza em si nem ser capaz de seguir alguém até ela Por isso ter opinião sobre tudo é não conhecer nada Conhecer é contemplar as coisas em si que permanecem idênticas sendo o belo em si uma realidade por ser objeto do amor cognoscente Por isso são amigos da sabedoria e não amigos da opinião os que se dedicam ao ser em si Pois se a ciência é conhecer um objeto que a define sabedoria é conhecer o próprio conhecimento assim como a justiça somente é bem governar quando é bem obedecer a uma lei neutra Longe do conhecimento depender de uma potência prévia ele é um ato ou desejo na direção do objeto que lhe é causa Evidentemente que com isso a definição de uma essência admite a lógica como instrumento mas não se dá por causa dela Quando colocamos uma essência na forma de definição passamos a respeitar as leis lógicas da definição em nome da comunicação e em detrimento da intuição da Ideia que se pretendeu definir 214 O enigma no eunuco também conhecido em outra versão como enigma de Panarkes é referido por Platão na República 479c o que teria sido recuperado por Clearco da seguinte maneira Há um enigma de que um homem que não é um homem vendo e não vendo uma ave que não é uma ave empoleirada em uma árvore que não é uma árvore lhe deu e não lhe deu com uma pedra que não é uma pedra Jowett e Campbell explicam o enigma deste modo um eunuco fez pontaria para um morcego imperfeitamente empoleirado em uma cana com uma pedrapomes e não lhe acertou PLATÃO 2001 p 178 215 República V479d A definição no discurso filosófico 205 7 Aplicação do critério da vigília à imagem da cidade Agora podemos entender porque o problema político da República está desde o inicio da obra atrelado primordialmente ao desejo primeiramente por luxo ou pelo necessário depois pela verdade ou pelo engano e não às leis 1 se é verdade que a cidade governada pelo melhor necessariamente será a melhor 2 e sendo este melhor homem o filósofo que recebeu a melhor e mais completa educação para o bem próprio e da cidade por ser o mais capacitado a descer à habitação comum e habituarse a observar as trevas com o que se torna ainda melhor capacitandose a reconhecer cada imagem por ter contemplado a verdade relativa ao belo justo e bem216 3 então a condição para uma cidade ser bem administrada será o seguinte princípio na imposição justa às pessoas também justas vaise ao poder constrangido por já ser rico em uma vida boa e sensata diferente de ir ao poder os esfomeados de bens pessoais que supõem retirar daí seu benefício217 Repitamos o argumento o tipo de vida que mais despreza o poder político é aquela do verdadeiro filósofo aquele que ama o saber e convém irem ao poder aqueles que não amam o poder do contrário os rivais entrarão em combate A consequência é esta deve ser guardião o que melhor conhece o método de administração e ama outras honras e outra vida que a do político o que não é um jogo de sorte mas de educação de direcionamento da alma para a realidade Portanto o critério que caracteriza o verdadeiro filósofo é o conhecimento 216 República VII520 217 República VII521 Fernando Maurício da Silva 206 e o amor de tal modo que o próprio conhecimento é um ato de amor na direção do objeto puro 29ª Lição a teoria do objeto os modos dos objetos Vimos até aqui a importância do objeto para o saber em geral Apesar do termo objeto não ser de origem grega e hoje estar marcado por importantes críticas outras noções como coisa ente entidade e ser não deixam de apresentar problemas conforme contextos particulares Por isso falaremos em teoria do objeto em Platão para prescrever um cenário específico a necessidade de tratar do valor dos objetos isto é das diferenças modais da objetividade isto é que conhecer é conhecer uma entidade em seu valor Para isso deveremos distinguir os tipos de objetos dentro de uma divisão mais ampla referente aos modos do saber a sensibilidade o intelecto o conhecimento e a ciência Vejamos separadamente cada um destes casos 1 Divisão dos objetos na sensibilidade Três coisas estão intimamente ligadas na República conhecimento objeto e desejo Se o conhecimento é o ato de pensar a realidade o conhecimento das essências embora não todos os níveis de conhecimento se realidade é a unidade da forma e se este ato é um desejo de verdade então o conhecimento é desejo de objeto atribuição de valor áxis ao ente o que em última instância é desejo de bem Neste sentido objeto designa a coisa ou ente considerado em seu ser e segundo um valor Objetos são setores valorativos e certos entes são levados à condição de objeto por serem portadores de valor bom belo verdadeiro etc É preciso ler como Platão explicita o valor dos objetos e chega à distinção dos valores dos tipos de conhecimento Na República os objetos A definição no discurso filosófico 207 distinguemse em objetossensíveis e objetosintelectuais Os tipos de objetos da sensação são os seguintes218 a Objetos de sensação que acarretam reflexão como se a sensação não produzisse nada de claro aqueles que conduzem simultaneamente às sensações contrárias como a sensação advinda de perto ou de longe que não põe em evidência quando se trata de um objeto ou do seu contrário objetos de sensações contrárias Assim estes objetos que recaem sobre a sensação acompanhada de impressões contrárias são aqueles que obrigam à reflexão b Objetos de sensação que não acarretam reflexão como se ficassem suficientemente avaliados pelos sentidos são todos aqueles que não conduzem simultaneamente às sensações contrárias objetos de sensações simples ou seja objetos que incidem sobre a sensação sem impressões contrárias O exemplo fornecido neste momento já nos é conhecido considerando três dedos da mão de perto cada um parecerá um dedo tal que a alma não necessita perguntar ao entendimento que coisa é um dedo pois a vista não indicou em nenhum momento que o dedo pudesse ser outra coisa Entretanto cada sentido terá que distinguir a qualidade que lhe cabe O sentido encarregado de perceber a dureza é o mesmo que compreende a moleza e anuncia à alma que o objeto é duro ou mole quando o percebe assim Neste caso o sentido apela ao entendimento ao intelecto examinando se a informação diz respeito a uma ou duas coisas Caso lhe pareça duas cada uma parecerá una e distinta concebendo assim as duas de forma separada Enquanto a vista vê a pequenez e a grandeza como uma e misturada o entendimento as vê como distintas e separadas Estas considerações poderiam nos levar a uma interpretação ingênua segundo a qual o conhecimento sensível é uma síntese de qualidades num objeto e o conhecimento intelectual 218 República VII523 Fernando Maurício da Silva 208 é uma análise de objetos empiricamente já dados criando novos objetos abstratos Porém a distinção entre objetos de sensações simples e objetos de sensações contrárias é somente um instrumento órganon para se mostrar a gênese da questão que inicia efetivamente o conhecimento pois é daí que surge primariamente a questão o que é a grandeza e a pequenez A questão pelo ser dos contrários surge do entendimento da diferença e não da identidade sintética sensível que é mistura nãoobjeto possível para o entendimento Porém estes contrários se explicitam pela afirmação de que são logicamente contraditórios pois eidéticamente idealmenteformalmente são participativos É por isso que Platão necessita admitir que apesar de todo conhecimento se dar para a alma nem todo tem seu princípio nela como tópos lugar O conhecimento empírico é imagético assim como o intelectual mas apenas na participação entre as Ideias se formula princípios hipotéticos no intelecto Porém como é possível ver no Fédon 114d o próprio princípio pelo qual o intelecto opera isso não pode ser localizado nele de modo que caso se insista em falar em lugar só se poderá postular arriscadamente um novo mito haveria outro lugar para a alma em distinção à vida O chamado mundo das ideias é um lugar imagético de valor apenas metodológico Mas não podemos perder de vista a dificuldade não se trata primeiramente de saber se a alma habita dois lugares mas de compreender que o topos lugar dos objetos coisas variadas e o topos do objeto ser em si não podem ser o mesmo e que estes tópos sejam uma formulação imagética tanto o mito do Hades no Fédon quanto o mito da caverna na República significa que não há como falar do objeto senão por imagem já que é puro Assim nem todo objeto é sensível pois se divide em quatro modos ciência inteligência opinião e intuição ou intelecção sendo o último purificado inclusive do raciocínio ou discurso lógos A definição no discurso filosófico 209 Existem imagens cultuadas imagens experimentalmente conhecidas imagens intelectuais e Ideias que não são imagens não se pode imaginar nem formular em si mesmas donde são chamadas de puras e pedem um método purificador Porém todo objeto trazido ao discurso é imagem pois o objeto puro é uma imagem lógica aproximada para a qual o mito serve como expressão discursiva e direcionadora da alma Vejamos na figura a seguir a topografia platônica do conhecimento seus modos e Estádios Fernando Maurício da Silva 210 A definição no discurso filosófico 211 2 Divisão dos objetos no intelecto É importante compreender que Platão está chamando de objeto todo ente cuja demonstração dianóia se dá por duas noções ou conceitos nóias a serem relacionados segundo suas semelhanças e diferenças razão pela qual a identidade e a contradição lhes são princípios Uma nóia noção que mostra algo é um conteúdo do nous intelecto mas é preciso uma relação entre duas para formar uma dianóia demonstração Porém toda vez que o intelecto elabora uma demonstração apesar de só fazêlo através de mais de um conceito precisa admitir a distinção entre estes conceitos ou seja um conceito é enquanto conceito pois é isto que todo e qualquer pensar põe diante de si como fim ou bem Todo ato intelectual põe um objeto é objetivante na medida em que se dirige a um fim sendo a forma deste fim o bem o seu acabamento o grau de excelência maior em um ente ou espécie Só um conceito que se pensa sem relação com qualquer outro é um conceito absoluto contado tão somente por um não contaminado ou independente de qualquer relação Mas é evidente sem possibilidade e necessidade de demonstração que todo desejo de pensar é amar o objeto por ele próprio e é neste sentido que só se ama o bem Este esclarecimento está apontado na República 533 em relação às quatro operações e segmentos da alma 1 o mundo visível e o mundo inteligível são dois 2 cada um dividese em dois segmentos distintos segundo a claridade e obscuridade 3 ao mundo visível corresponde à seção das imagens dividida em a sombras e b reflexos na água e nos corpos 4 ao mundo inteligível corresponde a em uma parte a alma servese dos objetos como de imagens imitandoos sendo forçada a investigar a partir de Fernando Maurício da Silva 212 hipóteses para a conclusão sem poder caminhar aos princípios A geometria a aritmética e ciências do gênero dos conjuntos e espécies admitem o par e ímpar figuras espécies de ângulos dandoas por sabidas e considerandoas como hipóteses sem supor necessidade de prestar conta por serem evidentes por si mesmas de onde partem e concluem Consideram figuras visíveis mas raciocinam segundo o quadrado ou a diagonal em si servindose de desenhos sombras e reflexos como de imagens procurando ver o invisível por meio do pensamento Assim se servem de hipóteses para a investigação sem irem aos princípios por não poderem se elevar acima das hipóteses utilizando como imagens os próprios originais com que se fazem os objetos da seção inferior b em outra parte dispensando as imagens partese de hipóteses e conduzse ao princípio absoluto por meio apenas de Ideias Este fim o raciocínio atinge pela dialética fazendo das hipóteses não princípios mas hipóteses de fato como ponto de apoio para chegar àquilo que não admite hipótese que é o princípio de tudo fixandose em todas as consequências até chegar à conclusão passando das Ideias umas as outras e terminando em Ideias 3 Divisão dos objetos no conhecimento A argumentação continua no Livro VII da República 533 1 A dialética é o único método para uma ciência do ser como revelação embora dependa do processo científico relativo à apreensão da essência de cada objeto e do auxílio das artes O método dialético seria o único que procede por destruição das hipóteses e caminha através de Ideias desde um princípio a fim de tornar seguro os resultados A definição no discurso filosófico 213 2 As artes referemse ao gosto e a opinião sendo criadas ou para a produção e composição ou para cuidar dos produtos naturais e artificiais 3 As ciências que permitem apreender algo da essência geometria etc enxergam quanto ao ser apenas sonhos e não o real por se servirem de hipóteses que não podem justificar principiando pelo que não se sabe e deixando incógnitas em seu meio e fim Por isso as artes entendase a literatura e a música são auxiliares Da mesma forma as ciências são meios para despertar a alma na direção da definição e das essências Porém pelos mesmos motivos é preciso o cuidado para não prosseguir com o método científico quando se trata de trabalhar com as Ideias As ciências fundamse na ignorância de seu princípio conforme um postulado de ignorância pois o princípio da ciência é ser inquestionável Observemos que a ciência só tem coerência interna se baseada em hipóteses e fechamento lógico ou seja um fechamento às questões possíveis que a dialética permite mostrar Semelhantemente ao sonho a opinião conclui a realidade ontológica do sistema devido ou a impossibilidade de contradizer suas regras ou a possibilidade de derivar novas formulações a partir das mesmas regras e não serem feridas nem ruídas enquanto fundamentos Platão dividirá o conhecimento a partir desta analogia com as funções psíquicas do seguinte modo219 1º Lugar dos objetos a inteligência relativa à essência ciência e entendimento 2º Lugar dos objetos a opinião relativa à mutabilidade fé e suposição Fazendo uma relação entre ambas uma vez que todos tomam a imagem do objeto e não ele mesmo inteligência e opinião ciência e entendimento fé e suposição ou seja a 219 República 522 Fernando Maurício da Silva 214 ciência é um tipo complexo de fé Diferentemente é a dialética aquele conhecimento que apreende a essência de cada coisa que consiste em definir com palavras método este capaz de dirigir a alma para a posterior intuição pura noésis A dialética pode definir em palavras a Ideia de bem separandoa de todas as outras e exaurindo todas as refutações dando as provas através do que é e não do que parece e sem considerar imagens ou opiniões como quem passa a vida a sonhar e dormir avançando por todas as objeções através de um raciocínio infalível conhece o bem em si 4 Divisão da objetividade das ciências Com o intuito de respeitar a distinção platônica entre objetos e objeto puro podemos distinguir entre 1 Ciências empíricas aquelas fundadas nas opiniões 2 Ciências objetivas aquelas auxiliares da revelação objetual por serem capazes de raciocinar embora por imagens de Ideias e não por Ideais diretamente a exemplo das formas geométricas ou dos números aritméticos Neste sentido a pergunta pelos tipos de ciências corresponde ao seguinte problema dialético qual ciência tem o poder de arrastar a alma do mutável para o essencial220 3 Ciência objetual aquela que trata do comum Na primeira parte da República se afirma que aos jovens seriam ensinadas as ciências da música e da ginástica a ginástica ensinava aos guardiões os costumes a harmonia ensinava a concórdia pelo ritmo a regularidade e hábitos pelas narrativas míticas ou verdadeiras Mas nenhuma destas corresponderia à ciência que direciona ciência que conduz naturalmente à inteligência e eleva até o ser e o bem Se existe uma ciência assim ela deverá ser comum e utilizada por todas as outras 220 República VII522 A definição no discurso filosófico 215 ciências com o que Platão propõe uma reforma já que ninguém se utiliza desta ciência adequadamente tratase da ciência do número e do cálculo221A ciência do cálculo a geometria a estereometria e a astronomia são as ciências instrumentais que auxiliariam a dialética a virar a alma na direção apropriada Enquanto a astronomia é um estudo metódico do movimento das profundidades por forçar a olhar para cima e para o céu e a estereometria é estudo metódico da dimensão da profundidade222 por seguirse ao estudo das superfícies geometria e dos sólidos em movimento astronomia e por seu objeto situarse depois da segunda dimensão ou seja na terceira os cubos e o que possui profundidade e ainda enquanto a geometria obriga a contemplar a essência por ter em vista o conhecimento do que existe sempre e não do mutável que se gera e destrói223 a aritmética por fim direciona a alma para a unidade mesma Reflitamos sobre o valor destas ciências e como o espírito e a humanidade em seu conjunto necessitam de seu desenvolvimento 1 Quando a sensação não é suficiente acerca de uma unidade e acarreta também o seu inverso a apreensão intelectual da unidade é evocada e volta ao espírito para a contemplação do ser o que valendo para a unidade e para a multiplicidade deve valer para todo número224 2 A aritmética e o cálculo dedicamse inteiramente ao número e são ciências que conduzem a verdade sendo exemplo o guerreiro necessitar delas para a tática e o filósofo para atingir a essência Pedagogicamente isso implica à lei obrigar estas ciências para que auxilie as almas chegarem à contemplação dos números só por pensamento passando da 221 República VII523a 222 República VII258 223 República VII527 224 República VII527 Fernando Maurício da Silva 216 mutabilidade à essência e verdade por causa da guerra e não por amor ao comércio Observase que aquilo que justifica a implantação da aritmética tal como da geometria e demais ciências é o matemático tá mathémata isto é a ciência do cálculo cultiva o amor ao saber por elevar a alma ou forçála a discorrer sobre os números em si sem aceitar jamais que se introduzam números visíveis ou palpáveis 3 Que os peritos em cálculo riam quando alguém lhes pede para dividir a unidade é exemplo de compreensão da essência do número de modo que a espécie de números entre as quais está a unidade cada qual absolutamente igual às outras sem discernir em nada nem conter qualquer parte em si corresponderia aos números que se situam apenas no entendimento impossíveis de manusear de algum modo e que obrigam ao uso da inteligência em si para chegar à verdade pura225 Esta espécie de unidade é a mathésis do conhecimento μάθηση