·
Cursos Gerais ·
História
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
67
A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges - Estudo sobre Religião e Instituições
História
ESDHC
1
Prova-Influencia-Constitutiva-do-Direito-Romano-e-Direito-da-Igreja
História
ESDHC
129
Historia do Direito no Brasil - Antonio Carlos Wolkmer - Editora Forense
História
ESDHC
27
Escravidão Negra e Direito no Brasil Imperial - Análise da Legislação
História
ESDHC
174
Iniciação ao Direito Romano - Guia Completo para Estudantes
História
ESDHC
1
Prova Historia do Direito Romano Republica Romana e Lei das XII Tabuas
História
ESDHC
10
Historia do Direito - Aspectos Conceituais e Evolução Histórica
História
ESDHC
42
Fenômeno Jurídico na Antiguidade - Análise Histórica e Cultural
História
ESDHC
11
Recepcao do Direito Romano em Portugal Medieval - Artigo Academico
História
ESDHC
Preview text
DOI 1021902 Organização Comitê Científico Double Blind Review pelo SEEROJS Recebido em 01032016 Aprovado em 10052016 Revista Brasileira de História do Direito Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 284 ESTADO DIREITO E RELIGIÃO NA EUROPA MEDIEVAL STATE LAW AND RELIGION IN MEDIEVAL EUROPE 1Viviane Lemes da Rosa 2William Soares Pugliese RESUMO Estudase o panorama estatal da Europa ocidental durante os séculos V a XV sob um viés da história do direito A Europa contava com um pluralismo jurídico direito fragmentado e com a ausência de um Estado forte o que permitiu que a Igreja exercesse forte influência sobre diversos aspectos da vida em sociedade dentre eles o direito Após abordar o papel da Igreja em relação ao Estado e as características do direito canônico durante a Idade Média na Europa ocidental concluiuse que foi somente durante a Idade Moderna que houve uma alteração no panorama geral que permeou a Idade Média Palavraschave Estado Religião Europa medieval ABSTRACT We study the state landscape in Western Europe during the V to XV centuries under a vision of the history of law Europe had a legal pluralism fragmented law and the absence of a strong state for what the Church exerted a strong influence on many aspects of life in society including law After addressing the relation of Church and state and the characteristics of canon law during the Middle Ages in Western Europe we concluded that it was only during the modern age that there was a change in the overall picture that has permeated the Middle Ages Keywords State Religion Medieval europe 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Email vivianeldrhotmailcom 2 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Professor da Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Email wpugliesegmailcom Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 285 1 INTRODUÇÃO A Idade Média iniciou com a queda do Império Romano em 476 e findou com a queda de Constantinopla em 1453 quando surgiu a Idade Moderna Tratase de um período marcado pela ausência estatal pelo direito fragmentado e pela presença da Igreja em todos os aspectos da vida social Diante da ausência de um Estado forte que impusesse o direito por meio de uma legislação fixa e abstrata dois fenômenos foram particularmente importantes a entre outras instituições que tiveram relativa liberdade para florescer destacouse a Igreja Romana que foi responsável por regulamentar todos os aspectos da vida em sociedade até mesmo o direito b a ordem jurídica foi formada pelo direito consuetudinário o direito romano o direito canônico e o direito específico dos povos A Igreja tornouse uma instituição extremamente poderosa adquiriu uma grande quantidade de terras elaborou o direito canônico e foi responsável pelos julgamentos ocorridos na inquisição Podese dizer que em boa parte a civilização medieval foi criada pela Igreja Romana1 que regulamentava desde os pequenos fatos do diaadia até os direitos de família e das sucessões de acordo com os interesses do papa e sob o rótulo da vontade divina É nesse contexto que o direito se desenvolve durante a Idade Média tendo como base as leis divinas e um Estado ausente que caminhava junto da Igreja Nesse estudo pretendese realizar uma breve descrição de como funcionavam entrelaçados o direito o Estado e a Igreja durante a Idade Média na Europa Ocidental visando demonstrar as relações havidas entre esses institutos 2 ESTADO DIREITO E RELIGIÃO NA EUROPA MEDIEVAL A Idade Média foi inaugurada por um vazio estatal2 decorrente da crise da estrutura do Estado Romano ocorrida no século IV3 Houve uma carência de toda vocação totalizante do poder político sua incapacidade de se apresentar como fato global e assimilador de todas 1 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 135 2 Esse vazio estatal foi preenchido apenas parcialmente durante a Idade Média pois o momento em que houve vocação por um poder político completo século XIV coincidiu com o declínio da era política medieval GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 53 3 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 49 e 53 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 286 as manifestações sociais sua realização nos acontecimentos históricos medievais cobrindo apenas certas áreas das relações intersubjetivas4 Essa ausência estatal abriu espaço para que a religião regulamentasse diversos aspectos que caberiam ao Estado fortalecendo as estruturas religiosas da época mesmo porque a maior força da época a única soberana era Deus Sobre a influência religiosa explica Grossi No vazio deixado pela ausência do Estado munida de sua mensagem de salvação de seu vigor econômico cada vez mais crescente das suplências sociopolíticas e culturais de que firmemente se investir cada vez mais a Igreja foi uma presença viva eficaz e abrangente graças também a uma organização paroquial bastante articulada e universalmente difundida que conseguia penetrar até nos mais remotos recessos rurais A Igreja inseriuse no costume absorveuo mas também o plasmou5 Não só a religião como outras estruturas