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1 A Cidade Antiga Fustel de Coulanges Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros NumaDenys Fustel de Coulanges 18301889 Título original La Cité Antique Étude sur Le Culte Le Droit Les Institutions de la Grèce et de Rome eBooksBrasil 2 ÍNDICE LIVRO PRIMEIRO Antigas Crenças Capítulo I Crenças a respeito da alma e da morte Capítulo II O culto dos mortos Capítulo III O fogo sagrado Capítulo IV A religião doméstica LIVRO SEGUNDO A Família Capítulo I A religião foi o princípio constitutivo da família antiga Capítulo II O casamento Capítulo III Continuidade da família Proibição do celibato Divórcio em caso de esterilidade Desigualdade entre filho e filha Capítulo IV Adoção e emancipação Capítulo V O parentesco o que os romanos entendiam por agnação Capítulo VI O direito de propriedade Capítulo VII Direito de sucessão 1 Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos 2 O filho herda e não a filha 3 Da sucessão colateral 4 Efeitos da emancipação e da adoção 5 O testamento a princípio não era conhecido 6 Antiga indivisão do patrimônio Capítulo VIII A autoridade na família 1 Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos 2 Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno Capítulo IX A antiga moral da família Capítulo X A Gens em Roma e na Grécia 1 O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens 2 Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana 3 A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade 4 Extensão da família a escravidão e a clientela 3 LIVRO PRIMEIRO ANTIGAS CRENÇAS CAPÍTULO I CRENÇAS A RESPEITO DA ALMA E DA MORTE Até os últimos tempos da história da Grécia e de Roma vemos persistir entre o vulgo um conjunto de pensamentos e costumes que certamente datavam de época muito remota pelos quais poderemos conhecer quais opiniões o homem tinha a princípio a respeito da própria natureza da alma e sobre o mistério da morte Quanto mais nos aprofundamos na história da raça indoeuropeia na qual se ramificaram os povos gregos e itálicos constatamos que essa raça sempre pensou que depois desta vida breve tudo acaba para o homem As mais antigas gerações muito antes que aparecessem os filósofos acreditaram em uma segunda existência depois da atual Encararam a morte não como dissolução do ser mas como simples mudança de vida Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência Acreditavam que o espírito imortal uma vez livre do corpo ia animar a outro Não a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das populações grecoromanas também não é a mais antiga opinião entre os árias do Oriente pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença Acreditavase então que o espírito ia para o céu para a região da luz Nem isso o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de época relativamente recente no Ocidente a morada celeste era considerada apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos continuava junto dos homens vivendo sobre a terra1 Acreditouse até por muito tempo que durante essa segunda existência a alma continuava unida ao corpo Nascendo junto a ele a alma não se separava mas fechavase com ele na sepultura Por mais antigas que sejam essas crenças delas nos ficaram testemunhos autênticos Esses testemunhos são os ritos fúnebres que sobreviveram a essas crenças primitivas mas que certamente haviam nascido ao mesmo tempo servindo para que as compreendamos melhor Os ritos fúnebres mostram claramente que quando colocavam um corpo na sepultura acreditavam enterrar algo vivo Virgílio que sempre descreve com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas termina a narração dos funerais de Polidoro com estas palavras Encerramos a alma do túmulo Idêntica expressão encontrase em Ovídio e em Plínio o Jovem não que elas correspondessem à ideia que esses escritores tinham da alma mas desde tempos imemoriais essa crença perpetuarase na linguagem atestando antigas crenças populares2 Era costume no fim da cerimônia fúnebre chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido desejandolhe vida feliz sobre a terra Diziamlhe três vezes Passe bem E acrescentavam Que a terra lhe seja leve3 tanta era a certeza de que a criatura continuava a viver sobre a terra conservando a sensação de bemestar ou de sofrimento No 4 epitáfio declaravase que o morto ali repousava expressão que sobreviveu a essas crenças e que de século em século chegou até nós Nós usamos ainda este costume embora ninguém hoje pense que um ser imortal possa repousar em um túmulo Mas antigamente acreditavase tão firmemente que ali vivia um homem que nunca deixavam de enterrar junto com o corpo objetos que supunham serlhe necessários como vestidos vasos e armas4 Derramavase vinho sobre o túmulo para matarlhe a sede levavamlhe alimentos para saciarlhe a fome5 Degolavamse cavalos e escravos pensando que essas criaturas sepultadas juntamente com os mortos prestarlhesiam serviços dentro do túmulo como o haviam feito durante a vida6 Depois da tomada de Tróia os gregos retornam a seu país cada um deles leva uma bela escrava mas Aquiles que está morto também exige uma escrava e lhe entregam Polixena7 Um verso de Píndaro guardounos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia fugindo até a Cólquida onde morreu Mas embora morto desejava retornar à Grécia Apareceu portanto a Pélias e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio do túmulo da família mas unida aos restos corporais não podia deixar sozinha a Cólquida8 Dessa crença primitiva derivouse a necessidade do sepultamento Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea necessária para sua segunda vida era preciso que o corpo ao qual permanecia ligada fosse coberto de terra A alma que não possuía sepultura não possuía morada e ficava errante Em vão aspirava ao repouso que deveria desejar depois das agitações e trabalhos desta vida e era obrigada a errar sempre sob a forma de larva ou de fantasma sem se deter jamais e sem receber nunca as ofertas e alimentos de que necessitava Como era infeliz logo se tornava perversa Atormentava os vivos provocavalhes doenças destruía colheitas assustavaos com aparições lúgubres a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma Daí se originou a crença nas almas do outro mundo9 Toda a antiguidade estava persuadida de que sem sepultura a alma era miserável e que pela sepultura tornavase feliz Não era por ostentação de dor que se oficiavam as pompas fúnebres mas para repouso e felicidade da alma do morto10 Notemos bem que não bastava confiar o corpo à terra Era necessário ainda obedecer a ritos tradicionais e pronunciar determinadas fórmulas Em Plauto encontrase a história de uma alma penada11 forçada a andar errante porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido ritual Suetônio conta que o corpo de Calígula enterrado antes de se completar a cerimônia fúnebre fez com que sua alma se tornasse errante aparecendo a diversas pessoas até o dia em que o desenterraram sepultandoo novamente de acordo com as regras12 Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito que se atribuía aos ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre Já que sem eles as almas tornavam se errantes e apareciam aos vivos era evidente que tais ritos fixavamnas e encerravamnas dentro dos túmulos E assim como havia algumas fórmulas que possuíam essa virtude os antigos possuíam outras que produziam efeitos contrários capazes de evocar as almas fazendoas sair momentaneamente de seus sepulcros Vêse claramente pelos escritores antigos como o homem era atormentado pelo medo de que depois de sua morte não fossem observados os devidos ritos Essa era uma fonte de inquietudes pungentes13 Temiase menos a morte que a privação da sepultura pois desta última dependia o repouso e felicidade eterna Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver os atenienses matar os generais que depois de uma vitória naval haviam negligenciado a sepultura dos mortos Esses generais discípulos dos filósofos talvez distinguissem a alma do corpo e como não acreditavam que a sorte da alma estivesse ligada à do corpo julgaram de pouca importância que um cadáver se decompusesse na água ou na terra Por isso não desafiaram a tempestade pela vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos Mas a plebe que mesmo em Atenas mantinhase fiel às antigas crenças acusou seus generais de impiedade e condenouos à morte Por sua vitória haviam 5 salvado Atenas mas por sua negligência haviam perdido milhares de almas Os parentes dos mortos pensando nos longos suplícios a que estavam condenadas aquelas almas apresentaramse ao tribunal vestidos de luto e pediram vingança14 Nas cidades antigas a lei punia os grandes criminosos com um castigo considerado terrível a privação da sepultura15 Puniase desse modo a própria alma condenandoa a suplício quase eterno É necessário observar que entre os antigos estabeleceuse ainda uma outra opinião a respeito da morada dos mortos Imaginaram uma região também subterrânea mas infinitamente mais espaçosa que o túmulo onde todas as almas longe dos corpos viviam reunidas penando ou gozando de acordo com a conduta do homem durante a vida Mas os ritos fúnebres como os descrevemos acima estão manifestamente em desacordo com essas crenças prova certa de que na época em que foram estabelecidos não se acreditava ainda na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios A primeira opinião dessas gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura que a alma não se separava do corpo e que permanecia unida à parte do solo onde os ossos estavam enterrados Por sua vez o homem não tinha que prestar nenhuma conta de sua vida anterior Uma vez sepultado não esperava nem recompensas nem suplícios Opinião certamente primitiva mas que é a infância da noção sobre a vida futura A criatura que vivia debaixo da terra não estava tão livre de sua condição humana para não ter necessidade de alimentos Assim em determinados dias do ano levavase uma refeição a cada túmulo16 Ovídio e Virgílio deixaramnos a descrição dessa cerimônia cujo uso conservarase intacto até seu tempo embora as crenças já se houvessem transformado Segundo nos narram afeitavamse os túmulos com grandes grinaldas de folhas e flores ofereciamse doces frutas sal fazendo sobre a terra libações de leite e vinho ou mesmo regandoa com o sangue de alguma vítima17 Enganarseia muito quem pensasse que essa refeição fúnebre não era senão uma espécie de comemoração Os alimentos que a família levava eram realmente para o morto exclusivamente para ele E isso concluímos pelo seguinte o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo um buraco era cavado a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o defunto se lhe imolavam uma vítima todas as carnes eram queimadas para que nenhuma pessoa viva delas participasse pronunciavamse certas fórmulas consagradas para convidar o morto a comer e a beber se a família inteira assistia à refeição ninguém tocava nos alimentos e por fim ao se retirarem os familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns doces em vasos consideravase grande impiedade o fato de alguém tocar nessa pequena provisão destinada às necessidades do morto Essas velhas crenças persistiram por muito tempo e sua expressão ainda se encontra entre os grandes escritores da Grécia Derramo sobre a terra do túmulo diz Ifigênia em Eurípides leite mel e vinho pois só assim podemos contentar os mortos18 Filho de Peleu diz Neoptólemo recebe esta bebida tão grata aos mortos vem e bebe este sangue19 Electra faz libações e diz A bebida penetrou na terra meu pai a recebeu20 Eis a prece de Orestes a seu pai defunto Ó meu pai se eu viver receberás ricos banquetes mas se eu morrer não terás parte nas mesas fumegantes onde os mortos se alimentam21 As sátiras de Luciano atestam que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo Os homens imaginam que as almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes oferecem que se regalam com o cheiro das iguarias e que bebem o vinho derramado sobre seus túmulos22 Entre os gregos diante de cada túmulo havia um local destinado à imolação da vítima e ao cozimento das carnes23 Os túmulos romanos tinham igualmente sua culina espécie de cozinha especial unicamente para uso do morto24 Plutarco conta que depois da batalha de Plateia como os guerreiros mortos haviam sido enterrados no lugar do combate os plateanos se comprometeram a 6 oferecerlhes cada ano o banquete fúnebre Em consequência no aniversário da batalha dirigiamse em grande procissão conduzidos pelos primeiros magistrados à colina sob a qual repousavam os mortos Ofereciamlhes leite óleo perfumes e imolavamlhes uma vítima Quando os alimentos estavam colocados sobre os túmulos os plateanos pronunciavam uma fórmula mediante a qual chamavam os mortos convidandoos a que tomassem suas refeições Esta cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que presenciou o sexto centenário dessa comemoração25 Luciano nos conta qual a opinião que deu origem a todos esses costumes Os mortos escreve ele alimentamse dos manjares que colocamos sobre seus túmulos e bebem o vinho que neles derramamos desse modo o morto que nada recebe é condenado à fome perpétua26 Eis aí crenças antigas e que nos parecem realmente falsas e ridículas Contudo elas exerceram seu império sobre o homem por muitas e muitas gerações Elas governaram as almas e logo veremos que tais crenças é que dirigiram as sociedades e que a maior parte das instituições domésticas e sociais dos antigos nelas tiveram sua origem Notas Livro I Cap I 1 Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum Cícero Tusc I 16 Essa crença era tão forte acrescenta Cícero que mesmo quando se estabeleceu o costume de queimar os corpos continuouse a acreditar que os mortos viviam debaixo da terra Cf Eurípides Alceste 163 Hécuba passim 2 Virgílio En III 67 Ovídio Fast V 451 Plínio Ep VII 27 A descrição de Virgílio referese ao uso dos cenotáfios admitiase que quando não se podia encontrar o corpo de um parente se realizasse uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos da sepultura acreditandose com isso encerrar a alma do morto no túmulo mesmo na falta do corpo Eurípides Helena 1061 1240 Escoliastes ad Píndar IV 234 Virgílio VI 505 XII 214 3 Ilíada XXIII 221 Eurípides Alceste 479 Pausânias II 7 2 Catulo C 10 Sérvio ad Aeneid II 640 III 68 XI 97 Ovídio Fast IV 852 Metam X 62 Juvenal VII 207 Marcial I 89 V 35 IX 30 4 Eurípides Alceste 637 638 Orestes 14161418 Virgílio En VI 221 XI 191196 O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos é atestado quanto a Atenas por Tucídides II 34 A lei de Sólon proibia enterrar mais de três vestidos com o morto Plutarco Sólon 21 Luciano fala ainda deste costume Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os mortos como se eles fossem usálos debaixo da terra Ainda nos funerais de César em época de grande superstição observouse o antigo costume levandose à fogueira osmunera roupas armas joias Suetônio César 34 Cf Tácito Ann III 3 5 Eurípides Ifigênia em Táurida 163 Virgílio En V 7680 VI 225 6 Ilíada XXI 2728 XXIII 165176 Virgílio En X 51920 XI 8084 197 Idêntico costume existia na Gália César B G V 17 7 Eurípides Hécuba 4041 107113 637638 8 Píndaro Pitiq IV 284 ed Heyne ver o Escoliastes 9 Cícero Tusculunas I 16 Eurípides Tróia 1085 Heródoto V 92 Virgílio VI 371 379 Horácio Odes I 23 Ovídio Fast V 483 Plínio Epist VII 27 Suetônio Calíg 59 Sérvio ad Aen III 63 10 Ilíada XXII 358 Odisséia XI 73 11 Plauto Mostellaria III 2 12 Suetônio Calígula 59 13 Vide na Ilíada XXII 338344 Heitor pedindo ao vencedor que não o deixe insepulto Rogote por teus joelhos por tua vida por teus pais não dês meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos aceita o ouro que meu pai te há de oferecer em abundância e mandalhe meu corpo a fim de que troianos e troianas me prestem as honras devidas na fogueira No mesmo sentido em Sófocles Antígone enfrenta a morte para que seu irmão não fique insepulto Sóf Antígone 467 O mesmo sentimento é expresso por Virgílio IX 213 Horácio Odes 1 18 v 2436 Ovídio Heróides X 119123 Tristes III 3 45 Igualmente nas maldições o que se podia desejar de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto Virgílio Eneida IV 620 7 14 Xenofonte Helênicas I 7 15 Ésquilo Os sete contra Tebas 1013 Sófocles Antígone 198 Eurípides Fen 16271632 Cf Lísias Epitáf 79 Todas as cidades antigas acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos a privação da sepultura 16 Isso em latim chamase inferias ferre parentare ferre solemnia Cícero De legibus II 21 Lucrécio III 52 Virgílio Eneida VI 380 IX 214 Ovid Amor I 13 3 Essas dádivas às quais os mortos tinham direito chamavamse Manium jura Cf Cícero De legib II 21 Cícero aludia a isso em Pro Flacco 38 e na primeira Filípica 6 Esses costumes eram ainda observados nos tempos de Tácito Hist II 95 Tertuliano atacaos como se estivessem ainda em pleno vigor em seu tempo De ressurr carnis I De testim animae 4 17 Virgílio En III 301303 V 7781 Ovídio Fast II 535542 18 Eurípídes Ifigênia em Táurida 157163 19 Eurípides Hécuba 536 Electra 505 e seguintes 20 Ésquilo Coéforas 162 21 Ésquilo Coéforas 432484 Nos Persas Ésquilo atribui a Atossa as ideias dos gregos Trago a meu esposo estes manjares para satisfação dos mortos leite mel dourado e o fruto da vinha chamemos a alma de Dario e derramemos estas bebidas que a terra há de tragar e que penetrarão até os deuses lá debaixo Persas 610 620 Quando as vítimas eram oferecidas às divindades do céu a carne era comida pelos ofertantes mas quando eram oferecidas aos mortos a carne era queimada por completo Pausânias II 10 22 Luciano Caron 22 Ovídio Fastos II 566 23 Luciano Caron 22 Cavam valas junto aos túmulos e ali cozinham alimentos para os mortos 24 Festo v Culina 25 Plutarco Aristides 21 26 Luciano De luctu9 CAPÍTULO II O CULTO DOS MORTOS Essas crenças logo deram lugar a regras de conduta Desde que o morto tinha necessidade de alimento e de bebida pensou se que era dever dos vivos satisfazer às suas necessidades O cuidado de levar alimentos aos mortos não foi abandonado ao capricho ou aos sentimentos mutáveis dos homens era obrigatório Estabeleceuse desse modo uma verdadeira religião da morte cujos dogmas logo se reduziram a nada mas cujos ritos duraram até o triunfo do Cristianismo Os mortos eram considerados criaturas sagradas1 Os antigos davamlhes os epítetos mais respeitosos que podiam encontrar chamavamnos de bons de santos de bemaventurados2 Tinham por eles toda a veneração que o homem pode ter para com a divindade que ama e teme Segundo seu modo de pensar cada morto era um deus3 Essa espécie de apoteose não era privilégio dos grandes homens não se faziam distinções entre os mortos Cícero afirma Nossos ancestrais quiseram que os homens que deixaram de viver fossem contados entre os deuses4 Não era necessário ter sido um homem virtuoso o mau tornavase deus tanto quanto o homem de bem apenas continuava nessa segunda existência com todas as más inclinações que tivera na primeira5 Os gregos de boa mente davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos Em Ésquilo um filho invoca deste modo o pai morto Ó tu que és um deus sob a terra Eurípides diz falando de Alceste Junto a seu túmulo o viandante há de parar e dizer Esta é agora uma divindade feliz6 Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes 8 Prestai aos deuses manes as honras que lhes são devidas diz Cícero pois são homens que deixaram de viver reverenciaios como criaturas divinas7 Os túmulos eram os templos dessas divindades Assim exibiam eles em latim e em grego a inscrição sacramental Dis Manibus theõis ethoníois Era lá que o deus permanecia sepultado Manesque sepulti diz Virgílio8 Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios como diante do túmulo dos deuses 9 Encontramos o culto dos mortos entre os helenos entre os latinos entre os sabinos10 e entre os etruscos encontramo lo também entre os árias da Índia como mencionam os hinos do RigVeda Os livros das Leis de Manu falam desse culto como do mais antigo entre os homens Vêse por esse livro que a ideia da metempsicose desconheceu essa velha crença mesmo antes disso já existia a religião de Brama e contudo tanto sob o culto de Brama como sob a doutrina da metempsicose a religião das almas dos ancestrais subsiste ainda viva e indestrutível e força o redator das Leis de Manu a levála em conta e a admitir ainda suas prescrições no livro sagrado Não é esta a menor singularidade desse livro estranho conservar regras relativas a crenças antigas quando foi redigido evidentemente em época na qual outras crenças opostas prevaleciam Isso prova que se é necessário muito tempo para que as crenças humanas se transformem é necessário mais tempo ainda para que as práticas exteriores e as leis se modifiquem Hoje mesmo depois de tantos séculos e revoluções os hindus continuam a oferecer dádivas aos antepassados Essas ideias e ritos são o que há de mais antigo na raça indo europeia assim como o que há de mais persistente Esse culto era idêntico tanto na Índia quanto na Grécia e na Itália O hindu devia oferecer aos manes a refeição chamada sraddha Que o chefe da casa faça o sraddha com arroz leite raízes frutos a fim de atrair sobre si a proteção dos manes O hindu acreditava que no momento em que oferecia esse banquete fúnebre os manes dos antepassados vinham sentarse a seu lado e recebiam os alimentos que lhes eram oferecidos Acreditava também que esse banquete proporcionava grande alegria aos mortos Quando o sraddha é oferecido de acordo com o ritual os antepassados daquele que oferece o banquete experimentam uma satisfação inalterável11 Assim os árias do Oriente em sua origem pensaram como os do Ocidente com relação ao mistério do destino depois da morte Antes de acreditar na metempsicose que supunha absoluta distinção entre a alma e o corpo acreditaram na existência vaga e indecisa da criatura humana invisível mas não imaterial e exigindo dos mortais comida e bebida O hindu como o grego olhava para os mortos como seres divinos que gozavam de existência bemaventurada Mas havia uma condição para sua felicidade era necessário que as ofertas fossem levadas regularmente Se deixavam de oferecer o sraddha por um morto sua alma saía de sua morada de paz e tornavase errante atormentando os vivos de sorte que os manes só eram considerados deuses em razão das ofertas que lhes eram feitas pelo culto12 Os gregos e romanos tinham exatamente as mesmas opiniões Se deixassem de oferecer aos mortos o banquete fúnebre logo estes saíam de seus túmulos e como sombras errantes ouviamnos gemer na noite silenciosa Censuravam os vivos por sua impiedosa negligência procuravam então castigálos mandavamlhes doenças ou castigavamlhes as terras com a esterilidade Enfim não davam descanso aos vivos até o dia em que voltassem a oferecerlhes o banquete fúnebre13 O sacrifício a oferta de alimentos e a libação levavamnos de volta ao túmulo e proporcionavamlhes o repouso e atributos divinos O homem assim estava em paz com eles14 Se o morto esquecido era criatura malfazeja o honrado era um deus tutelar que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos Para protegêlos continuava a tomar parte nos negócios humanos desempenhando muitas vezes a sua parte Embora morto sabia ser forte e ativo Dirigiamlhe orações pedindolhe favores e auxílio Quando encontravam um 9 túmulo detinhamse e diziam Tu que és um deus sobre a terra sême propício15 Podese avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece que Electra dirige aos manes de seu pai Tem piedade de mim e de meu irmão Orestes fazeo voltar meu pai ouve minha oração atende meus desejos ao receber minhas libações Estes deuses poderosos não proporcionam somente bens temporais porque Electra acrescenta Dáme um coração mais casto que o de minha mãe e mãos mais puras16 Também o hindu pede aos manes que em sua família aumente o número dos homens de bem e que tenham muitas coisas para dar Essas almas humanas divinizadas pela morte eram as que os gregos chamavam de demônios ou de heróis 17 Os latinos chamavamnas de lares manes18 ou gênios Nossos antepassados acreditaram diz Apuléio que os manes quando maus deviam ser chamados de larvas e de lares quando eram benfazejos e propícios19 Lemos em outro lugar Gênio ou lar tratase do mesmo ser assim o creram nossos antepassados20 E em Cícero Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares21 Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus o homem adorou os mortos teve medo deles dirigiulhes preces Parece que é essa a origem do sentimento religioso Foi talvez à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos A morte foi o primeiro mistério ela colocou o homem no caminho de outros mistérios Elevou seu pensamento do visível para o invisível do passageiro para o eterno do humano para o divino Notas Livro I Cap II 1 Plutarco Sólon 21 2 Aristóteles citado por Plutarco Quest rom 52 grecq 5 Ésquilo Coéf 475 3 Eurípides Fenic 1321 Odisséia X 526 Ésquilo Coéf 475 Ó bemaventurados que habitais debaixo da terra ouvi minha invocação vinde em socorro de vossos filhos e dailhes a vitória É em virtude dessa idéia que Virgílio chama ao pai morto de Sancte parens divinus parens Virg En V 30 V 47 Plutarco Quest rom 14 Cornélio Nepos Fragm XII 4 Cícero De legibus II 22 5 Santo Agostinho Cidade de Deus VIII 26 IX 11 6 Eurípides Alceste 1015 7 Cícero De leg II 9 Varrão em Santo Agostinho Cidade de Deus VIII 26 8 Virgílio En IV 34 9 Eurípides Troianas 96 Electra 505510 Virgílio En VI 177 III 63 305 V 48 O gramático Nônio Marcelo diz que os antigos chamavam ao sepulcro de templo e com efeito Virgílio emprega o vocábulo templum para designar o túmulo ou cenotáfio que Dido constrói para seu esposo Eneida IV 457 Plutarco Quest rom 14 Continua a chamarse ara a pedra levantada sobre o túmulo Suetônio Nero 50 Essa palavra é usada nas inscrições fúnebres Orelli ns 4521 4522 4826 10 Varrão De lingua lat V 74 11 Leis de Manu I 95 III 82 122 127 146 189 274 12 Esse culto tributado aos mortos exprimiase em grego pelas palavras enaghízo enaghismós Pólux VIII 91 Heródoto I 167 Aristides 21 Catão 15 Pausânias IX 13 3 A palavra enaghízo empregavase para os sacrifícios oferecidos aos mortos thyo para os que se ofereciam aos deuses do céu essa diferença é bem acentuada por Pausânias II 10 1 e pelo escoliastes de Eurípides Feníc 281 Cf Plutarco Quest rom 34 13 Vide em Heródoto I 167 a história das almas dos fócios que assustaram a toda uma região até que lhes celebraram o aniversário da morte e vários heróis semelhantes em Heródoto e Pausânias VI 6 7 Do mesmo modo em Ésquilo Clitemnestra advertida de que os manes de Agamenon estão irritados contra ela apressase em mandar alimentos a seu túmulo Vide também a lenda romana narrada por Ovídio Fastos II 549556 10 Esqueceramse um dia do dever das parentalia e as almas saíram dos túmulos e viramnas correr gritando pelas ruas da cidade e pelos campos do Lácio até que ofereceram sacrifícios em seus túmulos Cf a história que nos conta ainda Plínio o Jovem VII 27 14 Ovídio Fast II 518 Virgílio En VI 379 Comparar com o grego hiláskomai Pausânias VI 6 8 Tito Lívio 1 20 15 Eurípides Alceste 1004 1016 Acreditase que se não dermos nenhuma atenção a esses mortos e negligenciarmos seu culto eles nos castigam e que pelo contrário nos protegem se os tornarmos propícios mediante nossas ofertas Porfírio De abstin II 37 Vide Horácio Odes II 23 Platão Leis IX p 926927 16 Ésquilo Coéforas 122145 17 É possível que o sentido primitivo de héros tenha sido o de homem morto A linguagem das inscrições que é a do vulgo e que é ao mesmo tempo a em que o antigo sentido das palavras se conserva por mais tempo usa às vezes héros com o mesmo significado de defunto Boeckh Corp ínscr ns 1629 1723 1781 1782 1784 1786 1789 3398 F Lebas Monum de Moréia p 205 Vide Teógnis ed Welcker v 513 e Pausânias VI 6 9 Os tebanos usavam uma antiga expressão para significar morrer héroa ghénesthaiAristóteles Fragmentos ed Heitz t IV p 260 Cf Plutarco Proverb quibus Alex usi sunt c 47 Os gregos também davam à alma do morto o nome de dáimon Eurípides Alceste 1140 e Escoliastes Ésquilo Persas 620 Pausânias VI 6 18 Tito Lívio III 58 Virgílio VI 119 X 534 III 303 Orelli ns 4440 4441 4447 4459 etc Tito Lívio III 19 19 Apuléio De deo Socratis Sérvio ad Aeneid III 63 20 Censorinus De die natali 3 21 Cícero Timeu 11 Dionísio de Halicarnasso traduz lar familiaris por Kat okían héros Antiq rom IV 2 CAPÍTULO III O FOGO SAGRADO A casa do grego ou do romano obrigava um altar sobre esse altar devia haver sempre um pouco de cinza e carvões acesos1 Era obrigação sagrada para o chefe de cada casa manter aceso o fogo dia e noite Infeliz da casa onde se apagasse Cada noite cobriamse de cinza os carvões para impedir que se consumissem por completo pela manhã o primeiro cuidado era reavivar o fogo e alimentálo com ramos O fogo não cessava de brilhar diante do altar senão quando se extinguia toda uma família a extinção do fogo e da família eram expressões sinônimas entre os antigos2 É evidente que esse costume de manter continuamente o fogo aceso diante do altar prendiase a alguma antiga crença As regras e ritos então observados mostram que não se tratava de um costume qualquer Não era permitido alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira a religião distinguia entre as árvores as que podiam ser usadas para esse fim e aquelas cujo uso era taxado de impiedade3 A religião ordenava também que o fogo se mantivesse sempre puro4 o que significava no sentido literal que nenhum objeto impuro podia ser lançado nele e no sentido figurado que nenhuma ação pecaminosa devia ser cometida em sua presença Havia um dia do ano que entre os romanos era o 1 de março em que cada família devia extinguir o fogo sagrado e acender imediatamente outro5 Mas para acender esse fogo havia ritos que deviam ser observados escrupulosamente Sobretudo deviase evitar o uso de pedras e metais para conseguilo A única maneira permitida consistia em concentrar sobre um ponto qualquer os raios do sol ou esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinada espécie para conseguir uma fagulha6 Essas diferentes regras provam satisfatoriamente que na opinião dos antigos 11 não se tratava apenas de produzir ou conservar um elemento útil e agradável aqueles homens viam algo mais no fogo que ardia em seus altares O fogo era algo divino que era adorado e cultuado Ofertavamlhe tudo o que julgavam agradável a um deus flores frutos incenso vinho7 Pediam sua proteção julgandoo todopoderoso Dirigiamlhe preces ardentes para dele obter os eternos objetos dos desejos humanos saúde riqueza felicidade Uma dessas preces que nos foi conservada em uma antologia dos hinos órficos é concebida nestes termos Ó fogo tornanos sempre prósperos sempre felizes ó tu que és eterno belo sempre jovem tu que nutres tu que és rico recebe de boa vontade nossas ofertas e dános em troca a felicidade e a saúde que é tão bela8 Viase assim no fogo um deus benfazejo que mantinha a vida do homem um deus rico que o alimentava com seus dons um deus forte que protegia a casa e a família Em presença de algum perigo procuravase nele o refúgio Quando o palácio de Príamo foi invadido Hécuba leva o velho rei para perto do fogo Tuas armas não poderão defenderte lhe diz ela mas este altar será a nossa proteção9 Contemplai Alceste que vai morrer dando a vida para salvar o esposo Aproxima se do fogo e o invoca com estas palavras Ó divindade protetora desta casa pela última vez inclinome diante de ti e te dirijo minhas preces porque vou descer para a região dos mortos Vela sobre meus filhos que não terão mais mãe dá a meu filho uma esposa amante e à minha filha um esposo nobre Faze que eles não morram como eu antes da idade mas que tenham existência longa e cheia de felicidade10 Era o fogo que enriquecia a família Plauto em uma de suas comédias representao medindo seus favores na proporção do culto que lhe prestam11 Os gregos chamavam ctésios ao deus da riqueza12 O pai o invocava em favor dos filhos e lhe pedia saúde e abundância de bens13 No infortúnio o homem queixavase ao fogo e o repreendia Na felicidade davalhe graças O soldado que voltava da guerra agradecialhe por haver escapado dos perigos Ésquilo nos apresenta Agamenon voltando de Tróia feliz coberto de glória ele não agradece a Júpiter e não é ao templo que vai levar sua alegria e reconhecimento o sacrifício de ação de graças ele o oferece no altar de sua casa14 O homem não saía jamais de casa sem dirigir uma prece ao fogo sagrado de volta antes de rever a mulher e abraçar os filhos devia inclinarse diante do altar e invocar os manes familiares15 Portanto o deus do fogo era a providência da família Seu culto era muito simples A primeira regra era manter continuamente sobre o altar alguns carvões acesos porque se o fogo se extinguia um deus deixava de existir Em certas horas do dia alimentavamno com ervas secas e lenha então o deus se manifestava em chamas brilhantes16 Ofereciamlhe sacrifícios mas a essência de qualquer sacrifício era manter e aliviar o fogo sagrado nutrir e fazer crescer o corpo do deus É por isso que antes de mais nada ofereciamlhe ramos é por isso que derramavam sobre o altar o vinho quente da Grécia óleo incenso e gordura de animais O deus recebia essas ofertas e as devorava satisfeito e radiante levantavase sobre o altar e iluminava com seus raios a seu adorador17 Era esse o momento próprio para invocálo o hino da oração saía do coração do homem O banquete era o ato religioso por excelência presidido pelo deus que havia cozido o pão e preparado os alimentos18 dirigiamlhe também uma prece no princípio e no fim da refeição Antes de comer depunham sobre o altar as primícias dos alimentos antes de beber faziase a libação do vinho Era a parte do deus Ninguém duvidava de sua presença ou que ele comesse e bebesse e de fato não viam a chama crescer como se fosse alimentada pelas oferendas O banquete assim era dividido entre o homem e deus era uma cerimônia santa pela qual entravam em comunhão com a divindade19 Velhas crenças que com o tempo desapareceram dos espíritos mas que deixaram por muito tempo ainda usos ritos expressões que mesmo o incrédulo não podia desprezar Horácio Ovídio Juvenal ainda tomavam suas refeições diante do altar e faziam a libação e a prece20 12 O culto do fogo sagrado não pertencia apenas aos povos da Grécia e da Itália Encontramolo também no Oriente As leis de Manu na redação que chegou até nós mostramnos a religião de Brama completamente estabelecida e entrando já em declínio mas elas guardaram vestígios e restos de uma religião mais antiga a do fogo que o culto de Brama havia relegado a segundo plano sem conseguir destruílo O brâmane tem o seu lar que deve manter aceso dia e noite cada dia e cada noite ele o alimenta com lenha mas como entre os gregos só o pode fazer com determinadas madeiras indicadas pela religião Como os gregos e os itálicos oferecemlhe vinho o hindu derrama sobre ele um licor fermentado chamado soma A refeição também é ato religioso cujos ritos são escrupulosamente descritos pelas leis de Manu Como na Grécia dirigemlhe preces oferecemlhe banquetes arroz manteiga e mel Manu declara O brâmane não deve comer arroz da nova colheita senão depois de oferecer as primícias ao fogo Porque o fogo sagrado é ávido de cereais e quando não é honrado devora a existência do brâmane negligente Os hindus como os gregos e os romanos imaginavam os deuses ávidos não só de honras e de respeito como também de alimentos e bebidas O homem julgavase obrigado a saciarlhes a fome e a sede se desejava evitarlhes a cólera Entre os hindus essa divindade do fogo comumente chamase Agni O RigVeda contém grande número de hinos que lhe são dirigidos Em um deles se diz Ó Agni tu és a vida tu és o protetor do homem Em recompensa de nossos louvores dá ao pai de família que te implora glória e riqueza Agni és defensor prudente e pai a ti devemos a vida somos tua família Assim o fogo sagrado como na Grécia é um deus tutelar O homem pedelhe abundância Faze que a terra nos seja sempre liberal Pedemlhe saúde Que eu goze por muito tempo da luz e chegue à velhice como o sol poente Pedemlhe até sabedoria Ó Agni tu colocas no bom caminho o homem que se iludia no mau Se cometemos alguma falta se andamos longe de ti perdoanos Esse fogo sagrado como na Grécia era essencialmente puro era severamente proibido ao brâmane lançar nele algo impuro ou mesmo aquecer os pés no seu calor21 Como na Grécia o homem culpado não podia aproximarse do fogo senão depois de purificarse Uma grande prova da antiguidade dessas crenças e costumes é o fato de encontrálas simultaneamente entre os homens das margens do Mediterrâneo e entre os povos da península indiana É certo que os gregos não tiraram essas práticas da religião hindu nem os hindus da dos gregos Mas gregos itálicos e hindus pertenciam a uma só raça seus antepassados em época remotíssima viveram juntos na Ásia central de onde se originaram essas crenças e ritos A religião do fogo sagrado portanto data da época longínqua e obscura em que não havia ainda nem gregos nem itálicos nem hindus mas apenas os árias Quando as diversas tribos se separaram levaram com elas esse culto umas para as margens do Ganges outras para as praias do Mediterrâneo Mais tarde entre essas tribos separadas e que não tinham mais relações entre si umas adoraram Brama outras Zeus outras Jano cada grupo escolheu seus deuses Todos porém conservaram como antigo legado a religião primitiva que haviam concebido e praticado no berço comum de suas raças Se a existência desse culto entre todos os povos indoeuropeus não demonstrasse suficientemente sua remota antiguidade encontraríamos outras provas nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos Em todos os sacrifícios mesmo nos que se realizavam em honra de Zeus ou de Atenas a primeira invocação era sempre dirigida ao fogo22 Toda a prece dirigida a um deus fosse qual fosse devia começar e terminar por uma prece aos manes23 Em Olímpia o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia era para o fogo e o segundo para Zeus24 Do mesmo modo em Roma a primeira adoração era sempre para Vesta que não era nada mais que a divindade do fogo25 Ovídio falando dessa divindade diz que ela ocupa o primeiro lugar entre as práticas religiosas dos homens É assim que lemos nos livros do RigVeda Antes de todos os outros deuses é necessário invocar a Agni Pronunciaremos seu nome venerável antes de 13 todos os outros imortais Ó Agni seja qual for o deus que honramos com nosso sacrifício nosso holocausto é sempre dirigido a ti É portanto certo que em Roma nos tempos de Ovídio e na Índia nos tempos dos brâmanes o fogo sagrado tinha ainda a primazia entre os deuses não porque Júpiter e Brama não houvessem conquistado maior importância na religião dos homens mas porque lembravam se de que o fogo sagrado era muito anterior a todos esses deuses Depois de muitos séculos tomara o primeiro lugar no culto e os deuses mais novos e mais importantes não o puderam destronar Os símbolos desta religião modificaram se de acordo com os tempos Quando as populações da Grécia e da Itália tomaram o hábito de representar os deuses como pessoas dando a cada um nomes próprios e forma humana o antigo culto do fogo submeteuse à lei comum que a inteligência humana nesse período impunha a toda a religião O altar do fogo sagrado tomou forma chamaramno de estía Vesta o nome era idêntico em latim e em grego e não era senão a palavra que na língua comum designava o altar Por um processo muito frequente do nome comum fezse o nome próprio Aos poucos surgiu uma lenda Representaram essa divindade sob a aparência de mulher porque a palavra que designava o altar era do gênero feminino Chegouse mesmo a representar essa deusa por meio de estátuas Mas jamais conseguiram destruir as origens da crença primitiva segundo a qual essa divindade era simplesmente o fogo do altar e o próprio Ovídio viuse forçado a admitir que Vesta não era nada mais que uma chama viva26 Se compararmos esse culto do fogo sagrado com o culto dos mortos do qual falamos há pouco descobriremos estreita ligação entre ambos Notemos antes de mais nada que o fogo sagrado não é no pensamento dos homens o mesmo fogo da natureza material O que se vê nele não é o elemento puramente físico que aquece e queima que transforma os corpos funde os metais e se torna poderoso instrumento da indústria humana O fogo sagrado é de natureza completamente diversa É um fogo puro que não pode ser produzido senão com o auxílio de determinados ritos e que não se mantém senão com determinadas qualidades de madeira É um fogo casto a união dos sexos deve sei afastada para longe de sua presença27 Não se pede a ele apenas riqueza e saúde mas também pureza de coração temperança e sabedoria Torna nos ricos e prósperos diz um hino órfico tornanos também sábios e castos O fogo sagrado é portanto uma espécie de ser moral É verdade que brilha aquece e coze os alimentos sagrados mas ao mesmo tempo ele tem um pensamento uma consciência tem consciência dos deveres e vela para que sejam cumpridos Dirseia um homem pois possui a dupla natureza humana fisicamente brilha movese vive produz a abundância prepara as refeições alimenta o corpo moralmente tem sentimentos e afetos dá ao homem pureza ordena o bem e o mal alimenta a alma Podese dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla série de suas manifestações É ao mesmo tempo fonte das riquezas da saúde e da virtude É na verdade o deus da natureza humana Mais tarde quando esse culto foi relegado a segundo plano por Brama ou por Zeus o fogo sagrado mantevese como o atributo divino mais acessível ao homem era o intermediário da natureza física junto aos deuses era encarregado de levar até os deuses a prece e oferenda do homem e de trazer ao homem os favores divinos Mais tarde ainda quando desse mito do fogo sagrado se fez a grande Vesta Vesta foi a deusa virgem não representava no mundo nem a fecundidade nem o poder era a ordem mas não a ordem rigorosa abstrata matemática a lei imperiosa e fatal que logo se descobre entre os fenômenos da natureza física Vesta era a ordem moral Imaginaramna como uma espécie de alma universal que regulava os diversos movimentos dos mundos como a alma humana rege nossos órgãos É assim que o pensamento das gerações primitivas se deixa entrever O princípio desse culto foge do círculo da natureza física e se encontra nesse pequeno mundo misterioso que é o homem Isso nos leva de volta ao culto dos mortos Ambos têm a mesma antiguidade 14 Estavam tão intimamente unidos que a crença dos antigos fez disso uma religião Fogo demônios heróis deuses lares tudo era uma só coisa28 Por dois trechos de Plauto e de Columela vêse que na linguagem comum diziase indiferentemente fogo ou lar doméstico e vemos ainda em Cícero que não se distinguia o fogo dos penates nem os penates dos deuses lares29 Lemos em Sérvio Por fogos os antigos entendiam os deuses lares assim Virgílio fala indiferentemente em fogo e em penates ou viceversa30 Em uma passagem famosa da Eneida Heitor diz a Enéias que vai mandar lhe os penates de Tróia e lhe manda o fogo sagrado Em outra passagem Enéias invocando esses mesmos deuses chamaos indiferentemente de penates lares e Vesta31 Vimos aliás que esses que os antigos chamavam de lares ou heróis não eram outros senão as almas dos mortos às quais os homens atribuíam poder sobrehumano e divino A lembrança de um desses mortos sagrados estava sempre ligada ao fogo Adorando a um não se podia esquecer a outro Estavam unidos no respeito dos homens e em suas preces Os descendentes quando falavam do fogo sagrado lembravam constantemente o nome do antepassado Deixa este lugar diz Orestes a Helena e dirigete ao antigo fogo de Pélops para ouvir minhas palavras32 Do mesmo modo Enéias falando do fogo que transporta através dos mares designao pelo nome de lar de Assaracus como se visse nesse fogo a alma de seu antepassado O gramático Sérvio muito instruído a respeito das antiguidades grecoromanas em seu tempo estudavamnas muito mais que nos tempos de Cícero diz que era costume muito antigo enterrar os mortos nas casas e acrescenta De acordo com este uso é que se honram nas casas os lares e os penates33 Esta frase estabeleceu nitidamente antiga relação entre o culto dos mortos e o culto do fogo Podese pois pensar que o fogo doméstico na origem nada mais foi que o símbolo do culto dos mortos que sob a pedra da lareira repousava um antepassado que o fogo ali se acendia para honrálo e que esse fogo parecia mantêlo vivo ou representava sua alma imortal Tratase apenas de simples conjectura pois faltamnos provas Mas o certo é que as gerações mais antigas de cuja raça se originaram gregos e romanos renderam culto aos mortos e ao fogo sagrado religião antiga que não tirava seus deuses da natureza física mas do próprio homem tendo por objeto a adoração do ser invisível que há em nós a força moral e pensadora que anima e governa nosso corpo Essa religião não foi sempre igualmente poderosa nem sempre teve igual influência sobre a alma aos poucos se foi enfraquecendo mas não desapareceu por completo Contemporânea das primeiras idades da raça ariana enraizouse tão profundamente nas entranhas dessa raça que a brilhante religião do Olimpo grego não foi bastante para arrancála sendo para isso necessário o advento do Cristianismo Notas Livro I Cap III 1 Os gregos chamavam a esse altar de nomes diversos bõmos eschára hestía esse último acabou por prevalecer no uso e foi a palavra pela qual passaram a designar a deusa Vesta Os latinos chamavam o mesmo altar de vesta ara ou focus Nonius Marcellus ed Quicherat p 53 2 Hinos homér XXIX Hinos órfic LXXXIV Hesíodo Opera 679 Ésquilo Agam 1056 Eurípides Hercul fur 503 599 Tucídides I 136 Aristófanes Plut 795 Catão De re rust 143 Cícero Pro domo 40 Tibulo I 1 4 Horácio Épod II 43 Ovídio A A I 637 Virgílio En II 512 3 Virgílio VII 71 Festo v Felicis Plutarco Numa 9 4 Eurípides Herc fur 715 Catão De re rust 143 Ovídio Fast III 698 5 Macróbio Saturn I 12 6 Plutarco Numa 9 Festo ed Müller p 106 15 7 Ovídio A A I 637 Plauto Captiv II 3940 Mercator V 1 5 Tibulo I 3 34 Horácio Odes II 23 14 Catão De re rust 143 Plauto Aululária prólogo 8 Hinos órfic 84 9 Virgílio En II 523 Horácio Epit I 5 Ovídío Trist IV 8 22 10 Eurípides Alceste 162168 11 Plauto Aululárla prólogo 12 Eustato in Odyss p 1756 e 1756 e 1814 O Zeus a quem se refere muitas vezes é um deus doméstico o lar 13 Iseu De Cironis hered 16 14 Ésquilo Agam 851853 15 Catão De re rust 2 Eurípides Hercul fur 523 16 Virgílio En I 704 17 Virgílio Geórg IV 383385 18 Ovídío Fast VI 315 19 Plutarco Quest rom 64 id Simposíaca VII 4 7 Id ibid VII 4 4 Ovídio Fastos VI 300 VI 630 II 634 Cf Plauto Aululária II 7 16 Horácio Odes III 23 Sát II 3 166 Juvenal XII 8790 Plutarco De fort Rom 10 Comparese com o Hino Homérico XXIX 8 Plutarco Fragmentos Com sobre Hesíodo 44 Sérvio na Eneida I 730 20 Horácio Sat II 6 66 Ovídio Fastos II 631683 Juvenal XII 8390 Petrônío Sátir c 60 21 Idêntica prescrição na religião romana Varrão em Nônio p 479 ed Quicherat p 557 22 Porfírio De abstin II p 106 Plutarco De frigido 8 23 Hinos hom 29 Ibid 3 v 33 Platão Cratila 18 Hesíquio Diodoro VI 2 Aristófanes Aves 865 24 Pausânias V 14 25 Cícero De nat deor II 27 Ovídio Fast VI 304 26 Ovídio Fast VI 291 27 Hesíodo Opera 678680 Plutarco Com sobre Hesíodo frag 48 28 Tibulo II 2 Horácio Odes IV 11 6 Ovídio Trlst III 13 V 5 Os gregos davam a seus deuses domésticos ou heróis o epíteto de ephéstioi ou estiúchoi 29 Plauto Aulul II 7 16 Columela XI 1 19 Cícero Pro domo 41 Pro Quintio 27 28 30 Sérvio In Aen III 134 31 Virgílio En II 297 IX 257258 V 744 32 Eurípides Oreste 14201422 33 Sérvio In Aen V 64 VI 152 Vide Platão Minos p 315 CAPÍTULO IV A RELIGIÃO DOMÉSTICA Não é necessário representar esta antiga religião como as que foram fundadas mais tarde com a humanidade mais evoluída Há muitos séculos que o gênero humano não admite mais uma doutrina religiosa senão com duas condições uma que tenha um único deus outra que se dirija a todos os homens e seja acessível a todos sem afastar sistematicamente nenhuma classe ou raça Mas a religião dos primeiros tempos não 16 preenchia nenhuma dessas condições Não somente não oferecia à adoração dos homens um único deus mas ainda seus deuses não aceitavam a adoração de todos os homens Não se apresentavam como sendo os deuses do gênero humano Não se assemelhavam nem mesmo a Brama que era pelo menos o deus de uma grande casta nem a Zeus Pan heleno que era deus de toda uma nação Nessa religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família A religião era puramente doméstica É necessário esclarecer este ponto importante porque sem isso não se poderia compreender a relação tão íntima estabelecida entre essas velhas crenças e a constituição da família grega e romana O culto dos mortos de nenhum modo se assemelha ao que os cristãos dedicam aos santos Uma das primeiras regras desse culto era que não podia ser observado senão pelos familiares de cada modo Os funerais não podiam ser religiosamente observados senão pelo parente mais próximo Quanto ao banquete fúnebre que depois se celebrava em épocas determinadas apenas a família tinha o direito de assistilo e os estranhos eram severamente excluídos1 Acreditavase que o morto não aceitava a oferta senão da mão dos parentes não queria o culto senão de seus descendentes A presença de um homem que não pertencesse à família perturbava o repouso dos manes A lei portanto proibia aos estranhos aproximarse de um túmulo2 Tocar com o pé mesmo por descuido uma sepultura era ato de impiedade pelo qual se devia aplacar o morto e purificarse A palavra pela qual os antigos designavam o culto dos mortos é significativa os gregos diziam pratiázein3 os latinos parentare porque as preces e oferendas não eram endereçadas senão aos antepassados de cada um4 O culto dos mortos era verdadeiramente o culto dos antepassados5 Luciano sempre zombando da opinião do vulgo nolo explica claramente quando diz O morto que não deixou filhos não recebe sacrifícios e fica condenado à fome eterna6 Na Índia como na Grécia a oferta não podia ser feita ao morto senão pelos seus descendentes A lei dos hindus como a ateniense proibia receber estranhos embora amigos no banquete fúnebre Era de tal modo necessário que o banquete fosse oferecido pelos descendentes do morto e não por outras pessoas que se supunha até que os manes em sua morada faziam frequentemente este voto Que nasçam sucessivamente de nossa estirpe filhos que nos ofereçam na continuidade dos tempos arroz cozido em leite mel e manteiga purificada7 Por essa razão na Grécia e em Roma como na Índia o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes do pai e de todos os ancestrais8 Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer pois a interrupção desse culto provocava uma série de mortes e destruía a felicidade Tal negligência era considerada verdadeiro parricídio multiplicado tantas vezes quantos antepassados possuía o filho negligente Se pelo contrário os sacrifícios eram sempre observados de acordo com os ritos se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias marcados então o antepassado tornavase deus protetor Hostil a todos os que não descendiam dele expulsavaos de seu túmulo castigando com doenças os que dele se aproximavam para os seus porém era bom e compassivo Havia perpétua troca de favores entre os vivos e os mortos de cada família O ancestral recebia dos descendentes a série de banquetes fúnebres isto é a única alegria que podia experimentar em sua segunda vida O descendente recebia do antepassado a ajuda e a força de que necessitava neste mundo O vivo não podia abandonar o morto nem o morto ao vivo Por esse motivo estabeleciase poderosa união entre todas as gerações de uma mesma família constituindo assim um corpo inseparável Cada família tinha seu túmulo onde seus mortos vinham descansar um após outro sempre juntos Todos os que descendiam do mesmo sangue aí deviam ser enterrados e nenhum homem de outra família podia ser nele admitido9 Nele celebravamse as cerimônias e aniversários Cada família acreditava possuir antepassados sagrados Nos tempos mais remotos o túmulo ficava dentro da propriedade da família no centro da casa 17 não longe da porta a fim de que diz um antigo o filho entrando ou saindo de sua morada encontrasse todas as vezes os pais dirigindolhe vez por vez uma invocação10 Assim o antepassado mantinhase no meio dos seus invisível mas sempre presente continuava a fazer parte da família e a ser o pai Imortal feliz divino interessavase por aquilo que deixara de mortal sobre a terra conhecialhes as necessidades e amparavaos na fraqueza E aquele que ainda vivia que trabalhava que segundo expressão antiga não se havia desempenhado da existência esse tinha junto a si guias e apoio que eram os pais No meio das dificuldades invocava sua antiga sabedoria no sofrimento pedialhes consolo no perigo apoio depois de uma falta perdão Na verdade hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado Fazer do homem um deus parecenos contrário à religião Énos quase tão difícil compreender as antigas crenças desses homens como teria sido a eles imaginar as nossas Mas reflitamos que os antigos não tinham ideia da criação para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da criação O que gerava parecialhes uma criatura divina e por isso adoravam os antepassados Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as sociedades humanas encontramolo entre os chineses como entre os antigos getas e citas entre os povos da África como entre os do Novo Mundo11 O fogo sagrado que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos tinha também como caráter essencial pertencer apenas a uma família representava os antepassados12 era a providência da família não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha que era outra providência Cada lar protegia apenas os seus Toda essa religião limitavase ao círculo de uma casa O culto não era público Pelo contrário todas as cerimônias eram celebradas apenas pelos familiares13 O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa nem mesmo perto da porta externa onde um estranho poderia vêlo Os gregos colocavam no sempre em um recinto fechado14 para protegêlo do contacto e olhar dos profanos Os romanos escondiamno no meio da casa Todos esses deuses fogo sagrado lares manes eram chamados de deuses escondidos ou deuses do interior15 Para todos os atos dessa religião exigiase segredo sacrifícia oculta diz Cícero16 se uma cerimônia fosse assistida por um estranho era considerada perturbada manchada por um único olhar Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes nem ritual comum Cada família tinha a mais completa independência Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença Não havia outro sacerdote além do pai como sacerdote ele não conhecia nenhuma hierarquia O pontífice de Roma ou o arconte de Atenas podia certificarse de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos mas não tinha o direito de obrigálo a nenhuma modificação Suo quisque ritu sacrificium faciat17 era a regra absoluta Cada família tinha suas cerimônias que lhe eram próprias suas festas particulares suas fórmulas de oração e seus hinos18 O pai único intérprete e pontífice dessa religião era o único que tinha o poder de ensinála e não o podia fazer senão a seu filho Os ritos as palavras da oração os cantos que faziam parte essencial dessa religião doméstica eram patrimônio ou propriedade sagrada que a família não participava a ninguém e que era até proibido revelar a estranhos Assim era na Índia Sou forte contra meus inimigos diz o brâmane com os cantos que pertencem à minha família e que meu pai me ensinou19 Assim a religião não residia nos templos mas nas casas cada um tinha seus deuses cada deus protegia apenas a uma família e era deus apenas de uma casa Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de alguém ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes Ela nasceu espontaneamente no espírito humano seu berço foi a família cada família fez seus próprios deuses 18 Esta religião não podia propagarse senão pela geração O pai ao dar vida ao filho davalhe ao mesmo tempo sua fé seu culto o direito de manter o fogo sagrado de oferecer o banquete fúnebre de pronunciar fórmulas de orações A geração estabelecia misterioso vínculo entre a criança que nascia para a vida e todos os deuses da família Tais deuses eram sua própria família theòi enghenéis seu próprio sangue theòi synaimoi20 A criança portanto ao nascer recebia o direito de adorá los e de oferecerlhes sacrifícios assim como mais tarde quando a morte por sua vez o divinizasse ele devia ser contado entre os deuses da família Mas é necessário notar esta particularidade a religião doméstica não se propagava senão de varão para varão Isso sem dúvida prendiase à ideia que os homens faziam da geração21 A crença das idades primitivas tal como a encontramos nos Vedas e nos vestígios que ficaram em todo o direito romano e grego era que o poder reprodutor residia unicamente no pai Somente o pai possuía o princípio misterioso do ser e transmitia a centelha da vida Dessa antiga opinião resultou que o culto doméstico passou sempre de homem para homem a mulher dele não participava senão por intermédio do pai ou do marido depois que estes morriam a mulher não tomava a mesma parte que o homem no culto e cerimônias do banquete fúnebre Disso resultaram ainda outras consequências muito graves no direito privado e na constituição da família delas trataremos mais adiante Notas Livro I Cap IV 1 A lei de Sólon proibia que se acompanhasse chorando o enterro de pessoa que não fosse parente Plutarco Sólon 21 Igualmente não autorizava às mulheres acompanhar o morto senão até o grau de primas Demóstenes In Macartatum 6263 Cf Cícero De legibus II 26 Varrão L L VI 13 Gaio II 5 6 2 Lei de Sólon em Plutarco Sólon 21 Cícero De legib II 26 3 Pólux III 10 4 Assim lemos em Iseu De Meneclis hered 46 Se Menecles não tem filhos os sacrifícios domésticos não serão celebrados em sua honra e ninguém levará a oferta anual a seu túmulo Outras passagens do mesmo orador mostram que é sempre o filho que deve levar as bebidas ao túmulo De Apollod hered 30 5 Pelo menos no princípio porque depois também as cidades tiveram seus heróis tópicos e nacionais como veremos adiante Veremos também que a adoção criava um parentesco factício e dava o direito de honrar uma série de antepassados 6 Luciano De luctu 7 Leis de Manu III 138 III 274 8 É o que a língua grega chama de noiéin tá nomizómena Ésquines in Timarch 40 Dinarca In Aristog 18 Cf Plutarco Catão 15 Notese como Dinarca repreende Aristógiton por não oferecer o sacrifício anual a seu pai morto em Eretréia Dinarca In Aristog 18 9 O antigo uso dos túmulos de família é atestado da maneira mais formal Demóstenes In Eubulidem 28 A lei de Sólon proibia enterrar nos túmulos de família pessoas estranhas Cíc De leg II 26 Demóstenes In Macartatum 79 descreve o túmulo onde repousam todos os que descendem de Buselos chamase o monumento dos busélidas é um grande recinto fechado de acordo com antiga regra O túmulo dos laquíadas é mencionado por Marcelino biógrafo de Tucídides e por Plutarco Címon 4 Há uma antiga anedota que prova quanto se considerava necessário que cada morto fosse enterrado no túmulo de família contase que os lacedemônios prestes a combaterem contra os messênios ataram no braço direito marcas particulares contendo o nome de cada um e o do pai a fim de que em caso de morte o corpo pudesse ser reconhecido e transportado para o túmulo paterno essa característica dos costumes antigos nos foi conservada por Justino III 5 Ésquilo alude ao mesmo costume quando diz falando de guerreiros que vão morrer que eles serão transportados para o túmulo dos pais Sete contra