a matriz que dá possibilidade a toda ciência objetiva Uma ciência não pode ser objetiva sem objeto específico uno sendo esta a sua mathésis Consideremos agora a conclusão que Platão retira da distinção anterior Quando ele esclarece a função pedagógica destas ciências como meio de forçar ou modificar o anseio psicológico assentando que desde crianças os homens devem aplicarse a estas ciências de forma livre e não como escravatura226 também indica a condição para poderse ingressar na dialética pois aquela é a melhor prova para saber se uma alma é dialética ou não porque quem for capaz de ter uma visão de conjunto é dialético e quem não o for não é227 Porque a preocupação pedagógica de Platão associa ensino com a visão de conjunto e a liberdade Sendo a ciência do cálculo o exemplo mais próximo da dialética o matemático ou seja o aprender aquilo que embora 225 República VII526 226 República VII536e 227 República VII537d A definição no discurso filosófico 217 ensinado aprendese como o que já se sabia seria a força direcionadora da alma que ama o bem228 Por isso o aprender é dito por um mito em que se atinge o alto onde se vê melhor a luz A pedagogia ou melhor a dialética não ensina nada em específico mas ensina a aprender a atingir o conhecimento Com isto fica explicitada a relação entre matemática e conhecimento das Ideias Passemos então a Ideia de bem 30ª Lição fundamentos da ética platônica Se definir é enunciar objetivamente segundo a essência nos resta compreender o princípio das essências para que possamos passar a ler a definição de justiça proposta por Platão A República VI 505 após definir a justiça na cidade e prosseguir na direção da definição completa de justiça deparase com a necessidade de estabelecer o critério que serviria de princípio para isso Ele constata neste momento que há algo superior à justiça e as demais qualidades até aqui analisadas sem o que a investigação permaneceria inacabada 1 Os valores Se a felicidade é o valor que serve de critério para as éticas eudaimônicas ou o prazer é o valor presente nas éticas hedonistas em Platão os valores são ideas e o valor moral é a idea do bem A Ideia do bem é a mais elevada das ciências e todas as virtudes só tem utilidade e valor se para ela Não porque ser virtuoso reduzse a ser bom mas porque a Ideia de bem oferece um sentido próprio um valor Valor áxis pode designar objeto de desejo qualidades variadas de um objeto grandeza de um objeto melhor e maior ou elevação 228 República VII532 Fernando Maurício da Silva 218 1 A noção de valor costuma acompanhar a noção de phylia gosto e desejo que dá valor ao seu objeto por exemplo quando dividimos nosso amor ou ódio segundo o que acreditamos justo ou injusto229 do mesmo modo o próprio valor é objeto do desejo investigativo de todos bem como conhecimento das coisas maiores230 ou a ignorância é tal e qual por ter os valores como objetivo231 2 Também ocorre para se referir a megista genes gênero supremo oriundo de μεγάλος megálos grande por exemplo sobre o belo bem e justo232 neste sentido falase de uma imagem maior ou suprema aquela de maior valor enquanto objeto mais purificado para o conhecimento pois a noção de valor consiste em uma grandeza μεγαλείο 3 Os valores designam as virtudes quanto à grandeza ou purificação permitindo distinguir glória fama honra riqueza etc de sabedoria coragem moderação e justiça233 mas podese expressar os valores em si através de qualificativos relativos à μεγάλος por exemplo bom e corajoso234 magnífico e admirável235 nobre236 4 O valor é objetivo e qualificativo quando Górgias afirma que a arte sofística tem por objetivo as melhores e maiores coisas humanas237 ou quando se afirma que a arte política é a mais bela e melhor238 de maneira semelhante acerca da política é preciso julgar também as coisas mais importantes μεγάλος239 229 Eutífron 11e 230 Defesa de Sócrates 22 d7 231 Alcibíades 118b 6 232 Primeiro Alcibíades 118 a7 233 República VI 495e 234 Cármides 160d 235 Hípias Maior 291e3 236 Teeteto 146d 237 Górgias 451 d7 238 Político 281 a9 239 Górgias 527 d8 A definição no discurso filosófico 219 5 Também se pode predicar o objeto de maior e melhor valor afirmandose que as coisas mais preciosas e elevadas não possuem imagem240 caso em que Platão utiliza diretamente o termo thumos θυμός valor Do mesmo modo como Platão fornece na República uma lista de definições de justiça a serem purificadas ou no Hípias Maior uma série de definições de belo avaliadas pela dialética podemos reconstruir quais seriam as definições de áxis ou thumos que a dialética platônica teria se ocupado O quadro anterior poderá assim ser resumido 1 Valor é o que torna um objeto digno de ser desejado ou escolhido Eutífron Defesa de Sócrates 2 Valor é o gênero supremo numa escala de conhecimento Primeiro Alcibíades 3 Valor é a grandeza mégalos política ortodóxa como honra riqueza fama etc Hípias Maior 4 Valor é o grau melhor na escala das coisas humanas Górgias 5 Valor é a máxima preciosidade de algo sem imagem O critério mais recorrente para definir valor é grandeza mégalos Isto significa que os valores são reconhecidos em gruas de purificação Portanto possivelmente Platão compreendera que valor como desejável consiste no sentido mais fraco ou aparente enquanto valor como preciosidade sem imagem como o sentido próprio Se colocarmos isto em uma escala teremos em um extremo a ideia de desejo que implicará no prazer e no outro extremo a ideia de bem ligada a de conhecimento 2 Os Desejos 240 Político 285 e4 Fernando Maurício da Silva 220 O desejo se caracteriza por possuir objeto particular e dois desejos diversos não poderem pretender o mesmo objeto enquanto as virtudes desejam o mesmo objeto ou fim último o bem Assim como ocorre com a sabedoria no Láques a virtude diferenciase do desejo e do sentimento porque estes sempre se determinam pela situação e pelo objeto fins não últimos sendo que o objeto da virtude é ela própria Todo desejo é desejo daquilo que não temos e quando temos desejo de não perdêlo desejamos aquilo de que temos necessidade241 pois aquele que não pensa que tem necessidades não tem o desejo daquilo que ele não pensa estar desprovido242 O caráter intencional do desejo está em dirigirse a um objeto específico o princípio de diferenciação das dýnameis forças estabelece que dýnameis distintas relacionamse com seus objetos específicos como é o caso da visão e da audição os objetos visíveis não são apreendidos pela audição e viceversa A necessidade especifica de objeto permite a definição o desejo é falta Esta definição explicase pela fonte do desejo por um lado o desejo é cognitivo porque a anamnese da alma precede todas as suas capacidades243 por outro lado o homem pode desejar sem ter acesso às suas capacidades cognitivas244 Ou o desejo surge quando a alma está presa ao corpo ou a própria natureza da alma é ser sempre necessitada a alma continuaria desejando mesmo após a morte Para que a alma no Hades tenha desejos deve ser necessitada mas se a alma desencarnada não é ignorante nem imprudente 245 será no momento em que entra em contato com o corpo que experimenta aquele vazio246 e portanto o desejo é decorrente da memória que a alma possui de sua harmonia Seguese o caráter das ações motivadas pelo desejo a alma 241 Banquete 200e 242 Banquete 204a 243 Menon 81ab Fédon 72e 244 Banquete 204a 245 Fédon 66de 246 Timeu 44ab A definição no discurso filosófico 221 procura este estado de harmonia mas como se tornou íntima do corpo esta primeira harmonia se identifica como sendo aquela que o corpo pode adquirir isto é a alma tem a necessidade de procurar aquilo que irá conservar ou preservar o corpo para satisfazer seu desejo de harmonia Não obstante todas as dificuldades desta metapsicologia tal doutrina ética foi a primeira formulação da ligação entre ação e motivação Por isso quando a República argumenta acerca da imortalidade da alma é o argumento do mal próprio que serve de fundamento247 tudo o que destrói e corrompe é mau e tudo o que preserva e melhora é bom pois há para cada coisa um bem e um mal Os males podem ser divididos entre os males alheios e os males próprios somente os males próprios é que podem causar a ruína e o mal alheio só causa mal a alguma coisa quando ele age conjuntamente com o mal próprio da coisa mesma O consumo de alimentos mal conservados não causa dano a quem os consome já que o mal deles não é o mal próprio do corpo de quem se alimenta se algum mal ocorre é devido ao mal próprio do corpo Assim se nada é destruído por um mal alheio então a alma não poderá ser destruída pelos males do corpo já que são males alheios a ela Disto se segue um principio Todos desejam as coisas boas248 Que todos admitam que ser injusto é pior do que ser vítima de injustiça e que não pagar a pena é pior do que pagála249 devese ao fato da alma desejar sempre o bem mas não apenas em função da reminiscência de sua harmonia originária mas também porque o bem se apresenta à alma de forma variada tanto empírica quanto cognitiva isto é o principio sempre se deseja o bem tem duplo sentido bem por si mesmo e bem por causa de outras coisas e a ética depende desta diferenciação A diferença está entre cognição e sensação o corpo tem o seu mal próprio por ser múltiplo e estar sujeito ao 247 República 608d612a 248 República 438a 249 Górgias 479d480b Fernando Maurício da Silva 222 perecimento pois as sensações por si mesmas que apenas anunciam as perturbações da alma são insuficientes para dirigir ao bem Tornouse comum admitir que Platão defendera um ascetismo do qual depende as interpretações cristãs posteriores mas a despeito dos argumentos psicológicos de Platão seu passo decisivo no campo da moral enuncia que o bem é algo que necessita ser buscado República seja nos objetos exteriores como bebida e comida ou na boa constituição física como força ou boa aparência o que não significa que possa ser ensinado nem adquirido puramente Menon já que se particulariza em diversos objetos do desejo 3 O prazer e a felicidade Para prosseguirmos é indispensável mostrar como o desejo é elementar em sentido moral quando pensado em relação ao prazer Platão distingue prazeres do corpo e da alma os prazeres que atingem a alma através do corpo são uma espécie de libertação da dor250 O problema relativo aos prazeres que provêm do corpo é que eles estão submetidos ao processo incessante de repleção e de esvaziamento uma vez que cada um de nós não é autossuficiente mas necessita de muitas coisas251 experimentamos prazer quando a falta corporal é preenchida pois beber é o preenchimento de uma falta portanto um prazer252 O prazer definese como o retorno do corpo ao seu estado de plenitude preenchimento de necessidades E como o prazer é buscado e desejado pela alma como algo bom para o corpo o bem que a alma procura confundese com o prazer de preencher a falta sensível Foi deste modo que Platão pretendeu definir um campo próprio à moral purificandoa da psicologia a ligação entre desejo e prazer 250 República 584c 251 República 369b 252 Górgias 496e A definição no discurso filosófico 223 pertence à alma apetitiva253 mas nem toda ligação do desejo com um objeto bom é deste tipo podendo ser contemplativo ou racional É a necessidade de a alma voltar ao seu estado de harmonia ligado ao corpo que a leva a considerar o prazer corporal como um bem mas se o apetitivo é o insaciável aplestos exon254 então a insatisfação do apetite é devido tanto à natureza ilimitada do prazer255 quanto à natureza de seus objetos mutáveis E uma vez que a harmonia da alma é definida como números harmônicos256 o bem estrito deverá ser formal eidético O próprio prazer sensível vem ligado à ideia de bem cognitivo em duas fases o prazer parece sempre maior do que é pois sempre existirá a ideia de se obter muito mais prazer do que no momento em que se satisfaz uma necessidade em função do estado de falta da alma e depois disso a alma entra em aporia na medida em que o prazer com o qual ela estava habituada a ver como um bem passa a aparecer como um mal Portanto a ética depende não simplesmente de uma renuncia ascética do prazer mas da separação entre o cognitivo e o sensível no desejo Assim podemos responder a crítica comum não há ascetismo quanto ao conceito de bem pois este funciona como um modelo orientador inalcançável por definição condição para buscar não apenas mais mas o melhor e não há ascetismo quanto ao prazer pois Platão defende superálo na direção da felicidade e não subsumi lo Por isso distinguemse desejos necessários e desnecessários257 os primeiros são os necessários e úteis para manter a vida os segundos os que ultrapassam a utilidade e a necessidade de possuílo Um desejo que não é útil e que podemos viver sem ele não é um desejo necessário o que determinada a fonte dos problemas morais uma vez que o 253 República 436ab 254 República 604d 255 República 195 256 República 531c 257 República 558d559c Fernando Maurício da Silva 224 prazer possui natureza ilimitada e dinâmica nunca se satisfaz sempre é possível buscar mais prazer e é difícil percebermos em que momento o que aparece como prazeroso ainda é ou continua prazeroso ou em que momento ele deixa de ser caberá à alma decidir quando o prazer ultrapassa os limites da utilidade e da necessidade Quando o prazer ultrapassa o limite relativo ao objeto desejado o prazer já não é idêntico ao bem mas assemelhase à dor Logo a regra procurar o prazer e evitar a dor não é sempre válida e não serve de principio Górgias Esta regra empírica estabelece a identidade entre dor e mal prazer e bem mas esta determinação é falsa por ultrapassar os limites do útil e do necessário Pólo defendera que a injustiça é preferível em função de sua utilidade o poder é desejável na medida em que o injusto detém o poder de fazer tudo o que lhe apraz o poder é desejável na medida em que o injusto detém o poder e pode evitar as punições aos seus atos258 Os injustos fazem isso por conta do prazer no primeiro caso e para escapar da dor no segundo mas eles dãose conta apenas do que é doloroso mas são cegos em relação ao que é proveitoso259 Do mesmo modo existe relação entre belo e bem ou entre mal e feio de modo que o útil é belo e o prejudicial é feio260 por isso as coisas belas podem ser qualificadas como úteis prazerosas ou ambos261 e o belo definese como o que proporciona o prazer e que é útil para nós ou o feio como o que causa dor e é prejudicial assim o amor não deve ser outra coisa do que amor ao belo e não ao feio262 pois as coisas belas são por exemplo os corpos as cores as formas os sons maneiras de viver para nenhuma outra coisa que observas dás o nome de belas263 Mas isto significa reunir um elemento cognitivo a noção de bem ao prazer na definição de justiça e 258 Górgias 467b 259 Górgias 479bc 260 República 457b 261 República 474d 262 Banquete 201ab 263 Górgias 474d A definição no discurso filosófico 225 beleza Será a investigação sobre a felicidade que caracterizará os fins do desejo como úteis e necessários em distinção ao empiricamente prazeroso Pertence a Platão o mérito de ter fornecido as primeiras formulações a respeito de desejo prazer e felicidade inaugurandoas a contragosto de suas próprias posições Boa parte das oposições ao platonismo foram previamente formuladas pelo próprio Platão Ainda que Platão não defenda em última instância a utilidade dos fins ligados aos interesses do desejo e dirigidos às necessidades de busca de prazer e afastamento da dor seus escritos enunciaram cada uma destas vertentes Se a tradição helênica retomará tanto as observações platônicas sobre a virtude quanto sobre o prazer será quanto a felicidade que isto melhor se pronunciará cujo legado é imediatamente criticado por Aristóteles Com efeito no Cármides apresentase a seguinte tese a felicidade é o fim último de toda ação virtuosa toda ação virtuosa implica necessariamente à razão aquele que não busca a felicidade não age racionalmente logo a razão leva à felicidade Contudo esta não é a tese final de Platão pois sendo o bem um conceito noético alcançável apenas pela dialética a razão lógos jamais é definitiva mas apenas metodologicamente relevante Mas o mérito deste argumento foi recuperado por toda a tradição a felicidade é fim último e a virtude ligase a ela através da razão Disto se segue o caráter cognitivo das virtudes fundamentais distinguindose virtudes do corpo da alma e do conhecimento264 Da ligação entre os conceitos de finalidade e virtude derivase o conceito de felicidade ao mesmo tempo sensível e cognitivo do conceito de bem deriva o conceito de conhecimento ao mesmo tempo uma das virtudes sabedoria e o critério de definição das quatro virtudes primeiras Isto não 264 Quanto às chamadas virtudes da alma apresentam certa afinidade com as do corpo pois não sendo inatas podem ser adquiridas por hábito ou exercício Mas as do conhecimento parecem conter algo divino mais do que qualquer outra já que nunca perdem sua força Rep 518c519a Fernando Maurício da Silva 226 significa que Platão negue o valor da felicidade ou a torne secundária mas que distingue felicidade segundo fins e felicidade segundo virtudes265 Por isso a tese platônica é formal noética não utilitária e nem por isso estoica a felicidade não é o fim das virtudes mas está na própria posse das virtudes mas o que as torna boas é a ação Se sofrer por um erro ou uma injustiça é melhor que praticála então a virtude é suficiente para uma vida feliz266 o que significa dizer que o critério da ação é o conhecimento e não a utilidade A virtude em geral física técnica e intelectual está tanto ligada ao conhecimento quanto à felicidade mas é o saber vinculado à virtude que a torna suficiente para a felicidade e não o inverso Ninguém é considerado sábio por escolher o bem e depreciar o mal mas por medir seus apetites a partir do conhecimento do bem e do mal moderação conhecer o bem e desconhecer o mal é tão bom sensivelmente quanto ingênuo intelectualmente o que torna seu portador semelhante às crianças mas conhecer tanto o bem quanto o mal é bom de ponta a ponta pois torna seu portador ao mesmo tempo feliz e não ignorante Escolher o que é bom por ignorar o que é mau distinguese de escolher o bem mesmo conhecendo a natureza e os caminhos para o que é mau No primeiro caso ninguém precisa de coragem pois não é preciso vigor para aquilo que o desejo natural já impulsionou mas a escolha de segundo tipo já é em si mesma um ato de coragem sendo este uma virtude Seguese que há um sentido de felicidade que não é causa final das virtudes mas efeito Este bemestar intrínseco267 