autônomas tiveram liberdade de desenvolvimento durante a Idade Média Todavia isso não implicou por si só na total independência entre essas esferas pelo contrário todo o medievo esteve permeado pela ideia de hierarquia Nas palavras de Pietro Costa a ordem já está dada e a sua intrínseca e harmoniosa justiça coincide com a diferenciação hierárquica dos seus componentes6 A ordem jurídica se relacionava com a pluralidade e variedade das forças que compõem a sociedade civil era o terreno de confluência de forças diversas resposta às exigências objetivas dos homens e das coisas e não o artifício preestabelecido nem pelo estamento dos proprietários nem pelos detentores do poder7 Havia um pluralismo jurídico no medievo uma situação em que distintos complexos de normas com legitimidades e conteúdos distintos coexistem no mesmo espaço social Esse pluralismo era formado pelo direito comum muito afetado pelo direito romano o direito canônico e os direitos próprios8 Segundo Hespanha o direito comum foi basicamente um direito romanocanónico apesar de nele estarem também inseridos institutos dos direitos tradicionais dos povos 4 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 50 5 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 135 6 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 104 7 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 6364 8 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 160161 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 287 europeus No seu seio o direito canónico desempenhou um papel menos importante do que o direito romano9 Esse direito comum era subsidiário somente aplicado pelo juiz nos casos em que o direito próprio apresentava lacunas Por direito próprio querse dizer a realidade plural formada pelos direitos dos reinos os estatutos das cidades os costumes locais e os privilégios territoriais ou corporativos10 Durante o início da Era Medieval a ausência de um Estado forte implicou na impossibilidade deste de utilizar do direito como a habitual ferramenta de poder A ordem jurídica foi deixada de lado e regulouse tendo por base as relações vividas pelos indivíduos em sociedade Sobre o tema explica Argemiro Martins O poder real apesar de ocupar um lugar no topo da hierarquia medieval era incapaz de impor a sua vontade aos nobres o que gerou o desaparecimento da atividade legislativa imperial e principalmente o desmembramento do poder judicial nas mãos dos senores feudais Desta forma o direito fica adstrito às relações feudovassálicas ou seja as relações dos senhores com os seus servos O costume passa a ser a fonte por excelência do direito feudal Inexistiram escritos jurídicos nos séculos X e XI A justiça é feita na maior parte das vezes apelando para a vontade divina é a época dos ordálios e dos duelos judiciários11 O direito comum era variável e formado por ordens abertas e flexíveis sendo que cada ordem era um tópico cuja eficácia deveria ser provada cabendo ao juiz fornecer solução arbitrativa para tanto12 As populações eram regidas pelas próprias leis pelas regras jurídicas de seu povo raça tribo ou nação princípio da personalidade do direito13 Diante da ausência de Estado e de um direito regulamentado por ele a única orientação e fonte de regras era a natureza das coisas físicas e sociais na sua estabilidade metahumana14 Assim a historicidade era uma característica do direito da época que por não sofrer influências burocráticas seguiu o fluxo histórico15 9 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 152 10 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 168 11 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 193 12 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 1191 13 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 192 14 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 71 15 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 74 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 288 A ordem jurídica era portanto um conglomerado de ordenamentos eventualmente incompatíveis o que gerava a preocupação em harmonizálos O papel de equilibrálos cabia ao juiz caso a caso guiado pelos princípios gerais16 José Reinaldo de Lima Lopes cita como características da Idade Média a o pluralismo de jurisdições b a rejeição da legislação pelo desuso c a ideologia do direito natural como controle substancial de leis abusivas d a subordinação do superior aos direitos tradicionais dos inferiores d o costume como fonte do direito podendo a lei corrigir os costumes irracionais ou desarrazoados e o impedimento de interesses particulares como justificação de decisões relativas a um grupo17 Durante os séculos V a IX aplicouse o princípio da efetividade havia um naturalismo jurídico um apego à praxis a necessidade de o direito se alinhar aos fatos sociais e regêlos Elementos como terra sangue e duração definiam a imperfeição do indivíduo em face da comunidade 18 e os dogmas da Igreja Romana contribuíram para afastar o individualismo e acentuar a importância da coletividade Nos séculos X a XII houve um processo de modernização do panorama agrário com aumento de produção e consumo de circulação da moeda e crescimento demográfico Surgiu a figura do comerciante e aumentouse o diálogo entre os indivíduos os debates e a circulação de informação Nesse contexto as cidades tornaramse figuras importantes pois consistiam nos locais onde os comerciantes se encontravam para trocar produtos 19 Esse cenário impulsionou uma evolução da ordem jurídica A partir do final do século XI surge uma nova consciência jurídica preocupada com a identificação da lex com o papel do príncipe e com a observância do direito a chamada baixa Idade Média ou Idade Média tardia 16HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 173174 17 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 75 18 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 88 e 93 19 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 159161 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 