Tebas v 914 Os romanos também tinham túmulos de família Cícero De offic I 17 Como na Grécia era proibido enterrar estranhos no túmulo de família Cícero De legib II 22 Vide Ovídio Tristes IV 3 45 Veléio II 119 Suetônio Nero 50 Tibério 1 Cícero Tuscul I 7 Digesto XI 7 XLVII 12 5 10 Eurípides Helena 11631168 19 11 Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio Seriam essas imagens simples retratos de família ou ídolos 12 Do mesmo modo nos Vedas Agni é ainda invocado como deus doméstico 13 Iseu De Cironis haereditate 1518 14 Esse recinto chamavase hérkos 15 Cícero De nat Deor II 27 Sérvio in Aen III 12 16 Cícero De arusp resp 17 17 Varrão De ling lat VII 88 18 Hesíodo Opera 701 Macróbio Sat I 16 Cíc De legib II 11 19 RigVeda tr Langlois t I p 113 As leis de Manu mencionam frequentemente os ritos particulares de cada família VIII 3 IX 7 20 Sófocles Antíg 199 Ibid 659 Confrontar com Aristófanes Vespas 388 Ésquilo Pers 404 Sófocles Electra 411 Platão Leis V p 729 Di generis Ovídio Fast II 631 21 Os Vedas chamam de fogo sagrado a causa da posteridade masculina Vide o Mitakchara trad Orianne p 139 20 LIVRO SEGUNDO A FAMÍLIA CAPÍTULO I A RELIGIÃO FOI O PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DA FAMÍLIA ANTIGA Se nós nos transportarmos em pensamento para o seio dessas antigas gerações de homens encontraremos em cada casa um altar e ao redor desse altar a família reunida Ela se reúne cada manhã para dirigir ao fogo sagrado suas preces e cada noite para invocálo uma vez mais Durante o dia a família reúnese ainda ao seu redor para as refeições que dividem piedosamente depois da prece e da libação Em todos esses atos religiosos canta em comum os hinos que seus pais lhe ensinaram Fora da casa bem perto no campo vizinho há um túmulo É a segunda morada da família Lá repousam em comum várias gerações de antepassados a morte não os separou Nessa segunda existência permanecem juntos e continuam a formar uma família indissolúvel Entre a parte viva e a parte morta da família não há senão essa distância que separa a casa do túmulo Em determinados dias indicados segundo a religião doméstica de cada um os vivos se reúnem ao pé dos antepassados oferecem lhes o banquete fúnebre derramam sobre eles vinho e leite oferecemlhes presentes e frutos ou queimam em sua honra as carnes de uma vítima Em troca dessas ofertas pedemlhes proteção chamamnos de deuses e pedem para que tornem seus campos férteis a casa próspera e os corações virtuosos O princípio da família antiga não é apenas a geração Isso pode ser provado pelo fato de a irmã não ser na família o mesmo que o irmão também o filho emancipado ou a filha casada deixam de fazer parte da família por completo enfim muitas disposições importantes nas leis gregas e romanas que teremos ocasião de examinar mais adiante nos induzem a pensar assim O princípio da família não é mais o afeto natural porque o direito grego e o direito romano não dão importância alguma a esse sentimento Ele pode existir no fundo dos corações mas nada representa em direito O pai pode amar a filha mas não pode legarlhe os bens As leis da sucessão isto é as que entre todas as outras atestam mais fielmente as ideias que os homens tinham da família estão em contradição flagrante quer com a ordem de nascimento quer com o afeto natural entre os membros de uma família1 Os historiadores do direito romano tendo justamente notado que nem o afeto nem o parentesco eram o fundamento da família romana julgaram que tal fundamento devia residir no poder do pai ou do marido Fazem desse poder uma espécie de instituição primordial mas não explicam como se formou a não ser pela superioridade de força do marido sobre a mulher ou do pai sobre os filhos Ora é grave erro colocar a força como origem do direito Aliás mais adiante veremos que a autoridade paterna ou marital longe de ter sido causa primeira foi também efeito originouse da religião e foi por ela estabelecida Não é portanto o princípio que constituiu a família O que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o nascimento que o sentimento que a força física é a religião do fogo sagrado e dos antepassados Essa religião faz com que a família forme um só corpo nesta e na outra vida A família antiga é mais uma associação religiosa que uma 21 associação natural Assim veremos mais adiante que a mulher será realmente levada em conta quando for iniciada no culto com a cerimônia sagrada do casamento o filho não será mais considerado pela família se renunciar ao culto ou for emancipado o filho adotivo pelo contrário será considerado filho verdadeiro porque se não possui vínculos de sangue tem algo melhor que é a comunhão do culto o legatário que se negar a adotar o culto dessa família não terá direito à sucessão enfim o parentesco e o direito à herança serão regulamentados não pelo nascimento mas pelos direitos de participação no culto de acordo com o que a religião estabeleceu Sem dúvida não foi a religião que criou a família mas foi certamente a religião que lhe deu regras resultando daí que a família antiga recebeu uma constituição muito diferente da que teria tido se houvesse sido constituída baseandose apenas nos sentimentos naturais A antiga língua grega tinha uma palavra muito significativa para designar a família diziase epístion palavra que significa literalmente aquilo que está perto do fogo Uma família era um grupo de pessoas às quais a religião permitia invocar os mesmos manes e oferecer o banquete fúnebre aos mesmos antepassados2 Notas Livro II Cap I 1 É evidente que aqui falamos do direito mais antigo Veremos mais adiante que essas velhas leis foram modificadas 2 Heródoto V 73 I 176 Plutarco Rômulo 9 CAPÍTULO II O CASAMENTO A primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu foi na verdade o casamento É necessário notar que essa religião do lar e dos antepassados que se transmitia de varão para varão não pertencia contudo exclusivamente ao homem a mulher tomava parte no culto Como filha assistia aos atos religiosos do pai como casada aos do marido Somente por isso se pode avaliar o caráter essencial da união conjugal entre os antigos Duas famílias vivem uma ao lado da outra mas possuem deuses diversos Em uma delas a jovem participa desde a infância da religião do pai invoca seu lar oferecelhe todos os dias libações enfeitao com flores e grinaldas nos dias festivos pedelhe proteção agradecelhe benefícios Esse fogo paterno é o seu deus Se um jovem de outra família a pede em casamento para ela isso significa muito mais do que passar de uma casa para outra Tratase de abandonar o lar paterno para invocar daí por diante os deuses do esposo Tratase de mudar de religião de praticar outros ritos de pronunciar outras orações Tratase de deixar o deus de sua infância para colocarse sob o império de um deus desconhecido E ela não espera permanecer fiel a um honrando a outro porque um dos princípios imutáveis dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares nem duas séries de antepassados A partir do casamento diz um antigo a mulher não tem nada mais em comum com a religião doméstica dos pais ela passa a sacrificar aos manes do marido1 O casamento portanto é ato sério para a jovem e não o é menos para o esposo porque a religião exige que se nasça junto ao fogo sagrado para terse o direito de oferecer lhe sacrifícios E no entanto o rapaz vai introduzir em seu lar uma estranha em sua companhia oficiará as cerimônias misteriosas do culto revelandolhe ritos e fórmulas que constituem patrimônio de família Não há nada mais precioso que essa herança os deuses 22 ritos e hinos que recebeu dos pais é quem o protege na vida e lhe promete riqueza felicidade virtude No entanto em vez de guardar para si esse poder tutelar como o selvagem guarda um ídolo ou amuleto vai admitir uma mulher para participante dos mesmos Desse modo quando penetramos o pensamento dos antigos vemos a importância que tem para eles a união conjugal e quanto lhe é imprescindível a intervenção da religião Não seria portanto necessário para que a jovem fosse iniciada no culto que iria seguir uma cerimônia sagrada de iniciação Para tornarse sacerdotisa de um novo fogo não haveria uma espécie de ordenação ou de adoção O casamento era a cerimônia sagrada que deveria produzir esses grandes efeitos Os escritores latinos e gregos têm o hábito de designar o casamento por palavras que indicam ato religioso2 Pólux que viveu no tempo dos Antoninos mas que podia manusear toda uma antiga literatura que não possuímos mais diz que nos tempos remotos em lugar de designar o casamento por seu nome particular gámos designavamno simplesmente pela palavra télos que significa cerimônia sagrada3 como se o casamento fosse nesses tempos antigos a cerimônia sagrada por excelência Ora a religião que celebrava o casamento não era a de Júpiter de Juno ou dos outros deuses do Olimpo A cerimônia não era realizada em templo era realizada em casa presidida pelo deus doméstico Na verdade quando a religião dos deuses do céu se tornou preponderante não foi mais possível deixar de invocálos também nas preces do casamento tomouse então o costume de ir antes aos templos para oferecer sacrifícios a tais deuses sacrifícios esses que eram conhecidos como prelúdios do casamento4 Mas a parte principal e essencial da cerimônia sempre devia realizarse diante do lar doméstico Entre os gregos a cerimônia do casamento compunhase por assim dizer de três atos O primeiro realizavase diante do lar paterno enghyesis o terceiro no lar do marido télos e o segundo era a passagem de um para outro pompé 1 Na casa paterna em presença do pretendente o pai de ordinário rodeado pela família oferece um sacrifício Terminado este declara enquanto pronuncia uma fórmula sacramental que dá a filha ao homem que a pediu Essa declaração é absolutamente indispensável para o casamento porque a jovem não poderia ir adorar o lar do esposo se seu pai não a houvesse antes desligado do lar paterno Para ingressar na nova religião deve estar livre de todos os laços ou vínculos da religião primitiva5 2 A jovem é levada para a casa do marido Às vezes é o próprio marido que a conduz6 Em algumas cidades o encargo de levar a jovem cabia a um daqueles homens que entre os gregos estavam revestidos de caráter sacerdotal e que chamavam de arautos7 A jovem comumente é colocada sobre um carro8 o rosto coberto com um véu e à cabeça leva uma coroa O uso da coroa como veremos muitas vezes era um costume observado em todas as cerimônias do culto Os vestidos são brancos O branco era a cor dos vestidos em todos os atos religiosos Precedemna carregando archotes é o archote nupcial9 Em todo o percurso cantam a seu redor um hino religioso cujo estribilho é o seguinte õ hymén õ hyménaie Esse hino era conhecido por himeneu e a importância desse canto sagrado era tão grande que dava nome a toda cerimônia10 A jovem não entra por si mesma em sua nova morada É necessário que o marido a carregue que simule um rapto que grite um pouco e que as mulheres que a acompanham finjam defendêla Por que esse rito Seria um símbolo do pudor feminino Isso é pouco provável ainda não chegou o momento do pudor porque o que se vai realizar por primeiro nessa casa é uma cerimônia religiosa Será que esse rapto simulado não quer antes significar que a mulher que vai oferecer sacrifícios no novo lar não tem por si mesma nenhum direito que ela não o adota por sua própria vontade e que é necessário que o dono da nova casa e seu respectivo deus a introduza à força Seja o que for depois de uma luta fictícia o esposo erguea nos braços 23 e a introduz na casa tendo grande cuidado para que seus pés não toquem na soleira da porta11 O que precede não é senão preparação e prelúdio da cerimônia O ato sagrado vai ter início no interior da casa 3 À frente do fogo sagrado a esposa é colocada em presença da divindade doméstica É aspergida com água lustral e toca o fogo sagrado12 Dizemse orações Depois os esposos compartilham um bolo um pão e algumas frutas13 Essa espécie de refeição ligeira que começa e termina com uma libação e uma prece essa comunhão de alimentos diante do fogo sagrado põe os dois esposos em comunhão religiosa como também em comunhão com os deuses domésticos14 O casamento romano assemelhavase muito ao casamento grego e como ele constava de três atos traditio deductio in domum confarreatio 1 A jovem deixa o lar paterno Como não está ligada a esse lar por direito próprio mas apenas pela mediação do pai de família somente a autoridade do pai pode livrála desse laço A tradição é portanto formalidade indispensável15 2 A jovem é conduzida à casa do esposo Como na Grécia ela é velada usa coroa e um archote nupcial precede o cortejo16 Cantase a seu redor um hino religioso As palavras desse hino talvez com o tempo tenham mudado acomodandose às variações das crenças e do modo de falar mas o estribilho sacramental continuou sempre sem alteração alguma era a palavra Talássia vocábulo que os romanos do tempo de Horácio compreendiam tanto quanto os gregos compreendiam a palavra hyménaie que era provavelmente a relíquia sagrada e inviolável de antiga fórmula17 O cortejo pára diante da casa do esposo onde apresentam à jovem fogo e água O fogo é o emblema da divindade doméstica a água é a água lustral que serve para a família em todos os atos religiosos18 Para que a jovem entre na casa é necessário como na Grécia simular um rapto19 O esposo deve erguêla nos braços e carregála tomando cuidado para que não toque a soleira da porta com os pés 3 A esposa é conduzida diante do fogo onde estão os penates onde todos os deuses domésticos e as imagens dos antepassados agrupamse ao redor do fogo sagrado Os dois esposos como na Grécia oferecem um sacrifício fazem libações pronunciam algumas preces e comem juntos um manjar de flor de farinha panis farreus20 A consumpção desse manjar em meio à récita de preces na presença e sob os olhos das divindades da família é o que constitui a união santa do esposo e da esposa21 Desde esse instante ambos estão unidos no mesmo culto A mulher tem os mesmos deuses os mesmos ritos as mesmas orações as mesmas festas que o marido Daí essa velha definição de casamento que os jurisconsultos nos conservaram Nuptiae sunt divini juris et humani communicatio E esta outra Uxor socia humanae rei atque divinae22 É que a mulher começou a participar da religião do marido mulher a quem os próprios deuses como diz Platão introduziram na nova casa A mulher assim casada continua a cultuar os mortos mas não é mais a seus antepassados que oferece o banquete fúnebre não tem mais esse direito O casamento desligoua por completo da família do pai quebrando todos os liames religiosos que a ligavam a ela É aos antepassados do marido que oferece sacrifícios pertence agora à sua família e eles se tornaram seus antepassados O casamento proporcionoulhe um segundo nascimento De ora em diante ela é a filha do marido filiae loco dizem os jurisconsultos Não se pode pertencer nem a duas famílias nem a duas religiões domésticas a mulher passa única e exclusivamente a fazer parte da família e religião do marido Veremos as consequências dessa regra no direito de sucessão A instituição do casamento sagrado também deve ser tão antiga na raça indo europeia quanto a religião doméstica porque uma não existe sem a outra Essa religião ensina ao homem que a união conjugal é algo mais que uma relação de sexos e uma afeição passageira unindo os cônjuges pelo laço 24 poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças Por sua vez a cerimônia das núpcias era tão solene e produzia efeitos tão graves que não nos devemos surpreender se aqueles homens a julgavam permitida e possível com uma só mulher em cada casa Tal religião não podia admitir a poligamia Pensase também que essa união era indissolúvel e que o divórcio era quase impossível23 O direito romano facilmente permitia dissolver o casamento por coemptio ou por usus mas a dissolução do casamento religioso era muito difícil Para que houvesse ruptura faziase necessária nova cerimônia religiosa porque somente a religião podia desunir o que havia unido O efeito da confarreatio não podia ser destruído senão pela diffarreatio Os dois esposos que desejavam o divórcio apresentavamse pela última vez diante do fogo sagrado comum na presença de um sacerdote e de testemunhas Como no dia do casamento ofereciase aos esposos um bolo de flor de farinha24 Mas provavelmente em lugar de comêlo eles o rejeitavam Depois em lugar de preces pronunciavam fórmulas de caráter estranho severo vingativo terrível25 uma espécie de maldição pela qual a mulher renunciava ao culto e aos deuses do marido Desde esse momento o laço religioso estava rompido Com o término da comunhão de culto toda outra comunhão cessava por direito e o casamento ficava dissolvido Notas Livro II Cap II 1 Dicearca citado por Estêvão de Bizâncio 2 Tyein ghámon sacrum nuptiale 3 Pólux III 3 38 4 Pólux III 38 5 Heródoto VI 130 Iseu De Philoctem hered 14 Demóstenes dá algumas palavras da fórmula In Stephanum II 18 Essa parte do casamento chamavase écdosis traditio Pólux III 35 Demóstenes Pro Phormione 32 6 Pólux III 41 7 Plutarco Quest grecq 27 8 Plutarco Quest rom 29 Photius Lex p 52 9 Ilíada XVIII 492 Hesíodo Scutum 275 Eurípides Ifig in Aulis 732 Fenícias 344 Helena 722725 Pólux III 41 Luciano Aétion 5 10 Ilíada XVIII 495 Hesíodo Scutum 280 Aristófanes Aves 1720 Pag 1332 Pólux III 37 IV 80 Photius Blblioth c 230 11 Plutarco Licurgo 15 Dionísio de Halicarnasso II 30 12 Ignem undamque jugalem Valer Flaccus Argonaut VIII 245 13 Plutarco Sólon 20 Praec conjug I Idêntico costume entre os macedônios Quinto Cúrcio VIII 16 14 Platão Leis VIII p 841 Plutarco Teseu 10 Amatorius 4 15 Sobre as formas singulares da traditio e da sponsio em direito romano vide o texto curioso de Sérvio Sulpício em Aulo Gélio IV 4 C Plauto Aululária II 2 4149 II 3 4 Trinummus V 4 Cícero ad Atticum I 3 16 Ovídio Fastos II 558561 17 Plutarco Romulus 15 18 Varrão De líng Lat V 61 Plutarco Quest rom 1 Sérvio ad Aeneida IV 167 19 Plutarco Quest rom 29 Romulus 15 Macróbio Saturn I 15 Festo v rapi 20 Plínio Hist Nat XVIII 3 10 Dionísio de Halicarnasso II 25 Tácito Ann IV 16 XI 2627 Juvenal X 329336 Sérvio ad Aen IV 103 ad Georg I 31 Gaio I 110112 Ulpiano IX Digesto XXIII 2 1 Também entre os etruscos o casamento era celebrado com um sacrifício Varrão De re rust II 4 25 Idênticos costumes entre os antigos hindus Leis de Manu III 2730 172 VIII 227 IX 194 Mitakchara trad Orianne p 166 167 236 21 Falaremos mais adiante de outras formas de casamento que foram usadas entre os romanos e nas quais não intervém a religião Por agora basta dizer que o casamento sagrado nos parece o mais antigo porque corresponde às mais antigas crenças e não desapareceu senão depois que estas se enfraqueceram 22 Digesto XXIII 2 Código de Just IX 32 4 Dionísio de Halic n 25 23 Pelo menos a princípio Dionísio de Halicarnasso II 25 diz expressamente que nada podia dissolver tal casamento A faculdade do divórcio parece terse introduzido muito cedo no direito ático 24 Festo v Diffarreatio Pólux III c 3 Lêse em uma inscrição Sacerdos confarreationum et diffarreationum Orelli n 2648 25 Plutarco Quest rom 50 CAPÍTULO III CONTINUIDADE DA FAMÍLIA PROIBIÇÃO DO CELIBATO DIVÓRCIO EM CASO DE ESTERILIDADE DESIGUALDADE ENTRE FILHO E FILHA As crenças relativas aos mortos e o culto que lhes era devido constituíram a família antiga e lhe deram a maior parte de suas regras Vimos acima que o homem depois da morte era considerado pessoa feliz e divina com a condição porém de que os vivos lhe oferecessem continuamente banquetes públicos Se essas ofertas cessassem o morto decairia para uma esfera inferior tornandose demônio desgraçado e malfazejo Porque quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida futura não pensaram em recompensas e castigos acreditaram que a felicidade do morto não dependia da conduta que havia tido em vida mas da que seus descendentes tinham a seu respeito Por isso cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos derivando daí em primeiro lugar a regra de que cada família devia perpetuarse para sempre Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse No túmulo onde viviam não tinham outra preocupação Seu único pensamento como seu único interesse era ter sempre um varão de seu sangue para levarlhe ofertas ao túmulo Também os hindus acreditavam que os mortos repetiam continuamente Que nasçam sempre em nossa estirpe filhos que nos tragam arroz leite e mel Dizia ainda A extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma os antepassados privados das ofertas precipitamse na morada dos infelizes1 Os homens da Itália e da Grécia pensaram assim por muito tempo Se não nos deixaram em seus escritos uma expressão de suas crenças tão nítida como a que encontramos nos velhos livros do Oriente pelo menos suas leis estão ainda lá para atestar suas antigas opiniões Em Atenas a lei encarregava o primeiro magistrado da cidade de velar para que nenhuma família viesse a se extinguir2 Da mesma forma a lei romana cuidava da continuidade do culto doméstico3 Lêse em um discurso de orador ateniense Não há homem que sabendo que deve morrer cuide tão pouco de si mesmo a ponto de deixar a família sem descendentes porque então não haveria ninguém para prestarlhe o culto devido aos mortos4 Cada um portanto tinha grande interesse em deixar um filho convencido de que disso dependia a felicidade de sua vida futura Era até um dever para com os antepassados porque sua felicidade durava somente enquanto existisse a família Também as leis de Manu assim 26 denominavam o filho mais velho aquele que é gerado para o cumprimento do dever Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga A religião que a formou exige imperiosamente sua continuação Uma família que se extingue é um culto que morre É necessário imaginar essas famílias na época em que as crenças ainda não haviam sido alteradas Cada uma delas possui religião e deuses próprios precioso depósito sobre o qual deve velar A maior desgraça que sua piedade tem a temer é a extinção da estirpe porque então sua religião desapareceria da terra seu lar seria extinto toda a série dos mortos esquecida e abandonada à eterna miséria O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto Em virtudes dessas opiniões o celibato devia ser ao mesmo tempo impiedade grave e desgraça impiedade porque o celibatário punha em perigo a felicidade dos manes de sua família desgraça porque ele próprio não devia receber nenhum culto após a morte desconheceria assim o que alegra os manes Era ao mesmo tempo para ele e seus antepassados uma espécie de condenação Podese pensar muito bem que na falta de leis essas crenças religiosas por muito tempo teriam bastado para impedir o celibato Mas parece que desde que houve leis elas estabeleceram que o celibato era coisa má e digna de castigo Dionísio de Halicarnasso que consultou os velhos anais de Roma disse existir uma lei antiga que obrigava os jovens a casar5 O tratado das leis de Cícero que reproduz quase sempre sob forma filosófica as antigas leis de Roma contém uma que proíbe o celibato6 Em Esparta a legislação de Licurgo castigava com pena severa o homem que não se casasse7 Sabese por muitas anedotas que quando o celibato deixou de ser proibido pelas leis continuou a sêlo pelos costumes Parece enfim por uma passagem de Pólux que em muitas cidades gregas a lei punia o celibato como crime8 Isso era conforme às crenças o homem não pertencia a si próprio mas à família Era o membro de uma série que não devia interromper Não nascera por acaso deram lhe a vida para que continuasse a observar um culto não devia deixar a vida sem estar seguro de que esse culto seria continuado depois de sua morte Mas não bastava gerar filhos O filho que devia perpetuar a religião doméstica devia ser fruto de casamento religioso O bastardo filho natural que os gregos chamavam nóthos e os latinos spurius não podia desempenhar o papel que a religião confiava ao filho Com efeito os laços sanguíneos apenas não constituíam a família eram necessários ainda os laços de culto Ora o filho nascido de mulher que não se havia unido ao esposo pela cerimônia do casamento não podia tomar parte no culto9 Não tinha direito de oferecer o banquete fúnebre e a família não se perpetuava por ele Veremos mais adiante que pela mesma razão não tinha direito à herança O casamento portanto era obrigatório Não tinha por finalidade o prazer seu objetivo principal não era a união de duas criaturas que se convinham e que desejavam unirse para a felicidade ou sofrimentos da vida O efeito do casamento aos olhos da religião e das leis era unindo dois seres no mesmo culto doméstico dar origem a um terceiro apto a perpetuar esse culto Isso pode ser claramente constatado pela fórmula sacramental pronunciada no ato do casamento Ducere uxorem liberum quaerendorum causa diziam os romanos Páidon ep arótoi gnesíon diziam os gregos10 Como o casamento não era contratado senão para perpetuar a família parece justo que podia ser anulado se a mulher fosse estéril Nesses casos o divórcio sempre constituiu direito entre os antigos é até possível que tenha sido uma obrigação Na Índia a religião prescrevia que a mulher estéril fosse substituída depois de oito anos11 Nenhum texto formal prova que esse dever fosse idêntico tanto na Grécia quanto em Roma Contudo Heródoto cita dois reis de Esparta que foram constrangidos a repudiar as mulheres porque eram estéreis12 Quanto a Roma é bastante conhecida a história de Carvílio Ruga cujo divórcio é o primeiro mencionado pelos Anais de Roma Carvílio Ruga diz Aulo Gélio homem de grande família separouse da 27 mulher mediante divórcio porque não podia ter filhos dela Amavaa ternamente e só podia louvarlhe a conduta Mas sacrificou seu amor à religião do juramento porque havia jurado na fórmula do casamento que a tomava por esposa a fim de ter filhos13 A religião dizia que a família não podia extinguirse toda afeição e direito natural devia ceder diante dessa regra absoluta Se o casamento era estéril por causa do marido nem assim a família podia deixar de continuar Nesse caso um irmão ou parente do marido devia substituílo e a mulher era impedida de se divorciar A criança nascida dessa união era considerada filha do marido e continuava seu culto Tais eram as regras entre os antigos hindus tornamos a encontrálas nas leis de Atenas e de Esparta14 Tal era a força imperiosa da religião Tal a importância do dever religioso que passava à frente de todos os outros Com muito mais razão as legislações antigas prescreviam o casamento da viúva quando não tivesse filhos com o parente mais próximo do marido O filho desse matrimônio era considerado filho do marido defunto15 O nascimento de uma menina não satisfazia o objetivo do casamento Com efeito a filha não podia continuar o culto porque no dia em que se casasse renunciaria à família e ao culto do pai e passava a pertencer à família e religião do marido A família como o culto não continuava senão pelos varões fato capital cujas consequências veremos adiante Portanto o filho é que era esperado é que era necessário era ele que os antepassados a família e o lar reclamavam Por ele diziam as velhas leis dos hindus o pai paga suas dívidas para com os manes dos antepassados e assegura a si próprio a imortalidade Esse filho não era menos precioso aos olhos dos gregos porque mais tarde devia oferecer sacrifícios e banquetes fúnebres e conservar por seu culto a religião doméstica Assim no velho Ésquilo o filho é chamado salvador do lar paterno16 A entrada desse filho na família era assinalada por um ato religioso Antes de mais nada era necessário que fosse aceito pelo pai Este como dono e mestre vitalício do fogo sagrado e representante dos antepassados devia decidir se o recémnascido era ou não da família O nascimento constituía apenas o laço físico a declaração do pai constituía o laço moral e religioso Essa formalidade era igualmente obrigatória em Roma na Grécia e na Índia Além disso como vimos para a mulher o filho necessitava de uma espécie de iniciação Esta era feita pouco tempo depois do nascimento em Roma no nono dia na Grécia no décimo dia na Índia no décimo ou décimo segundo dia17 Nesse dia o pai reunia a família chamava testemunhas oferecia sacrifício aos manes A criança era apresentada aos deuses domésticos uma mulher carregavao nos braços e correndo dava com ele várias voltas ao redor do fogo sagrado18 Essa cerimônia tinha duplo objetivo primeiro purificar a criança19 isto é tirarlhe a impureza que os antigos supunham havia contraído pelo único fato da gestação e depois iniciálo no culto sagrado doméstico A partir desse momento a criança era admitida naquela espécie de sociedade sagrada ou pequena igreja como era chamada a família Tinha agora uma religião praticava seus ritos estava apta a recitar suas preces honrava os antepassados e mais tarde por sua vez viria a ser um antepassado honrado Notas Livro II Cap III 1 BhagavadGita I 40 2 Iseu De Apollod hered 30 Demóstenes In Macart 75 3 Cícero De legib II 19 Dionísio IX 22 4 Iseu VII De Apollod her 30 Cf Estobeu Serm LXVII 25 5 Dionísio de Halicarnasso IX 22 6 Cícero De legibus III 2 28 7 Plutarco Lycurg 15 Apoteg dos Lacedemônios Cf Vida de Lisandro 30 8 Pólux III 48 9 Iseu VI De Philoct her 47 Demóstenes In Macartatum 51 10 Menandro Fragm 185 Demóstenes In Neaeram 122 Luciano Timon 17 Ésquilo Agamemnon 1207 Alcifron I 16 11 Leis de Manu IX 81 12 Heródoto V 39 VI 61 13 Aulo Gélio IV 3 Valério Máximo II 1 4 Dionísio II 25 14 Plutarco Sólon 20 É assim que devemos compreender o que Xenofonte e Plutarco dizem de Esparta Xen Resp Laced I Plutarco Licurgo 15 Cf Leis de Manu IX 121 15 Leis de Manu IX 69 146 O mesmo acontecia entre os hebreus Deuteronômio 25 16 Ésquilo Coéf 264 262 Também em Eurípídes Fenic 16 Laio pede a Apolo que lhe dê filhos varões 17 Aristófanes Aves 922 Demóstenes in Baeot de dote 28 Macróbio Sat I 17 Leis de Manu II 30 18 Platão Teeteta LIsías em Harpocrácio v Amphidrômia 19 Macróbio Sat I 17 CAPÍTULO IV ADOÇÃO E EMANCIPAÇÃO O dever de perpetuar o culto doméstico foi a fonte do direito de adoção entre os antigos A mesma religião que obrigava o homem a se casar que concedia o divórcio em caso de esterilidade e que em caso de impotência ou de morte prematura substituía o marido por um parente oferecia ainda à família um último recurso para escapar à tão temida desgraça da extinção esse recurso consistia no direito de adotar Aquele a quem a natureza não deu filhos pode adotar um para que as cerimônias fúnebres não se extingam Assim fala o velho legislador dos hindus1 Temos um curioso discurso de um orador ateniense em processo em que se contestava a um filho adotivo a legitimidade de sua adoção O defensor mostranos a princípio por que motivo se adotava um filho Menéclio diz ele não queria morrer sem filhos queria deixar alguém que o enterrasse e que lhe oferecesse o culto fúnebre Em seguida demonstra o que poderá acontecer se o tribunal anular sua adoção e não só o que acontecerá a ele mas àquele que o adotou Menéclio morreu mas é ainda o interesse de Menéclio que está em jogo Se anulardes a adoção fareis de Menéclio um defunto sem filhos e consequentemente ninguém lhe oferecerá sacrifícios fúnebres e finalmente seu culto se extinguira2 Adotar um filho portanto era velar pela continuidade da religião doméstica pela salvação do fogo sagrado pela continuação das ofertas fúnebres pelo repouso dos manes dos antepassados Como a adoção não tinha outra razão de ser além da necessidade de evitar a extinção do culto seguiase daí que não era permitida senão a quem não tinha filhos As leis dos hindus é formal a esse respeito3 A de Atenas não o é menos todo o discurso de Demóstenes contra Leocares o prova4 Nenhum texto preciso prova que o mesmo acontecesse com o direito romano antigo e sabemos que no tempo de Gaio um mesmo homem podia ter filhos naturais e por adoção Parece contudo que esse ponto não era admitido em direito nos tempos de Cícero porque em uma de suas arengas o orador se exprime assim Qual é o direito que rege a 29 adoção Não é necessário que o adotante esteja em idade de não ter mais filhos e que antes de adotar tenha procurado têlos Adotar é pedir à religião e à lei o que não se pôde conseguir com a natureza5 Cícero ataca a adoção de Clódio baseandose no argumento de que o homem que o adotara já tinha um filho e afirmando que aquela adoção era contrária ao direito religioso Quando se adotava um filho era necessário antes de mais nada iniciálo nos segredos do culto introduzilo na religião doméstica aproximálo de seus penates6 Por isso a adoção era realizada por uma cerimônia sagrada que parece ter sido muito semelhante à que assinalava o nascimento de um filho pela qual o adotado era admitido ao lar e se associava à religião do pai adotivo Deuses objetos sagrados ritos preces tudo se tornava comum entre ambos Diziamlhe então In sacra transiit Passou para o culto de sua nova família7 Por isso mesmo o filho adotivo renunciava ao culto da antiga8 Vimos com efeito que de acordo com essas velhas crenças o mesmo homem não podia sacrificar a dois lares nem honrar duas séries de antepassados Admitido em nova família a casa paterna tornavaselhe estranha Não tinha nada mais em comum com o lar que o vira nascer e não podia mais oferecer banquetes fúnebres a seus antepassados Quebrarase o vínculo do nascimento o vínculo do novo culto apoderavase dele9 O homem se tornava tão completamente estranho à antiga família que se morresse seu pai natural não tinha direito de se encarregar dos funerais ou de conduzir o enterro O filho adotivo não podia mais voltar para a antiga família quando muito a lei permitialhe que tendo um filho o deixasse em seu lugar na família que o adotara Consideravase que assim a continuidade dessa família estava assegurada ele podia sair Mas nesse caso tinha de romper todos os laços que o ligavam a seu filho10 À adoção correspondia como correlativo a emancipação Para que um filho pudesse entrar na nova família era necessário que pudesse sair da antiga isto é que sua religião o permitisse11 O efeito principal da emancipação era a renúncia ao culto da família onde nascera Os romanos designavam esse ato pelo nome bem significativo de sacrorum detestatio12 O filho emancipado não era mais membro da família nem pela religião nem pelo direito Notas Livro II Cap IV 1 Leis de Manu IX 10 2 Iseu De Menecl hered 1046 O mesmo orador no discurso em defesa da herança de Astifilos c 7 mostra um homem que antes de morrer adotou um filho a fim de que este o honrasse depois da morte e continuasse sua descendência 3 Leis de Manu IX 168 174 DattacaSandrica tr Orianne p 260 4Vide também Iseu De Meneclis hered 1114 5 Cícero Pro domo 13 14 Comparar o que diz Aulo Gélio com relação à adrogação que era a adoção de um homo sui juris Aulo Gélio V 19 6 Iseu De Apollod her 1 Cícero Pro domo 13 Tácito Hist I 15 7 Valério Máximo VII 7 Cícero Pro domo 13 8 Cícero Pro domo 9 Tito Lívio XLV 40 10 Iseu De Philoct her 45 De Aristarchi her 11 Demóstenes in Leocharem 68 Antiphon Fragm 15 Harpocrácio ed Bekker p 140 Comparar com Leis de Manu IX 142 11 Sérvio ad Aen II 156 12 Aulo Gélio XV 27 Comparar com o que os gregos chamavam de apokéryxis Platão Leis XI p 928 Cf Luciano XXIX o filho deserdado Pólux IV 93 Hesíquio vApokeryetós 30 CAPÍTULO V O PARENTESCO O QUE OS ROMANOS ENTENDIAM POR AGNAÇÃO Platão diz que parentesco é a comunidade dos mesmos deuses domésticos1 Dois irmãos diz ainda Plutarco são dois homens que têm o dever de fazerem os mesmos sacrifícios de terem os mesmos deuses paternais de partilharem do mesmo túmulo2 Quando Demóstenes nos quer provar que dois homens são parentes mostra que adotam o mesmo culto e oferecem o banquete fúnebre na mesma sepultura Com efeito a religião doméstica é que constituía o parentesco Dois homens podiam dizerse parentes quando tivessem os mesmos deuses o mesmo lar o mesmo banquete fúnebre Ora observamos precedentemente que o direito de oferecer sacrifícios ao fogo sagrado só se transmitia de varão para varão e que o culto dos mortos não se dirigia senão aos ascendentes em linha masculina Resultou portanto dessa regra religiosa que não se podia ser parente pelas mulheres Na opinião das gerações antigas a mulher não transmitia nem a existência nem o culto O filho recebia tudo do pai Não se podia aliás pertencer a duas famílias invocar dois lares o filho não tinha portanto outra religião nem outra família que a do pai3 Como poderia pois ter uma família materna Sua mãe durante a celebração dos ritos matrimoniais renunciara de modo absoluto à própria família desde esse tempo oferecera banquetes fúnebres aos antepassados do esposo como se fora sua filha e não oferecia mais a seus próprios antepassados porque não era mais considerada como descendente deles Não conservava laços nem religiosos nem de direito com a família na qual nascera Com muito mais razão portanto seu filho nada tinha a ver com essa família O princípio do parentesco não era o ato material do nascimento era o culto Isso se pode ver claramente na Índia Aí o chefe de família duas vezes por mês oferece o banquete fúnebre apresenta um bolo aos manes de seu pai outro ao avô paterno um terceiro ao bisavô paterno e jamais àqueles dos quais descende pelas mulheres Depois subindo mais alto mas sempre na mesma linha faz uma oferta ao quarto ao quinto e ao sexto ascendente com a diferença de que para estes a oferenda é mais reduzida uma simples libação de água e alguns grãos de arroz Esse é o banquete fúnebre e é pela observância desses ritos que se mede o parentesco Quando dois homens que oferecem separadamente seus banquetes remontando cada um a uma série de seus ancestrais encontrarem um que seja comum a ambos esses dois homens são parentes Chamamse samanodacas se o antepassado comum é daqueles a quem se oferece apenas libação de água e sapindas se lhe oferecem também um bolo4 Calculando de acordo com nossos costumes o parentesco dos sapindas iria até o sétimo grau e a dos samanodacas até o décimo quarto Em um e outro caso o parentesco é conhecido pelos sacrifícios comuns e por esse mesmo sistema vêse por que o parentesco pelas mulheres não pode ser admitido No Ocidente acontecia o mesmo Muito se discutiu sobre o que os jurisconsultos romanos entendiam por agnação Mas o problema tornase de fácil resolução se compararmos a agnação com a religião doméstica Assim como a religião não se transmitia senão de varão para varão assim também ficou atestado pelos antigos jurisconsultos que dois homens não podiam ser agnados entre si senão quando remontando sempre de varão em varão encontravam antepassados comuns5 A regra para a agnação era portanto idêntica à do culto Entre essas duas coisas havia uma relação manifesta A agnação não era nada mais que o parentesco tal como a religião o estabeleceu a princípio 31 Para tornar esta verdade mais clara tracemos este quadro de uma família romana Lucius Cornelius Scipio morto no ano 250 aC P Cornelius Scipio Cn Cornelius Scipio P Cornelius Scipio Africanus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica P Cornelius Scipio Cornélia esposa de Sempronius Gracchus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica Corculum P Cornelius Scipio Aemilianus nascido na família Emília adotado pela família Cornélia Tibério e Caius Gracchus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica Serapio Nesse quadro a quinta geração que vivia pelo ano 140 antes de Jesus Cristo é representada por quatro pessoas Seriam todos eles parentes entre si Sêloiam de acordo com nossas ideias modernas mas não o eram na opinião dos romanos Examinemos com efeito se possuíam o mesmo culto doméstico isto é se faziam ofertas aos mesmos antepassados Suponhamos o terceiro Cipião Asiático o último de seu ramo oferecendo no dia determinado o banquete fúnebre remontando de varão em varão ele encontra por terceiro antepassado a Públio Cipião Do mesmo modo Cipião Emiliano oferecendo o sacrifício tornará a encontrar na série de seus ascendentes ao mesmo Públio Cipião Portanto Cipião Asiático e Cipião Emiliano são parentes entre si entre os hindus chamarse iam sapindas Por outro lado Cipião Serapião tem por quarto antepassado a Lúcio Cornélio Cipião que também é o quarto antepassado de Cipião Emiliano São portanto parentes entre si entre os hindus chamarseiam samanodacas Na língua jurídica e religiosa de Roma esses três Cipiões são agnados os dois primeiros em sexto grau o terceiro no oitavo grau em relação a eles O mesmo não acontece com Tibério Graco Este homem que de acordo com nossos costumes modernos seria o parente mais próximo de Cipião Emiliano não é seu parente nem em grau afastado Pouco importa com efeito para Tibério que ele seja filho de Cornélia a filha dos Cipiões nem ele nem a própria Cornélia pertencem a esta família pela religião Ele não tem outros antepassados senão os Semprônios e é a eles que oferece os banquetes fúnebres remontando à série de seus ascendentes não encontrará ninguém além de Semprônio Cipião Emiliano e Tibério Graco portanto não são agnados Os laços de sangue não bastam para estabelecer parentesco é necessário o laço do culto Por aí se compreende por que aos olhos da lei romana dois irmãos consanguíneos eram agnados e dois irmãos uterinos não o eram E nem se pode afirmar que a descendência pelos varões era o princípio imutável sobre o qual se baseava o parentesco Não era pelo nascimento mas pelo culto que se reconhecia verdadeiramente os agnados Com efeito o filho que a emancipação desligara do culto deixava de ser agnado de seu pai o estranho que havia sido adotado isto é admitido ao culto tornavase agnado do adotante e mesmo de toda a família Tanto é verdade que só religião é que determinava o parentesco Sem dúvida na Índia na Grécia como em Roma houve uma época em que o parentesco pelo culto não foi mais o único a ser considerado À medida que a antiga religião se enfraquece a voz do sangue fala mais alto e o parentesco por nascimento foi 32 reconhecido em direito Os romanos chamaram cognatio essa espécie de parentesco que era absolutamente independente das regras da religião doméstica Quando lemos os jurisconsultos desde Cícero até Justiniano vemos os dois sistemas de parentesco rivalizando entre si e disputando o domínio do direito Mas no tempo das Doze Tábuas somente se conhecia o parentesco por agnação que era o único que conferia direitos de sucessão Mais adiante veremos como o mesmo aconteceu entre os gregos Notas Livro II Cap V 1 Platão Leis V p 729 2 Plutarco De frat amore 7 3 Digesto liv 50 tít 14 196 4 Leis de Manu V 60 Mitakchara tr Orianne p 213 5 Gaio I 156 Id III 10 Ulpiano XXVI Institutas de Justiniano III 2 CAPÍTULO VI O DIREITO DE PROPRIEDADE Eis uma instituição dos antigos sobre a qual não devemos formar ideia pelo que vemos a nosso redor Os antigos basearam o direito de propriedade sobre princípios que não são mais os das gerações presentes e daqui resultou que as leis pelas quais o garantiram são sensivelmente diversas das nossas Sabemos que há raças que jamais chegaram a instituir entre si a propriedade privada outras só a admitiram depois de muito tempo e a muito custo Com efeito não é um problema fácil na origem das sociedades saber se o indivíduo pode apropriarse do solo e estabelecer uma união tão forte entre si e uma parte da terra a ponto de poder dizer Esta terra é minha esta terra é como que parte de mim mesmo Os tártaros admitem direitos de propriedade quando se trata de rebanhos e não o compreendem quando se trata do solo Entre os antigos germanos de acordo com alguns autores a terra não pertencia a ninguém todos os anos a tribo designava a cada um de seus membros um lote para cultivar lote que era trocado no ano seguinte O germano era proprietário da colheita e não da terra O mesmo acontece ainda em uma parte da raça semítica e entre alguns povos eslavos Pelo contrário as populações da Grécia e da Itália desde a mais remota antiguidade sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada Não ficou nenhuma lembrança histórica de época em que a terra fosse comum1 e também nada se vê que se assemelhe a essa divisão anual dos campos praticada entre os germanos Há até um fato bastante notável Enquanto as raças que não concediam ao indivíduo a propriedade do solo concedemlhe pelo menos tal direito sobre os frutos do trabalho isto é das colheitas entre os gregos acontecia o contrário Em algumas cidades os cidadãos eram obrigados a reunir em comum as colheitas ou pelo menos a maior parte delas e deviam consumilas em comum2 o indivíduo portanto não era absoluto senhor do trigo que havia colhido mas ao mesmo tempo por notável contradição tinha absolutos direitos de propriedade sobre o solo A terra para ele valia mais que a colheita Parece que entre os gregos a concepção do direito de propriedade tenha seguido caminho absolutamente oposto ao que parece natural Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo Seguiuse a ordem inversa Há três coisas que desde as mais antigas eras encontramse fundadas e 33 solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica a religião doméstica a família o direito de propriedade três coisas que tiveram entre si na origem uma relação evidente e que parecem terem sido inseparáveis A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião Cada família tinha seu lar e seus antepassados Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela e não protegiam senão a ela eram sua propriedade exclusiva Ora entre esses deuses e o solo os homens das épocas mais antigas divisavam uma relação misteriosa Tomemos em primeiro lugar o lar esse altar é o símbolo da vida sedentária como o nome bem o indica3 Deve ser colocado sobre a terra e uma vez construído não o devem mudar mais de lugar O deus da família deseja possuir morada fixa materialmente é difícil transportar a terra sobre a qual ele brilha religiosamente isso é mais difícil ainda e não é permitido ao homem senão quando é premido pela dura necessidade expulso por um inimigo ou se a terra não o puder sustentar por ser estéril Quando se constrói o lar é com o pensamento e a esperança de que continue sempre no mesmo lugar O deus ali se instala não por um dia nem pelo espaço de uma vida humana mas por todo o tempo em que dure essa família e enquanto restar alguém que alimente a chama do sacrifício Assim o lar toma posse da terra essa parte da terra torna se sua é sua propriedade E a família que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse altar fixase ao solo como o próprio altar A ideia de domicílio surge naturalmente A família está ligada ao altar o altar ao solo estabelecese estreita relação entre a terra e a família Aí deve ter sua morada permanente que jamais abandonará a não ser quando obrigada por força superior Como o lar a família ocupará sempre esse lugar Esse lugar lhe pertence é sua propriedade e não de um homem somente mas de toda uma família cujos diferentes membros devem um após outro nascer e morrer ali Sigamos o raciocínio dos antigos Dois lares representam duas divindades distintas que nunca se unem ou se confundem isso é tão verdade que o casamento entre duas famílias não estabelece aliança entre seus deuses O lar deve ser isolado isto é separado claramente de tudo o que não lhe pertence os estranhos não devem aproximarse dele no momento em que se celebram as cerimônias do culto não devem nem mesmo sêlo por isso os manes são conhecidos como deuses ocultos mychioi ou deuses interiores penates Para que essa regra religiosa seja rigorosamente cumprida é necessário que ao redor do altar a certa distância haja uma cerca Pouco importa que seja uma paliçada uma sebe ou um muro de pedras Seja qual for ela marca a divisa que separa o domínio de um lar Esse recinto é considerado sagrado4 Ultrapassálo é ato de impiedade O deus vela sobre ele e tomao sob sua guarda por isso dão a esse deus o epíteto de erkéios5 Essa linha divisória traçada pela religião e por ela protegida é o emblema mais certo a marca mais irrecusável do direito de propriedade Reportemonos às idades primitivas da raça ariana O recinto sagrado que os gregos chamam de érkos e os latinos de herctum e o recinto no qual a família tem sua casa seus rebanhos o pequeno campo que cultiva No meio levantase o lar protetor Vamos para as idades seguintes a população alcançou a Grécia e a Itália e construiu cidades As casas estão próximas umas das outras e no entanto não são contíguas O recinto sagrado ainda existe mas em proporções menores mais comumente ficou reduzido a um pequeno muro uma vala um sulco ou a uma simples faixa de terra de alguns pés de largura Seja como for duas casas não devem ser vizinhas a contiguidade é considerada impossível A mesma parede não pode ser comum a duas casas porque então o recinto sagrado dos deuses domésticos desapareceria Em Roma a lei fixa em dois pés e meio a largura do espaço que sempre deve separar duas casas e esse espaço é consagrado ao deus da divisa6 O resultado dessas velhas regras religiosas é que entre os antigos jamais se estabeleceu uma vida de comunidade O falanstério nunca foi conhecido O próprio Pitágoras não conseguiu estabelecer instituições às quais a religião íntima dos 34 homens resistia Não se encontra também em nenhuma época da vida dos antigos nada que se assemelhe a essa promiscuidade das aldeias tão comum na França do século doze Como cada família tinha seus deuses e seu culto devia ter também seu lugar particular sobre a terra seu domicílio isolado sua propriedade Os gregos diziam que o lar havia ensinado aos homens a construir casas7 Com efeito o homem fixado pela religião em um lugar que não pensava abandonar jamais logo deve ter pensado em levantar aí uma construção sólida A tenda convém ao árabe o carro ao tártaro mas uma família que tem um altar doméstico precisa de uma casa que dure À cabana de terra ou de madeira seguiuse logo a casa de pedra E esta não foi construída somente para a vida de um homem mas para a família cujas gerações deviam sucederse na mesma morada A casa situavase sempre no recinto sagrado Entre os gregos dividiase em duas partes o quadrado formado pela cerca a primeira parte era o pátio a casa ocupava a segunda parte O altar colocado mais ou menos no centro da área total encontravase assim no fundo do pátio e perto da entrada da casa Em Roma a disposição era diferente mas o princípio era o mesmo O altar ficava colocado no meio do recinto mas as paredes elevavamse ao seu redor pelos quatro lados de maneira a fechálo no meio de um pequeno pátio Vêse claramente o pensamento que inspirou esse sistema de construção as paredes levantamse ao redor do altar para isolálo e protegêlo e podemos afirmar como diziam os gregos que a religião ensinou a construir casas Nessa casa a família é senhora e proprietária a divindade doméstica lhe assegura esse direito A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses ela é o templo que os guarda Que há de mais sagrado diz Cícero que a morada de um homem Lá está o altar lá brilha o fogo sagrado lá estão as coisas santas e a religião8 Penetrar nessa casa com intenções malévolas era sacrilégio O domicílio era inviolável Segundo uma tradição romana o deus doméstico afugentava ladrões e afastava inimigos9 Passemos a outro objeto do culto o túmulo e veremos que a ele se ligam as mesmas ideias O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos porque por uma parte deviase cultuar os mortos e por outra a principal cerimônia desse culto isto é o banquete fúnebre devia ser realizado no mesmo lugar onde repousavam os antepassados10 A família tinha portanto um túmulo comum onde seus membros deviam repousar sucessivamente Para o túmulo observavamse as mesmas regras que para o fogo sagrado não era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura como não se podiam unir dois altares domésticos em uma só casa Tanto era impiedade enterrar um morto fora do túmulo da família como colocar nesse túmulo o corpo de um estranho11 A religião doméstica na vida ou na morte separava cada família de todas as outras e afastava severamente qualquer aparência de comunidade Assim como as casas não deviam ser contíguas os túmulos não deviam ser vizinhos cada um deles como a casa tinha uma espécie de baliza que o isolava Como o caráter de propriedade privada está manifesto em tudo isso Os mortos são deuses que pertencem apenas a uma família e que apenas ela tem o direito de invocar Esses mortos tomaram posse do solo vivem sob esse pequeno outeiro e ninguém que não pertença à família pode pensar em unirse a eles Ninguém aliás tem o direito de priválos da terra que ocupam um túmulo entre os antigos jamais pode ser mudado ou destruído12 as leis mais severas o proíbem Eis portanto uma parte da terra que em nome da religião tornase objeto de propriedade perpétua para cada família A família apropriouse da terra enterrando nela os mortos e ali se fixa para sempre O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente Esta terra é minha E ela lhe pertence de tal modo que lhe é inseparável não tendo nem mesmo o direito de desfazerse dela O solo onde repousam seus mortos é inalienável e imprescritível A lei romana exige que se uma família vende o campo onde está o túmulo continua no entanto proprietária desse túmulo e conserva eternamente o 35 direito de atravessar o campo para nele cumprir as cerimônias do culto13 Era antigo costume enterrar os mortos não em cemitérios ou à beira das estradas mas no campo de cada família Esse costume dos tempos antigos é confirmado por uma lei de Sólon e por diversas passagens de Plutarco14 Lemos em um discurso de Demóstenes que ainda em seu tempo cada família enterrava seus mortos no próprio campo e que quando se comprava uma propriedade na Ática nela encontravam a sepultura dos antigos proprietários15 Quanto à Itália esse mesmo costume nos é atestado por uma lei das Doze Tábuas pelos textos de dois jurisconsultos e por esta frase de Siculo Flaco Antigamente havia duas maneiras de colocar os túmulos uns punham nos no limite dos campos outros no meio16 De acordo com esse costume podese imaginar como a ideia de propriedade se tenha facilmente estendido da pequena colina onde repousavam os mortos ao campo que o rodeava Podese ler em livro do velho Catão uma oração pela qual um lavrador italiano rogava aos manes que velassem sobre seu campo guardandoo contra os ladrões e concedendolhe colheita abundante Assim as almas dos mortos estendiam sua ação tutelar e com ela o direito de propriedade até os limites do domínio Por meio delas a família era a única senhora daquele campo A sepultura havia estabelecido a união indissolúvel da família com a terra isto é a propriedade Entre a maior parte das sociedades primitivas foi pela religião que se estabeleceu o direito de propriedade Na Bíblia o Senhor diz a Abraão Sou o Eterno que te fez sair da Ur dos caldeus a fim de te dar este país E a Moisés Eu vos farei entrar no país que jurei dar a Abraão e que eu vos darei como herança Assim Deus proprietário primitivo por direito de criação delegou ao homem sua propriedade sobre uma parte do solo17 Há algo análogo entre as antigas populações grecoitálicas Não é verdade que a religião de Júpiter tenha estabelecido esse direito talvez porque ainda não existisse Os deuses que conferiram a cada família direitos sobre a terra foram os deuses domésticos o lar e os manes A primeira religião que teve poder sobre suas almas foi também a que instituiu entre eles a propriedade É bastante evidente que a propriedade privada era uma instituição da qual a religião doméstica não se podia eximir Essa religião prescrevia que se isolasse o domicílio e a sepultura a vida em comum portanto tornavase impossível A mesma religião ordenava que o altar fosse fixado ao solo e que a sepultura não fosse nem mudada nem destruída Suprimi a propriedade e o altar ficará errante as famílias confundirseão os mortos ficarão abandonados e sem culto Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente a família tomou posse do solo a terra de certo modo foi imbuída e penetrada pela religião do lar e dos antepassados Por essa razão o homem das antigas idades ficou dispensado de resolver problemas muito difíceis Sem discussão sem trabalho sem sombra de hesitação chegou de um só golpe e em virtude de suas crenças à concepção do direito de propriedade desse direito que é a origem de toda a civilização pois que por ele o homem beneficia a terra e se torna melhor a si mesmo Não foram as leis que a princípio garantiram o direito de propriedade foi a religião Cada domínio estava sob os olhos da divindade doméstica que velava sobre ele18 Cada campo devia estar rodeado como o vimos para a casa de uma cerca que o separava nitidamente dos domínios das outras famílias Essa cerca não era um muro de pedra era uma faixa de terra de alguns pés de largura que devia permanecer inculta e que a charrua jamais devia tocar Esse espaço era sagrado a lei romana declaravao imprescritível19 ele pertencia à religião Em determinados dias do mês e do ano o pai de família dava a volta a seu campo seguindo essa linha levava à sua frente as vítimas cantava hinos oferecia sacrifícios20 Com essa cerimônia acreditava despertar a benevolência dos deuses em relação a seu campo e à sua casa sobretudo marcava seu direito de propriedade levando ao redor do campo seu culto doméstico O caminho seguido pelas vítimas e as preces era o limite inviolável do domínio 36 Sobre essa linha de distância em distância o homem colocava algumas pedras grandes ou troncos de árvores denominados termos Podemos avaliar o que eram esses limites e que ideias inspiravam pela maneira pela qual a piedade dos homens depositavaos em terra Eis diz Siculo Flaco o que nossos antepassados faziam começavam por cavar um pequeno buraco e levando o termo à sua borda coroavamno de grinaldas de ervas e flores Depois ofereciam um sacrifício imolada a vítima derramavam o sangue no fosso na qual lançavam carvões acesos talvez acesos no fogo sagrado semente bolos frutas um pouco de vinho e mel Quando tudo se consumia sobre as cinzas ainda quentes enterravase a pedra ou o pedaço de madeira21 Vêse por aí claramente que essa cerimônia tinha por objeto fazer do termo uma espécie de representante sagrado do culto doméstico Para conservarlhe esse caráter cada ano renovavase o ato sagrado fazendo libações e recitando preces O termo colocado em terra era de algum modo a religião doméstica implantada no solo para marcálo para sempre como propriedade da família Mais tarde com a ajuda da poesia o termo foi considerado como um deus distinto e pessoal O uso dos termos ou limites sagrados dos campos parece ter sido universal na raça indoeuropeia Existia entre os hindus em idades remotíssimas e as cerimônias sagradas da demarcação tinha entre eles grande analogia com as que Siculo Flaco descreveu para a Itália22 Antes de Roma encontramos o termo entre os sabinos23 como também entre os etruscos Os helenos também tinham seus marcos sagrados que chamavam de òpoi theà órioi24 O marco uma vez plantado de acordo com os ritos não havia poder no mundo capaz de movêlo Devia ficar eternamente no mesmo lugar Esse princípio religioso era conhecido em Roma por uma lenda Júpiter desejando alojarse sobre o monte Capitolino para nele construir um templo não o conseguiu por não poder tirar de lá o deus Termo Essa velha tradição demonstranos como a propriedade era sagrada porque o vocábulo imóvel não significa nada mais que propriedade inviolável O deus Termo com efeito guardava os limites do campo e velava sobre ele O vizinho não ousava aproximarse muito porque então como diz Ovídio o deus que se sentia ferido pela enxada ou pela relha do arado gritava Pára este campo é meu ali está o teu25 Para invadir o campo de uma família era necessário derrubar ou deslocar um marco ora esse marco era um deus O sacrilégio era horrível e o castigo severo a velha lei romana dizia Se tocou o marco com a