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9 TÚNEL MORFOLÓGICO I: AS PERDAS Mais perdas? Fizemos até agora duas entradas no túnel do tempo da língua portuguesa. Estamos iniciando nesse momento a terceira: uma viagem pela morfologia do latim e do português. Presenciamos, durante as duas viagens anteriores, uma série de características fonológicas do latim clássico que foram perdidas no latim falado e que, posteriormente, não mais seriam recuperadas nas várias línguas românicas. Concluímos, ainda, diante de algumas perdas que, ao mesmo tempo que traços do latim clássico desapareciam, novos traços surgiam no latim falado e eram mantidos no português. Assim, procuramos estabelecer, dentro do túnel (e de nossa perspectiva teórica), um elo significativo entre perdas e ganhos. De um lado, as perdas eram, de certa maneira, compensadas pela conquista de novos traços; de outro, as perdas ou desencadeavam novas perdas e ganhos, ou já aconteciam devidamente encaixadas no sistema dinâmico em evolução. Mas o que seriam perdas morfológicas? O que significa para um sistema perder um traço morfológico? Bem, a perda de um aspecto morfológico do sistema significa, no nosso caso especificamente, reduções de gênero, número e caso dos substantivos; redução dos tempos verbais, etc. Obviamente, essas reduções ou perdas necessariamente aparecerão, durante a nossa viagem no túnel morfológico, contrapostas às novas conquistas que o sistema vinha realizando nessa mesma parte da gramática. No presente capítulo, nessa primeira entrada no túnel morfológico do latim ao português, observaremos somente as perdas; os ganhos e as conquistas morfológicas serão oportunamente observados, no capítulo imediatamente seguinte, quando empreenderemos nossa quarta entrada no túnel. Antes, porém, de começarmos a observar as perdas morfológicas, merece destaque uma distinção fundamental entre tipos de perda. Vimos, por 118 exemplo, que a perda da quantidade das vogais do latim clássico neutralizava a distinção entre o nominativo (caso do sujeito) e o ablativo (caso circunstancial) das palavras da primeira conjugação no latim falado. Vimos, também, quando observamos a evolução do sistema consonantal, que o latim falado apresentava uma tendência ao obscurecimento dos sons finais e que, em verdade, as consoantes finais foram as que menos permaneceram no português, por exemplo. Esses dois casos, a perda da quantidade das vogais e o obscurecimento das consoantes finais, constituíram assim processos fonológicos que caracterizam o latim falado. Mais do que isso: esses processos fonológicos envolveram, conforme veremos a seguir, perdas no sistema morfológico do latim falado. Chamaremos, pois, essas perdas morfológicas de 'encaixadas' dentro do processo fonológico em evolução. Há, porém, outras perdas morfológicas do latim clássico que provavelmente melhor se expliquem como traços de modalidade de língua oral versus língua escrita. Vejamos, então, a seguir as características morfológicas fundamentais que compõem o gramática histórica apresentada como diferenciadoras entre o latim clássico e o latim vulgar (falado). Aspectos morfológicos dos dois latins Coutinho 1 apresenta as seguintes características morfológicas do latim falado, em contraposição à morfologia do latim clássico: 1. Redução a três declinações (de cinco existentes no latim clássico), proveniente, segundo ele, do confusão entre a primeira (placita,ae) e a quinta (glacies,ei), e entre a segunda (fructus,-i) e a quarta (fructus,-us); 2. Redução dos seis casos existentes em latim clássico: o nominativo sobrevivera o vocativo praticamente em todas as declinações, e, por outro lado, com o aparecimento da mais frequente e propositiva na língua falada, transformar-se-ão e, em sexta vinho, o dativo e o ablativo que apareceram substituídos pelo acusativo; por exemplo, ablativo plural eium discumbtuii com causa por meio do latim não acusativo em algumas desinências. 3. Redução de três gêneros (masculino, feminino e neutro gramaticais) para dois: tantum (neutro) e fanus (masculino). 4. Confusão nas conjugações verbais: florire (floresc), tendere (tendere). Examinemos essas quatro características. A primeira diz que, das cinco declinações do latim clássico, o latim falado apresentava três somente, tendo misturado palavras da quinta à primeira, e da quarta a segunda. As declinações dos nomes, conforme sabemos, eram indicadas através de diferentes desinências (finais) para os seis casos em cada uma das cinco declinações. Vimos, nos dois capítulos anteriores, que a tendência da fonologia do latim falado era de obscurecer segmentos finais de palavras; portanto, dada a proximidade fonética de algumas desinências de casos em algumas das declinações, notadamente a quarta e a segunda, com o obscurecimento dos segmen 119 tos finais fatalmente teriam sido neutralizadas certas distinções. Nesse sentido fizemos a última relação entre características morfológicas encaixadas no sistema do latim falado em função da evolução de outra parte de sua gramática, no caso específico, a fonologia, e traços morfológicos que não se encontram nesse momento encaixados em outra parte da gramática do latim falado, mas sim, sobretudo, em sua própria essência de modalidade falada do sistema latino. Diremos, então, que uma característica como a apontada em 1 por Coutinho revela um processo de interseção entre fonologia e morfologia. Semilamentente, a eliminação de certas desinências de casos do se reduziu à baseição: e tinha citação alternativa: nominativo versus eusativo. Veremos, a seguir, que, com o obscurecimento do /m/ final, mesmo essa distinção entre nominativo e acusativo tenderia a desaparecer, evoluindo em um sistema português em que o caso das palavras passará a ser atribuído por configuração na sentença. Mas esse será um dos ganhos morfossintáticos do português, do que não nos estamos ocupando na presente viagem ao túnel. Também como interseção entre processos fonológicos e morfológicos explicam-se a terceira e quarta características morfológicas do latim falado, apontadas por Coutinho: a confusão entre o neutro e o masculino, resultante da absorção do primeiro pelo último; e a confusão entre os temas das conjugações verbais, como característica sendo dois temas diretamente relacionada à perda da quantidade das vogais do latim clássico. Coutinho apresenta, misturadas a essas quatro características, outras perdas do latim falado em relação ao latim clássico. Pois cremos, entretanto, que seu argumento sobre a distinção entre tipos de traços morfológicos do latim falado, não se encontram encaixadas dentro da evolução do sistema fonológico, ao menos no nível segmental. Obviamente, se considerássemos outros fatores, de natureza fonológica supra-segmental (prosódicos, por exemplo), poderíamos derivarmos para essa a considerar-se como encaixadas. Para o tipo de obtenção que estamos fazendo, entretanto, caracterizaremos tais traços como indicadores de língua oral. Assim é que o latim falado manifestava uma tendência à perfase, em termos de partes de sua morfologia. Vejamos: 5. As formas sintéticas do comparativo (certior) e do superlativo (justissime) apareceram, na língua falada, como formas analíticas: plus magis justus e magis superlativus. 