289 A lex consistia no ordenamento produzido pela razão voltado ao bem comum redigido por quem governa uma comunidade relacionavamse a ela o populus que deveria cumprila o jurista que lhe dava forma técnica e conteúdo e o príncipe que a sancionava20 Havia uma associação entre soberano e juiz na medida em que o rei era representado como o juiz supremo que exercia seu poder declarando um direito já existente decorrente do mundo dos fatos 21 O soberano era o único detentor da iurisdictio22 plenissima que associava realeza e justiça poder e juízo pois não submetido a controle23 A lex pertencia à realidade objetiva e era legitimada pela natureza seu conteúdo aequitas já existia e deveria ser apenas revelado pelo legislador A aequitas consistia na equidade em um conjunto ordenado e harmônico de fatos princípios e regras Nesse contexto o papel da ordem jurídica era descobrir o conteúdo da aequitas redigilo em preceitos e impôlo ao populus24 A ciência adquiriu um importante papel nesse período devido a alguns fatores a por ser um caminho para a verdade b pelo século XI ser caracterizado por lutas contra contaminações laicas choque contra abusos do clero fracionamento dos costumes oposição entre a verdade da Igreja e os costumes c a necessidade de estabelecimento de uma ordem por meio da organização d a importância de diferenciar o que era autêntico daquilo que foi corrompido pela Igreja durante os seus mil anos de história25 Esse papel foi desempenhado pelos homens da ciência os doctores Com as modificações sociais ocorridas nos séculos X a XII o direito costumeiro já não dava conta de tutelar uma sociedade complexa Como a lei abstrata e rígida não poderia ser instituída naquele momento diante dos moldes da Idade Média coube à ciência organizar o novo sistema De mesmo modo tendo em vista que o príncipe raramente cumpria a sua função de intérprete tal papel foi atribuído à ciência jurídica 20 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 175 21 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 105106 22 A iurisdictio consistia na faculdade de dizer o direito numa causa em que dois interesses particulares e contrapostos entravam em conflito HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 219 23 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios d e história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 110 24 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 177 25 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 180181 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 290 Diante da considerável assunção de competências pela ciência jurídica houve um aumento de sua importância de seu poder e da preocupação com questões de validade e obediência O Plácito de Márturi ocorrido em 1076 na Toscana foi o marco de uma redescoberta do direito romano de Justiniano na medida em que este poderia ser o momento de validade buscado pela ciência26 Podese afirmar três fases de reinserção do direito romano a séculos XVII e XIII predominância do direito romano na doutrina b séculos XIV e XV desenvolvimento do direito justinianeu c a partir do século XVI supremacia dos preceitos legais sobre direito privado clássico27 A Escola dos Glosadores surgiu na primeira metade do século XII quando o direito justinianeu passou a ser ensinado em Bolonha tendo como características mais expressivas a fidelidade ao texto justinianeu e o caráter analítico e não sistemático 28 Essa escola trabalhava por meio da glosa uma breve explicação sobre um trecho obscuro ou difícil do texto do Corpus Iuris e foi responsável pela criação de uma linguagem técnica sobre o direito29 Seus expoentes foram Irnério Acúrsio Azo Hugo Odofredo Martinho Búlgaro entre outros O direito justinianeu tinha traços evidentemente católicos o Corpus Iuris era fundado na sacralidade e na veneralidade e consistia em uma garantia segura30 Sobre o Corpus Iuris e sua relação com o soberano explica Pietro Costa O imperador é para o jurista um símbolo de validade a válvula de fechamento do sistema jurídico Ele não é tanto a encarnação de uma vontade onipotente quanto é o fundamento de validade de um sistema normativo o Corpus Iuris retirado do longínquo passado da Roma imperial e colocado em uma espécie de presente eterno Se é verdadeiro assim que o Corpus Iuris é quanto à sua origem o fruto de uma vontade de legislar é igualmente verdadeiro que para o jurista medieval ele parece principalmente a expressão de uma racionalidade capaz de conter em si mesma a essência da ordem31 26 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 193 27 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 194195 28 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 198 29 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 199200 30 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 194 31 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 111 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 291 Assim o Corpus Iuris se espalhou rapidamente pela Europa ocidental nos séculos XIII e XIV garantindo à ciência jurídica uma época intensa e fértil representada por glosadores e comentadores Como previsto tornouse a base formal do discurso e seu momento de validade e os juristas os seus intérpretes32 As modificações havidas na sociedade dos séculos XIII e XIV surto urbanista e mercantil impulsionou uma valorização dos direitos locais o que gerou a necessidade de introduzir os princípios do direito local no ius commune visando transformálo em um corpo orgânico dominado por princípios sistematizadores que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso orgânico embora respeitador de pontos de vista dissonantes33 E o papel de atualizar e sistematizar o direito comum coube aos juristas mais especificamente aos comentadores São estes juristas que debruçandose pela primeira vez sobre todo o corpo do direito direito romano direito canónico direito feudal estatutos das cidades e orientados por finalidades marcadamente práticas