é distinto daquele que depende dos bens e males próprios do corpo e da alma há bem estar físico quando o corpo revela saúde e força causados por agentes naturais ou técnicos médicos e educadores em 265 É como eu disse Pólo considero feliz quem é honesto e bom quer seja homem quer seja mulher e infeliz o desonesto e mau Górg470e 266 Górgias 479d480b 267 Górgias 464ab 504c A definição no discurso filosófico 227 correspondência ao malestar da doença e vícios corporais268 há bemestar psíquico quando justiça e moderação são inculcados por especialistas oradores semelhantes à médicos da alma269 cujo contrário serão formas de ignorância270 contudo um regime no qual tanto o bemestar físico quanto o psíquico são preservados ou uma vez prejudicados certo bemestar não se perde271 implica em uma justiça e moderação nem físicos nem psíquicos mas intrinsicamente noéticos Assim a virtude por si mesma não é um estado mas uma condição causal de produção preservação de excelências psíquicas e físicas Se a sabedoria é a essência de cada virtude a justiça é a unidade entre elas o que significa dizer que a felicidade é possível como justiça Teremos bemestar é ocorrência do viverbem e este último é sinônimo de felicidade somente possível como fazerbem isto é justiça Por isso é sempre melhor sofrer injustiça que cometêla pois a virtude somente ligase à felicidade em ato e nunca passivamente 4 Os bens e a libertação da alma O termo bem possui ao menos três sentidos bem como propriedade ou posse bem como fim benefícios e utilidades e bem como ideal ou valor Entre estes alguns bens servem tanto à alma quanto ao corpo272 o que significa que o bem pode ter sentido amplo Por isto Platão o classifica em três categorias273 1 bens que almejamos possuir por si mesmos e não por suas consequências 2 bens que desejamos tanto por si mesmos como por suas consequências conhecimento saúde 3 bens que não 268 Górgias 477b Crít17d 269 Górgias 504d 270 Górgias 477b504e 271 Críton 47cd Gorgias 464b465d 477a 272 Górgias 467e468a 273 República 357bd Fernando Maurício da Silva 228 desejamos em si mesmos mas pelas consequências honra riqueza Se substituirmos o termo bem por finalidade para assegurar o sentido prático de bem e afastar seu sentido metafísico teremos a tese aristotélica da divisão dos fins Entretanto uma vez que Platão pretendeu assegurar o sentido cognitivo da escolha do bem é preciso compreender que sua categorização referese não apenas à busca do bem bem como fim mas à hierarquia de valores daquilo que é buscado Neste caso a divisão da alma implica o ato intelectual de escolha entre três valores o bem o admirável e o prazeroso 4 o elemento irascível da alma pode ter como objetivo o admirável ser honrado reconhecido etc mas a obtenção destes bens pode ser através de meios ilícitos 5 o elemento concupiscente pode ter como objetivo o prazeroso mas seu fim pode ser um bem ou um mal 6 o elemento racional é o único que busca o bem como valor puro274 Logo virtude é um nome para a relação entre as funções da alma seus objetos e os bens que produzem Ora Platão também nos diz que existem três tipos de bens275 7 Bens exteriores riqueza bom nascimento honra 8 bens relativos ao corpo saúde boa disposição física vigor 9 bens da alma moderação justiça coragem sabedoria A comparação entre as categorias apresentadas na República e em Eutidemo permitem supor que Platão definia os tipos 4 e 5 também como casos de bens nos modos enunciados em 7 e 8 Isto significa que o termo bem tem acepção tanto de fim quanto de valor ou seja é tanto aquilo que se busca mediante uma escolha quanto aquilo que se julga dever buscar como fundamento da escolha Isto se confirma na afirmação de que não apenas a posse dos bens torna os homens felizes mas o bom uso dos mesmos276 A virtude deste modo não está em sua posse nem em sua busca mas em seu 274 Eutidemo 281ab 275 Eutidemo 279 ac 276 República 280e A definição no discurso filosófico 229 uso277 A virtude é o bom uso ὀρθῶς χρῆταί ou a forma adequada tanto de se obter quanto possuir os bens A dificuldade em questão devese a resistência predicativa de bem O método dialético revela duas relações A bem e mal não são conceitos de mesma ordem e B bem e liberdade se predicam dialeticamente em analogia a ser e não ser ou movimento e repouso no Sofista Em A a noção do bem é concebida de várias maneiras por um lado muitos o confundem com o prazer e no entanto existem prazeres bons e maus com o que o prazer devido a sua dupla predicação não pode ser confundido com o bem que é uno por outro lado muitos identificam o bem e o saber mas não se pode mostrar qual a natureza do conhecimento ou definir com precisão o que seja o bem Teremos para a maioria é o prazer que se identifica com o bem e para os mais requintados é o saber Porém enquanto os últimos são incapazes de dizer o que é o saber e por força dizem ser o saber do bem como se todos entendêssemos o que significa bem os primeiros se encontram na mesma dificuldade por precisarem admitir que existam prazeres maus Que o mesmo possa ser considerado bom ou mau é a razão das frequentes discussões Assim quanto ao justo e ao belo a maioria procura as aparências e ainda que sem realidade é isso o que irão querer praticar possuir e aparentar mas quanto ao bem a ninguém basta possuir a aparência mas procuram a realidade O bem é eidético somente na medida em que é pensado como realidade definida como não física ou sensível por isso pensada como valor pois o bem se determina além do ser das coisas e ao mesmo tempo apenas é concebível a partir de bens particulares mas também a partir da relação entre as virtudes outros bens e suas combinações O passo decisivo para compreendermos isto está na relação entre bem Rep VI e liberdade Rep VII Os intérpretes costumam não observar que a República possui uma divisão que 277 Eutidemo 281b Fernando Maurício da Silva 230 acompanha a seguinte argumentação define a justiça Rep II a virtude Rep IV então o bem Rep VI e por fim a liberdade Rep VII Bem e mal pertencem ambos à liberdade e por isso após ser explicada a forma do bem descrevese o mito da caverna a libertação da alma A relação entre bem e liberdade respeita os seguintes termos quem conhece o bem e o mal mas escolhe o mal é perverso e ignorante quem conhece o bem e não conhece o mal mas escolhe o bem é ingênuo tanto quanto quem escolhe o mal sem conhecer o bem mas do mesmo modo que um médico é melhor quando conhece tanto a saúde quanto a doença a virtude é melhor quando conhece o bem e o mal e conhecendo os conhece que somente o bem é fim último e que o mal se inclui nos fins relativos Se fosse dado o bem sem o mal a escolha do bem seria escravidão e não deliberação Certamente Platão não formulou uma ética da deliberação para a decisão pois não seria aceitável conhecer o bem e ainda assim agir mal Contudo escolher o bem como fim da ação inclui ter a possibilidade do mal do contrário negase a liberdade fundamento da ação e sem a qual a virtude seria boa unicamente por sua posse 5 As formas de enunciação do bem Acima de tudo será a análise das proposições de Platão contendo bem que permitirá compreender porque este tem sentido eidético puro ainda que teleológico Os exemplos de Platão costumam ser do tipo o médico é bom o músico é bom o artesão é bom o geômetra é bom etc Em enunciados como o médico é bom ocorre uma circularidade especial Quando dizemos o médico é bom não estamos querendo afirmar que alguém tem a qualidade de ser um bom médico i O médico é bom quando cura ou restaura a saúde do paciente mas isto é possível mesmo quando o médico se encontra doente ou seja a saúde que define o ser bom do A definição no discurso filosófico 231 médico não pertence ao próprio médico mas ao fim buscado pela medicina ii Além disso sem conhecimento das causas da saúde alguém não é bom médico o que exige a utilização da medicina iii Porém a própria medicina não é nem saudável nem doente mas é um bem tanto para o médico quanto para os pacientes iv Enfim a saúde não é o bem do corpo de alguém em particular mas do corpo de toda e qualquer pessoa objeto da medicina v Logo o bem que o médico persegue e desde o qual o chamamos de bom não pertence a nenhum dos agentes morais o médico a medicina ou o paciente Temos I o enunciado o médico é bom não predica uma propriedade do sujeito e não qualifica apenas em função de um fim alcançado A isto podemos acrescentar o exemplo da música mais abstrato que o primeiro i Um músico é bom não quando afina seu instrumento para si pois neste caso o som será relativo somente a ele na melhor das hipóteses ii Nem é bom quando afina ou toca seu instrumento para ser melhor que outro músico pois neste caso ele não dominara a arte da música iii Nem é bom por pretender superar a arte da música mas sim por pretender superar suas limitações e alcançar a música como sua finalidade iv Logo o fim da arte da música não está no músico nem no instrumento nem nesta ou naquela música mas na teoria musical harmonia melodia ritmo etc Com isto podemos entender que II no enunciado o músico é bom é e bom significam o mesmo bem Fernando Maurício da Silva 232 tratandose de uma circularidade especial Deste modo podemos considerar o enunciado a justiça é um bem o enunciado diz justiça bem tal que a justiça não tem apenas o bem como finalidade mas é um bem por si mesma Então III o bem designa tanto uma das partes contrárias de um todo quanto o todo em questão Platão define o bem em termos de teoria do conjunto levando em consideração aquilo que chamará ciência dos gêneros Sofista Parmênides pois a razão aconselha a preferir e colocar em primeiro lugar o método que prescreve a divisão por espécies278 Propomos a seguinte distinção 1 um conjunto é uma classe quando os elementos que lhe pertence são indivíduos e não gêneros caneta lápis pincel pertencem à classe dos instrumentos de escrever extensão entre presenças 2 Um conjunto é uma espécie maior quando os elementos que o compõe são subconjuntos em termos de gêneros como homem e mulher pertencem à espécie humana tal que na mulher está presente algo que é ausente no homem e viceversa e que os determinam como gêneros 3 Enfim um todo é eidético quando parece admitir subconjuntos gerais e diferentes sem serem gêneros tal que i um subconjunto B é diferente de outro A sem serem contraditórios nem contrários em mesma ordem pois B está determinado pela ausência daquilo que é presente e determinante em A ii mas o subconjunto A é diferente e também inclui B por definição essencial por ser determinado por uma presença que é ausente no subconjunto B sendo este último determinado na dependência e pertencência à A Nesta segunda propriedade A não é simplesmente elemento de um aparente conjunto maior mas A é o próprio conjunto maior a incluir A e B como pertencentes Para compreendermos esta última distinção consideremos por exemplo que dia é oposto de noite mas não são gêneros como homem e mulher pertencem a humano no dia está presente algo que o determina a luz solar mas na 278 Político 286d6 República 523525 A definição no discurso filosófico 233 noite a escuridão não é uma presença Assim seguindo esta comparação existe uma medicina da mulher e outra do homem mas não existe uma ciência da luz e outra da escuridão para na mulher e no homem podemos encontrar a presença de elementos essenciais os órgãos reprodutores por exemplo mas na escuridão apenas encontramos a ausência da luz Além disto a diferença se agrava ainda mais devido a um abuso de linguagem chamamos dia tanto às 12 horas iluminadas pelo sol quanto à soma de 24 horas o período de um dia e chamamos homem tanto o conjunto da espécie humana quanto o gênero masculino Contudo enquanto no caso de homem temos um comportamento lingüístico baseado em uma convenção social usar a palavra homo para designar tanto a espécie quanto o indivíduo no caso de dia temos uma constatação empírica Por isso o método platônico exige distinguir conhecimento baseado em nomes imagens e conceitos razão pela qual tecemos lentamente até aqui as teses presentes na Carta VII e no Crátilo279 A ambiguidade linguística destas oposições reaparece nos termos morais bem e mal são contrários que se distinguem à semelhança de dia e noite e não em analogia a masculino e feminino pois conhecer o bem e ignorar o mal é um bem menor inocência que conhecer tanto o bem quanto o mal sabedoria tal como a coragem inclui o ímpeto e seu contrário o medo sem o que se tornaria imprudência vício e não virtude A Ideia de bem é o conhecimento tanto do que é bom quanto mal em particular sendo a liberdade da alma que determina a escolha do bem apesar do conhecimento do mal que a acompanha Não há liberdade em escolher o bem na ignorância do mal mas apenas quando se está na posse de ambos Logo o bem não é um gênero feminino e masculino são gêneros porque se definem por propriedades que são presentes em cada um mas que podem ser incluídas acidentalmente em uma mesma espécie mas o bem é um universal porque o seu contrário tal como a noite é a ausência 279 Crátilo 439ab Carta VII 343b14 Fernando Maurício da Silva 234 da luz e não a presença da escuridão é uma ausência de propriedade que apenas recebe nome por força da linguagem lógos É por isso que somente a dialética ultrapassa o lógos O mal é a ausência daquilo que nos permite conhecer o bem mas não sua contradição pois assim como um indivíduo corajoso pode sentir medo sem deixar de ser virtuoso pois não faz sentido chamar de corajoso aquele que é capaz de enfrentar o que não provoca medo também o conhecedor do bem é melhor conhecedor se conhecer também o mal do mesmo modo que o médico que conhece a causa da doença e da saúde é superior àquele que conhece apenas a causa da doença ou da saúde Seguese que o bem se conhece na presença da liberdade da alma e o mal é a ausência desta liberdade Poderíamos dizer a despeito do vocabulário de Platão que conhecer o mal sem conhecer o bem é ignorância conhecer apenas o bem e não conhecer o mal é ingenuidade conhecer o mal e o bem e optar pelo primeiro é perversidade mas conhecer o mal e o bem e ainda assim optar pelo segundo é virtude em termos de libertação da alma Rep VII que permite ver estas relações Tanto o ingênuo quanto o perverso acreditam ter parte no bem e não no mal mas não o bem em sua visão de conjunto que deve incluir ambas as partes Enfim a questão que resta está na aparente contradição de Platão situar o bem além das essências além dos gêneros e além do lógos e não obstante falar do bem Veremos eu este é um pseudoproblema dado a dificuldade ser apenas aparente pois o conhecedor das virtudes cardinais age bem ao conhecer as Ideias e a forma de todas e cada virtudes Contudo a solução que será fornecida é circular ou melhor situada no interior dos retornos dialéticos reconhecemos o bem em toda e cada coisa e dele nos aproximamos ao purificarmos os mitos da poética clássica com o que tornase possível expressar a Ideia de bem indiretamente através de mitos Aliás se as imagens são dialeticamente oportunas toda vez que estamos diante de termos com múltiplos sentidos ou usos como é o caso de bem então o mito imagem na forma de narrativa tal como a lógica em A definição no discurso filosófico 235 outros momentos passa a ser um instrumento órganon indispensável Seria esta a função do mito da caverna 31ª Lição A Ideia mítica de bem em si Se não conhecemos suficientemente uma Ideia é porque todo conhecimento e tudo que possuímos de nada serve se não for bom e belo Aqui se explicita inteiramente a relação anteriormente considerada entre conhecimento e desejo distinguindose entre desejo de prazer e desejo do ideal Para a maioria é o prazer que se identifica com o bem e para os mais requintados é o saber Porém enquanto estes últimos são incapazes de dizer o que é o saber e por força dizem ser o saber do bem como se todos entendêssemos o que significa bem aqueles se encontram na mesma dificuldade na medida em que precisam admitir que existem prazeres maus Que o mesmo possa ser considerado bom ou mau sem a distinção entre a Ideia de bem e suas possíveis participações em outras Ideias e coisas seria a razão das frequentes discussões Neste momento o argumento de Platão é de caráter participativo ou seja exemplificado na ocorrência da Ideia de bem nas coisas e atos humanos Insistindo nesta imagem enuncia o argumento central quanto ao justo e ao belo a maioria procura as aparências e ainda que sem realidade é isso o que irão querer praticar possuir e aparentar mas quanto ao bem a ninguém basta possuir a aparência mas procuram a realidade ponto em que todos desprezam a aparência Há um bem que a alma sempre procura e por causa do qual sempre faz tudo adivinhandolhe o valor ainda que ficando na incerteza sobre o que é Isto demonstra porque o bem é uma Ideia que se contempla independentemente do ser e do conhecimento da essência A palavra bem καλός possui dois sentidos Fernando Maurício da Silva 236 1 Participativo no qual muitas coisas que podem ser consideradas boas também admitirão em outras ocasiões o adjetivo de mal 2 Absoluto caso em que o bem não é uma existência no sentido de ser efetivo tampouco é uma noésis intelectual que se possa demonstrar 3 Contudo passase do primeiro ao segundo sentido observando que cada coisa tem uma função própria isto é desempenha um bem280 ou aquilo que é de maneira perfeita281 assim como a alma tem uma função própria virtude e o homem de alma justa vive bem282 O bem em absoluto é uma Ideia apenas possível de apreensão para uma theoré visão divina no sentido de visão de conjunto ao modo da noésis intuição intelecção Apesar de ser uma theoré a Ideia acompanha a intuição realizada no intelecto mas a noção de bem intuída de modo puro não reside nele Isto se deve ao fato de que o intelecto não é causa nem o lugar de si próprio Para entendermos a diferença entre estes dois sentidos de bem devemos considerar que a Ideia não se confunde com o uso popular que fazemos mas é aquilo que após uma investigação obediente às noções intelectuais purgadas é dada a um tipo de ato que se pode imaginar por alusão à função visual283 A tese de Platão até aqui apresentada pode assim ser resumida há muitas coisas belas e boas que se diz existirem e são distinguidas pela linguagem e há o belo e bom em si e a cada coisa múltipla corresponde uma Ideia única chamada essência embora o bem esteja acima da essência Naturalmente se deve dizer que os múltiplos são visíveis e 280 República 353b14 281 Banquete 198 d8 282 República 353 e7 283 República VI507 A definição no discurso filosófico 237 