6. O futuro imperfeito do indicativo (amabo, debebo, audiam) tinha sua forma sintética substituída por uma perífrase composta do infinitivo do verbo em questão e do indicativo de habere; assim: amare habeo, debere habeo e audire habeo. 7. À semelhança do futuro do indicativo, a forma sintética da voz passiva aparecia, na língua falada, reanalizada em uma perífrase; assim: amatus sum e auditus sum em lugar das formas clásicas, amor e auditor. Além dessa tendência manifestada pelo latim falado, a da perífrase, Coutinho apresenta ainda algumas características morfológicas que poderíamos agrupar como tendência à regularização e à simplificação do inventário morfológico do latim clássico. São elas: 120 8. A regularização de alguns infinitivos irregulares: potere ao invés de posse; *essere per esse, *explore per uelle. 9. A simplificação na marcação do tempo e do aspecto verbal: o mais- que-perfeito ou subjuntivo clássico (amassem, legissent, audissent) aparece substituído o imperfeito do mesmo modo verbal: amarem, legerem, audirem. Nessa mesma tendência, caem em desuso o supino, o futuro do imperativo e o perfeito do infinitivo. 10. Os verbos depoentes do latim clássico deixam de constituir uma conjugação à parte e passam a se encaixar no sistema da língua falada como verbos ativos: mentio ao invés de mentior, traxo por traxor. Isto posto, fica, pois, evidenciado que o latim falado apresentava um inventário morfológico empobrecido em relação ao do latim clássico escrito. Não trataremos agora das compensações que surgiram no latim falado e nas línguas românicas em geral, com vistas a reorganizar o sistema morfológico do latim clássico. Vejamos agora como ficou o sistema morfológico do português, considerando-se que grande parte dos traços pertinentes ao latim clássico já não aparecem herdados pela modalidade falada do latim. Certamente, dada a origem do português a partir do latim falado, tais traços já simplificados no latim vulgar não voltaram a reaparecer no sistema português. A herança não-herdada: O inventário (morfológico) do latim ao português Coutinho (1969) apresenta algumas características gerais para o sistema morfológico do português arcaico: “Na língua arcaica, os nomes terminados em -nt, -or e -e eram uniformes: monte (monte), senior, (linguage portugais; algumas que atualmente não se modificam no plural flexionavam-se antigamente: portezas, alferes, farderes; mui¬ tas não tinham géneros diferentes: frug, mar, planta, commara, etc., eram outrora femininos, ao passo que corpa, terras, linguagers, eram masculinas; a segunda de pessoa do plural dos verbos terminava em -des, ainda pois conservando res¬ quícios da agora desaparecida flexão referida”; havia terceira pessoa do su¬ gindo-se antes o imperfeito; o pretérito perfeito dos verbos da segunda conjun¬ ção terminava em -ud0: perdido, cornegido, escundido, terminação que ainda se conserva em maldeto, contentido, teido, testnado; havia participios presen¬ tes em -nte, os quais depois se tornaram adverbios, substantivos ou preposinções: tenentes, durantes; a terminação da terceira pessoa do pretérito era -onj, como já vimos ocurrem, amanacen; encontravam-se formas verbais, que por ana¬ logia ou por outro motivo qualquer foram substituídas por outras: argo (rodo), sengo (sinto), kago (fazo), mereso (mereço), sabe (seiia), frager (trazer); puji (pus), quigi (quis), quertija (vidia), querrija (quereria), faceste (fizesteu, Som soub), provage (proveu), etc.”. Há, nessa passagem de Coutinho, acima, várias observações sobre os nomes e os verbos no português arcaico que exemplificam a herança não- 121 herdada do latim clássico, mas que confirmam a manutenção do inventário morfológico a partir do latim falado. Sobre os nomes, Coutinho observa que o português arcaico era caracterizado por uma profunda redução no género. Assim, alguns substantivos eram uniformes, enquanto outros nomes eram marcados com género diferente ao que sobreviveu no sistema moderno. Alguns nomes, como ouvrier, que não são mais marcados formalmente no plural moderno, aparecem flexionados no português arcaico. O verbo era marcado por -des na segunda pessoa do plural, mantendo, via evolução fonoló¬ gica, a forma -tis da conjugação clássica. Os particípios presentes em -mte, vi¬ am seu sistema de entçao, seriam posteriormente reanalisados em outras partes da gramática. Há, pois, um testemunho de perda nessa passagem, do latim ao português arcaico. Vejamos a exemplificação dessas características do português arcaico em uma cantiga, cuja data provável de composição figura o ano de 1189: “No mundo non me sei parrelha, mentre me for’ como me vays, ca ja moior f0r vens e - ayt! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos renasya quando vosa eu en cin saya! Mãa uia vos em tam feral, que ua uos ven non ui, feal: E, mia senhor, des queal di’ayal que non vo ouvi uma ma¬ e vos, filha de don Paay Moniz, e ben vuu semelha d’aver eu por vos guaraya, pois eu, mia senhor, d’alfaðya sunça de vos ouve nen ei valia ‘d’áa correa’”. O saldo efetivo das perdas morfológicas no português moderno A tradição gramatical estabelece, em geral, dez classes de palavras: o substantivo, o adjetivo, os numerais, o artigo, o pronome, o verbo, o advérbio, a preposição, a conjunção e a interjeição. Também segundo a tradição, costuma- se agrupar essas classes em função de serem variáveis (isto é: podem sofrer flexões para indicar vários tipos de relações) ou invariáveis: as seis primeiras classes na listagem acima consistem classes variáveis, as quatro últimas, invariáveis. Obviamente, não poderemos observar, em uma só viagem ao túnel morfológico, as dez classes de palavras. Vamos restringir-nos, pois, à classe dos substantivos, pois neles transparecerá, com grande nitidez, a intersecção entre a fonologia e a morfologia, na passagem do latim ao português. Havíamos visto anteriormente que, em virtude de uma série de mudanças fonológicas presentes no latim falado, o sistema morfológico se apre- 122 sentava empobrecido em relação ao latim clássico: redução no número de declinações e de casos foram duas das características morfológicas apontadas para o latim vulgar. Assim, de cinco declinações o latim vulgar conhecia so¬ mente três: a primeira (que também recebia palavras da quinta), a segunda (incorporando as palavras da quarta), e a terceira (também, como a primeira, recebendo palavras da quinta). Segundo Coutinho (1969, p. 225), tal confusão entre as declinações já “reinava no próprio latim clássico, onde alguns substantivos da quinta podiam também ser declinados pela primeira: avari titles, ou o avaritia, luxuriis, et luxuriaes, materias, ou materiais, etc.”. O mesmo, segundo ele, já acontecia, também no latim clássico, com algumas palavras que eram declináveis tanto pela quarta quanto pela segunda declinação: domus3 u&s domusus, fructus, se fructus, i. “Se isto ocorria na língua escrita, que já era fina falada, onde a necesidade de claretza era maior e mais urgernte?”, pergunta-se Coutinho (1969, p. 225). De fato, apesar dessas pequenas confusões do latim escrito, tal sistema era extremadamente rico em flexões. Multipliquemos-se 6 casos e 5 declina¬ ções e teremos 30 diferentes combinaçõers (uh em principio, ao menos, dife¬ rentes nas funções que tais formas encadeavam), o que garantia à aten¬ ção latina clássica uma total liberdade na ordem de seus constituintes. Assim, nesse mesmo vi 8 nomes complexos poderiam aparecer em qualquer ordem: puella hominem, humanem puella vidi, puella homiem vidi, etc., etc. Muitas dessas trinta (supostamente diferentes) combinações, entretanto, apresentavam algumas oscilações interessantes para diferentes casos de uma mesma incli¬ nação, ou ainda, para outros casos, em outras declinações. Com a tendência que tem a fala de obscurecer e, aos poucos, cancelar o final (ou os seguimentos finais) das palavras, natural foi, portanto, que tanto o número de declinações quanto o número de casos fossem drasticamente reduzidos. Assim, “no complexo da fase românica, as três declinações apresentavam-se (...) constituídas: Primeira declinaçio Singular Plural Nominativo luna lune Segunda declinação Nominativo annus anni Acusativo annu, annos Terceira declinação Singular Plural Nominativo canes canes Acusativo cane canes”4 Mas as línguas românicas foram ainda mais além em seu processo de perdas. Informam-nos os compêndios que algumas fizeram o nominativo sobreviver (o romeno, o italiano, o provençal e o francês antigos) enquanto outras, como o espanhol e o português, deram vida somente ao acusativo. Duas explicações poderiam ser aqui colocadas para a sobrevivência do acusativo no espanhol e no português. Em primeiríssimo lugar, observe-se o acusativo plural em /s/ presente nos dois sistemas modernos: evidência cabal de que foi o acusativo, e não o nominativo, que sobreviveu nesses dois sistemas. No caso do singular, podemos dizer que a neutralização entre o nominativo e o acusativo começou com o obscurecimento do /m/ final, indicador do acusativo singular no latim clássico. Assim, com a neutralização entre os dois casos no singular, a predominância do acusativo plural em /s/ nas três declinações restantes/rárrias, pois, o acusativo no caso lexicologicamente dos sistemas. Assim, Coutinho (1969, p. 228) afirma ser do acusativo "que procedem as palavras de nossa língua. Comprovam as inscrições o emprego do acusativo como sujeito, em lugar do nominativo: filias filiarí rentuntur, quiescunt religias. Um ligeiro cotejo de formas latinas com as portuguesas correspondentes logo nos convencerá disto. Primeira declinação acusativo singular mensa > mesa, vita > vida, rosa > rosa acusativo plural mesas > mesas, vitas > vidas, rosas > rosas Segunda declinação acusativo singular lupus > lobo, hortus > horto, liberu > livro acusativo plural lupos > lobos, hortos > hortos, liberos > livros Terceira declinação acusativo singular valle > vale, ponte > ponte, labore > labor acusativo plural valles > vales, pontes > pontes, labores > labores Essa primeira explicação para a sobrevivência do acusativo em português, nas três declinações, tem, portanto, um caráter fonético que se intersecciona com o inventário morfológico do sistema em evolução: a mudança fonológica, derrubando, por conseqüência, numa realidade, num rearranjo morfológico no sistema, perdurando tão-somente um caso (dos seis originais no latim clássico) e três declinações (das cinco existentes no latim escrito) em português. É, entretanto, o próprio Coutinho quem dá uma segunda explicação para a sobrevivência do acusativo em português, esta de natureza sintática: "A redução dos dois casos a um justifica-se mais como um fenômeno sintático do que fonético. Se o fato fonético da queda do -m do acusativo singular podia favorecer a identificação do acusativo com o nominativo na primeira declinação (cf. hora e horam), o mesmo já não acontecia com a segunda e a terceira declinação, em que os dois casos permaneciam diferentes (cf. hortus e hortum, avis e avem(n)). As palavras se dispunham na frase, em leitim vulgar, segundo a ordem natural da elaboração do pensamento, ou seja, sujeito + 124 verbo + objeto ou predicativo, em contraposição ao uso da língua clássica. Aconteceu que, com essa ordem seguida, quase invariavelmente, acabou por permitir a função das palavras na frase. Assim não se justificava mais a manutenção dos dois casos"8. A explicação dada por Coutinho pode, dentro da perspectiva teórica que assumimos neste manual, ser respondida de várias maneiras. Vejamos: em primeiro lugar, nada nos impede de conjecturarmos que a mudança começou como um processo fonológico, afetando somente e exclusivamente, a principio, as palavras da primeira declinação, mudança essa que seria, posteriormente, estendida às duas outras declinações. Além disso, a evidência apontada por Coutinho em relação à segunda e à terceira declinações não deveria ser levada em consideração, uma vez que ele /s/ garantia, dentro