vão procurar unificálo e adaptálo às necessidades normativas dos fins da Idade Média34 Enquanto o príncipe era o representante de Deus na terra o jurista se limitava a ler o mundo factual e ditar as regras conforme a natureza das coisas reicentrismo Aos juristas cabia apenas assumir o direito como algo adquirido não o criavam mas interpretavam observavam refletiam sobre ele 35 A função de interpretatio assumiu cada vez maior importância Nesse mundo medieval onde Deus é o verdadeiro e único criador do direito o único verdadeiro legislador graças à Revelação e à natureza ou seja graças ao direito divino positivo e natural nesse mundo onde o direito é sentido como algo ôntico duradouro que está além do cotidiano das suas turbulências e das suas vicissitudes inconstantes nesse mundo medieval tudo é visto numa abordagem essencialmente interpretativa e é interpretatio a atividade normativa do príncipe e a da comunidade por meio do costume assim como é interpretatio a justiça feita pelo juiz ou a elaboração teórica feita pelo magister É uma objeção oportuna corroborada por tudo o que se disse até agora interpretatio é a própria ordem jurídica que vive que se desenvolve lentamente na história36 32 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 197198 33 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 209 34 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 211 35 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna nálise Social vol XXXVI 161 2001 p 1189 36 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 201 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 292 Detinham legitimidade para a realização da interpretatio o príncipe o juiz e o mestre mas como visto anteriormente o príncipe raramente desempenhava suas funções Sendo assim os glosadores praticamente afastaram a sua função na ordem jurídica por meio do procedimento que determinou a sua consulta somente nos casos em que a interpretatio não era suficiente e somente se o príncipe estivesse no local A atitude filosófica empreendida pelos comentadores pode ser caracterizada como realista propõe a investigar a natureza das coisas e racionalista a investigação é pautada por processos racionais como a lógica Surgem então novas figuras dogmáticas a teoria da pluralidade de situações reais o dominium deixa de ser exclusivo b aplicação espacial dos ordenamentos jurídicos as leis deveriam vigorar de acordo com o território e não com a origem da população c teoria da naturalidade do poder político iurisdictio existência de um poder natural pertencente à própria ordem das coisas37 O apreço pelos costumes permaneceu na nova ordem jurídica os costumes ou seja um costume prolongado no tempo e sustentado pelo consentimento dos usuários têm dignidade e valor de lei o costume interpreta as leis de maneira notável mas também possui força para abrogálas38 No século XIV houve uma crise derivada de fatores de ordem social climática e demográfica a a peste negra iniciada em 1347 b os prejuízos sofridos pela nobreza com a migração das pessoas do campo para a cidade c o fim da Reconquista e d o desenvolvimento da economia comercial nas cidades39 Tais fatores deram azo a uma maior regulamentação das atividades econômicas pelo direito de acordo com o interesse de segmentos específicos da sociedade notadamente pelos argumentos do justo preço e da utilidade pública40 Houve também a integração dos povos das cidades no sistema de relações políticas e a criação de estatutos jurídico políticos para diversos segmentos da sociedade como as corporações religiosas e de mestres as universidades algumas profissões e outras figuras como as viúvas e os pobres41 37 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 212217 38 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 228 39 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 187189 40 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 192 e 197 41 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 199200 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 293 Todavia o ser humano não era visto e regulamentado individualmente mas somente dentro dos grupos dos quais fazia parte Com a crise do feudalismo a fiscalidade real tornou se o meio para obtenção da renda da população pelo Estado somente assim a partir do século XVI surgiu um compromisso com o estabelecimento de um Estado unitário e absoluto42 Tal movimento obteve força nas ordens franciscanas e no nominalismo de Guilherme de Ockham que deu origem ao positivismo jurídico e cuja característica mais marcante foi o individualismo43 Como visto a Idade Média findou com a queda de Constantinopla em 1453 Todavia seu encerramento não coincidiu com o fim desse panorama jurídico representado até o momento o marco histórico estabelecido para o fim da Idade Média não se relacionou especificamente com as mudanças ocorridas no plano do direito Podese dizer que no fim da Idade Média havia um Estado fraco um direito fragmentado e não exclusivamente estatal sendo ambos fortemente influenciados pela Igreja Romana 3 O DIREITO CANÔNICO O direito canônico apresentou uma evolução gradual de acordo com os poderes adquiridos pela Igreja Teve suas raízes no século IV quando o imperador Constantino possibilitou o exercício da jurisdição do papa sobre os fiéis No século V a Igreja adquiriu jurisdição privativa sobre os clérigos e no século X obteve jurisdição privativa sobre todas as matérias relacionadas aos sacramentos44 No entanto até o momento a autoridade religiosa era muito mais moral do que jurídica somente a revolução institucional operada por Gregório VII papa entre os anos 1073 e 1085 operou uma mudança nesse panorama45 Com a reforma gregoriana o direito canônico tornouse mais burocrático formal e com propósitos determinados a reforma foi rápida total universal e socioeconômica46 44 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 148 45 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 6869 46 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 