não inteligíveis e as Ideias são inteligíveis e invisíveis O visível e tudo o que é sensível são percebidos por um órgão sensório Além disso a faculdade de ver é a mais desenvolvida ou pelo menos a mais complexa devido ao fato da audição e a voz não precisarem de qualquer coisa de outra espécie para ouvir e fazer ouvir Sem este terceiro fator a audição e a voz não poderiam exercer sua função como por exemplo o ouvido ouve sons só por meio de sons Porém existindo nos olhos a visão e a cor nas coisas mas não se adicionando uma terceira espécie criada especificamente para o efeito a vista nada verá e as cores serão invisíveis o que seria a luz de modo que a visão ligase a este terceiro elemento muito mais estritamente que os demais sentidos sendo o sol a causa Nem a vista nem os olhos onde se forma são o sol mas seu poder advém dele de modo que o sol é a causa da visão e também contemplado por este mesmo sentido o que não ocorre com nenhum outro órgão Seguindo esta descrição da função da visão Platão oferece por analogia um primeiro critério há um objeto que é a causa de uma função e entretanto é através desta que sabemos que ele existe O autor continua a analogia na pretensão de dar conta deste duplo aspecto onde o sol encontrase no mundo físico em semelhança ao bem no mundo inteligível Enquanto os olhos enxergam mal na luminosidade noturna mas nitidamente na iluminação solar a alma fixada num objeto iluminado pela verdade e pelo ser compreendeo conheceo e parece inteligente mas quanto se fixa num objeto que nasce e morre só tem opiniões alterando seu parecer O ser e a verdade são a luz que permite ver o bem é a fonte desta luz seu sentido O que transmite a verdade aos objetos cognoscíveis e dá este poder ao sujeito que conhece é a Ideia do bem pois ela é a causa do saber e da verdade de modo que se ambos são belos há algo ainda mais belo Do mesmo modo que a vista e a visão assemelhamse ao sol e não são ele o saber e a verdade assemelhamse ao bem Fernando Maurício da Silva 238 mas não o são pois não é possível encontrar um conceito mais elevado que o de bem284 Assim como o sol proporciona às coisas a faculdade de serem vista mais a alimentação crescimento e gênese também aos objetos do conhecimento o bem proporciona a possibilidade de serem conhecidos e por ele o ser e a essência lhes são adicionados ainda que o bem não seja uma essência e esteja acima de todas Vejamos no quadro a seguir a tipologia platônica dos objetos cognoscíveis em relação à topologia já estudada e as funções da alma Conforme o esquema o bem é o objeto puro e último para o intelecto podendo entrar no lógos quando se torna imagem intelectual mas se o considerarmos na pura noésis seu órgão é princípio de possibilidade de todo conhecer enquanto a necessidade deste conhecimento advém do efeito que a intuição do bem gera sobre o ser ou essência das outras Ideias sua clareza Dizer que o bem noético somente vem ao lógos por meio de uma imagem corresponde na República ao mito da caverna no qual nossa natureza em relação à educação ou sua falta de acordo são exemplificados conforme 284 República VI509 A definição no discurso filosófico 239 a experiência na qual homens numa caverna enxergam senão sombras Πίστις pístis e quando conversam julgam estar diante de objetos reais εικασία eikasía tomando por realidade as sombras dos objetos Se no Livro VI a analogia com a visão ofereceu uma imagem da Ideia de bem o mito da caverna do Livro VII é a imagem do processo até ela Portanto tratase de uma imagem da libertação Os passos para a libertação da prisão e cura da ignorância é descrito em três momentos 1 Libertação apenas do sofrimento ao ser solto o prisioneiro acorrentado na caverna sentiria dores no corpo e o deslumbramento impediria de ver os objetos dado o mau hábito dos olhos com o que tenderia num primeiro momento a julgar as sombras como mais reais 2 Sendo forçado a olhar para a própria luz sentiria dor nos olhos e procuraria refúgio nos objetos anteriores 3 Se o tirassem da caverna à força e o obrigassem a subir o caminho até o ponto mais próximo do sol não poderia ver os objetos reais Portanto seria necessário o hábito para ver o mundo superior O mesmo se aplicará a teoria das virtudes É preciso olhar progressivamente 1º para as sombras 2º para as imagens refletidas na água 3º para os próprios objetos 4º para o que há no céu 5º para o próprio céu durante a noite na luz das estrelas e da lua 6º para o brilho do dia e o sol considerando que o sol é o responsável pelo mundo visível e finalmente 7º para o próprio sol A última opção seria regozijarseia com a mudança e deploraria os outros de modo que as honrarias antigas Fernando Maurício da Silva 240 quanto à habilidade de distinguir os objetos na caverna não lhes provocaria qualquer desejo e preferência em relação à mudança À alteração do conhecimento corresponde a alteração do desejo e sua direção quanto ao objeto 1 Iniciase ilustrando a sensação e a imaginação pístis e eikasia o prisioneiro apenas vê sombras tomaas por realidade não pode ver as Formas elas mesmas pois está preso às aparências285 não tendo ainda operado a reflexão sobre aquilo que parece ser justo para saber se é realmente justo Quanto a isto será importante observar que são os objetos que projetam a sombra na parede da caverna mas a fonte deste fenômeno é a própria luz passando por eles 2 A seguir descrevese a fé ou confiança que leva à reflexão o prisioneiro é libertado e forçado a ver os objetos que originam as sombras sente dor e então confusão sobre sua opinião acerca do bem se antes estava ou não em melhor situação 3 O mito continua sua descrição passando do primeiro estágio de reflexão para o pensamento hipotético similar à matemática embora ainda apoiado em imagens sensíveis com hipóteses que ainda não apreendem o que seja o bem mas que em todo caso mantém a suposição de que conhecer a verdade é um bem o que mantém a busca pela fonte luminosa das projeções das sombras 4 Assim a ficção da caverna chega a construir uma analogia com a apreensão intelectual do bem purificando as hipóteses na direção da luz do sol como fonte imprescindível de qualquer visão O mito da caverna tem duas partes aquela que parte da libertação do prisioneiro seu drama de adaptação à luz até chegar à contemplação dos objetos diurnos e do próprio sol e 285 República 515b A definição no discurso filosófico 241 aquela em que o prisioneiro retorna à caverna na esperança de transmitir sua descoberta Seguemse os passos do retorno à caverna 1º se retornar imediatamente para a caverna teria os olhos afetados necessitando adaptálos novamente 2º ao julgar as sombras junto aos outros causaria riso por supostamente ter estragado as vistas ao ter subido ao mundo superior de onde tal ascensão não valeria a pena de modo que os outros o matariam se exigisse deles subir o mesmo caminho Portanto as perturbações visuais são duplas e duplas as suas causas pela passagem da luz à sombra e da sombra à luz O mesmo ocorre com a alma ofuscase por falta de hábito por vir de uma vida mais iluminada ou de maior ignorância deslumbrada por reflexos refulgentes de onde se deve felicitar a primeira e ter compaixão da segunda Estes passos de retorno descrevem o processo de aprendizagem A conclusão286 enuncia explicitamente que o bem é o princípio do aprender por meio da noésis a educação não é dar ciência para uma alma na qual ela já não exista como se introduzissem a vista em olhos cegos É em um primeiro momento do tempo que o intelecto intui a essência nos objetos de conhecimento mas esta intuição é dupla pois implica que num segundo tempo acompanha a constatação de nestes mesmos objetos se dar o bem como princípio de possibilidade deles se mostrarem como tal e tal Por isso a necessidade de falar em uma faculdade da alma e um órgão por onde se aprende Notemos que do mesmo modo que o olho que não pode ser desviado senão com todo corpo aquele órgão não pode ser desviado senão com toda alma até poder suportar a contemplação do ser e sua parte mais brilhante o bem E leia 286 República 518519 Fernando Maurício da Silva 242 se com atenção com toda alma o que significa que a chamada função e órgão da alma é de ordem metafórica Se quiséssemos mencionar uma função embora não o órgão capaz de mobilizar toda a alma numa só direção bastaria acompanhar o texto platônico A educação é a arte deste desejo o modo mais fácil e eficaz de dar volta neste órgão na direção correta e não de fazêlo obter uma visão que já tem287 A função da educação enquanto capacidade de aprender o ser em si mesmo é garantir a direção do desejo para a luz da verdade O conceito de bem se aplica tanto ao conhecimento prático quanto ao teórico O guerreiro terá forçosamente de aprender essas disciplinas para ordenar suas tropas como o fará o filósofo para emergir do mar dos fenômenos mutáveis e chegar a essência sem o que não poderá tornarse bem calculados288 Primeiro porém os guardiões deverão aprender aritmética para as estratégias militares289 segundo a geometria para os cálculos de operações militares de combate e para facilitar a apreensão da ideia de bem terceiro a astronomia que ensina o movimento dos sólidos Somente após o estudo da matemática e suas ramificações passase a ciência que auxilia na contemplação do mundo inteligível a dialética Este percurso tem por direção alcançar princípios290 eliminando as hipóteses gerais e sobretudo das ciências particulares291 Neste sentido educação é adquirir a capacidade de perguntar292 e somada a capacidade de responder baseado em hipóteses e princípios educação é libertação O método de questionar admite os seguintes graus 287 República VII518d 288 República 525 b 289 República 521d526c 290 República 533 c 291 República 533 e 292 República 534 d A definição no discurso filosófico 243 1 O exercício dialético exige domínio nas disputas acerca das coisas do mundo erística o mesmo acontece com quem usa a dialética sem nenhum auxilio dos sentidos externos mas apenas com o uso da razão busca chegar à essência das coisas sem parar enquanto não apreende com o pensamento puro o bem em si mesmo pois somente é capaz de conhecer a faculdade dialética quem for versado nos conhecimentos de que tratamos a pouco293 2 Exigese então a definição das coisas discutidas buscar o que cada coisa é e não o que parece ser pois algo ninguém nos contestará a afirmação de que não há outro caminho para investigar a essência das coisas294 3 Esta exigência implica em superar o método as hipóteses e os objetos das ciências particulares mesmo a geometria que usam hipóteses sem justificativa pois as demais ciências que de algum modo apreendem o verdadeiro ser a geometria e ciências correlatas vemos como a respeito do ser o que fazem é sonhar sem que no estado de vigília consigam contemplálo já que apenas recorrem a hipóteses em que não tocam por não saberem fundamentálas295 Assim a dialética consiste em ultrapassar as ciências matemáticas pois quando não se sabe do que o princípio é feito nem o meio e o fim da mesma coisa de que modo o que foi concebido desse jeito chegará a constituir alguma ciência296 Isto significa que a dialética pode se dirigir da eliminação de hipóteses até princípios ou descer das ideias mais gerais para as particulares nelas contidas por divisão pois na visão de conjunto a subtração e a divisão não são princípios apenas das ciências matemáticas mas por elas pressupostos Parece que muitos incidem involuntariamente 293 República 533 a 294 República 533 b 295 República 533 c 296 República 533 c Fernando Maurício da Silva 244 nela imaginando que não discutem mas apenas conversam e isto por serem incapazes de dividir o argumento em seus conceitos fundamentais e por se apegarem às palavras no empenho de rebater a tese do adversário do que resulta simplesmente brigarem em vez de discorrerem sobre o tema apresentado297 O Fédon 90b define a dialética como arte da discussão ou arte de raciocinar a República298 ligaa a ciência ou arte de condução ao princípio A dialética corrige a erística e supera a episteme como toda arte e toda ciência ela dirige se a fins porém busca puramente o fim último o bem que está apenas pressuposto nos demais conhecimentos mas não visto 32ª Lição sistematização do processo de definição da justiça Podemos exemplificar o método de indagação e definição dialética através de um objeto a justiça A questão da justiça está dividida em duas perguntas o que é a justiça e se felicidade e infelicidade atribuise à justiça ou à injustiça Como vimos depois de sua primeira grande parada299 o discurso indaga o que é a justiça na cidade para alcançar um paradigma capaz de dar direção à questão da justiça no indivíduo e então para saber se felicidade ou infelicidade lhe caberia Assim como um pintor não vale menos por poder transmitir à pintura todas as qualidades da coisa e não poder demonstrar sua existência também a construção de um modelo imagético de cidade através de palavras não implica em falar menos bem no caso de não se poder se demonstrar a existência de uma cidade como esta 297 República 454 a 298 República 533bc 299 República VI472 A definição no discurso filosófico 245 Não é possível executar uma ação tal como se diz pois pertence à natureza das coisas que a ação tenha menos aderência à verdade que as palavras Por isso não se pode demonstrar na prática o que se realiza nas palavras de modo a ser suficiente concretizar tais normas como aproximadas ao modelo O lógos e a práxis possuem natureza distinta e não consiste argumento contra o primeiro dizer que ele não pode se converter no segundo O que se pode questionar é que espécies de defeitos possuem as cidades atuais para não serem assim fundadas e estabelecer a alteração necessária em menor número para a mudança possível A razão que impede as cidades aproximaremse do modelo é a separação entre filosofia e política pois enquanto o filosofo e o político se excluírem como duas naturezas não haverá felicidade humana bem como a cidade justa não será possível enquanto o governante não for filósofo A resposta à pergunta o que é a justiça dividiuse em o que ela é na cidade e o que ela é no indivíduo Analisemos os critérios da formulação do problema e do caminho para a resposta Seguem os seguintes critérios e suas subdivisões 1 Que a pergunta se formule em termos de ser e vá do caso maior para o menor justificouse como é o ser que dá verdade aos objetos fundados no bem o exercício mathémata filosófico inicia por formular o problema do ser Isto corresponde a suspender o processo de investigação por meio de meras imagens e opiniões e passar para a obediência das noções essenciais Como descrito no Sofista 252 a essência é um atributo do objeto dado por uma exigência que advém dele próprio não do sujeito cognoscente A grande noção que todo objeto pede que se lhe obedeça é ser em si o reconhecimento de que apesar de todos os acidentes em todo caso tratase de um objeto 2 A resposta à pergunta o que é certo objeto partiu da desconstrução de imagens e opiniões e chegou à Fernando Maurício da Silva 246 avaliação de hipóteses é sempre de dentro destas que se arrancam as demais noções essenciais a serem obedecidas e frequentemente o meio para estas noções irradiarem para o interior do discurso é a colocação de uma nova imagem inspiradora O exemplo é a imagem da cidade subdividida em duas outras a prescrever dois grandes momentos da investigação Recordemos a analogia do cão de raça com o desvio pedagógico e o mito do nascimento pela terra de caráter psicológico Estas novas imagens que propõem noções essenciais serão posteriormente findadas no objeto uno organizado em uma visão de conjunto300 3 Esta visão está marcada por uma modificação na direção do desejo bem como na presentificação de um desejo daquilo que a Ideia quer conforme o Sofista Consideremos em que momento antes de iniciar seu Retorno definitivo a essência da justiça a República esclarece que a filosofia está marcada por um tipo especial de amor phylos As pessoas na flor da idade e da paixão procuram qualquer pretexto para justificar seu objeto de amor seja por belos jovens vinho honrarias etc Ora se alguém está desejoso de algo deseja em sua totalidade e não em parte Assim o filósofo desejoso de sabedoria a deseja toda e não uma parte sim e outra não301 Este último item merece alguns esclarecimentos A visão de conjunto implica a finalidade do desejo Quem tem aversão à ciência sobretudo se jovem e não tem discernimento para distinguir o bom e ruim não diremos que é desejoso de ciência tal como quem tem aversão à comida está sem apetite Assim não são filósofos aqueles que procuram encher os ouvidos e olhos com artes e espetáculos de pouca valia mas aparência de filósofos sendo o filósofo verdadeiro o amador do espetáculo da verdade302 A metáfora do espetáculo da verdade é um excelente uso que Platão faz do 300 República VI509 301 Ibidem 302 Ibidem A definição no discurso filosófico 247 mito que representaria na opinião de F Nietzsche a própria consciência grega expressa no teatro trágico a verdade sobe ao palco e o filósofo tornase um novo tipo de espectador não apenas o cidadão comum NIETZSCHE 2007 p81 Notemos que a relação desejante entre indivíduo e coisa invertese como se a vontade de verdade proviesse de fora ou partisse do objeto A Ideia quer a Ideia tem vontade de verdade assim como o sol quer iluminar Quando Platão colocou a pergunta pela natureza e gênese da justiça vimos que tal problema lançou o discurso para a vontade de justiça que por sua vez só se resolve numa vontade de conhecimento O Livro VII é explícito quanto a esta diferença na vontade E assim teremos uma cidade para nós e para vós que é uma realidade e não um sonho como atualmente sucede na maioria delas onde combatem por sombras uns com os outros e disputam o poder como se ele fosse um grande bem303 e esclarece Tu sabes de qualquer outro gênero de vida que despreze o poder político sem ser o do verdadeiro filósofo A verdade é que convém que não vão para o poder aqueles que estão enamorados dele304 A partir disto podemos compreender e concluir com clareza os seguintes itens previstos ao longo de nosso estudo a Que a definição da justiça na cidade é dependente da definição do filósofo em sua distinção com o sofista o poeta o político e o orador de forma que esta definição tem por critério não só uma diferença no conhecimento mas simultaneamente no tipo de desejo razão pela qual mesmo o filósofo dependerá da educação e não só da disposição natural 303 República VII520d 304 República VI521b Fernando Maurício