de um sistema já morfologicamente empobrecido, a presença do acusativo plural. E um terceiro ponto que deveríamos mencionar é a evidência sintática em si: nós poderíamos virar a explicação de Coutinho pelo avesso e dizer, muito oposamente, conforme argumentaremos no capítulo dedicado à nossa viagem ao limite sintático, que essa ordem instarrada no latin falado e no português (sujeito/verbo + predicativo) é conseqüência e (não causa) das mudanças fonológicas pelas quais os sistemas em questão passaram. Assim, podemos ver a alteração no orden dos constituintes básicos da enunciação é, na realidade, um reflexo (um eco) de uma mudança (ou de um processo) fonético-morfológico que o latin falado e as línguas românicas, em geral, inauguraríam em seus sistemas 5. Uma maneira possível de se decidir entre uma explicação fonética ou sintática para a sobrevivência do acusativo no português e no espanhol é-nos dada pela perspectiva que assumimos neste manual: ou seja, o princípio da uniformidade da mudança linguística e a possibilidade de utilizar dados do presente para se explicar o passado. Vejamos. A perda do /s/ no português e no espanhol contemporâneos Na verdade, ao tratarmos de questões como é a neutralização entre o acusativo e o nominativo, e a explicamos foneticamente, fica sempre a grande pergunta em linguística: a neutralização entre o acusativo e o nominativo na forma corresponde, em mesmo peso e medida, à eliminação da distinção funcional que, originariamente, era garantida pela diferenciação de marcas formais? Isto é: o espanhol e o português, ao terem perdido a distinção formal entre acusativo e nominativo, também perderam a diferenciação funcional? É óbvio que não: o sistema deve ter sido rearranjado de forma a preservar a distinção funcional. Estamos tratando, pois, da relação entre forma e função. Poplack (1979) 7, ao examinar os principais fatores que condicionam a manutenção e/ou o cancelamento do /s/ plural no espanhol porto-riquenho moderno, elencou três 125 hipóteses que poderiam explicar a evolução de marcas formais e de suas respectivas funções. São elas: "1. Processos de redução fonológica podem ser aplicados independentemente do estatuto gramatical do segmento em questão, desconfirmando-se assim a hipótese funcionalista. 2. Segmentos morfológicos podem resistir a processos de enfraquecimento enquanto permanecem intactos, confirmando-se a hipótese funcionalista. 3. A função morfológica pode interagir sistematicamente com os processos fonológicos de tal forma que os últimos são mais frequentemente aplicados quando não há nenhuma possibilidade de se disambiguar a primeira. Esse resultado, que permite tanto o apagamento como a preservação da marca, confirmaria uma versão fraca da hipótese funcionalista.” 8 A primeira situação rejeita a hipótese funcionalista, isto é: no caso da perda do /s/ final de palavras em português e espanhol, todas as palavras seriam igualmente afetadas, tanto aquelas em que o /s/ não marca pluralidade (mesmo aquelas em que o /s/ é morfema de plural (essas)). No caso específico da neutralização entre o acusativo e o nominativo, seguindo-se essa primeira situação, teríamos que forçosamente admitir que, “independentemente do estatuto gramatical do segmento em questão”, o processo de neutralização fonológico estaria ocorrendo. A segunda situação apresenta um ponto de vista radicalmente oposto ao da primeira: a confirmação total e absoluta da hipótese funcionalista. Ou seja: dado o obscurecimento das consonantes finais em latim, essa situação Q já viraria a super queda, dada a ordem das palavras na sentença, o processo fonológico da queda do /m/ final ficaria assim bloqueado, a fina de garantir a distinção formal entre nominativo e acusativo. A terceira e última situação ameniza os dois pontos de vista opostos expressos nas duas primeiras situações. Aqui, assume-se uma interseção entre os processos fonológicos em marcha dentro de um sistema e a função gramatical (morfológica) dos segmentos envolvidos. Assim, o /s/ plural também é perdido foneticamente, mas a pluralidade é mantida através de um processo ou recursos que o sistema organiza. É exatamente essa a situação no espanhol e no português contemporâneos. O espanhol apresenta um sistema de determinantes, distinguindo gênero e número: ---------------------------------------------------- Singular Plural Masculino el los un unos Feminino la las una unas ----------------------------------------------------- Observe-se que a perda do /s/ plural no determinante feminino coincide com a forma singular; a perda do /s/ em los e unos, entretanto, ainda retém a pluralidade, dada a diferença fônica com as formas singulares correspondentes: el e un. 126 Dado o quadro acima, uma hipótese, em conformidade com a terceira situação exposta por Poplack, poderia ser levantada: há uma interseção que reforçaria a morfologia do espanhol na medida em que se confirme que o processo fonológico de enfraquecimento e cancelamento do /s/ se encontra mais avançado no masculino do que no feminino, tanto para os substantivos quanto para os determinantes. Com essa hipótese em mente e dentro da pers pectiva teórica que temos avançado neste manual, Flores, Myhill e Tarallo (1983 11) empreenderam uma análise da perda do /s/ plural no espanhol porto-· riquenho, tendo chegado a resultados que confirmam a interseção de f a res fonológicos e morfológicos na mudança linguística. A tabela 3 11 a seguir apresenta os resultados para o cancelamento de /s/ em determinantes; a tabe la 4 11 , os resultados para os substantivos. Tabela 3: Frequência de apagamento de /s/ em determinantes Masculino Feminino Total Presença de /s/ 216 167 383 Ausência de /s/ 53 24 77 Total 269 191 460 % de ausência 19,7% 12,5% 16,7% Tabela 4: Frequência de apagamento de /s/ em substantivos Masculino Feminino Total Presença de /s/ 149 169 318 Ausência de /s/ 452 217 669 Total 601 386 987 % de ausência 75,2% 56,2% 67,8% As tabelas 3 e 4 acima demonstram, pois, que a percentagem de apagamento de /s/ marcador de plural é mais alta para os determinantes e substantivos masculinos: 19,7% contra 12,5% nos determinantes, e 75,2% contra 56,2% nos substantivos. Esses resultados evidenciam que o sistema, tomado de um processo fonológico violento que lhe compromete, entre outras coisas, a mar cação da pluralidade, permite o avanço da mudança, com maior velocidade, precisamente nos casos de menor neutralização entre o singular e o plural. No sistema moderno do português, entretanto, tal não é a divisão entre determinantes masculinos e femininos. Nesse sistema a perda do /s/ marca dor de plural igualmente compromete a função (pluralidade) no masculino e no feminino. Além da distinção entre os determinantes no espanhol, os es tudos já realizados haviam demonstrado que a primeira posição dentro do sintagma nominal começava a ser eleita como a posição solitária e única para