74 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 294 Dentre as características do direito canônico à época podese citar a o repúdio às ideias de igualdade formal e rigorismo formalístico47 b a dicotomia ente ius divinum e ius humanum c possibilidade de aplicações diversas para a mesma norma48 d Deus como garantia da ordem e importância da equidade aequitas49 f auxiliou na criação do ius commune g gerou novas penas como a perda de função confinamento em mosteiro prisão e prática de obras de caridade50 As diferenças entre ius divinum e ius humanum podem ser explicitadas conforme a tabela abaixo51 Ius Divinum Ius Humanum Necessidade Utilidade Revelado por Deus Revelado pela Igreja Requisito para acesso ao reino dos céus Utilidade e facilidade Composto por poucas regras essenciais Grande conjunto de regras Grossi afirma que o direito canônico apresentava duas fontes básicas a Revelação o que Deus revelou nas Sagradas Escrituras e a Tradição o que Deus revelou por intermédio dos Apóstolos e foi conservado pela Igreja52 A aequitas apresentava a importante função de fonte e princípio do direito Podese dizer que a equidade é fonte e origem da justiça é aquela harmonia de fatos que exige igual tratamento jurídico para causas iguais nada mais é do que Deus tornase justiça no momento em que a vontade humana se apropria dela Se essa vontade se concretiza em preceitos escritos ou transmitidos oralmente pelo uso é qualificada como direito53 Segundo Grossi a aequitas estava presente nas coisas e se projetava nos homens devia ser retirada do mundo fático interpretada e reduzida a preceitos Tinha como objetivo garantir a igualdade substancial de situações de fatos mas acabou por possibilitar que o próprio intérprete criasse a norma54 47 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 148 48 Para manter seu caráter instrumental a norma deve poder variar conforme as variações sobre as quais se organiza GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 152 49 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 217 50 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 68 51 Tabela elaborada com base nas informações trazidas por GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 151 52 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 142 53 FITTING H Juristische Schriften de früheren Mitellalters Halle Buchhandlung Waisenhaus 1876 p 216 apud GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 217 54 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 220224 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 295 O direito canônico apresentou institutos muito criticados dentre eles a dissimulatio e a tolerantia as quais possibilitavam uma espécie de flexibilização das normas de acordo com as circunstâncias do caso as fundações pastorais da equidade canônica impõem a desigualdade formal e o escândalo aparente do pecador tolerado e do justo punido55 Além desses institutos havia também uma flexibilidade por meio da ideia de graça afinal o direito estava abaixo do reino dos céus Os únicos capazes de praticar atos de graça que modificavam a ordem estabelecida eram os príncipes na qualidade de representantes de Deus na terra Ao imitarem a graça de Deus os príncipes flexibilizam a ordem humana56 Enquanto senhor da graça o príncipe Introduz novas normas potestas legislativa ou revoga antigas normas potestas revocatoria Torna pontualmente ineficazes normas existentes v g desobrigando a lei Modifica a natureza das coisas v g emancipando menores legitimando bastardos concedendo títulos nobiliárquicos a plebeus Reformula e redefine aquilo que é devido a cada um v g distribuindo recompensas ou mercês57 No entanto a graça não era uma liberdade absoluta pois estava limitada à necessidade utilidade pública salvação ou justiça Também deveriam ser observados a equidade a boafé a justa razão e a indenização aos afetados58 O final do século XI inaugurou a nova fase das coleções canônicas coletâneas de textos que sistematizaram as ideias e dogmas religiosos ao longo do tempo Sobre esse período da história explica Paolo Grossi 55 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 264 56 Dentre as possíveis flexibilizações por meio da graça citese legitimar bastardos emancipar menores perdoar criminosos HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 208 57 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 11921193 58 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 1193 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 296 E depois o novo século com toda a carga de novidade de que é portador de um lado uma Igreja que sai vencedora da controvérsia com o Império mais desejosa ainda de definirse como ordenamento jurídico de produzir um direito não mais ofuscado na teologia como aquele que no início servira de maneira notável à luta contra os heréticos de produzir um direito com a mesma qualidade técnica do direito civil e portanto dotado de força expansiva em toda a sociedade de produzir orientar e condicionar um valioso instrumento de controle da vida social de outro lado um renovado fortalecimento cultural que já é patrimônio difuso uma reflexão jurídica que não é mais uma manifestação imprecisa de empiristas mas análise científica racional rigorosa solidamente fundada59 Em 1140 Graciano elaborou o Concordia Discordantium Canonum mais conhecido como o Decreto Tratavase de uma coleção canônica de sistematização orgânica com mais de 3800 textos os quais contavam com seus comentários pessoais60 A partir do método escolástico Graciano organizou hierarquizou e expressou os princípios para eliminação de antinomias utilizandose de quatro critérios a ratione significationis b ratione temporis c ratione loci d ratione dispensationis61 Tal obra revolucionou a Igreja e fez sucesso na Europa pois consistiu na primeira obra semelhante ao Corpus iuris a contemplar todo o direito canônico além de ter servido como arma para a política teocrática do Pontificado romano62 Sobre