da Silva 248 b Além disso que a literatura não deve ensinar o arrebatamento pelo desejo que advém das coisas e imagens e sua ambição305 já que não há relação possível entre a temperança e as virtudes com o prazer excessivo tão excitante quanto a dor306 o que se sustenta no fato de ser o indivíduo a origem dos costumes na cidade em função de seus desejos conforme uma equivalência entre as partes e funções da alma e as da cidade307 c Que o desejo de poder e o desejo de saber distinguemse pelo tipo de relação com o objeto e pelo o tipo de objeto com que se relacionam Com efeito a sede é sempre de bebida independentemente das características acidentais da bebida308 pois a alma do que deseja procura sempre seu objeto e cada desejo em si é dirigido ao objeto do qual se originou309 do mesmo modo que a ciência em si é sempre do objeto a ser dado a ela distinto da ciência particular que se define por um objeto específico310 d Enfim que o desejo que tem por fim o objeto puro procura seu próprio princípio diferentemente do desejo dirigido aos objetos particulares que como o desejo de poder são uma potência relativa a um efeito determinado A visão de conjunto sempre metaforizada por Sócrates como algum tipo de inspiração corresponde a esta mobilização do desejo Voltemos aos critérios da formulação do problema e do caminho para a resposta e vejamos o próximo critério 4 A forma de desejo mais pleno é aquele que tem por fim o bem Esta noção essencial ocorre como primeira 305 República III390 306 República III411 307 República IV436 308 República IV439 309 República IV437 310 República IV438 A definição no discurso filosófico 249 grande forma geral de obediência e é frequente em diversos diálogos de Platão a é a constatação de que a coragem é boa que lança luz para a sua essência definida como a coragem é uma ciência e não uma constância de alma ou a violência do guardião311 b de que o piedoso é amado pelos deuses porque é justo312 c ou que a amizade tem por essencial o caso em que o neutro ama o bom já que este último se basta a si mesmo313 d enfim quanto à justiça será necessário descortinar aquela noção oferecida por sua imagem inspiradora capaz de responder ao critério do bem que a justiça é uma virtude314 O princípio do bem dirigirá o objeto para o enunciado de seu ser em si 5 Sabemos que a definição é uma visão de conjunto315 o direcionamento do discurso para o bem e a essência se iniciou por uma Imagem Maior inspiradora a justiça no todo da cidade Na medida em que este conjunto reúne o que está disperso em múltiplas imagens poderíamos supor que Platão executa um raciocínio por indução mas não é o caso Certamente muitas vezes a indução é levada até um momento porém sempre a título de gerar um impasse e convidar para o conjunto ainda disperso uma nova visão Este é um exemplo do uso estratégico ou metodológico que Platão faz da lógica sem que no final o aceite como fundamento do próprio método Na teoria do objeto formulada por Platão tratase sempre de ver ou contemplar o objeto no seu todo unívoco ou seja apreensão visual da unidade316 cuja expressão metafórica é a visão divina theoré A própria Ideia de teoria constróise sobre esta metáfora 311 República IV430 Laques 192 312 Eutífron 10 313 Lísis 214 314 República IV427 315 República VII522 Fedro 265d 316 República VII525a Fernando Maurício da Silva 250 6 O método purgativo tem por função fazer o raciocínio hipotético sofrer uma parada e na crítica ao valor das hipóteses servirse de Ideias para estabelecer o princípio Uma maneira frequente de preparar isso é mostrar a que gênero o objeto em questão pertence por exemplo assim como acerca da amizade seria preciso constatar primeiro que há três gêneros bom mau e neutro acerca da justiça Platão inicia a definição quando consta que ela pertence às virtudes ao lado de outras três com o que a definição destas outras lança luz para a definição de justiça317 Porém façamos a ressalva vista no item acima a determinação lógica do gênero é também apenas um trampolim para saltar este abismo que separa os objetos imagéticos e o puro Sempre em todo caso o raciocínio lógico é inicialmente utilizado na avaliação das hipóteses após valer se dele para revelar a contradição no primeiro passo metodológico relativo às meras imagens e opiniões Entretanto o raciocínio lógico é sempre uma simulação E não poderia ser de outra maneira tendo em vista que mesmo o lógos instrumento das ciências objetivas é diante do objeto noético puro também imagem Enfim a definição de justiça tem como ponto de partida justamente a constatação de que o raciocínio lógico estaria levando a um impasse318 justiça é governar ao outro segundo leis mas também governar a si mesmo segundo a justiça mas não basta governar ao outro segundo leis injustas bem como não é possível governar a si mesmo sem já conhecer a justiça enfim quem governa ao outro segundo leis justas também obedece a justiça destas leis caso em que justiça é tanto mandar quanto obedecer e quem governa a si mesmo obedecendo a justiça na alma é o mesmo que obedece a si próprio caso que também parece contraditório 317 República VI427e 318 República IV434e A definição no discurso filosófico 251 33ª Lição a justiça como virtude Como vimos a questão pelo ser da justiça no indivíduo é inicial na República porém mediada pela questão da essência da justiça na cidade a ser respondida primeiramente embora esta ordem do discurso seja inversa à ordem do problema cujo sentido metodológico seria 1a definir a justiça na instância maior a cidade 1b nesta a justiça somente se revela junto com as outras virtudes 2 definir a justiça no indivíduo desde o princípio de que as partes da alma e as partes da cidade se equivalem em número e em função Ora os momentos 1 e 2 são ambos Retornos marcados textualmente por uma Aporia e também numa Parada metodológica de Sócrates por uma exigência de inspiração investigativa que só se define em cada caso pelo efeito do limite lógico do discurso Vejamos estes dois retornos 1 Retorno à questão inicial secundária O primeiro passo para dirigir a alma na direção do ser em si ocorre quando Sócrates faz a exigência de nova clareza e inspiração rejeitando continuar a investigação por si mesmo Arranja em qualquer parte a luz suficiente319 A luz em questão referese à noésis do ser desde o bem Entretanto para que Platão possa ter sucesso em forçar o intelecto para esta região de difícil acesso320 recorrerá a um modo lógico de raciocínio Se encontrarmos na cidade qualquer das virtudes o que resta será o que não encontramos até aqui a justiça321 Este processo residual no qual se não há mais o que escolher senão o que restar322 é um raciocínio 319 República IV427d 320 República IV432c 321 República IV427e 322 República IV428a Fernando Maurício da Silva 252 lógico por eliminação portanto um tipo de indução Mas como sabemos no que diz respeito ao valor do raciocínio lógico em Platão esta indução não deixará de acarretar dificuldade a ponto de Sócrates constatar posteriormente acerca da definição da justiça na cidade que desde o começo que esta questão parece andar a rolar na frente dos nossos pés sem que nós a víssemos fazendo em vez disso uma figura ridícula323 abrindo caminho para o Retorno à essência da justiça no indivíduo Este é o primeiro passo e sua dificuldade Entretanto estando a investigação inserida ainda dentro de uma grande imagem é necessário algum procedimento para escapar a ela e forçar a alma para aquela região mais difícil Por isso o método residual é relevante neste instante uma vez fundada a cidade perfeita324 podese retornar ao problema da justiça no interior daquela instância exigindose luz para tanto Eis o primeiro Retorno a cidade se mostrou fundada em quatro virtudes É sábia corajosa sensata e justa325 Isto significa que a cidade possui quádruplo fundamento e a questão passa para a unidade ou diferenciação entre tais virtudes Devese agora distinguir a justiça das outras três virtudes definindo cada uma e eliminandoas segundo seus critérios até que reste a essência daquilo que procuramos Assim executando este processo Platão afirma que a definição das três virtudes é satisfatória para buscarse o que restou na medida em que respeitam as consequências ou seja são objetivamente científicas Acompanhemos o raciocínio326 1º Da sabedoria Algo de estranho se manifesta a respeito da sabedoria a cidade parece sábia por ser ponderada Mas 323 República IV432e 324 República IV427c 325 República IV427c 326 República IV 428432a A definição no discurso filosófico 253 esta qualidade é evidentemente uma espécie de ciência pois não é pela ignorância que se pondera bem por exemplo na divisão do trabalho e no uso de seus instrumentos Então deve haver alguma ciência entre os cidadãos da cidade pela qual se delibere não sobre pormenores encontrados nela mas sobre sua totalidade sobre a melhor maneira de se comportar diante dela e das outras cidades a vigilância encontrada nos guardiões perfeitos A ciência da vigilância que delibera por todos é o setor de menor número e é graças a este que uma cidade pode ser sábia 2º Da coragem Todos diriam que a cidade será corajosa atendendo aquele setor que se ocupa da luta e do combate por ela Logo a cidade seria corajosa numa de suas partes armazenando aí energia para perseverar através de todas as vicissitudes a sua opinião sobre as coisas a temer sendo aquelas proclamadas pelo legislador na educação Neste sentido a coragem é um tipo de salvação a da opinião que se formou em nós por efeito da lei graças à educação sobre as coisas a se temer que existam e a sua qualidade Esta salvação através de todas as vicissitudes consiste numa força na qual se salva em todas as circunstâncias a opinião reta e legítima 3º Da temperança A temperança moderação ou sensatez seria uma espécie de ordenação tal como expressa a máxima corrente ser senhor de si como vestígio desta virtude Mas esta expressão é ridícula pois com efeito quem é senhor de si será também escravo de si e o que é escravo senhor porquanto é a mesma pessoa que se faz referência Mas esta expressão parece significar que na alma do homem há uma parte melhor e outra pior quando a melhor domina a pior chamase a isso senhor de si porém quando devido à má educação ou companhia a parte melhor sendo menor é dominada pela superabundância da pior Fernando Maurício da Silva 254 chamase ao homem que se encontra nesta situação de escravo de si mesmo e libertino Do mesmo modo a cidade será senhora de si se a parte melhor governar a pior Sentimentos simples e moderados dirigidos pelo raciocínio conjugado pelo entendimento e reta opinião em pouca gente se os encontra mas só nos de natureza superior e formados por uma educação superior Entretanto considerando em quais cidadãos a temperança poderá ser encontrada será tanto nos governantes quanto nos cidadãos de onde se deve concluir que a temperança é uma espécie de harmonia Diferentemente das outras duas virtudes a temperança não estará só do lado da cidade mas se espalhará nela toda pondo todos a cantar em uníssono de maneira que se poderia dizer com toda razão que a temperança é a concórdia entre os naturalmente melhores e os naturalmente piores sobre a questão de saber quem deve comandar quer na cidade quer no indivíduo Notemos que nestas três definições de virtudes o que é comum é a presença do conhecimento seja como reta ciência sabedoria opinião reta e legitima coragem ou raciocínio conjugado pelo entendimento e reta opinião temperança sendo as duas primeiras pertencentes ao governante e a cidade em sua totalidade e a terceira pertencente também aos indivíduos e sua massa Notemos além disso que do ponto de vista lógico estas definições são todas fornecidas segundo as consequências e por isso apesar de serem satisfatórias327 será o caso de conversar melhor sobre elas em uma outra ocasião328 pois são apenas figuras329 327 República IV29a 328 República IV430c 329 República IV432e A definição no discurso filosófico 255 2 Unidade e diferença entre as virtudes Estamos procurando o que resta da definição daquelas três virtudes segundo o método residual Faremos isto na próxima Lição Antes contudo é preciso averiguar com maior cuidado em que sentido as virtudes são tanto em si mesmas e em relação umas com as outras Nesta seção 2 arriscaremos uma interpretação que extrapolará os limites da República conforme previmos em nossa Introdução mas ainda que se possa incorrer em pequenas imprecisões esta interpretação não afetará o rigor da conclusão acerca da justiça que reproduziremos na próxima Lição Nos diálogos de juventude as virtudes são em número de cinco saber justiça coragem moderação e piedade mas nos diálogos de transição são quatro piedade tornase extensão da justiça O problema geral pode assim ser exemplificado 1 o diálogo com Céfalo Rep I caracteriza o bem da velhice segundo quatro critérios prazer felicidade utilidade e caráter Estes se desdobrarão em objeto de amor do corpo e da alma virtudes economia da cidade e o problema da natureza e educação da alma 2 Protágoras 329ad afirma que cada virtude é uma parte diferente da outra possuem qualidades e definições próprias mas compõem um todo ao que Sócrates responde que as virtudes se dispõem de tal forma que resultam em nomes de uma mesma coisa Portanto o problema é saber como a virtude é tanto um todo quanto as suas partes A solução está na relação entre as virtudes Por exemplo para provar que saber e moderação são semelhantes330 argumentase que cada conceito só pode ter um oposto tanto a moderação quanto a sabedoria contêm o mesmo oposto a ignorância portanto são a mesma coisa ou possuem o mesmo significado Ou ainda temer a luta é covardia oposto da coragem mas não estar em guerra parece também oposto à coragem Disto não se segue necessariamente 330 Protágoras 332a333b Fernando Maurício da Silva 256 que a virtude está em última instância no meiotermo entre aqueles dois extremos pois o bem não é um gênero e a liberdade dirigese ao bem como uma realidade Duas são as características das virtudes enunciamse segundo princípios mais amplos e definemse uma em função da outra Vejamos como isto ocorre Primeiro a atribuição de bem implica tornar o definendum um eidos aquilo que somente pode ser definido em função de si mesmo a coragem é boa porque é uma ciência o piedoso é amado pelos deuses porque é justo331 a amizade é boa por bastarse a si mesma332 Assim do mesmo modo que a pergunta o que é a coragem não se resolve dizendo que está entre as coisas belas333 já que com a sabedoria por exemplo ocorre o mesmo334 e entretanto assim como se pode dizer que a sabedoria além de bela é boa335 a coragem também pode assim ser predicada Então coragem definese como capacidade da alma manterse na verdade ou em sentido estrito capacidade da alma manterse no reconhecimento ou obediência de uma lei ou mandato justo É evidente que a afirmação a coragem é uma ciência não é sua definição propriamente dita pois uma definição deve dizer a essência presente em algo como sua propriedade mas permanece verdadeiro que a afirmação a coragem é boa forma parte da essência da coragem enquanto objeto apreendido pela intelecção O postulado o bem não é uma essência e está acima das essências336 corresponde ao princípio para os objetos do conhecimento não só a possibilidade de serem conhecidos lhes é proporcionada pela ideia de bem mas também o ser e a essência337 isto é reconhecer o bem em um objeto implica 331 Eutífron 10 332 Lísis 214 333 Laques 129c 334 Carmides 159c 335 Carmides 160c 336 República 509a 337 República 509a A definição no discurso filosófico 257 exigir deste uma essência Porém aplicada aos objetos de conhecimento moral esta dedução se torna particular se a coragem é boa exige uma essência então teremos que a coragem é uma ciência e não uma constância de alma ou a violência do guardião338 Ou seja dizer a coragem é boa significa tornála objeto de conhecimento A coragem é a salvação em todas as circunstâncias da opinião reta e legítima relativamente às coisas temíveis e as que não o são339 Segundo este argumento demonstra como cada virtude participa uma da outra Teremos 1 toda virtude é moderação já que é justamedida 2 a coragem é o sentido da virtude porque impele a agir segundo o que se conhece 3 a justiça é a unidade das virtudes em relação às partes da alma 4 a sabedoria é a essência não de cada virtude moderação mas de todas em conjunto já que virtude em geral é conhecimento Por isso a questão se a virtude pode ou não ser ensinada Menon é intrínseca pois todas as virtudes são conhecimento e uma delas em específico Assim a sabedoria é destinada à classe legisladora no Estado340 pois corresponde ao conhecimento do todo tal como a educação no indivíduo341 o saber não é apenas uma das virtudes mas o fio condutor da unidade das virtudes342 não sendo apenas uma de suas partes mas seu todo343 Com isso todas as virtudes são sabedoria mas cada uma de um modo a coragem é conhecimento daquilo que deve ser temido e no que se deve confiar o que em geral é conhecimento do bem e do mal o que corresponde a toda virtude344 a moderação é o conhecimento que cada um deve ter de si mesmo quanto àquilo 338 República 430 Laques 192 339 República 430 b 340 República 428b429a 341 República 430a 342 Laques 198a 343 Láques 199 be 344 Protágoras 349d Fernando Maurício da Silva 258 que lhe cabe fazer com o que se assemelha a definição de justiça345 mas aplicandose ao desejo ou apetição do individuo Terceiro o desejo escolhe de forma virtuosa um bem predicado de um objeto quando tal escolha obedece ao bem A escolha do bem é uma forma geral de obediência à própria vontade se a moderação promove a harmonia entre os cidadãos de um Estado Rep se no indivíduo é o dever de cada um comandar a si mesmo entendendo por governar a si mesmo dominar prazeres e apetites346 ser senhor de si mesmo347 e se se distingue da continência capacidade de controlar os próprios conflitos sem superálos por corresponder ao domínio da vontade e escolhas voluntárias pois o contrário da ação moderada ou agir retamente é a insensatez e loucura348 então ela é uma forma de justiça ao impedir que o indivíduo se torne escravo de si próprio ao produzir uma ordem psíquica que impede a luta ou conflito na alma obediência ligada ao conhecimento do bem enquanto autoconhecimento em vistas de um determinado bem349 Quarto o bem pressupõe a liberdade mas não o direito de cada um usufruir igualmente os próprios apetites pois isto significaria ter cada vez mais oposição à moderação tanto no individuo quanto no Estado o