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O que significa para um sistema perder um traço morfológico? Bem, a perda de um aspecto morfológico do sistema significa, no nosso caso especificamente, reduções de gênero, número e caso dos substantivos; redução dos tempos verbais, etc. Obviamente, essas reduções ou perdas necessariamente aparecerão, durante a nossa viagem no túnel morfológico, contrapostas às novas conquistas que o sistema vinha realizando nessa mesma parte da gramática. No presente capítulo, nessa primeira entrada no túnel morfológico do latim ao português, observaremos somente as perdas; os ganhos e as conquistas morfológicas serão oportunamente observados, no capítulo imediatamente seguinte, quando empreenderemos nossa quarta entrada no túnel. Antes, porém, de começarmos a observar as perdas morfológicas, merece destaque uma distinção fundamental entre tipos de perda. Vimos, por 118 exemplo, que a perda da quantidade das vogais do latim clássico neutralizava a distinção entre o nominativo (caso do sujeito) e o ablativo (caso circunstancial) das palavras da primeira conjugação no latim falado. Vimos, também, quando observamos a evolução do sistema consonantal, que o latim falado apresentava uma tendência ao obscurecimento dos sons finais e que, em verdade, as consoantes finais foram as que menos permaneceram no português, por exemplo. Esses dois casos, a perda da quantidade das vogais e o obscurecimento das consoantes finais, constituíram assim processos fonológicos que caracterizam o latim falado. Mais do que isso: esses processos fonológicos envolveram, conforme veremos a seguir, perdas no sistema morfológico do latim falado. Chamaremos, pois, essas perdas morfológicas de 'encaixadas' dentro do processo fonológico em evolução. Há, porém, outras perdas morfológicas do latim clássico que provavelmente melhor se expliquem como traços de modalidade de língua oral versus língua escrita. Vejamos, então, a seguir as características morfológicas fundamentais que compõem o gramática histórica apresentada como diferenciadoras entre o latim clássico e o latim vulgar (falado). Aspectos morfológicos dos dois latins Coutinho 1 apresenta as seguintes características morfológicas do latim falado, em contraposição à morfologia do latim clássico: 1. Redução a três declinações (de cinco existentes no latim clássico), proveniente, segundo ele, do confusão entre a primeira (placita,ae) e a quinta (glacies,ei), e entre a segunda (fructus,-i) e a quarta (fructus,-us); 2. Redução dos seis casos existentes em latim clássico: o nominativo sobrevivera o vocativo praticamente em todas as declinações, e, por outro lado, com o aparecimento da mais frequente e propositiva na língua falada, transformar-se-ão e, em sexta vinho, o dativo e o ablativo que apareceram substituídos pelo acusativo; por exemplo, ablativo plural eium discumbtuii com causa por meio do latim não acusativo em algumas desinências. 3. Redução de três gêneros (masculino, feminino e neutro gramaticais) para dois: tantum (neutro) e fanus (masculino). 4. Confusão nas conjugações verbais: florire (floresc), tendere (tendere). Examinemos essas quatro características. A primeira diz que, das cinco declinações do latim clássico, o latim falado apresentava três somente, tendo misturado palavras da quinta à primeira, e da quarta a segunda. As declinações dos nomes, conforme sabemos, eram indicadas através de diferentes desinências (finais) para os seis casos em cada uma das cinco declinações. Vimos, nos dois capítulos anteriores, que a tendência da fonologia do latim falado era de obscurecer segmentos finais de palavras; portanto, dada a proximidade fonética de algumas desinências de casos em algumas das declinações, notadamente a quarta e a segunda, com o obscurecimento dos segmen 119 tos finais fatalmente teriam sido neutralizadas certas distinções. Nesse sentido fizemos a última relação entre características morfológicas encaixadas no sistema do latim falado em função da evolução de outra parte de sua gramática, no caso específico, a fonologia, e traços morfológicos que não se encontram nesse momento encaixados em outra parte da gramática do latim falado, mas sim, sobretudo, em sua própria essência de modalidade falada do sistema latino. Diremos, então, que uma característica como a apontada em 1 por Coutinho revela um processo de interseção entre fonologia e morfologia. Semilamentente, a eliminação de certas desinências de casos do se reduziu à baseição: e tinha citação alternativa: nominativo versus eusativo. Veremos, a seguir, que, com o obscurecimento do /m/ final, mesmo essa distinção entre nominativo e acusativo tenderia a desaparecer, evoluindo em um sistema português em que o caso das palavras passará a ser atribuído por configuração na sentença. Mas esse será um dos ganhos morfossintáticos do português, do que não nos estamos ocupando na presente viagem ao túnel. Também como interseção entre processos fonológicos e morfológicos explicam-se a terceira e quarta características morfológicas do latim falado, apontadas por Coutinho: a confusão entre o neutro e o masculino, resultante da absorção do primeiro pelo último; e a confusão entre os temas das conjugações verbais, como característica sendo dois temas diretamente relacionada à perda da quantidade das vogais do latim clássico. Coutinho apresenta, misturadas a essas quatro características, outras perdas do latim falado em relação ao latim clássico. Pois cremos, entretanto, que seu argumento sobre a distinção entre tipos de traços morfológicos do latim falado, não se encontram encaixadas dentro da evolução do sistema fonológico, ao menos no nível segmental. Obviamente, se considerássemos outros fatores, de natureza fonológica supra-segmental (prosódicos, por exemplo), poderíamos derivarmos para essa a considerar-se como encaixadas. Para o tipo de obtenção que estamos fazendo, entretanto, caracterizaremos tais traços como indicadores de língua oral. Assim é que o latim falado manifestava uma tendência à perfase, em termos de partes de sua morfologia. Vejamos: 5. As formas sintéticas do comparativo (certior) e do superlativo (justissime) apareceram, na língua falada, como formas analíticas: plus magis justus e magis superlativus. 