relha do arado o homem e seus bois devem ser lançados aos deuses infernais26 Isso significava que o homem e os bois seriam imolados em expiação A lei etrusca falando em nome da religião exprimiase assim Aquele que tocar ou remover um marco será condenado pelos deuses sua casa desaparecerá sua raça se extinguira sua terra não produzirá mais frutos o granizo a ferrugem o calor da canícula destruirão suas colheitas os membros do culpado cobrirseão de úlceras e cairão de consumpção27 Não possuímos o texto da lei ateniense sobre o assunto não nos restam senão três palavras que significam Não ultrapasse os limites Mas Platão parece completar o pensamento do legislador quando diz Nossa primeira lei deve ser esta Que ninguém toque no marco que separa seu campo do do vizinho porque ele deve continuar imóvel Que ninguém cuide em deslocar a pequena pedra que separa a amizade da inimizade a pedra que por juramento deve permanecer em seu lugar28 De todas essas crenças de todos esses costumes de todas essas leis resulta claramente que foi a religião doméstica que ensinou o homem a se apropriar da terra e que lhe assegurou direitos sobre a mesma Compreendese facilmente que o direito de propriedade assim concebido e estabelecido foi muito mais completo e mais absoluto em seus efeitos do que o poderia ser em nossas sociedades modernas onde se baseia sobre outros princípios A propriedade era tão inerente à religião doméstica que uma família não podia renunciar nem a uma nem à outra A casa e o campo estavam como que incorporadas a ela e ela não podia nem perdê la nem privarse dela Platão em seu Tratado 37 das Leis não pretendia dizer novidades quando proibia ao proprietário vender o campo apenas lembrava uma lei antiga Tudo leva a crer que nos tempos antigos a propriedade fosse inalienável É de todos sabido que em Esparta era proibida a venda de terras29 A mesma interdição estava escrita nas leis de Locres e de Leucádio30 Fidon de Corinto legislador do século IX prescrevia que o número das famílias e das propriedades ficasse sempre o mesmo31 Ora essa prescrição não podia ser observada se não fosse proibido às famílias vender as próprias terras ou dividilas A lei de Sólon posterior a sete ou oito gerações à que Fidon de Corinto não proibia mais ao homem a venda das propriedades mas castigava o vendedor com pena severa a perda dos direitos de cidadão32 Enfim Aristóteles nos informa de maneira geral que em muitas cidades as antigas legislações interdiziam as vendas das terras33 Tais leis não nos devem surpreender Baseai a propriedade sobre o direito do trabalho e o homem poderá renunciar à sua posse Baseiao sobre a religião e ele não o poderá mais fazêlo um laço mais forte que a vontade humana o une à terra Além do mais esse campo onde está o túmulo onde vivem os antepassados divinos onde a família deve celebrar um culto ininterrupto não é propriedade de apenas um homem mas de toda uma família Não é o indivíduo que agora está vivo que estabeleceu direitos sobre a terra mas o deus doméstico O indivíduo a tem apenas em depósito ela pertence àqueles que estão mortos e aos que estão por nascer forma um só corpo com a família e não pode mais separarse da mesma Destacar uma da outra é alterar o culto e ofender à religião Entre os hindus a propriedade também baseada sobre o culto era igualmente inalienável34 Não conhecemos o direito romano senão a partir das Doze Tábuas é claro que nessa época a venda de propriedades já era permitida Mas há razões para pensar que nos primeiros tempos de Roma e na Itália antes da fundação de Roma a terra era tão inalienável quanto na Grécia Se não nos resta nenhuma testemunha dessa antiga lei pelo menos se podem perceber pequenas mudanças que foram sendo introduzidas pouco a pouco A lei das Doze Tábuas deixando ao túmulo seu caráter inalienável libertou o campo Permitiuse depois a divisão da propriedade caso houvesse muitos irmãos mas com a condição de se realizar nova cerimônia religiosa somente a religião podia dividir o que a religião havia outrora proclamado indivisível Enfim permitiuse a venda das terras mas para isso ainda eram necessários algumas formalidades de caráter religioso Essa venda não podia ser realizada senão na presença do libripens e com todos os ritos simbólicos da mancipação Na Grécia vêse algo análogo a venda de uma casa ou de uma propriedade era acompanhada de um sacrifício aos deuses35 Parece que qualquer mudança de propriedade tinha necessidade de ser autorizada pela religião Se o homem não podia absolutamente ou com muita dificuldade desfazerse da terra com muito mais razão não o podiam privar dela contra sua vontade A expropriação motivada pela utilidade pública era desconhecida entre os antigos A confiscação não era praticada senão como consequência da pena de exílio36 isto é quando um homem despojado do título de cidadão não podia mais exercer nenhum direito sobre o solo da cidade A expropriação por dívidas também é desconhecida pelo antigo direito das cidades37 A lei das Doze Tábuas não poupa naturalmente o devedor contudo não permite que sua propriedade seja confiscada em proveito do credor O corpo do homem responde pela dívida mas não a terra porque a terra é inseparável da família É mais fácil escravizar um homem que tirarlhe o direito de propriedade que pertence mais à família do que a ele próprio o devedor é posto nas mãos do credor sua terra de algum modo segueo na escravidão O patrão que usa em seu proveito das forças físicas do homem usufrui também os frutos da terra mas não se torna proprietário da mesma Tanto o direito de propriedade é inviolável e superior a tudo38 Notas Livro II Cap VI 38 1 Alguns historiadores são da opinião de que em Roma a propriedade a princípio fora pública e só se tornara particular sob o governo de Numa Esse erro vem de uma falsa interpretação de três textos de Plutarco Numa 16 de Cícero República II 14 e de Dionísio II 74 Esses três autores com efeito dizem que Numa distribuiu certas terras aos cidadãos mas indicam com muita clareza que essa divisão só dizia respeito às terras que as últimas conquistas de seu predecessor acrescentaram ao primitivo território romano Quanto ao ager Romanus isto é ao território que rodeava Roma a uma distância de cinco milhas Estrabão V 3 2 já era propriedade particular desde a origem da cidade Vide Dionísio II 7 Varrão De re rustica I 10 Nônio Marcelo ed Quicherat p 61 2 Assim em Creta cada um dava para os banquetes comuns a décima parte das colheitas Ateneu IV 22 Do mesmo modo em Esparta cada um devia fornecer de seu patrimônio uma quantidade determinada de farinha vinho e de frutos para as despesas da mesa comum Aristóteles Polít II 7 ed Didot p 515 Plutarco Licurgo 12 Dicearca em Ateneu IV 10 3 Vide Plutarco De primo frigido 21 Macróbio I 23 Ovídio Fast VI 299 4 Sófocles Trachin 606 5 Na época em que esse antigo culto foi quase suplantado pela religião mais brilhante de Zeus em que se associou Zeus à divindade do lar o novo deus tomou para si o epíteto de erkéios Não é menos verdade que originariamente o verdadeiro protetor do recinto era o deus doméstico Dionísio de Halicarnasso o atesta I 67 quando diz que os deuses erkéioi são os mesmos que os penates Isso aliás se torna mais claro se compararmos uma passagem de Pausânias IV 17 com uma passagem de Eurípides Tróia 17 e uma de Virgílio En II 514 essas três passagens dizem respeito ao mesmo fato e mostram que o Zeus erkéios não é outro que o lar doméstico 6 Festo v Ambitus Varrão L L V 22 Sérvio ad Aen II 469 7 Diodoro V 68 Essa mesma crença é referida por Eustato que afirma que a casa se originou do lar Eust ad Odyss XIV v 158 XVII V 156 8 Cícero Pro domo 41 9 Ovídio Fastos V 141 10 Tal era pelo menos a regra antiga pois acreditavase que o banquete fúnebre servia de alimento aos mortos Vide Eurípides Troianas 381 389 11 Cícero De legib II 22 II 26 Gaio Instit II 6 Digesto liv XLVII tít 12 Devemos notar que o escravo e o cliente como veremos mais adiante faziam parte da família e eram enterrados no túmulo comum A guerra que prescrevia que cada homem fosse enterrado no túmulo de família só admitia exceção no caso em que a própria cidade celebrasse funerais públicos 12 Licurgo Contra Leocrato 25 Em Roma para que uma sepultura fosse mudada de lugar era necessário autorização dos pontífices Plínio Cartas X 73 13 Cícero De legib II 24 Digesto liv XVIII tít I 6 14 Lei de Sólon citada por Gaio no Digesto X 1 13 Plutarco Aristides 1 Címon 19 Marcelino Vida de Tucídides 17 15 Demóstenes in Calliclem 13 14 descreve também o túmulo aos busélidas colina bastante extensa e fechada segundo antigo costume onde repousam em comum todos os descendentes de Buselos Dem in Macart 79 16 Siculo Flaco edit Goez p 4 5 Vide Fragm terminalia edit Goez p 147 Pompônio no Digesto liv XLVII tít 12 5 Paulo no Digesto VIII 1 14 Digesto XIX 1 53 XI 7 2 9 XI 7 43 e 46 17 Idêntica tradição entre os etruscos Fragm intitulado Idem Vegoiae Arrunti ed Lachmann p 350 18 Tíbulo I 1 23 Cícero De legib II 11 19 Cícero De legibus I 21 20 Catão De re rust 141 Script rei agrar edit Goez p 308 Dionísio de Halicarnasso II 74 Ovídio Fast II 639 Estrabão V 3 21 Siculo Flaco De oonditione agrorum edit Lachmann p 141 edit Goez p 5 22 Leis de Manu VII 245 Vrihaspati citado por Sicé Législat hindoue p 159 23 Varrão L L V 74 39 24 Pólux IX 9 Hesíquio hóros Platão Leis VIII p 842 Plutarco e Dionísio traduzem terminus por hóros Aliás a palavra térmon existia também na língua grega Eurípides Electra 96 25 Ovídio Fastos II 677 26 Festo v Terminus ed Müller p 363 27 Script rei agrar edit Goez p 258 ed Lachamann p 351 28 Platão Leis VIII p 842 29 Aristóteles Política II 6 10 ed Didot p 512 Heráclida do Ponto Fragm hist graec ed Didot t II p 211 Plutarco Instituta laconica 22 30 Aristóteles Política II 4 4 31 Aristóteles Política II 3 7 Essa lei do velho legislador não visava a igualdade de fortunas porque Aristóteles acrescenta embora as propriedades fossem desiguais Visava unicamente a manutenção da propriedade na família Também em Tebas o número de propriedades era imutável Aristóteles Pol II 9 7 32 O homem que havia alienado seu patrimônio era condenado à atimía Ésquines In Timarchum 30 Diógenes Laércio Sólon I 55 Essa lei que certamente não era mais observada nos tempos de Ésquines subsistia apenas na forma como vestígio da antiga regra Bekker Anecdota p 199 e 310 33 Aristóteles Polít VI 2 5 34 Mitakchara trad Orianne p 50 Essa regra desapareceu pouco a pouco quando o bramanismo passou a dominar 35 Fragmento de Teofrasto citado por Estobeu Serm 42 36 Essa regra desapareceu na idade democrática das cidades 37 Uma lei dos helenos proibia hipotecar a terra Aristóteles Polit VII 2 A hipoteca era desconhecida no antigo direito ateniense antes de Sólon apoiase em uma palavra mal compreendida de Plutarco O vocábulo hóros que significa mais tarde um limite hipotecário significava nos tempos de Sólon o limite sagrado que assinalava o direito de propriedade Vide mais adiante liv IV c 6 A hipoteca não apareceu senão mais tarde no direito ático e somente sob a forma de venda e sob condição de resgate 38 No artigo da lei das Doze Tábuas que trata do devedor insolvente lemos Si volet suo vivito pois o devedor quase escravizado conserva ainda algo de próprio sua propriedade quando a tem não lhe é confiscada Os contratos conhecidos em direito romano sob os nomes de mancipação com fidúcia e de pignus eram antes da ação serviana meios indiretos de assegurar ao credor o pagamento da dívida eles provam indiretamente que a expropriação por dívidas não existia Mais tarde quando se suprimiu a servidão corporal foi necessário encontrar um meio para se ter direitos sobre os bens do devedor Isso não era fácil mas a distinção que se fazia entre a propriedade e a posse ofereceu um recurso O credor obteve do pretor o direito de vender não a propriedade dominium mas os bens do devedor bona Somente então por uma expropriação disfarçada o devedor perdia o gozo de sua propriedade CAPÍTULO VII DIREITO DE SUCESSÃO 1 Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos Como o direito de propriedade havia sido estabelecido para cumprimento de um culto hereditário não era possível que se extinguisse depois da curta existência de um indivíduo O homem morre o culto continua o lar não deve extinguirse nem o túmulo deve ser abandonado Com a continuação da religião doméstica o direito de propriedade também permanece Duas coisas estão estritamente unidas tanto nas crenças como nas leis dos antigos o culto da família e a propriedade Por isso esta era uma regra sem exceção tanto no direito grego quanto no romano não se podia adquirir a propriedade sem o culto nem o culto sem a propriedade A religião 40 prescreve diz Cícero que os bens e o culto de cada família sejam inseparáveis e que o cuidado dos sacrifícios seja sempre confiado àquele a quem cabe a herança1 Em Atenas os termos em que um litigante reclamava uma sucessão eram estes Refleti bem juízes e dizei qual de nós deve herdar os bens de Filoctémon e fazer os sacrifícios sobre seu túmulo2 Podese afirmar mais claramente que o cuidado do culto não se podia separar da sucessão O mesmo acontece na Índia A pessoa que herda seja quem for fica encarregada de fazer ofertas sobre o túmulo3 Deste princípio originaramse todas as regras do direito de sucessão entre os antigos A primeira é que sendo a religião doméstica como vimos hereditária de varão para varão o mesmo acontecia com a propriedade Como o filho é a continuação natural e obrigatória do culto também é herdeiro dos bens Assim é que surgiu a regra da hereditariedade ela não é o resultado de uma simples convenção feita entre os homens ela deriva de suas crenças de sua religião do que há de mais poderoso sobre as almas O que faz com que o filho herde não é a vontade do pai O pai não tem necessidade de fazer testamento o filho herda de pleno direito ipso jure heres exsistit diz o jurisconsulto É um herdeiro necessário heres necessarius4 Não tem que aceitar ou recusar a herança A continuação da propriedade como a do culto é para ele obrigação e direito Quer queira quer não a herança lhe cabe seja qual for mesmo com suas obrigações e dívidas O benefício de inventário e o benefício de desistência não são admitidos para o filho no direito grego e não foram introduzidos senão muito tarde no direito romano A linguagem jurídica de Roma chama o filho de heres suus como se dissesse heres sui ipsius Com efeito ele não herda senão de si próprio Entre o pai e ele não há nem doação nem legado nem mudança de propriedade Há simplesmente continuação Morte parentis continuatur dominium Ainda em vida do pai o filho era coproprietário do campo e da casa Vivo quoque patre dominus existimatur5 Para se fazer uma ideia verdadeira da herança entre os antigos não é necessário pensar em uma fortuna que passa de mão em mão A fortuna é imóvel como o fogo sagrado e o túmulo aos quais está unida O homem é que passa É o homem que à medida que a família estende suas gerações chega à hora marcada para continuar o culto e cuidar de seu domínio 2 O filho herda e não a filha Aqui é que as leis antigas à primeira vista parecem estranhas e injustas Sentese alguma surpresa quando vê que no direito romano a filha não herda do pai se é casada e que no direito grego ela não herda em nenhum caso Quanto aos colaterais parece à primeira vista que a lei está ainda mais longe da natureza e da justiça É que todas essas leis são decorrentes não da razão e da lógica não do sentimento de equidade mas das crenças e da religião que reinavam sobre as almas A regra para o culto é a transmissão de varão para varão a regra para a herança é conformarse com o culto A filha não é apta para continuar a religião paterna pois ela se casa e casandose renuncia ao culto do pai para adotar o do esposo não tem portanto nenhum título para herdar Se por acaso um pai deixasse seus bens à filha a propriedade seria separada do culto o que não é admissível A filha não poderia nem ao menos cumprir o primeiro dever do herdeiro que é continuar a série de banquetes fúnebres pois os sacrifícios que oferece dirigemse aos antepassados do marido A religião portanto proíbelhe herdar do pai Tal é o antigo princípio também obedecido pelos legisladores hindus como pelos da Grécia e de Roma Os três povos têm as mesmas leis não porque uns a aprendessem dos outros mas porque tiraram suas leis das mesmas crenças Depois da morte do pai diz o Código de Manu os irmãos devem dividir entre si o patrimônio e o legislador continua recomendando aos irmãos que dotem suas irmãs o que acaba de provar que elas não têm por si mesmas nenhum direito à sucessão paterna 41 O mesmo acontece em Atenas Os oradores áticos em seus discursos demonstram frequentemente que as filhas não herdam1 O próprio Demóstenes é um exemplo da aplicação dessa lei grega porque tinha uma irmã e sabemos por seus próprios escritos que ele foi o único herdeiro do patrimônio seu pai reservara apenas a sétima parte para dotar a filha Quanto a Roma as disposições do direito primitivo nos são quase completamente desconhecidas Não possuímos dessas épocas antigas nenhum texto de lei que se relacione com o direito de sucessão da filha não possuímos tampouco nenhum documento análogo aos discursos de Atenas enfim somos obrigados a procurar fracos indícios do direito primitivo em um direito muito posterior e muito diverso Gaio e as Institutas de Justiniano lembram ainda que a filha não pertence ao número dos herdeiros naturais senão quando se encontra em poder do pai no momento de sua morte2 ora se estiver casada de acordo com os ritos religiosos não está mais sob a jurisdição paterna Supondo se portanto que antes de ser casada ela pudesse dividir a herança com um irmão certamente não o poderá mais se a confarreatio a fizer sair da família paterna para ligarse à do marido É bem verdade que não casada a lei não a privava formalmente de sua parte na herança mas é necessário perguntar se na prática ela podia ser verdadeiramente herdeira Ora não nos devemos esquecer de que essa filha estava colocada sob a tutela do irmão ou dos parentes agnados por toda a vida que a tutela do antigo direito era estabelecida no interesse dos bens e não da filha que ela tinha por objeto a conservação dos bens da família3 e que enfim a filha em nenhuma idade podia casar ou mudar de família sem autorização do tutor Esses fatos que são bem provados permitem acreditar que havia senão nas leis pelo menos na prática e nos costumes uma série de dificuldades que se opunham a que a filha fosse tão completamente proprietária de sua parte do patrimônio como o filho o era da sua Não temos provas para afirmar que a filha fosse excluída do casamento mas temos certeza de que casada ela não herdava do pai e que não casada não podia jamais dispor do que havia herdado Se era herdeira não o era senão provisoriamente e sob certas condições quase em simples usufruto não tinha o direito nem de testar nem o de alienar sem autorização do irmão ou dos agnados que depois de sua morte deviam herdar os mesmos bens que haviam administrado enquanto viveu4 Há ainda outra observação a ser feita As Institutas de Justiniano lembram o velho princípio então caído em desuso mas não esquecido que prescrevia que a herança devia passar de varão para varão apenas5 É sem dúvida em lembrança dessa regra que a mulher em direito civil não podia jamais ser herdeira Quanto mais nos afastamos da época de Justiniano para épocas mais antigas mais nos aproximamos de uma regra que proíbe às mulheres herdar Nos tempos de Cícero se um pai deixa um filho e uma filha não pode legar à filha senão um terço de sua fortuna se não tem senão uma filha única mesmo assim ela não pode receber senão a metade Devese ainda notar que para que essa filha receba um terço ou a metade do patrimônio é necessário que o pai tenha feito um testamento em seu favor a filha nada tem de pleno direito6 Enfim um século e meio antes de Cícero Catão querendo fazer reviver os antigos costumes fez aprovar a lei Vocônia que proibia 1 instituir como herdeira uma mulher fosse embora filha única casada ou não 2 legar a mulheres mais da metade do patrimônio7 A lei Vocônia nada fez senão renovar leis mais antigas porque não se pode supor que tenha sido aceita pelos contemporâneos dos Cipiões se não estivesse baseada em antigos princípios ainda respeitados Essa lei visava restabelecer o que o tempo havia alterado Aliás o que há de mais curioso na lei Vocônia é que ela não estipula nada a respeito da herança ab intestat Ora esse silêncio não pode significar que nesses casos a filha era herdeira legítima porque não é admissível que a lei proíba à filha herdar do pai por testamento se ela já é herdeira de pleno direito sem testamento Esse silêncio significa antes que o legislador nada tinha a dizer sobre a herança ab intestat porque para esses casos as antigas regras se haviam conservado melhor 42 Assim sem que se possa afirmar que a filha era claramente excluída da sucessão pelo menos é certo que a antiga lei romana tanto quanto a grega dava à filha uma situação muito inferior à do filho como consequência natural e inevitável dos princípios que a religião havia gravado em todos os espíritos É verdade que os homens logo encontraram uma evasiva para conciliar a prescrição religiosa que proibia à filha herdar com o sentimento natural que exigia que ela pudesse gozar da fortuna paterna Isso é evidente sobretudo no direito grego A legislação ateniense visava manifestamente que a filha não herdeira pelo menos se casasse com um herdeiro Se por exemplo o defunto deixara um filho e uma filha a lei autorizava o casamento entre irmão e irmã contanto que não fossem nascidos da mesma mãe O irmão herdeiro único podia à sua escolha casar com a irmã ou dotála8 Se um pai não tinha senão uma filha podia adotar um filho e darlhe a filha em casamento Podia ainda instituir por testamento um herdeiro que se casasse com a filha9 Se o pai de uma filha única morresse sem haver adotado nem testado o antigo direito exigia que o parente mais próximo herdasse10 mas esse herdeiro tinha obrigação de casar a filha É em virtude desse princípio que o casamento do tio com a sobrinha era autorizado e mesmo exigido por lei11 Há mais se essa filha já estava casada devia deixar o marido para se casar com herdeiro do pai12 O herdeiro por sua vez podia ser já casado mas devia divorciar para casar com a parenta13 Vemos aqui quanto o direito antigo para se conformar com a religião desconhecia a natureza14 A necessidade de satisfazer à religião combinada com o desejo de salvar os interesses das filhas únicas fez com que se encontrasse outra solução Sobre esse ponto o direito hindu e o direito ateniense coincidiam maravilhosamente Lemos nas Leis de Manu Aquele que não tem filho varão pode encarregar a filha de lhe dar um filho que se torna seu e que celebre em sua honra a cerimônia fúnebre Para isso o pai deve prevenir o esposo ao qual dá a própria filha pronunciando esta fórmula Eu te dou enfeitada de joias esta filha que não tem irmão o filho que dela nascer será meu filho e celebrará meus funerais15 O costume era idêntico em Atenas o pai podia fazer continuar a descendência pela filha dandoa a um marido com essa condição especial O filho que nascia desse casamento era considerado filho do pai da mulher seguia seu culto assistia a seus atos religiosos e mais tarde cuidava de seu túmulo16 No direito hindu essa criança herdava do avô como se fosse filho o mesmo acontecia em Atenas Quando um pai casava a filha única como acabamos de dizer seu herdeiro não era nem a filha nem o genro era o filho de sua filha17 Quando este atingisse a maioridade tomava posse do patrimônio materno embora o pai e a mãe ainda estivessem vivos18 Essas singulares tolerâncias da religião e da lei confirmam a regra que relatamos acima A filha não era apta a herdar Mas pelo abrandamento muito natural desse princípio rigoroso a filha única era considerada como intermediária pela qual a família podia continuar Ela não herdava mas o culto e a herança eram transmitidos por seu intermédio 3 Da sucessão colateral Um homem morria sem filhos para saber quem era o herdeiro de seus bens bastava procurar quem devia ser o continuador de seu culto Ora a religião doméstica se transmitia pelo sangue de varão para varão A descendência em linha masculina estabelecia somente entre dois homens a união religiosa que permitia a um continuar o culto do outro O que se chamava de parentesco não era nada mais como vimos acima que a expressão dessa união Erase parente porque se tinha o mesmo culto um mesmo lar originário os mesmos antepassados Mas não se era parente pelo simples fato de se ter a mesma mãe a religião não admitia parentesco pelas mulheres Os filhos de duas irmãs ou de uma irmã e de um irmão não tinham entre si nenhum laço e não pertenciam à mesma religião doméstica nem à mesma família Esses princípios regulavam a ordem de sucessão Se um homem tendo perdido filho e filha não deixava senão netos os filhos de seu 43 filho herdavam os de sua filha não Na falta de descendentes tinha por herdeiro o irmão e não a irmã os filhos do irmão e não os da irmã Em falta de irmãos e de sobrinhos era necessário remontar à série dos ascendentes do defunto sempre na linha masculina até que se encontrasse um ramo que se houvesse destacado da família por um varão depois tornavase a descer por esse ramo de varão a varão até que se encontrasse um homem vivo este era o herdeiro Essas regras estavam igualmente em vigor entre os hindus entre os gregos entre os romanos Na Índia a herança pertence ao sapinda mais próximo em falta de um sapinda ao samanodaca1 Ora vimos que o parentesco que exprimiam essas duas palavras era parentesco religioso ou parentesco masculino e correspondia à agnação romana Eis agora a lei de Atenas Se um homem morre sem filhos o herdeiro é o irmão do defunto contanto que seja irmão consanguíneo em falta deste o filho do irmão porque a sucessão passa sempre aos varões e aos descendentes de varões2 Citavase ainda essa velha lei nos tempos de Demóstenes embora já estivesse modificada e já se começasse a admitir por essa época o parentesco pelo lado das mulheres As Doze Tábuas estabeleciam igualmente que se um homem morresse sem herdeiro próprio a sucessão pertencia ao agnado mais próximo Ora vimos que jamais se era agnado pelas mulheres O antigo direito romano especificava ainda que o sobrinho herdava do patruus isto é do irmão de seu pai e não herdava do avunculus isto é do irmão de sua mãe3 Se nos reportarmos ao quadro que traçamos da família dos Cipiões notaremos que como Cipião Emiliano morreu sem deixar filhos sua herança não devia passar nem a Cornélia sua tia nem a Caio Graco que de acordo com nossas ideias modernas seria seu primoirmão mas a Cipião Asiático que era de acordo com o direito dos antigos seu parente mais próximo Nos tempos de Justiniano o legislador não compreendia mais essas velhas leis elas lhe pareciam iníquas e ele acusava de rigor excessivo o direito das Doze Tábuas que concedia sempre preferência à posteridade masculina e excluía da herança aqueles que não estavam ligados ao defunto senão pelas mulheres4 Direito iníquo se assim o quisermos porque não tomava em consideração a natureza mas direito singularmente lógico porque partindo do princípio de que a herança estava ligada ao culto afastava da herança aqueles que a religião não autorizava a continuar o culto 4 Efeitos da emancipação e da adoção Vimos precedentemente que a emancipação e a adoção produziam no homem mudança de culto A primeira desligavao do culto paterno a segunda iniciavao na religião de outra família Ainda aqui o direito antigo conformavase às regras religiosas O filho que havia sido excluído do culto paterno pela emancipação era excluído também da herança1 Pelo contrário o estranho que havia sido associado ao culto de uma família pela adoção e se tornava filho da mesma continuava seu culto e herdavalhe os bens Em um e outro caso o antigo direito dava mais importância aos laços religiosos que aos laços de nascimento Como era contrário à religião que um mesmo homem tivesse dois cultos domésticos ele não podia igualmente herdar de duas famílias Também o filho adotivo que herdava da família adotante não herdava da família natural O direito ateniense era muito explícito a esse respeito Os discursos dos oradores áticos mostramnos muitas vezes homens adotados por uma família e que desejam herdar daquelas onde nasceram Mas a lei não o permitia O homem adotado não pode herdar de sua própria família senão voltando para ela e não pode voltar a ela senão renunciando à família adotiva e não pode sair desta senão sob duas condições uma que abandone o patrimônio dessa família outra que o culto doméstico para cuja continuação fora adotado não se extinga por seu abandono e para isso ele deve deixar nessa família um filho que o substitua2 Esse filho cuidará do culto e tomará posse dos bens o pai então poderá voltar à família original e herdar Mas esse pai e esse filho não podem mais herdar um do outro eles não pertencem à mesma família nem são parentes 44 Por aí se vê qual era o pensamento do velho legislador quando estabelecia essas regras minuciosas Ele não julgava possível que duas heranças se reunissem sob o mesmo teto porque dois cultos domésticos não podiam ser servidos pela mesma mão 5 O testamento a princípio não era conhecido O direito de testar isto é de dispor dos próprios bens depois da morte para deixálos a outros que não o herdeiro natural estava em oposição com as crenças religiosas que eram o fundamento do direito de propriedade e do direito de sucessão Se a propriedade estava ligada ao culto e o culto era hereditário podiase pensar em testamento Além do mais a propriedade não pertencia ao indivíduo mas à família porque o homem não a adquiriu por direito de trabalho mas pelo culto doméstico Ligada à família ela se transmitia do morto ao vivo não de acordo com a vontade ou escolha do morto mas em virtude de regras superiores que a religião havia estabelecido O antigo direito hindu não conhecia o testamento O direito ateniense até Sólon proibiao de maneira absoluta1 e o próprio Sólon não o permitiu senão aos que não tinham filhos2 O testamento foi por muito tempo proibido ou ignorado em Esparta e não foi autorizado senão depois da guerra do Peloponeso3 Conservase ainda a lembrança de um tempo em que era proibido também em Corinto e em Tebas4 É certo que a faculdade de legar arbitrariamente os próprios bens não foi reconhecida a princípio como direito natural o princípio constante em todas as épocas antigas foi o de que a propriedade devia permanecer na família à qual a religião a havia ligado Platão em seu Tratado das Leis que em grande parte nada mais é que um comentário sobre as leis atenienses explica com muita clareza o pensamento dos antigos legisladores Ele supõe que um homem em seu leito de morte reclama a faculdade de fazer testamento e exclama Ó deuses não é crueldade que eu não possa dispor de meus bens como entendo e em favor de quem quero deixando mais a este menos àquele de acordo com o afeto que me demonstraram Mas o legislador responde a esse homem Tu que não podes prometer a ti mesmo mais um dia tu que não estás aqui senão de passagem podes querer decidir tais negócios Não és senhor nem de teus bens nem de ti mesmo tu e teus bens pertences à tua família isto é a teus antepassados e à tua posteridade5 O antigo direito romano é para nós muito obscuro como já o era para Cícero O que conhecemos não vai além das Doze Tábuas que não são certamente o direito primitivo de Roma dos quais aliás não nos restam senão alguns fragmentos Esse código autoriza o testamento e ainda o fragmento que diz respeito a esse assunto é muito curto e evidentemente incompleto para que nos possamos orgulhar de conhecer as verdadeiras disposições do legislador nessa matéria concedendo a faculdade de testar não sabemos quais reservas ou condições poderia colocar6 Antes das Doze Tábuas não possuímos nenhum texto de lei que proíba ou permita o testamento Mas a língua conservava a lembrança de um tempo em que era desconhecido porque chamava o filho de herdeiro seu e necessário Esta fórmula que Gaio e Justiniano usavam ainda mas que não estava mais de acordo com a legislação de seu tempo vinha sem dúvida alguma de época longínqua na qual o filho não podia nem ser herdeiro nem recusar a herança O pai não tinha portanto livre disposição para legar sua fortuna O testamento não era desconhecido por completo mas era muito difícil Faziamse necessárias muitas formalidades Para começar o segredo devia ser revelado pelo testador em vida o homem que deserdava a família e violava a lei que a religião havia estabelecido devia fazêlo publicamente e assumir sobre si ainda em vida todo o ódio que despertava esse ato E isso não é tudo era necessário ainda que a vontade do testador recebesse aprovação da autoridade soberana isto é do povo reunido por cúrias sob a presidência de um pontífice7 Não vamos pensar que isso fosse mera formalidade sobretudo nos primeiros séculos Esses comícios por cúrias eram a reunião mais solene da cidade romana e seria pueril afirmar que se convocava um povo sob a presidência do chefe religioso apenas para assistir como 45 simples testemunha à leitura de um testamento Podese crer que o povo votava e isso se refletirmos bem era até necessário com efeito havia uma lei geral que regulava a ordem da sucessão de maneira rigorosa para que essa ordem fosse modificada em um caso particular faziase necessária nova lei Essa lei de exceção era o testamento A faculdade de testar não era portanto plenamente reconhecida ao homem e não o podia ser enquanto a sociedade continuasse sob o império da velha religião Nas crenças dessas idades antigas o homem vivo não era senão o representante por alguns anos de um ser constante e imortal que era a família O culto e a propriedade estavam apenas depositados em suas mãos seu direito cessava com a vida 6 Antiga indivisão do patrimônio Seria necessário avançarmos para além dos tempos de que a história nos conservou a lembrança para os séculos longínquos durante os quais estabeleceramse as instituições domésticas e se prepararam as instituições sociais Dessa época não nos resta e não poderia restar nenhum monumento escrito Mas as leis que então regiam os homens deixaram alguns vestígios no direito das épocas seguintes Nesses tempos longínquos distinguimos uma instituição que deve ter reinado por muito tempo e que exerceu considerável influência sobre a constituição futura das sociedades e sem a qual essa instituição não se poderia explicar É a indivisão do patrimônio com uma espécie de direito de primogenitura A velha religião estabelecia diferenças entre o filho mais velho e o mais novo O mais velho diziam os antigos árias foi gerado para o cumprimento do dever para com os antepassados os outros nasceram por amor Em virtude dessa superioridade original o mais velho tinha o privilégio depois da morte do pai de presidir a todas as cerimônias do culto doméstico oferecia o banquete fúnebre e que pronunciava as fórmulas das orações porque o direito de pronunciar as orações pertence ao filho que veio ao mundo por primeiro O mais velho portanto era o herdeiro dos hinos o continuador do culto o chefe religioso da família Dessa crença originouse uma regra de direito somente o mais velho podia herdar Assim o afirmava um velho texto que o último redator das Leis de Manu inseriu ainda em seu código O mais velho toma posse de todo o patrimônio e os outros irmãos vivem sob sua autoridade como viviam sob a autoridade paterna O filho mais velho é que solve a dívida dos vivos para com os antepassados e portanto deve herdar tudo1 O direito grego originouse das mesmas crenças religiosas que o direito hindu não nos devemos portanto admirar ao encontrar nele também em sua origem o direito de primogenitura Em Esparta as divisões da propriedade a princípio estabelecidas eram indivisíveis e o irmão mais novo não tinha parte alguma O mesmo acontecia em muitas das antigas legislações que Aristóteles havia estudado com efeito ele nos diz que a lei de Tebas prescrevia de maneira absoluta que o número dos lotes de terra permanecesse inalterado o que excluía certamente a partilha entre irmãos Uma antiga lei de Corinto exigia também que o número de famílias permanecesse invariável o que só se podia conseguir se o direito de primogenitura impedisse as famílias de se desmembrarem em cada geração2 Não vamos esperar que entre os atenienses essa velha instituição ainda estivesse em vigor nos tempos de Demóstenes mas subsistia ainda nessa época o que se chamava de privilégio da primogenitura3 Consistia parece em conservar o primogênito para si além da partilha usual a casa paterna vantagem materialmente considerável porque esta incluía o antigo lar da família Enquanto o irmão mais novo nos tempos de Demóstenes devia acender um novo lar o mais velho na verdade o único herdeiro continuava na posse do lar paterno e do túmulo dos antepassados assim ele era o único a guardar o nome da família4 Eram os vestígios de tempos em que havia um só patrimônio Podese notar contudo que a iniquidade do direito de primogenitura além de não ferir os espíritos sobre os quais a religião imperava era contrabalançado por muitos costumes dos antigos Às vezes o irmão 46 mais novo era adotado por outra família da qual tornavase herdeiro outras vezes casava se com uma filha única outras ainda recebia a porção de terra que era patrimônio de antiga família Na falta de todos esses recursos os irmãos mais novos eram mandados para as colônias Quanto a Roma não encontramos nenhuma lei que se refira ao direito de primogenitura Mas nem por isso devemos concluir que não fosse conhecido na Itália Pode haver desaparecido juntamente com sua lembrança O que nos permite acreditar que além dos tempos que conhecemos tenha estado em vigor é que a existência da gens romana e sabina não se poderia explicar sem ele Como uma família poderia chegar a contar com vários milhares de pessoas livres como a família Cláudia ou várias centenas de combatentes todos patrícios como a família Fábia se o direito de primogenitura não houvesse conservado a unidade durante uma longa série de gerações e não a houvesse aumentado durante séculos impedindoa de se esfacelar Esse velho direito de primogenitura se prova por suas consequências e por assim dizer por suas obras Por outro lado é necessário entender que o direito de primogenitura não era a espoliação dos irmãos mais novos em proveito do mais velho O código de Manu esclarecelhe o sentido quando ordena que o mais velho tenha para com os irmãos menores o afeto de um pai por seus filhos e que estes por sua vez o respeitem como pai Segundo o pensamento desses tempos antigos o direito de primogenitura implicava sempre a vida em comum No fundo não era nada mais que o gozo de bens comuns para todos os irmãos sob a autoridade do mais velho Representava tanto a indivisão do patrimônio quanto a indivisão da família É nesse sentido que podemos crer que esteve em vigor no mais antigo direito de Roma ou pelo menos nos costumes tornandose a origem da gens romana5 Notas Livro II Cap VII 1 Cícero De legibus II 1920 Tal era a importância dos sacra que o jurisconsulto Gaio escreveu a respeito uma curiosa Passagem Gaio II 55 Festo v Everriator Ed Müller p 77 2 Iseu VI 81 Platão chama o herdeiro de diádochos theõn Leis V pg 740 3 Leis de Manu IX 186 4 Digesto liv XXXVIII tít 16 14 5 Institutas III 1 3 III 9 7 III 19 2 2 1 Em Iseu In Xenoenctum 4 vemos um pai que deixa um filho duas filhas e outro filho emancipado o primeiro filho herda sozinho Em Lidas Pro Mantitheo 10 vemos dois irmãos que dividem entre si o patrimônio e que se contentam em dotar as irmãs O dote aliás nos costumes de Atenas não era senão uma parte muito reduzida da fortuna paterna Demóstenes In Baeotum de dote 2224 mostra também que as filhas não herdam Enfim Aristófanes Aves 16531654 indica claramente que uma filha não herda se tem irmãos 2 Gaio III 12 Institutas de Justiniano II 19 2 3 É o que M Gide nos mostra muito bem em seu Étude sur la condition de la femme p 114 4 Gaio I 192 5 Institutas III 1 15 III 2 3 6 Cícero De rep III 7 7 Cícero In Verr II 1 42 Id 43 Cf Tito Lívio Epitom XLI Gaio II 226 e 274 Santo Agostinho De civit Dei III 21 8 Demóstenes In Eubulidem 20 Plutarco Temístocles 32 Cornélio Nepos Címon I Devemos notar que a lei não permitia casamento com irmão uterino nem com irmão emancipado Só era permitido o casamento com irmão consanguíneo porque somente este era herdeiro do pai 47 9 Iseu De Pyrrhi hereditate 68 10 Essa disposição do antigo direito ático não estava mais em pleno vigor no século quarto Encontramos contudo vestígios visíveis dessa disposição no discurso de Iseu De Cironis hereditate O objeto do processo é este morrendo Círon que deixou apenas uma filha o irmão de Círon reclamava para si a herança Iseu defendeu a filha Não possuímos o discurso do adversário que sustentava evidentemente em nome dos velhos princípios que a filha não tinha nenhum direito mas o autor da hypotésis colocada como introdução ao discurso de Iseu advertenos de que esse habilíssimo advogado defendia então uma causa Ingrata sua tese afirma ele está conforme à equidade natural mas é contrária à lei 11 Iseu De Pyrrhi hered 64 7275 Iseu De Aristarchi hered 5 Demóstenes In Leocharem 10 A filha única chamavase epícleros palavra mal traduzida por herdeira o significado primitivo e essencial dessa palavra é aquela que está ao lado da herança que é recebida com a herança Em direito rigoroso a filha não é herdeira de fato o herdeiro toma a herança syn auté como diz a lei citada no discurso de Demóstenes In Macartatum 51 Cf Iseu III 42 De Aristarchi hered 13 A condição de epícleros não era particular ao direito ateniense encontramola em Esparta Heródoto VI 57 Aristóteles Política II 6 11 e em Thurii Diodoro XII 18 12 Iseu De Pyrrhi hered 64 De Aristarchi hered 19 13 Demóstenes In Eubulidem 41 In Onetorem I argumento 14 Todas essas obrigações pouco a pouco se abrandaram De fato nos tempos de Iseu e de Demóstenes o parente mais próximo podia deixar de se casar com a epiclera contanto que renunciasse à sucessão e dotasse sua parenta Demóst In Macart 54 Iseu De Cleonymi hered 39 15 Leis de Manu IX 127 136 Vasishta XVII 16 16 Iseu De Cironis hereditate 1 15 16 21 24 25 27 17 Não o chamavam de neto davamlhe o nome partícular de thygatridoús 18 Iseu De Cironis her 31 De Arist her 12 Demóstenes In Stephanum II 20 3 1 Leis de Manu IX 186187 2 Demóstenes In Macart 51 In Leocharem Iseu VII 20 3 Institutas III 2 4 4 Ibid III 3 3 1 Iseu De Aristarchi hered 45 e 11 De Astyph hered 33 2 Harpocrácio v Hóti oi poietói Demóstenes In Leocharem 6668 5 1 Plutarco Sólon 21 2 Iseu De Pyrrhi hered 68 Demóstenes In Stephanum II 14 3 Plutarco Agis 5 4 Aristóteles Polít II 3 4 5 Platão Leis XI 6 Se não tivéssemos da lei de Sólon senão as palavras diáthesthai hópos àn ethéle suporíamos que o testamento era permitido em todos os casos possíveis mas a lei acrescenta àn me pãides õsi 7 Ulpiano XX 2 Gaio I 102 119 Aulo Gélio XV 27 testamento calatis comitiis foi sem nenhuma dúvida o que se usou primeiro nos tempos de Cícero já não era mais conhecido De orat I 53 6 1 Leis de Manu IX 105107 126 Essa antiga regra foi modificada à medida que se enfraquecia a religião primitiva No código de Manu já se encontram artigos que autorizam e até recomendam a divisão da herança 2 Aristóteles Polit II 9 7 II 3 7 II 4 4 48 3 Presbeia Demóstenes Pro Phorm 34 Na época de Demóstenes a presbeia não era mais que uma palavra sem sentido e havia muito tempo que a sucessão se dividia em porções iguais entre os irmãos 4 Demóstenes In Boeotum de nomine 5 A antiga língua latina conservou vestígio dessa indivisão que por mais apagado que seja merece contudo ser assinalado Chamavase sors a um lote de terra domínio de uma família sors patrimonium significat diz Festo a palavra consortes era portanto usada para designar os que possuíam um lote de terra em comum e viviam no mesmo domínio ora a língua antiga designava com essa palavra os irmãos ou mesmo parentes de grau muito afastado testemunho de um tempo em que o patrimônio e a família eram indivisíveis Festo v Sors Cícero In Verrem II 3 23 Tito Lívio XLI 27 Veleio I 10 Lucrécio III 772 VI 1280 CAPÍTULO VIII A AUTORIDADE NA FAMÍLIA 1 Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos A família não recebeu suas leis da cidade Se a cidade houvesse estabelecido o direito privado é provável que teria feito tudo diferente do que vimos até agora Teria regulamentado de acordo com outros princípios o direito de propriedade e o direito de sucessão porque não tinha interesse em que a terra fosse inalienável e o patrimônio indivisível A lei que permite que o pai venda ou tire a vida ao filho lei que encontramos tanto na Grécia como em Roma não foi imaginada pela cidade A cidade teria antes dito ao pai A vida de tua mulher e de teu filho não te pertence mais que sua liberdade eu as protegerei mesmo contra ti Eles não serão julgados por ti que haverás de matálos caso falhem eu serei seu juiz Se a cidade não fala desse modo aparentemente é porque não pode fazêlo O direito privado existiu antes dela Quando começou a escrever suas leis encontrou esse direito já estabelecido vivo enraizado nos costumes fortalecido pela adesão universal Ela o aceitou não podendo agir de outra maneira e não ousando modificálo senão com o correr do tempo O antigo direito não é obra de um legislador pelo contrário foi imposto ao legislador Nasceu na família Surgiu espontaneamente e já formado dos antigos princípios que a constituíam É a decorrência natural de crenças religiosas universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e que exerciam império sobre as inteligências e as vontades Uma família compõese de um pai de uma mãe de filhos e de escravos Esse grupo por pequeno que seja deve ter uma disciplina A quem portanto pertencerá essa autoridade primitiva Ao pai Não Em casa há algo que está acima do próprio pai é a religião doméstica é esse deus que os gregos chamam de larchefe estia despoina e que os latinos denominam lar familiae pater1 Nessa divindade interior ou o que dá no mesmo na crença que está na alma humana reside a autoridade menos discutível É ela que vai fixar os graus na família O pai é o primeiro junto ao lar ele o alumia e conserva é seu pontífice Em todos os atos religiosos ele exerce a mais alta função degola a vítima sua boca pronuncia a fórmula de oração que deve atrair para si e para os seus a proteção dos deuses A família e o culto se perpetuam por seu intermédio representa sozinho toda a série dos descendentes Sobre ele repousa o culto doméstico quase pode dizer como o hindu Eu sou o deus Quando a morte chegar será um ser divino que os descendentes invocarão A religião não coloca a mulher em posição tão elevada É verdade que ela toma parte em todos os atos religiosos mas ela não é a senhora do lar Sua religião não lhe vem do nascimento nela foi iniciada somente por ocasião do casamento ela aprendeu do marido a prece que pronuncia Não representa 49 os antepassados porque não descende deles Não se tornará um deles porque sepultada não receberá nenhum culto especial Na morte como na vida ela não é considerada mais que um membro do esposo O direito grego o direito romano o direito hindu que se originam dessas crenças religiosas todos concordam em considerar a mulher como menor Jamais pode ter seu próprio lar jamais será chefe de um culto Em Roma recebe o título de mater familias mas perdeo por morte do marido2 Não tendo nunca um lar que lhe pertença nada possui que lhe dê autoridade na casa Jamais dá ordens jamais é livre ou senhora de si mesma sui juris Sempre está ao lado do lar de outro repetindo a oração de outro para todos os atos da vida religiosa élhe necessário um chefe e para todos os atos da vida civil um tutor A lei de Manu diz A mulher durante a infância depende do pai durante a juventude do marido por morte do marido depende dos filhos se não tem filhos depende dos parentes próximos do marido porque uma mulher jamais se deve governar à sua vontade3 As leis gregas e romanas dizem o mesmo Filha é submetida ao pai morto o pai fica submissa aos irmãos e aos agnados4 casada fica sob a tutela do marido morto o marido não volta para a própria família porque renunciou para sempre a ela com o casamento sagrado5 a viúva continua submissa à tutela dos agnados do marido isto é a seus próprios filhos se os tem6 ou caso contrário dos parentes mais próximos7 O marido tem tal autoridade sobre ela que pode antes de morrer designarlhe um tutor ou mesmo escolherlhe novo marido8 Para assinalar o poder do marido sobre a mulher os romanos tinham uma expressão mui antiga que seus jurisconsultos nos conservaram é a palavra manus Não é fácil descobrirlhe o sentido primitivo Os comentadores têmna como expressão da força material como se a mulher estivesse colocada sob a mão brutal do marido É bem provável que estejam enganados O poder do marido sobre a mulher não resultava absolutamente da maior força do primeiro Derivava como todo direito privado das crenças religiosas que colocam o homem acima da mulher O que o prova é que a mulher que não se havia casado de acordo com os ritos sagrados e que por consequência não estava associada ao culto não estava submetida ao poder marital9 O casamento é que constituía a subordinação e ao mesmo tempo a dignidade da mulher Tanto é verdade que não foi o direito do mais forte que constituiu a família Passemos à criança Aqui a natureza fala por si mesma bastante alto ela quer que a criança tenha um protetor um guia um mestre A religião está de acordo com a natureza ela afirma que o pai será o chefe do culto e que o filho deverá somente ajudálo em suas funções sagradas Mas a natureza não exige essa subordinação senão durante certo número de anos a religião exige mais A natureza dá ao filho uma maioridade que a religião não lhe concede De acordo com antigos princípios o lar é indivisível e a propriedade é como ele os irmãos não se separam pela morte do pai com muito mais razão não se podem separar dele durante a vida No rigor do direito primitivo os filhos continuam unidos ao lar paterno e por consequência submetidos à sua autoridade enquanto ele viver são considerados menores Compreendese que essa regra não pôde durar senão enquanto a velha religião doméstica estava em pleno vigor Essa sujeição semfim do filho ao pai desaparece e bem cedo em Atenas Em Roma a velha regra foi escrupulosamente conservada o filho jamais pôde manter um lar particular durante a vida do pai mesmo casado mesmo tendo filhos ficava sob a tutela paterna10 Além disso com o poder paternal dava se o mesmo que com o poder marital tinha por princípio e por condição o culto doméstico O filho nascido do concubinato não estava colocado sob a autoridade do pai Entre o pai e ele não existia comunidade religiosa não havia portanto nada que conferisse a um autoridade e que ordenasse a outro obediência A paternidade por si só não era suficiente para conferir direitos ao pai Graças à religião doméstica a família era um pequeno corpo organizado uma 50 pequena sociedade que tinha seu chefe e seu governo Nada em nossa sociedade moderna pode darnos ideia desse poder paternal Nesses tempos antigos o pai não é somente o homem forte que protege e que tem também poder para se fazer obedecer ele é sacerdote é o herdeiro do lar e continuador dos antepassados o tronco dos descendentes o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração Toda a religião reside nele O próprio nome por que é chamado pater traz em si curiosos ensinamentos A palavra é a mesma em grego em latim e em sânscrito donde podemos concluir que essa palavra data de um tempo em que os antepassados dos helenos dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central Qual era seu sentido e que ideia representava então no espírito dos homens Podemos conhecêla porque ela guardou esse significado primitivo nas fórmulas da língua religiosa e nas do vocabulário jurídico Quando os antigos invocando a Júpiter chamavam no pater hominum Deorumque não queriam dizer que Júpiter fosse o pai dos deuses e dos homens porque jamais o consideraram como tal e criam ao contrário que o gênero humano existiu antes dele O mesmo título de pater foi dado a Netuno a Apolo a Baco a Vulcano a Plutão que os homens certamente não consideravam como pais11 assim o título de mater aplicavase a Diana a Minerva a Vesta que eram consideradas deusas virgens Do mesmo modo na língua jurídica o título de pater ou pater familias podia ser dado a um homem que não tivesse filhos que não fosse casado e que não estava nem mesmo em idade de contrair casamento12 A ideia de paternidade portanto não se ligava a essa palavra A velha língua tinha outra que designava propriamente o pai e que tão antiga quanto pater encontrase como ela nas línguas dos gregos dos romanos dos hindus gânitar ghennetér genitor A palavra pater tinha outro sentido Na língua religiosa aplicavase a todos os deuses na língua do direito a todo homem que não dependesse de outro e que tinha autoridade sobre uma família ou sobre um domínio pater familias Os poetas nos mostram que a empregavam a respeito de todos quantos queriam honrar O escravo e o cliente davamno ao mestre Era sinônimo dos vocábulos rex anax basileus Continha em si não a ideia de paternidade mas a de poder de autoridade de dignidade majestosa Que tal palavra se tenha aplicado ao pai de família até poder tornarse aos poucos seu nome mais comum é certamente fato bem significativo e que parecerá grave a quem quer que deseje conhecer as antigas instituições A história dessa palavra nos bastará para dar ideia do poder que o pai exerceu por muito tempo na família e do sentimento de veneração que se ligava a ele como a pontífice e soberano 2 Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno As leis gregas e romanas reconheceram ao pai esse poder ilimitado do qual a religião o revestira a princípio Os vários e numerosos direitos que as leis lhe conferiram podem ser catalogados em três categorias segundo se considera o pai de família como chefe religioso como senhor da propriedade ou como juiz I O pai é o chefe supremo da religião doméstica dirige todas as cerimônias do culto como bem entende ou antes como vira fazer seu pai Ninguém na família lhe contesta a supremacia sacerdotal A própria cidade e seus pontífices nada podem mudar em seu culto Como sacerdote do lar não reconhece nenhum superior A título de chefe religioso ele é o responsável pela perpetuidade do culto e por consequência pela perpetuidade da família Tudo o que se relaciona com essa perpetuidade que é seu primeiro cuidado e seu primeiro dever depende apenas dele Daí deriva uma série de direitos Direito de reconhecer a criança no ato do nascimento ou de rejeitála Esse direito é atribuído ao pai tanto pelas leis gregas1 quanto pelas leis romanas Por mais bárbaro que seja não está em contradição com os princípios básicos da família A filiação mesmo incontestada não basta para ingressar no círculo da família é necessário o consentimento do chefe e a iniciação ao culto 51 Enquanto a criança não for associada à religião doméstica nada representa para o pai Direito de repudiar a mulher quer em caso de esterilidade porque a família não se deve extinguir quer em caso de adultério porque a família e a descendência devem ficar isentas de toda e qualquer alteração Direito de casar a filha isto é de ceder a outro o poder que tem sobre ela Direito de casar o filho o casamento do filho interessa à perpetuação da família Direito de emancipar isto é de excluir um filho da família e do culto Direito de adotar isto é de introduzir um estranho junto ao lar doméstico Direito de designar ao morrer um tutor para a mulher e os filhos É necessário notar que todos esses direitos eram atribuídos somente ao pai com exclusão de todos os outros membros da família A mulher não tinha o direito de divorciar pelo menos nas épocas mais antigas Mesmo quando viúva não podia nem emancipar nem adotar Jamais podia ser tutora mesmo de seus filhos Em caso de divórcio os filhos ficavam com o pai assim como as filhas Jamais tinha os filhos sob seu poder Para o casamento da filha não lhe pediam seu consentimento2 II Vimos acima que a propriedade não havia sido concebida a princípio como um direito individual mas como direito de família A fortuna pertencia como diz formalmente Platão e como dizem implicitamente todos os antigos legisladores aos antepassados e descendentes Essa propriedade por sua própria natureza era indivisível Em cada família não podia haver mais de um proprietário que era a própria família nem mais de um usufrutuário que era o pai Esse princípio explica várias disposições do direito antigo Como a propriedade era indivisível e repousava por completo sobre a cabeça do pai nem a mulher nem o filho tinham nada de próprio O regime dotal era então desconhecido e teria sido impraticável O dote da mulher pertencia sem reserva ao marido que exercia sobre os bens dotais não somente direitos de administrador mas de proprietário Tudo o que a mulher podia adquirir durante o casamento caía nas mãos do marido Mesmo tornandose viúva não readquiria direitos sobre seu próprio dote3 O filho estava nas mesmas condições que a mulher não possuía coisa alguma Nenhuma doação feita por ele era válida pela mesma razão que nada possuía de próprio Não podia adquirir coisa alguma os frutos de seu trabalho os lucros de seu comércio eram devidos ao pai Se um testamento era feito em seu favor por algum estranho o pai e não ele recebia o legado Por aí se explica o texto do direito romano que proíbe qualquer contrato de venda entre pai e filho Se o pai vendesse algo ao filho vendia para si mesmo porque o filho só podia adquirir por intermédio do pai4 Vemos no direito romano e o encontramos nas leis de Atenas que o pai podia vender o filho5 É que o pai podia dispor de toda a propriedade que estava na família e o próprio filho podia ser considerado como simples propriedade do pai pois seus braços e seu trabalho eram fonte de renda O pai portanto podia de acordo com sua vontade guardar para si mesmo esse instrumento de trabalho ou cedêlo a outro Cedêlo era o que se chamava vender o filho Os textos que possuímos do direito romano não nos esclarecem devidamente sobre a natureza desse contrato de venda e sobre as reservas que nele podiam estar contidas Parece certo que o filho assim vendido não se tornava por completo escravo do comprador O pai podia estipular no contrato que o filho lhe seria revendido Guardava portanto seu poder sobre ele e depois de recebêlo de volta podia tornar a vendêlo6 A lei das Doze Tábuas autorizou essa operação até três vezes declarando porém que depois dessa tríplice venda o filho seria enfim liberto do poder paternal7 Por aí se pode julgar como no direito antigo a autoridade do pai era absoluta8 III Plutarco nos informa que em Roma as mulheres não podiam comparecer perante a justiça mesmo como testemunhas9 Lemos no jurisconsulto Gaio É necessário que se saiba que não se pode ceder nada em justiça às pessoas que estão sob poder de outras isto 52 é à mulher ao filho ao escravo Porque desde que essas pessoas nada podiam possuir de próprio concluiuse com razão que igualmente nada podiam reivindicar em justiça Se vosso filho submetido a vosso poder cometeu um crime a ação em justiça é movida contra vós O crime cometido por um filho contra o pai não dá lugar a nenhuma ação em justiça10 De tudo isso resulta claramente que mulher e filho não podiam ser nem demandistas nem defensores nem acusadores nem acusados nem testemunhas De toda a família apenas o pai podia apresentarse diante do tribunal da cidade a justiça pública não existia senão para ele Desse modo o pai ficava responsável pelos delitos cometidos pelos seus Se a