esse uso dos doctores explica Rogério Dultra dos Santos A Igreja passou a monopolizar a produção intelectual jurídica na idade feudal Definese a função dogmática dos doutores universitários doutores não pelo conhecimento mas pela autorização divina de revelar ou melhor de dizer a verdade da lei legitimando o discurso oficial do papa e da Igreja de forma extremamente regrada Tal legitimação deve assim ser percebida como fundamentação teórica para um eficaz e real exercício de dominação e submissão levado a cabo pela Igreja na Idade Média mais que revelar a verdade o que o jurista canônico externa é a vontade política do poder eclesiástico em fazer valer os seus comandos63 59 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 249 60 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 250 61 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 79 62 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 251252 63 SANTOS Rogério Dultra dos A institucionalização da dogmática jurídicocanônica medieval In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 234 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 297 Posteriormente surgiram as decretais consistentes em decisões do Pontífice que tinham por objeto notadamente a aequitas que se tornou princípio geral e fonte formal do direito64 Segundo Lopes eram vereditos ou decisões de casos concretos ou de consultas que se tornavam normas gerais65 Após as Decretais de Gregório IX que elaborou um compilado de tudo que havia sido produzido em direito canônico desde Graciano houve uma constante burocratização da Igreja com divisão de competências e de jurisdição e limitações do objeto do poder Nesse contexto houve uma racionalização do processo civil canônico que passou a contar com as seguintes novidades a introdução da escrita e perda da oralidade e imediatidade da investigação b notário como oficial do tribunal c divisão clara das fases processuais d surgimento do advogado e abolição das provas irracionais em 1215 f inserção da ideia de que a investigação visa ao convencimento judicial g introdução dos princípios de aceitabilidade das provas probabilidade relevância e materialidade h poderes investigatórios do juiz i sistema da prova legal juiz é obrigado a valorar a prova de acordo com a lei66 Quanto à sentença e à coisa julgada no direito canônico em artigo que tem por objeto a análise dos efeitos da sentença canônica e dos institutos que podem ser compatibilizados com o processo civil atual Eduardo Talamini explica que foi apenas com a estabilização do direito canônico por meio do Decretum que houve a diferenciação entre sentença e coisa julgada no direito canônico 64 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 261 65 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 80 66 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p8790 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 298 Portanto foi depois da estabilização do direito canônico com o Decretum que se veio a esboçar o princípio da permanente possibilidade de determinadas causas serem revistas Coube aos glosadores do Decretum às decretais de Papas posteriores e às obras de outros doutrinadores essa tarefa Foi então que se formulou o conceito de transitus in rem iudicatam trânsito em julgado passagem em julgado É que até esse momento res iudicata era noção que se identificava com a da própria sentença ou quando menos com o efeito essencial de qualquer sentença No instante em que se começaram a conceber sentenças que não eram imutáveis já não era mais possível a identificação entre as duas categorias Daí a distinção entre a sentença considerada em si mesma e a passagem em julgado consistente na condição de irrevogabilidade que não precisa estar presente em todas as sentenças Eis uma das principiais contribuições do processo canônico para o instituto da coisa julgada Com a distinção reconheciase a existência de um momento formal em que a sentença adquire a força de coisa julgada momento esse que não se identifica necessariamente com o do surgimento da própria sentença Mais do que isso estabeleciase que nem toda sentença definitiva precisaria revestirse dessa eficácia O conceito de trânsito em coisa julgada foi rapidamente assimilado pelos juristas do ius civile67 Segundo o autor o direito canônico trouxe várias contribuições ao direito processual civil dentre eles a querela nullitatis ação que visa à declaração de nulidade da sentença e cujas hipóteses de cabimento foram consideravelmente ampliadas pelo direito canônico68 Frisese que a inquisição medieval foi uma exceção a esse cenário positivo do processo canônico Instituída para combater as heresias69 crescentes durante os séculos XII e XIII a inquisição consistiu em um tribunal de exceção no qual o inquisidor munido de um mandado especial de Roma sobrepujava o poder local do bispo e realizava julgamentos sem observar o contraditório70 Dentre outros fatores a ocorrência da inquisição foi facilitada pela influência da Igreja sobre o Estado Em uma época em que o poder da Igreja estava de tal forma imbricado ao poder do Estado confundindose com este em alguns casos todas as rebeliões e manifestações políticas assumiam caráter religioso e eram combatidas por um sistema de repressão especificamente montado com o objetivo de justificar a existência da própria instituição eclesiástica Por outro lado a Inquisição espanhola foi citada como um exemplo claro na perseguição de adversários políticos ameaçadores do seu poder e de sua riqueza71 67 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 p 28 68 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 p 28 69 O termo heresia englobava qualquer atividade ou manifestação contrária ao que havia sido definido pela Igreja em matéria de fé Dessa forma na qualificação de hereges encontravamse os mouros os judeus os cátaros e albigenses no sul da França bem como os supostos praticantes de bruxaria NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 235 70 