6. O futuro imperfeito do indicativo (amabo, debebo, audiam) tinha sua forma sintética substituída por uma perífrase composta do infinitivo do verbo em questão e do indicativo de habere; assim: amare habeo, debere habeo e audire habeo. 7. À semelhança do futuro do indicativo, a forma sintética da voz passiva aparecia, na língua falada, reanalizada em uma perífrase; assim: amatus sum e auditus sum em lugar das formas clásicas, amor e auditor. Além dessa tendência manifestada pelo latim falado, a da perífrase, Coutinho apresenta ainda algumas características morfológicas que poderíamos agrupar como tendência à regularização e à simplificação do inventário morfológico do latim clássico. São elas: 120 8. A regularização de alguns infinitivos irregulares: potere ao invés de posse; *essere per esse, *explore per uelle. 9. A simplificação na marcação do tempo e do aspecto verbal: o mais- que-perfeito ou subjuntivo clássico (amassem, legissent, audissent) aparece substituído o imperfeito do mesmo modo verbal: amarem, legerem, audirem. Nessa mesma tendência, caem em desuso o supino, o futuro do imperativo e o perfeito do infinitivo. 10. Os verbos depoentes do latim clássico deixam de constituir uma conjugação à parte e passam a se encaixar no sistema da língua falada como verbos ativos: mentio ao invés de mentior, traxo por traxor. Isto posto, fica, pois, evidenciado que o latim falado apresentava um inventário morfológico empobrecido em relação ao do latim clássico escrito. Não trataremos agora das compensações que surgiram no latim falado e nas línguas românicas em geral, com vistas a reorganizar o sistema morfológico do latim clássico. Vejamos agora como ficou o sistema morfológico do português, considerando-se que grande parte dos traços pertinentes ao latim clássico já não aparecem herdados pela modalidade falada do latim. Certamente, dada a origem do português a partir do latim falado, tais traços já simplificados no latim vulgar não voltaram a reaparecer no sistema português. A herança não-herdada: O inventário (morfológico) do latim ao português Coutinho (1969) apresenta algumas características gerais para o sistema morfológico do português arcaico: “Na língua arcaica, os nomes terminados em -nt, -or e -e eram uniformes: monte (monte), senior, (linguage portugais; algumas que atualmente não se modificam no plural flexionavam-se antigamente: portezas, alferes, farderes; mui¬ tas não tinham géneros diferentes: frug, mar, planta, commara, etc., eram outrora femininos, ao passo que corpa, terras, linguagers, eram masculinas; a segunda de pessoa do plural dos verbos terminava em -des, ainda pois conservando res¬ quícios da agora desaparecida flexão referida”; havia terceira pessoa do su¬ gindo-se antes o imperfeito; o pretérito perfeito dos verbos da segunda conjun¬ ção terminava em -ud0: perdido, cornegido, escundido, terminação que ainda se conserva em maldeto, contentido, teido, testnado; havia participios presen¬ tes em -nte, os quais depois se tornaram adverbios, substantivos ou preposinções: tenentes, durantes; a terminação da terceira pessoa do pretérito era -onj, como já vimos ocurrem, amanacen; encontravam-se formas verbais, que por ana¬ logia ou por outro motivo qualquer foram substituídas por outras: argo (rodo), sengo (sinto), kago (fazo), mereso (mereço), sabe (seiia), frager (trazer); puji (pus), quigi (quis), quertija (vidia), querrija (quereria), faceste (fizesteu, Som soub), provage (proveu), etc.”. Há, nessa passagem de Coutinho, acima, várias observações sobre os nomes e os verbos no português arcaico que exemplificam a herança não- 121 herdada do latim clássico, mas que confirmam a manutenção do inventário morfológico a partir do latim falado. Sobre os nomes, Coutinho observa que o português arcaico era caracterizado por uma profunda redução no género. Assim, alguns substantivos eram uniformes, enquanto outros nomes eram marcados com género diferente ao que sobreviveu no sistema moderno. Alguns nomes, como ouvrier, que não são mais marcados formalmente no plural moderno, aparecem flexionados no português arcaico. O verbo era marcado por -des na segunda pessoa do plural, mantendo, via evolução fonoló¬ gica, a forma -tis da conjugação clássica. Os particípios presentes em -mte, vi¬ am seu sistema de entçao, seriam posteriormente reanalisados em outras partes da gramática. Há, pois, um testemunho de perda nessa passagem, do latim ao português arcaico. Vejamos a exemplificação dessas características do português arcaico em uma cantiga, cuja data provável de composição figura o ano de 1189: “No mundo non me sei parrelha, mentre me for’ como me vays, ca ja moior f0r vens e - ayt! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos renasya quando vosa eu en cin saya! Mãa uia vos em tam feral, que ua uos ven non ui, feal: E, mia senhor, des queal di’ayal que non vo ouvi uma ma¬ e vos, filha de don Paay Moniz, e ben vuu semelha d’aver eu por vos guaraya, pois eu, mia senhor, d’alfaðya sunça de vos ouve nen ei valia ‘d’áa correa’”. O saldo efetivo das perdas morfológicas no português moderno A tradição gramatical estabelece, em geral, dez classes de palavras: o substantivo, o adjetivo, os numerais, o artigo, o pronome, o verbo, o advérbio, a preposição, a conjunção e a interjeição. Também segundo a tradição, costuma- se agrupar essas classes em função de serem variáveis (isto é: podem sofrer flexões para indicar vários tipos de relações) ou invariáveis: as seis primeiras classes na listagem acima consistem classes variáveis, as quatro últimas, invariáveis. Obviamente, não poderemos observar, em uma só viagem ao túnel morfológico, as dez classes de palavras. Vamos restringir-nos, pois, à classe dos substantivos, pois neles transparecerá, com grande nitidez, a intersecção entre a fonologia e a morfologia, na passagem do latim ao português. Havíamos visto anteriormente que, em virtude de uma série de mudanças fonológicas presentes no latim falado, o sistema morfológico se apre- 122 sentava empobrecido em relação ao latim clássico: redução no número de declinações e de casos foram duas das características morfológicas apontadas para o latim vulgar. Assim, de cinco declinações o latim vulgar conhecia so¬ mente três: a primeira (que também recebia palavras da quinta), a segunda (incorporando as palavras da quarta), e a terceira (também, como a primeira, recebendo palavras da quinta). Segundo Coutinho (1969, p. 225), tal confusão entre as declinações já “reinava no próprio latim clássico, onde alguns substantivos da quinta podiam também ser declinados pela primeira: avari titles, ou o avaritia, luxuriis, et luxuriaes, materias, ou materiais, etc.”