justiça para o filho e a mulher não estava na cidade é porque ela estava no lar Seu juiz era o chefe da família sentado como que num tribunal em virtude de sua autoridade conjugal ou paterna em nome da família e sob os olhos das divindades domésticas11 Tito Lívio conta que o senado desejando extirpar de Roma as bacanais decretou a pena de morte contra todos os que delas participassem O decreto foi facilmente executado no que respeita aos cidadãos Mas a respeito das mulheres que não eram as menos culpadas surgiu grave dificuldade as mulheres não eram condenáveis pelo estado somente a família tinha o direito de julgálas O senado respeitou esse velho princípio e deixou aos maridos e aos pais o encargo de pronunciar contra as mulheres a sentença de morte12 Esse direito de justiça que o chefe de família exercia na casa era completo e sem apelação Podia condenar à morte como fazia o magistrado na cidade nenhuma autoridade tinha direito de modificar sua sentença O marido diz Catão o Antigo é juiz da mulher seu poder não tem limites pode o que quer Se ela cometeu alguma falta ele a castiga se bebeu vinho ele a condena se teve relações com outro homem ele a mata O direito era o mesmo a respeito dos filhos Valério Máximo cita certo Atílio que matou a filha culpada de impudicícia e todo mundo conhece aquele pai que matou o filho cúmplice de Catilina13 Fatos dessa natureza são numerosos na história romana Seria formarse ideia falsa pensar que o pai tinha o direito absoluto de matar mulher e filhos Ele era o juiz Se condenava à morte faziao apenas em virtude de seu direito de justiça Como o pai de família submetiase apenas ao julgamento da cidade a mulher e o filho não podiam encontrar outro juiz além dele No seio da família ele era o único magistrado É necessário além do mais notar que a autoridade paterna não era um poder arbitrário como o seria aquele que derivava do direito do mais forte Ela tinha seu princípio nas crenças que estavam no fundo das almas e encontrava seus limites nessas mesmas crenças Por exemplo o pai tinha direito de excluir o filho da família mas sabia que se o fizesse a família correria o risco de se extinguir e os manes de seus antepassados cairiam no eterno esquecimento Tinha o direito de adotar estranhos mas a religião proibialhe fazêlo se tivesse filhos Era proprietário único dos bens mas não tinha pelo menos na origem o direito de alienálos Podia repudiar a mulher mas para fazêlo era necessário que ousasse quebrar o laço religioso que o casamento havia estabelecido Assim a religião impunha ao pai tanto obrigações como direitos Foi assim por muito tempo a família antiga As crenças que reinavam nos espíritos bastaram sem que houvesse necessidade do direito da força ou da autoridade de um poder social para constituíla regularmente para darlhe disciplina governo justiça e para fixar em todos esses detalhes o direito privado Notas Livro II Cap VIII 1 Plauto Mercator V 1 5 O sentido primitivo da palavra lar é o de senhor príncipe mestre Cf Lar Porsenna Lar Tolumnius 2 Festo ed Müller p 125 53 3 Leis de Manu V 147 148 4 Demóstenes In Onetorem I 7 In Boeotum de dote 7 In Eubulidem 40 Iseu De Meneclis hered 2 3 Demóstenes In Stephanum II 18 5 Em caso de divórcio a mulher voltava para a casa paterna Demóstenes In Eubul 41 6 Demóstenes In Stephanum II 20 In Phaenippum 27 In Macartatum 75 Iseu De Pyrrhi hered 50 Cf Odisséia XXI 350 353 7 Gaio I 145147 190 IV 118 Ulpiano XI 1 e 27 8 Demóstenes In Aphobum I 5 Pro Phormione 8 9 Cícero Topic 14 Tácito Ann IV 16 Aulo Gélio XVIII 6 Veremos mais adiante que em certa época e por razões que mais tarde explicaremos imaginaramse novas formas de casamento que produziam os mesmos efeitos jurídicos do casamento religioso 10 Quando Gaio disse do poder paternal Jus proprium est civium Romanorum devemos entender que nos tempos de Galo o direito romano não reconhecia esse poder senão para o cidadão romano isso não quer dizer que não tenha existido anteriormente em outros lugares ou que não tenha sido reconhecido pelo direito das outras cidades Isso será esclarecido pelo que diremos acerca da situação legal dos súditos sob o domínio de Roma No direito ateniense anterior a Sólon o pai podia vender os filhos Plutarco Sólon 13 e 23 11 Aulo Gélio V 12 Lactâncio Instit IV 3 Varrão De ling lat V 66 Cícero De nat Deor II 26 A mesma palavra é aplicada ao deus Tibre nas orações Tiberine Pater te Sancte precor Tito Lívio II 10 Virgílio chama a Vulcano de Pater Lemnius o deus de Lemnos 12 Ulpiano no Digesto I 6 4 2 1 Heródoto I 59 Plutarco Alcibíades 23 Agesilau 3 2 Demóstenes In Eubul 40 43 Gaio I 155 Ulpiano VIII 8 Institutas I 9 Digesto liv I tít 1 11 3 Gaio II 98 Todas essas regras do direito primitivo foram modificadas pelo direito pretoriano Do mesmo modo em Atenas nos tempos de Iseu e de Demóstenes o dote era restituído em caso de dissolução do casamento Neste capítulo nosso intuito é falar apenas do direito mais antigo 4 Cícero De legib I 20 Gaio II 87 Digesto liv XVIII tít 1 2 5 Plutarco Sólon 13 Dionísio de Halic II 26 Gaio I 117 132 VI 79 Ulpiano X 1 Tito Lívio XLI 8 Festo v Deminutus 6 Gaio I 140 7 Ulpiano Fragm X 1 8 Quando o filho cometia um crime o pai podia livrarse de sua responsabilidade entregandoo a título de indenização à pessoa lesada Gaio I 140 O pai nesse caso perdia seu poder sobre o filho Vide Cícero Pro Caecina 34 De Oratore I 40 9 Plutarco Publicola 8 10 Gaio II 96 IV 77 78 11 Tempo houve em que essa jurisdição foi modificada pelos costumes o pai consultava a família inteira e a erigia em tribunal por ele presidido Tácito Ann XIII 32 Digesto lív XXIII tít 4 5 Platão Leis IX 12 Tito Lívio XXXIX 18 13 Catão em Aulo Gélio X 23 Valério Máximo IV 1 36 Do mesmo modo a lei ateniense permitia ao marido matar a mulher adúltera Eschol ad Horat Sat II 7 62 e ao pai vender como escrava a filha desonrada Plutarco Sólon 23 CAPÍTULO IX 54 A ANTIGA MORAL DA FAMÍLIA A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana ela deve aspirar a conhecer o que essa alma acreditou pensou sentiu nas diferentes idades da vida do gênero humano No início deste livro mostramos antigas crenças que o homem concebeu sobre seu destino depois da morte Dissemos depois como essas crenças deram origem às instituições domésticas e ao direito privado Resta procurar qual era a ação dessas crenças sobre a moral nas sociedades primitivas Sem pretender que essa velha religião tenha criado os sentimentos morais no coração do homem podese pelo menos crer que se tenha unido a eles para fortalecêlos para darlhes maior autoridade para assegurar seu império e seu direito de comando sobre a conduta do homem e às vezes também para falseálos A religião desses primeiros tempos era exclusivamente doméstica o mesmo acontecia com a moral A religião não dizia ao homem mostrandolhe outro homem Eis ali teu irmão Ela lhe dizia Eis ali um estranho que não pode participar dos atos religiosos de teu lar não pode aproximarse do túmulo de tua família ele tem outros deuses e não pode unirse a ti por uma prece comum teus deuses rejeitam sua adoração e o encaram como inimigo ele é também teu inimigo Nessa religião do lar o homem jamais reza à divindade em favor dos outros homens ele não a invoca senão para si e para os seus Um provérbio grego ficou como lembrança e vestígio desse antigo isolamento do homem na oração Nos tempos de Plutarco diziase ainda ao egoísta Sacrificas ao lar1 Isso significava Tu te afastas de teus concidadãos não tens amigos teus semelhantes nada significavam para ti não vives senão para ti e para os teus Esse provérbio era o indício de um tempo em que gravitando toda a religião ao redor do lar o horizonte da moral e do afeto não chegava a ultrapassar os estreitos limites da família É natural que a ideia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a ideia religiosa O Deus das primeiras gerações nessa raça era bem mesquinho pouco a pouco os homens tornaramno maior assim a moral a princípio muito restrita e incompleta alargouse insensivelmente até que de progresso em progresso chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens Seu ponto de partida foi a família e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem Imaginemos essa religião do lar e do túmulo na época de seu pleno vigor O homem vê bem perto de si a divindade Ela está presente como a própria consciência a todas as suas mínimas ações Essa criatura frágil encontrase sob os olhos de uma testemunha que não a abandona Ele não se sente jamais só A seu lado em sua casa em seu campo tem protetores para amparálo nos labores da vida e juízes para punir suas ações delituosas Os lares dizem os romanos são divindades temíveis encarregadas de castigar os homens e de velar sobre tudo o que se passa no interior das casas Os penates dizem eles ainda são os deuses que nos fazem viver eles nutrem nosso corpo e dirigem nossa alma2 Era grato aos homens desse tempo dar ao lar o epíteto de casto3 e acreditavase até que o lar ordenava aos homens a observância da castidade Nenhum ato material ou moralmente impuro devia ser cometido em sua presença As primeiras ideias de falta de castigo de expiação parecem ter aí a sua origem O homem que se sente culpado não pode mais aproximarse do lar seu deus o repele Para quem quer que haja derramado sangue não há mais sacrifício possível nem libação nem prece nem banquete fúnebre O deus é tão severo que não admite desculpas não distingue entre morte involuntária e crime premeditado A mão manchada de sangue não pode mais tocar os objetos sagrados4 Para que o homem possa retomar seu culto e voltar à posse de seu deus é necessário pelo menos que se purifique por uma cerimônia expiatória5 Essa religião conhece a misericórdia possui ritos capazes de limpar as 55 impurezas da alma por mais acanhada e grosseira que seja ela sabe consolar o homem por suas próprias faltas Se ela ignora de modo absoluto os deveres de caridade pelo menos traça ao homem com admirável nitidez seus deveres de família Torna o casamento obrigatório o celibato é um crime aos olhos de uma religião que faz da continuidade da família o primeiro e mais santo dos deveres Mas a união que prescreve não pode realizarse senão na presença das divindades domésticas é a união religiosa sagrada indissolúvel do esposo e da esposa Não se julgue o homem autorizado a deixar de lado os ritos e a fazer do casamento um simples contrato consensual como aconteceu no fim das sociedades grega e romana A antiga religião lho proíbe e se ousar fazêlo ela o castiga porque o filho que vier a nascer dessa união é considerado bastardo isto é uma criatura que não tem lugar no lar não tem o direito de realizar nenhum ato sagrado não pode orar6 Essa mesma religião vela com cuidado sobre a pureza da família A seus olhos a mais grave falta que possa ser cometida é o adultério porque a primeira regra do culto é que o lar se transmite de pai para filho ora o adúltero perturba a ordem do nascimento Outra regra é que o túmulo não encerra senão os membros da família ora o filho do adultério é um estranho que será enterrado nesse túmulo Todos os princípios da religião são violados o culto é maculado o lar se torna impuro cada oferta ao túmulo transformase em simples ato de impiedade Há mais pelo adultério a série dos descendentes fica rompida a família mesmo sem que os homens vivos o saibam está extinta e não há mais felicidade divina para os antepassados Assim diz o hindu O filho do adultério aniquila nesta vida e na outra as ofertas dedicadas aos manes7 Eis por que as leis da Grécia e de Roma dão ao pai o direito de rejeitar a criança que acaba de nascer Eis também por que elas são tão rigorosas tão inexoráveis para o adultério Em Atenas permitese ao marido matar o culpado Em Roma o marido julga a mulher e a condena à morte Essa religião era tão severa que o homem nem mesmo tinha o direito de perdoar completamente sendo no mínimo forçado a repudiar a mulher8 Eis aí pois as primeiras leis da moral doméstica conhecidas e confirmadas Eis aí além do sentimento natural uma religião imperiosa que diz ao homem e à mulher que eles estão unidos para sempre e que dessa união derivam deveres rigorosos cujo esquecimento acarretaria as consequências mais graves nesta vida e na outra Daí se derivou o caráter sagrado e sério da união conjugal entre os antigos e a pureza que a família conservou por tanto tempo Essa moral doméstica prescreve ainda outros deveres Diz à esposa que ela deve obedecer e ao marido que deve mandar Ensina a ambos a se respeitarem mutuamente A mulher tem direitos porque tem seu lugar no lar é a encarregada de conserválo sempre aceso e sobretudo deve velar pela sua pureza invocao e lhe oferece sacrifícios9 A mulher portanto também tem seu sacerdócio Sem a presença da mulher o culto doméstico tornase incompleto e insuficiente É grande desgraça para um grego ter um lar sem esposa10 Entre os romanos a presença da mulher é tão necessária no sacrifício que o padre perde o sacerdócio ao se tornar viúvo11 Podese acreditar que é a essa divisão do sacerdócio doméstico que a mãe de família deve a veneração que jamais deixou de cercá la nas sociedades grega e romana Donde resulta a mulher ostentar na família o mesmo título que o marido os latinos dizem pater famílias e mater familias os gregos oikodespótes e oikodéspoina os hindus grihapati grihapatni Daí procede também esta fórmula que a mulher pronunciava no casamento romano Ubi tu Caius ego Caia fórmula que nos diz que se na casa a mulher não tem autoridade igual pelo menos tem igual dignidade12 Quanto ao filho vimolo submisso à autoridade de um pai que pode vendêlo e condenálo à morte Mas esse filho tem seu papel também no culto ele desempenha uma função nas cerimônias religiosas sua presença em certos dias é de tal modo necessária que o romano que não tem filhos se vê forçado a adotar um ficticiamente para esses dias a fim 56 de que os ritos sejam observados13 Vede agora que laço poderoso a religião estabelece entre pai e filho Acreditase em uma segunda vida no túmulo vida feliz e calma se os banquetes fúnebres são oferecidos regularmente Assim o pai está convencido de que seu destino depois desta vida dependerá do cuidado que o filho terá de seu túmulo e o filho por sua vez está convencido de que o pai morto se tornará um deus a quem deverá invocar Podese adivinhar todo o respeito e afeto recíproco que essas crenças inspiravam na família Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade a obediência do filho ao pai o amor que dedicava à mãe eram piedade pietas erga parentes o afeto do pai ao filho a ternura da mãe eram ainda piedade pietas erga liberos Tudo era divino na família Sentimento de dever afeição natural ideia religiosa tudo se confundia e se exprimia pela mesma palavra Parecerá talvez estranho contar o amor do lar entre as virtudes e esta era uma das virtudes dos antigos Esse sentimento era profundo e poderoso em suas almas Vede Anquises que à vista de Tróia em chamas não quer contudo abandonar a velha casa Vede Ulisses a quem oferecem todos os tesouros até a imortalidade e nada deseja senão rever a chama de seu lar Avancemos até Cícero não é mais um poeta é um homem de Estado que fala Aqui está minha religião aqui está minha raça aqui estão as pegadas de meus pais não sei que encanto é este que penetra meu coração e meus sentidos14 É necessário que nos coloquemos em pensamento entre as mais antigas gerações para compreender como esses sentimentos já enfraquecidos nos tempos de Cícero haviam sido vivos e poderosos Para nós a casa é somente um domicílio um abrigo deixamola e nos esquecemos dela sem muito sacrifício e se a amamos não o fazemos senão pela força do hábito e das recordações Porque para nós a religião não está no lar nosso Deus é o Deus do universo e nós o encontramos em toda parte Entre os antigos não se dava o mesmo era no interior das casas que encontravam sua principal divindade sua providência aquela que os protegia individualmente que escutava suas orações e atendialhes os votos Fora do lar o homem não sentia mais deus o deus do vizinho era um deus hostil O homem amava então a casa como agora ama a igreja15 Destarte as crenças das primeiras idades não ficaram estranhas ao desenvolvimento moral dessa parte da humanidade Seus deuses prescreviam a pureza e proibiam o derramamento de sangue a noção de justiça se não se originou dessa crença pelo menos se tornou forte por meio dela Seus deuses pertenciam em comum a todos os membros de uma mesma família a família se encontra assim unida por forte laço e todos seus membros aprenderam a se respeitar e amar uns aos outros Os deuses viviam no interior de cada casa o homem portanto amava a própria casa morada fixa e duradoura que herdara dos antepassados e que legaria aos filhos como um santuário A antiga moral pautada por essas crenças ignorava a caridade mas pelo menos ensinava as virtudes domésticas O isolamento da família foi entre essas raças o início da moral Então os deveres apareceram claros precisos imperiosos mas confinados a um círculo restrito E não nos devemos esquecer na continuação deste livro desse caráter restrito da moral primitiva porque a sociedade civil fundada mais tarde sobre idênticos princípios revestiuse dos mesmos caracteres e muitos traços singulares da antiga política terão nela sua explicação16 Notas Livro II Cap IX 1 Pseudo Plutarco ed Dubner V 167 Eustato in Odyss VII 247 2 Plutarco Quest rom 51 Macróbio Sat III 4 3 Eurípides Hercul fur 705 4 Heródoto I 35 Virgílio En II 719 Plutarco Teseu 12 5 Heródoto Ibidem Ésquilo Coéf 96 a cerimônia é descrita por Apolônio de Rodes IV 704707 57 6 Iseu De Philloct heredit 47 Demóstenes In Macartatum 51 A religião dos tempos posteriores proibia ainda ao nóthos oficiar como sacerdote Vide Ross Inscr gr III 52 7 Leis de Manu III 175 8 Demóstenes In Neaer 86 É verdade que se essa moral primitiva condenava o adultério não reprovava o incesto a religião autorizavao As proibições relativas ao casamento eram contrárias às nossas era louvável casarse com a irmã Cornelíus Nepos proemíum id Vida de Cimon c 1 Minúcio Félix Otávio 30 mas era proibido em princípio casarse com mulher de outra cidade 9 Catão De re rustica 143 Macróbio I 15 Comparar com o que diz Dionísio de Halicarnasso II 22 10 Xenofonte Gov de Laced IX 5 11 Plutarco Quest rom 50 Cf Dionísio de Halicarnasso II 22 12 Por isso muitos se enganam quando falam da triste sujeição da mulher romana in manu mariti A palavra manus implica a ideia não de força brutal mas de autoridade e se aplica tanto à autoridade do pai sobre a filha como à do irmão sobre a irmã como à do marido sobre a mulher Tito Lívio XXXIV 2 A mulher casada de acordo com os ritos era senhora da casa Macróbio I 15 In fine Dionísio de Halicarnasso II 25 define claramente a situação da mulher Obedecendo em tudo ao marido ela era a senhora da casa como ele 13 Dionísio de Halicarnasso II 20 22 14 Cícero De legib II 1 Pro domo 41 15 Daí a santidade do domicilio que os antigos sempre consideraram inviolável Demóstenes In Androt 52 In Evergum 60 Digesto De in jus voc II 4 16 Haverá necessidade de advertir que neste capítulo tentamos apenas a antiga moral dos povos que depois se tornaram os gregos e os romanos Haverá necessidade de acrescentar que essa moral com o tempo se modificou sobretudo entre os gregos Já na Odisséia encontraremos novos e diferentes costumes a continuação deste livro o mostrará CAPÍTULO X A GENS EM ROMA E NA GRÉCIA Encontramos entre os jurisconsultos romanos e os escritores gregos os traços de uma antiga instituição que parece ter tido grande vigor na primeira idade das sociedades modernas grega e italiana mas que com seu paulatino enfraquecimento não deixou senão vestígios apenas perceptíveis na última parte de sua história Queremos falar do que os latinos chamavam de gens e os gregos ghénos Muito se discutiu sobre a natureza e a constituição da gens Talvez não seja inútil esclarecer antes de mais nada o que constitui a dificuldade do problema A gens como veremos adiante formava um corpo cuja constituição era puramente aristocrática é graças à sua organização interior que os patrícios de Roma e os eupátridas de Atenas perpetuaram por muito tempo seus privilégios Quando o partido popular subiu ao poder não deixou de combater com todas as forças essa velha instituição Se conseguisse aniquilála por completo é provável que não nos restaria dela a menor lembrança Mas estava tão singularmente viva e enraizada nos costumes que não se conseguiu fazêla desaparecer inteiramente Contentaramse então em modificála tiraramlhe o que constituía seu caráter essencial e não ficaram senão suas formas exteriores que não prejudicavam em nada o novo regime Assim em Roma os plebeus imaginaram formar gentes à imitação dos patrícios em Atenas tentouse alterar os ghéne fundindoos entre si e substituindoos pelos demos estabelecidos à sua semelhança Explicaremos esses fatos quando falarmos das revoluções Bastenos agora notar aqui que 58 essa alteração profunda introduzida pela democracia no regime da gens é de natureza a confundir aqueles que desejam conhecer sua primitiva constituição Com efeito quase todos os comentários que chegaram até nós datam da época em que ela se transformou e não nos mostram das mesmas senão o que as revoluções deixaram subsistir Suponhamos que em vinte séculos todo o conhecimento da Idade Média desaparecesse e que não restasse nenhum documento sobre o que precedeu a revolução de 1789 e que no entanto um historiador desse tempo quisesse fazer ideia das instituições anteriores Os únicos documentos que terá em mãos mostrarão a nobreza do século décimo nono isto é algo muito diferente do regime feudal Mas o historiador haveria de imaginar que nesse intervalo dera se uma grande revolução e concluiria com razão que essa instituição como todas as outras deve terse transformado a nobreza que os textos lhe mostrariam não seria para ele mais que a imagem ou sombra muito alterada de outra nobreza incomparavelmente mais poderosa Depois examinando com atenção os escassos restos dos antigos documentos algumas expressões linguísticas alguns termos escapados à lei vagas lembranças ou queixas estéreis chegaria talvez a adivinhar alguma coisa do regime feudal e conseguiria fazer das instituições da Idade Média uma ideia que não ficaria muito distante da verdade A dificuldade seria realmente grande e não é menor para o historiador de hoje desejoso de conhecer antiga gens porque não há outros ensinamentos a respeito além daqueles que datam de uma época em que ela não era mais que a sombra de si mesma Começaremos por analisar tudo o que os escritores antigos nos dizem a respeito da gens isto é o que subsistia dela na época em que já estava muito modificada Depois com o auxílio desses elementos tentaremos entrever o verdadeiro regime da antiga gens 1 O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens Se abrirmos a história romana no tempo das guerras púnicas encontraremos três personagens que se chamam Claudius Pulcher Claudius Nero e Claudius Centho Todos pertencem à mesma gens a gens Cláudia Demóstenes em um de seus discursos apresenta cinco testemunhas que afirmam pertencer ao mesmo ghénos o dos brítidas O que se deve notar neste exemplo é que os sete personagens citados como membros do mesmo ghénos achavamse inscritos em seis demos diferentes isso demonstra que o ghénos não correspondia exatamente ao demo e não constituía como este uma simples divisão administrativa1 Eis portanto provado um primeiro fato havia gentes em Roma e em Atenas Poderíamos citar exemplos relativos a muitas outras cidades da Grécia e da Itália e concluir que de acordo com toda verossimilhança essa instituição era universal entre os povos antigos Cada gens tinha um culto especial Na Grécia reconheciamse os membros de uma mesma gens pela identidade dos sacrifícios comuns desde época bastante remota2 Plutarco menciona o lugar dos sacrifícios da gens dos Licomedos e Ésquino fala do altar da gens dos Butados3 Também em Roma cada gens tinha atos religiosos a cumprir o dia o lugar os ritos eram fixados por sua religião particular4 O Capitólio é bloqueado pelos gauleses surge um Fábio e atravessa as linhas inimigas vestindo o hábito religioso e carregando objetos sagrados ele vai oferecer o sacrifício sobre o altar de sua gens que está situado sobre o Quirinal Durante a segunda guerra púnica outro Fábio a quem chamavam de broquel de Roma enfrenta Aníbal é fora de dúvida que a república tem grande necessidade de que não abandone o exército contudo ele o deixa nas mãos do imprudente Minúcio porque chegara o dia do aniversário de sua gens e é necessário que corra a Roma para realizar o ato sagrado5 O culto devia ser perpetuado de geração em geração era dever de cada um deixar filhos para continuálos Um inimigo pessoal de Cícero Cláudio abandona sua gens para entrar em uma família plebeia Cícero lhe diz Por que expões a religião da gens Cláudia a se extinguir por tua causa6 59 Os deuses da gens dii gentiles não protegiam senão a ela e não queriam ser invocados senão por ela Nenhum estranho podia ser admitido às cerimônias religiosas Acreditavase que se um estranho recebia parte da vítima ou apenas assistia ao sacrifício os deuses da gens ficavam ofendidos e todos seus membros estavam sob a ameaça de uma grave impiedade Assim como cada gens tinha seu culto e suas festas religiosas possuía também seu túmulo comum Lemos em um discurso de Demóstenes Este homem tendo perdido os filhos enterrouos no túmulo de seus pais túmulo comum a todos os de sua gens A continuação do discurso mostra que nenhum estranho podia ser enterrado no mesmo túmulo Em outro discurso o mesmo orador fala de um túmulo onde a gens dos Busélidas enterra seus membros e onde celebra cada ano um sacrifício fúnebre Esse lugar da sepultura é um campo bastante vasto cercado por um muro de acordo com antigo costume7 O mesmo acontecia entre os romanos Veléio fala do túmulo da gens Quintília e Suetônio nos diz que a gens Cláudia tinha o seu túmulo na encosta do monte Capitolino8 O antigo direito de Roma considera os membros de uma gens como aptos a herdar uns dos outros As Doze Tábuas afirmam que na falta de filhos e de agnados o gentilis é o herdeiro natural Nessa legislação o gentilis é portanto parente mais próximo que o cognado isto é mais próximo que o parente pela parte das mulheres9 Nada está mais estreitamente unido que os membros de uma gens Unidos na celebração das mesmas cerimônias sagradas eles se ajudam mutuamente em todas as necessidades da vida Toda a gens responde pela dívida de qualquer de seus membros resgata os prisioneiros e paga a multa dos condenados Se um dos seus se torna magistrado ela se cotiza para pagar as despesas que acarreta toda magistratura10 O acusado fazse acompanhar ao tribunal por todos os membros de sua gens isso marca a solidariedade que a lei estabelece entre o homem e o corpo de que faz parte É ato contrário à religião queixarse contra um homem de sua gens ou mesmo prestar testemunho contra ele Um Cláudio personagem considerável era inimigo pessoal de Ápio Cláudio o decênviro quando este foi citado em justiça e ameaçado de morte Cláudio apresentouse para defendêlo e implorou ao povo em seu favor não porém sem antes advertir de que se dava esse passo não o fazia por afeto mas por dever11 Se um membro da gens não tinha direito de citar outro perante a justiça da cidade é porque na própria gens administrava se justiça Cada uma com efeito tinha seu chefe que era ao mesmo tempo juiz sacerdote e comandante militar12 Sabese que quando a família sabina dos Cláudios veio estabelecerse em Roma as três mil pessoas que a compunham obedeciam a um único chefe Mais tarde quando os Fábios tomam sobre os ombros a guerra contra os Veianos vemos que essa gens tem um chefe que fala em seu nome diante do senado e que a conduz contra o inimigo13 Também na Grécia cada gens tinha um chefe as inscrições nolo afirmam e nos mostram que esse chefe usava geralmente o título de arconte14 Enfim tanto em Roma como na Grécia a gens tinha suas assembleias promulgava decretos aos quais seus membros deviam obedecer e que eram respeitados pela própria cidade15 Tal é o conjunto de costumes e de leis que encontramos em vigor em épocas nas quais a gens já se achava enfraquecida e quase desnaturada São estes os vestígios dessa antiga instituição16 2 Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana Sobre esse assunto de há muito entregue à disputa dos eruditos vários sistemas têm sido propostos Uns dizem a gens não é nada mais que uma semelhança de nome Segundo outros a gens não é senão a expressão de certa relação entre uma família que exerce o patronado e outras famílias suas clientes Cada uma dessas opiniões contém parte da verdade mas nenhuma corresponde a toda a série de fatos de leis e costumes que acabamos de enumerar 60 De acordo com outra teoria a palavra gens designa uma espécie de parentesco artificial a gens é a associação política de várias famílias que em sua origem eram estranhas umas às outras na falta de laços de sangue a cidade estabelecera entre elas uma união fictícia um parentesco convencional Mas uma primeira objeção se nos apresenta Se a gens não é senão uma associação fictícia como explicar que seus membros tenham direito de herdar uns dos outros Por que o gentilis é preferido ao cognado Vimos acima as regras da hereditariedade e declaramos a relação estrita e necessária que a religião estabelecera entre o direito de herdar e o parentesco masculino Poderemos supor que a antiga lei se afastasse tanto desse princípio a ponto de conceder a sucessão aos gentiles se estes fossem considerados estranhos O caráter mais evidente e melhor constatado da gens é que ela possui culto próprio como a família Ora se procurarmos qual é o deus adorado por cada uma notaremos que é sempre um antepassado divinizado e que o altar onde oferece o sacrifício é um túmulo Em Atenas os Eumólpidas veneram a Eumolpos tronco de sua raça os Fitálidas adoram ao herói Fitalos os Butadas a Butos os Busélidas a Buselos os Laquiadas a Laquos os Aminandridos a Cécrops1 Em Roma os Cláudios descendem de certo Clausus os Cecílios honram como chefe da raça o herói Céculo os Calpúrnios a Calpo os Júlios a um Júlio os Clélios a certo Clélio2 É verdade que bem podemos crer que muitas dessas genealogias foram imaginadas mais tarde mas devemos notar que esse embuste não tem razão de ser se não estivesse em constante uso entre as verdadeiras gentes reconhecer um antepassado comum e renderlhe culto A mentira procura sempre imitar a verdade Aliás o embuste não seria tão fácil como parece O culto não era apenas uma mera formalidade para se exibir Uma das regras mais rigorosas da religião era que não se deviam honrar como antepassados senão aqueles dos quais se descendia realmente oferecer culto a um estranho era impiedade grave Se portanto a gens adorava em comum algum antepassado é porque acreditava sinceramente descender dele Simular um túmulo inventar aniversários e banquetes fúnebres seria mentir no que havia de mais sagrado seria zombar da religião Tal ficção foi possível nos tempos de César quando a velha religião das famílias já não impressionava a ninguém Mas se nos reportarmos aos tempos em que essas crenças eram poderosas não podemos imaginar que várias famílias associandose em uma mesma farsa tenham dito entre si Vamos fingir ter um mesmo antepassado nós lhes levantaremos um túmulo oferecerlheemos banquetes fúnebres e nossos descendentes o adorarão pelos tempos afora Tal pensamento não se devia apresentar aos espíritos de onde devia ser expulso como culposo Nos problemas difíceis que a história oferece frequentemente é bom perguntar aos termos da língua todos os ensinamentos que ela nos pode dar Uma instituição é às vezes explicada pelo vocábulo que a designa Ora a palavra gens exprime exatamente o mesmo que a palavra genus a ponto de se poder tomálas uma pela outra e dizer indiferentemente gens Fabia ou genus Fabium3 ambas correspondem ao verbo gignere e ao substantivo genitor absolutamente como ghénos corresponde a ghennãn e a ghonéus Todas essas palavras trazem ideia de filiação Também os gregos designavam os membros de um ghonéus pela palavra homogálactes que significa nutrido pelo mesmo leite4 Comparemos todas essas palavras com as que temos o costume de traduzir por família o latim família e o grego õikos Nem uma nem outra contêm em si o sentido de geração ou de parentesco O verdadeiro significado de família é propriedade designa o campo a casa o dinheiro os escravos e é por isso que as Doze Tábuas dizem falando do herdeiro familiam nancitor o que aceita a sucessão Quanto a õikos é claro que não apresenta ao espírito outra ideia que a de propriedade ou de domicílio Eis aí contudo os vocábulos que traduzimos ordinariamente por família Ora é admissível que palavras cujo sentido intrínseco é domicílio ou propriedade tenham 61 sido empregadas tantas vezes para designar a família e que outras palavras cujo sentido interno é filiação nascimento paternidade jamais designassem mais que uma associação artificial Certamente isso não é conforme à nitidez e à precisão das línguas antigas É fora de dúvida que gregos e romanos ligavam às palavras gens e ghénos a ideia de uma origem comum Essa ideia pode haver desaparecido quando a gens foi alterada mas a palavra ficou como testemunho de sua existência O sistema que apresenta a gens como uma associação factícia tem portanto a seu desfavor 1 a velha legislação que dá aos gentiles direito de sucessão 2 as crenças religiosas que não admitem comunidade de culto senão onde há comunidade de nascimento 3 Os termos da língua que atestam na gens uma origem comum Outro defeito deste sistema é que supõe que as sociedades humanas puderam começar por uma convenção por um artifício o que a ciência histórica não pode admitir como verdade 3 A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade Tudo nos apresenta a gens como unida por um laço de origem Consultemos ainda a linguagem os nomes das gentes tanto na Grécia como em Roma todos têm a forma que era usada em ambas as línguas para os nomes patronímicos Cláudio significa filho de Clausus e Butadas filho de Butas Os que julgam ver na gens uma associação artificial partem de uma ideia falsa Supõem que uma gens contava sempre várias famílias com nomes diversos e citam de bom grado o exemplo da gens Cornélia que na verdade teve entre seus membros alguns Cipiões Lêntulos Cossus e Silas Estaria certo se tudo corresse sempre assim A gens Márcia parece não ter tido jamais senão uma única linhagem o mesmo acontece com a gens Lucrécia e a gens Quintília durante muito tempo Seria na verdade muito difícil dizer quais são as famílias que formaram a gens Fábia porque todos os Fábios conhecidos na história pertencem manifestamente à mesma estirpe e de começo todos levam o mesmo sobrenome Vibulano trocamno logo depois por Ambusto que mais tarde substituem pelo sobrenome de Máximo ou de Dorso Sabese que era costume em Roma que todo patrício tivesse três nomes Chamavase por exemplo Públio Cornélio Cipião Não é inútil saber qual dessas três palavras era considerada nome verdadeiro Públio não passava de um nome posto na frente praenomen Cipião era um nome ajuntado agnomen O verdadeiro nome nomen era Cornélio ora esse nome era ao mesmo tempo o nome de toda a gens Se não tivéssemos acerca da antiga gens nada mais além desse ensinamento este só bastaria para afirmar que houve Cornélios antes que existissem Cipiões e não como se costuma dizer que a família dos Cipiões se uniu a outras para formar a gens Cornélia Com efeito vemos pela história que a gens Cornélia foi por muito tempo indivisa e que todos seus membros ostentavam igualmente o cognome de Malugenenses e o de Cossus Somente no tempo do ditador Camilo é que um de seus ramos adotou o sobrenome de Cipião pouco mais tarde outro ramo toma o sobrenome de Rufo substituído depois pelo de Sila Os Lêntulos não aparecem senão na época da guerra dos Samnitas e os Cetegos apenas durante a segunda guerra púnica O mesmo acontece com a gens Cláudia Os Cláudios ficam por muito tempo unidos em uma única família e todos levam o sobrenome de Sabinos ou de Regilenses sinal de sua origem Durante sete gerações não se distinguem ramos nessa família aliás muito numerosa Somente na oitava geração isto é nos tempos da primeira guerra púnica é que vemos três ramos separaremse e adotar sobrenomes que se lhes tornam hereditários são os Claudius Pulcher que continuam por dois séculos os Claudius Centho que não demoram a desaparecer e os Claudius Nero que se perpetuam até os tempos do império Disso tudo se conclui que a gens não era uma associação de famílias mas a própria família Podia indiferentemente compreender uma única estirpe ou produzir ramos numerosos mas nunca deixava de ser uma só família Todavia tornase fácil entender a formação da gens antiga e de sua natureza 62 se nos reportarmos às velhas crenças e instituições que observamos acima Reconhecerseá mesmo que a gens derivou se naturalmente da religião doméstica e do direito privado das antigas idades Que prescreve com efeito essa religião primitiva Que o antepassado isto é o homem que por primeiro foi sepultado no túmulo familiar seja honrado perpetuamente como deus e que seus descendentes reunidos cada ano junto ao lugar sagrado onde repousa lhe ofereçam o banquete fúnebre O lar sempre aceso o túmulo sempre honrado pelo culto eis o centro ao redor do qual todas as gerações vêm viver e pelo qual todos os ramos da família por mais numerosos que possam ser continuam agrupados em um único feixe Que diz ainda o direito privado desses velhos tempos Observandose o que era a autoridade na família antiga vimos que os filhos não se separavam do pai estudandose as regras da transmissão do patrimônio constatamos que graças ao princípio da comunidade do domínio os irmãos menores não se separavam do mais velho Lar túmulo patrimônio tudo isso em sua origem era indivisível A família o era por consequência O tempo não a desmembrava Essa família indivisível que se desenvolvia através das idades perpetuando de século em século seu culto e seu nome era verdadeiramente a gens antiga A gens era a família mas a família conservando a unidade ordenada pela religião e atingindo todo o desenvolvimento que o antigo direito privado lhe permitia atingir1 Admitida essa verdade tudo o que os antigos escritores nos dizem a respeito da gens tornase claro A estreita solidariedade que há pouco notamos entre seus membros nada tem mais de surpreendente eles são parentes por nascimento O culto que praticam em comum não é uma ficção vemlhes de seus antepassados Como eles são uma mesma família têm sepultura comum Pela mesma razão a lei das Doze Tábuas declara os aptos a herdar uns dos outros Como todos eles tinham na origem um mesmo patrimônio indivisível tornouse costume e mesmo necessidade que a gens inteira respondesse pela dívida de um de seus membros que pagasse a ração do prisioneiro ou a multa do condenado Todas essas regras haviam sido estabelecidas por si mesmas quando a gens ainda estava unida com seu desmembramento não puderam desaparecer completamente Da unidade antiga e santa da família ficaram marcas persistentes no sacrifício anual que tornava a congregar os membros dispersos na legislação que lhes reconhecia direitos de hereditariedade nos costumes que lhes ordenava que se ajudassem mutuamente Era natural que os membros de uma mesma gens usassem um mesmo nome e foi o que aconteceu O uso dos nomes patronímicos data dessa antiguidade e se relaciona visivelmente com a velha religião A unidade de nascimento e de culto era indicada pela unidade do nome Cada gens transmite de geração em geração o nome do antepassado e o perpetua com o mesmo cuidado que demonstrava para com o culto O que os romanos chamavam propriamente de nomen era esse nome do antepassado que todos os descendentes e todos os membros da gens deviam levar Dia veio em que cada ramo tornandose independente em algumas coisas marcou sua individualidade adotando o sobrenome cognomen Contudo como cada pessoa devia distinguirse por uma denominação particular cada um recebeu um agnomem como Caius ou Quintus Mas o verdadeiro nome era o da gens este era o usado oficialmente este era o nome sagrado este era o que remontando ao primeiro antepassado conhecido devia durar tanto quanto a família e seus deuses O mesmo acontecia na Grécia romanos e helenos assemelhamse também nesse pormenor Cada grego pelo menos se pertencia a uma família antiga e regularmente constituída tinha três nomes como os patrícios romanos Um destes lhe era particular outro era o nome do pai e como esses dois nomes alternavamse ordinariamente entre si o conjunto de ambos equivalia ao cognome hereditário que designava em Roma um ramo da gens enfim o terceiro nome era o de toda a gens Assim diziase Milcíades filho de Címon Laquia e na geração seguinte Címon filho de Milcíades Laquiadas Kimõn Miltiádou Lakiádes Os Laquiadas formavam um ghénos como os Cornélios uma gens Assim acontecia com os Butados os Filatidos os Britidos os 63 Aminandridos etc Podemos notar que Píndaro jamais faz o elogio desses gregos sem lembrarlhes o nome de seu ghénos Esse nome entre os gregos ordinariamente terminava em ides ou ades e tinha assim uma forma de adjetivo do mesmo modo que o nome da gens entre os romanos terminava invariavelmente em ius Não era esse o verdadeiro nome na linguagem diária podiase designar o homem por seu sobrenome individual mas na linguagem oficial da política ou da religião era necessário dar ao homem sua denominação completa e sobretudo não esquecer o nome do ghénos2 É digno de nota que a história dos nomes seguiu caminho completamente diverso entre os antigos do que nas sociedades cristãs Na Idade Média até o século doze o verdadeiro nome era o nome de batismo ou nome individual e os nomes patronímicos não apareceram senão muito tarde como nomes de terra ou como sobrenomes Entre os antigos deuse exatamente o contrário Ora essa diferença se a observarmos bem relacionase à diferença das duas religiões Para a antiga religião doméstica a família era o verdadeiro corpo o verdadeiro ser vivente do qual o indivíduo era membro inseparável assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro em importância A nova religião pelo contrário reconhecia ao indivíduo uma vida própria uma liberdade completa uma independência toda pessoal e não lhe repugnou de modo algum isolálo da família destarte o nome de batismo foi o primeiro e por muito tempo o único nome 4 Extensão da família a escravidão e a clientela O que temos visto da família sua religião doméstica os deuses por ela instituídos as leis por ela estabelecidas o direito de primogenitura sobre o qual se baseava sua unidade seu desenvolvimento de idade em idade até formar a gens sua justiça seu sacerdócio seu governo interior tudo isso leva forçosamente nosso pensamento para uma época primitiva em que a família era independente de todo poder superior e em que a cidade ainda não existia Vejamos essa religião doméstica os deuses que não que não pertenciam senão a uma família e não exerciam sua providência além dos muros de uma casa o culto secreto a religião que não queria ser propagada a antiga moral que prescrevia o isolamento das famílias é claro que crenças dessa natureza não puderam aparecer no espírito dos homens senão em épocas em que as grandes sociedades ainda não estavam formadas Se o sentimento religioso contentouse com uma concepção tão restrita da divindade é porque a associação humana era então proporcionalmente acanhada Os tempos em que o homem não acreditava senão nos deuses domésticos é também o tempo em que não existiam senão famílias É bem verdade que essas crenças subsistiram depois e até por muito tempo quando as cidades e nações já estavam formadas O homem não se liberta facilmente das opiniões que uma vez o dominaram Essas crenças portanto puderam durar embora estivessem em contradição com o estado social Com efeito que há de mais contraditório que viver em sociedade civil e ter em cada família deuses particulares Mas é claro que essa contradição não existiu sempre e que na época em que essas crenças se haviam estabelecido nos espíritos e se haviam tornado tão poderosas para formar uma religião elas correspondiam exatamente ao estado social dos homens Ora o único estado social que pode estar de acordo com elas é aquele em que a família vive independente e isolada É nesse estado que toda a raça ariana parece ter vivido por muito tempo Os hinos dos Vedas o atestam para o ramo que deu nascimento aos hindus as velhas crenças e o velho direito privado o atestam para aqueles que depois se tornaram os gregos e os romanos Se compararmos as instituições políticas dos árias do Ocidente com as dos árias do Oriente não encontraremos quase nenhuma analogia Se compararmos pelo contrário as instituições domésticas desses diversos povos perceberemos que a família estava constituída de acordo com os mesmos princípios tanto na Grécia como na Índia esses princípios eram aliás como constatamos acima de natureza tão singular que não devemos supor que a semelhança fosse simples efeito do acaso enfim não somente 64 essas instituições oferecem evidente analogia mas ainda as palavras que as designam são muitas vezes as mesmas nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges até o Tibre Daí podemos tirar duas conclusões uma é que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que seus diferentes ramos se separaram outra é que pelo contrário o nascimento das instituições políticas é posterior a essa separação As primeiras foram fixadas desde os tempos em que a raça vivia ainda em seu antigo berço da Ásia central as segundas se formaram pouco a pouco nos diversos lugares onde suas migrações a conduziram Podese pois entrever um longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade além da família Foi então que surgiu a religião doméstica que não teria podido nascer em sociedade constituída de modo diverso e que por muito tempo serviu até de obstáculo ao desenvolvimento social Estabeleceuse então o antigo direito privado que mais tarde achouse em desacordo com os interesses de uma sociedade pouco desenvolvida mas que estava em perfeita harmonia com o estado da sociedade na qual se formou Ponhamonos portanto com o pensamento no meio dessas antigas gerações cuja lembrança não pôde perecer por completo e que legaram suas crenças e leis às gerações seguintes Cada família tem sua religião seus deuses seu sacerdócio O isolamento religioso é sua lei seu culto é seu segredo Na mesma morte e na existência que se lhe segue as famílias não se confundem cada uma continua a viver à parte em seu túmulo de onde os estranhos são excluídos Cada família tem também sua propriedade isto é a parte de terra que lhe está ligada inseparavelmente pela religião seus deuses Termos guardamlhe os limites e seus manes a protegem O isolamento da propriedade é de tal modo obrigatório que dois domínios não podem avizinharse e devem deixar entre si uma faixa de terra neutra que se torna inviolável Enfim cada família tem seu chefe como uma nação teria um rei tem suas leis que sem dúvida não são escritas mas que a crença grava no coração de cada homem tem sua justiça interior acima da qual não há nenhuma outra à qual possa apelar Tudo aquilo de que o homem tem rigorosa necessidade para sua vida material ou para sua vida moral a família o possui em si Não precisa de coisa alguma de fora é um estado organizado uma sociedade autossuficiente Mas essa família das antigas idades não está reduzida às proporções da família moderna Nas grandes sociedades a família se desmembra e diminui mas na ausência de qualquer outra sociedade ela se estende se desenvolve ramificase sem se dividir Os ramos mais novos continuam agrupados ao redor do mais velho perto do lar único e do túmulo comum Outro elemento ainda entra na composição dessa família antiga A necessidade recíproca que o pobre tem do rico e que o rico tem do pobre criou os servos Mas nessa espécie de regime patriarcal servos ou escravos tudo é a mesma coisa Com efeito concebese que o princípio do serviço livre voluntário podendo cessar à vontade do servidor não se pode coadunar com um estado social em que a família vive isolada Aliás a religião doméstica não permite admitir na família nenhum estranho É necessário portanto que por algum meio o servo se torne membro e parte integrante da família o que se consegue por uma espécie de iniciação do recémvindo no culto doméstico Um costume curioso que por muito tempo subsistiu nas casas atenienses mostra nos como o escravo entrava para a família Faziamno aproximar do lar colocavamno em presença da divindade doméstica derramavamlhe sobre a cabeça a água lustral e faziamno compartilhar com a família de alguns bolos e frutas1 Essa cerimônia tinha analogia com a do casamento e da adoção Significava sem dúvida que o novo membro outrora estranho de agora em diante passava a ser membro da família cuja religião adotava Assim o escravo assistia às preces e participava das festas2 O lar o protegia a religião dos deuses lares pertencialhe tanto quanto a seu dono3 É por essa razão que o escravo devia ser enterrado na sepultura da família 65 Mas por isso mesmo que o servo adquiria o culto e o direito de orar perdia a liberdade A religião era uma cadeia que o retinha Estava ligado à família por toda a vida e mesmo para o tempo que se seguia à morte Seu senhor podia libertálo e tratálo como homem livre Mas o servo não deixava por isso a família Como estava ligado a ela pelo culto não podia sem impiedade separar se da mesma Sob o nome de liberto ou de cliente continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono e não deixava de ter obrigações para com ele Não se casava senão com sua autorização e seus filhos continuavam a deverlhe obediência4 Formavase assim no seio da grande família certo número de pequenas famílias clientes e subordinadas Os romanos atribuíam o estabelecimento da clientela a Rômulo como se uma instituição dessa natureza pudesse ser obra de um só homem A clientela é mais antiga que Rômulo Aliás existia em toda parte tanto na Grécia como em toda a Itália5 Não foram as cidades que estabeleceram regras pelo contrário como veremos mais adiante elas pouco a pouco diminuíramnas destruíramnas A clientela é uma instituição do direito doméstico e existiu nas famílias antes que existissem cidades Não devemos julgar a clientela dos tempos antigos pelos clientes que vemos no tempo de Horácio É claro que o cliente foi por muito tempo um servo ligado ao patrão Mas havia então algo que constituía sua dignidade ele tomava parte no culto e estava associado à religião da família Tinha o mesmo lar as mesmas festas os mesmos sacra que o patrono Em Roma em sinal dessa comunidade religiosa tomava o nome da família Era considerado membro da mesma pela adoção Daí um laço estreito e uma reciprocidade de deveres entre o patrono e o cliente Ouvi a velha lei romana Se o patrono causou dano ao cliente que seja maldito sacer esto que morra6 O patrono deve proteger o cliente por todos os meios e todas as forças de que dispõe por sua oração como sacerdote por sua lança como guerreiro por sua lei como juiz Mais tarde quando a justiça da cidade chamar o cliente o patrono deverá defendêlo deverá mesmo revelarlhe as fórmulas misteriosas da lei que o farão ganhar a causa7 Podese testemunhar em justiça contra um cognado mas nunca contra um cliente8 e os deveres para com os clientes continuarão a ser considerados muito acima dos deveres para com os cognados9 Por que Porque um cognado ligado somente pelas mulheres não é parente e não toma parte na religião da família O cliente pelo contrário tem a comunidade do culto goza por mais inferior que seja do verdadeiro parentesco que consiste segundo expressão de Platão em adorar os mesmos deuses domésticos A clientela é um laço sagrado que a religião formou e que nada poderá romper Uma vez que se é cliente em uma família não se pode mais separarse dela A clientela desses tempos primitivos não é relação voluntária e passageira entre dois homens é hereditária ése cliente por dever de pai a filho10 Por tudo isso vemos que a família nos tempos antigos com seu ramo mais velho e seus ramos mais novos seus servos e clientes podia formar um grupo de homens muito numeroso Uma família graças à religião que a mantinha unida graças a seu direito particular que a tornava indivisível graças às leis da clientela que mantinha seus servos chegou a formar com o tempo uma sociedade muito extensa que tinha seu chefe hereditário Foi de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece haver sido composta durante uma longa série de séculos Esses milhares de pequenos grupos viviam isolados com poucas relações entre si sem necessidade uns dos outros sem estarem unidos por nenhum laço nem religioso nem político tendo cada um seu domínio cada um seu governo interior cada um seus deuses particulares Notas Livro II Cap X 1 Demóstenes In Neaer 71 Vide Plutarco Temist 1 Ésquines De falsa legat 147 Boeckh Corp inscr n 385 Ross Demi Attici 24 A gens entre os gregos muitas vezes é chamada de pátra Píndaro passim 66 2 Harpocrácio v Ghennétai Hesíquio idem 3 Plutarco Temíst I Ésquines De falsa legat 147 4 Cícero De arusp resp 15 Dionísio de Halicarnasso XI 14 Festo v Propudi ed Müller p 238 5 Tito Lívio V 46 XXII 18 Valério Máximo I 1 11 Políbio III 94 Plínio XXXIV 13 Macróbio III 5 6 Cícero Pro domo 13 7 Demóstenes In Macart 79 In Eubul 28 8 Suetônio Tibérío I Veléio II 119 9 Gaio III 17 Digesto III 3 1 10 Tito Lívio V 32 Dionísio de Halicarnasso Fragm XIII 5 Apiano Annib 28 11 Tito Lívio III 58 Dionísio XI 14 12 Dionísio de Halicarnasso II 7 13 Idem IX 5 14 Boeckh Corp Inscr ns 397 399 Ross Demi Attici 24 15 Tito Lívio VI 20 Suetônio Tibérío 1 Ross Demi Attici 24 16 Cícero tentou uma definição da gens Gentiles sunt qui inter se eodem nomine sunt qui ab ingenuis oriundi sunt quorum majorum nemo servitutem servivit Cic Tópicos 6 Essa definição é incompleta indica apenas alguns sinais exteriores e não os caracteres essenciais Cícero que pertencia à ordem dos plebeus parece ter tido ideias muito vagas a respeito da gens dos tempos antigos ele afirma que o rei Sérvio Túlio era seu gentilis meo regnante gentili Tusculanas I 16 e que certo Verrucino era quase o gentilis de Verres In Verrem II 77 2 1 Demóstenes In Macart 79 Pausânias I 37 Inscrição dos Aminandridas citada por Ross p 24 2 Festo verbis Coeculus Calpurnii Cloelia 3 Tito Lívio II 46 Genus Fabium 4 Filócoro nos Fragm hist graec t I p 399 Pólux VIII 11 3 1 Não voltamos atrás sobre o que dissemos acima Liv II cap V a respeito da agnação Já vimos que agnação e gentilidade procediam dos mesmos princípios e eram parentesco da mesma natureza A passagem da lei das Doze Tábuas que designa a herança aos gentiles na falta de agnati causou embaraços aos jurisconsultos e fez pensar que poderia haver uma diferença essencial entre essas duas espécies de parentesco Mas essa diferença essencial não aparece em nenhum texto Erase agnatus como se era gentilis pela descendência masculina e por vínculos religiosos Havia entre os dois parentescos apenas diferença de grau que se acentuou sobretudo a partir da época em que os ramos de uma mesma gens se separaram O agnatus era membro do ramo o gentills o era da gens Estabeleceuse então a mesma distinção entre os termos gentilis e agnatus que entre as palavras gens e familia Familiam dicimus omnium agnatorum diz Ulpiano no Digesto Liv L tít 16 195 Quando se era agnado em relação a um homem erase com muito mais razão seu gentilis mas podiase ser gentilis sem se ser agnado A lei das Doze Tábuas dava a herança na falta de agnados aos que eram apenas gentiles com relação ao defunto isto é que pertenciam à sua gens sem fazer parte de sua família ou de seu ramo Veremos mais adiante que entrou na gens um elemento de ordem inferior a clientela daí se formou um vínculo de direito entre a gens e o cliente ora esse vínculo de direito chamouse também gentilitas Por exemplo em Cícero De oratore I 39 a expressão jus gentilitatis designa a relação entre a gens e os clientes É assim que a mesma palavra designava duas coisas que não devemos confundir 2 É verdade que mais tarde a democracia substituiu o nome do demo pelo do ghénos o que era uma maneira de imitar e de se apropriar da antiga regra 4 1 Demóstenes In Stephanum I 74 Aristófanes Plutus 768 Esses dois escritores indicam claramente uma cerimônia mas não a descrevem Os escoliastes de Aristófanes acrescentam alguns detalhes Vide em Ésquilo 67 como Clitemnestra recebe uma nova escrava Entra nesta casa pois Júpiter deseja que participes das abluções da água lustral com meus outros escravos junto a meu lar doméstico Ésquilo Agamemnon 10351038 2 Aristóteles Econômicas I 5 É pelos escravos mais do que pelas pessoas livres que se devem celebrar os sacrifícios e as festas Cícero De legibus II 8 Ferias in famulis habento Nos dias de festa era proibido fazer o escravo trabalhar Cíc De legib II 12 3 Cícero De legib II 11 O escravo podia até celebrar o ato religioso em nome do senhor Catão De re rustica 83 4 Quanto às obrigações dos libertos em direito romano vide Digesto XXXVII 144 De jure patronatus XII 15 De obsequiis parentibus et patronis praestandis XIII 1 De operis libertorum O direito grego no que diz respeito à alforria e à clientela transformouse muito mais depressa que o direito romano Por isso restamnos muito poucos esclarecimentos sobre a antiga condição dessa classe de pessoas ver contudo Lísias em Harpocrácio na palavra Apostasíon Crisipo em Ateneu VI 93 e uma passagem curiosa de Platão Leis XI p 915 Disso resulta que o liberto sempre tinha deveres para com o antigo senhor 5 Clientela entre os sabinos Tito Lívio II 18 Dionísio V 40 entre os etruscos Dionísio IX 5 entre os gregos Dionísio II 9 6 Lei das Doze Tábuas citada por Sérvio ad Aen VI 609 Cf Virgílio Aut fraus innexa clienti Sobre os deveres dos patronos vide Dionísio II 10 7 Horácio Epist II 1 104 Cícero De orat III 33 8 Catão em Aulo Gélio V 3 XXI 1 9 Aulo Gélio XX 1 10 Essa verdade em nossa opinião está bem clara em dois fatos que nos são contados um por Plutarco outro por Cícero C Herênio chamado para testemunhar contra Mário alegou ser contrário às regras antigas que um patrono testemunhasse contra seu cliente e como se admirassem aparentemente de que Mário que já havia sido tribuno fosse qualificado de cliente ele acrescentou que efetivamente Mário e sua família desde os tempos mais remotos sempre haviam sido clientes da família dos Herênios Os juízes admiramse do argumento mas Mário que não se importava por se ver reduzido a essa condição replicou que no dia em que havia sido eleito para uma magistratura libertarase da clientela o que não era bem verdade acrescenta o historiador porque nenhuma magistratura libertava da condição de cliente somente os magistrados curuis tinham esse privilégio Plut Vida de Mário 5 A clientela portanto era salvo essa única exceção obrigatória e hereditária Mário a havia esquecido o que não aconteceu com os Herênios Cícero menciona um processo discutido em seu tempo entre os Cláudios e os Marcelos os primeiros a título de chefes da gens Cláudia pretendiam em virtude do direito antigo que os Marcelos fossem seus clientes estes em vão ocupavam há dois séculos os primeiros postos do Estado os Cláudios persistiam em sustentar que o vínculo de clientela não podia ter sido destruído Esses dois fatos salvos do esquecimento permitemnos julgar o que era a primitiva clientela