que implica a necessidade de governo tanto no indivíduo quanto no Estado350 tal como a justiça que não se reduz à justiça por convenção ou Lei nem à justiça por natureza351 sempre pressupõe a igualdade 484a Enfim em quinto lugar a piedade é justiça para com os deuses cujo contrário é o ímpio352 345 República 432 346 Górgias 491d 347 República 430e 348 Protágoras 332b 349 Cármides 160161 350 Logo o homem justo quanto ao conceito de justiça em nada diferirá da cidade justa mas será semelhante a ela Rep 435a idem Laq 191d Eutíf 5d Mên74d 351 Gorgias 483 be 352 Eutífron 14b A definição no discurso filosófico 259 Tomados em conjunto seguindo os critérios que descrevemos na República os argumentos de Platão parecem obedecer aos seguintes passos sendo que estes itens não representam diversas definições de um mesmo objeto o que a rigor não é possível para definições essenciais antes são momentos diversos na busca da essência 1 Definição das partes em função do todo coragem é agir bem diante do medo ou perigo piedade é agir bem com respeito aos deuses justiça é agir bem com relação aos outros sabedoria é agir bem em relação a si mesmo moderação é agir bem em relação à situação 2 Definição do todo pelas partes toda virtude é moderação já que é justamedida essência de cada virtude o sentido de toda virtude é a coragem porque impele a agir segundo o que se conhece todas as virtudes em conjunto são sabedoria em geral conhecimento do bem e do mal a unidade ou ordem entre elas é justiça 3 Definição das partes entre si coragem é justa obediência ou obedecer ao justo na moderação do medo através de sabia estratégia sabedoria é coragem de buscar o devido segundo a lei como princípio de medida justiça é coragem de realizar pois não realizar a lei sabida é injuto medida de decisão que harmoniza as partes envolvidas segundo a sabedoria conhecimento da lei moderação é sabedoria na busca de fins coragem de mandar em si mesmo como medida de seguir uma regra anterior etc 4 Definição segundo princípios a moderação é cálculo ou medida de justiça e felicidade a sabedoria é autogoverno do ser racional a coragem é boa vontade ou desejo puro de praticar o bem conhecido e a justiça é o princípio de ordenação ou distribuição Platão parece ter se esforçado por explicitar cada um destes setores formais da moral além de descrever seus Fernando Maurício da Silva 260 conteúdos materiais prazer desejo e felicidade A ética vai do campo aplicado passa pela utilidade e pelos costumes e vai até os modelos práticos e o ideal de bem e não se pode deixar de reconhecer no platonismo tanto a descrição dos primeiros aspectos quanto a postulação dos últimos 34ª Lição conclusão do método residual a essência da justiça A República não é um tratado apenas de ética e política mas discute a natureza do bem e das virtudes em função da indagação pelo domínio público que pressupõe a moral em suas consequências Em todo caso após avaliar as virtudes impõese uma questão o que resta 1 A definição residual de justiça Nas definições das virtudes o que se manteve de comum do ponto de vista da cidade foi o princípio de divisão do trabalho e de suas partes Por isso o que a muito se está a falar na longa introdução executada pelos Livros I II e III o princípio de divisão da cidade é a própria justiça Que cada um deve ocuparse de uma função na cidade aquela para a qual a sua natureza é mais adequada o que também pode ser enunciado como cada um desempenhar a sua tarefa353 A moderação ou temperança é uma virtude com função própria e também a harmonia entres as virtudes assim como a justiça que é uma virtude com função própria harmonia ou ordenação entre as virtudes mas também seu princípio de divisão A temperança é princípio por si mesma e do conjunto das duas outras virtudes a justiça é principio por si de todas e 353 República IV433a A definição no discurso filosófico 261 de cada uma das outras três virtudes Portanto assim se responde a pergunta acima O que restava na cidade das três virtudes era o que dava a todas estas qualidades a força para se constituírem354 Portanto a justiça é tanto uma das virtudes quanto o princípio de unidade e distribuição das virtudes Enfim compreendemos a razão de ser de toda a demora metodológica Vós declarastes que era o bastante e assim se fez uma exposição que segundo me parecia estava incompleta Logo meu amigo ele tem de ir pelo caminho mais longo e que não se esforce menos nos estudos do que nos exercícios físicos ou então como ainda agora dissemos jamais atingirá o fim da ciência que é a mais elevada e a que mais lhe convém355 A investigativa preliminar era uma imagem da justiça acerca do assentado sobre os trabalhadores356 e o que há de essencial nesta definição geral da justiça é a justiça é princípio 2 Retorno à questão essencial primordial Há uma passagem do Livro IV que esclarece a decisão de retomar a definição através de um retorno metodológico à 1ª questão357 a investigouse a justiça na cidade para servir de modelo quanto ao indivíduo Se a justiça se manifestar diferente quanto ao indivíduo devese reiniciar a investigação da cidade b o homem justo não se diferenciará da cidade justa358 a cidade é justa quando existem nela três naturezas a executar cada qual sua tarefa própria temperança coragem e sabedoria qualidades a serem encontradas no indivíduo justo É neste momento que surge a questão motivadora do 354 República IV433b 355 República 504b 356 República IV433c 357 República IV434e 358 República IV435 Fernando Maurício da Silva 262 segundo Desvio que já consideramos para isso a alma possui três partes ou não O indivíduo é origem dos costumes da cidade em função do desejo em cada um estão presentes as mesmas partes que na cidade pois estas não estão aí desde qualquer outro lugar senão de seus habitantes Por isso podemos desdobrar a última questão nas seguintes perguntas executamos cada ação por meio do mesmo elemento ou de seu elemento visto que são três Compreendemos graças a um irritamonos por outro desejamos por um terceiro ou praticamos cada uma destas ações com a alma inteira Cada função da alma devese a alma toda ou a uma de suas partes Para avançar quanto a isso Platão faz novamente uso momentâneo das regras do discurso o mesmo sujeito não pode realizar e sofrer ao mesmo tempo efeitos contrários na mesma de suas partes e relativamente à mesma coisa de modo que se isto ocorrer deve haver mais de um elemento Algo não pode estar parado e em movimento na mesma de suas partes como um homem parado que move a cabeça ou os pilões que se movem com a ponta fixa no mesmo lugar imóveis em relação ao eixo mas não quanto à circunferência Sabemos que Platão não pode pretender resolver a questão inteiramente com um argumento lógico estrito o que entrementes jamais foi um expediente possível na filosofia grega ao não estipular critérios para a separação entre o lógico e o ontológico Por isso este passo tem por função assegurar a referência à unidade do objeto a sede em si é por bebida e este é seu impulso não podendo produzir resultados contrários Se alguém que tem sede se recusa a beber este ato devese ou ao raciocínio ou a estados mórbidos havendo portanto dois elementos distintos racional e desiderativo Ao menos é isso o que o raciocínio lógico revela mas como tal ele sempre falta com a visão de conjunto Desse modo apesar do que o raciocínio lógico demonstra inicialmente a cólera às vezes luta contra os desejos como se fosse coisa distinta e aliada da razão A definição no discurso filosófico 263 quando por exemplo as paixões forçam contra a razão e o individuo censurase a si mesmo ou irritase contra aquilo que em si impulsiona359 Por isso quando alguém julga ter cometido injustiça quanto mais nobre ele for menos pode encolerizarse contra quem o julga quando alguém se considera vitima de injustiça irritase e luta do lado que julga correto Assim o elemento irascível não está simplesmente ao lado dos outros desejos como a alma concupiscente Logo ou o elemento irascível faz parte da razão havendo não três partes mas duas a alma racional e a concupiscente Mais precisamente como na cidade a alma é composta de três classes negociante auxiliar e deliberativa onde o elemento irascível seria auxiliar do racional quando não corrompido por má educação consistindo argumento o fato da irascibilidade já ser presente nas crianças enquanto a razão nem todas alcançam e algumas só tarde Simplifiquemos o argumento 1 o raciocínio lógico demonstra tal como a história de Leôncio360 que a alma deve estar dividida em razão e desejo de modo a incluirse a ira na razão e não na parte desiderativa 2 Entretanto quando consideramos mais amplamente o fato de que crianças e animais apresentarem ira mas não necessariamente razão vemos que a alma deverá ser composta de três partes havendo na cidade e na alma o mesmo número de partes em equivalência sendo as virtudes da cidade e do individuo as mesmas361 Concluímos portanto que após atravessar com grande custo este mar de dificuldades devese concordar perfeitamente que há na cidade e na alma de cada indivíduo as mesmas partes e em número igual tornandose necessário que o indivíduo seja sábio naquilo mesmo que o é a cidade e em tudo o mais que à virtude respeita362 Atingiu 359 República IV440 360 República IV439e 361 República IV441 362 República IV441d Fernando Maurício da Silva 264 se a visão de conjunto e a definição abriu suas portas para aquilo que a Ideia de justiça quer do nosso lógos CONCLUSÃO O conhecido mito da caverna é antes de tudo mito μύθος mithos363 Sabemos que Platão faz amplo uso da noção de μύθος em sentido negativo e positivo 1 Por exemplo sendo imprecisa a primeira definição fornecida de político que ainda confunde o político e seus rivais364 tornase necessário utilizarse de um mito em analogia aos jogos das crianças365 é também em função da dificuldade na definição que o personagem Estrangeiro utilizase de um mito para corrigir o enunciado anterior366 ainda no mesmo diálogo o desvio investigativo após propor um novo paradigma referente à definição da tecedura justifica o valor dos mitos acerca do nãoser367 do mesmo modo é por meio do mito do nascimento que se poderá distinguir o valor de Eros dos demais daimones368 2 Distinto é o uso que encontramos no Górgias que executa uma parada metodológica acerca da definição de retórica e da unidade belobem harmonia mas não para purificar o enunciado e suas consequências mas para repetir voltar a descer e mostrar o encantamento da definição através de um mito369 3 Para ser possível definir o que é o bom escrever e falar ainda em relação à retórica e a política utilizase o mito das cigarras nem como parada nem como paradigma mas como prelúdio à investigação370 363 República VII 514a 364 Político c9 365 Político d8e6 366 Político 268d 367 Político 286 b7 368 Banquete 202203 369 Górgias 521b 370 Fedro 258d Fernando Maurício da Silva 266 O mito é recorrente em Platão toda vez que é necessário responder ao político ao retórico ao poeta e ao sofista O uso positivo que a dialética faz do mito consiste na suposição da imagem admitir função metodológica O mito conta narra e canta algo embora não conte calcule e preste contas em sentido demonstrativo Por isso é preciso explicitar em que sentido e medida a imagem pode ser superior e positiva para o método filosófico o que somente ocorre quando a própria linguagem lógos serve de imagem para o eidos Portanto deveremos concluir nossos estudos tratando da estrutura semântica do mito da caverna com o intuito de entender a estrutura imagética das palavras lógos usadas por Platão para formar a analogia discursiva com a Ideia 35ª Lição o valor do mito 1 Desconstrução metodológica do lógos fraco e contemplação do modo de ver o ente mesmo Como vimos o Livro VII inicia com a proposta de imaginar ἀπείκασον apeíkason a natureza φύσιν da educação e da ignorância παιδείας ἀπαιδευσίας através da visualização ἰδὲ verbo no imperativo aoristo da voz ativa de homens amarrados em uma habitação subterrânea o mito da caverna Notemos que Platão utiliza aqui o verbo ἀπείκασον apeíkason também no imperativo aoristo da voz ativa e não εἴδωλον eídolon ídolo imagem simulacro derivado do termo εἶδος eidos aspecto figura Sempre é a visualização que está em pauta Muito embora εἴδωλον derive de εἶδος e apesar de Platão não ser sistemático na escolha destes termos na República o εἴδωλον simulacro referese à imagem poética em distinção às imagens em sentido mais forte Devese observar também que Platão não Conclusão 267 utiliza diretamente o substantivo ιδέα Idéa idéia forma mas a forma verbal usada em referência a uma narrativa ou mito μύθος Também é preciso observar que o interlocutor responde vejo isto Ορῶ ἔφη de forma a Sócrates prosseguir a narrativa repetindo a exigência de visualizála Veja também ao longo deste muro homens que 371 O termo grego ιδέα possui raiz no termo όρα hóra ver de modo que a afirmação de Glauco Ορῶ vejo indica como em Platão é a experiência da visão que fornece a orientação para a dialética porém sem que esta experiência visual esteja diretamente amarrada em um idealizar em sentido moderno Para uma possível distinção dos usos de eidos idéa ídolon etc devemos recordar o que foi apresentado em nossa 6ª Lição Ao longo de nossas Lições traduzimos o termo eidos por Ideia ou Forma com os cuidados acima expostos mas observamos que eidos as vezes significa a apreensão de uma imagem maior e outras vezes uma intelecção pura uma definição uma essência Entretanto mais comumente idea também traduzível por Ideia ou Forma é usado no sentido da intelecção de uma visualização purificada de todo campo imagético Isto não significa idealização tão pouco afasta o uso metodológico de imagens sobretudo do mito Isto se observa no emprego de eídolon imagem ídolo termo grego que carrega a mesma raiz de eidos Mas quando Platão procura enfatizar o sentido fraco de imagem parece preferir termos como eikóna ou apeíkason Por isso distinguimos imagem maior e imagem menor372 O que nunca é perdido é a όρα hóra ver e é o mito que melhor expressa isto por reunir tanto o domínio do imagético quanto do discursivo É este o valor da narrativa Apesar de termos traduzido o termo ιδέα por idéia seguindo o padrão mais comum procuramos 371 República 514b Οξα ηνίλπλ παξὰ ηνῦην ηὸ ηεηρίνλ θέξνληαο ἀλζξώπνπο 372 Recordemos as distinções feitas em nossa 6ª Lição Fernando Maurício da Silva 268 constantemente evitar que o verbo ἰδὲ fosse entendido como idealize o que ocultaria o fato de que a dialética progride na direção da ιδέα através do μύθος mithós num sentido que se opõe ao μύθος poético e sofístico Podemos falar na distinção de um μύθος construído poeticamente a partir de imagens das coisas e um μύθος construído dialeticamente a partir de imagens lógicas imagens que ensinam a distinguir verdadeiro e falso Também se poderia traduzir ιδέα por figura desde que em sentido ativo figure que os homens estão diante do muro Assim quando Sócrates narra o transporte de estatuetas de homens e animais em pedra diante da caverna tratase de perceber a tensão entre esta narrativa μύθος e o próprio diálogo διάλογος no qual a narrativa se insere Pois se está a figurar ἰδὲ estátuas segundo o imaginar ἀπείκασον de uma narrativa μύθος Isto significa que o sentido negativo da imagem εἴδωλον das estátuas ou da poesia de Homero e Hesíodo não se confunde com o sentido positivo da visualização ἀπείκασον ainda que ambos sejam μύθος Esta diferença evidentemente deve ser pensada a partir do final do Livro VI da República 513d onde se distingue πίστιν pístis fé εἰκασίαν eikasían representação confusa imagem διάνοιαν diánoian discurso demonstrativo e a νόησιν nóesis intelecção Portanto a oposição tecida não é propriamente entre μύθος e ιδέα interpretação que não correnpode ao modo como Platão escreve na maioria de seus diálogos A narrativa sobre os homens acorrentados na caverna continua explicitando que eles não viam a si mesmos e das outras coisas viam apenas sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna373 Portanto a visão em si mesma não possui sentido negativo senão quando se trata da visão de sombras sobreσκιὰς ὑπὸ skías hipó Se Platão admite a geometria como uma das ciências que auxiliam a formação da 373República 515a ηὰο ζθηὰο ηὰο ὑπὸ ηνῦ ππξὸο εἰο ηὸ θαηαληηθξὺ αὐηῶλ ηνῦ ζπειαίνπ πξνζπηπηνύζαο Conclusão 269 alma é porque a visão das Ideias se dá em termos de focalização ou projeção de luz tal como alude aqui a imagem do fogo τοῦπυρὸς sobre ὑπὸ a parede Haveria uma distinção entre aquele conhecimento que fala sobre algo e aquele que fala a partir de algo de maneira que se vai do primeiro ao segundo para descobrir que sempre já se partiu do segundo em função de um tipo de esquecimento O que esclarece este ponto é justamente a pergunta feita por Sócrates na sequência Se portanto dialogassem entre si não julgas que pensariam serem entes isto que viam374 O enunciado começa indagando se poder dialogar διαλέγεσθαι dialégestai é ou não fundamental para uma boa visão ou melhor se o dialogar permite distinguir o próprio ente τὰὄντααὐτοὺς daquilo que se pensa ou supõe como ente Daí o enunciado seguinte perguntar se o eco da fala dos transeuntes modificaria ou não a crença νομίζω nas sombras O termo νομίζω nomíxo pode ser entendido como conjectura ou pensar em sentido fraco ou seja inclui não apenas a reflexão mas também o exercício do imaginar ou supor Na Apologia a Sócrates Platão afirma explicitamente a distinção entre um lógos fraco e um lógos forte em função do νομίζειν nomíxein pensar conjecturar Dizem haver um Sócrates que é o mais miserável e que corrompe os jovens e quando se lhes pergunta por quais ações ou ensinamentos não tem nada a dizer mas ignoram e para não mostrarem que estão num beco sem saída dizem as mesmas coisas que estão à mão contra todos os filósofos as coisas celestes e as coisas sob a terra e que não acreditam nos deuses e fazem prevalecer o lógos fraco sobre o forte375 O verbo νομίζειν nomíxein deriva do substantivo νόμος nómos que significa tanto lei quanto costume ou hábito como se pode observar nitidamente em Heródoto 374 Εἰ νὖλ δηαιέγεζζαη νἷνί η εἶελ πξὸο ἀιιήινπο νὐ ηαῦηα ἡγῇ ἂλ ηὰ ὄληα αὐηνὺο λνκίδεηλ ἅπεξ ὁξῷελ 515b 375 Defesa de Sócrates 23 de ζενὺο κὴ λνκίδεηλ θαὶ ηὸλ ηησ ι γνλ θξείηησ πνηεη λ Fernando Maurício da Silva 270 quando este afirma que o νόμος é rei de tudo na medida em que gregos ou estrangeiros ficam horrorizados diante de qualquer prática que fuja ao costume embora antes de Hipócrates ou dos romanos em geral não se pensava ainda νόμος