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p9193 71 NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 246 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 299 O esforço da Igreja em constituir um ordenamento normativo encerrouse com as Clementinae72 sendo que a fonte do direito canônico até 1917 foi o Corpus Iuris Canonici um aglomerado de fontes oficiais e extraoficiais73 4 CONCLUSÕES A Idade Média nasceu com a queda do Império Romano no século IV À época havia uma ausência estatal que permitiu a aquisição de grande poder pela Igreja Romana entre outras instituições e as suas ingerências no campo jurídico estatal e da vida social em geral Havia um sistema jurídico pluralista e hierarquizado formado pelo direito comum basicamente consuetudinário e romano pelo direito canônico e pelo direito dos povos O soberano era Deus representado na terra pelos príncipes que eram responsáveis pela interpretação das normas fornecidas pelo mundo fático Com as graduais evoluções da vida em sociedade o direito passou por uma transformação notadamente no fim do século XI com a utilização da ciência e dos juristas para a organização e sistematização do conhecimento jurídico O direito canônico também foi revolucionado com o passar do tempo caracterizandose pela burocratização e flexibilização das normas O direito passou a contar com alguns apanhados de normas como o Corpus Iuris de origem romana o Decreto de Graciano as Decretais de Gregório IX e o Corpus Iuris Canonici estes últimos de natureza canônica e com a participação ativa dos juristas glosadores e comentadores na interpretação do direito A partir do século XII a Igreja passou pelo período da inquisição em que lutava contra a gradual perda de poder através da punição severa de supostas heresias A Idade Média teve seu fim sem que tal panorama fosse alterado deixando como legado para a Idade Moderna a confiança na razão humana proveniente de São Tomás de Aquino e o nominalismo de Guilherme de Ockham que deram origem respectivamente à laicidade e ao individualismo da época moderna74 72 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 256 73 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 257 74 VILLEY Michel A formação do pensamento jurídico moderno São Paulo Martins Fontes p 180 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 300 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 11831208 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4ª ed Belo Horizonte Del Rey 2007 NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 SANTOS Rogério Dultra dos A institucionalização da dogmática jurídicocanônica medieval In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 VILLEY Michel A formação do pensamento jurídico moderno São Paulo Martins Fontes 2005
Send your question to AI and receive an answer instantly
Recommended for you
67
A Cidade Antiga - Fustel de Coulanges - Estudo sobre Religião e Instituições
História
ESDHC
1
Prova-Influencia-Constitutiva-do-Direito-Romano-e-Direito-da-Igreja
História
ESDHC
129
Historia do Direito no Brasil - Antonio Carlos Wolkmer - Editora Forense
História
ESDHC
27
Escravidão Negra e Direito no Brasil Imperial - Análise da Legislação
História
ESDHC
174
Iniciação ao Direito Romano - Guia Completo para Estudantes
História
ESDHC
1
Prova Historia do Direito Romano Republica Romana e Lei das XII Tabuas
História
ESDHC
10
Historia do Direito - Aspectos Conceituais e Evolução Histórica
História
ESDHC
42
Fenômeno Jurídico na Antiguidade - Análise Histórica e Cultural
História
ESDHC
11
Recepcao do Direito Romano em Portugal Medieval - Artigo Academico
História
ESDHC
Preview text
DOI 1021902 Organização Comitê Científico Double Blind Review pelo SEEROJS Recebido em 01032016 Aprovado em 10052016 Revista Brasileira de História do Direito Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 284 ESTADO DIREITO E RELIGIÃO NA EUROPA MEDIEVAL STATE LAW AND RELIGION IN MEDIEVAL EUROPE 1Viviane Lemes da Rosa 2William Soares Pugliese RESUMO Estudase o panorama estatal da Europa ocidental durante os séculos V a XV sob um viés da história do direito A Europa contava com um pluralismo jurídico direito fragmentado e com a ausência de um Estado forte o que permitiu que a Igreja exercesse forte influência sobre diversos aspectos da vida em sociedade dentre eles o direito Após abordar o papel da Igreja em relação ao Estado e as características do direito canônico durante a Idade Média na Europa ocidental concluiuse que foi somente durante a Idade Moderna que houve uma alteração no panorama geral que permeou a Idade Média Palavraschave Estado Religião Europa medieval ABSTRACT We study the state landscape in Western Europe during the V to XV centuries under a vision of the history of law Europe had a legal pluralism fragmented law and the absence of a strong state for what the Church exerted a strong influence on many aspects of life in society including law After addressing the relation of Church and state and the characteristics of canon law during the Middle Ages in Western Europe we concluded that it was only during the modern age that there was a change in the overall picture that has permeated the Middle Ages Keywords State Religion Medieval europe 1 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Email vivianeldrhotmailcom 2 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Professor da Universidade Federal do Paraná UFPR Curitiba PR Brasil Email wpugliesegmailcom Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 285 1 INTRODUÇÃO A Idade Média iniciou com a queda do Império Romano em 476 e findou com a queda de Constantinopla em 1453 quando surgiu a Idade Moderna Tratase de um período marcado pela ausência estatal pelo direito fragmentado e pela presença da Igreja em todos os aspectos da vida social Diante da ausência de um Estado forte que impusesse o direito por meio de uma legislação fixa e abstrata dois fenômenos foram particularmente importantes a entre outras instituições que tiveram relativa liberdade para