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1 A Cidade Antiga Fustel de Coulanges Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros NumaDenys Fustel de Coulanges 18301889 Título original La Cité Antique Étude sur Le Culte Le Droit Les Institutions de la Grèce et de Rome eBooksBrasil 2 ÍNDICE LIVRO PRIMEIRO Antigas Crenças Capítulo I Crenças a respeito da alma e da morte Capítulo II O culto dos mortos Capítulo III O fogo sagrado Capítulo IV A religião doméstica LIVRO SEGUNDO A Família Capítulo I A religião foi o princípio constitutivo da família antiga Capítulo II O casamento Capítulo III Continuidade da família Proibição do celibato Divórcio em caso de esterilidade Desigualdade entre filho e filha Capítulo IV Adoção e emancipação Capítulo V O parentesco o que os romanos entendiam por agnação Capítulo VI O direito de propriedade Capítulo VII Direito de sucessão 1 Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos 2 O filho herda e não a filha 3 Da sucessão colateral 4 Efeitos da emancipação e da adoção 5 O testamento a princípio não era conhecido 6 Antiga indivisão do patrimônio Capítulo VIII A autoridade na família 1 Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos 2 Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno Capítulo IX A antiga moral da família Capítulo X A Gens em Roma e na Grécia 1 O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens 2 Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana 3 A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade 4 Extensão da família a escravidão e a clientela 3 LIVRO PRIMEIRO ANTIGAS CRENÇAS CAPÍTULO I CRENÇAS A RESPEITO DA ALMA E DA MORTE Até os últimos tempos da história da Grécia e de Roma vemos persistir entre o vulgo um conjunto de pensamentos e costumes que certamente datavam de época muito remota pelos quais poderemos conhecer quais opiniões o homem tinha a princípio a respeito da própria natureza da alma e sobre o mistério da morte Quanto mais nos aprofundamos na história da raça indoeuropeia na qual se ramificaram os povos gregos e itálicos constatamos que essa raça sempre pensou que depois desta vida breve tudo acaba para o homem As mais antigas gerações muito antes que aparecessem os filósofos acreditaram em uma segunda existência depois da atual Encararam a morte não como dissolução do ser mas como simples mudança de vida Mas em que lugar e de que maneira se desenrolava essa existência Acreditavam que o espírito imortal uma vez livre do corpo ia animar a outro Não a crença na metempsicose jamais tomou raízes no espírito das populações grecoromanas também não é a mais antiga opinião entre os árias do Oriente pois os hinos dos Vedas contrariam essa crença Acreditavase então que o espírito ia para o céu para a região da luz Nem isso o pensamento segundo o qual as almas entravam em uma morada celeste é de época relativamente recente no Ocidente a morada celeste era considerada apenas recompensa para alguns grandes homens e benfeitores da humanidade De acordo com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos a alma não passava sua segunda existência em um mundo diferente do em que vivemos continuava junto dos homens vivendo sobre a terra1 Acreditouse até por muito tempo que durante essa segunda existência a alma continuava unida ao corpo Nascendo junto a ele a alma não se separava mas fechavase com ele na sepultura Por mais antigas que sejam essas crenças delas nos ficaram testemunhos autênticos Esses testemunhos são os ritos fúnebres que sobreviveram a essas crenças primitivas mas que certamente haviam nascido ao mesmo tempo servindo para que as compreendamos melhor Os ritos fúnebres mostram claramente que quando colocavam um corpo na sepultura acreditavam enterrar algo vivo Virgílio que sempre descreve com tanta precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas termina a narração dos funerais de Polidoro com estas palavras Encerramos a alma do túmulo Idêntica expressão encontrase em Ovídio e em Plínio o Jovem não que elas correspondessem à ideia que esses escritores tinham da alma mas desde tempos imemoriais essa crença perpetuarase na linguagem atestando antigas crenças populares2 Era costume no fim da cerimônia fúnebre chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido desejandolhe vida feliz sobre a terra Diziamlhe três vezes Passe bem E acrescentavam Que a terra lhe seja leve3 tanta era a certeza de que a criatura continuava a viver sobre a terra conservando a sensação de bemestar ou de sofrimento No 4 epitáfio declaravase que o morto ali repousava expressão que sobreviveu a essas crenças e que de século em século chegou até nós Nós usamos ainda este costume embora ninguém hoje pense que um ser imortal possa repousar em um túmulo Mas antigamente acreditavase tão firmemente que ali vivia um homem que nunca deixavam de enterrar junto com o corpo objetos que supunham serlhe necessários como vestidos vasos e armas4 Derramavase vinho sobre o túmulo para matarlhe a sede levavamlhe alimentos para saciarlhe a fome5 Degolavamse cavalos e escravos pensando que essas criaturas sepultadas juntamente com os mortos prestarlhesiam serviços dentro do túmulo como o haviam feito durante a vida6 Depois da tomada de Tróia os gregos retornam a seu país cada um deles leva uma bela escrava mas Aquiles que está morto também exige uma escrava e lhe entregam Polixena7 Um verso de Píndaro guardounos curioso vestígio desse pensamento das gerações antigas Frixos havia sido constrangido a deixar a Grécia fugindo até a Cólquida onde morreu Mas embora morto desejava retornar à Grécia Apareceu portanto a Pélias e lhe ordenou que fosse à Cólquida para de lá trazer sua alma Sem dúvida essa alma sentia a nostalgia do solo pátrio do túmulo da família mas unida aos restos corporais não podia deixar sozinha a Cólquida8 Dessa crença primitiva derivouse a necessidade do sepultamento Para que a alma se mantivesse nessa morada subterrânea necessária para sua segunda vida era preciso que o corpo ao qual permanecia ligada fosse coberto de terra A alma que não possuía sepultura não possuía morada e ficava errante Em vão aspirava ao repouso que deveria desejar depois das agitações e trabalhos desta vida e era obrigada a errar sempre sob a forma de larva ou de fantasma sem se deter jamais e sem receber nunca as ofertas e alimentos de que necessitava Como era infeliz logo se tornava perversa Atormentava os vivos provocavalhes doenças destruía colheitas assustavaos com aparições lúgubres a fim de fazer com que dessem sepultura a seu corpo e a si mesma Daí se originou a crença nas almas do outro mundo9 Toda a antiguidade estava persuadida de que sem sepultura a alma era miserável e que pela sepultura tornavase feliz Não era por ostentação de dor que se oficiavam as pompas fúnebres mas para repouso e felicidade da alma do morto10 Notemos bem que não bastava confiar o corpo à terra Era necessário ainda obedecer a ritos tradicionais e pronunciar determinadas fórmulas Em Plauto encontrase a história de uma alma penada11 forçada a andar errante porque seu corpo fora lançado à terra sem o devido ritual Suetônio conta que o corpo de Calígula enterrado antes de se completar a cerimônia fúnebre fez com que sua alma se tornasse errante aparecendo a diversas pessoas até o dia em que o desenterraram sepultandoo novamente de acordo com as regras12 Esses dois exemplos demonstram claramente o efeito que se atribuía aos ritos e fórmulas da cerimônia fúnebre Já que sem eles as almas tornavam se errantes e apareciam aos vivos era evidente que tais ritos fixavamnas e encerravamnas dentro dos túmulos E assim como havia algumas fórmulas que possuíam essa virtude os antigos possuíam outras que produziam efeitos contrários capazes de evocar as almas fazendoas sair momentaneamente de seus sepulcros Vêse claramente pelos escritores antigos como o homem era atormentado pelo medo de que depois de sua morte não fossem observados os devidos ritos Essa era uma fonte de inquietudes pungentes13 Temiase menos a morte que a privação da sepultura pois desta última dependia o repouso e felicidade eterna Não nos devemos mostrar muito surpresos ao ver os atenienses matar os generais que depois de uma vitória naval haviam negligenciado a sepultura dos mortos Esses generais discípulos dos filósofos talvez distinguissem a alma do corpo e como não acreditavam que a sorte da alma estivesse ligada à do corpo julgaram de pouca importância que um cadáver se decompusesse na água ou na terra Por isso não desafiaram a tempestade pela vã formalidade de recolher e sepultar seus mortos Mas a plebe que mesmo em Atenas mantinhase fiel às antigas crenças acusou seus generais de impiedade e condenouos à morte Por sua vitória haviam 5 salvado Atenas mas por sua negligência haviam perdido milhares de almas Os parentes dos mortos pensando nos longos suplícios a que estavam condenadas aquelas almas apresentaramse ao tribunal vestidos de luto e pediram vingança14 Nas cidades antigas a lei punia os grandes criminosos com um castigo considerado terrível a privação da sepultura15 Puniase desse modo a própria alma condenandoa a suplício quase eterno É necessário observar que entre os antigos estabeleceuse ainda uma outra opinião a respeito da morada dos mortos Imaginaram uma região também subterrânea mas infinitamente mais espaçosa que o túmulo onde todas as almas longe dos corpos viviam reunidas penando ou gozando de acordo com a conduta do homem durante a vida Mas os ritos fúnebres como os descrevemos acima estão manifestamente em desacordo com essas crenças prova certa de que na época em que foram estabelecidos não se acreditava ainda na existência do Tártaro ou dos Campos Elísios A primeira opinião dessas gerações antigas foi que a criatura humana vivia na sepultura que a alma não se separava do corpo e que permanecia unida à parte do solo onde os ossos estavam enterrados Por sua vez o homem não tinha que prestar nenhuma conta de sua vida anterior Uma vez sepultado não esperava nem recompensas nem suplícios Opinião certamente primitiva mas que é a infância da noção sobre a vida futura A criatura que vivia debaixo da terra não estava tão livre de sua condição humana para não ter necessidade de alimentos Assim em determinados dias do ano levavase uma refeição a cada túmulo16 Ovídio e Virgílio deixaramnos a descrição dessa cerimônia cujo uso conservarase intacto até seu tempo embora as crenças já se houvessem transformado Segundo nos narram afeitavamse os túmulos com grandes grinaldas de folhas e flores ofereciamse doces frutas sal fazendo sobre a terra libações de leite e vinho ou mesmo regandoa com o sangue de alguma vítima17 Enganarseia muito quem pensasse que essa refeição fúnebre não era senão uma espécie de comemoração Os alimentos que a família levava eram realmente para o morto exclusivamente para ele E isso concluímos pelo seguinte o leite e o vinho eram derramados sobre a terra do túmulo um buraco era cavado a fim de que os alimentos sólidos chegassem até o defunto se lhe imolavam uma vítima todas as carnes eram queimadas para que nenhuma pessoa viva delas participasse pronunciavamse certas fórmulas consagradas para convidar o morto a comer e a beber se a família inteira assistia à refeição ninguém tocava nos alimentos e por fim ao se retirarem os familiares tinham grande cuidado em deixar um pouco de leite e alguns doces em vasos consideravase grande impiedade o fato de alguém tocar nessa pequena provisão destinada às necessidades do morto Essas velhas crenças persistiram por muito tempo e sua expressão ainda se encontra entre os grandes escritores da Grécia Derramo sobre a terra do túmulo diz Ifigênia em Eurípides leite mel e vinho pois só assim podemos contentar os mortos18 Filho de Peleu diz Neoptólemo recebe esta bebida tão grata aos mortos vem e bebe este sangue19 Electra faz libações e diz A bebida penetrou na terra meu pai a recebeu20 Eis a prece de Orestes a seu pai defunto Ó meu pai se eu viver receberás ricos banquetes mas se eu morrer não terás parte nas mesas fumegantes onde os mortos se alimentam21 As sátiras de Luciano atestam que esses costumes subsistiam ainda em seu tempo Os homens imaginam que as almas vêm lá debaixo para saborear os manjares que lhes oferecem que se regalam com o cheiro das iguarias e que bebem o vinho derramado sobre seus túmulos22 Entre os gregos diante de cada túmulo havia um local destinado à imolação da vítima e ao cozimento das carnes23 Os túmulos romanos tinham igualmente sua culina espécie de cozinha especial unicamente para uso do morto24 Plutarco conta que depois da batalha de Plateia como os guerreiros mortos haviam sido enterrados no lugar do combate os plateanos se comprometeram a 6 oferecerlhes cada ano o banquete fúnebre Em consequência no aniversário da batalha dirigiamse em grande procissão conduzidos pelos primeiros magistrados à colina sob a qual repousavam os mortos Ofereciamlhes leite óleo perfumes e imolavamlhes uma vítima Quando os alimentos estavam colocados sobre os túmulos os plateanos pronunciavam uma fórmula mediante a qual chamavam os mortos convidandoos a que tomassem suas refeições Esta cerimônia ainda era observada nos tempos de Plutarco que presenciou o sexto centenário dessa comemoração25 Luciano nos conta qual a opinião que deu origem a todos esses costumes Os mortos escreve ele alimentamse dos manjares que colocamos sobre seus túmulos e bebem o vinho que neles derramamos desse modo o morto que nada recebe é condenado à fome perpétua26 Eis aí crenças antigas e que nos parecem realmente falsas e ridículas Contudo elas exerceram seu império sobre o homem por muitas e muitas gerações Elas governaram as almas e logo veremos que tais crenças é que dirigiram as sociedades e que a maior parte das instituições domésticas e sociais dos antigos nelas tiveram sua origem Notas Livro I Cap I 1 Sub terra censebant reliquam vitam agi mortuorum Cícero Tusc I 16 Essa crença era tão forte acrescenta Cícero que mesmo quando se estabeleceu o costume de queimar os corpos continuouse a acreditar que os mortos viviam debaixo da terra Cf Eurípides Alceste 163 Hécuba passim 2 Virgílio En III 67 Ovídio Fast V 451 Plínio Ep VII 27 A descrição de Virgílio referese ao uso dos cenotáfios admitiase que quando não se podia encontrar o corpo de um parente se realizasse uma cerimônia que reproduzisse exatamente todos os ritos da sepultura acreditandose com isso encerrar a alma do morto no túmulo mesmo na falta do corpo Eurípides Helena 1061 1240 Escoliastes ad Píndar IV 234 Virgílio VI 505 XII 214 3 Ilíada XXIII 221 Eurípides Alceste 479 Pausânias II 7 2 Catulo C 10 Sérvio ad Aeneid II 640 III 68 XI 97 Ovídio Fast IV 852 Metam X 62 Juvenal VII 207 Marcial I 89 V 35 IX 30 4 Eurípides Alceste 637 638 Orestes 14161418 Virgílio En VI 221 XI 191196 O antigo costume de oferecer dádivas aos mortos é atestado quanto a Atenas por Tucídides II 34 A lei de Sólon proibia enterrar mais de três vestidos com o morto Plutarco Sólon 21 Luciano fala ainda deste costume Quantos vestidos e adornos não são enterrados com os mortos como se eles fossem usálos debaixo da terra Ainda nos funerais de César em época de grande superstição observouse o antigo costume levandose à fogueira osmunera roupas armas joias Suetônio César 34 Cf Tácito Ann III 3 5 Eurípides Ifigênia em Táurida 163 Virgílio En V 7680 VI 225 6 Ilíada XXI 2728 XXIII 165176 Virgílio En X 51920 XI 8084 197 Idêntico costume existia na Gália César B G V 17 7 Eurípides Hécuba 4041 107113 637638 8 Píndaro Pitiq IV 284 ed Heyne ver o Escoliastes 9 Cícero Tusculunas I 16 Eurípides Tróia 1085 Heródoto V 92 Virgílio VI 371 379 Horácio Odes I 23 Ovídio Fast V 483 Plínio Epist VII 27 Suetônio Calíg 59 Sérvio ad Aen III 63 10 Ilíada XXII 358 Odisséia XI 73 11 Plauto Mostellaria III 2 12 Suetônio Calígula 59 13 Vide na Ilíada XXII 338344 Heitor pedindo ao vencedor que não o deixe insepulto Rogote por teus joelhos por tua vida por teus pais não dês meu corpo aos cães junto aos navios dos gregos aceita o ouro que meu pai te há de oferecer em abundância e mandalhe meu corpo a fim de que troianos e troianas me prestem as honras devidas na fogueira No mesmo sentido em Sófocles Antígone enfrenta a morte para que seu irmão não fique insepulto Sóf Antígone 467 O mesmo sentimento é expresso por Virgílio IX 213 Horácio Odes 1 18 v 2436 Ovídio Heróides X 119123 Tristes III 3 45 Igualmente nas maldições o que se podia desejar de mais horrível para um inimigo era morrer e ficar insepulto Virgílio Eneida IV 620 7 14 Xenofonte Helênicas I 7 15 Ésquilo Os sete contra Tebas 1013 Sófocles Antígone 198 Eurípides Fen 16271632 Cf Lísias Epitáf 79 Todas as cidades antigas acrescentavam ao suplício dos grandes criminosos a privação da sepultura 16 Isso em latim chamase inferias ferre parentare ferre solemnia Cícero De legibus II 21 Lucrécio III 52 Virgílio Eneida VI 380 IX 214 Ovid Amor I 13 3 Essas dádivas às quais os mortos tinham direito chamavamse Manium jura Cf Cícero De legib II 21 Cícero aludia a isso em Pro Flacco 38 e na primeira Filípica 6 Esses costumes eram ainda observados nos tempos de Tácito Hist II 95 Tertuliano atacaos como se estivessem ainda em pleno vigor em seu tempo De ressurr carnis I De testim animae 4 17 Virgílio En III 301303 V 7781 Ovídio Fast II 535542 18 Eurípídes Ifigênia em Táurida 157163 19 Eurípides Hécuba 536 Electra 505 e seguintes 20 Ésquilo Coéforas 162 21 Ésquilo Coéforas 432484 Nos Persas Ésquilo atribui a Atossa as ideias dos gregos Trago a meu esposo estes manjares para satisfação dos mortos leite mel dourado e o fruto da vinha chamemos a alma de Dario e derramemos estas bebidas que a terra há de tragar e que penetrarão até os deuses lá debaixo Persas 610 620 Quando as vítimas eram oferecidas às divindades do céu a carne era comida pelos ofertantes mas quando eram oferecidas aos mortos a carne era queimada por completo Pausânias II 10 22 Luciano Caron 22 Ovídio Fastos II 566 23 Luciano Caron 22 Cavam valas junto aos túmulos e ali cozinham alimentos para os mortos 24 Festo v Culina 25 Plutarco Aristides 21 26 Luciano De luctu9 CAPÍTULO II O CULTO DOS MORTOS Essas crenças logo deram lugar a regras de conduta Desde que o morto tinha necessidade de alimento e de bebida pensou se que era dever dos vivos satisfazer às suas necessidades O cuidado de levar alimentos aos mortos não foi abandonado ao capricho ou aos sentimentos mutáveis dos homens era obrigatório Estabeleceuse desse modo uma verdadeira religião da morte cujos dogmas logo se reduziram a nada mas cujos ritos duraram até o triunfo do Cristianismo Os mortos eram considerados criaturas sagradas1 Os antigos davamlhes os epítetos mais respeitosos que podiam encontrar chamavamnos de bons de santos de bemaventurados2 Tinham por eles toda a veneração que o homem pode ter para com a divindade que ama e teme Segundo seu modo de pensar cada morto era um deus3 Essa espécie de apoteose não era privilégio dos grandes homens não se faziam distinções entre os mortos Cícero afirma Nossos ancestrais quiseram que os homens que deixaram de viver fossem contados entre os deuses4 Não era necessário ter sido um homem virtuoso o mau tornavase deus tanto quanto o homem de bem apenas continuava nessa segunda existência com todas as más inclinações que tivera na primeira5 Os gregos de boa mente davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos Em Ésquilo um filho invoca deste modo o pai morto Ó tu que és um deus sob a terra Eurípides diz falando de Alceste Junto a seu túmulo o viandante há de parar e dizer Esta é agora uma divindade feliz6 Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes 8 Prestai aos deuses manes as honras que lhes são devidas diz Cícero pois são homens que deixaram de viver reverenciaios como criaturas divinas7 Os túmulos eram os templos dessas divindades Assim exibiam eles em latim e em grego a inscrição sacramental Dis Manibus theõis ethoníois Era lá que o deus permanecia sepultado Manesque sepulti diz Virgílio8 Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios como diante do túmulo dos deuses 9 Encontramos o culto dos mortos entre os helenos entre os latinos entre os sabinos10 e entre os etruscos encontramo lo também entre os árias da Índia como mencionam os hinos do RigVeda Os livros das Leis de Manu falam desse culto como do mais antigo entre os homens Vêse por esse livro que a ideia da metempsicose desconheceu essa velha crença mesmo antes disso já existia a religião de Brama e contudo tanto sob o culto de Brama como sob a doutrina da metempsicose a religião das almas dos ancestrais subsiste ainda viva e indestrutível e força o redator das Leis de Manu a levála em conta e a admitir ainda suas prescrições no livro sagrado Não é esta a menor singularidade desse livro estranho conservar regras relativas a crenças antigas quando foi redigido evidentemente em época na qual outras crenças opostas prevaleciam Isso prova que se é necessário muito tempo para que as crenças humanas se transformem é necessário mais tempo ainda para que as práticas exteriores e as leis se modifiquem Hoje mesmo depois de tantos séculos e revoluções os hindus continuam a oferecer dádivas aos antepassados Essas ideias e ritos são o que há de mais antigo na raça indo europeia assim como o que há de mais persistente Esse culto era idêntico tanto na Índia quanto na Grécia e na Itália O hindu devia oferecer aos manes a refeição chamada sraddha Que o chefe da casa faça o sraddha com arroz leite raízes frutos a fim de atrair sobre si a proteção dos manes O hindu acreditava que no momento em que oferecia esse banquete fúnebre os manes dos antepassados vinham sentarse a seu lado e recebiam os alimentos que lhes eram oferecidos Acreditava também que esse banquete proporcionava grande alegria aos mortos Quando o sraddha é oferecido de acordo com o ritual os antepassados daquele que oferece o banquete experimentam uma satisfação inalterável11 Assim os árias do Oriente em sua origem pensaram como os do Ocidente com relação ao mistério do destino depois da morte Antes de acreditar na metempsicose que supunha absoluta distinção entre a alma e o corpo acreditaram na existência vaga e indecisa da criatura humana invisível mas não imaterial e exigindo dos mortais comida e bebida O hindu como o grego olhava para os mortos como seres divinos que gozavam de existência bemaventurada Mas havia uma condição para sua felicidade era necessário que as ofertas fossem levadas regularmente Se deixavam de oferecer o sraddha por um morto sua alma saía de sua morada de paz e tornavase errante atormentando os vivos de sorte que os manes só eram considerados deuses em razão das ofertas que lhes eram feitas pelo culto12 Os gregos e romanos tinham exatamente as mesmas opiniões Se deixassem de oferecer aos mortos o banquete fúnebre logo estes saíam de seus túmulos e como sombras errantes ouviamnos gemer na noite silenciosa Censuravam os vivos por sua impiedosa negligência procuravam então castigálos mandavamlhes doenças ou castigavamlhes as terras com a esterilidade Enfim não davam descanso aos vivos até o dia em que voltassem a oferecerlhes o banquete fúnebre13 O sacrifício a oferta de alimentos e a libação levavamnos de volta ao túmulo e proporcionavamlhes o repouso e atributos divinos O homem assim estava em paz com eles14 Se o morto esquecido era criatura malfazeja o honrado era um deus tutelar que amava aqueles que lhe ofereciam alimentos Para protegêlos continuava a tomar parte nos negócios humanos desempenhando muitas vezes a sua parte Embora morto sabia ser forte e ativo Dirigiamlhe orações pedindolhe favores e auxílio Quando encontravam um 9 túmulo detinhamse e diziam Tu que és um deus sobre a terra sême propício15 Podese avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece que Electra dirige aos manes de seu pai Tem piedade de mim e de meu irmão Orestes fazeo voltar meu pai ouve minha oração atende meus desejos ao receber minhas libações Estes deuses poderosos não proporcionam somente bens temporais porque Electra acrescenta Dáme um coração mais casto que o de minha mãe e mãos mais puras16 Também o hindu pede aos manes que em sua família aumente o número dos homens de bem e que tenham muitas coisas para dar Essas almas humanas divinizadas pela morte eram as que os gregos chamavam de demônios ou de heróis 17 Os latinos chamavamnas de lares manes18 ou gênios Nossos antepassados acreditaram diz Apuléio que os manes quando maus deviam ser chamados de larvas e de lares quando eram benfazejos e propícios19 Lemos em outro lugar Gênio ou lar tratase do mesmo ser assim o creram nossos antepassados20 E em Cícero Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares21 Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus o homem adorou os mortos teve medo deles dirigiulhes preces Parece que é essa a origem do sentimento religioso Foi talvez à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos A morte foi o primeiro mistério ela colocou o homem no caminho de outros mistérios Elevou seu pensamento do visível para o invisível do passageiro para o eterno do humano para o divino Notas Livro I Cap II 1 Plutarco Sólon 21 2 Aristóteles citado por Plutarco Quest rom 52 grecq 5 Ésquilo Coéf 475 3 Eurípides Fenic 1321 Odisséia X 526 Ésquilo Coéf 475 Ó bemaventurados que habitais debaixo da terra ouvi minha invocação vinde em socorro de vossos filhos e dailhes a vitória É em virtude dessa idéia que Virgílio chama ao pai morto de Sancte parens divinus parens Virg En V 30 V 47 Plutarco Quest rom 14 Cornélio Nepos Fragm XII 4 Cícero De legibus II 22 5 Santo Agostinho Cidade de Deus VIII 26 IX 11 6 Eurípides Alceste 1015 7 Cícero De leg II 9 Varrão em Santo Agostinho Cidade de Deus VIII 26 8 Virgílio En IV 34 9 Eurípides Troianas 96 Electra 505510 Virgílio En VI 177 III 63 305 V 48 O gramático Nônio Marcelo diz que os antigos chamavam ao sepulcro de templo e com efeito Virgílio emprega o vocábulo templum para designar o túmulo ou cenotáfio que Dido constrói para seu esposo Eneida IV 457 Plutarco Quest rom 14 Continua a chamarse ara a pedra levantada sobre o túmulo Suetônio Nero 50 Essa palavra é usada nas inscrições fúnebres Orelli ns 4521 4522 4826 10 Varrão De lingua lat V 74 11 Leis de Manu I 95 III 82 122 127 146 189 274 12 Esse culto tributado aos mortos exprimiase em grego pelas palavras enaghízo enaghismós Pólux VIII 91 Heródoto I 167 Aristides 21 Catão 15 Pausânias IX 13 3 A palavra enaghízo empregavase para os sacrifícios oferecidos aos mortos thyo para os que se ofereciam aos deuses do céu essa diferença é bem acentuada por Pausânias II 10 1 e pelo escoliastes de Eurípides Feníc 281 Cf Plutarco Quest rom 34 13 Vide em Heródoto I 167 a história das almas dos fócios que assustaram a toda uma região até que lhes celebraram o aniversário da morte e vários heróis semelhantes em Heródoto e Pausânias VI 6 7 Do mesmo modo em Ésquilo Clitemnestra advertida de que os manes de Agamenon estão irritados contra ela apressase em mandar alimentos a seu túmulo Vide também a lenda romana narrada por Ovídio Fastos II 549556 10 Esqueceramse um dia do dever das parentalia e as almas saíram dos túmulos e viramnas correr gritando pelas ruas da cidade e pelos campos do Lácio até que ofereceram sacrifícios em seus túmulos Cf a história que nos conta ainda Plínio o Jovem VII 27 14 Ovídio Fast II 518 Virgílio En VI 379 Comparar com o grego hiláskomai Pausânias VI 6 8 Tito Lívio 1 20 15 Eurípides Alceste 1004 1016 Acreditase que se não dermos nenhuma atenção a esses mortos e negligenciarmos seu culto eles nos castigam e que pelo contrário nos protegem se os tornarmos propícios mediante nossas ofertas Porfírio De abstin II 37 Vide Horácio Odes II 23 Platão Leis IX p 926927 16 Ésquilo Coéforas 122145 17 É possível que o sentido primitivo de héros tenha sido o de homem morto A linguagem das inscrições que é a do vulgo e que é ao mesmo tempo a em que o antigo sentido das palavras se conserva por mais tempo usa às vezes héros com o mesmo significado de defunto Boeckh Corp ínscr ns 1629 1723 1781 1782 1784 1786 1789 3398 F Lebas Monum de Moréia p 205 Vide Teógnis ed Welcker v 513 e Pausânias VI 6 9 Os tebanos usavam uma antiga expressão para significar morrer héroa ghénesthaiAristóteles Fragmentos ed Heitz t IV p 260 Cf Plutarco Proverb quibus Alex usi sunt c 47 Os gregos também davam à alma do morto o nome de dáimon Eurípides Alceste 1140 e Escoliastes Ésquilo Persas 620 Pausânias VI 6 18 Tito Lívio III 58 Virgílio VI 119 X 534 III 303 Orelli ns 4440 4441 4447 4459 etc Tito Lívio III 19 19 Apuléio De deo Socratis Sérvio ad Aeneid III 63 20 Censorinus De die natali 3 21 Cícero Timeu 11 Dionísio de Halicarnasso traduz lar familiaris por Kat okían héros Antiq rom IV 2 CAPÍTULO III O FOGO SAGRADO A casa do grego ou do romano obrigava um altar sobre esse altar devia haver sempre um pouco de cinza e carvões acesos1 Era obrigação sagrada para o chefe de cada casa manter aceso o fogo dia e noite Infeliz da casa onde se apagasse Cada noite cobriamse de cinza os carvões para impedir que se consumissem por completo pela manhã o primeiro cuidado era reavivar o fogo e alimentálo com ramos O fogo não cessava de brilhar diante do altar senão quando se extinguia toda uma família a extinção do fogo e da família eram expressões sinônimas entre os antigos2 É evidente que esse costume de manter continuamente o fogo aceso diante do altar prendiase a alguma antiga crença As regras e ritos então observados mostram que não se tratava de um costume qualquer Não era permitido alimentar esse fogo com qualquer espécie de madeira a religião distinguia entre as árvores as que podiam ser usadas para esse fim e aquelas cujo uso era taxado de impiedade3 A religião ordenava também que o fogo se mantivesse sempre puro4 o que significava no sentido literal que nenhum objeto impuro podia ser lançado nele e no sentido figurado que nenhuma ação pecaminosa devia ser cometida em sua presença Havia um dia do ano que entre os romanos era o 1 de março em que cada família devia extinguir o fogo sagrado e acender imediatamente outro5 Mas para acender esse fogo havia ritos que deviam ser observados escrupulosamente Sobretudo deviase evitar o uso de pedras e metais para conseguilo A única maneira permitida consistia em concentrar sobre um ponto qualquer os raios do sol ou esfregar rapidamente dois pedaços de madeira de determinada espécie para conseguir uma fagulha6 Essas diferentes regras provam satisfatoriamente que na opinião dos antigos 11 não se tratava apenas de produzir ou conservar um elemento útil e agradável aqueles homens viam algo mais no fogo que ardia em seus altares O fogo era algo divino que era adorado e cultuado Ofertavamlhe tudo o que julgavam agradável a um deus flores frutos incenso vinho7 Pediam sua proteção julgandoo todopoderoso Dirigiamlhe preces ardentes para dele obter os eternos objetos dos desejos humanos saúde riqueza felicidade Uma dessas preces que nos foi conservada em uma antologia dos hinos órficos é concebida nestes termos Ó fogo tornanos sempre prósperos sempre felizes ó tu que és eterno belo sempre jovem tu que nutres tu que és rico recebe de boa vontade nossas ofertas e dános em troca a felicidade e a saúde que é tão bela8 Viase assim no fogo um deus benfazejo que mantinha a vida do homem um deus rico que o alimentava com seus dons um deus forte que protegia a casa e a família Em presença de algum perigo procuravase nele o refúgio Quando o palácio de Príamo foi invadido Hécuba leva o velho rei para perto do fogo Tuas armas não poderão defenderte lhe diz ela mas este altar será a nossa proteção9 Contemplai Alceste que vai morrer dando a vida para salvar o esposo Aproxima se do fogo e o invoca com estas palavras Ó divindade protetora desta casa pela última vez inclinome diante de ti e te dirijo minhas preces porque vou descer para a região dos mortos Vela sobre meus filhos que não terão mais mãe dá a meu filho uma esposa amante e à minha filha um esposo nobre Faze que eles não morram como eu antes da idade mas que tenham existência longa e cheia de felicidade10 Era o fogo que enriquecia a família Plauto em uma de suas comédias representao medindo seus favores na proporção do culto que lhe prestam11 Os gregos chamavam ctésios ao deus da riqueza12 O pai o invocava em favor dos filhos e lhe pedia saúde e abundância de bens13 No infortúnio o homem queixavase ao fogo e o repreendia Na felicidade davalhe graças O soldado que voltava da guerra agradecialhe por haver escapado dos perigos Ésquilo nos apresenta Agamenon voltando de Tróia feliz coberto de glória ele não agradece a Júpiter e não é ao templo que vai levar sua alegria e reconhecimento o sacrifício de ação de graças ele o oferece no altar de sua casa14 O homem não saía jamais de casa sem dirigir uma prece ao fogo sagrado de volta antes de rever a mulher e abraçar os filhos devia inclinarse diante do altar e invocar os manes familiares15 Portanto o deus do fogo era a providência da família Seu culto era muito simples A primeira regra era manter continuamente sobre o altar alguns carvões acesos porque se o fogo se extinguia um deus deixava de existir Em certas horas do dia alimentavamno com ervas secas e lenha então o deus se manifestava em chamas brilhantes16 Ofereciamlhe sacrifícios mas a essência de qualquer sacrifício era manter e aliviar o fogo sagrado nutrir e fazer crescer o corpo do deus É por isso que antes de mais nada ofereciamlhe ramos é por isso que derramavam sobre o altar o vinho quente da Grécia óleo incenso e gordura de animais O deus recebia essas ofertas e as devorava satisfeito e radiante levantavase sobre o altar e iluminava com seus raios a seu adorador17 Era esse o momento próprio para invocálo o hino da oração saía do coração do homem O banquete era o ato religioso por excelência presidido pelo deus que havia cozido o pão e preparado os alimentos18 dirigiamlhe também uma prece no princípio e no fim da refeição Antes de comer depunham sobre o altar as primícias dos alimentos antes de beber faziase a libação do vinho Era a parte do deus Ninguém duvidava de sua presença ou que ele comesse e bebesse e de fato não viam a chama crescer como se fosse alimentada pelas oferendas O banquete assim era dividido entre o homem e deus era uma cerimônia santa pela qual entravam em comunhão com a divindade19 Velhas crenças que com o tempo desapareceram dos espíritos mas que deixaram por muito tempo ainda usos ritos expressões que mesmo o incrédulo não podia desprezar Horácio Ovídio Juvenal ainda tomavam suas refeições diante do altar e faziam a libação e a prece20 12 O culto do fogo sagrado não pertencia apenas aos povos da Grécia e da Itália Encontramolo também no Oriente As leis de Manu na redação que chegou até nós mostramnos a religião de Brama completamente estabelecida e entrando já em declínio mas elas guardaram vestígios e restos de uma religião mais antiga a do fogo que o culto de Brama havia relegado a segundo plano sem conseguir destruílo O brâmane tem o seu lar que deve manter aceso dia e noite cada dia e cada noite ele o alimenta com lenha mas como entre os gregos só o pode fazer com determinadas madeiras indicadas pela religião Como os gregos e os itálicos oferecemlhe vinho o hindu derrama sobre ele um licor fermentado chamado soma A refeição também é ato religioso cujos ritos são escrupulosamente descritos pelas leis de Manu Como na Grécia dirigemlhe preces oferecemlhe banquetes arroz manteiga e mel Manu declara O brâmane não deve comer arroz da nova colheita senão depois de oferecer as primícias ao fogo Porque o fogo sagrado é ávido de cereais e quando não é honrado devora a existência do brâmane negligente Os hindus como os gregos e os romanos imaginavam os deuses ávidos não só de honras e de respeito como também de alimentos e bebidas O homem julgavase obrigado a saciarlhes a fome e a sede se desejava evitarlhes a cólera Entre os hindus essa divindade do fogo comumente chamase Agni O RigVeda contém grande número de hinos que lhe são dirigidos Em um deles se diz Ó Agni tu és a vida tu és o protetor do homem Em recompensa de nossos louvores dá ao pai de família que te implora glória e riqueza Agni és defensor prudente e pai a ti devemos a vida somos tua família Assim o fogo sagrado como na Grécia é um deus tutelar O homem pedelhe abundância Faze que a terra nos seja sempre liberal Pedemlhe saúde Que eu goze por muito tempo da luz e chegue à velhice como o sol poente Pedemlhe até sabedoria Ó Agni tu colocas no bom caminho o homem que se iludia no mau Se cometemos alguma falta se andamos longe de ti perdoanos Esse fogo sagrado como na Grécia era essencialmente puro era severamente proibido ao brâmane lançar nele algo impuro ou mesmo aquecer os pés no seu calor21 Como na Grécia o homem culpado não podia aproximarse do fogo senão depois de purificarse Uma grande prova da antiguidade dessas crenças e costumes é o fato de encontrálas simultaneamente entre os homens das margens do Mediterrâneo e entre os povos da península indiana É certo que os gregos não tiraram essas práticas da religião hindu nem os hindus da dos gregos Mas gregos itálicos e hindus pertenciam a uma só raça seus antepassados em época remotíssima viveram juntos na Ásia central de onde se originaram essas crenças e ritos A religião do fogo sagrado portanto data da época longínqua e obscura em que não havia ainda nem gregos nem itálicos nem hindus mas apenas os árias Quando as diversas tribos se separaram levaram com elas esse culto umas para as margens do Ganges outras para as praias do Mediterrâneo Mais tarde entre essas tribos separadas e que não tinham mais relações entre si umas adoraram Brama outras Zeus outras Jano cada grupo escolheu seus deuses Todos porém conservaram como antigo legado a religião primitiva que haviam concebido e praticado no berço comum de suas raças Se a existência desse culto entre todos os povos indoeuropeus não demonstrasse suficientemente sua remota antiguidade encontraríamos outras provas nos ritos religiosos dos gregos e dos romanos Em todos os sacrifícios mesmo nos que se realizavam em honra de Zeus ou de Atenas a primeira invocação era sempre dirigida ao fogo22 Toda a prece dirigida a um deus fosse qual fosse devia começar e terminar por uma prece aos manes23 Em Olímpia o primeiro sacrifício oferecido pelos povos reunidos da Grécia era para o fogo e o segundo para Zeus24 Do mesmo modo em Roma a primeira adoração era sempre para Vesta que não era nada mais que a divindade do fogo25 Ovídio falando dessa divindade diz que ela ocupa o primeiro lugar entre as práticas religiosas dos homens É assim que lemos nos livros do RigVeda Antes de todos os outros deuses é necessário invocar a Agni Pronunciaremos seu nome venerável antes de 13 todos os outros imortais Ó Agni seja qual for o deus que honramos com nosso sacrifício nosso holocausto é sempre dirigido a ti É portanto certo que em Roma nos tempos de Ovídio e na Índia nos tempos dos brâmanes o fogo sagrado tinha ainda a primazia entre os deuses não porque Júpiter e Brama não houvessem conquistado maior importância na religião dos homens mas porque lembravam se de que o fogo sagrado era muito anterior a todos esses deuses Depois de muitos séculos tomara o primeiro lugar no culto e os deuses mais novos e mais importantes não o puderam destronar Os símbolos desta religião modificaram se de acordo com os tempos Quando as populações da Grécia e da Itália tomaram o hábito de representar os deuses como pessoas dando a cada um nomes próprios e forma humana o antigo culto do fogo submeteuse à lei comum que a inteligência humana nesse período impunha a toda a religião O altar do fogo sagrado tomou forma chamaramno de estía Vesta o nome era idêntico em latim e em grego e não era senão a palavra que na língua comum designava o altar Por um processo muito frequente do nome comum fezse o nome próprio Aos poucos surgiu uma lenda Representaram essa divindade sob a aparência de mulher porque a palavra que designava o altar era do gênero feminino Chegouse mesmo a representar essa deusa por meio de estátuas Mas jamais conseguiram destruir as origens da crença primitiva segundo a qual essa divindade era simplesmente o fogo do altar e o próprio Ovídio viuse forçado a admitir que Vesta não era nada mais que uma chama viva26 Se compararmos esse culto do fogo sagrado com o culto dos mortos do qual falamos há pouco descobriremos estreita ligação entre ambos Notemos antes de mais nada que o fogo sagrado não é no pensamento dos homens o mesmo fogo da natureza material O que se vê nele não é o elemento puramente físico que aquece e queima que transforma os corpos funde os metais e se torna poderoso instrumento da indústria humana O fogo sagrado é de natureza completamente diversa É um fogo puro que não pode ser produzido senão com o auxílio de determinados ritos e que não se mantém senão com determinadas qualidades de madeira É um fogo casto a união dos sexos deve sei afastada para longe de sua presença27 Não se pede a ele apenas riqueza e saúde mas também pureza de coração temperança e sabedoria Torna nos ricos e prósperos diz um hino órfico tornanos também sábios e castos O fogo sagrado é portanto uma espécie de ser moral É verdade que brilha aquece e coze os alimentos sagrados mas ao mesmo tempo ele tem um pensamento uma consciência tem consciência dos deveres e vela para que sejam cumpridos Dirseia um homem pois possui a dupla natureza humana fisicamente brilha movese vive produz a abundância prepara as refeições alimenta o corpo moralmente tem sentimentos e afetos dá ao homem pureza ordena o bem e o mal alimenta a alma Podese dizer que o fogo mantém a vida humana na dupla série de suas manifestações É ao mesmo tempo fonte das riquezas da saúde e da virtude É na verdade o deus da natureza humana Mais tarde quando esse culto foi relegado a segundo plano por Brama ou por Zeus o fogo sagrado mantevese como o atributo divino mais acessível ao homem era o intermediário da natureza física junto aos deuses era encarregado de levar até os deuses a prece e oferenda do homem e de trazer ao homem os favores divinos Mais tarde ainda quando desse mito do fogo sagrado se fez a grande Vesta Vesta foi a deusa virgem não representava no mundo nem a fecundidade nem o poder era a ordem mas não a ordem rigorosa abstrata matemática a lei imperiosa e fatal que logo se descobre entre os fenômenos da natureza física Vesta era a ordem moral Imaginaramna como uma espécie de alma universal que regulava os diversos movimentos dos mundos como a alma humana rege nossos órgãos É assim que o pensamento das gerações primitivas se deixa entrever O princípio desse culto foge do círculo da natureza física e se encontra nesse pequeno mundo misterioso que é o homem Isso nos leva de volta ao culto dos mortos Ambos têm a mesma antiguidade 14 Estavam tão intimamente unidos que a crença dos antigos fez disso uma religião Fogo demônios heróis deuses lares tudo era uma só coisa28 Por dois trechos de Plauto e de Columela vêse que na linguagem comum diziase indiferentemente fogo ou lar doméstico e vemos ainda em Cícero que não se distinguia o fogo dos penates nem os penates dos deuses lares29 Lemos em Sérvio Por fogos os antigos entendiam os deuses lares assim Virgílio fala indiferentemente em fogo e em penates ou viceversa30 Em uma passagem famosa da Eneida Heitor diz a Enéias que vai mandar lhe os penates de Tróia e lhe manda o fogo sagrado Em outra passagem Enéias invocando esses mesmos deuses chamaos indiferentemente de penates lares e Vesta31 Vimos aliás que esses que os antigos chamavam de lares ou heróis não eram outros senão as almas dos mortos às quais os homens atribuíam poder sobrehumano e divino A lembrança de um desses mortos sagrados estava sempre ligada ao fogo Adorando a um não se podia esquecer a outro Estavam unidos no respeito dos homens e em suas preces Os descendentes quando falavam do fogo sagrado lembravam constantemente o nome do antepassado Deixa este lugar diz Orestes a Helena e dirigete ao antigo fogo de Pélops para ouvir minhas palavras32 Do mesmo modo Enéias falando do fogo que transporta através dos mares designao pelo nome de lar de Assaracus como se visse nesse fogo a alma de seu antepassado O gramático Sérvio muito instruído a respeito das antiguidades grecoromanas em seu tempo estudavamnas muito mais que nos tempos de Cícero diz que era costume muito antigo enterrar os mortos nas casas e acrescenta De acordo com este uso é que se honram nas casas os lares e os penates33 Esta frase estabeleceu nitidamente antiga relação entre o culto dos mortos e o culto do fogo Podese pois pensar que o fogo doméstico na origem nada mais foi que o símbolo do culto dos mortos que sob a pedra da lareira repousava um antepassado que o fogo ali se acendia para honrálo e que esse fogo parecia mantêlo vivo ou representava sua alma imortal Tratase apenas de simples conjectura pois faltamnos provas Mas o certo é que as gerações mais antigas de cuja raça se originaram gregos e romanos renderam culto aos mortos e ao fogo sagrado religião antiga que não tirava seus deuses da natureza física mas do próprio homem tendo por objeto a adoração do ser invisível que há em nós a força moral e pensadora que anima e governa nosso corpo Essa religião não foi sempre igualmente poderosa nem sempre teve igual influência sobre a alma aos poucos se foi enfraquecendo mas não desapareceu por completo Contemporânea das primeiras idades da raça ariana enraizouse tão profundamente nas entranhas dessa raça que a brilhante religião do Olimpo grego não foi bastante para arrancála sendo para isso necessário o advento do Cristianismo Notas Livro I Cap III 1 Os gregos chamavam a esse altar de nomes diversos bõmos eschára hestía esse último acabou por prevalecer no uso e foi a palavra pela qual passaram a designar a deusa Vesta Os latinos chamavam o mesmo altar de vesta ara ou focus Nonius Marcellus ed Quicherat p 53 2 Hinos homér XXIX Hinos órfic LXXXIV Hesíodo Opera 679 Ésquilo Agam 1056 Eurípides Hercul fur 503 599 Tucídides I 136 Aristófanes Plut 795 Catão De re rust 143 Cícero Pro domo 40 Tibulo I 1 4 Horácio Épod II 43 Ovídio A A I 637 Virgílio En II 512 3 Virgílio VII 71 Festo v Felicis Plutarco Numa 9 4 Eurípides Herc fur 715 Catão De re rust 143 Ovídio Fast III 698 5 Macróbio Saturn I 12 6 Plutarco Numa 9 Festo ed Müller p 106 15 7 Ovídio A A I 637 Plauto Captiv II 3940 Mercator V 1 5 Tibulo I 3 34 Horácio Odes II 23 14 Catão De re rust 143 Plauto Aululária prólogo 8 Hinos órfic 84 9 Virgílio En II 523 Horácio Epit I 5 Ovídío Trist IV 8 22 10 Eurípides Alceste 162168 11 Plauto Aululárla prólogo 12 Eustato in Odyss p 1756 e 1756 e 1814 O Zeus a quem se refere muitas vezes é um deus doméstico o lar 13 Iseu De Cironis hered 16 14 Ésquilo Agam 851853 15 Catão De re rust 2 Eurípides Hercul fur 523 16 Virgílio En I 704 17 Virgílio Geórg IV 383385 18 Ovídío Fast VI 315 19 Plutarco Quest rom 64 id Simposíaca VII 4 7 Id ibid VII 4 4 Ovídio Fastos VI 300 VI 630 II 634 Cf Plauto Aululária II 7 16 Horácio Odes III 23 Sát II 3 166 Juvenal XII 8790 Plutarco De fort Rom 10 Comparese com o Hino Homérico XXIX 8 Plutarco Fragmentos Com sobre Hesíodo 44 Sérvio na Eneida I 730 20 Horácio Sat II 6 66 Ovídio Fastos II 631683 Juvenal XII 8390 Petrônío Sátir c 60 21 Idêntica prescrição na religião romana Varrão em Nônio p 479 ed Quicherat p 557 22 Porfírio De abstin II p 106 Plutarco De frigido 8 23 Hinos hom 29 Ibid 3 v 33 Platão Cratila 18 Hesíquio Diodoro VI 2 Aristófanes Aves 865 24 Pausânias V 14 25 Cícero De nat deor II 27 Ovídio Fast VI 304 26 Ovídio Fast VI 291 27 Hesíodo Opera 678680 Plutarco Com sobre Hesíodo frag 48 28 Tibulo II 2 Horácio Odes IV 11 6 Ovídio Trlst III 13 V 5 Os gregos davam a seus deuses domésticos ou heróis o epíteto de ephéstioi ou estiúchoi 29 Plauto Aulul II 7 16 Columela XI 1 19 Cícero Pro domo 41 Pro Quintio 27 28 30 Sérvio In Aen III 134 31 Virgílio En II 297 IX 257258 V 744 32 Eurípides Oreste 14201422 33 Sérvio In Aen V 64 VI 152 Vide Platão Minos p 315 CAPÍTULO IV A RELIGIÃO DOMÉSTICA Não é necessário representar esta antiga religião como as que foram fundadas mais tarde com a humanidade mais evoluída Há muitos séculos que o gênero humano não admite mais uma doutrina religiosa senão com duas condições uma que tenha um único deus outra que se dirija a todos os homens e seja acessível a todos sem afastar sistematicamente nenhuma classe ou raça Mas a religião dos primeiros tempos não 16 preenchia nenhuma dessas condições Não somente não oferecia à adoração dos homens um único deus mas ainda seus deuses não aceitavam a adoração de todos os homens Não se apresentavam como sendo os deuses do gênero humano Não se assemelhavam nem mesmo a Brama que era pelo menos o deus de uma grande casta nem a Zeus Pan heleno que era deus de toda uma nação Nessa religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família A religião era puramente doméstica É necessário esclarecer este ponto importante porque sem isso não se poderia compreender a relação tão íntima estabelecida entre essas velhas crenças e a constituição da família grega e romana O culto dos mortos de nenhum modo se assemelha ao que os cristãos dedicam aos santos Uma das primeiras regras desse culto era que não podia ser observado senão pelos familiares de cada modo Os funerais não podiam ser religiosamente observados senão pelo parente mais próximo Quanto ao banquete fúnebre que depois se celebrava em épocas determinadas apenas a família tinha o direito de assistilo e os estranhos eram severamente excluídos1 Acreditavase que o morto não aceitava a oferta senão da mão dos parentes não queria o culto senão de seus descendentes A presença de um homem que não pertencesse à família perturbava o repouso dos manes A lei portanto proibia aos estranhos aproximarse de um túmulo2 Tocar com o pé mesmo por descuido uma sepultura era ato de impiedade pelo qual se devia aplacar o morto e purificarse A palavra pela qual os antigos designavam o culto dos mortos é significativa os gregos diziam pratiázein3 os latinos parentare porque as preces e oferendas não eram endereçadas senão aos antepassados de cada um4 O culto dos mortos era verdadeiramente o culto dos antepassados5 Luciano sempre zombando da opinião do vulgo nolo explica claramente quando diz O morto que não deixou filhos não recebe sacrifícios e fica condenado à fome eterna6 Na Índia como na Grécia a oferta não podia ser feita ao morto senão pelos seus descendentes A lei dos hindus como a ateniense proibia receber estranhos embora amigos no banquete fúnebre Era de tal modo necessário que o banquete fosse oferecido pelos descendentes do morto e não por outras pessoas que se supunha até que os manes em sua morada faziam frequentemente este voto Que nasçam sucessivamente de nossa estirpe filhos que nos ofereçam na continuidade dos tempos arroz cozido em leite mel e manteiga purificada7 Por essa razão na Grécia e em Roma como na Índia o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes do pai e de todos os ancestrais8 Faltar a esse dever era a mais grave impiedade que se podia cometer pois a interrupção desse culto provocava uma série de mortes e destruía a felicidade Tal negligência era considerada verdadeiro parricídio multiplicado tantas vezes quantos antepassados possuía o filho negligente Se pelo contrário os sacrifícios eram sempre observados de acordo com os ritos se os alimentos eram levados ao túmulo nos dias marcados então o antepassado tornavase deus protetor Hostil a todos os que não descendiam dele expulsavaos de seu túmulo castigando com doenças os que dele se aproximavam para os seus porém era bom e compassivo Havia perpétua troca de favores entre os vivos e os mortos de cada família O ancestral recebia dos descendentes a série de banquetes fúnebres isto é a única alegria que podia experimentar em sua segunda vida O descendente recebia do antepassado a ajuda e a força de que necessitava neste mundo O vivo não podia abandonar o morto nem o morto ao vivo Por esse motivo estabeleciase poderosa união entre todas as gerações de uma mesma família constituindo assim um corpo inseparável Cada família tinha seu túmulo onde seus mortos vinham descansar um após outro sempre juntos Todos os que descendiam do mesmo sangue aí deviam ser enterrados e nenhum homem de outra família podia ser nele admitido9 Nele celebravamse as cerimônias e aniversários Cada família acreditava possuir antepassados sagrados Nos tempos mais remotos o túmulo ficava dentro da propriedade da família no centro da casa 17 não longe da porta a fim de que diz um antigo o filho entrando ou saindo de sua morada encontrasse todas as vezes os pais dirigindolhe vez por vez uma invocação10 Assim o antepassado mantinhase no meio dos seus invisível mas sempre presente continuava a fazer parte da família e a ser o pai Imortal feliz divino interessavase por aquilo que deixara de mortal sobre a terra conhecialhes as necessidades e amparavaos na fraqueza E aquele que ainda vivia que trabalhava que segundo expressão antiga não se havia desempenhado da existência esse tinha junto a si guias e apoio que eram os pais No meio das dificuldades invocava sua antiga sabedoria no sofrimento pedialhes consolo no perigo apoio depois de uma falta perdão Na verdade hoje em dia muito dificilmente poderemos compreender que o homem possa adorar ao pai ou a um antepassado Fazer do homem um deus parecenos contrário à religião Énos quase tão difícil compreender as antigas crenças desses homens como teria sido a eles imaginar as nossas Mas reflitamos que os antigos não tinham ideia da criação para eles o mistério da geração era o que para nós pode ser o mistério da criação O que gerava parecialhes uma criatura divina e por isso adoravam os antepassados Era necessário que esse sentimento fosse muito natural e poderoso porque aparecia como princípio de uma religião na origem de quase todas as sociedades humanas encontramolo entre os chineses como entre os antigos getas e citas entre os povos da África como entre os do Novo Mundo11 O fogo sagrado que tão intimamente estava ligado ao culto dos mortos tinha também como caráter essencial pertencer apenas a uma família representava os antepassados12 era a providência da família não tinha nada em comum com o fogo da família vizinha que era outra providência Cada lar protegia apenas os seus Toda essa religião limitavase ao círculo de uma casa O culto não era público Pelo contrário todas as cerimônias eram celebradas apenas pelos familiares13 O fogo sagrado nunca era colocado fora da casa nem mesmo perto da porta externa onde um estranho poderia vêlo Os gregos colocavam no sempre em um recinto fechado14 para protegêlo do contacto e olhar dos profanos Os romanos escondiamno no meio da casa Todos esses deuses fogo sagrado lares manes eram chamados de deuses escondidos ou deuses do interior15 Para todos os atos dessa religião exigiase segredo sacrifícia oculta diz Cícero16 se uma cerimônia fosse assistida por um estranho era considerada perturbada manchada por um único olhar Para essa religião doméstica não havia nem regras uniformes nem ritual comum Cada família tinha a mais completa independência Nenhum poder exterior tinha direito de dar regras para esse culto ou crença Não havia outro sacerdote além do pai como sacerdote ele não conhecia nenhuma hierarquia O pontífice de Roma ou o arconte de Atenas podia certificarse de que o pai de família cumprisse todos esses ritos religiosos mas não tinha o direito de obrigálo a nenhuma modificação Suo quisque ritu sacrificium faciat17 era a regra absoluta Cada família tinha suas cerimônias que lhe eram próprias suas festas particulares suas fórmulas de oração e seus hinos18 O pai único intérprete e pontífice dessa religião era o único que tinha o poder de ensinála e não o podia fazer senão a seu filho Os ritos as palavras da oração os cantos que faziam parte essencial dessa religião doméstica eram patrimônio ou propriedade sagrada que a família não participava a ninguém e que era até proibido revelar a estranhos Assim era na Índia Sou forte contra meus inimigos diz o brâmane com os cantos que pertencem à minha família e que meu pai me ensinou19 Assim a religião não residia nos templos mas nas casas cada um tinha seus deuses cada deus protegia apenas a uma família e era deus apenas de uma casa Não se pode supor razoavelmente que uma religião com tais características fosse revelada aos homens pela imaginação poderosa de alguém ou que fosse ensinada por uma casta de sacerdotes Ela nasceu espontaneamente no espírito humano seu berço foi a família cada família fez seus próprios deuses 18 Esta religião não podia propagarse senão pela geração O pai ao dar vida ao filho davalhe ao mesmo tempo sua fé seu culto o direito de manter o fogo sagrado de oferecer o banquete fúnebre de pronunciar fórmulas de orações A geração estabelecia misterioso vínculo entre a criança que nascia para a vida e todos os deuses da família Tais deuses eram sua própria família theòi enghenéis seu próprio sangue theòi synaimoi20 A criança portanto ao nascer recebia o direito de adorá los e de oferecerlhes sacrifícios assim como mais tarde quando a morte por sua vez o divinizasse ele devia ser contado entre os deuses da família Mas é necessário notar esta particularidade a religião doméstica não se propagava senão de varão para varão Isso sem dúvida prendiase à ideia que os homens faziam da geração21 A crença das idades primitivas tal como a encontramos nos Vedas e nos vestígios que ficaram em todo o direito romano e grego era que o poder reprodutor residia unicamente no pai Somente o pai possuía o princípio misterioso do ser e transmitia a centelha da vida Dessa antiga opinião resultou que o culto doméstico passou sempre de homem para homem a mulher dele não participava senão por intermédio do pai ou do marido depois que estes morriam a mulher não tomava a mesma parte que o homem no culto e cerimônias do banquete fúnebre Disso resultaram ainda outras consequências muito graves no direito privado e na constituição da família delas trataremos mais adiante Notas Livro I Cap IV 1 A lei de Sólon proibia que se acompanhasse chorando o enterro de pessoa que não fosse parente Plutarco Sólon 21 Igualmente não autorizava às mulheres acompanhar o morto senão até o grau de primas Demóstenes In Macartatum 6263 Cf Cícero De legibus II 26 Varrão L L VI 13 Gaio II 5 6 2 Lei de Sólon em Plutarco Sólon 21 Cícero De legib II 26 3 Pólux III 10 4 Assim lemos em Iseu De Meneclis hered 46 Se Menecles não tem filhos os sacrifícios domésticos não serão celebrados em sua honra e ninguém levará a oferta anual a seu túmulo Outras passagens do mesmo orador mostram que é sempre o filho que deve levar as bebidas ao túmulo De Apollod hered 30 5 Pelo menos no princípio porque depois também as cidades tiveram seus heróis tópicos e nacionais como veremos adiante Veremos também que a adoção criava um parentesco factício e dava o direito de honrar uma série de antepassados 6 Luciano De luctu 7 Leis de Manu III 138 III 274 8 É o que a língua grega chama de noiéin tá nomizómena Ésquines in Timarch 40 Dinarca In Aristog 18 Cf Plutarco Catão 15 Notese como Dinarca repreende Aristógiton por não oferecer o sacrifício anual a seu pai morto em Eretréia Dinarca In Aristog 18 9 O antigo uso dos túmulos de família é atestado da maneira mais formal Demóstenes In Eubulidem 28 A lei de Sólon proibia enterrar nos túmulos de família pessoas estranhas Cíc De leg II 26 Demóstenes In Macartatum 79 descreve o túmulo onde repousam todos os que descendem de Buselos chamase o monumento dos busélidas é um grande recinto fechado de acordo com antiga regra O túmulo dos laquíadas é mencionado por Marcelino biógrafo de Tucídides e por Plutarco Címon 4 Há uma antiga anedota que prova quanto se considerava necessário que cada morto fosse enterrado no túmulo de família contase que os lacedemônios prestes a combaterem contra os messênios ataram no braço direito marcas particulares contendo o nome de cada um e o do pai a fim de que em caso de morte o corpo pudesse ser reconhecido e transportado para o túmulo paterno essa característica dos costumes antigos nos foi conservada por Justino III 5 Ésquilo alude ao mesmo costume quando diz falando de