. O mesmo, segundo ele, já acontecia, também no latim clássico, com algumas palavras que eram declináveis tanto pela quarta quanto pela segunda declinação: domus3 u&s domusus, fructus, se fructus, i. “Se isto ocorria na língua escrita, que já era fina falada, onde a necesidade de claretza era maior e mais urgernte?”, pergunta-se Coutinho (1969, p. 225). De fato, apesar dessas pequenas confusões do latim escrito, tal sistema era extremadamente rico em flexões. Multipliquemos-se 6 casos e 5 declina¬ ções e teremos 30 diferentes combinaçõers (uh em principio, ao menos, dife¬ rentes nas funções que tais formas encadeavam), o que garantia à aten¬ ção latina clássica uma total liberdade na ordem de seus constituintes. Assim, nesse mesmo vi 8 nomes complexos poderiam aparecer em qualquer ordem: puella hominem, humanem puella vidi, puella homiem vidi, etc., etc. Muitas dessas trinta (supostamente diferentes) combinações, entretanto, apresentavam algumas oscilações interessantes para diferentes casos de uma mesma incli¬ nação, ou ainda, para outros casos, em outras declinações. Com a tendência que tem a fala de obscurecer e, aos poucos, cancelar o final (ou os seguimentos finais) das palavras, natural foi, portanto, que tanto o número de declinações quanto o número de casos fossem drasticamente reduzidos. Assim, “no complexo da fase românica, as três declinações apresentavam-se (...) constituídas: Primeira declinaçio Singular Plural Nominativo luna lune Segunda declinação Nominativo annus anni Acusativo annu, annos Terceira declinação Singular Plural Nominativo canes canes Acusativo cane canes”4 Mas as línguas românicas foram ainda mais além em seu processo de perdas. Informam-nos os compêndios que algumas fizeram o nominativo sobreviver (o romeno, o italiano, o provençal e o francês antigos) enquanto outras, como o espanhol e o português, deram vida somente ao acusativo. Duas explicações poderiam ser aqui colocadas para a sobrevivência do acusativo no espanhol e no português. Em primeiríssimo lugar, observe-se o acusativo plural em /s/ presente nos dois sistemas modernos: evidência cabal de que foi o acusativo, e não o nominativo, que sobreviveu nesses dois sistemas. No caso do singular, podemos dizer que a neutralização entre o nominativo e o acusativo começou com o obscurecimento do /m/ final, indicador do acusativo singular no latim clássico. Assim, com a neutralização entre os dois casos no singular, a predominância do acusativo plural em /s/ nas três declinações restantes/rárrias, pois, o acusativo no caso lexicologicamente dos sistemas. Assim, Coutinho (1969, p. 228) afirma ser do acusativo "que procedem as palavras de nossa língua. Comprovam as inscrições o emprego do acusativo como sujeito, em lugar do nominativo: filias filiarí rentuntur, quiescunt religias. Um ligeiro cotejo de formas latinas com as portuguesas correspondentes logo nos convencerá disto. Primeira declinação acusativo singular mensa > mesa, vita > vida, rosa > rosa acusativo plural mesas > mesas, vitas > vidas, rosas > rosas Segunda declinação acusativo singular lupus > lobo, hortus > horto, liberu > livro acusativo plural lupos > lobos, hortos > hortos, liberos > livros Terceira declinação acusativo singular valle > vale, ponte > ponte, labore > labor acusativo plural valles > vales, pontes > pontes, labores > labores Essa primeira explicação para a sobrevivência do acusativo em português, nas três declinações, tem, portanto, um caráter fonético que se intersecciona com o inventário morfológico do sistema em evolução: a mudança fonológica, derrubando, por conseqüência, numa realidade, num rearranjo morfológico no sistema, perdurando tão-somente um caso (dos seis originais no latim clássico) e três declinações (das cinco existentes no latim escrito) em português. É, entretanto, o próprio Coutinho quem dá uma segunda explicação para a sobrevivência do acusativo em português, esta de natureza sintática: "A redução dos dois casos a um justifica-se mais como um fenômeno sintático do que fonético. Se o fato fonético da queda do -m do acusativo singular podia favorecer a identificação do acusativo com o nominativo na primeira declinação (cf. hora e horam), o mesmo já não acontecia com a segunda e a terceira declinação, em que os dois casos permaneciam diferentes (cf. hortus e hortum, avis e avem(n)). As palavras se dispunham na frase, em leitim vulgar, segundo a ordem natural da elaboração do pensamento, ou seja, sujeito + 124 verbo + objeto ou predicativo, em contraposição ao uso da língua clássica. Aconteceu que, com essa ordem seguida, quase invariavelmente, acabou por permitir a função das palavras na frase. Assim não se justificava mais a manutenção dos dois casos"8. A explicação dada por Coutinho pode, dentro da perspectiva teórica que assumimos neste manual, ser respondida de várias maneiras. Vejamos: em primeiro lugar, nada nos impede de conjecturarmos que a mudança começou como um processo fonológico, afetando somente e exclusivamente, a principio, as palavras da primeira declinação, mudança essa que seria, posteriormente, estendida às duas outras declinações. Além disso, a evidência apontada por Coutinho em relação à segunda e à terceira declinações não deveria ser levada em consideração, uma vez que ele /s/ garantia, dentro de um sistema já morfologicamente empobrecido, a presença do acusativo plural. E um terceiro ponto que deveríamos mencionar é a evidência sintática em si: nós poderíamos virar a explicação de Coutinho pelo avesso e dizer, muito oposamente, conforme argumentaremos no capítulo dedicado à nossa viagem ao limite sintático, que essa ordem instarrada no latin falado e no português (sujeito/verbo + predicativo) é conseqüência e (não causa) das mudanças fonológicas pelas quais os sistemas em