em oposição à natureza Recordese sobre isto que Platão inicia o Livro VII da República justamente indagando pela natureza φύσιν phísyn da educação παιδείας paidéias É precisamente acerca da παιδείας observemos que a palavra grega para educação é composta do termo Idéa assim como para imagem ídolon formando a relação analógica entre termos que estamos pretendendo destacar que se exige visualizar ιδεα narrativamente a distinção entre a crença ou hábito νομίζω no ente e o ente propriamente clarificado ou desvelado Assim eles julgariam a verdade do ente para as sombras constituídas376 A oposição entre juízopor hábito νομίζω e visão ιδεα da natureza φύσιν da educação ou formação παιδείας agora se explicita na distinção entre τινομίζοιεν tí nomíxoein e τὸἀληθὲς tóalethés a verdade o julgar e o desvelar A República expõe como o sentido de παιδείας é dependente da compreensão da visão incluída no termo Isto se confirma na enunciação seguinte377 na qual se exprime a ignorância ἀπαιδευσίας apaideusías ou a insensatez ἀφροσύνης aphrosynes da crença nas sombras como prisão δέσμη e posteriormente a παιδείας como libertação em termos de forçar a virar os olhos para a luz Temos por um lado o jogo conceitual entre visãoideia educaçãoverdade oρῶιδεαπαιδείαςἀληθὲς e por outro lado entre natureza e luz φύσινφῶς ambos em oposição à ignorânciainsensatezprisãocrença ἀπαιδευσίαςἀφροσύνηςδέσμηνομίζω 376 República 515c νἱ ηνηνῦηνη νὐθ ἂλ ἄιιν ηη λνκίδνηελ ηὸ ἀιεζὲο ἢ ηὰο ηῶλ ζθεπαζηῶλ ζθηάο 377 República 515d αὐηῶλ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ ηῶλ ηε δεζκῶλ θαὶ ηῆο ἀθξνζύλεο νἵα ηηο ἂλ εἴε εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο Conclusão 271 Natureza entesnaluz φύσιν Luz φῶς Luz solar ἡλίουφῶς Ente αὐτός Visão Ορῶ Idéia ιδεα Educação Formação παιδείας Verdade Descobrimento ἀληθὲς Falso oculto invisível ψευδο Sombras σκιὰς Fogo πυρὸς Imagem εἴδωλον Ignorância ἀπαιδευσίας Insensatez ἀφροσύνης Prisão δέσμη Crença conjectura habitual νομίζω Platão quer exercer um fazerver ἀληθὲς aléthes liberador sobre os endóxas e ortodóxas a leicostume νομίζω escravizante δέσμη a favor do viràluz φύσιν do próprio ente o que não é possível sem um primeiro sofrimento ἀλγοῖ algói por ofuscamento μαρμαρυγὰς marmarygás da visão habituada Isto ocorreria ao se libertar λυθείη os homens da prisão de modo a impossibilitar a visãohabituada378 e entretanto no dissabor desta dor no órgão da visão voltarse ia a supor as sombras como entes segundo hábito νομίζω379 Até aqui se deu três momentos o libertar dos grilhões que leva à dor de ver a própria luz ou fonte das figuras visíveis o fogo a falta de nitidez que a forma dos próprios entes terá inicialmente e a nova suposição de que as sombras eram entes devido ao ofuscamento pela luz do sol Assim como a luz do sol está para a natureza ou entesnaluz φύσιν também se dá a relação entre cada ente e a visão bem como entre a educação ou formação παιδείας paideías e a verdade ou 378 República VII 515c πάληα δὲ ηαῦηα πνηῶλ ἀιγνῖ ηε θαὶ δηὰ ηὰο καξκαξπγὰο ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ ἐθεῖλα ὧλ ηόηε ηὰο ζθηὰο ἑώξα 379 República 515e516 ἐληεῦζελ ἕιθνη ηηο αὐηὸλ βίᾳ δηὰ ηξαρείαο ηῆο ἀλαβάζεσο θαὶ ἀλάληνπο θαὶ κὴ ἀλείε πξὶλ ἐμειθύζεηελ εἰο ηὸ ηνῦ ἡιίνπ θῶο ἆξα νὐρ ὶὀδπλᾶζζαί ηε ἂλ θαὶ ἀγαλαθηεῖλ ἑιθόκελνλ θαὶ ἐπεηδὴ πξὸο ηὸ θῶο ἔιζνη αὐγῆο ἂλ ἔρνληα ηὰ ὄκκαηα κεζηὰ ὁξᾶλ νὐδ ἂλ ἓλ δύλαζζαη ηῶλ λῦλ ιεγνκέλσλ ἀιεζῶλ Fernando Maurício da Silva 272 descobrimento ἀληθὲς alethés Para ver iluminada sua própria tolice ou seja ver os entes diretamente iluminados pelo sol ou em sua fonte será necessário substituir o hábito sensível νομίζω por outro hábito ou modo συνήθεια de ver A maioria das edições brasileiras traduz este momento por precisariam se habituar se quisessem ver o mundo superior380 Entretanto Platão não fala de mundo superior bem como raramente fala de Ideias e nunca enunciou a conhecida expressão mundo das Ideias Esta é uma interpretação tardia e não uma tradução que pretenda expressar a própria retórica dos diálogos em seu sentido literário O fenômeno em questão não consiste em ver diretamente a imagem ιδεα dos entes em outro mundo mas dirigir a fonte luminosa para a própria visão comum É por isto que se dá um ofuscamento não dos entes vistos mas dos próprios olhos O passo consiste em iluminar a própria visão em ver como se costuma ver habitualmente uma alteração da modalidade de ver que implica em ver a própria ignorância Portanto não se trata positivamente de uma ascensão já que não é simples construção de conhecimento mas inversamente de desconstrução positiva do hábito contemplativo Este processo de iluminar a própria visão é descrito com os seguintes momentos 1 Primeiro olharia mais facilmente para as sombras381 1b depois disso para a imagem dos homens e dos outros entes na água382 2 e em segundo lugar os próprios entes383 380 RepúblicaVII 516a ζπλεζείαο δὴ νἶκαη δένηηἄλ εἰ κέιινη ηὰ ἄλσ ὄςεζζαη 381 República 516a θαὶ πξῶηνλ κὲλ ηὰο ζθηὰο ἂλῥᾷζηα θαζνξῷ 382 Idem θαὶ κεηὰ ηνῦην ἐλ ηνῖο ὕδαζη ηά ηε ηῶλ ἀλζξώπσλ θαὶ ηὰ ηῶλ ἄιισλ εἴδσια 383 Idem ὕζηεξνλ δὲ αὐηά Conclusão 273 É esta passagem que permite decidir que o platonismo é uma filosofia realista e não idealista pois a oposição enumerada é entre εἴδωλα eídola eαὐτά autá imagens e entes e não entre Ideia e ente ou seja que a visualização da essência dos entes é em todo caso dos entes e não por si mesma num suposto mundo isolado Contudo nem por isso se trata de um materialismo sensualismo ou empirismo uma vez que a iluminação da própria visão permitiria ver posteriormente a essência dos entes e não simplesmente cada ente em particular 3 a partir de então veria os entes no céu 3b olharia o céu mesmo a noite mais facilmente a luz das estrelas do que o sol e seu brilho384 Tratase de um progresso na direção do ente mas não o ente em particular pois é este o engano da visão habitual O sentido do processo descrito está em contemplar o modo como estas mesmas imagens εἴδωλα eídola são desde sempre vistas a saber nunca como mero particular e sempre segundo a entidade ουσία ousía do ente Tratase de entender que a ignorância não está em ver os entes particulares mas em crer que isso que se vê como particular é possível a partir do próprio particular como sua fonte Pois por exemplo um copo particular nunca apareceria ou seria visível senão desde o gênero copo O sensocomum não é ignorante pois nunca se guia pelo particular porém discorre de forma ignorante ao supor que sim e orientarse desde o ente iluminado e não desde a própria fonte iluminadora Platão está criticando não só o modo de ver mas sobretudo o que aqueles homens falariam uns com os outros se pudessem narrar o que viram 4 Enfim nos diz Platão o homem desacorrentado veria o sol não na água ou seu fantasma em qualquer outro 384 República 516b θαὶ αὐηὸλ ηὸλ νὐξαλὸλ λύθησξ ἂλ ῥᾷνλ ζεάζαηην πξνζβιέπσλ ηὸ ηῶλ ἄζηξσλ ηε θαὶ ζειήλεο θῶο ἢκεζ ἡκέξαλ ηὸλ ιηόλ ηε θαὶ ηὸ ηνῦ ἡιίνπ Fernando Maurício da Silva 274 lugar mas ele mesmo em si mesmo e lá na região que lhe é própria385 Temos agora a ocorrência do ver o ente nele mesmo καθαὑτὸν e o ver panoramicamente ou contemplar θεάσασθαι theásasthai o ente em sua região mesma χώρᾳ hóra Não se trata propriamente de ver a Ideia ou o ser em si mesmo mas de ver o ente sol metáfora para a ideia de bem nele mesmo e na região em que propriamente pode aparecer e ser visto Se por sol devese entender o ente mesmo no sentido de fonte iluminadora que possui uma região que não se confunde com o fantasma φαντάσματα phantásmata a aparição de algo ou ente particular então se compreende que o ente mesmo e em sua região mesma é de algum modo a causa de tudo o que se via ἑώρων heóron386 Fica explícito que o sol e a luz são causa da visão ὁράω hoáo e depois que se pode contemplar como antes se via os entes e enfim também se chega a contemplar a própria causa da visão que distingue a figura do ente Aquilo que os olhos vêem já é desde sempre uma compreensão fundada na causa iluminadora do que se vê sensivelmente do contrário os entes particulares seriam absolutos e sequer se distinguiriam entre si Uma aparição e um fantasma só chegam a ser um ente mesmo porque diante os olhos já são tomados segundo uma causa que os configura e vê como eles mesmos É tão impossível ver um copo em particular quanto é impossível ver as partes deste copo individual quando se o olha pois é sempre este copo inteiro que se vê assim como se o distingue como pertencente ao gênero dos copos 385 República 516b ηειεπηαῖνλ δὴ νἶκαη ηὸλ ιηνλ νὐθ ἐλ ὕδαζη λνὐδἐλ ἀιινηξίᾳ ἕδξᾳ θαληάζκαηα αὐηνῦ ἀιιαὐηὸλ θαζαὑηὸλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ ρώξᾳ δύλαηηἂλ θαηηδεῖλ θαὶ ζεάζαζζαη νἷ ο ἐζηηλ 386 República 516c Conclusão 275 2 Recordação e Retorno Metodológicos Os quatro passos acima enumerados por Platão formam conjuntamente um primeiro momento da imagem que a partir de 516c sofrerá uma inversão de sentido ou perspectiva Ao recordar a primeira habitação e do saber que lá possuía junto de seus companheiros de prisão não crês que ele se regozijaria devido à mudança e deploraria os outros387 de modo que preferiria sofrer qualquer coisa menos voltar aquelas falsas opiniões e viver daquele modo388 A partir daqui tratase da questão do retorno à caverna o que se inicia através do verbo recordar ἀναμιμνήσκω anamimnésko 21 A teoria da anamnese ou reminiscência é utilizada em Platão em mais de um contexto Precisamos fazer uma breve parada para explicitarmos seu uso mítico mais geral antes de voltarmos ao mito da caverna Sabese que a mitologia grega já considerava a importância da memória Já em Hesíodo em sua narração da origem dos deuses ou Teogonia encontramos uma relação importante entre sono sonho memória e revelação Miticamente a memoria está ligada ao sonho Vigília significava o ato de velar ou de prestar atenção conforme sua derivação de vigil acordado vigilante do indoeuropeu weg ser ativo que deu origem também à velox veloz Assim acordados vigiamos e temos atenção mas é parados e descansados que lembramos Talvez por esta razão Aristóteles afirmou posteriormente que a memória é melhor quando somos mais lentos na percepção das coisas e a capacidade de lembrar é pior nos seres muito rápidos A Teogonia começa com o canto das musas As musas 387 República 516c ἀλακηκλῃζθόκελνλ αὐηὸλ ηῆο πξώηε ονἰθήζεσο θαὶ ηῆο ἐθεῖ ζνθίαο θαὶ ηῶλ ηόηε ζπλδεζκσηῶλ νὐθ ἂλ νἴεη αὑηὸλ κὲλ εὐδαηκνλίδεηλ ηῆο κεηαβνιῆο ηνὺο δὲ ἐιεεῖλ 388 República 516d θαὶ ὁηηνῦλ ἂλ πεπνλζέλαη κᾶιινλ ἢ θεῖλά ηε δνμάδεηλ θαὶ ἐθείλσο δῆλ Fernando Maurício da Silva 276 gregas são divindades filhas da deusa Mnemosyne Memória por sua vez filha de Zeus deus da justiça De modo semelhante Platão narra o mito segundo o qual no rio do esquecimento os deuses fazem justiça punindo as almas dos maus e recompensando a alma dos justos Porém o que significa dizer que as musas são filhas da Memória As musas são sempre divindades artísticas teatro poesia historia etc e deste modo a fala ou a linguagem é filha da Memória Isso quer dizer que na memória fica guardado tudo que esquecemos mas é através da linguagem ou discurso que podemos rememorar A palavra lógos tem o poder da recordação Assim não deve ser por acaso que a palavra portuguesa musa no grego mousa derive do indoeuropeu men pensar lembrar também raiz da palavra mente Assim caso quiséssemos traduzir o termo grego psiqué por mente deveríamos entender como a capacidade de conhecer em termos de capacidade de lembrar isto é que pensar é sempre partir de um ponto e ir atrás do que veio antes rememorando Todo raciocínio ou dedução é lembrar daquilo que se disse antes em função do que se irá dizer depois Voltemos ao mito e sua reconstrução platônica Segundo Hesíodo as musas cantam e contam o passado e o futuro Mas as musas são invisíveis jamais deixam os homens verem sua beleza só se apresentam em volta de muita névoa diz Hesíodo Se por um lado as musas são filhas de Zeus e Memória por outro a Noite gera o Sono a Morte o Massacre e o Esquecimento Deste modo é na noite e na escuridão que as musas vencem o esquecimento Com isso elas glorificam sua mãe a Memória e seu pai Zeus a justiça divina que a tudo vê theoré Assim podemos perceber que a memória sempre foi uma questão importante para o pensamento ocidental e os mitos platônicos lhes deram uma forma definitiva no campo do conhecimento que a recordação é a forma mais elementar de conhecimento da verdade Se a capacidade de reter o passado e mantêlo na mente em Conclusão 277 esquecimento chamamos memória então a capacidade de conhecer a verdade de algo através do seu passado chamamos reminiscência ou recordação 22 O mito sempre foi o recurso fundamental da literatura antiga Porém foi Platão quem fez esta grande descoberta filosófica o mithós o conto cantado é um lógos fala O que isto significava Que a diferença entre mito e discurso não é a mesma entre falsidade pseudos e verdade alethés Não se pode dizer simplesmente que o mito é uma forma falsa de conhecer enquanto o conhecimento lógico proposicional é a forma verdadeira Claro que a ciência é verdadeira em alto grau mas o mito não deixa de dizer verdades ao seu modo Por um lado é verdadeiro afirmar que o mito pode enganar do mesmo modo que o discurso demonstrativo também pode enganar quanto à realidade por outro lado Platão pretende mostrar que o filósofo pode ensinar através de mitos capazes de indicar a verdade O segredo para compreender a diferença está no estudo da memória Possivelmente teria sido esta a razão que teria levado Platão a propor uma reforma no mito poético de sua época Por isso Platão escreve novos mitos satisfazendo assim seu desejo tanto de filosofo quanto de poeta A filosofia platônica neste sentido é uma reconstrução da verdade dos mitos Muitos foram os mitos que Platão criou Três deles estão diretamente ligados ao problema da memória o mito do rio do Hades o mito de Ér e o mito da Caverna Os dois primeiros nos fornecerão melhores critérios para a compreensão do valor do terceiro 23 Fédon é o diálogo no qual Platão investiga o que é a alma psiqué como é seu conhecimento e se a alma limitase ao tempo da vida Necessitando explicar porque as vidas dos bons e dos maus são diferentes tema em comum com a República Platão narra o mito do Hades para mostrar que por questões de justiça o destino da alma após a morte também deverá ser distinto para bons e maus O Hades é o nome de um Fernando Maurício da Silva 278 deus grego divindade da morte noite e escuridão mas também do mundo dos mortos e do caminho que leva a ele Por isso os gregos utilizavam o termo Hades também para designar a região dos mortos O mito descreve três regiões além do mundo físico em que vivemos MITO DO HADES Do mesmo modo que os seres que vivem na água acham que a superfície da água é como o céu e além disso do mesmo modo que para nós que vivemos na terra vemos que o céu está acima da água e é mais puro que ela também haveria uma região mais pura acima do céu o éter e outra mais impura abaixo da terra a região subterrânea Portanto existiria uma cavidade na terra localizada nos limites do mar nos limites do mundo como diziam os gregos antigos entre as Colunas de Hércules e o rio Fasis Como estamos presos a terra e a uma pequena parte do mar não conseguimos enxergar esta cavidade por um erro de perspectiva A terra pura é repleta de éter e por isso sua decantação produz os elementos puros e leves o ar a névoa e a água Mas assim como no mar tudo está corroído pelo salitro na terra seca as coisas são mais puras limpas e belas onde habitam seres melhores como as plantes e mais inteligentes como os animais e homens do mesmo modo o nosso mundo físico é mais denso e impuro que um mundo acima do céu constituído de éter puro onde estão o sol os astros e os seres divinos Inversamente na região subterrânea há rios que correm por cavidades das quais a mais profunda é o que os poetas chamam Tártaro onde desembocam todos os rios de lava e de lodo com seus fluxos e refluxos Entre estes se encontra um lago chamado Aquerusiano por desembocar do Aqueronte É a este lago que as almas são conduzidas após a morte onde se reúnem e ficam a esperar seu julgamento As almas que viveram em moderação passam um tempo expiando sua culpa no Aqueronte As que cometeram assassinatos e sacrilégios ficam para sempre no Tártaro mas as que cometeram faltas graves porém recuperáveis passam um ano no Tártaro e depois voltam ao Aquerusiano a suplicarem piedade aos justos Foi deste modo que Platão exerceu uma reforma no mito grego Vemos que a versão platônica do mito do Hades tem como pretensão ensinar que a justiça admite graus variados e variados níveis de punição conforme os tipos de virtudes e vícios Este é um claro exemplo do valor positivo da Conclusão 279 imaginação para a filosofia a criação de figurações que nos permitem idealizar ou orientar nosso raciocínio para verdades superiores Se não criássemos imaginariamente mitos nunca chegaríamos a pensar além de nossos limites Além disso Platão também descobriu o valor positivo da memória para o conhecimento conhecer não é simplesmente reter dados na memória mas principalmente reconhecer a verdade Quando fazemos um cálculo matemático quando vemos a circunferência de um círculo quando comparamos a oposição entre bem e mal não precisamos pensar ou calcular para saber que estamos diante de uma evidência da verdade matemática da perfeição ou beleza do círculo ou da finalidade do bem Estas Ideias verdade bem e belo sempre nos parecem evidentes já conhecidas dispensam a discussão e a demonstração 24 Para concluirmos nossa breve parada como forma provisória de compreensão do valor do mito devemos também considerar o mito de Ér por ser mais expressivo desta vez no Livro X da República 614b621b MITO DE ÉR Um guerreiro arménio morreu em batalha mas seu corpo permaneceu intacto ao longo de vários dias e no décimo segundo dia ressuscitou e ergueuse de sua pira Ér após renascer teria nos contado que sua alma viajou junto com outras almas até certa abertura na terra lugar em que esperavam juízes que imediatamente decidiram para onde aquelas almas deveriam ir os justos eram dirigidos à abertura da direita que subia ao céu e os injustos eram dirigidos à abertura da esquerdada que descia Muitas penas e castigos continua Platão eram infligidos os injustos assim como recompensas aos justos Ér é então encarregado de ser o mensageiro destas coisas Descreve que as almas que haviam pagado seus crimes regressavam à vida viajando através de um lugar onde ficavam as três filhas da deusa Necessidade