guerreiros que vão morrer que eles serão transportados para o túmulo dos pais Sete contra Tebas v 914 Os romanos também tinham túmulos de família Cícero De offic I 17 Como na Grécia era proibido enterrar estranhos no túmulo de família Cícero De legib II 22 Vide Ovídio Tristes IV 3 45 Veléio II 119 Suetônio Nero 50 Tibério 1 Cícero Tuscul I 7 Digesto XI 7 XLVII 12 5 10 Eurípides Helena 11631168 19 11 Entre os etruscos e os romanos havia o costume de cada família religiosa guardar imagens dos antepassados agrupadas em torno do átrio Seriam essas imagens simples retratos de família ou ídolos 12 Do mesmo modo nos Vedas Agni é ainda invocado como deus doméstico 13 Iseu De Cironis haereditate 1518 14 Esse recinto chamavase hérkos 15 Cícero De nat Deor II 27 Sérvio in Aen III 12 16 Cícero De arusp resp 17 17 Varrão De ling lat VII 88 18 Hesíodo Opera 701 Macróbio Sat I 16 Cíc De legib II 11 19 RigVeda tr Langlois t I p 113 As leis de Manu mencionam frequentemente os ritos particulares de cada família VIII 3 IX 7 20 Sófocles Antíg 199 Ibid 659 Confrontar com Aristófanes Vespas 388 Ésquilo Pers 404 Sófocles Electra 411 Platão Leis V p 729 Di generis Ovídio Fast II 631 21 Os Vedas chamam de fogo sagrado a causa da posteridade masculina Vide o Mitakchara trad Orianne p 139 20 LIVRO SEGUNDO A FAMÍLIA CAPÍTULO I A RELIGIÃO FOI O PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DA FAMÍLIA ANTIGA Se nós nos transportarmos em pensamento para o seio dessas antigas gerações de homens encontraremos em cada casa um altar e ao redor desse altar a família reunida Ela se reúne cada manhã para dirigir ao fogo sagrado suas preces e cada noite para invocálo uma vez mais Durante o dia a família reúnese ainda ao seu redor para as refeições que dividem piedosamente depois da prece e da libação Em todos esses atos religiosos canta em comum os hinos que seus pais lhe ensinaram Fora da casa bem perto no campo vizinho há um túmulo É a segunda morada da família Lá repousam em comum várias gerações de antepassados a morte não os separou Nessa segunda existência permanecem juntos e continuam a formar uma família indissolúvel Entre a parte viva e a parte morta da família não há senão essa distância que separa a casa do túmulo Em determinados dias indicados segundo a religião doméstica de cada um os vivos se reúnem ao pé dos antepassados oferecem lhes o banquete fúnebre derramam sobre eles vinho e leite oferecemlhes presentes e frutos ou queimam em sua honra as carnes de uma vítima Em troca dessas ofertas pedemlhes proteção chamamnos de deuses e pedem para que tornem seus campos férteis a casa próspera e os corações virtuosos O princípio da família antiga não é apenas a geração Isso pode ser provado pelo fato de a irmã não ser na família o mesmo que o irmão também o filho emancipado ou a filha casada deixam de fazer parte da família por completo enfim muitas disposições importantes nas leis gregas e romanas que teremos ocasião de examinar mais adiante nos induzem a pensar assim O princípio da família não é mais o afeto natural porque o direito grego e o direito romano não dão importância alguma a esse sentimento Ele pode existir no fundo dos corações mas nada representa em direito O pai pode amar a filha mas não pode legarlhe os bens As leis da sucessão isto é as que entre todas as outras atestam mais fielmente as ideias que os homens tinham da família estão em contradição flagrante quer com a ordem de nascimento quer com o afeto natural entre os membros de uma família1 Os historiadores do direito romano tendo justamente notado que nem o afeto nem o parentesco eram o fundamento da família romana julgaram que tal fundamento devia residir no poder do pai ou do marido Fazem desse poder uma espécie de instituição primordial mas não explicam como se formou a não ser pela superioridade de força do marido sobre a mulher ou do pai sobre os filhos Ora é grave erro colocar a força como origem do direito Aliás mais adiante veremos que a autoridade paterna ou marital longe de ter sido causa primeira foi também efeito originouse da religião e foi por ela estabelecida Não é portanto o princípio que constituiu a família O que une os membros da família antiga é algo mais poderoso que o nascimento que o sentimento que a força física é a religião do fogo sagrado e dos antepassados Essa religião faz com que a família forme um só corpo nesta e na outra vida A família antiga é mais uma associação religiosa que uma 21 associação natural Assim veremos mais adiante que a mulher será realmente levada em conta quando for iniciada no culto com a cerimônia sagrada do casamento o filho não será mais considerado pela família se renunciar ao culto ou for emancipado o filho adotivo pelo contrário será considerado filho verdadeiro porque se não possui vínculos de sangue tem algo melhor que é a comunhão do culto o legatário que se negar a adotar o culto dessa família não terá direito à sucessão enfim o parentesco e o direito à herança serão regulamentados não pelo nascimento mas pelos direitos de participação no culto de acordo com o que a religião estabeleceu Sem dúvida não foi a religião que criou a família mas foi certamente a religião que lhe deu regras resultando daí que a família antiga recebeu uma constituição muito diferente da que teria tido se houvesse sido constituída baseandose apenas nos sentimentos naturais A antiga língua grega tinha uma palavra muito significativa para designar a família diziase epístion palavra que significa literalmente aquilo que está perto do fogo Uma família era um grupo de pessoas às quais a religião permitia invocar os mesmos manes e oferecer o banquete fúnebre aos mesmos antepassados2 Notas Livro II Cap I 1 É evidente que aqui falamos do direito mais antigo Veremos mais adiante que essas velhas leis foram modificadas 2 Heródoto V 73 I 176 Plutarco Rômulo 9 CAPÍTULO II O CASAMENTO A primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu foi na verdade o casamento É necessário notar que essa religião do lar e dos antepassados que se transmitia de varão para varão não pertencia contudo exclusivamente ao homem a mulher tomava parte no culto Como filha assistia aos atos religiosos do pai como casada aos do marido Somente por isso se pode avaliar o caráter essencial da união conjugal entre os antigos Duas famílias vivem uma ao lado da outra mas possuem deuses diversos Em uma delas a jovem participa desde a infância da religião do pai invoca seu lar oferecelhe todos os dias libações enfeitao com flores e grinaldas nos dias festivos pedelhe proteção agradecelhe benefícios Esse fogo paterno é o seu deus Se um jovem de outra família a pede em casamento para ela isso significa muito mais do que passar de uma casa para outra Tratase de abandonar o lar paterno para invocar daí por diante os deuses do esposo Tratase de mudar de religião de praticar outros ritos de pronunciar outras orações Tratase de deixar o deus de sua infância para colocarse sob o império de um deus desconhecido E ela não espera permanecer fiel a um honrando a outro porque um dos princípios imutáveis dessa religião é que uma pessoa não pode invocar dois lares nem duas séries de antepassados A partir do casamento diz um antigo a mulher não tem nada mais em comum com a religião doméstica dos pais ela passa a sacrificar aos manes do marido1 O casamento portanto é ato sério para a jovem e não o é menos para o esposo porque a religião exige que se nasça junto ao fogo sagrado para terse o direito de oferecer lhe sacrifícios E no entanto o rapaz vai introduzir em seu lar uma estranha em sua companhia oficiará as cerimônias misteriosas do culto revelandolhe ritos e fórmulas que constituem patrimônio de família Não há nada mais precioso que essa herança os deuses 22 ritos e hinos que recebeu dos pais é quem o protege na vida e lhe promete riqueza felicidade virtude No entanto em vez de guardar para si esse poder tutelar como o selvagem guarda um ídolo ou amuleto vai admitir uma mulher para participante dos mesmos Desse modo quando penetramos o pensamento dos antigos vemos a importância que tem para eles a união conjugal e quanto lhe é imprescindível a intervenção da religião Não seria portanto necessário para que a jovem fosse iniciada no culto que iria seguir uma cerimônia sagrada de iniciação Para tornarse sacerdotisa de um novo fogo não haveria uma espécie de ordenação ou de adoção O casamento era a cerimônia sagrada que deveria produzir esses grandes efeitos Os escritores latinos e gregos têm o hábito de designar o casamento por palavras que indicam ato religioso2 Pólux que viveu no tempo dos Antoninos mas que podia manusear toda uma antiga literatura que não possuímos mais diz que nos tempos remotos em lugar de designar o casamento por seu nome particular gámos designavamno simplesmente pela palavra télos que significa cerimônia sagrada3 como se o casamento fosse nesses tempos antigos a cerimônia sagrada por excelência Ora a religião que celebrava o casamento não era a de Júpiter de Juno ou dos outros deuses do Olimpo A cerimônia não era realizada em templo era realizada em casa presidida pelo deus doméstico Na verdade quando a religião dos deuses do céu se tornou preponderante não foi mais possível deixar de invocálos também nas preces do casamento tomouse então o costume de ir antes aos templos para oferecer sacrifícios a tais deuses sacrifícios esses que eram conhecidos como prelúdios do casamento4 Mas a parte principal e essencial da cerimônia sempre devia realizarse diante do lar doméstico Entre os gregos a cerimônia do casamento compunhase por assim dizer de três atos O primeiro realizavase diante do lar paterno enghyesis o terceiro no lar do marido télos e o segundo era a passagem de um para outro pompé 1 Na casa paterna em presença do pretendente o pai de ordinário rodeado pela família oferece um sacrifício Terminado este declara enquanto pronuncia uma fórmula sacramental que dá a filha ao homem que a pediu Essa declaração é absolutamente indispensável para o casamento porque a jovem não poderia ir adorar o lar do esposo se seu pai não a houvesse antes desligado do lar paterno Para ingressar na nova religião deve estar livre de todos os laços ou vínculos da religião primitiva5 2 A jovem é levada para a casa do marido Às vezes é o próprio marido que a conduz6 Em algumas cidades o encargo de levar a jovem cabia a um daqueles homens que entre os gregos estavam revestidos de caráter sacerdotal e que chamavam de arautos7 A jovem comumente é colocada sobre um carro8 o rosto coberto com um véu e à cabeça leva uma coroa O uso da coroa como veremos muitas vezes era um costume observado em todas as cerimônias do culto Os vestidos são brancos O branco era a cor dos vestidos em todos os atos religiosos Precedemna carregando archotes é o archote nupcial9 Em todo o percurso cantam a seu redor um hino religioso cujo estribilho é o seguinte õ hymén õ hyménaie Esse hino era conhecido por himeneu e a importância desse canto sagrado era tão grande que dava nome a toda cerimônia10 A jovem não entra por si mesma em sua nova morada É necessário que o marido a carregue que simule um rapto que grite um pouco e que as mulheres que a acompanham finjam defendêla Por que esse rito Seria um símbolo do pudor feminino Isso é pouco provável ainda não chegou o momento do pudor porque o que se vai realizar por primeiro nessa casa é uma cerimônia religiosa Será que esse rapto simulado não quer antes significar que a mulher que vai oferecer sacrifícios no novo lar não tem por si mesma nenhum direito que ela não o adota por sua própria vontade e que é necessário que o dono da nova casa e seu respectivo deus a introduza à força Seja o que for depois de uma luta fictícia o esposo erguea nos braços 23 e a introduz na casa tendo grande cuidado para que seus pés não toquem na soleira da porta11 O que precede não é senão preparação e prelúdio da cerimônia O ato sagrado vai ter início no interior da casa 3 À frente do fogo sagrado a esposa é colocada em presença da divindade doméstica É aspergida com água lustral e toca o fogo sagrado12 Dizemse orações Depois os esposos compartilham um bolo um pão e algumas frutas13 Essa espécie de refeição ligeira que começa e termina com uma libação e uma prece essa comunhão de alimentos diante do fogo sagrado põe os dois esposos em comunhão religiosa como também em comunhão com os deuses domésticos14 O casamento romano assemelhavase muito ao casamento grego e como ele constava de três atos traditio deductio in domum confarreatio 1 A jovem deixa o lar paterno Como não está ligada a esse lar por direito próprio mas apenas pela mediação do pai de família somente a autoridade do pai pode livrála desse laço A tradição é portanto formalidade indispensável15 2 A jovem é conduzida à casa do esposo Como na Grécia ela é velada usa coroa e um archote nupcial precede o cortejo16 Cantase a seu redor um hino religioso As palavras desse hino talvez com o tempo tenham mudado acomodandose às variações das crenças e do modo de falar mas o estribilho sacramental continuou sempre sem alteração alguma era a palavra Talássia vocábulo que os romanos do tempo de Horácio compreendiam tanto quanto os gregos compreendiam a palavra hyménaie que era provavelmente a relíquia sagrada e inviolável de antiga fórmula17 O cortejo pára diante da casa do esposo onde apresentam à jovem fogo e água O fogo é o emblema da divindade doméstica a água é a água lustral que serve para a família em todos os atos religiosos18 Para que a jovem entre na casa é necessário como na Grécia simular um rapto19 O esposo deve erguêla nos braços e carregála tomando cuidado para que não toque a soleira da porta com os pés 3 A esposa é conduzida diante do fogo onde estão os penates onde todos os deuses domésticos e as imagens dos antepassados agrupamse ao redor do fogo sagrado Os dois esposos como na Grécia oferecem um sacrifício fazem libações pronunciam algumas preces e comem juntos um manjar de flor de farinha panis farreus20 A consumpção desse manjar em meio à récita de preces na presença e sob os olhos das divindades da família é o que constitui a união santa do esposo e da esposa21 Desde esse instante ambos estão unidos no mesmo culto A mulher tem os mesmos deuses os mesmos ritos as mesmas orações as mesmas festas que o marido Daí essa velha definição de casamento que os jurisconsultos nos conservaram Nuptiae sunt divini juris et humani communicatio E esta outra Uxor socia humanae rei atque divinae22 É que a mulher começou a participar da religião do marido mulher a quem os próprios deuses como diz Platão introduziram na nova casa A mulher assim casada continua a cultuar os mortos mas não é mais a seus antepassados que oferece o banquete fúnebre não tem mais esse direito O casamento desligoua por completo da família do pai quebrando todos os liames religiosos que a ligavam a ela É aos antepassados do marido que oferece sacrifícios pertence agora à sua família e eles se tornaram seus antepassados O casamento proporcionoulhe um segundo nascimento De ora em diante ela é a filha do marido filiae loco dizem os jurisconsultos Não se pode pertencer nem a duas famílias nem a duas religiões domésticas a mulher passa única e exclusivamente a fazer parte da família e religião do marido Veremos as consequências dessa regra no direito de sucessão A instituição do casamento sagrado também deve ser tão antiga na raça indo europeia quanto a religião doméstica porque uma não existe sem a outra Essa religião ensina ao homem que a união conjugal é algo mais que uma relação de sexos e uma afeição passageira unindo os cônjuges pelo laço 24 poderoso do mesmo culto e das mesmas crenças Por sua vez a cerimônia das núpcias era tão solene e produzia efeitos tão graves que não nos devemos surpreender se aqueles homens a julgavam permitida e possível com uma só mulher em cada casa Tal religião não podia admitir a poligamia Pensase também que essa união era indissolúvel e que o divórcio era quase impossível23 O direito romano facilmente permitia dissolver o casamento por coemptio ou por usus mas a dissolução do casamento religioso era muito difícil Para que houvesse ruptura faziase necessária nova cerimônia religiosa porque somente a religião podia desunir o que havia unido O efeito da confarreatio não podia ser destruído senão pela diffarreatio Os dois esposos que desejavam o divórcio apresentavamse pela última vez diante do fogo sagrado comum na presença de um sacerdote e de testemunhas Como no dia do casamento ofereciase aos esposos um bolo de flor de farinha24 Mas provavelmente em lugar de comêlo eles o rejeitavam Depois em lugar de preces pronunciavam fórmulas de caráter estranho severo vingativo terrível25 uma espécie de maldição pela qual a mulher renunciava ao culto e aos deuses do marido Desde esse momento o laço religioso estava rompido Com o término da comunhão de culto toda outra comunhão cessava por direito e o casamento ficava dissolvido Notas Livro II Cap II 1 Dicearca citado por Estêvão de Bizâncio 2 Tyein ghámon sacrum nuptiale 3 Pólux III 3 38 4 Pólux III 38 5 Heródoto VI 130 Iseu De Philoctem hered 14 Demóstenes dá algumas palavras da fórmula In Stephanum II 18 Essa parte do casamento chamavase écdosis traditio Pólux III 35 Demóstenes Pro Phormione 32 6 Pólux III 41 7 Plutarco Quest grecq 27 8 Plutarco Quest rom 29 Photius Lex p 52 9 Ilíada XVIII 492 Hesíodo Scutum 275 Eurípides Ifig in Aulis 732 Fenícias 344 Helena 722725 Pólux III 41 Luciano Aétion 5 10 Ilíada XVIII 495 Hesíodo Scutum 280 Aristófanes Aves 1720 Pag 1332 Pólux III 37 IV 80 Photius Blblioth c 230 11 Plutarco Licurgo 15 Dionísio de Halicarnasso II 30 12 Ignem undamque jugalem Valer Flaccus Argonaut VIII 245 13 Plutarco Sólon 20 Praec conjug I Idêntico costume entre os macedônios Quinto Cúrcio VIII 16 14 Platão Leis VIII p 841 Plutarco Teseu 10 Amatorius 4 15 Sobre as formas singulares da traditio e da sponsio em direito romano vide o texto curioso de Sérvio Sulpício em Aulo Gélio IV 4 C Plauto Aululária II 2 4149 II 3 4 Trinummus V 4 Cícero ad Atticum I 3 16 Ovídio Fastos II 558561 17 Plutarco Romulus 15 18 Varrão De líng Lat V 61 Plutarco Quest rom 1 Sérvio ad Aeneida IV 167 19 Plutarco Quest rom 29 Romulus 15 Macróbio Saturn I 15 Festo v rapi 20 Plínio Hist Nat XVIII 3 10 Dionísio de Halicarnasso II 25 Tácito Ann IV 16 XI 2627 Juvenal X 329336 Sérvio ad Aen IV 103 ad Georg I 31 Gaio I 110112 Ulpiano IX Digesto XXIII 2 1 Também entre os etruscos o casamento era celebrado com um sacrifício Varrão De re rust II 4 25 Idênticos costumes entre os antigos hindus Leis de Manu III 2730 172 VIII 227 IX 194 Mitakchara trad Orianne p 166 167 236 21 Falaremos mais adiante de outras formas de casamento que foram usadas entre os romanos e nas quais não intervém a religião Por agora basta dizer que o casamento sagrado nos parece o mais antigo porque corresponde às mais antigas crenças e não desapareceu senão depois que estas se enfraqueceram 22 Digesto XXIII 2 Código de Just IX 32 4 Dionísio de Halic n 25 23 Pelo menos a princípio Dionísio de Halicarnasso II 25 diz expressamente que nada podia dissolver tal casamento A faculdade do divórcio parece terse introduzido muito cedo no direito ático 24 Festo v Diffarreatio Pólux III c 3 Lêse em uma inscrição Sacerdos confarreationum et diffarreationum Orelli n 2648 25 Plutarco Quest rom 50 CAPÍTULO III CONTINUIDADE DA FAMÍLIA PROIBIÇÃO DO CELIBATO DIVÓRCIO EM CASO DE ESTERILIDADE DESIGUALDADE ENTRE FILHO E FILHA As crenças relativas aos mortos e o culto que lhes era devido constituíram a família antiga e lhe deram a maior parte de suas regras Vimos acima que o homem depois da morte era considerado pessoa feliz e divina com a condição porém de que os vivos lhe oferecessem continuamente banquetes públicos Se essas ofertas cessassem o morto decairia para uma esfera inferior tornandose demônio desgraçado e malfazejo Porque quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida futura não pensaram em recompensas e castigos acreditaram que a felicidade do morto não dependia da conduta que havia tido em vida mas da que seus descendentes tinham a seu respeito Por isso cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos derivando daí em primeiro lugar a regra de que cada família devia perpetuarse para sempre Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse No túmulo onde viviam não tinham outra preocupação Seu único pensamento como seu único interesse era ter sempre um varão de seu sangue para levarlhe ofertas ao túmulo Também os hindus acreditavam que os mortos repetiam continuamente Que nasçam sempre em nossa estirpe filhos que nos tragam arroz leite e mel Dizia ainda A extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma os antepassados privados das ofertas precipitamse na morada dos infelizes1 Os homens da Itália e da Grécia pensaram assim por muito tempo Se não nos deixaram em seus escritos uma expressão de suas crenças tão nítida como a que encontramos nos velhos livros do Oriente pelo menos suas leis estão ainda lá para atestar suas antigas opiniões Em Atenas a lei encarregava o primeiro magistrado da cidade de velar para que nenhuma família viesse a se extinguir2 Da mesma forma a lei romana cuidava da continuidade do culto doméstico3 Lêse em um discurso de orador ateniense Não há homem que sabendo que deve morrer cuide tão pouco de si mesmo a ponto de deixar a família sem descendentes porque então não haveria ninguém para prestarlhe o culto devido aos mortos4 Cada um portanto tinha grande interesse em deixar um filho convencido de que disso dependia a felicidade de sua vida futura Era até um dever para com os antepassados porque sua felicidade durava somente enquanto existisse a família Também as leis de Manu assim 26 denominavam o filho mais velho aquele que é gerado para o cumprimento do dever Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga A religião que a formou exige imperiosamente sua continuação Uma família que se extingue é um culto que morre É necessário imaginar essas famílias na época em que as crenças ainda não haviam sido alteradas Cada uma delas possui religião e deuses próprios precioso depósito sobre o qual deve velar A maior desgraça que sua piedade tem a temer é a extinção da estirpe porque então sua religião desapareceria da terra seu lar seria extinto toda a série dos mortos esquecida e abandonada à eterna miséria O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto Em virtudes dessas opiniões o celibato devia ser ao mesmo tempo impiedade grave e desgraça impiedade porque o celibatário punha em perigo a felicidade dos manes de sua família desgraça porque ele próprio não devia receber nenhum culto após a morte desconheceria assim o que alegra os manes Era ao mesmo tempo para ele e seus antepassados uma espécie de condenação Podese pensar muito bem que na falta de leis essas crenças religiosas por muito tempo teriam bastado para impedir o celibato Mas parece que desde que houve leis elas estabeleceram que o celibato era coisa má e digna de castigo Dionísio de Halicarnasso que consultou os velhos anais de Roma disse existir uma lei antiga que obrigava os jovens a casar5 O tratado das leis de Cícero que reproduz quase sempre sob forma filosófica as antigas leis de Roma contém uma que proíbe o celibato6 Em Esparta a legislação de Licurgo castigava com pena severa o homem que não se casasse7 Sabese por muitas anedotas que quando o celibato deixou de ser proibido pelas leis continuou a sêlo pelos costumes Parece enfim por uma passagem de Pólux que em muitas cidades gregas a lei punia o celibato como crime8 Isso era conforme às crenças o homem não pertencia a si próprio mas à família Era o membro de uma série que não devia interromper Não nascera por acaso deram lhe a vida para que continuasse a observar um culto não devia deixar a vida sem estar seguro de que esse culto seria continuado depois de sua morte Mas não bastava gerar filhos O filho que devia perpetuar a religião doméstica devia ser fruto de casamento religioso O bastardo filho natural que os gregos chamavam nóthos e os latinos spurius não podia desempenhar o papel que a religião confiava ao filho Com efeito os laços sanguíneos apenas não constituíam a família eram necessários ainda os laços de culto Ora o filho nascido de mulher que não se havia unido ao esposo pela cerimônia do casamento não podia tomar parte no culto9 Não tinha direito de oferecer o banquete fúnebre e a família não se perpetuava por ele Veremos mais adiante que pela mesma razão não tinha direito à herança O casamento portanto era obrigatório Não tinha por finalidade o prazer seu objetivo principal não era a união de duas criaturas que se convinham e que desejavam unirse para a felicidade ou sofrimentos da vida O efeito do casamento aos olhos da religião e das leis era unindo dois seres no mesmo culto doméstico dar origem a um terceiro apto a perpetuar esse culto Isso pode ser claramente constatado pela fórmula sacramental pronunciada no ato do casamento Ducere uxorem liberum quaerendorum causa diziam os romanos Páidon ep arótoi gnesíon diziam os gregos10 Como o casamento não era contratado senão para perpetuar a família parece justo que podia ser anulado se a mulher fosse estéril Nesses casos o divórcio sempre constituiu direito entre os antigos é até possível que tenha sido uma obrigação Na Índia a religião prescrevia que a mulher estéril fosse substituída depois de oito anos11 Nenhum texto formal prova que esse dever fosse idêntico tanto na Grécia quanto em Roma Contudo Heródoto cita dois reis de Esparta que foram constrangidos a repudiar as mulheres porque eram estéreis12 Quanto a Roma é bastante conhecida a história de Carvílio Ruga cujo divórcio é o primeiro mencionado pelos Anais de Roma Carvílio Ruga diz Aulo Gélio homem de grande família separouse da 27 mulher mediante divórcio porque não podia ter filhos dela Amavaa ternamente e só podia louvarlhe a conduta Mas sacrificou seu amor à religião do juramento porque havia jurado na fórmula do casamento que a tomava por esposa a fim de ter filhos13 A religião dizia que a família não podia extinguirse toda afeição e direito natural devia ceder diante dessa regra absoluta Se o casamento era estéril por causa do marido nem assim a família podia deixar de continuar Nesse caso um irmão ou parente do marido devia substituílo e a mulher era impedida de se divorciar A criança nascida dessa união era considerada filha do marido e continuava seu culto Tais eram as regras entre os antigos hindus tornamos a encontrálas nas leis de Atenas e de Esparta14 Tal era a força imperiosa da religião Tal a importância do dever religioso que passava à frente de todos os outros Com muito mais razão as legislações antigas prescreviam o casamento da viúva quando não tivesse filhos com o parente mais próximo do marido O filho desse matrimônio era considerado filho do marido defunto15 O nascimento de uma menina não satisfazia o objetivo do casamento Com efeito a filha não podia continuar o culto porque no dia em que se casasse renunciaria à família e ao culto do pai e passava a pertencer à família e religião do marido A família como o culto não continuava senão pelos varões fato capital cujas consequências veremos adiante Portanto o filho é que era esperado é que era necessário era ele que os antepassados a família e o lar reclamavam Por ele diziam as velhas leis dos hindus o pai paga suas dívidas para com os manes dos antepassados e assegura a si próprio a imortalidade Esse filho não era menos precioso aos olhos dos gregos porque mais tarde devia oferecer sacrifícios e banquetes fúnebres e conservar por seu culto a religião doméstica Assim no velho Ésquilo o filho é chamado salvador do lar paterno16 A entrada desse filho na família era assinalada por um ato religioso Antes de mais nada era necessário que fosse aceito pelo pai Este como dono e mestre vitalício do fogo sagrado e representante dos antepassados devia decidir se o recémnascido era ou não da família O nascimento constituía apenas o laço físico a declaração do pai constituía o laço moral e religioso Essa formalidade era igualmente obrigatória em Roma na Grécia e na Índia Além disso como vimos para a mulher o filho necessitava de uma espécie de iniciação Esta era feita pouco tempo depois do nascimento em Roma no nono dia na Grécia no décimo dia na Índia no décimo ou décimo segundo dia17 Nesse dia o pai reunia a família chamava testemunhas oferecia sacrifício aos manes A criança era apresentada aos deuses domésticos uma mulher carregavao nos braços e correndo dava com ele várias voltas ao redor do fogo sagrado18 Essa cerimônia tinha duplo objetivo primeiro purificar a criança19 isto é tirarlhe a impureza que os antigos supunham havia contraído pelo único fato da gestação e depois iniciálo no culto sagrado doméstico A partir desse momento a criança era admitida naquela espécie de sociedade sagrada ou pequena igreja como era chamada a família Tinha agora uma religião praticava seus ritos estava apta a recitar suas preces honrava os antepassados e mais tarde por sua vez viria a ser um antepassado honrado Notas Livro II Cap III 1 BhagavadGita I 40 2 Iseu De Apollod hered 30 Demóstenes In Macart 75 3 Cícero De legib II 19 Dionísio IX 22 4 Iseu VII De Apollod her 30 Cf Estobeu Serm LXVII 25 5 Dionísio de Halicarnasso IX 22 6 Cícero De legibus III 2 28 7 Plutarco Lycurg 15 Apoteg dos Lacedemônios Cf Vida de Lisandro 30 8 Pólux III 48 9 Iseu VI De Philoct her 47 Demóstenes In Macartatum 51 10 Menandro Fragm 185 Demóstenes In Neaeram 122 Luciano Timon 17 Ésquilo Agamemnon 1207 Alcifron I 16 11 Leis de Manu IX 81 12 Heródoto V 39 VI 61 13 Aulo Gélio IV 3 Valério Máximo II 1 4 Dionísio II 25 14 Plutarco Sólon 20 É assim que devemos compreender o que Xenofonte e Plutarco dizem de Esparta Xen Resp Laced I Plutarco Licurgo 15 Cf Leis de Manu IX 121 15 Leis de Manu IX 69 146 O mesmo acontecia entre os hebreus Deuteronômio 25 16 Ésquilo Coéf 264 262 Também em Eurípídes Fenic 16 Laio pede a Apolo que lhe dê filhos varões 17 Aristófanes Aves 922 Demóstenes in Baeot de dote 28 Macróbio Sat I 17 Leis de Manu II 30 18 Platão Teeteta LIsías em Harpocrácio v Amphidrômia 19 Macróbio Sat I 17 CAPÍTULO IV ADOÇÃO E EMANCIPAÇÃO O dever de perpetuar o culto doméstico foi a fonte do direito de adoção entre os antigos A mesma religião que obrigava o homem a se casar que concedia o divórcio em caso de esterilidade e que em caso de impotência ou de morte prematura substituía o marido por um parente oferecia ainda à família um último recurso para escapar à tão temida desgraça da extinção esse recurso consistia no direito de adotar Aquele a quem a natureza não deu filhos pode adotar um para que as cerimônias fúnebres não se extingam Assim fala o velho legislador dos hindus1 Temos um curioso discurso de um orador ateniense em processo em que se contestava a um filho adotivo a legitimidade de sua adoção O defensor mostranos a princípio por que motivo se adotava um filho Menéclio diz ele não queria morrer sem filhos queria deixar alguém que o enterrasse e que lhe oferecesse o culto fúnebre Em seguida demonstra o que poderá acontecer se o tribunal anular sua adoção e não só o que acontecerá a ele mas àquele que o adotou Menéclio morreu mas é ainda o interesse de Menéclio que está em jogo Se anulardes a adoção fareis de Menéclio um defunto sem filhos e consequentemente ninguém lhe oferecerá sacrifícios fúnebres e finalmente seu culto se extinguira2 Adotar um filho portanto era velar pela continuidade da religião doméstica pela salvação do fogo sagrado pela continuação das ofertas fúnebres pelo repouso dos manes dos antepassados Como a adoção não tinha outra razão de ser além da necessidade de evitar a extinção do culto seguiase daí que não era permitida senão a quem não tinha filhos As leis dos hindus é formal a esse respeito3 A de Atenas não o é menos todo o discurso de Demóstenes contra Leocares o prova4 Nenhum texto preciso prova que o mesmo acontecesse com o direito romano antigo e sabemos que no tempo de Gaio um mesmo homem podia ter filhos naturais e por adoção Parece contudo que esse ponto não era admitido em direito nos tempos de Cícero porque em uma de suas arengas o orador se exprime assim Qual é o direito que rege a 29 adoção Não é necessário que o adotante esteja em idade de não ter mais filhos e que antes de adotar tenha procurado têlos Adotar é pedir à religião e à lei o que não se pôde conseguir com a natureza5 Cícero ataca a adoção de Clódio baseandose no argumento de que o homem que o adotara já tinha um filho e afirmando que aquela adoção era contrária ao direito religioso Quando se adotava um filho era necessário antes de mais nada iniciálo nos segredos do culto introduzilo na religião doméstica aproximálo de seus penates6 Por isso a adoção era realizada por uma cerimônia sagrada que parece ter sido muito semelhante à que assinalava o nascimento de um filho pela qual o adotado era admitido ao lar e se associava à religião do pai adotivo Deuses objetos sagrados ritos preces tudo se tornava comum entre ambos Diziamlhe então In sacra transiit Passou para o culto de sua nova família7 Por isso mesmo o filho adotivo renunciava ao culto da antiga8 Vimos com efeito que de acordo com essas velhas crenças o mesmo homem não podia sacrificar a dois lares nem honrar duas séries de antepassados Admitido em nova família a casa paterna tornavaselhe estranha Não tinha nada mais em comum com o lar que o vira nascer e não podia mais oferecer banquetes fúnebres a seus antepassados Quebrarase o vínculo do nascimento o vínculo do novo culto apoderavase dele9 O homem se tornava tão completamente estranho à antiga família que se morresse seu pai natural não tinha direito de se encarregar dos funerais ou de conduzir o enterro O filho adotivo não podia mais voltar para a antiga família quando muito a lei permitialhe que tendo um filho o deixasse em seu lugar na família que o adotara Consideravase que assim a continuidade dessa família estava assegurada ele podia sair Mas nesse caso tinha de romper todos os laços que o ligavam a seu filho10 À adoção correspondia como correlativo a emancipação Para que um filho pudesse entrar na nova família era necessário que pudesse sair da antiga isto é que sua religião o permitisse11 O efeito principal da emancipação era a renúncia ao culto da família onde nascera Os romanos designavam esse ato pelo nome bem significativo de sacrorum detestatio12 O filho emancipado não era mais membro da família nem pela religião nem pelo direito Notas Livro II Cap IV 1 Leis de Manu IX 10 2 Iseu De Menecl hered 1046 O mesmo orador no discurso em defesa da herança de Astifilos c 7 mostra um homem que antes de morrer adotou um filho a fim de que este o honrasse depois da morte e continuasse sua descendência 3 Leis de Manu IX 168 174 DattacaSandrica tr Orianne p 260 4Vide também Iseu De Meneclis hered 1114 5 Cícero Pro domo 13 14 Comparar o que diz Aulo Gélio com relação à adrogação que era a adoção de um homo sui juris Aulo Gélio V 19 6 Iseu De Apollod her 1 Cícero Pro domo 13 Tácito Hist I 15 7 Valério Máximo VII 7 Cícero Pro domo 13 8 Cícero Pro domo 9 Tito Lívio XLV 40 10 Iseu De Philoct her 45 De Aristarchi her 11 Demóstenes in Leocharem 68 Antiphon Fragm 15 Harpocrácio ed Bekker p 140 Comparar com Leis de Manu IX 142 11 Sérvio ad Aen II 156 12 Aulo Gélio XV 27 Comparar com o que os gregos chamavam de apokéryxis Platão Leis XI p 928 Cf Luciano XXIX o filho deserdado Pólux IV 93 Hesíquio vApokeryetós 30 CAPÍTULO V O PARENTESCO O QUE OS ROMANOS ENTENDIAM POR AGNAÇÃO Platão diz que parentesco é a comunidade dos mesmos deuses domésticos1 Dois irmãos diz ainda Plutarco são dois homens que têm o dever de fazerem os mesmos sacrifícios de terem os mesmos deuses paternais de partilharem do mesmo túmulo2 Quando Demóstenes nos quer provar que dois homens são parentes mostra que adotam o mesmo culto e oferecem o banquete fúnebre na mesma sepultura Com efeito a religião doméstica é que constituía o parentesco Dois homens podiam dizerse parentes quando tivessem os mesmos deuses o mesmo lar o mesmo banquete fúnebre Ora observamos precedentemente que o direito de oferecer sacrifícios ao fogo sagrado só se transmitia de varão para varão e que o culto dos mortos não se dirigia senão aos ascendentes em linha masculina Resultou portanto dessa regra religiosa que não se podia ser parente pelas mulheres Na opinião das gerações antigas a mulher não transmitia nem a existência nem o culto O filho recebia tudo do pai Não se podia aliás pertencer a duas famílias invocar dois lares o filho não tinha portanto outra religião nem outra família que a do pai3 Como poderia pois ter uma família materna Sua mãe durante a celebração dos ritos matrimoniais renunciara de modo absoluto à própria família desde esse tempo oferecera banquetes fúnebres aos antepassados do esposo como se fora sua filha e não oferecia mais a seus próprios antepassados porque não era mais considerada como descendente deles Não conservava laços nem religiosos nem de direito com a família na qual nascera Com muito mais razão portanto seu filho nada tinha a ver com essa família O princípio do parentesco não era o ato material do nascimento era o culto Isso se pode ver claramente na Índia Aí o chefe de família duas vezes por mês oferece o banquete fúnebre apresenta um bolo aos manes de seu pai outro ao avô paterno um terceiro ao bisavô paterno e jamais àqueles dos quais descende pelas mulheres Depois subindo mais alto mas sempre na mesma linha faz uma oferta ao quarto ao quinto e ao sexto ascendente com a diferença de que para estes a oferenda é mais reduzida uma simples libação de água e alguns grãos de arroz Esse é o banquete fúnebre e é pela observância desses ritos que se mede o parentesco Quando dois homens que oferecem separadamente seus banquetes remontando cada um a uma série de seus ancestrais encontrarem um que seja comum a ambos esses dois homens são parentes Chamamse samanodacas se o antepassado comum é daqueles a quem se oferece apenas libação de água e sapindas se lhe oferecem também um bolo4 Calculando de acordo com nossos costumes o parentesco dos sapindas iria até o sétimo grau e a dos samanodacas até o décimo quarto Em um e outro caso o parentesco é conhecido pelos sacrifícios comuns e por esse mesmo sistema vêse por que o parentesco pelas mulheres não pode ser admitido No Ocidente acontecia o mesmo Muito se discutiu sobre o que os jurisconsultos romanos entendiam por agnação Mas o problema tornase de fácil resolução se compararmos a agnação com a religião doméstica Assim como a religião não se transmitia senão de varão para varão assim também ficou atestado pelos antigos jurisconsultos que dois homens não podiam ser agnados entre si senão quando remontando sempre de varão em varão encontravam antepassados comuns5 A regra para a agnação era portanto idêntica à do culto Entre essas duas coisas havia uma relação manifesta A agnação não era nada mais que o parentesco tal como a religião o estabeleceu a princípio 31 Para tornar esta verdade mais clara tracemos este quadro de uma família romana Lucius Cornelius Scipio morto no ano 250 aC P Cornelius Scipio Cn Cornelius Scipio P Cornelius Scipio Africanus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica P Cornelius Scipio Cornélia esposa de Sempronius Gracchus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica Corculum P Cornelius Scipio Aemilianus nascido na família Emília adotado pela família Cornélia Tibério e Caius Gracchus L Cornelius Scipio Asiaticus P Cornelius Scipio Nasica Serapio Nesse quadro a quinta geração que vivia pelo ano 140 antes de Jesus Cristo é representada por quatro pessoas Seriam todos eles parentes entre si Sêloiam de acordo com nossas ideias modernas mas não o eram na opinião dos romanos Examinemos com efeito se possuíam o mesmo culto doméstico isto é se faziam ofertas aos mesmos antepassados Suponhamos o terceiro Cipião Asiático o último de seu ramo oferecendo no dia determinado o banquete fúnebre remontando de varão em varão ele encontra por terceiro antepassado a Públio Cipião Do mesmo modo Cipião Emiliano oferecendo o sacrifício tornará a encontrar na série de seus ascendentes ao mesmo Públio Cipião Portanto Cipião Asiático e Cipião Emiliano são parentes entre si entre os hindus chamarse iam sapindas Por outro lado Cipião Serapião tem por quarto antepassado a Lúcio Cornélio Cipião que também é o quarto antepassado de Cipião Emiliano São portanto parentes entre si entre os hindus chamarseiam samanodacas Na língua jurídica e religiosa de Roma esses três Cipiões são agnados os dois primeiros em sexto grau o terceiro no oitavo grau em relação a eles O mesmo não acontece com Tibério Graco Este homem que de acordo com nossos costumes modernos seria o parente mais próximo de Cipião Emiliano não é seu parente nem em grau afastado Pouco importa com efeito para Tibério que ele seja filho de Cornélia a filha dos Cipiões nem ele nem a própria Cornélia pertencem a esta família pela religião Ele não tem outros antepassados senão os Semprônios e é a eles que oferece os banquetes fúnebres remontando à série de seus ascendentes não encontrará ninguém além de Semprônio Cipião Emiliano e Tibério Graco portanto não são agnados Os laços de sangue não bastam para estabelecer parentesco é necessário o laço do culto Por aí se compreende por que aos olhos da lei romana dois irmãos consanguíneos eram agnados e dois irmãos uterinos não o eram E nem se pode afirmar que a descendência pelos varões era o princípio imutável sobre o qual se baseava o parentesco Não era pelo nascimento mas pelo culto que se reconhecia verdadeiramente os agnados Com efeito o filho que a emancipação desligara do culto deixava de ser agnado de seu pai o estranho que havia sido adotado isto é admitido ao culto tornavase agnado do adotante e mesmo de toda a família Tanto é verdade que só religião é que determinava o parentesco Sem dúvida na Índia na Grécia como em Roma houve uma época em que o parentesco pelo culto não foi mais o único a ser considerado À medida que a antiga religião se enfraquece a voz do sangue fala mais alto e o parentesco por nascimento foi 32 reconhecido em direito Os romanos chamaram cognatio essa espécie de parentesco que era absolutamente independente das regras da religião doméstica Quando lemos os jurisconsultos desde Cícero até Justiniano vemos os dois sistemas de parentesco rivalizando entre si e disputando o domínio do direito Mas no tempo das Doze Tábuas somente se conhecia o parentesco por agnação que era o único que conferia direitos de sucessão Mais adiante veremos como o mesmo aconteceu entre os gregos Notas Livro II Cap V 1 Platão Leis V p 729 2 Plutarco De frat amore 7 3 Digesto liv 50 tít 14 196 4 Leis de Manu V 60 Mitakchara tr Orianne p 213 5 Gaio I 156 Id III 10 Ulpiano XXVI Institutas de Justiniano III 2 CAPÍTULO VI O DIREITO DE PROPRIEDADE Eis uma instituição dos antigos sobre a qual não devemos formar ideia pelo que vemos a nosso redor Os antigos basearam o direito de propriedade sobre princípios que não são mais os das gerações presentes e daqui resultou que as leis pelas quais o garantiram são sensivelmente diversas das nossas Sabemos que há raças que jamais chegaram a instituir entre si a propriedade privada outras só a admitiram depois de muito tempo e a muito custo Com efeito não é um problema fácil na origem das sociedades saber se o indivíduo pode apropriarse do solo e estabelecer uma união tão forte entre si e uma parte da terra a ponto de poder dizer Esta terra é minha esta terra é como que parte de mim mesmo Os tártaros admitem direitos de propriedade quando se trata de rebanhos e não o compreendem quando se trata do solo Entre os antigos germanos de acordo com alguns autores a terra não pertencia a ninguém todos os anos a tribo designava a cada um de seus membros um lote para cultivar lote que era trocado no ano seguinte O germano era proprietário da colheita e não da terra O mesmo acontece ainda em uma parte da raça semítica e entre alguns povos eslavos Pelo contrário as populações da Grécia e da Itália desde a mais remota antiguidade sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada Não ficou nenhuma lembrança histórica de época em que a terra fosse comum1 e também nada se vê que se assemelhe a essa divisão anual dos campos praticada entre os germanos Há até um fato bastante notável Enquanto as raças que não concediam ao indivíduo a propriedade do solo concedemlhe pelo menos tal direito sobre os frutos do trabalho isto é das colheitas entre os gregos acontecia o contrário Em algumas cidades os cidadãos eram obrigados a reunir em comum as colheitas ou pelo menos a maior parte delas e deviam consumilas em comum2 o indivíduo portanto não era absoluto senhor do trigo que havia colhido mas ao mesmo tempo por notável contradição tinha absolutos direitos de propriedade sobre o solo A terra para ele valia mais que a colheita Parece que entre os gregos a concepção do direito de propriedade tenha seguido caminho absolutamente oposto ao que parece natural Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo Seguiuse a ordem inversa Há três coisas que desde as mais antigas eras encontramse fundadas e 33 solidamente estabelecidas nas sociedades grega e itálica a religião doméstica a família o direito de propriedade três coisas que tiveram entre si na origem uma relação evidente e que parecem terem sido inseparáveis A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião Cada família tinha seu lar e seus antepassados Esses deuses não podiam ser adorados senão por ela e não protegiam senão a ela eram sua propriedade exclusiva Ora entre esses deuses e o solo os homens das épocas mais antigas divisavam uma relação misteriosa Tomemos em primeiro lugar o lar esse altar é o símbolo da vida sedentária como o nome bem o indica3 Deve ser colocado sobre a terra e uma vez construído não o devem mudar mais de lugar O deus da família deseja possuir morada fixa materialmente é difícil transportar a terra sobre a qual ele brilha religiosamente isso é mais difícil ainda e não é permitido ao homem senão quando é premido pela dura necessidade expulso por um inimigo ou se a terra não o puder sustentar por ser estéril Quando se constrói o lar é com o pensamento e a esperança de que continue sempre no mesmo lugar O deus ali se instala não por um dia nem pelo espaço de uma vida humana mas por todo o tempo em que dure essa família e enquanto restar alguém que alimente a chama do sacrifício Assim o lar toma posse da terra essa parte da terra torna se sua é sua propriedade E a família que por dever e por religião fica sempre agrupada ao redor desse altar fixase ao solo como o próprio altar A ideia de domicílio surge naturalmente A família está ligada ao altar o altar ao solo estabelecese estreita relação entre a terra e a família Aí deve ter sua morada permanente que jamais abandonará a não ser quando obrigada por força superior Como o lar a família ocupará sempre esse lugar Esse lugar lhe pertence é sua propriedade e não de um homem somente mas de toda uma família cujos diferentes membros devem um após outro nascer e morrer ali Sigamos o raciocínio dos antigos Dois lares representam duas divindades distintas que nunca se unem ou se confundem isso é tão verdade que o casamento entre duas famílias não estabelece aliança entre seus deuses O lar deve ser isolado isto é separado claramente de tudo o que não lhe pertence os estranhos não devem aproximarse dele no momento em que se celebram as cerimônias do culto não devem nem mesmo sêlo por isso os manes são conhecidos como deuses ocultos mychioi ou deuses interiores penates Para que essa regra religiosa seja rigorosamente cumprida é necessário que ao redor do altar a certa distância haja uma cerca Pouco importa que seja uma paliçada uma sebe ou um muro de pedras Seja qual for ela marca a divisa que separa o domínio de um lar Esse recinto é considerado sagrado4 Ultrapassálo é ato de impiedade O deus vela sobre ele e tomao sob sua guarda por isso dão a esse deus o epíteto de erkéios5 Essa linha divisória traçada pela religião e por ela protegida é o emblema mais certo a marca mais irrecusável do direito de propriedade Reportemonos às idades primitivas da raça ariana O recinto sagrado que os gregos chamam de érkos e os latinos de herctum e o recinto no qual a família tem sua casa seus rebanhos o pequeno campo que cultiva No meio levantase o lar protetor Vamos para as idades seguintes a população alcançou a Grécia e a Itália e construiu cidades As casas estão próximas umas das outras e no entanto não são contíguas O recinto sagrado ainda existe mas em proporções menores mais comumente ficou reduzido a um pequeno muro uma vala um sulco ou a uma simples faixa de terra de alguns pés de largura Seja como for duas casas não devem ser vizinhas a contiguidade é considerada impossível A mesma parede não pode ser comum a duas casas porque então o recinto sagrado dos deuses domésticos desapareceria Em Roma a lei fixa em dois pés e meio a largura do espaço que sempre deve separar duas casas e esse espaço é consagrado ao deus da divisa6 O resultado dessas velhas regras religiosas é que entre os antigos jamais se estabeleceu uma vida de comunidade O falanstério nunca foi conhecido O próprio Pitágoras não conseguiu estabelecer instituições às quais a religião íntima dos 34 homens resistia Não se encontra também em nenhuma época da vida dos antigos nada que se assemelhe a essa promiscuidade das aldeias tão comum na França do século doze Como cada família tinha seus deuses e seu culto devia ter também seu lugar particular sobre a terra seu domicílio isolado sua propriedade Os gregos diziam que o lar havia ensinado aos homens a construir casas7 Com efeito o homem fixado pela religião em um lugar que não pensava abandonar jamais logo deve ter pensado em levantar aí uma construção sólida A tenda convém ao árabe o carro ao tártaro mas uma família que tem um altar doméstico precisa de uma casa que dure À cabana de terra ou de madeira seguiuse logo a casa de pedra E esta não foi construída somente para a vida de um homem mas para a família cujas gerações deviam sucederse na mesma morada A casa situavase sempre no recinto sagrado Entre os gregos dividiase em duas partes o quadrado formado pela cerca a primeira parte era o pátio a casa ocupava a segunda parte O altar colocado mais ou menos no centro da área total encontravase assim no fundo do pátio e perto da entrada da casa Em Roma a disposição era diferente mas o princípio era o mesmo O altar ficava colocado no meio do recinto mas as paredes elevavamse ao seu redor pelos quatro lados de maneira a fechálo no meio de um pequeno pátio Vêse claramente o pensamento que inspirou esse sistema de construção as paredes levantamse ao redor do altar para isolálo e protegêlo e podemos afirmar como diziam os gregos que a religião ensinou a construir casas Nessa casa a família é senhora e proprietária a divindade doméstica lhe assegura esse direito A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses ela é o templo que os guarda Que há de mais sagrado diz Cícero que a morada de um homem Lá está o altar lá brilha o fogo sagrado lá estão as coisas santas e a religião8 Penetrar nessa casa com intenções malévolas era sacrilégio O domicílio era inviolável Segundo uma tradição romana o deus doméstico afugentava ladrões e afastava inimigos9 Passemos a outro objeto do culto o túmulo e veremos que a ele se ligam as mesmas ideias O túmulo tinha grande importância na religião dos antigos porque por uma parte deviase cultuar os mortos e por outra a principal cerimônia desse culto isto é o banquete fúnebre devia ser realizado no mesmo lugar onde repousavam os antepassados10 A família tinha portanto um túmulo comum onde seus membros deviam repousar sucessivamente Para o túmulo observavamse as mesmas regras que para o fogo sagrado não era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura como não se podiam unir dois altares domésticos em uma só casa Tanto era impiedade enterrar um morto fora do túmulo da família como colocar nesse túmulo o corpo de um estranho11 A religião doméstica na vida ou na morte separava cada família de todas as outras e afastava severamente qualquer aparência de comunidade Assim como as casas não deviam ser contíguas os túmulos não deviam ser vizinhos cada um deles como a casa tinha uma espécie de baliza que o isolava Como o caráter de propriedade privada está manifesto em tudo isso Os mortos são deuses que pertencem apenas a uma família e que apenas ela tem o direito de invocar Esses mortos tomaram posse do solo vivem sob esse pequeno outeiro e ninguém que não pertença à família pode pensar em unirse a eles Ninguém aliás tem o direito de priválos da terra que ocupam um túmulo entre os antigos jamais pode ser mudado ou destruído12 as leis mais severas o proíbem Eis portanto uma parte da terra que em nome da religião tornase objeto de propriedade perpétua para cada família A família apropriouse da terra enterrando nela os mortos e ali se fixa para sempre O membro mais novo dessa família pode dizer legitimamente Esta terra é minha E ela lhe pertence de tal modo que lhe é inseparável não tendo nem mesmo o direito de desfazerse dela O solo onde repousam seus mortos é inalienável e imprescritível A lei romana exige que se uma família vende o campo onde está o túmulo continua no entanto proprietária desse túmulo e conserva eternamente o 35 direito de atravessar o campo para nele cumprir as cerimônias do culto13 Era antigo costume enterrar os mortos não em cemitérios ou à beira das estradas mas no campo de cada família Esse costume dos tempos antigos é confirmado por uma lei de Sólon e por diversas passagens de Plutarco14 Lemos em um discurso de Demóstenes que ainda em seu tempo cada família enterrava seus mortos no próprio campo e que quando se comprava uma propriedade na Ática nela encontravam a sepultura dos antigos proprietários15 Quanto à Itália esse mesmo costume nos é atestado por uma lei das Doze Tábuas pelos textos de dois jurisconsultos e por esta frase de Siculo Flaco Antigamente havia duas maneiras de colocar os túmulos uns punham nos no limite dos campos outros no meio16 De acordo com esse costume podese imaginar como a ideia de propriedade se tenha facilmente estendido da pequena colina onde repousavam os mortos ao campo que o rodeava Podese ler em livro do velho Catão uma oração pela qual um lavrador italiano rogava aos manes que velassem sobre seu campo guardandoo contra os ladrões e concedendolhe colheita abundante Assim as almas dos mortos estendiam sua ação tutelar e com ela o direito de propriedade até os limites do domínio Por meio delas a família era a única senhora daquele campo A sepultura havia estabelecido a união indissolúvel da família com a terra isto é a propriedade Entre a maior parte das sociedades primitivas foi pela religião que se estabeleceu o direito de propriedade Na Bíblia o Senhor diz a Abraão Sou o Eterno que te fez sair da Ur dos caldeus a fim de te dar este país E a Moisés Eu vos farei entrar no país que jurei dar a Abraão e que eu vos darei como herança Assim Deus proprietário primitivo por direito de criação delegou ao homem sua propriedade sobre uma parte do solo17 Há algo análogo entre as antigas populações grecoitálicas Não é verdade que a religião de Júpiter tenha estabelecido esse direito talvez porque ainda não existisse Os deuses que conferiram a cada família direitos sobre a terra foram os deuses domésticos o lar e os manes A primeira religião que teve poder sobre suas almas foi também a que instituiu entre eles a propriedade É bastante evidente que a propriedade privada era uma instituição da qual a religião doméstica não se podia eximir Essa religião prescrevia que se isolasse o domicílio e a sepultura a vida em comum portanto tornavase impossível A mesma religião ordenava que o altar fosse fixado ao solo e que a sepultura não fosse nem mudada nem destruída Suprimi a propriedade e o altar ficará errante as famílias confundirseão os mortos ficarão abandonados e sem culto Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente a família tomou posse do solo a terra de certo modo foi imbuída e penetrada pela religião do lar e dos antepassados Por essa razão o homem das antigas idades ficou dispensado de resolver problemas muito difíceis Sem discussão sem trabalho sem sombra de hesitação chegou de um só golpe e em virtude de suas crenças à concepção do direito de propriedade desse direito que é a origem de toda a civilização pois que por ele o homem beneficia a terra e se torna melhor a si mesmo Não foram as leis que a princípio garantiram o direito de propriedade foi a religião Cada domínio estava sob os olhos da divindade doméstica que velava sobre ele18 Cada campo devia estar rodeado como o vimos para a casa de uma cerca que o separava nitidamente dos domínios das outras famílias Essa cerca não era um muro de pedra era uma faixa de terra de alguns pés de largura que devia permanecer inculta e que a charrua jamais devia tocar Esse espaço era sagrado a lei romana declaravao imprescritível19 ele pertencia à religião Em determinados dias do mês e do ano o pai de família dava a volta a seu campo seguindo essa linha levava à sua frente as vítimas cantava hinos oferecia sacrifícios20 Com essa cerimônia acreditava despertar a benevolência dos deuses em relação a seu campo e à sua casa sobretudo marcava seu direito de propriedade levando ao redor do campo seu culto doméstico O caminho seguido pelas vítimas e as preces era o limite inviolável do domínio 36 Sobre essa linha de distância em distância o homem colocava algumas pedras grandes ou troncos de árvores denominados termos Podemos avaliar o que eram esses limites e que ideias inspiravam pela maneira pela qual a piedade dos homens depositavaos em terra Eis diz Siculo Flaco o que nossos antepassados faziam começavam por cavar um pequeno buraco e levando o termo à sua borda coroavamno de grinaldas de ervas e flores Depois ofereciam um sacrifício imolada a vítima derramavam o sangue no fosso na qual lançavam carvões acesos talvez acesos no fogo sagrado semente bolos frutas um pouco de vinho e mel Quando tudo se consumia sobre as cinzas ainda quentes enterravase a pedra ou o pedaço de madeira21 Vêse por aí claramente que essa cerimônia tinha por objeto fazer do termo uma espécie de representante sagrado do culto doméstico Para conservarlhe esse caráter cada ano renovavase o ato sagrado fazendo libações e recitando preces O termo colocado em terra era de algum modo a religião doméstica implantada no solo para marcálo para sempre como propriedade da família Mais tarde com a ajuda da poesia o termo foi considerado como um deus distinto e pessoal O uso dos termos ou limites sagrados dos campos parece ter sido universal na raça indoeuropeia Existia entre os hindus em idades remotíssimas e as cerimônias sagradas da demarcação tinha entre eles grande analogia com as que Siculo Flaco descreveu para a Itália22 Antes de Roma encontramos o termo entre os sabinos23 como também entre os etruscos Os helenos também tinham seus marcos sagrados que chamavam de òpoi theà órioi24 O marco uma vez plantado de acordo com os ritos não havia poder no mundo capaz de movêlo Devia ficar eternamente no mesmo lugar Esse princípio religioso era conhecido em Roma por uma lenda Júpiter desejando alojarse sobre o monte Capitolino para nele construir um templo não o conseguiu por não poder tirar de lá o deus Termo Essa velha tradição demonstranos como a propriedade era sagrada porque o vocábulo imóvel não significa nada mais que propriedade inviolável O deus Termo com efeito guardava os limites do campo e velava sobre ele O vizinho não ousava aproximarse muito porque então como diz Ovídio o deus que se sentia ferido pela enxada ou pela relha do arado gritava Pára este campo é meu ali está o teu25 Para invadir o campo de uma família era