questão passaram. Assim, podemos ver a alteração no orden dos constituintes básicos da enunciação é, na realidade, um reflexo (um eco) de uma mudança (ou de um processo) fonético-morfológico que o latin falado e as línguas românicas, em geral, inauguraríam em seus sistemas 5. Uma maneira possível de se decidir entre uma explicação fonética ou sintática para a sobrevivência do acusativo no português e no espanhol é-nos dada pela perspectiva que assumimos neste manual: ou seja, o princípio da uniformidade da mudança linguística e a possibilidade de utilizar dados do presente para se explicar o passado. Vejamos. A perda do /s/ no português e no espanhol contemporâneos Na verdade, ao tratarmos de questões como é a neutralização entre o acusativo e o nominativo, e a explicamos foneticamente, fica sempre a grande pergunta em linguística: a neutralização entre o acusativo e o nominativo na forma corresponde, em mesmo peso e medida, à eliminação da distinção funcional que, originariamente, era garantida pela diferenciação de marcas formais? Isto é: o espanhol e o português, ao terem perdido a distinção formal entre acusativo e nominativo, também perderam a diferenciação funcional? É óbvio que não: o sistema deve ter sido rearranjado de forma a preservar a distinção funcional. Estamos tratando, pois, da relação entre forma e função. Poplack (1979) 7, ao examinar os principais fatores que condicionam a manutenção e/ou o cancelamento do /s/ plural no espanhol porto-riquenho moderno, elencou três 125 hipóteses que poderiam explicar a evolução de marcas formais e de suas respectivas funções. São elas: "1. Processos de redução fonológica podem ser aplicados independentemente do estatuto gramatical do segmento em questão, desconfirmando-se assim a hipótese funcionalista. 2. Segmentos morfológicos podem resistir a processos de enfraquecimento enquanto permanecem intactos, confirmando-se a hipótese funcionalista. 3. A função morfológica pode interagir sistematicamente com os processos fonológicos de tal forma que os últimos são mais frequentemente aplicados quando não há nenhuma possibilidade de se disambiguar a primeira. Esse resultado, que permite tanto o apagamento como a preservação da marca, confirmaria uma versão fraca da hipótese funcionalista.” 8 A primeira situação rejeita a hipótese funcionalista, isto é: no caso da perda do /s/ final de palavras em português e espanhol, todas as palavras seriam igualmente afetadas, tanto aquelas em que o /s/ não marca pluralidade (mesmo aquelas em que o /s/ é morfema de plural (essas)). No caso específico da neutralização entre o acusativo e o nominativo, seguindo-se essa primeira situação, teríamos que forçosamente admitir que, “independentemente do estatuto gramatical do segmento em questão”, o processo de neutralização fonológico estaria ocorrendo. A segunda situação apresenta um ponto de vista radicalmente oposto ao da primeira: a confirmação total e absoluta da hipótese funcionalista. Ou seja: dado o obscurecimento das consonantes finais em latim, essa situação Q já viraria a super queda, dada a ordem das palavras na sentença, o processo fonológico da queda do /m/ final ficaria assim bloqueado, a fina de garantir a distinção formal entre nominativo e acusativo. A terceira e última situação ameniza os dois pontos de vista opostos expressos nas duas primeiras situações. Aqui, assume-se uma interseção entre os processos fonológicos em marcha dentro de um sistema e a função gramatical (morfológica) dos segmentos envolvidos. Assim, o /s/ plural também é perdido foneticamente, mas a pluralidade é mantida através de um processo ou recursos que o sistema organiza. É exatamente essa a situação no espanhol e no português contemporâneos. O espanhol apresenta um sistema de determinantes, distinguindo gênero e número: ---------------------------------------------------- Singular Plural Masculino el los un unos Feminino la las una unas ----------------------------------------------------- Observe-se que a perda do /s/ plural no determinante feminino coincide com a forma singular; a perda do /s/ em los e unos, entretanto, ainda retém a pluralidade, dada a diferença fônica com as formas singulares correspondentes: el e un. 126 Dado o quadro acima, uma hipótese, em conformidade com a terceira situação exposta por Poplack, poderia ser levantada: há uma interseção que reforçaria a morfologia do espanhol na medida em que se confirme que o processo fonológico de enfraquecimento e cancelamento do /s/ se encontra mais avançado no masculino do que no feminino, tanto para os substantivos quanto para os determinantes. Com essa hipótese em mente e dentro da pers pectiva teórica que temos avançado neste manual, Flores, Myhill e Tarallo (1983 11) empreenderam uma análise da perda do /s/ plural no espanhol porto-· riquenho, tendo chegado a resultados que confirmam a interseção de f a res fonológicos e morfológicos na mudança linguística. A tabela 3 11 a seguir apresenta os resultados para o cancelamento de /s/ em determinantes; a tabe la 4 11 , os resultados para os substantivos. Tabela 3: Frequência de apagamento de /s/ em determinantes Masculino Feminino Total Presença de /s/ 216 167 383 Ausência de /s/ 53 24 77 Total 269 191 460 % de ausência 19,7% 12,5% 16,7% Tabela 4: Frequência de apagamento de /s/ em substantivos Masculino Feminino Total Presença de /s/ 149 169 318 Ausência de /s/ 452 217 669 Total 601 386 987 % de ausência 75,2% 56,2% 67,8% As tabelas 3 e 4 acima demonstram, pois, que a percentagem de apagamento de /s/ marcador de plural é mais alta para os determinantes e substantivos masculinos: 19,7% contra 12,5% nos determinantes, e 75,2% contra 56,2% nos substantivos. Esses resultados evidenciam que o sistema, tomado de um processo fonológico violento que lhe compromete, entre outras coisas, a mar cação da pluralidade, permite o avanço da mudança, com maior velocidade, precisamente nos casos de menor neutralização entre o singular e o plural. No sistema moderno do português, entretanto, tal não é a divisão entre determinantes masculinos e femininos. Nesse sistema a perda do /s/ marca dor de plural igualmente compromete a função (pluralidade) no masculino e no feminino. Além da distinção entre os determinantes no espanhol, os es tudos já realizados haviam demonstrado que a primeira posição dentro do sintagma nominal começava a ser eleita como a posição solitária e única para