as tecelãs do destino humano Láquesis Passado Cloto Presente e Átropos Futuro Então estas almas eram conduzidas ao rio Letes paralelo ao rio Amelas e forçadas a beber de sua água a água que levava a esquecer o que ali viram As que irrefletidamente bebiam mais esqueciam mais e as que bebiam menos esqueciam menos renascendo mais sábias Fernando Maurício da Silva 280 O mito do Hades narrado no Fédon referese ao rio Aquerusiano Já o mito de Ér referese ao rio Léte Porque Platão utiliza a imagem de rios para seus mitos Possivelmente porque os rios servem de imagem do fluxo ou devir dos fenômenos no tempo e que estão sempre mudando como mostrou Heráclito Porém se o primeiro mito é moral o segundo possui um elemento a mais Léte se diz em grego ιήζε léthe e significa literalmente esquecimento Mas esta palavra dará origem à outra αιήζεηα alétheia verdade descobrimento Assim se verdade em grego se diz descobrir também tem o sentido de retirar o véu do esquecimento recordar Portanto a filosofia é a investigação das Ideias diretamente ligadas à memória e à reminiscência ou recordação verdade belo e bem Será uma terceira figuração o mito da caverna que permitirá compreender esta relação 25 Voltemos ao mito da caverna Em Hesíodo no Hino às Musas que inicia a Teogonia a Memória genitora das musas serve de arqué condutora da descrição da gênese dos divinos Com as musas eliconiades começamos a narrar cantar389 Em Platão sob crítica das imagens poéticas a memória ανάμνηση fornecerá o critério tanto do estado de ignorância passado quanto da visão do ente mesmo anterior a experiencia particular O adjetivo ἐκεῖνος ekeinos vazio aparente falso ilusório é aplicado ao verbo opinar δοξάζειν ter opinado δοξάζω que vêm associados ao sofrer qualquer coisa e em oposição ao voltar à prisão de que se recorda ἀναμιμνήσκω A visão i de como se vê o ente e ii da fonte iluminadora de todo ver permite distinguir entre descobrir ἀλήθω alétho e opinar δοξάζω doxázo em termos de antes e depois portanto um recordar ἀναμιμνήσκω anamimnesko Com isso a unidade entre 389 Hesíodo Teogonia 1 Conclusão 281 recordação e descobrimento tornase questão metodológica central Por um lado o recordar a condição passada implica em a sofrimento e b ilusão por outro lado o retornar κων hékon a ela leva a c escuridão ou seja a negação definitiva da visão Teria os olhos cheios de escuridão ao voltar κων subitamente do sol390 Estes dois momentos metodológicos recordar e retornar não são negativos mas consistem justamente na recuperação do dialogar διαλέγεσθαι dialégesthai com o outro referido no inicio da narrativa da caverna 515b porém agora enquanto um lógos forte391 sendo este λόγον κρείττω um fortalecimento do diálogo fraco existente na escuridão embora um enfraquecimento da visão do ente mesmo Todo trazer a iluminação do ente mesmo ao discurso λόγον é um enfraquecimento necessário da primeira Não faria os outros riem dele que tendo ido para cima retornou com os olhos arruinados e que não valeria a pena tentar ir até lá392 Faltaria tanto o critério para trazer a visão ao discurso e para o διάλογος quanto para o interlocutor compreender este esforço discursivo de descida da intelecção νόησιν nóesin pois a subida metódica que se opõe ao ignorante não é um lógos ainda que se sirva inicialmente do discurso demonstrativo διάνοιαν dianóian393 Quanto a esta passagem da República podese confirmar seu valor metodológico comparandoa com outras ocorrências Em primeiro lugar no Fedro quando Platão afirma que será considerado louco aquele que viu a verdadeira beleza e sente suas asas estenderem Como ele se afasta dos interesses humanos e volta sua atenção para o divino é censurado pelas pessoas comuns que o julgam louco e que 390 República 516e ἆξ νὐ ζθόηνπο ἂλ ἀλάπιεσο ζρνίε ηνὺο ὀθζαικνύο ἐμαίθλεο θσλ ἐθ ηνῦ ἡιίνπ 391 Conforme citação anterior Defesa de Sócrates 23 de 392 República 517a 393 Conforme a passagem da República VI 513d anteriormente referida Fernando Maurício da Silva 282 ignoram sua inspiração divina394 Segundo no Teeteno neste caso em duplo sentido o filósofo risível aos olhos dos outros e os outros risíveis aos olhos do filósofo Vendose obrigado a discursar no tribunal ou em qualquer outro lugar acerca das coisas que estão sob seus pés e diante de seus olhos ele será motivo de riso não apenas para as moças trácias como também para a multidão em geral395 e ainda Em todas estas situações se percebe que o filósofo é alguém de escárnio geral em parte porque ele parece ter ares de desdenhoso em parte porque ignora as coisas ordinárias e se mantém sempre envolvido em dificuldades que são constatadas em sua perplexidade396 Enfim a seguinte passagem do Sofista é explícita Às vezes têm a aparência dos políticos às vezes dos sofistas às vezes passam a impressão de que são inteiramente loucos397 A importância desta última passagem está em que a aparência de loucura μανικῶς manikós é pensada diretamente em função da sua semelhança ao sofista não como louco mas como alguém que supostamente sabe A filosofia platônica madura questiona explicitamente a dificuldade de como distinguir o filósofo e toda outra forma de pretensão de conhecimento quando não existe um critério inerente ao lógos Esta dificuldade metodológica fundamental é o que a imagem da descida à caverna expressa miticamente na República 3 O sentido positivo da imagem A partir de 517b a República começa a explicitar o sentido da imagem εἰκόνα eikóna até aqui construída 394 Fedro 249d 395 Teeteto 174c 396 Teeteto 175b 397 Sofista 216d θαὶ ηνηὲ κὲλ πνιηηηθνὶ θαληάδνληαη ηνηὲ δὲ ζνθηζηαί ηνηὲ δἔζηηλ νἷο δ μαλ παξάζρνηλη ἂλ ὡο παληάπαζηλ ἔρνληεο καληθῶο Conclusão 283 Portanto estimado Glauco esta imagem τὴνεἰκόνα 517a aplicarseá a tudo quanto dissemos anteriormente comparando a região que a visão manifesta à morada da prisão e a luz do fogo à força do sol398 Se a República VII iniciou sugerindo a realização de uma figuração é esta passagem em 517a que afirma pela primeira vez como se executa uma imagem em sentido positivo a saber por comparação ou contraposição entre duas imagens e não uma imagem e uma realidade Pois o sol e o fogo são ambos imagens e exemplos particulares de fontes luminosas porém com uma diferença de grau a região em que o sol brilha é ampla em distinção a prisão da caverna assim como a força do sol é maior que a luz da fogueira Caso Platão afirmasse uma diferença de natureza não haveria como o lógos enquanto lógos forte e o mithós enquanto Imagem Maior serem auxiliares metodológicos para a noésis Porém uma vez que a noésis intelecção intuição é nãodiscursiva e nãoimaginativa também se poderia entender que entre o discurso e a intelecção há uma diferença de natureza porém o primeiro pode direcionar ao segundo apenas metodologicamente dialeticamente Esta segunda hipótese afirma que a dialética é possível porque justamente opera com a contradição entre duas regiões diferentes entre si Porém com isto surge o problema de saber como o que é do noético participa do discursivo e do sensível uma vez que estão separados em duas regiões Primeiramente observemos que na citação acima 517b trata se de comparar dois lugares ἕδραν hédran o lugar em que se dá o fenômeno da luz do fogo vista na caverna e o lugar em que se dá o brilho do sol Segundo o enunciado inicia afirmando que tal comparação consiste na aplicação de uma imagem εἰκόνα A crítica platônica às imagens literárias e em parte às musicais é tão bem sucedida no Livro III que esquecemos que a própria República é uma obra literária ainda 398 República 517b Fernando Maurício da Silva 284 que também filosófica ou seja esquecemos que Platão critica o lógos e o mithós por um lado mas os utiliza metodologicamente por outro lado Se o noético é essencialmente nãodiscurso e nãoimagem então o mito da caverna e do sol são imagens não teóricas mas metodológicas Se o Banquete inicia evocandose um mito a maioria dos outros diálogos e a República é caso exemplar inversamente evoca o μύθος e a εἰκόνα justamente onde o λόγος é fraco e para oferecerlhe força Como já adiantamos se Platão utiliza para imagem ora εικόνα eikóna ora ομοίωμα omoíoma ora εἴδωλα eídola ou mesmo ιδεα idea e χώρα hóra a exemplo de Rep 514b também utiliza para lugar às vezes τόπος tópos precisamente na Rep 509d onde se enuncia um lugar inteligível e outro visível às vezes ἕδραν hédran Rep 517b e mesmo no Timeu se refere ao lugar através dos termos Lugar τόπος tópos 52a6 Espaço χώρα hóra 52a8 Sede έδρα édra 52b1 etc porém nunca mundo κόσμος kósmos Por isso a expressão conhecida mundo das ideias pode induzir ao erro O elemento imagético possui relevância para o método dialético as imagens sofísticas da justiça caíram em contradição dialógica399 exigindo metodicamente a formação de uma imagem da justiça em região maior a cidade400 em função de sua aporia quanto à menor justiça no indivíduo401 Dentro desta imagem o método executou sua crítica às formas e imagens literárias402 e posteriormente sobre a essência da filosofia e do conhecimento403 o que levou a imagem da luz do fogo e do sol na caverna e no Céu Assim os dois lugares ἕδραν são as regiões em que o fenômeno da luz ocorre com intensidade diferente a caverna e o Céu de modo que estes 399 República I e II 400 República 369a 401 República 331d368b 402 República 392a 403 República 472480 Conclusão 285 lugares são imagens da formaçãoeducação παιδείας do cidadão Nas παιδείας exercitada na juventude a literatura e a ginástica preparam a alma no sentido de direcionála para a posterior visão de que a Forma do bem é a causa tanto das coisas inteligíveis νοητῷ noetó quanto visíveis ὁρατῷ horató conforme continua a República É no limite do conhecimento que a forma de bem ἀγαθοῦἰδέα agathou idea é vista a custo e então avistandoa se conclui dela que é de tudo o que é direito ὀρθῶν orthon e belo καλῶν kalon causa no visível gerou a luz e o soberano da luz no inteligível mesmo senhora da verdade e inteligência e que é preciso vêla ἰδεῖν idein para conduzir sensatamente tanto a vida privada quanto a pública404 Nesta passagem Platão afirma que a ἰδέα de bem é dupla causa tanto do όραμα visível quanto do inteligível νοητῷ porém ao final também afirma que é preciso ver a ἰδέα em questão caso em que utiliza o verbo ἰδεῖν Mas Platão não afirma que a ἰδέα é causa da ἰδέα nem que é causa de si mas causa do visível e do inteligível E considerando que o termo όραμα possui raiz comum a ἰδέα é notório que Platão trata a noção de imagem de visível e de visão em duplo sentido aqui explicitados em termos de causa e efeito A luz do sol é causa da visão da forma dos entes de suas sombras e de seus reflexos mas também causa da própria possibilidade de ver de modo que é possível virar a vista para o sol e sua luz mas não vêla enquanto imagem ou forma Aquilo que permite virar a vista para a luz é a dialética do lógos e da imagem mas não permite ver ἰδεῖν a própria forma ἰδέα da causa da visão Contudo se o belo é uma forma ἰδέα então não é invisível em si mesmo de modo que a causa da visão seria informe como a luz e causa de toda forma visível na sensação e na intelecção Contudo não é isto o que Platão afirma mas justamente que o bem é Forma ἰδέα O ente 404 RepúblicaVII 517c ηὸλ κέιινληα ἐκθξ λσο πξάμεηλ ἢ ἰδίᾳ ἢ δεκνζίᾳ Fernando Maurício da Silva 286 mesmo não pode ser informe e difuso e a causa não pode ser efeito de si mesma ainda que seja vista nela mesma Pois se trata de ver a justiça mesma enquanto causa dos diversos entes ditos justos405 e toda ambiguidade depende de lembrar se que as perturbações visuais são duplas e por dupla causa da passagem da luz à sombra e da sombra à luz406 A dificuldade é metodológica não há outro meio de ver ἰδεῖν a ἰδέα enquanto causa αἰτία aitía senão a partir de imagens seja como λόγον μίτος εἴδωλα ιδεα etc e não há como expressálos senão retornando aos mesmos de forma que este duplo sentido que vai da sombra à luz e volta à sombra coloca um caminho entre luz e sombra para o qual o bem está para fora com a ressalva de que esta última expressão nunca foi utilizada pelo próprio Platão Conforme o que vinha sendo indicado até aqui em 518b Platão retoma o contexto do diálogo A educação παιδείαν não é o que alguns proclamam que ela seja Eles pretendem introduzir ciência ἐπιστήμης epistémes numa alma ψυχῇ psiqué em que ela não exista como se introduzissem a visão em olhos cegos407 Toda imagem ιδεα descrita até então seria imagem da παιδείαν sendo a própria formação um atingir a essência da visão A παιδείαν é visualização alcançada não pela negação da visão mas por sua correção e direcionamento A presente discussão oferece o existir desta força δύναμιν dínamis na alma ψυχῇ e de um órgão pelo qual aprende como um olho que não poderia ver voltandose juntamente com todo corpo da sombra para a luz também esse órgão com toda a alma deverá voltarse indo do ente τὸὂν tó ón até poder contemplar θεωμένη theoménen 405 República 517e 406 República 518 a κεκλῇηἂλ ὅηη δηηηαὶ θαὶ ἀπὸ δηηηῶλ γίγλνληαη ἐπηηαξάμεηο ὄκκαζηλ ἔθ ηε θσηὸο εἰο ζθ ηνο κεζηζηακέλσλ θαὶ ἐθ ζθ ηνπο εἰο θῶο 407 Republica 518bc ηὴλ παηδείαλ νὐρ νἵαλ ηηλὲο ἐπαγγειι κελνί θαζηλ εἶλαη ηνηαύ ηελ θαὶ εἶλαη θαζὶ δέ πνπ νὐθ ἐλνύζεο ἐλ ηῇ ςπρῇ ἐπηζηήκεο ζθεῖο ἐληηζέλαη νἷνλ ηπθινῖ οὀθζαικνῖο ὄςηλ ἐληηζέληεο Conclusão 287 a porção mais luminosa dos entes Isto é o que declaramos bem408 Há um órgão ou instrumento na alma a semelhança dos olhos no corpo que possui uma força ou capacidade assim como o sol possui sua força luminosa de gerar a luminosidade dos entes e sem o que a imagem destes não teria nitidez A παιδείαν é este direcionamento de toda alma necessário para que seu órgão iluminador possa contemplar ou veremconjunto θεωμένη theoménen Os verbos θεάομαι theómai θεάω theáo visar ver contemplar também na forma θεωρέω theoréo correspondem a raízes dos substantivos Θεωρός409 theorós espectador θεά theá deusa410 Θεατής θεατός theatós Teatro411 ou ainda θεωρητικός theoretikós teorético ou θεωρία theoría teoria contemplação visão do todo ou do conjunto A θεωρία é contemplação no sentido em que a deusa contempla a verdade e a falsidade do manifesto na obra ou drama do teatro diante os espectadores como as musas de Dioniso em seu hino inicial a Teogonia porém com a distinção de que Platão pretende na República fundar uma literatura dramática e uma visãodotodo θεωρία que diga respeito apenas a verdade e exclua a mentira e o engano em oposição as musas dionisíacas do Hélicon Contudo é preciso recordar que mesmo na República o termo θεωρία não implica diretamente reflexão como exemplifica muito bem esta passagem Aquele que possuir uma dianóia superior e contemplar o tempo em seu todo e a entidade οὐσίας ousías em seu todo será capaz de julgar 408 Republica 518cd ηαύ ηελ ηὴλ ἐλνῦζαλ ἑθάζηνπ δύ λακηλ ἐλ ηῇ ςπρῇ θαὶ ηὸ ὄξγαλνλ ᾧ θαηακαλζάλεη ἕθαζηνο νἷνλ εἰ ὄκκα κὴ δπλαηὸλ ἦλ ἄιισο ἢ ζὺλ ὅιῳ ηῷ ζώκαηη ζηξέθεηλ πξὸο ηὸ θαλὸλ ἐθ ηνῦ ζθνηώδνπο νὕησ ζὺλ ὅιῃ ηῇ ςπρῇ ἐθ ηνῦ γηγλνκέλνπ πεξηαθηένλ εἶλαη ἕσο ἂλ εἰο ηὸ ὂλ θαὶ ηνῦ ὄληνο ηὸ θαλ ηαηνλ δπλαηὴ γέλεηαη ἀλαζρέζζαη ζεσκέλε ηνῦην δεἶλαί θακελ ηἀγαζ λ 409 Vejase ocorrências de Θεσξ ο em Platão no Epinomis 986d e Leis XII 951c 410 Vejase ocorrências em Leis XII 965c e República VIII 545c 411 Vejase ocorrências em Simposium 197d Fernando Maurício da Silva 288 que a vida humana tem grande importância412 Platão tira os deuses da cena dramática e privilegia a deusa Verdade agora no sentido de espetáculo da Forma o perfil de uma imagem e no sentido de contemplação do ente mesmo em seu todo Em todo mito da caverna a metáfora da luz e do fogo referese à relação physis e phaynomenon assim como a idea boa imagem ou o eidos implicam na relação entre o visto e o visar bem como está para fora da essência enquanto movimento de projeção da luz Portanto a παιδεία paideía é o exercício ou técnica de inversão ou de virar um ir e vir 518c dos entes vistos à fonte da sua visão Portanto ela a educação é a técnica τέχνη tekné mesma de permitir este fim o método τρόπον trópon mais fácil e eficaz de dar volta não de obter a visão pois já a tem mas girar sua não direção assim conduzi lo413 Enfim fica explicitado que a παιδείαν formação é um método maneira ou modo τρόπον um tropo cujo caráter consiste num girar Τρέπω trépo ou daravolta μεταστραφήσεται metastraphésetai A passagem 518c já havia se utilizado da estrutura gramática deaté ou seja de uma estrutura temporal descrita em forma de um irvoltar que é definido em 518d como método essencial à educação ou formação E considerando que o verbo girar Τρέπω já era frequente em Homero414 a literatura platônica é um giro literário dramático e paidéico sobre a noção grega de imagem e visão dos entes É esta a importância do mito na dialética 412 República 486a ἧη νὖλ ὑπά ξρεη δηαλνί ᾳ κεγαινπξέπεηα θαὶ ζεσξία παληὸο κὲλ ρξ λνπ πάζεο δὲ νὐζίαο νἷ λ ηε νἴεη ηνύηῳ κέγα ηη δνθεῖλ εἶλαη ηὸλ ἀλζξώπηλνλ βίνλ 413 República 518d ηνύ ηνπ ηνί λπλ ἦλδ ἐγώ αὐηνῦ ηέρλε ἂλ εἴε ηῆο πεξηαγσγῆο ηί λα ηξ πνλ ὡο ῥᾷζηά ηε θαὶ ἀλπζηκώ ηαηα κεηαζηξαθήζεηαη νὐ ηνῦ ἐκπνηῆζαη αὐηῷ ηὸ ὁξᾶλ ἀιι ὡο ἔρνληη κὲλ αὐη νὐθ ὀξζῶο δὲ ηεηξακκέλῳ νὐδὲ βιέπνληη νἷ ἔδεη ηνῦην δηακεραλήζαζζαη 414 Vejase as ocorrências de Τξέπσ em Homero por exemplo na Ilíada 14403 ou na Odisséia 4294 e 9315 BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO Nicola Dicionário de Filosofia São Paulo Martins Fontes 2003 HEIDEGGER Martin Que é uma coisaTrad Carlos Morujão Lisboa Edições 70 1992 NIETZSCHE Friedrich O nascimento da tragédia Editora Schwarcz São Paulo 2007 PLATÃO A república São Paulo Editora Nova Cultural 1996 PLATÃO A República São PauloMartin Claret 2001 PLATÃO Fedro Lisboa Guimarães Editores PLATÃO Ménon São Paulo Loyola 2001 PLATÃO Cármides Lisboa INIC 1981 PLATÃO Ión Lisboa Inquérito 1988 PLATÃO Hípias maior Lisboa Ed 70 1999 PLATÃO Lísis UNB 1995 PLATÃO Cármides Lisboa INIC 1981 PLATÃO Laques Lisboa INIC 1987 PLATÃO Leis Edipro 1999 PLATÃO Timeu Hemus 2000 PLATÃO Lísis Lisboa INIC 1990 PLATÃO Cármides Lisboa INIC 1981 PLATÃO Górgias Trad Manuel de Oliveira Pulquério Lisboa Edições 70 PLATÃO Apologia de Sócrates Lisboa INIC 1980 PLATÃO O Banquete Lisboa Edições 70 1991 PLATÃO O Simpósio Lisboa Guimarães Editores PLATÃO Leis Lisboa Edições 70 2004 PLATÃO Fédon Trad Maria Teresa Schiappa de Azevedo Coimbra Livraria Minerva 1988 SEARLE John R Intencionalidade um Ensaio de Filosofia da Mente Trad Madalena Poole da Costa Lisboa Relógio dÁgua Editores 1999 A parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos Platão CONCEPÇÃO GRUPO DE PESQUISA FILOSOFIA ARTE E EDUCAÇÃO CEDUFSC