necessário derrubar ou deslocar um marco ora esse marco era um deus O sacrilégio era horrível e o castigo severo a velha lei romana dizia Se tocou o marco com a relha do arado o homem e seus bois devem ser lançados aos deuses infernais26 Isso significava que o homem e os bois seriam imolados em expiação A lei etrusca falando em nome da religião exprimiase assim Aquele que tocar ou remover um marco será condenado pelos deuses sua casa desaparecerá sua raça se extinguira sua terra não produzirá mais frutos o granizo a ferrugem o calor da canícula destruirão suas colheitas os membros do culpado cobrirseão de úlceras e cairão de consumpção27 Não possuímos o texto da lei ateniense sobre o assunto não nos restam senão três palavras que significam Não ultrapasse os limites Mas Platão parece completar o pensamento do legislador quando diz Nossa primeira lei deve ser esta Que ninguém toque no marco que separa seu campo do do vizinho porque ele deve continuar imóvel Que ninguém cuide em deslocar a pequena pedra que separa a amizade da inimizade a pedra que por juramento deve permanecer em seu lugar28 De todas essas crenças de todos esses costumes de todas essas leis resulta claramente que foi a religião doméstica que ensinou o homem a se apropriar da terra e que lhe assegurou direitos sobre a mesma Compreendese facilmente que o direito de propriedade assim concebido e estabelecido foi muito mais completo e mais absoluto em seus efeitos do que o poderia ser em nossas sociedades modernas onde se baseia sobre outros princípios A propriedade era tão inerente à religião doméstica que uma família não podia renunciar nem a uma nem à outra A casa e o campo estavam como que incorporadas a ela e ela não podia nem perdê la nem privarse dela Platão em seu Tratado 37 das Leis não pretendia dizer novidades quando proibia ao proprietário vender o campo apenas lembrava uma lei antiga Tudo leva a crer que nos tempos antigos a propriedade fosse inalienável É de todos sabido que em Esparta era proibida a venda de terras29 A mesma interdição estava escrita nas leis de Locres e de Leucádio30 Fidon de Corinto legislador do século IX prescrevia que o número das famílias e das propriedades ficasse sempre o mesmo31 Ora essa prescrição não podia ser observada se não fosse proibido às famílias vender as próprias terras ou dividilas A lei de Sólon posterior a sete ou oito gerações à que Fidon de Corinto não proibia mais ao homem a venda das propriedades mas castigava o vendedor com pena severa a perda dos direitos de cidadão32 Enfim Aristóteles nos informa de maneira geral que em muitas cidades as antigas legislações interdiziam as vendas das terras33 Tais leis não nos devem surpreender Baseai a propriedade sobre o direito do trabalho e o homem poderá renunciar à sua posse Baseiao sobre a religião e ele não o poderá mais fazêlo um laço mais forte que a vontade humana o une à terra Além do mais esse campo onde está o túmulo onde vivem os antepassados divinos onde a família deve celebrar um culto ininterrupto não é propriedade de apenas um homem mas de toda uma família Não é o indivíduo que agora está vivo que estabeleceu direitos sobre a terra mas o deus doméstico O indivíduo a tem apenas em depósito ela pertence àqueles que estão mortos e aos que estão por nascer forma um só corpo com a família e não pode mais separarse da mesma Destacar uma da outra é alterar o culto e ofender à religião Entre os hindus a propriedade também baseada sobre o culto era igualmente inalienável34 Não conhecemos o direito romano senão a partir das Doze Tábuas é claro que nessa época a venda de propriedades já era permitida Mas há razões para pensar que nos primeiros tempos de Roma e na Itália antes da fundação de Roma a terra era tão inalienável quanto na Grécia Se não nos resta nenhuma testemunha dessa antiga lei pelo menos se podem perceber pequenas mudanças que foram sendo introduzidas pouco a pouco A lei das Doze Tábuas deixando ao túmulo seu caráter inalienável libertou o campo Permitiuse depois a divisão da propriedade caso houvesse muitos irmãos mas com a condição de se realizar nova cerimônia religiosa somente a religião podia dividir o que a religião havia outrora proclamado indivisível Enfim permitiuse a venda das terras mas para isso ainda eram necessários algumas formalidades de caráter religioso Essa venda não podia ser realizada senão na presença do libripens e com todos os ritos simbólicos da mancipação Na Grécia vêse algo análogo a venda de uma casa ou de uma propriedade era acompanhada de um sacrifício aos deuses35 Parece que qualquer mudança de propriedade tinha necessidade de ser autorizada pela religião Se o homem não podia absolutamente ou com muita dificuldade desfazerse da terra com muito mais razão não o podiam privar dela contra sua vontade A expropriação motivada pela utilidade pública era desconhecida entre os antigos A confiscação não era praticada senão como consequência da pena de exílio36 isto é quando um homem despojado do título de cidadão não podia mais exercer nenhum direito sobre o solo da cidade A expropriação por dívidas também é desconhecida pelo antigo direito das cidades37 A lei das Doze Tábuas não poupa naturalmente o devedor contudo não permite que sua propriedade seja confiscada em proveito do credor O corpo do homem responde pela dívida mas não a terra porque a terra é inseparável da família É mais fácil escravizar um homem que tirarlhe o direito de propriedade que pertence mais à família do que a ele próprio o devedor é posto nas mãos do credor sua terra de algum modo segueo na escravidão O patrão que usa em seu proveito das forças físicas do homem usufrui também os frutos da terra mas não se torna proprietário da mesma Tanto o direito de propriedade é inviolável e superior a tudo38 Notas Livro II Cap VI 38 1 Alguns historiadores são da opinião de que em Roma a propriedade a princípio fora pública e só se tornara particular sob o governo de Numa Esse erro vem de uma falsa interpretação de três textos de Plutarco Numa 16 de Cícero República II 14 e de Dionísio II 74 Esses três autores com efeito dizem que Numa distribuiu certas terras aos cidadãos mas indicam com muita clareza que essa divisão só dizia respeito às terras que as últimas conquistas de seu predecessor acrescentaram ao primitivo território romano Quanto ao ager Romanus isto é ao território que rodeava Roma a uma distância de cinco milhas Estrabão V 3 2 já era propriedade particular desde a origem da cidade Vide Dionísio II 7 Varrão De re rustica I 10 Nônio Marcelo ed Quicherat p 61 2 Assim em Creta cada um dava para os banquetes comuns a décima parte das colheitas Ateneu IV 22 Do mesmo modo em Esparta cada um devia fornecer de seu patrimônio uma quantidade determinada de farinha vinho e de frutos para as despesas da mesa comum Aristóteles Polít II 7 ed Didot p 515 Plutarco Licurgo 12 Dicearca em Ateneu IV 10 3 Vide Plutarco De primo frigido 21 Macróbio I 23 Ovídio Fast VI 299 4 Sófocles Trachin 606 5 Na época em que esse antigo culto foi quase suplantado pela religião mais brilhante de Zeus em que se associou Zeus à divindade do lar o novo deus tomou para si o epíteto de erkéios Não é menos verdade que originariamente o verdadeiro protetor do recinto era o deus doméstico Dionísio de Halicarnasso o atesta I 67 quando diz que os deuses erkéioi são os mesmos que os penates Isso aliás se torna mais claro se compararmos uma passagem de Pausânias IV 17 com uma passagem de Eurípides Tróia 17 e uma de Virgílio En II 514 essas três passagens dizem respeito ao mesmo fato e mostram que o Zeus erkéios não é outro que o lar doméstico 6 Festo v Ambitus Varrão L L V 22 Sérvio ad Aen II 469 7 Diodoro V 68 Essa mesma crença é referida por Eustato que afirma que a casa se originou do lar Eust ad Odyss XIV v 158 XVII V 156 8 Cícero Pro domo 41 9 Ovídio Fastos V 141 10 Tal era pelo menos a regra antiga pois acreditavase que o banquete fúnebre servia de alimento aos mortos Vide Eurípides Troianas 381 389 11 Cícero De legib II 22 II 26 Gaio Instit II 6 Digesto liv XLVII tít 12 Devemos notar que o escravo e o cliente como veremos mais adiante faziam parte da família e eram enterrados no túmulo comum A guerra que prescrevia que cada homem fosse enterrado no túmulo de família só admitia exceção no caso em que a própria cidade celebrasse funerais públicos 12 Licurgo Contra Leocrato 25 Em Roma para que uma sepultura fosse mudada de lugar era necessário autorização dos pontífices Plínio Cartas X 73 13 Cícero De legib II 24 Digesto liv XVIII tít I 6 14 Lei de Sólon citada por Gaio no Digesto X 1 13 Plutarco Aristides 1 Címon 19 Marcelino Vida de Tucídides 17 15 Demóstenes in Calliclem 13 14 descreve também o túmulo aos busélidas colina bastante extensa e fechada segundo antigo costume onde repousam em comum todos os descendentes de Buselos Dem in Macart 79 16 Siculo Flaco edit Goez p 4 5 Vide Fragm terminalia edit Goez p 147 Pompônio no Digesto liv XLVII tít 12 5 Paulo no Digesto VIII 1 14 Digesto XIX 1 53 XI 7 2 9 XI 7 43 e 46 17 Idêntica tradição entre os etruscos Fragm intitulado Idem Vegoiae Arrunti ed Lachmann p 350 18 Tíbulo I 1 23 Cícero De legib II 11 19 Cícero De legibus I 21 20 Catão De re rust 141 Script rei agrar edit Goez p 308 Dionísio de Halicarnasso II 74 Ovídio Fast II 639 Estrabão V 3 21 Siculo Flaco De oonditione agrorum edit Lachmann p 141 edit Goez p 5 22 Leis de Manu VII 245 Vrihaspati citado por Sicé Législat hindoue p 159 23 Varrão L L V 74 39 24 Pólux IX 9 Hesíquio hóros Platão Leis VIII p 842 Plutarco e Dionísio traduzem terminus por hóros Aliás a palavra térmon existia também na língua grega Eurípides Electra 96 25 Ovídio Fastos II 677 26 Festo v Terminus ed Müller p 363 27 Script rei agrar edit Goez p 258 ed Lachamann p 351 28 Platão Leis VIII p 842 29 Aristóteles Política II 6 10 ed Didot p 512 Heráclida do Ponto Fragm hist graec ed Didot t II p 211 Plutarco Instituta laconica 22 30 Aristóteles Política II 4 4 31 Aristóteles Política II 3 7 Essa lei do velho legislador não visava a igualdade de fortunas porque Aristóteles acrescenta embora as propriedades fossem desiguais Visava unicamente a manutenção da propriedade na família Também em Tebas o número de propriedades era imutável Aristóteles Pol II 9 7 32 O homem que havia alienado seu patrimônio era condenado à atimía Ésquines In Timarchum 30 Diógenes Laércio Sólon I 55 Essa lei que certamente não era mais observada nos tempos de Ésquines subsistia apenas na forma como vestígio da antiga regra Bekker Anecdota p 199 e 310 33 Aristóteles Polít VI 2 5 34 Mitakchara trad Orianne p 50 Essa regra desapareceu pouco a pouco quando o bramanismo passou a dominar 35 Fragmento de Teofrasto citado por Estobeu Serm 42 36 Essa regra desapareceu na idade democrática das cidades 37 Uma lei dos helenos proibia hipotecar a terra Aristóteles Polit VII 2 A hipoteca era desconhecida no antigo direito ateniense antes de Sólon apoiase em uma palavra mal compreendida de Plutarco O vocábulo hóros que significa mais tarde um limite hipotecário significava nos tempos de Sólon o limite sagrado que assinalava o direito de propriedade Vide mais adiante liv IV c 6 A hipoteca não apareceu senão mais tarde no direito ático e somente sob a forma de venda e sob condição de resgate 38 No artigo da lei das Doze Tábuas que trata do devedor insolvente lemos Si volet suo vivito pois o devedor quase escravizado conserva ainda algo de próprio sua propriedade quando a tem não lhe é confiscada Os contratos conhecidos em direito romano sob os nomes de mancipação com fidúcia e de pignus eram antes da ação serviana meios indiretos de assegurar ao credor o pagamento da dívida eles provam indiretamente que a expropriação por dívidas não existia Mais tarde quando se suprimiu a servidão corporal foi necessário encontrar um meio para se ter direitos sobre os bens do devedor Isso não era fácil mas a distinção que se fazia entre a propriedade e a posse ofereceu um recurso O credor obteve do pretor o direito de vender não a propriedade dominium mas os bens do devedor bona Somente então por uma expropriação disfarçada o devedor perdia o gozo de sua propriedade CAPÍTULO VII DIREITO DE SUCESSÃO 1 Natureza e princípio do direito de sucessão entre os antigos Como o direito de propriedade havia sido estabelecido para cumprimento de um culto hereditário não era possível que se extinguisse depois da curta existência de um indivíduo O homem morre o culto continua o lar não deve extinguirse nem o túmulo deve ser abandonado Com a continuação da religião doméstica o direito de propriedade também permanece Duas coisas estão estritamente unidas tanto nas crenças como nas leis dos antigos o culto da família e a propriedade Por isso esta era uma regra sem exceção tanto no direito grego quanto no romano não se podia adquirir a propriedade sem o culto nem o culto sem a propriedade A religião 40 prescreve diz Cícero que os bens e o culto de cada família sejam inseparáveis e que o cuidado dos sacrifícios seja sempre confiado àquele a quem cabe a herança1 Em Atenas os termos em que um litigante reclamava uma sucessão eram estes Refleti bem juízes e dizei qual de nós deve herdar os bens de Filoctémon e fazer os sacrifícios sobre seu túmulo2 Podese afirmar mais claramente que o cuidado do culto não se podia separar da sucessão O mesmo acontece na Índia A pessoa que herda seja quem for fica encarregada de fazer ofertas sobre o túmulo3 Deste princípio originaramse todas as regras do direito de sucessão entre os antigos A primeira é que sendo a religião doméstica como vimos hereditária de varão para varão o mesmo acontecia com a propriedade Como o filho é a continuação natural e obrigatória do culto também é herdeiro dos bens Assim é que surgiu a regra da hereditariedade ela não é o resultado de uma simples convenção feita entre os homens ela deriva de suas crenças de sua religião do que há de mais poderoso sobre as almas O que faz com que o filho herde não é a vontade do pai O pai não tem necessidade de fazer testamento o filho herda de pleno direito ipso jure heres exsistit diz o jurisconsulto É um herdeiro necessário heres necessarius4 Não tem que aceitar ou recusar a herança A continuação da propriedade como a do culto é para ele obrigação e direito Quer queira quer não a herança lhe cabe seja qual for mesmo com suas obrigações e dívidas O benefício de inventário e o benefício de desistência não são admitidos para o filho no direito grego e não foram introduzidos senão muito tarde no direito romano A linguagem jurídica de Roma chama o filho de heres suus como se dissesse heres sui ipsius Com efeito ele não herda senão de si próprio Entre o pai e ele não há nem doação nem legado nem mudança de propriedade Há simplesmente continuação Morte parentis continuatur dominium Ainda em vida do pai o filho era coproprietário do campo e da casa Vivo quoque patre dominus existimatur5 Para se fazer uma ideia verdadeira da herança entre os antigos não é necessário pensar em uma fortuna que passa de mão em mão A fortuna é imóvel como o fogo sagrado e o túmulo aos quais está unida O homem é que passa É o homem que à medida que a família estende suas gerações chega à hora marcada para continuar o culto e cuidar de seu domínio 2 O filho herda e não a filha Aqui é que as leis antigas à primeira vista parecem estranhas e injustas Sentese alguma surpresa quando vê que no direito romano a filha não herda do pai se é casada e que no direito grego ela não herda em nenhum caso Quanto aos colaterais parece à primeira vista que a lei está ainda mais longe da natureza e da justiça É que todas essas leis são decorrentes não da razão e da lógica não do sentimento de equidade mas das crenças e da religião que reinavam sobre as almas A regra para o culto é a transmissão de varão para varão a regra para a herança é conformarse com o culto A filha não é apta para continuar a religião paterna pois ela se casa e casandose renuncia ao culto do pai para adotar o do esposo não tem portanto nenhum título para herdar Se por acaso um pai deixasse seus bens à filha a propriedade seria separada do culto o que não é admissível A filha não poderia nem ao menos cumprir o primeiro dever do herdeiro que é continuar a série de banquetes fúnebres pois os sacrifícios que oferece dirigemse aos antepassados do marido A religião portanto proíbelhe herdar do pai Tal é o antigo princípio também obedecido pelos legisladores hindus como pelos da Grécia e de Roma Os três povos têm as mesmas leis não porque uns a aprendessem dos outros mas porque tiraram suas leis das mesmas crenças Depois da morte do pai diz o Código de Manu os irmãos devem dividir entre si o patrimônio e o legislador continua recomendando aos irmãos que dotem suas irmãs o que acaba de provar que elas não têm por si mesmas nenhum direito à sucessão paterna 41 O mesmo acontece em Atenas Os oradores áticos em seus discursos demonstram frequentemente que as filhas não herdam1 O próprio Demóstenes é um exemplo da aplicação dessa lei grega porque tinha uma irmã e sabemos por seus próprios escritos que ele foi o único herdeiro do patrimônio seu pai reservara apenas a sétima parte para dotar a filha Quanto a Roma as disposições do direito primitivo nos são quase completamente desconhecidas Não possuímos dessas épocas antigas nenhum texto de lei que se relacione com o direito de sucessão da filha não possuímos tampouco nenhum documento análogo aos discursos de Atenas enfim somos obrigados a procurar fracos indícios do direito primitivo em um direito muito posterior e muito diverso Gaio e as Institutas de Justiniano lembram ainda que a filha não pertence ao número dos herdeiros naturais senão quando se encontra em poder do pai no momento de sua morte2 ora se estiver casada de acordo com os ritos religiosos não está mais sob a jurisdição paterna Supondo se portanto que antes de ser casada ela pudesse dividir a herança com um irmão certamente não o poderá mais se a confarreatio a fizer sair da família paterna para ligarse à do marido É bem verdade que não casada a lei não a privava formalmente de sua parte na herança mas é necessário perguntar se na prática ela podia ser verdadeiramente herdeira Ora não nos devemos esquecer de que essa filha estava colocada sob a tutela do irmão ou dos parentes agnados por toda a vida que a tutela do antigo direito era estabelecida no interesse dos bens e não da filha que ela tinha por objeto a conservação dos bens da família3 e que enfim a filha em nenhuma idade podia casar ou mudar de família sem autorização do tutor Esses fatos que são bem provados permitem acreditar que havia senão nas leis pelo menos na prática e nos costumes uma série de dificuldades que se opunham a que a filha fosse tão completamente proprietária de sua parte do patrimônio como o filho o era da sua Não temos provas para afirmar que a filha fosse excluída do casamento mas temos certeza de que casada ela não herdava do pai e que não casada não podia jamais dispor do que havia herdado Se era herdeira não o era senão provisoriamente e sob certas condições quase em simples usufruto não tinha o direito nem de testar nem o de alienar sem autorização do irmão ou dos agnados que depois de sua morte deviam herdar os mesmos bens que haviam administrado enquanto viveu4 Há ainda outra observação a ser feita As Institutas de Justiniano lembram o velho princípio então caído em desuso mas não esquecido que prescrevia que a herança devia passar de varão para varão apenas5 É sem dúvida em lembrança dessa regra que a mulher em direito civil não podia jamais ser herdeira Quanto mais nos afastamos da época de Justiniano para épocas mais antigas mais nos aproximamos de uma regra que proíbe às mulheres herdar Nos tempos de Cícero se um pai deixa um filho e uma filha não pode legar à filha senão um terço de sua fortuna se não tem senão uma filha única mesmo assim ela não pode receber senão a metade Devese ainda notar que para que essa filha receba um terço ou a metade do patrimônio é necessário que o pai tenha feito um testamento em seu favor a filha nada tem de pleno direito6 Enfim um século e meio antes de Cícero Catão querendo fazer reviver os antigos costumes fez aprovar a lei Vocônia que proibia 1 instituir como herdeira uma mulher fosse embora filha única casada ou não 2 legar a mulheres mais da metade do patrimônio7 A lei Vocônia nada fez senão renovar leis mais antigas porque não se pode supor que tenha sido aceita pelos contemporâneos dos Cipiões se não estivesse baseada em antigos princípios ainda respeitados Essa lei visava restabelecer o que o tempo havia alterado Aliás o que há de mais curioso na lei Vocônia é que ela não estipula nada a respeito da herança ab intestat Ora esse silêncio não pode significar que nesses casos a filha era herdeira legítima porque não é admissível que a lei proíba à filha herdar do pai por testamento se ela já é herdeira de pleno direito sem testamento Esse silêncio significa antes que o legislador nada tinha a dizer sobre a herança ab intestat porque para esses casos as antigas regras se haviam conservado melhor 42 Assim sem que se possa afirmar que a filha era claramente excluída da sucessão pelo menos é certo que a antiga lei romana tanto quanto a grega dava à filha uma situação muito inferior à do filho como consequência natural e inevitável dos princípios que a religião havia gravado em todos os espíritos É verdade que os homens logo encontraram uma evasiva para conciliar a prescrição religiosa que proibia à filha herdar com o sentimento natural que exigia que ela pudesse gozar da fortuna paterna Isso é evidente sobretudo no direito grego A legislação ateniense visava manifestamente que a filha não herdeira pelo menos se casasse com um herdeiro Se por exemplo o defunto deixara um filho e uma filha a lei autorizava o casamento entre irmão e irmã contanto que não fossem nascidos da mesma mãe O irmão herdeiro único podia à sua escolha casar com a irmã ou dotála8 Se um pai não tinha senão uma filha podia adotar um filho e darlhe a filha em casamento Podia ainda instituir por testamento um herdeiro que se casasse com a filha9 Se o pai de uma filha única morresse sem haver adotado nem testado o antigo direito exigia que o parente mais próximo herdasse10 mas esse herdeiro tinha obrigação de casar a filha É em virtude desse princípio que o casamento do tio com a sobrinha era autorizado e mesmo exigido por lei11 Há mais se essa filha já estava casada devia deixar o marido para se casar com herdeiro do pai12 O herdeiro por sua vez podia ser já casado mas devia divorciar para casar com a parenta13 Vemos aqui quanto o direito antigo para se conformar com a religião desconhecia a natureza14 A necessidade de satisfazer à religião combinada com o desejo de salvar os interesses das filhas únicas fez com que se encontrasse outra solução Sobre esse ponto o direito hindu e o direito ateniense coincidiam maravilhosamente Lemos nas Leis de Manu Aquele que não tem filho varão pode encarregar a filha de lhe dar um filho que se torna seu e que celebre em sua honra a cerimônia fúnebre Para isso o pai deve prevenir o esposo ao qual dá a própria filha pronunciando esta fórmula Eu te dou enfeitada de joias esta filha que não tem irmão o filho que dela nascer será meu filho e celebrará meus funerais15 O costume era idêntico em Atenas o pai podia fazer continuar a descendência pela filha dandoa a um marido com essa condição especial O filho que nascia desse casamento era considerado filho do pai da mulher seguia seu culto assistia a seus atos religiosos e mais tarde cuidava de seu túmulo16 No direito hindu essa criança herdava do avô como se fosse filho o mesmo acontecia em Atenas Quando um pai casava a filha única como acabamos de dizer seu herdeiro não era nem a filha nem o genro era o filho de sua filha17 Quando este atingisse a maioridade tomava posse do patrimônio materno embora o pai e a mãe ainda estivessem vivos18 Essas singulares tolerâncias da religião e da lei confirmam a regra que relatamos acima A filha não era apta a herdar Mas pelo abrandamento muito natural desse princípio rigoroso a filha única era considerada como intermediária pela qual a família podia continuar Ela não herdava mas o culto e a herança eram transmitidos por seu intermédio 3 Da sucessão colateral Um homem morria sem filhos para saber quem era o herdeiro de seus bens bastava procurar quem devia ser o continuador de seu culto Ora a religião doméstica se transmitia pelo sangue de varão para varão A descendência em linha masculina estabelecia somente entre dois homens a união religiosa que permitia a um continuar o culto do outro O que se chamava de parentesco não era nada mais como vimos acima que a expressão dessa união Erase parente porque se tinha o mesmo culto um mesmo lar originário os mesmos antepassados Mas não se era parente pelo simples fato de se ter a mesma mãe a religião não admitia parentesco pelas mulheres Os filhos de duas irmãs ou de uma irmã e de um irmão não tinham entre si nenhum laço e não pertenciam à mesma religião doméstica nem à mesma família Esses princípios regulavam a ordem de sucessão Se um homem tendo perdido filho e filha não deixava senão netos os filhos de seu 43 filho herdavam os de sua filha não Na falta de descendentes tinha por herdeiro o irmão e não a irmã os filhos do irmão e não os da irmã Em falta de irmãos e de sobrinhos era necessário remontar à série dos ascendentes do defunto sempre na linha masculina até que se encontrasse um ramo que se houvesse destacado da família por um varão depois tornavase a descer por esse ramo de varão a varão até que se encontrasse um homem vivo este era o herdeiro Essas regras estavam igualmente em vigor entre os hindus entre os gregos entre os romanos Na Índia a herança pertence ao sapinda mais próximo em falta de um sapinda ao samanodaca1 Ora vimos que o parentesco que exprimiam essas duas palavras era parentesco religioso ou parentesco masculino e correspondia à agnação romana Eis agora a lei de Atenas Se um homem morre sem filhos o herdeiro é o irmão do defunto contanto que seja irmão consanguíneo em falta deste o filho do irmão porque a sucessão passa sempre aos varões e aos descendentes de varões2 Citavase ainda essa velha lei nos tempos de Demóstenes embora já estivesse modificada e já se começasse a admitir por essa época o parentesco pelo lado das mulheres As Doze Tábuas estabeleciam igualmente que se um homem morresse sem herdeiro próprio a sucessão pertencia ao agnado mais próximo Ora vimos que jamais se era agnado pelas mulheres O antigo direito romano especificava ainda que o sobrinho herdava do patruus isto é do irmão de seu pai e não herdava do avunculus isto é do irmão de sua mãe3 Se nos reportarmos ao quadro que traçamos da família dos Cipiões notaremos que como Cipião Emiliano morreu sem deixar filhos sua herança não devia passar nem a Cornélia sua tia nem a Caio Graco que de acordo com nossas ideias modernas seria seu primoirmão mas a Cipião Asiático que era de acordo com o direito dos antigos seu parente mais próximo Nos tempos de Justiniano o legislador não compreendia mais essas velhas leis elas lhe pareciam iníquas e ele acusava de rigor excessivo o direito das Doze Tábuas que concedia sempre preferência à posteridade masculina e excluía da herança aqueles que não estavam ligados ao defunto senão pelas mulheres4 Direito iníquo se assim o quisermos porque não tomava em consideração a natureza mas direito singularmente lógico porque partindo do princípio de que a herança estava ligada ao culto afastava da herança aqueles que a religião não autorizava a continuar o culto 4 Efeitos da emancipação e da adoção Vimos precedentemente que a emancipação e a adoção produziam no homem mudança de culto A primeira desligavao do culto paterno a segunda iniciavao na religião de outra família Ainda aqui o direito antigo conformavase às regras religiosas O filho que havia sido excluído do culto paterno pela emancipação era excluído também da herança1 Pelo contrário o estranho que havia sido associado ao culto de uma família pela adoção e se tornava filho da mesma continuava seu culto e herdavalhe os bens Em um e outro caso o antigo direito dava mais importância aos laços religiosos que aos laços de nascimento Como era contrário à religião que um mesmo homem tivesse dois cultos domésticos ele não podia igualmente herdar de duas famílias Também o filho adotivo que herdava da família adotante não herdava da família natural O direito ateniense era muito explícito a esse respeito Os discursos dos oradores áticos mostramnos muitas vezes homens adotados por uma família e que desejam herdar daquelas onde nasceram Mas a lei não o permitia O homem adotado não pode herdar de sua própria família senão voltando para ela e não pode voltar a ela senão renunciando à família adotiva e não pode sair desta senão sob duas condições uma que abandone o patrimônio dessa família outra que o culto doméstico para cuja continuação fora adotado não se extinga por seu abandono e para isso ele deve deixar nessa família um filho que o substitua2 Esse filho cuidará do culto e tomará posse dos bens o pai então poderá voltar à família original e herdar Mas esse pai e esse filho não podem mais herdar um do outro eles não pertencem à mesma família nem são parentes 44 Por aí se vê qual era o pensamento do velho legislador quando estabelecia essas regras minuciosas Ele não julgava possível que duas heranças se reunissem sob o mesmo teto porque dois cultos domésticos não podiam ser servidos pela mesma mão 5 O testamento a princípio não era conhecido O direito de testar isto é de dispor dos próprios bens depois da morte para deixálos a outros que não o herdeiro natural estava em oposição com as crenças religiosas que eram o fundamento do direito de propriedade e do direito de sucessão Se a propriedade estava ligada ao culto e o culto era hereditário podiase pensar em testamento Além do mais a propriedade não pertencia ao indivíduo mas à família porque o homem não a adquiriu por direito de trabalho mas pelo culto doméstico Ligada à família ela se transmitia do morto ao vivo não de acordo com a vontade ou escolha do morto mas em virtude de regras superiores que a religião havia estabelecido O antigo direito hindu não conhecia o testamento O direito ateniense até Sólon proibiao de maneira absoluta1 e o próprio Sólon não o permitiu senão aos que não tinham filhos2 O testamento foi por muito tempo proibido ou ignorado em Esparta e não foi autorizado senão depois da guerra do Peloponeso3 Conservase ainda a lembrança de um tempo em que era proibido também em Corinto e em Tebas4 É certo que a faculdade de legar arbitrariamente os próprios bens não foi reconhecida a princípio como direito natural o princípio constante em todas as épocas antigas foi o de que a propriedade devia permanecer na família à qual a religião a havia ligado Platão em seu Tratado das Leis que em grande parte nada mais é que um comentário sobre as leis atenienses explica com muita clareza o pensamento dos antigos legisladores Ele supõe que um homem em seu leito de morte reclama a faculdade de fazer testamento e exclama Ó deuses não é crueldade que eu não possa dispor de meus bens como entendo e em favor de quem quero deixando mais a este menos àquele de acordo com o afeto que me demonstraram Mas o legislador responde a esse homem Tu que não podes prometer a ti mesmo mais um dia tu que não estás aqui senão de passagem podes querer decidir tais negócios Não és senhor nem de teus bens nem de ti mesmo tu e teus bens pertences à tua família isto é a teus antepassados e à tua posteridade5 O antigo direito romano é para nós muito obscuro como já o era para Cícero O que conhecemos não vai além das Doze Tábuas que não são certamente o direito primitivo de Roma dos quais aliás não nos restam senão alguns fragmentos Esse código autoriza o testamento e ainda o fragmento que diz respeito a esse assunto é muito curto e evidentemente incompleto para que nos possamos orgulhar de conhecer as verdadeiras disposições do legislador nessa matéria concedendo a faculdade de testar não sabemos quais reservas ou condições poderia colocar6 Antes das Doze Tábuas não possuímos nenhum texto de lei que proíba ou permita o testamento Mas a língua conservava a lembrança de um tempo em que era desconhecido porque chamava o filho de herdeiro seu e necessário Esta fórmula que Gaio e Justiniano usavam ainda mas que não estava mais de acordo com a legislação de seu tempo vinha sem dúvida alguma de época longínqua na qual o filho não podia nem ser herdeiro nem recusar a herança O pai não tinha portanto livre disposição para legar sua fortuna O testamento não era desconhecido por completo mas era muito difícil Faziamse necessárias muitas formalidades Para começar o segredo devia ser revelado pelo testador em vida o homem que deserdava a família e violava a lei que a religião havia estabelecido devia fazêlo publicamente e assumir sobre si ainda em vida todo o ódio que despertava esse ato E isso não é tudo era necessário ainda que a vontade do testador recebesse aprovação da autoridade soberana isto é do povo reunido por cúrias sob a presidência de um pontífice7 Não vamos pensar que isso fosse mera formalidade sobretudo nos primeiros séculos Esses comícios por cúrias eram a reunião mais solene da cidade romana e seria pueril afirmar que se convocava um povo sob a presidência do chefe religioso apenas para assistir como 45 simples testemunha à leitura de um testamento Podese crer que o povo votava e isso se refletirmos bem era até necessário com efeito havia uma lei geral que regulava a ordem da sucessão de maneira rigorosa para que essa ordem fosse modificada em um caso particular faziase necessária nova lei Essa lei de exceção era o testamento A faculdade de testar não era portanto plenamente reconhecida ao homem e não o podia ser enquanto a sociedade continuasse sob o império da velha religião Nas crenças dessas idades antigas o homem vivo não era senão o representante por alguns anos de um ser constante e imortal que era a família O culto e a propriedade estavam apenas depositados em suas mãos seu direito cessava com a vida 6 Antiga indivisão do patrimônio Seria necessário avançarmos para além dos tempos de que a história nos conservou a lembrança para os séculos longínquos durante os quais estabeleceramse as instituições domésticas e se prepararam as instituições sociais Dessa época não nos resta e não poderia restar nenhum monumento escrito Mas as leis que então regiam os homens deixaram alguns vestígios no direito das épocas seguintes Nesses tempos longínquos distinguimos uma instituição que deve ter reinado por muito tempo e que exerceu considerável influência sobre a constituição futura das sociedades e sem a qual essa instituição não se poderia explicar É a indivisão do patrimônio com uma espécie de direito de primogenitura A velha religião estabelecia diferenças entre o filho mais velho e o mais novo O mais velho diziam os antigos árias foi gerado para o cumprimento do dever para com os antepassados os outros nasceram por amor Em virtude dessa superioridade original o mais velho tinha o privilégio depois da morte do pai de presidir a todas as cerimônias do culto doméstico oferecia o banquete fúnebre e que pronunciava as fórmulas das orações porque o direito de pronunciar as orações pertence ao filho que veio ao mundo por primeiro O mais velho portanto era o herdeiro dos hinos o continuador do culto o chefe religioso da família Dessa crença originouse uma regra de direito somente o mais velho podia herdar Assim o afirmava um velho texto que o último redator das Leis de Manu inseriu ainda em seu código O mais velho toma posse de todo o patrimônio e os outros irmãos vivem sob sua autoridade como viviam sob a autoridade paterna O filho mais velho é que solve a dívida dos vivos para com os antepassados e portanto deve herdar tudo1 O direito grego originouse das mesmas crenças religiosas que o direito hindu não nos devemos portanto admirar ao encontrar nele também em sua origem o direito de primogenitura Em Esparta as divisões da propriedade a princípio estabelecidas eram indivisíveis e o irmão mais novo não tinha parte alguma O mesmo acontecia em muitas das antigas legislações que Aristóteles havia estudado com efeito ele nos diz que a lei de Tebas prescrevia de maneira absoluta que o número dos lotes de terra permanecesse inalterado o que excluía certamente a partilha entre irmãos Uma antiga lei de Corinto exigia também que o número de famílias permanecesse invariável o que só se podia conseguir se o direito de primogenitura impedisse as famílias de se desmembrarem em cada geração2 Não vamos esperar que entre os atenienses essa velha instituição ainda estivesse em vigor nos tempos de Demóstenes mas subsistia ainda nessa época o que se chamava de privilégio da primogenitura3 Consistia parece em conservar o primogênito para si além da partilha usual a casa paterna vantagem materialmente considerável porque esta incluía o antigo lar da família Enquanto o irmão mais novo nos tempos de Demóstenes devia acender um novo lar o mais velho na verdade o único herdeiro continuava na posse do lar paterno e do túmulo dos antepassados assim ele era o único a guardar o nome da família4 Eram os vestígios de tempos em que havia um só patrimônio Podese notar contudo que a iniquidade do direito de primogenitura além de não ferir os espíritos sobre os quais a religião imperava era contrabalançado por muitos costumes dos antigos Às vezes o irmão 46 mais novo era adotado por outra família da qual tornavase herdeiro outras vezes casava se com uma filha única outras ainda recebia a porção de terra que era patrimônio de antiga família Na falta de todos esses recursos os irmãos mais novos eram mandados para as colônias Quanto a Roma não encontramos nenhuma lei que se refira ao direito de primogenitura Mas nem por isso devemos concluir que não fosse conhecido na Itália Pode haver desaparecido juntamente com sua lembrança O que nos permite acreditar que além dos tempos que conhecemos tenha estado em vigor é que a existência da gens romana e sabina não se poderia explicar sem ele Como uma família poderia chegar a contar com vários milhares de pessoas livres como a família Cláudia ou várias centenas de combatentes todos patrícios como a família Fábia se o direito de primogenitura não houvesse conservado a unidade durante uma longa série de gerações e não a houvesse aumentado durante séculos impedindoa de se esfacelar Esse velho direito de primogenitura se prova por suas consequências e por assim dizer por suas obras Por outro lado é necessário entender que o direito de primogenitura não era a espoliação dos irmãos mais novos em proveito do mais velho O código de Manu esclarecelhe o sentido quando ordena que o mais velho tenha para com os irmãos menores o afeto de um pai por seus filhos e que estes por sua vez o respeitem como pai Segundo o pensamento desses tempos antigos o direito de primogenitura implicava sempre a vida em comum No fundo não era nada mais que o gozo de bens comuns para todos os irmãos sob a autoridade do mais velho Representava tanto a indivisão do patrimônio quanto a indivisão da família É nesse sentido que podemos crer que esteve em vigor no mais antigo direito de Roma ou pelo menos nos costumes tornandose a origem da gens romana5 Notas Livro II Cap VII 1 Cícero De legibus II 1920 Tal era a importância dos sacra que o jurisconsulto Gaio escreveu a respeito uma curiosa Passagem Gaio II 55 Festo v Everriator Ed Müller p 77 2 Iseu VI 81 Platão chama o herdeiro de diádochos theõn Leis V pg 740 3 Leis de Manu IX 186 4 Digesto liv XXXVIII tít 16 14 5 Institutas III 1 3 III 9 7 III 19 2 2 1 Em Iseu In Xenoenctum 4 vemos um pai que deixa um filho duas filhas e outro filho emancipado o primeiro filho herda sozinho Em Lidas Pro Mantitheo 10 vemos dois irmãos que dividem entre si o patrimônio e que se contentam em dotar as irmãs O dote aliás nos costumes de Atenas não era senão uma parte muito reduzida da fortuna paterna Demóstenes In Baeotum de dote 2224 mostra também que as filhas não herdam Enfim Aristófanes Aves 16531654 indica claramente que uma filha não herda se tem irmãos 2 Gaio III 12 Institutas de Justiniano II 19 2 3 É o que M Gide nos mostra muito bem em seu Étude sur la condition de la femme p 114 4 Gaio I 192 5 Institutas III 1 15 III 2 3 6 Cícero De rep III 7 7 Cícero In Verr II 1 42 Id 43 Cf Tito Lívio Epitom XLI Gaio II 226 e 274 Santo Agostinho De civit Dei III 21 8 Demóstenes In Eubulidem 20 Plutarco Temístocles 32 Cornélio Nepos Címon I Devemos notar que a lei não permitia casamento com irmão uterino nem com irmão emancipado Só era permitido o casamento com irmão consanguíneo porque somente este era herdeiro do pai 47 9 Iseu De Pyrrhi hereditate 68 10 Essa disposição do antigo direito ático não estava mais em pleno vigor no século quarto Encontramos contudo vestígios visíveis dessa disposição no discurso de Iseu De Cironis hereditate O objeto do processo é este morrendo Círon que deixou apenas uma filha o irmão de Círon reclamava para si a herança Iseu defendeu a filha Não possuímos o discurso do adversário que sustentava evidentemente em nome dos velhos princípios que a filha não tinha nenhum direito mas o autor da hypotésis colocada como introdução ao discurso de Iseu advertenos de que esse habilíssimo advogado defendia então uma causa Ingrata sua tese afirma ele está conforme à equidade natural mas é contrária à lei 11 Iseu De Pyrrhi hered 64 7275 Iseu De Aristarchi hered 5 Demóstenes In Leocharem 10 A filha única chamavase epícleros palavra mal traduzida por herdeira o significado primitivo e essencial dessa palavra é aquela que está ao lado da herança que é recebida com a herança Em direito rigoroso a filha não é herdeira de fato o herdeiro toma a herança syn auté como diz a lei citada no discurso de Demóstenes In Macartatum 51 Cf Iseu III 42 De Aristarchi hered 13 A condição de epícleros não era particular ao direito ateniense encontramola em Esparta Heródoto VI 57 Aristóteles Política II 6 11 e em Thurii Diodoro XII 18 12 Iseu De Pyrrhi hered 64 De Aristarchi hered 19 13 Demóstenes In Eubulidem 41 In Onetorem I argumento 14 Todas essas obrigações pouco a pouco se abrandaram De fato nos tempos de Iseu e de Demóstenes o parente mais próximo podia deixar de se casar com a epiclera contanto que renunciasse à sucessão e dotasse sua parenta Demóst In Macart 54 Iseu De Cleonymi hered 39 15 Leis de Manu IX 127 136 Vasishta XVII 16 16 Iseu De Cironis hereditate 1 15 16 21 24 25 27 17 Não o chamavam de neto davamlhe o nome partícular de thygatridoús 18 Iseu De Cironis her 31 De Arist her 12 Demóstenes In Stephanum II 20 3 1 Leis de Manu IX 186187 2 Demóstenes In Macart 51 In Leocharem Iseu VII 20 3 Institutas III 2 4 4 Ibid III 3 3 1 Iseu De Aristarchi hered 45 e 11 De Astyph hered 33 2 Harpocrácio v Hóti oi poietói Demóstenes In Leocharem 6668 5 1 Plutarco Sólon 21 2 Iseu De Pyrrhi hered 68 Demóstenes In Stephanum II 14 3 Plutarco Agis 5 4 Aristóteles Polít II 3 4 5 Platão Leis XI 6 Se não tivéssemos da lei de Sólon senão as palavras diáthesthai hópos àn ethéle suporíamos que o testamento era permitido em todos os casos possíveis mas a lei acrescenta àn me pãides õsi 7 Ulpiano XX 2 Gaio I 102 119 Aulo Gélio XV 27 testamento calatis comitiis foi sem nenhuma dúvida o que se usou primeiro nos tempos de Cícero já não era mais conhecido De orat I 53 6 1 Leis de Manu IX 105107 126 Essa antiga regra foi modificada à medida que se enfraquecia a religião primitiva No código de Manu já se encontram artigos que autorizam e até recomendam a divisão da herança 2 Aristóteles Polit II 9 7 II 3 7 II 4 4 48 3 Presbeia Demóstenes Pro Phorm 34 Na época de Demóstenes a presbeia não era mais que uma palavra sem sentido e havia muito tempo que a sucessão se dividia em porções iguais entre os irmãos 4 Demóstenes In Boeotum de nomine 5 A antiga língua latina conservou vestígio dessa indivisão que por mais apagado que seja merece contudo ser assinalado Chamavase sors a um lote de terra domínio de uma família sors patrimonium significat diz Festo a palavra consortes era portanto usada para designar os que possuíam um lote de terra em comum e viviam no mesmo domínio ora a língua antiga designava com essa palavra os irmãos ou mesmo parentes de grau muito afastado testemunho de um tempo em que o patrimônio e a família eram indivisíveis Festo v Sors Cícero In Verrem II 3 23 Tito Lívio XLI 27 Veleio I 10 Lucrécio III 772 VI 1280 CAPÍTULO VIII A AUTORIDADE NA FAMÍLIA 1 Princípio e natureza do poder paterno entre os antigos A família não recebeu suas leis da cidade Se a cidade houvesse estabelecido o direito privado é provável que teria feito tudo diferente do que vimos até agora Teria regulamentado de acordo com outros princípios o direito de propriedade e o direito de sucessão porque não tinha interesse em que a terra fosse inalienável e o patrimônio indivisível A lei que permite que o pai venda ou tire a vida ao filho lei que encontramos tanto na Grécia como em Roma não foi imaginada pela cidade A cidade teria antes dito ao pai A vida de tua mulher e de teu filho não te pertence mais que sua liberdade eu as protegerei mesmo contra ti Eles não serão julgados por ti que haverás de matálos caso falhem eu serei seu juiz Se a cidade não fala desse modo aparentemente é porque não pode fazêlo O direito privado existiu antes dela Quando começou a escrever suas leis encontrou esse direito já estabelecido vivo enraizado nos costumes fortalecido pela adesão universal Ela o aceitou não podendo agir de outra maneira e não ousando modificálo senão com o correr do tempo O antigo direito não é obra de um legislador pelo contrário foi imposto ao legislador Nasceu na família Surgiu espontaneamente e já formado dos antigos princípios que a constituíam É a decorrência natural de crenças religiosas universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e que exerciam império sobre as inteligências e as vontades Uma família compõese de um pai de uma mãe de filhos e de escravos Esse grupo por pequeno que seja deve ter uma disciplina A quem portanto pertencerá essa autoridade primitiva Ao pai Não Em casa há algo que está acima do próprio pai é a religião doméstica é esse deus que os gregos chamam de larchefe estia despoina e que os latinos denominam lar familiae pater1 Nessa divindade interior ou o que dá no mesmo na crença que está na alma humana reside a autoridade menos discutível É ela que vai fixar os graus na família O pai é o primeiro junto ao lar ele o alumia e conserva é seu pontífice Em todos os atos religiosos ele exerce a mais alta função degola a vítima sua boca pronuncia a fórmula de oração que deve atrair para si e para os seus a proteção dos deuses A família e o culto se perpetuam por seu intermédio representa sozinho toda a série dos descendentes Sobre ele repousa o culto doméstico quase pode dizer como o hindu Eu sou o deus Quando a morte chegar será um ser divino que os descendentes invocarão A religião não coloca a mulher em posição tão elevada É verdade que ela toma parte em todos os atos religiosos mas ela não é a senhora do lar Sua religião não lhe vem do nascimento nela foi iniciada somente por ocasião do casamento ela aprendeu do marido a prece que pronuncia Não representa 49 os antepassados porque não descende deles Não se tornará um deles porque sepultada não receberá nenhum culto especial Na morte como na vida ela não é considerada mais que um membro do esposo O direito grego o direito romano o direito hindu que se originam dessas crenças religiosas todos concordam em considerar a mulher como menor Jamais pode ter seu próprio lar jamais será chefe de um culto Em Roma recebe o título de mater familias mas perdeo por morte do marido2 Não tendo nunca um lar que lhe pertença nada possui que lhe dê autoridade na casa Jamais dá ordens jamais é livre ou senhora de si mesma sui juris Sempre está ao lado do lar de outro repetindo a oração de outro para todos os atos da vida religiosa élhe necessário um chefe e para todos os atos da vida civil um tutor A lei de Manu diz A mulher durante a infância depende do pai durante a juventude do marido por morte do marido depende dos filhos se não tem filhos depende dos parentes próximos do marido porque uma mulher jamais se deve governar à sua vontade3 As leis gregas e romanas dizem o mesmo Filha é submetida ao pai morto o pai fica submissa aos irmãos e aos agnados4 casada fica sob a tutela do marido morto o marido não volta para a própria família porque renunciou para sempre a ela com o casamento sagrado5 a viúva continua submissa à tutela dos agnados do marido isto é a seus próprios filhos se os tem6 ou caso contrário dos parentes mais próximos7 O marido tem tal autoridade sobre ela que pode antes de morrer designarlhe um tutor ou mesmo escolherlhe novo marido8 Para assinalar o poder do marido sobre a mulher os romanos tinham uma expressão mui antiga que seus jurisconsultos nos conservaram é a palavra manus Não é fácil descobrirlhe o sentido primitivo Os comentadores têmna como expressão da força material como se a mulher estivesse colocada sob a mão brutal do marido É bem provável que estejam enganados O poder do marido sobre a mulher não resultava absolutamente da maior força do primeiro Derivava como todo direito privado das crenças religiosas que colocam o homem acima da mulher O que o prova é que a mulher que não se havia casado de acordo com os ritos sagrados e que por consequência não estava associada ao culto não estava submetida ao poder marital9 O casamento é que constituía a subordinação e ao mesmo tempo a dignidade da mulher Tanto é verdade que não foi o direito do mais forte que constituiu a família Passemos à criança Aqui a natureza fala por si mesma bastante alto ela quer que a criança tenha um protetor um guia um mestre A religião está de acordo com a natureza ela afirma que o pai será o chefe do culto e que o filho deverá somente ajudálo em suas funções sagradas Mas a natureza não exige essa subordinação senão durante certo número de anos a religião exige mais A natureza dá ao filho uma maioridade que a religião não lhe concede De acordo com antigos princípios o lar é indivisível e a propriedade é como ele os irmãos não se separam pela morte do pai com muito mais razão não se podem separar dele durante a vida No rigor do direito primitivo os filhos continuam unidos ao lar paterno e por consequência submetidos à sua autoridade enquanto ele viver são considerados menores Compreendese que essa regra não pôde durar senão enquanto a velha religião doméstica estava em pleno vigor Essa sujeição semfim do filho ao pai desaparece e bem cedo em Atenas Em Roma a velha regra foi escrupulosamente conservada o filho jamais pôde manter um lar particular durante a vida do pai mesmo casado mesmo tendo filhos ficava sob a tutela paterna10 Além disso com o poder paternal dava se o mesmo que com o poder marital tinha por princípio e por condição o culto doméstico O filho nascido do concubinato não estava colocado sob a autoridade do pai Entre o pai e ele não existia comunidade religiosa não havia portanto nada que conferisse a um autoridade e que ordenasse a outro obediência A paternidade por si só não era suficiente para conferir direitos ao pai Graças à religião doméstica a família era um pequeno corpo organizado uma 50 pequena sociedade que tinha seu chefe e seu governo Nada em nossa sociedade moderna pode darnos ideia desse poder paternal Nesses tempos antigos o pai não é somente o homem forte que protege e que tem também poder para se fazer obedecer ele é sacerdote é o herdeiro do lar e continuador dos antepassados o tronco dos descendentes o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração Toda a religião reside nele O próprio nome por que é chamado pater traz em si curiosos ensinamentos A palavra é a mesma em grego em latim e em sânscrito donde podemos concluir que essa palavra data de um tempo em que os antepassados dos helenos dos italianos e dos hindus viviam ainda juntos na Ásia central Qual era seu sentido e que ideia representava então no espírito dos homens Podemos conhecêla porque ela guardou esse significado primitivo nas fórmulas da língua religiosa e nas do vocabulário jurídico Quando os antigos invocando a Júpiter chamavam no pater hominum Deorumque não queriam dizer que Júpiter fosse o pai dos deuses e dos homens porque jamais o consideraram como tal e criam ao contrário que o gênero humano existiu antes dele O mesmo título de pater foi dado a Netuno a Apolo a Baco a Vulcano a Plutão que os homens certamente não consideravam como pais11 assim o título de mater aplicavase a Diana a Minerva a Vesta que eram consideradas deusas virgens Do mesmo modo na língua jurídica o título de pater ou pater familias podia ser dado a um homem que não tivesse filhos que não fosse casado e que não estava nem mesmo em idade de contrair casamento12 A ideia de paternidade portanto não se ligava a essa palavra A velha língua tinha outra que designava propriamente o pai e que tão antiga quanto pater encontrase como ela nas línguas dos gregos dos romanos dos hindus gânitar ghennetér genitor A palavra pater tinha outro sentido Na língua religiosa aplicavase a todos os deuses na língua do direito a todo homem que não dependesse de outro e que tinha autoridade sobre uma família ou sobre um domínio pater familias Os poetas nos mostram que a empregavam a respeito de todos quantos queriam honrar O escravo e o cliente davamno ao mestre Era sinônimo dos vocábulos rex anax basileus Continha em si não a ideia de paternidade mas a de poder de autoridade de dignidade majestosa Que tal palavra se tenha aplicado ao pai de família até poder tornarse aos poucos seu nome mais comum é certamente fato bem significativo e que parecerá grave a quem quer que deseje conhecer as antigas instituições A história dessa palavra nos bastará para dar ideia do poder que o pai exerceu por muito tempo na família e do sentimento de veneração que se ligava a ele como a pontífice e soberano 2 Enumeração dos direitos que compunham o poder paterno As leis gregas e romanas reconheceram ao pai esse poder ilimitado do qual a religião o revestira a princípio Os vários e numerosos direitos que as leis lhe conferiram podem ser catalogados em três categorias segundo se considera o pai de família como chefe religioso como senhor da propriedade ou como juiz I O pai é o chefe supremo da religião doméstica dirige todas as cerimônias do culto como bem entende ou antes como vira fazer seu pai Ninguém na família lhe contesta a supremacia sacerdotal A própria cidade e seus pontífices nada podem mudar em seu culto Como sacerdote do lar não reconhece nenhum superior A título de chefe religioso ele é o responsável pela perpetuidade do culto e por consequência pela perpetuidade da família Tudo o que se relaciona com essa perpetuidade que é seu primeiro cuidado e seu primeiro dever depende apenas dele Daí deriva uma série de direitos Direito de reconhecer a criança no ato do nascimento ou de rejeitála Esse direito é atribuído ao pai tanto pelas leis gregas1 quanto pelas leis romanas Por mais bárbaro que seja não está em contradição com os princípios básicos da família A filiação mesmo incontestada não basta para ingressar no círculo da família é necessário o consentimento do chefe e a iniciação ao culto 51 Enquanto a criança não for associada à religião doméstica nada representa para o pai Direito de repudiar a mulher quer em caso de esterilidade porque a família não se deve extinguir quer em caso de adultério porque a família e a descendência devem ficar isentas de toda e qualquer alteração Direito de casar a filha isto é de ceder a outro o poder que tem sobre ela Direito de casar o filho o casamento do filho interessa à perpetuação da família Direito de emancipar isto é de excluir um filho da família e do culto Direito de adotar isto é de introduzir um estranho junto ao lar doméstico Direito de designar ao morrer um tutor para a mulher e os filhos É necessário notar que todos esses direitos eram atribuídos somente ao pai com exclusão de todos os outros membros da família A mulher não tinha o direito de divorciar pelo menos nas épocas mais antigas Mesmo quando viúva não podia nem emancipar nem adotar Jamais podia ser tutora mesmo de seus filhos Em caso de divórcio os filhos ficavam com o pai assim como as filhas Jamais tinha os filhos sob seu poder Para o casamento da filha não lhe pediam seu consentimento2 II Vimos acima que a propriedade não havia sido concebida a princípio como um direito individual mas como direito de família A fortuna pertencia como diz formalmente Platão e como dizem implicitamente todos os antigos legisladores aos antepassados e descendentes Essa propriedade por sua própria natureza era indivisível Em cada família não podia haver mais de um proprietário que era a própria família nem mais de um usufrutuário que era o pai Esse princípio explica várias disposições do direito antigo Como a propriedade era indivisível e repousava por completo sobre a cabeça do pai nem a mulher nem o filho tinham nada de próprio O regime dotal era então desconhecido e teria sido impraticável O dote da mulher pertencia sem reserva ao marido que exercia sobre os bens dotais não somente direitos de administrador mas de proprietário Tudo o que a mulher podia adquirir durante o casamento caía nas mãos do marido Mesmo tornandose viúva não readquiria direitos sobre seu próprio dote3 O filho estava nas mesmas condições que a mulher não possuía coisa alguma Nenhuma doação feita por ele era válida pela mesma razão que nada possuía de próprio Não podia adquirir coisa alguma os frutos de seu trabalho os lucros de seu comércio eram devidos ao pai Se um testamento era feito em seu favor por algum estranho o pai e não ele recebia o legado Por aí se explica o texto do direito romano que proíbe qualquer contrato de venda entre pai e filho Se o pai vendesse algo ao filho vendia para si mesmo porque o filho só podia adquirir por intermédio do pai4 Vemos no direito romano e o encontramos nas leis de Atenas que o pai podia vender o filho5 É que o pai podia dispor de toda a propriedade que estava na família e o próprio filho podia ser considerado como simples propriedade do pai pois seus braços e seu trabalho eram fonte de renda O pai portanto podia de acordo com sua vontade guardar para si mesmo esse instrumento de trabalho ou cedêlo a outro Cedêlo era o que se chamava vender o filho Os textos que possuímos do direito romano não nos esclarecem devidamente sobre a natureza desse contrato de venda e sobre as reservas que nele podiam estar contidas Parece certo que o filho assim vendido não se tornava por completo escravo do comprador O pai podia estipular no contrato que o filho lhe seria revendido Guardava portanto seu poder sobre ele e depois de recebêlo de volta podia tornar a vendêlo6 A lei das Doze Tábuas autorizou essa operação até três vezes declarando porém que depois dessa tríplice venda o filho seria enfim liberto do poder paternal7 Por aí se pode julgar como no direito antigo a autoridade do pai era absoluta8 III Plutarco nos informa que em Roma as mulheres não podiam comparecer perante a justiça mesmo como testemunhas9 Lemos no jurisconsulto Gaio É necessário que se saiba que não se pode ceder nada em justiça às pessoas que estão sob poder de outras isto 52 é à mulher ao filho ao escravo Porque desde que essas pessoas nada podiam possuir de próprio concluiuse com razão que igualmente nada podiam reivindicar em justiça Se vosso filho submetido a vosso poder cometeu um crime a ação em justiça é movida contra vós O crime cometido por um filho contra o pai não dá lugar a nenhuma ação em justiça10 De tudo isso resulta claramente que mulher e filho não podiam ser nem demandistas nem defensores nem acusadores nem acusados nem testemunhas De toda a família apenas o pai podia apresentarse diante do tribunal da cidade a justiça pública não existia senão para ele Desse modo o pai ficava responsável pelos delitos cometidos pelos seus Se a justiça para o filho e a mulher não estava na cidade é porque ela estava no lar Seu juiz era o chefe da família sentado como que num tribunal em virtude de sua autoridade conjugal ou paterna em nome da família e sob os olhos das divindades domésticas11 Tito Lívio conta que o senado desejando extirpar de Roma as bacanais decretou a pena de morte contra todos os que delas participassem O decreto foi facilmente executado no que respeita aos cidadãos Mas a respeito das mulheres que não eram as menos culpadas surgiu grave dificuldade as mulheres não eram condenáveis pelo estado somente a família tinha o direito de julgálas O senado respeitou esse velho princípio e deixou aos maridos e aos pais o encargo de pronunciar contra as mulheres a sentença de morte12 Esse direito de justiça que o chefe de família exercia na casa era completo e sem apelação Podia condenar à morte como fazia o magistrado na cidade nenhuma autoridade tinha direito de modificar sua sentença O marido diz Catão o Antigo é juiz da mulher seu poder não tem limites pode o que quer Se ela cometeu alguma falta ele a castiga se bebeu vinho ele a condena se teve relações com outro homem ele a mata O direito era o mesmo a respeito dos filhos Valério Máximo cita certo Atílio que matou a filha culpada de impudicícia e todo mundo conhece aquele pai que matou o filho cúmplice de Catilina13 Fatos dessa natureza são numerosos na história romana Seria formarse ideia falsa pensar que o pai tinha o direito absoluto de matar mulher e filhos Ele era o juiz Se condenava à morte faziao apenas em virtude de seu direito de justiça Como o pai de família submetiase apenas ao julgamento da cidade a mulher e o filho não podiam encontrar outro juiz além dele No seio da família ele era o único magistrado É necessário além do mais notar que a autoridade paterna não era um poder arbitrário como o seria aquele que derivava do direito do mais forte Ela tinha seu princípio nas crenças que estavam no fundo das almas e encontrava seus limites nessas mesmas crenças Por exemplo o pai tinha direito de excluir o filho da família mas sabia que se o fizesse a família correria o risco de se extinguir e os manes de seus antepassados cairiam no eterno esquecimento Tinha o direito de adotar estranhos mas a religião proibialhe fazêlo se tivesse filhos Era proprietário único dos bens mas não tinha pelo menos na origem o direito de alienálos Podia repudiar a mulher mas para fazêlo era necessário que ousasse quebrar o laço religioso que o casamento havia estabelecido Assim a religião impunha ao pai tanto obrigações como direitos Foi assim por muito tempo a família antiga As crenças que reinavam nos espíritos bastaram sem que houvesse necessidade do direito da força ou da autoridade de um poder social para constituíla regularmente para darlhe disciplina governo justiça e para fixar em todos esses detalhes o direito privado Notas Livro II Cap VIII 1 Plauto Mercator V 1 5 O sentido primitivo da palavra lar é o de senhor príncipe mestre Cf Lar Porsenna Lar Tolumnius 2 Festo ed Müller p 125 53 3 Leis de Manu V 147 148 4 Demóstenes In Onetorem I 7 In Boeotum de dote 7 In Eubulidem 40 Iseu De Meneclis hered 2 3 Demóstenes In Stephanum II 18 5 Em caso de divórcio a mulher voltava para a casa paterna Demóstenes In Eubul 41 6 Demóstenes In Stephanum II 20 In Phaenippum 27 In Macartatum 75 Iseu De Pyrrhi hered 50 Cf Odisséia XXI 350 353 7 Gaio I 145147 190 IV 118 Ulpiano XI 1 e 27 8 Demóstenes In Aphobum I 5 Pro Phormione 8 9 Cícero Topic 14 Tácito Ann IV 16 Aulo Gélio XVIII 6 Veremos mais adiante que em certa época e por razões que mais tarde explicaremos imaginaramse novas formas de casamento que produziam os mesmos efeitos jurídicos do casamento religioso 10 Quando Gaio disse do poder paternal Jus proprium est civium Romanorum devemos entender que nos tempos de Galo o direito romano não reconhecia esse poder senão para o cidadão romano isso não quer dizer que não tenha existido anteriormente em outros lugares ou que não tenha sido reconhecido pelo direito das outras cidades Isso será esclarecido pelo que diremos acerca da situação legal dos súditos sob o domínio de Roma No direito ateniense anterior a Sólon o pai podia vender os filhos Plutarco Sólon 13 e 23 11 Aulo Gélio V 12 Lactâncio Instit IV 3 Varrão De ling lat V 66 Cícero De nat Deor II 26 A mesma palavra é aplicada ao deus Tibre nas orações Tiberine Pater te Sancte precor Tito Lívio II 10 Virgílio chama a Vulcano de Pater Lemnius o deus de Lemnos 12 Ulpiano no Digesto I 6 4 2 1 Heródoto I 59 Plutarco Alcibíades 23 Agesilau 3 2 Demóstenes In Eubul 40 43 Gaio I 155 Ulpiano VIII 8 Institutas I 9 Digesto liv I tít 1 11 3 Gaio II 98 Todas essas regras do direito primitivo foram modificadas pelo direito pretoriano Do mesmo modo em Atenas nos tempos de Iseu e de Demóstenes o dote era restituído em caso de dissolução do casamento Neste capítulo nosso intuito é falar apenas do direito mais antigo 4 Cícero De legib I 20 Gaio II 87 Digesto liv XVIII tít 1 2 5 Plutarco Sólon 13 Dionísio de Halic II 26 Gaio I 117 132 VI 79 Ulpiano X 1 Tito Lívio XLI 8 Festo v Deminutus 6 Gaio I 140 7 Ulpiano Fragm X 1 8 Quando o filho cometia um crime o pai podia livrarse de sua responsabilidade entregandoo a título de indenização à pessoa lesada Gaio I 140 O pai nesse caso perdia seu poder sobre o filho Vide Cícero Pro Caecina 34 De Oratore I 40 9 Plutarco Publicola 8 10 Gaio II 96 IV 77 78 11 Tempo houve em que essa jurisdição foi modificada pelos costumes o pai consultava a família inteira e a erigia em tribunal por ele presidido Tácito Ann XIII 32 Digesto lív XXIII tít 4 5 Platão Leis IX 12 Tito Lívio XXXIX 18 13 Catão em Aulo Gélio X 23 Valério Máximo IV 1 36 Do mesmo modo a lei ateniense permitia ao marido matar a mulher adúltera Eschol ad Horat Sat II 7 62 e ao pai vender como escrava a filha desonrada Plutarco Sólon 23 CAPÍTULO IX 54 A ANTIGA MORAL DA FAMÍLIA A história não estuda somente os fatos materiais e as instituições seu verdadeiro objeto de estudo é a alma humana ela deve aspirar a conhecer o que essa alma acreditou pensou sentiu nas diferentes idades da vida do gênero humano No início deste livro mostramos antigas crenças que o homem concebeu sobre seu destino depois da morte Dissemos depois como essas crenças deram origem às instituições domésticas e ao direito privado Resta procurar qual era a ação dessas crenças sobre a moral nas sociedades primitivas Sem pretender que essa velha religião tenha criado os sentimentos morais no coração do homem podese pelo menos crer que se tenha unido a eles para fortalecêlos para darlhes maior autoridade para assegurar seu império e seu direito de comando sobre a conduta do homem e às vezes também para falseálos A religião desses primeiros tempos era exclusivamente doméstica o mesmo acontecia com a moral A religião não dizia ao homem mostrandolhe outro homem Eis ali teu irmão Ela lhe dizia Eis ali um estranho que não pode participar dos atos religiosos de teu lar não pode aproximarse do túmulo de tua família ele tem outros deuses e não pode unirse a ti por uma prece comum teus deuses rejeitam sua adoração e o encaram como inimigo ele é também teu inimigo Nessa religião do lar o homem jamais reza à divindade em favor dos outros homens ele não a invoca senão para si e para os seus Um provérbio grego ficou como lembrança e vestígio desse antigo isolamento do homem na oração Nos tempos de Plutarco diziase ainda ao egoísta Sacrificas ao lar1 Isso significava Tu te afastas de teus concidadãos não tens amigos teus semelhantes nada significavam para ti não vives senão para ti e para os teus Esse provérbio era o indício de um tempo em que gravitando toda a religião ao redor do lar o horizonte da moral e do afeto não chegava a ultrapassar os estreitos limites da família É natural que a ideia moral tenha tido seu começo e tenha progredido como a ideia religiosa O Deus das primeiras gerações nessa raça era bem mesquinho pouco a pouco os homens tornaramno maior assim a moral a princípio muito restrita e incompleta alargouse insensivelmente até que de progresso em progresso chegou a proclamar o dever do amor para com todos os homens Seu ponto de partida foi a família e foi sob a ação das crenças da religião doméstica que os deveres começaram a aparecer aos olhos do homem Imaginemos essa religião do lar e do túmulo na época de seu pleno vigor O homem vê bem perto de si a divindade Ela está presente como a própria consciência a todas as suas mínimas ações Essa criatura frágil encontrase sob os olhos de uma testemunha que não a abandona Ele não se sente jamais só A seu lado em sua casa em seu campo tem protetores para amparálo nos labores da vida e juízes para punir suas ações delituosas Os lares dizem os romanos são divindades temíveis encarregadas de castigar os homens e de velar sobre tudo o que se passa no interior das casas Os penates dizem eles ainda são os deuses que nos fazem viver eles nutrem nosso corpo e dirigem nossa alma2 Era grato aos homens desse tempo dar ao lar o epíteto de casto3 e acreditavase até que o lar ordenava aos homens a observância da castidade Nenhum ato material ou moralmente impuro devia ser cometido em sua presença As primeiras ideias de falta de castigo de expiação parecem ter aí a sua origem O homem que se sente culpado não pode mais aproximarse do lar seu deus o repele Para quem quer que haja derramado sangue não há mais sacrifício possível nem libação nem prece nem banquete fúnebre O deus é tão severo que não admite desculpas não distingue entre morte involuntária e crime premeditado A mão manchada de sangue não pode mais tocar os objetos sagrados4 Para que o homem possa retomar seu culto e voltar à posse de seu deus é necessário pelo menos que se purifique por uma cerimônia expiatória5 Essa religião conhece a misericórdia possui ritos capazes de limpar as 55 impurezas da alma por mais acanhada e grosseira que seja ela sabe consolar o homem por suas próprias faltas Se ela ignora de modo absoluto os deveres de caridade pelo menos traça ao homem com admirável nitidez seus deveres de família Torna o casamento obrigatório o celibato é um crime aos olhos de uma religião que faz da continuidade da família o primeiro e mais santo dos deveres Mas a união que prescreve não pode realizarse senão na presença das divindades domésticas é a união religiosa sagrada indissolúvel do esposo e da esposa Não se julgue o homem autorizado a deixar de lado os ritos e a fazer do casamento um simples contrato consensual como aconteceu no fim das sociedades grega e romana A antiga religião lho proíbe e se ousar fazêlo ela o castiga porque o filho que vier a nascer dessa união é considerado bastardo isto é uma criatura que não tem lugar no lar não tem o direito de realizar nenhum ato sagrado não pode orar6 Essa mesma religião vela com cuidado sobre a pureza da família A seus olhos a mais grave falta que possa ser cometida é o adultério porque a primeira regra do culto é que o lar se transmite de pai para filho ora o adúltero perturba a ordem do nascimento Outra regra é que o túmulo não encerra senão os membros da família ora o filho do adultério é um estranho que será enterrado nesse túmulo Todos os princípios da religião são violados o culto é maculado o lar se torna impuro cada oferta ao túmulo transformase em simples ato de impiedade Há mais pelo adultério a série dos descendentes fica rompida a família mesmo sem que os homens vivos o saibam está extinta e não há mais felicidade divina para os antepassados Assim diz o hindu O filho do adultério aniquila nesta vida e na outra as ofertas dedicadas aos manes7 Eis por que as leis da Grécia e de Roma dão ao pai o direito de rejeitar a criança que acaba de nascer Eis também por que elas são tão rigorosas tão inexoráveis para o adultério Em Atenas permitese ao marido matar o culpado Em Roma o marido julga a mulher e a condena à morte Essa religião era tão severa que o homem nem mesmo tinha o direito de perdoar completamente sendo no mínimo forçado a repudiar a mulher8 Eis aí pois as primeiras leis da moral doméstica conhecidas e confirmadas Eis aí além do sentimento natural uma religião imperiosa que diz ao homem e à mulher que eles estão unidos para sempre e que dessa união derivam deveres rigorosos cujo esquecimento acarretaria as consequências mais graves nesta vida e na outra Daí se derivou o caráter sagrado e sério da união conjugal entre os antigos e a pureza que a família conservou por tanto tempo Essa moral doméstica prescreve ainda outros deveres Diz à esposa que ela deve obedecer e ao marido que deve mandar Ensina a ambos a se respeitarem mutuamente A mulher tem direitos porque tem seu lugar no lar é a encarregada de conserválo sempre aceso e sobretudo deve velar pela sua pureza invocao e lhe oferece sacrifícios9 A mulher portanto também tem seu sacerdócio Sem a presença da mulher o culto doméstico tornase incompleto e insuficiente É grande desgraça para um grego ter um lar sem esposa10 Entre os romanos a presença da mulher é tão necessária no sacrifício que o padre perde o sacerdócio ao se tornar viúvo11 Podese acreditar que é a essa divisão do sacerdócio doméstico que a mãe de família deve a veneração que jamais deixou de cercá la nas sociedades grega e romana Donde resulta a mulher ostentar na família o mesmo título que o marido os latinos dizem pater famílias e mater familias os gregos oikodespótes e oikodéspoina os hindus grihapati grihapatni Daí procede também esta fórmula que a mulher pronunciava no casamento romano Ubi tu Caius ego Caia fórmula que nos diz que se na casa a mulher não tem autoridade igual pelo menos tem igual dignidade12 Quanto ao filho vimolo submisso à autoridade de um pai que pode vendêlo e condenálo à morte Mas esse filho tem seu papel também no culto ele desempenha uma função nas cerimônias religiosas sua presença em certos dias é de tal modo necessária que o romano que não tem filhos se vê forçado a adotar um ficticiamente para esses dias a fim 56 de que os ritos sejam observados13 Vede agora que laço poderoso a religião estabelece entre pai e filho Acreditase em uma segunda vida no túmulo vida feliz e calma se os banquetes fúnebres são oferecidos regularmente Assim o pai está convencido de que seu destino depois desta vida dependerá do cuidado que o filho terá de seu túmulo e o filho por sua vez está convencido de que o pai morto se tornará um deus a quem deverá invocar Podese adivinhar todo o respeito e afeto recíproco que essas crenças inspiravam na família Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade a obediência do filho ao pai o amor que dedicava à mãe eram piedade pietas erga parentes o afeto do pai ao filho a ternura da mãe eram ainda piedade pietas erga liberos Tudo era divino na família Sentimento de dever afeição natural ideia religiosa tudo se confundia e se exprimia pela mesma palavra Parecerá talvez estranho contar o amor do lar entre as virtudes e esta era uma das virtudes dos antigos Esse sentimento era profundo e poderoso em suas almas Vede Anquises que à vista de Tróia em chamas não quer contudo abandonar a velha casa Vede Ulisses a quem oferecem todos os tesouros até a imortalidade e nada deseja senão rever a chama de seu lar Avancemos até Cícero não é mais um poeta é um homem de Estado que fala Aqui está minha religião aqui está minha raça aqui estão as pegadas de meus pais não sei que encanto é este que penetra meu coração e meus sentidos14 É necessário que nos coloquemos em pensamento entre as mais antigas gerações para compreender como esses sentimentos já enfraquecidos nos tempos de Cícero haviam sido vivos e poderosos Para nós a casa é somente um domicílio um abrigo deixamola e nos esquecemos dela sem muito sacrifício e se a amamos não o fazemos senão pela força do hábito e das recordações Porque para nós a religião não está no lar nosso Deus é o Deus do universo e nós o encontramos em toda parte Entre os antigos não se dava o mesmo era no interior das casas que encontravam sua principal divindade sua providência aquela que os protegia individualmente que escutava suas orações e atendialhes os votos Fora do lar o homem não sentia mais deus o deus do vizinho era um deus hostil O homem amava então a casa como agora ama a igreja15 Destarte as crenças das primeiras idades não ficaram estranhas ao desenvolvimento moral dessa parte da humanidade Seus deuses prescreviam a pureza e proibiam o derramamento de sangue a noção de justiça se não se originou dessa crença pelo menos se tornou forte por meio dela Seus deuses pertenciam em comum a todos os membros de uma mesma família a família se encontra assim unida por forte laço e todos seus membros aprenderam a se respeitar e amar uns aos outros Os deuses viviam no interior de cada casa o homem portanto amava a própria casa morada fixa e duradoura que herdara dos antepassados e que legaria aos filhos como um santuário A antiga moral pautada por essas crenças ignorava a caridade mas pelo menos ensinava as virtudes domésticas O isolamento da família foi entre essas raças o início da moral Então os deveres apareceram claros precisos imperiosos mas confinados a um círculo restrito E não nos devemos esquecer na continuação deste livro desse caráter restrito da moral primitiva porque a sociedade civil fundada mais tarde sobre idênticos princípios revestiuse dos mesmos caracteres e muitos traços singulares da antiga política terão nela sua explicação16 Notas Livro II Cap IX 1 Pseudo Plutarco ed Dubner V 167 Eustato in Odyss VII 247 2 Plutarco Quest rom 51 Macróbio Sat III 4 3 Eurípides Hercul fur 705 4 Heródoto I 35 Virgílio En II 719 Plutarco Teseu 12 5 Heródoto Ibidem Ésquilo Coéf 96 a cerimônia é descrita por Apolônio de Rodes IV 704707 57 6 Iseu De Philloct heredit 47 Demóstenes In Macartatum 51 A religião dos tempos posteriores proibia ainda ao nóthos oficiar como sacerdote Vide Ross Inscr gr III 52 7 Leis de Manu III 175 8 Demóstenes In Neaer 86 É verdade que se essa moral primitiva condenava o adultério não reprovava o incesto a religião autorizavao As proibições relativas ao casamento eram contrárias às nossas era louvável casarse com a irmã Cornelíus Nepos proemíum id Vida de Cimon c 1 Minúcio Félix Otávio 30 mas era proibido em princípio casarse com mulher de outra cidade 9 Catão De re rustica 143 Macróbio I 15 Comparar com o que diz Dionísio de Halicarnasso II 22 10 Xenofonte Gov de Laced IX 5 11 Plutarco Quest rom 50 Cf Dionísio de Halicarnasso II 22 12 Por isso muitos se enganam quando falam da triste sujeição da mulher romana in manu mariti A palavra manus implica a ideia não de força brutal mas de autoridade e se aplica tanto à autoridade do pai sobre a filha como à do irmão sobre a irmã como à do marido sobre a mulher Tito Lívio XXXIV 2 A mulher casada de acordo com os ritos era senhora da casa Macróbio I 15 In fine Dionísio de Halicarnasso II 25 define claramente a situação da mulher Obedecendo em tudo ao marido ela era a senhora da casa como ele 13 Dionísio de Halicarnasso II 20 22 14 Cícero De legib II 1 Pro domo 41 15 Daí a santidade do domicilio que os antigos sempre consideraram inviolável Demóstenes In Androt 52 In Evergum 60 Digesto De in jus voc II 4 16 Haverá necessidade de advertir que neste capítulo tentamos apenas a antiga moral dos povos que depois se tornaram os gregos e os romanos Haverá necessidade de acrescentar que essa moral com o tempo se modificou sobretudo entre os gregos Já na Odisséia encontraremos novos e diferentes costumes a continuação deste livro o mostrará CAPÍTULO X A GENS EM ROMA E NA GRÉCIA Encontramos entre os jurisconsultos romanos e os escritores gregos os traços de uma antiga instituição que parece ter tido grande vigor na primeira idade das sociedades modernas grega e italiana mas que com seu paulatino enfraquecimento não deixou senão vestígios apenas perceptíveis na última parte de sua história Queremos falar do que os latinos chamavam de gens e os gregos ghénos Muito se discutiu sobre a natureza e a constituição da gens Talvez não seja inútil esclarecer antes de mais nada o que constitui a dificuldade do problema A gens como veremos adiante formava um corpo cuja constituição era puramente aristocrática é graças à sua organização interior que os patrícios de Roma e os eupátridas de Atenas perpetuaram por muito tempo seus privilégios Quando o partido popular subiu ao poder não deixou de combater com todas as forças essa velha instituição Se conseguisse aniquilála por completo é provável que não nos restaria dela a menor lembrança Mas estava tão singularmente viva e enraizada nos costumes que não se conseguiu fazêla desaparecer inteiramente Contentaramse então em modificála tiraramlhe o que constituía seu caráter essencial e não ficaram senão suas formas exteriores que não prejudicavam em nada o novo regime Assim em Roma os plebeus imaginaram formar gentes à imitação dos patrícios em Atenas tentouse alterar os ghéne fundindoos entre si e substituindoos pelos demos estabelecidos à sua semelhança Explicaremos esses fatos quando falarmos das revoluções Bastenos agora notar aqui que 58 essa alteração profunda introduzida pela democracia no regime da gens é de natureza a confundir aqueles que desejam conhecer sua primitiva constituição Com efeito quase todos os comentários que chegaram até nós datam da época em que ela se transformou e não nos mostram das mesmas senão o que as revoluções deixaram subsistir Suponhamos que em vinte séculos todo o conhecimento da Idade Média desaparecesse e que não restasse nenhum documento sobre o que precedeu a revolução de 1789 e que no entanto um historiador desse tempo quisesse fazer ideia das instituições anteriores Os únicos documentos que terá em mãos mostrarão a nobreza do século décimo nono isto é algo muito diferente do regime feudal Mas o historiador haveria de imaginar que nesse intervalo dera se uma grande revolução e concluiria com razão que essa instituição como todas as outras deve terse transformado a nobreza que os textos lhe mostrariam não seria para ele mais que a imagem ou sombra muito alterada de outra nobreza incomparavelmente mais poderosa Depois examinando com atenção os escassos restos dos antigos documentos algumas expressões linguísticas alguns termos escapados à lei vagas lembranças ou queixas estéreis chegaria talvez a adivinhar alguma coisa do regime feudal e conseguiria fazer das instituições da Idade Média uma ideia que não ficaria muito distante da verdade A dificuldade seria realmente grande e não é menor para o historiador de hoje desejoso de conhecer antiga gens porque não há outros ensinamentos a respeito além daqueles que datam de uma época em que ela não era mais que a sombra de si mesma Começaremos por analisar tudo o que os escritores antigos nos dizem a respeito da gens isto é o que subsistia dela na época em que já estava muito modificada Depois com o auxílio desses elementos tentaremos entrever o verdadeiro regime da antiga gens 1 O que os escritores antigos nos dão a conhecer a respeito da gens Se abrirmos a história romana no tempo das guerras púnicas encontraremos três personagens que se chamam Claudius Pulcher Claudius Nero e Claudius Centho Todos pertencem à mesma gens a gens Cláudia Demóstenes em um de seus discursos apresenta cinco testemunhas que afirmam pertencer ao mesmo ghénos o dos brítidas O que se deve notar neste exemplo é que os sete personagens citados como membros do mesmo ghénos achavamse inscritos em seis demos diferentes isso demonstra que o ghénos não correspondia exatamente ao demo e não constituía como este uma simples divisão administrativa1 Eis portanto provado um primeiro fato havia gentes em Roma e em Atenas Poderíamos citar exemplos relativos a muitas outras cidades da Grécia e da Itália e concluir que de acordo com toda verossimilhança essa instituição era universal entre os povos antigos Cada gens tinha um culto especial Na Grécia reconheciamse os membros de uma mesma gens pela identidade dos sacrifícios comuns desde época bastante remota2 Plutarco menciona o lugar dos sacrifícios da gens dos Licomedos e Ésquino fala do altar da gens dos Butados3 Também em Roma cada gens tinha atos religiosos a cumprir o dia o lugar os ritos eram fixados por sua religião particular4 O Capitólio é bloqueado pelos gauleses surge um Fábio e atravessa as linhas inimigas vestindo o hábito religioso e carregando objetos sagrados ele vai oferecer o sacrifício sobre o altar de sua gens que está situado sobre o Quirinal Durante a segunda guerra púnica outro Fábio a quem chamavam de broquel de Roma enfrenta Aníbal é fora de dúvida que a república tem grande necessidade de que não abandone o exército contudo ele o deixa nas mãos do imprudente Minúcio porque chegara o dia do aniversário de sua gens e é necessário que corra a Roma para realizar o ato sagrado5 O culto devia ser perpetuado de geração em geração era dever de cada um deixar filhos para continuálos Um inimigo pessoal de Cícero Cláudio abandona sua gens para entrar em uma família plebeia Cícero lhe diz Por que expões a religião da gens Cláudia a se extinguir por tua causa6 59 Os deuses da gens dii gentiles não protegiam senão a ela e não queriam ser invocados senão por ela Nenhum estranho podia ser admitido às cerimônias religiosas Acreditavase que se um estranho recebia parte da vítima ou apenas assistia ao sacrifício os deuses da gens ficavam ofendidos e todos seus membros estavam sob a ameaça de uma grave impiedade Assim como cada gens tinha seu culto e suas festas religiosas possuía também seu túmulo comum Lemos em um discurso de Demóstenes Este homem tendo perdido os filhos enterrouos no túmulo de seus pais túmulo comum a todos os de sua gens A continuação do discurso mostra que nenhum estranho podia ser enterrado no mesmo túmulo Em outro discurso o mesmo orador fala de um túmulo onde a gens dos Busélidas enterra seus membros e onde celebra cada ano um sacrifício fúnebre Esse lugar da sepultura é um campo bastante vasto cercado por um muro de acordo com antigo costume7 O mesmo acontecia entre os romanos Veléio fala do túmulo da gens Quintília e Suetônio nos diz que a gens Cláudia tinha o seu túmulo na encosta do monte Capitolino8 O antigo direito de Roma considera os membros de uma gens como aptos a herdar uns dos outros As Doze Tábuas afirmam que na falta de filhos e de agnados o gentilis é o herdeiro natural Nessa legislação o gentilis é portanto parente mais próximo que o cognado isto é mais próximo que o parente pela parte das mulheres9 Nada está mais estreitamente unido que os membros de uma gens Unidos na celebração das mesmas cerimônias sagradas eles se ajudam mutuamente em todas as necessidades da vida Toda a gens responde pela dívida de qualquer de seus membros resgata os prisioneiros e paga a multa dos condenados Se um dos seus se torna magistrado ela se cotiza para pagar as despesas que acarreta toda magistratura10 O acusado fazse acompanhar ao tribunal por todos os membros de sua gens isso marca a solidariedade que a lei estabelece entre o homem e o corpo de que faz parte É ato contrário à religião queixarse contra um homem de sua gens ou mesmo prestar testemunho contra ele Um Cláudio personagem considerável era inimigo pessoal de Ápio Cláudio o decênviro quando este foi citado em justiça e ameaçado de morte Cláudio apresentouse para defendêlo e implorou ao povo em seu favor não porém sem antes advertir de que se dava esse passo não o fazia por afeto mas por dever11 Se um membro da gens não tinha direito de citar outro perante a justiça da cidade é porque na própria gens administrava se justiça Cada uma com efeito tinha seu chefe que era ao mesmo tempo juiz sacerdote e comandante militar12 Sabese que quando a família sabina dos Cláudios veio estabelecerse em Roma as três mil pessoas que a compunham obedeciam a um único chefe Mais tarde quando os Fábios tomam sobre os ombros a guerra contra os Veianos vemos que essa gens tem um chefe que fala em seu nome diante do senado e que a conduz contra o inimigo13 Também na Grécia cada gens tinha um chefe as inscrições nolo afirmam e nos mostram que esse chefe usava geralmente o título de arconte14 Enfim tanto em Roma como na Grécia a gens tinha suas assembleias promulgava decretos aos quais seus membros deviam obedecer e que eram respeitados pela própria cidade15 Tal é o conjunto de costumes e de leis que encontramos em vigor em épocas nas quais a gens já se achava enfraquecida e quase desnaturada São estes os vestígios dessa antiga instituição16 2 Exame de algumas opiniões emitidas a fim de explicar a gens romana Sobre esse assunto de há muito entregue à disputa dos eruditos vários sistemas têm sido propostos Uns dizem a gens não é nada mais que uma semelhança de nome Segundo outros a gens não é senão a expressão de certa relação entre uma família que exerce o patronado e outras famílias suas clientes Cada uma dessas opiniões contém parte da verdade mas nenhuma corresponde a toda a série de fatos de leis e costumes que acabamos de enumerar 60 De acordo com outra teoria a palavra gens designa uma espécie de parentesco artificial a gens é a associação política de várias famílias que em sua origem eram estranhas umas às outras na falta de laços de sangue a cidade estabelecera entre elas uma união fictícia um parentesco convencional Mas uma primeira objeção se nos apresenta Se a gens não é senão uma associação fictícia como explicar que seus membros tenham direito de herdar uns dos outros Por que o gentilis é preferido ao cognado Vimos acima as regras da hereditariedade e declaramos a relação estrita e necessária que a religião estabelecera entre o direito de herdar e o parentesco masculino Poderemos supor que a antiga lei se afastasse tanto desse princípio a ponto de conceder a sucessão aos gentiles se estes fossem considerados estranhos O caráter mais evidente e melhor constatado da gens é que ela possui culto próprio como a família Ora se procurarmos qual é o deus adorado por cada uma notaremos que é sempre um antepassado divinizado e que o altar onde oferece o sacrifício é um túmulo Em Atenas os Eumólpidas veneram a Eumolpos tronco de sua raça os Fitálidas adoram ao herói Fitalos os Butadas a Butos os Busélidas a Buselos os Laquiadas a Laquos os Aminandridos a Cécrops1 Em Roma os Cláudios descendem de certo Clausus os Cecílios honram como chefe da raça o herói Céculo os Calpúrnios a Calpo os Júlios a um Júlio os Clélios a certo Clélio2 É verdade que bem podemos crer que muitas dessas genealogias foram imaginadas mais tarde mas devemos notar que esse embuste não tem razão de ser se não estivesse em constante uso entre as verdadeiras gentes reconhecer um antepassado comum e renderlhe culto A mentira procura sempre imitar a verdade Aliás o embuste não seria tão fácil como parece O culto não era apenas uma mera formalidade para se exibir Uma das regras mais rigorosas da religião era que não se deviam honrar como antepassados senão aqueles dos quais se descendia realmente oferecer culto a um estranho era impiedade grave Se portanto a gens adorava em comum algum antepassado é porque acreditava sinceramente descender dele Simular um túmulo inventar aniversários e banquetes fúnebres seria mentir no que havia de mais sagrado seria zombar da religião Tal ficção foi possível nos tempos de César quando a velha religião das famílias já não impressionava a ninguém Mas se nos reportarmos aos tempos em que essas crenças eram poderosas não podemos imaginar que várias famílias associandose em uma mesma farsa tenham dito entre si Vamos fingir ter um mesmo antepassado nós lhes levantaremos um túmulo oferecerlheemos banquetes fúnebres e nossos descendentes o adorarão pelos tempos afora Tal pensamento não se devia apresentar aos espíritos de onde devia ser expulso como culposo Nos problemas difíceis que a história oferece frequentemente é bom perguntar aos termos da língua todos os ensinamentos que ela nos pode dar Uma instituição é às vezes explicada pelo vocábulo que a designa Ora a palavra gens exprime exatamente o mesmo que a palavra genus a ponto de se poder tomálas uma pela outra e dizer indiferentemente gens Fabia ou genus Fabium3 ambas correspondem ao verbo gignere e ao substantivo genitor absolutamente como ghénos corresponde a ghennãn e a ghonéus Todas essas palavras trazem ideia de filiação Também os gregos designavam os membros de um ghonéus pela palavra homogálactes que significa nutrido pelo mesmo leite4 Comparemos todas essas palavras com as que temos o costume de traduzir por família o latim família e o grego õikos Nem uma nem outra contêm em si o sentido de geração ou de parentesco O verdadeiro significado de família é propriedade designa o campo a casa o dinheiro os escravos e é por isso que as Doze Tábuas dizem falando do herdeiro familiam nancitor o que aceita a sucessão Quanto a õikos é claro que não apresenta ao espírito outra ideia que a de propriedade ou de domicílio Eis aí contudo os vocábulos que traduzimos ordinariamente por família Ora é admissível que palavras cujo sentido intrínseco é domicílio ou propriedade tenham 61 sido empregadas tantas vezes para designar a família e que outras palavras cujo sentido interno é filiação nascimento paternidade jamais designassem mais que uma associação artificial Certamente isso não é conforme à nitidez e à precisão das línguas antigas É fora de dúvida que gregos e romanos ligavam às palavras gens e ghénos a ideia de uma origem comum Essa ideia pode haver desaparecido quando a gens foi alterada mas a palavra ficou como testemunho de sua existência O sistema que apresenta a gens como uma associação factícia tem portanto a seu desfavor 1 a velha legislação que dá aos gentiles direito de sucessão 2 as crenças religiosas que não admitem comunidade de culto senão onde há comunidade de nascimento 3 Os termos da língua que atestam na gens uma origem comum Outro defeito deste sistema é que supõe que as sociedades humanas puderam começar por uma convenção por um artifício o que a ciência histórica não pode admitir como verdade 3 A gens é a família mantendo ainda sua organização primitiva e sua unidade Tudo nos apresenta a gens como unida por um laço de origem Consultemos ainda a linguagem os nomes das gentes tanto na Grécia como em Roma todos têm a forma que era usada em ambas as línguas para os nomes patronímicos Cláudio significa filho de Clausus e Butadas filho de Butas Os que julgam ver na gens uma associação artificial partem de uma ideia falsa Supõem que uma gens contava sempre várias famílias com nomes diversos e citam de bom grado o exemplo da gens Cornélia que na verdade teve entre seus membros alguns Cipiões Lêntulos Cossus e Silas Estaria certo se tudo corresse sempre assim A gens Márcia parece não ter tido jamais senão uma única linhagem o mesmo acontece com a gens Lucrécia e a gens Quintília durante muito tempo Seria na verdade muito difícil dizer quais são as famílias que formaram a gens Fábia porque todos os Fábios conhecidos na história pertencem manifestamente à mesma estirpe e de começo todos levam o mesmo sobrenome Vibulano trocamno logo depois por Ambusto que mais tarde substituem pelo sobrenome de Máximo ou de Dorso Sabese que era costume em Roma que todo patrício tivesse três nomes Chamavase por exemplo Públio Cornélio Cipião Não é inútil saber qual dessas três palavras era considerada nome verdadeiro Públio não passava de um nome posto na frente praenomen Cipião era um nome ajuntado agnomen O verdadeiro nome nomen era Cornélio ora esse nome era ao mesmo tempo o nome de toda a gens Se não tivéssemos acerca da antiga gens nada mais além desse ensinamento este só bastaria para afirmar que houve Cornélios antes que existissem Cipiões e não como se costuma dizer que a família dos Cipiões se uniu a outras para formar a gens Cornélia Com efeito vemos pela história que a gens Cornélia foi por muito tempo indivisa e que todos seus membros ostentavam igualmente o cognome de Malugenenses e o de Cossus Somente no tempo do ditador Camilo é que um de seus ramos adotou o sobrenome de Cipião pouco mais tarde outro ramo toma o sobrenome de Rufo substituído depois pelo de Sila Os Lêntulos não aparecem senão na época da guerra dos Samnitas e os Cetegos apenas durante a segunda guerra púnica O mesmo acontece com a gens Cláudia Os Cláudios ficam por muito tempo unidos em uma única família e todos levam o sobrenome de Sabinos ou de Regilenses sinal de sua origem Durante sete gerações não se distinguem ramos nessa família aliás muito numerosa Somente na oitava geração isto é nos tempos da primeira guerra púnica é que vemos três ramos separaremse e adotar sobrenomes que se lhes tornam hereditários são os Claudius Pulcher que continuam por dois séculos os Claudius Centho que não demoram a desaparecer e os Claudius Nero que se perpetuam até os tempos do império Disso tudo se conclui que a gens não era uma associação de famílias mas a própria família Podia indiferentemente compreender uma única estirpe ou produzir ramos numerosos mas nunca deixava de ser uma só família Todavia tornase fácil entender a formação da gens antiga e de sua natureza 62 se nos reportarmos às velhas crenças e instituições que observamos acima Reconhecerseá mesmo que a gens derivou se naturalmente da religião doméstica e do direito privado das antigas idades Que prescreve com efeito essa religião primitiva Que o antepassado isto é o homem que por primeiro foi sepultado no túmulo familiar seja honrado perpetuamente como deus e que seus descendentes reunidos cada ano junto ao lugar sagrado onde repousa lhe ofereçam o banquete fúnebre O lar sempre aceso o túmulo sempre honrado pelo culto eis o centro ao redor do qual todas as gerações vêm viver e pelo qual todos os ramos da família por mais numerosos que possam ser continuam agrupados em um único feixe Que diz ainda o direito privado desses velhos tempos Observandose o que era a autoridade na família antiga vimos que os filhos não se separavam do pai estudandose as regras da transmissão do patrimônio constatamos que graças ao princípio da comunidade do domínio os irmãos menores não se separavam do mais velho Lar túmulo patrimônio tudo isso em sua origem era indivisível A família o era por consequência O tempo não a desmembrava Essa família indivisível que se desenvolvia através das idades perpetuando de século em século seu culto e seu nome era verdadeiramente a gens antiga A gens era a família mas a família conservando a unidade ordenada pela religião e atingindo todo o desenvolvimento que o antigo direito privado lhe permitia atingir1 Admitida essa verdade tudo o que os antigos escritores nos dizem a respeito da gens tornase claro A estreita solidariedade que há pouco notamos entre seus membros nada tem mais de surpreendente eles são parentes por nascimento O culto que praticam em comum não é uma ficção vemlhes de seus antepassados Como eles são uma mesma família têm sepultura comum Pela mesma razão a lei das Doze Tábuas declara os aptos a herdar uns dos outros Como todos eles tinham na origem um mesmo patrimônio indivisível tornouse costume e mesmo necessidade que a gens inteira respondesse pela dívida de um de seus membros que pagasse a ração do prisioneiro ou a multa do condenado Todas essas regras haviam sido estabelecidas por si mesmas quando a gens ainda estava unida com seu desmembramento não puderam desaparecer completamente Da unidade antiga e santa da família ficaram marcas persistentes no sacrifício anual que tornava a congregar os membros dispersos na legislação que lhes reconhecia direitos de hereditariedade nos costumes que lhes ordenava que se ajudassem mutuamente Era natural que os membros de uma mesma gens usassem um mesmo nome e foi o que aconteceu O uso dos nomes patronímicos data dessa antiguidade e se relaciona visivelmente com a velha religião A unidade de nascimento e de culto era indicada pela unidade do nome Cada gens transmite de geração em geração o nome do antepassado e o perpetua com o mesmo cuidado que demonstrava para com o culto O que os romanos chamavam propriamente de nomen era esse nome do antepassado que todos os descendentes e todos os membros da gens deviam levar Dia veio em que cada ramo tornandose independente em algumas coisas marcou sua individualidade adotando o sobrenome cognomen Contudo como cada pessoa devia distinguirse por uma denominação particular cada um recebeu um agnomem como Caius ou Quintus Mas o verdadeiro nome era o da gens este era o usado oficialmente este era o nome sagrado este era o que remontando ao primeiro antepassado conhecido devia durar tanto quanto a família e seus deuses O mesmo acontecia na Grécia romanos e helenos assemelhamse também nesse pormenor Cada grego pelo menos se pertencia a uma família antiga e regularmente constituída tinha três nomes como os patrícios romanos Um destes lhe era particular outro era o nome do pai e como esses dois nomes alternavamse ordinariamente entre si o conjunto de ambos equivalia ao cognome hereditário que designava em Roma um ramo da gens enfim o terceiro nome era o de toda a gens Assim diziase Milcíades filho de Címon Laquia e na geração seguinte Címon filho de Milcíades Laquiadas Kimõn Miltiádou Lakiádes Os Laquiadas formavam um ghénos como os Cornélios uma gens Assim acontecia com os Butados os Filatidos os Britidos os 63 Aminandridos etc Podemos notar que Píndaro jamais faz o elogio desses gregos sem lembrarlhes o nome de seu ghénos Esse nome entre os gregos ordinariamente terminava em ides ou ades e tinha assim uma forma de adjetivo do mesmo modo que o nome da gens entre os romanos terminava invariavelmente em ius Não era esse o verdadeiro nome na linguagem diária podiase designar o homem por seu sobrenome individual mas na linguagem oficial da política ou da religião era necessário dar ao homem sua denominação completa e sobretudo não esquecer o nome do ghénos2 É digno de nota que a história dos nomes seguiu caminho completamente diverso entre os antigos do que nas sociedades cristãs Na Idade Média até o século doze o verdadeiro nome era o nome de batismo ou nome individual e os nomes patronímicos não apareceram senão muito tarde como nomes de terra ou como sobrenomes Entre os antigos deuse exatamente o contrário Ora essa diferença se a observarmos bem relacionase à diferença das duas religiões Para a antiga religião doméstica a família era o verdadeiro corpo o verdadeiro ser vivente do qual o indivíduo era membro inseparável assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro em importância A nova religião pelo contrário reconhecia ao indivíduo uma vida própria uma liberdade completa uma independência toda pessoal e não lhe repugnou de modo algum isolálo da família destarte o nome de batismo foi o primeiro e por muito tempo o único nome 4 Extensão da família a escravidão e a clientela O que temos visto da família sua religião doméstica os deuses por ela instituídos as leis por ela estabelecidas o direito de primogenitura sobre o qual se baseava sua unidade seu desenvolvimento de idade em idade até formar a gens sua justiça seu sacerdócio seu governo interior tudo isso leva forçosamente nosso pensamento para uma época primitiva em que a família era independente de todo poder superior e em que a cidade ainda não existia Vejamos essa religião doméstica os deuses que não que não pertenciam senão a uma família e não exerciam sua providência além dos muros de uma casa o culto secreto a religião que não queria ser propagada a antiga moral que prescrevia o isolamento das famílias é claro que crenças dessa natureza não puderam aparecer no espírito dos homens senão em épocas em que as grandes sociedades ainda não estavam formadas Se o sentimento religioso contentouse com uma concepção tão restrita da divindade é porque a associação humana era então proporcionalmente acanhada Os tempos em que o homem não acreditava senão nos deuses domésticos é também o tempo em que não existiam senão famílias É bem verdade que essas crenças subsistiram depois e até por muito tempo quando as cidades e nações já estavam formadas O homem não se liberta facilmente das opiniões que uma vez o dominaram Essas crenças portanto puderam durar embora estivessem em contradição com o estado social Com efeito que há de mais contraditório que viver em sociedade civil e ter em cada família deuses particulares Mas é claro que essa contradição não existiu sempre e que na época em que essas crenças se haviam estabelecido nos espíritos e se haviam tornado tão poderosas para formar uma religião elas correspondiam exatamente ao estado social dos homens Ora o único estado social que pode estar de acordo com elas é aquele em que a família vive independente e isolada É nesse estado que toda a raça ariana parece ter vivido por muito tempo Os hinos dos Vedas o atestam para o ramo que deu nascimento aos hindus as velhas crenças e o velho direito privado o atestam para aqueles que depois se tornaram os gregos e os romanos Se compararmos as instituições políticas dos árias do Ocidente com as dos árias do Oriente não encontraremos quase nenhuma analogia Se compararmos pelo contrário as instituições domésticas desses diversos povos perceberemos que a família estava constituída de acordo com os mesmos princípios tanto na Grécia como na Índia esses princípios eram aliás como constatamos acima de natureza tão singular que não devemos supor que a semelhança fosse simples efeito do acaso enfim não somente 64 essas instituições oferecem evidente analogia mas ainda as palavras que as designam são muitas vezes as mesmas nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges até o Tibre Daí podemos tirar duas conclusões uma é que o nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que seus diferentes ramos se separaram outra é que pelo contrário o nascimento das instituições políticas é posterior a essa separação As primeiras foram fixadas desde os tempos em que a raça vivia ainda em seu antigo berço da Ásia central as segundas se formaram pouco a pouco nos diversos lugares onde suas migrações a conduziram Podese pois entrever um longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade além da família Foi então que surgiu a religião doméstica que não teria podido nascer em sociedade constituída de modo diverso e que por muito tempo serviu até de obstáculo ao desenvolvimento social Estabeleceuse então o antigo direito privado que mais tarde achouse em desacordo com os interesses de uma sociedade pouco desenvolvida mas que estava em perfeita harmonia com o estado da sociedade na qual se formou Ponhamonos portanto com o pensamento no meio dessas antigas gerações cuja lembrança não pôde perecer por completo e que legaram suas crenças e leis às gerações seguintes Cada família tem sua religião seus deuses seu sacerdócio O isolamento religioso é sua lei seu culto é seu segredo Na mesma morte e na existência que se lhe segue as famílias não se confundem cada uma continua a viver à parte em seu túmulo de onde os estranhos são excluídos Cada família tem também sua propriedade isto é a parte de terra que lhe está ligada inseparavelmente pela religião seus deuses Termos guardamlhe os limites e seus manes a protegem O isolamento da propriedade é de tal modo obrigatório que dois domínios não podem avizinharse e devem deixar entre si uma faixa de terra neutra que se torna inviolável Enfim cada família tem seu chefe como uma nação teria um rei tem suas leis que sem dúvida não são escritas mas que a crença grava no coração de cada homem tem sua justiça interior acima da qual não há nenhuma outra à qual possa apelar Tudo aquilo de que o homem tem rigorosa necessidade para sua vida material ou para sua vida moral a família o possui em si Não precisa de coisa alguma de fora é um estado organizado uma sociedade autossuficiente Mas essa família das antigas idades não está reduzida às proporções da família moderna Nas grandes sociedades a família se desmembra e diminui mas na ausência de qualquer outra sociedade ela se estende se desenvolve ramificase sem se dividir Os ramos mais novos continuam agrupados ao redor do mais velho perto do lar único e do túmulo comum Outro elemento ainda entra na composição dessa família antiga A necessidade recíproca que o pobre tem do rico e que o rico tem do pobre criou os servos Mas nessa espécie de regime patriarcal servos ou escravos tudo é a mesma coisa Com efeito concebese que o princípio do serviço livre voluntário podendo cessar à vontade do servidor não se pode coadunar com um estado social em que a família vive isolada Aliás a religião doméstica não permite admitir na família nenhum estranho É necessário portanto que por algum meio o servo se torne membro e parte integrante da família o que se consegue por uma espécie de iniciação do recémvindo no culto doméstico Um costume curioso que por muito tempo subsistiu nas casas atenienses mostra nos como o escravo entrava para a família Faziamno aproximar do lar colocavamno em presença da divindade doméstica derramavamlhe sobre a cabeça a água lustral e faziamno compartilhar com a família de alguns bolos e frutas1 Essa cerimônia tinha analogia com a do casamento e da adoção Significava sem dúvida que o novo membro outrora estranho de agora em diante passava a ser membro da família cuja religião adotava Assim o escravo assistia às preces e participava das festas2 O lar o protegia a religião dos deuses lares pertencialhe tanto quanto a seu dono3 É por essa razão que o escravo devia ser enterrado na sepultura da família 65 Mas por isso mesmo que o servo adquiria o culto e o direito de orar perdia a liberdade A religião era uma cadeia que o retinha Estava ligado à família por toda a vida e mesmo para o tempo que se seguia à morte Seu senhor podia libertálo e tratálo como homem livre Mas o servo não deixava por isso a família Como estava ligado a ela pelo culto não podia sem impiedade separar se da mesma Sob o nome de liberto ou de cliente continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono e não deixava de ter obrigações para com ele Não se casava senão com sua autorização e seus filhos continuavam a deverlhe obediência4 Formavase assim no seio da grande família certo número de pequenas famílias clientes e subordinadas Os romanos atribuíam o estabelecimento da clientela a Rômulo como se uma instituição dessa natureza pudesse ser obra de um só homem A clientela é mais antiga que Rômulo Aliás existia em toda parte tanto na Grécia como em toda a Itália5 Não foram as cidades que estabeleceram regras pelo contrário como veremos mais adiante elas pouco a pouco diminuíramnas destruíramnas A clientela é uma instituição do direito doméstico e existiu nas famílias antes que existissem cidades Não devemos julgar a clientela dos tempos antigos pelos clientes que vemos no tempo de Horácio É claro que o cliente foi por muito tempo um servo ligado ao patrão Mas havia então algo que constituía sua dignidade ele tomava parte no culto e estava associado à religião da família Tinha o mesmo lar as mesmas festas os mesmos sacra que o patrono Em Roma em sinal dessa comunidade religiosa tomava o nome da família Era considerado membro da mesma pela adoção Daí um laço estreito e uma reciprocidade de deveres entre o patrono e o cliente Ouvi a velha lei romana Se o patrono causou dano ao cliente que seja maldito sacer esto que morra6 O patrono deve proteger o cliente por todos os meios e todas as forças de que dispõe por sua oração como sacerdote por sua lança como guerreiro por sua lei como juiz Mais tarde quando a justiça da cidade chamar o cliente o patrono deverá defendêlo deverá mesmo revelarlhe as fórmulas misteriosas da lei que o farão ganhar a causa7 Podese testemunhar em justiça contra um cognado mas nunca contra um cliente8 e os deveres para com os clientes continuarão a ser considerados muito acima dos deveres para com os cognados9 Por que Porque um cognado ligado somente pelas mulheres não é parente e não toma parte na religião da família O cliente pelo contrário tem a comunidade do culto goza por mais inferior que seja do verdadeiro parentesco que consiste segundo expressão de Platão em adorar os mesmos deuses domésticos A clientela é um laço sagrado que a religião formou e que nada poderá romper Uma vez que se é cliente em uma família não se pode mais separarse dela A clientela desses tempos primitivos não é relação voluntária e passageira entre dois homens é hereditária ése cliente por dever de pai a filho10 Por tudo isso vemos que a família nos tempos antigos com seu ramo mais velho e seus ramos mais novos seus servos e clientes podia formar um grupo de homens muito numeroso Uma família graças à religião que a mantinha unida graças a seu direito particular que a tornava indivisível graças às leis da clientela que mantinha seus servos chegou a formar com o tempo uma sociedade muito extensa que tinha seu chefe hereditário Foi de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece haver sido composta durante uma longa série de séculos Esses milhares de pequenos grupos viviam isolados com poucas relações entre si sem necessidade uns dos outros sem estarem unidos por nenhum laço nem religioso nem político tendo cada um seu domínio cada um seu governo interior cada um seus deuses particulares Notas Livro II Cap X 1 Demóstenes In Neaer 71 Vide Plutarco Temist 1 Ésquines De falsa legat 147 Boeckh Corp inscr n 385 Ross Demi Attici 24 A gens entre os gregos muitas vezes é chamada de pátra Píndaro passim 66 2 Harpocrácio v Ghennétai Hesíquio idem 3 Plutarco Temíst I Ésquines De falsa legat 147 4 Cícero De arusp resp 15 Dionísio de Halicarnasso XI 14 Festo v Propudi ed Müller p 238 5 Tito Lívio V 46 XXII 18 Valério Máximo I 1 11 Políbio III 94 Plínio XXXIV 13 Macróbio III 5 6 Cícero Pro domo 13 7 Demóstenes In Macart 79 In Eubul 28 8 Suetônio Tibérío I Veléio II 119 9 Gaio III 17 Digesto III 3 1 10 Tito Lívio V 32 Dionísio de Halicarnasso Fragm XIII 5 Apiano Annib 28 11 Tito Lívio III 58 Dionísio XI 14 12 Dionísio de Halicarnasso II 7 13 Idem IX 5 14 Boeckh Corp Inscr ns 397 399 Ross Demi Attici 24 15 Tito Lívio VI 20 Suetônio Tibérío 1 Ross Demi Attici 24 16 Cícero tentou uma definição da gens Gentiles sunt qui inter se eodem nomine sunt qui ab ingenuis oriundi sunt quorum majorum nemo servitutem servivit Cic Tópicos 6 Essa definição é incompleta indica apenas alguns sinais exteriores e não os caracteres essenciais Cícero que pertencia à ordem dos plebeus parece ter tido ideias muito vagas a respeito da gens dos tempos antigos ele afirma que o rei Sérvio Túlio era seu gentilis meo regnante gentili Tusculanas I 16 e que certo Verrucino era quase o gentilis de Verres In Verrem II 77 2 1 Demóstenes In Macart 79 Pausânias I 37 Inscrição dos Aminandridas citada por Ross p 24 2 Festo verbis Coeculus Calpurnii Cloelia 3 Tito Lívio II 46 Genus Fabium 4 Filócoro nos Fragm hist graec t I p 399 Pólux VIII 11 3 1 Não voltamos atrás sobre o que dissemos acima Liv II cap V a respeito da agnação Já vimos que agnação e gentilidade procediam dos mesmos princípios e eram parentesco da mesma natureza A passagem da lei das Doze Tábuas que designa a herança aos gentiles na falta de agnati causou embaraços aos jurisconsultos e fez pensar que poderia haver uma diferença essencial entre essas duas espécies de parentesco Mas essa diferença essencial não aparece em nenhum texto Erase agnatus como se era gentilis pela descendência masculina e por vínculos religiosos Havia entre os dois parentescos apenas diferença de grau que se acentuou sobretudo a partir da época em que os ramos de uma mesma gens se separaram O agnatus era membro do ramo o gentills o era da gens Estabeleceuse então a mesma distinção entre os termos gentilis e agnatus que entre as palavras gens e familia Familiam dicimus omnium agnatorum diz Ulpiano no Digesto Liv L tít 16 195 Quando se era agnado em relação a um homem erase com muito mais razão seu gentilis mas podiase ser gentilis sem se ser agnado A lei das Doze Tábuas dava a herança na falta de agnados aos que eram apenas gentiles com relação ao defunto isto é que pertenciam à sua gens sem fazer parte de sua família ou de seu ramo Veremos mais adiante que entrou na gens um elemento de ordem inferior a clientela daí se formou um vínculo de direito entre a gens e o cliente ora esse vínculo de direito chamouse também gentilitas Por exemplo em Cícero De oratore I 39 a expressão jus gentilitatis designa a relação entre a gens e os clientes É assim que a mesma palavra designava duas coisas que não devemos confundir 2 É verdade que mais tarde a democracia substituiu o nome do demo pelo do ghénos o que era uma maneira de imitar e de se apropriar da antiga regra 4 1 Demóstenes In Stephanum I 74 Aristófanes Plutus 768 Esses dois escritores indicam claramente uma cerimônia mas não a descrevem Os escoliastes de Aristófanes acrescentam alguns detalhes Vide em Ésquilo 67 como Clitemnestra recebe uma nova escrava Entra nesta casa pois Júpiter deseja que participes das abluções da água lustral com meus outros escravos junto a meu lar doméstico Ésquilo Agamemnon 10351038 2 Aristóteles Econômicas I 5 É pelos escravos mais do que pelas pessoas livres que se devem celebrar os sacrifícios e as festas Cícero De legibus II 8 Ferias in famulis habento Nos dias de festa era proibido fazer o escravo trabalhar Cíc De legib II 12 3 Cícero De legib II 11 O escravo podia até celebrar o ato religioso em nome do senhor Catão De re rustica 83 4 Quanto às obrigações dos libertos em direito romano vide Digesto XXXVII 144 De jure patronatus XII 15 De obsequiis parentibus et patronis praestandis XIII 1 De operis libertorum O direito grego no que diz respeito à alforria e à clientela transformouse muito mais depressa que o direito romano Por isso restamnos muito poucos esclarecimentos sobre a antiga condição dessa classe de pessoas ver contudo Lísias em Harpocrácio na palavra Apostasíon Crisipo em Ateneu VI 93 e uma passagem curiosa de Platão Leis XI p 915 Disso resulta que o liberto sempre tinha deveres para com o antigo senhor 5 Clientela entre os sabinos Tito Lívio II 18 Dionísio V 40 entre os etruscos Dionísio IX 5 entre os gregos Dionísio II 9 6 Lei das Doze Tábuas citada por Sérvio ad Aen VI 609 Cf Virgílio Aut fraus innexa clienti Sobre os deveres dos patronos vide Dionísio II 10 7 Horácio Epist II 1 104 Cícero De orat III 33 8 Catão em Aulo Gélio V 3 XXI 1 9 Aulo Gélio XX 1 10 Essa verdade em nossa opinião está bem clara em dois fatos que nos são contados um por Plutarco outro por Cícero C Herênio chamado para testemunhar contra Mário alegou ser contrário às regras antigas que um patrono testemunhasse contra seu cliente e como se admirassem aparentemente de que Mário que já havia sido tribuno fosse qualificado de cliente ele acrescentou que efetivamente Mário e sua família desde os tempos mais remotos sempre haviam sido clientes da família dos Herênios Os juízes admiramse do argumento mas Mário que não se importava por se ver reduzido a essa condição replicou que no dia em que havia sido eleito para uma magistratura libertarase da clientela o que não era bem verdade acrescenta o historiador porque nenhuma magistratura libertava da condição de cliente somente os magistrados curuis tinham esse privilégio Plut Vida de Mário 5 A clientela portanto era salvo essa única exceção obrigatória e hereditária Mário a havia esquecido o que não aconteceu com os Herênios Cícero menciona um processo discutido em seu tempo entre os Cláudios e os Marcelos os primeiros a título de chefes da gens Cláudia pretendiam em virtude do direito antigo que os Marcelos fossem seus clientes estes em vão ocupavam há dois séculos os primeiros postos do Estado os Cláudios persistiam em sustentar que o vínculo de clientela não podia ter sido destruído Esses dois fatos salvos do esquecimento permitemnos julgar o que era a primitiva clientela