florescer destacouse a Igreja Romana que foi responsável por regulamentar todos os aspectos da vida em sociedade até mesmo o direito b a ordem jurídica foi formada pelo direito consuetudinário o direito romano o direito canônico e o direito específico dos povos A Igreja tornouse uma instituição extremamente poderosa adquiriu uma grande quantidade de terras elaborou o direito canônico e foi responsável pelos julgamentos ocorridos na inquisição Podese dizer que em boa parte a civilização medieval foi criada pela Igreja Romana1 que regulamentava desde os pequenos fatos do diaadia até os direitos de família e das sucessões de acordo com os interesses do papa e sob o rótulo da vontade divina É nesse contexto que o direito se desenvolve durante a Idade Média tendo como base as leis divinas e um Estado ausente que caminhava junto da Igreja Nesse estudo pretendese realizar uma breve descrição de como funcionavam entrelaçados o direito o Estado e a Igreja durante a Idade Média na Europa Ocidental visando demonstrar as relações havidas entre esses institutos 2 ESTADO DIREITO E RELIGIÃO NA EUROPA MEDIEVAL A Idade Média foi inaugurada por um vazio estatal2 decorrente da crise da estrutura do Estado Romano ocorrida no século IV3 Houve uma carência de toda vocação totalizante do poder político sua incapacidade de se apresentar como fato global e assimilador de todas 1 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 135 2 Esse vazio estatal foi preenchido apenas parcialmente durante a Idade Média pois o momento em que houve vocação por um poder político completo século XIV coincidiu com o declínio da era política medieval GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 53 3 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 49 e 53 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 286 as manifestações sociais sua realização nos acontecimentos históricos medievais cobrindo apenas certas áreas das relações intersubjetivas4 Essa ausência estatal abriu espaço para que a religião regulamentasse diversos aspectos que caberiam ao Estado fortalecendo as estruturas religiosas da época mesmo porque a maior força da época a única soberana era Deus Sobre a influência religiosa explica Grossi No vazio deixado pela ausência do Estado munida de sua mensagem de salvação de seu vigor econômico cada vez mais crescente das suplências sociopolíticas e culturais de que firmemente se investir cada vez mais a Igreja foi uma presença viva eficaz e abrangente graças também a uma organização paroquial bastante articulada e universalmente difundida que conseguia penetrar até nos mais remotos recessos rurais A Igreja inseriuse no costume absorveuo mas também o plasmou5 Não só a religião como outras estruturas autônomas tiveram liberdade de desenvolvimento durante a Idade Média Todavia isso não implicou por si só na total independência entre essas esferas pelo contrário todo o medievo esteve permeado pela ideia de hierarquia Nas palavras de Pietro Costa a ordem já está dada e a sua intrínseca e harmoniosa justiça coincide com a diferenciação hierárquica dos seus componentes6 A ordem jurídica se relacionava com a pluralidade e variedade das forças que compõem a sociedade civil era o terreno de confluência de forças diversas resposta às exigências objetivas dos homens e das coisas e não o artifício preestabelecido nem pelo estamento dos proprietários nem pelos detentores do poder7 Havia um pluralismo jurídico no medievo uma situação em que distintos complexos de normas com legitimidades e conteúdos distintos coexistem no mesmo espaço social Esse pluralismo era formado pelo direito comum muito afetado pelo direito romano o direito canônico e os direitos próprios8 Segundo Hespanha o direito comum foi basicamente um direito romanocanónico apesar de nele estarem também inseridos institutos dos direitos tradicionais dos povos 4 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 50 5 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 135 6 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 104 7 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 6364 8 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 160161 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 287 europeus No seu seio o direito canónico desempenhou um papel menos importante do que o direito romano9 Esse direito comum era subsidiário somente aplicado pelo juiz nos casos em que o direito próprio apresentava lacunas Por direito próprio querse dizer a realidade plural formada pelos direitos dos reinos os estatutos das cidades os costumes locais e os privilégios territoriais ou corporativos10 Durante o início da Era Medieval a ausência de um Estado forte implicou na impossibilidade deste de utilizar do direito como a habitual ferramenta de poder A ordem jurídica foi deixada de lado e regulouse tendo por base as relações vividas pelos indivíduos em sociedade Sobre o tema explica Argemiro Martins O poder real apesar de ocupar um lugar no topo da hierarquia medieval era incapaz de impor a sua vontade aos nobres o que gerou o desaparecimento da atividade legislativa imperial e principalmente o desmembramento do poder judicial nas mãos dos senores feudais Desta forma o direito fica adstrito às relações feudovassálicas ou seja as relações dos senhores com os seus servos O costume passa a ser a fonte por excelência do direito feudal Inexistiram escritos jurídicos nos séculos X e XI A justiça é feita na maior parte das vezes apelando para a vontade divina é a época dos ordálios e dos duelos judiciários11 O direito comum era variável e formado por ordens abertas e flexíveis sendo que cada ordem era um tópico cuja eficácia deveria ser provada cabendo ao juiz fornecer solução arbitrativa para tanto12 As populações eram regidas pelas próprias leis pelas regras jurídicas de seu povo raça tribo ou nação princípio da personalidade do direito13 Diante da ausência de Estado e de um direito regulamentado por ele a única orientação e fonte de regras era a natureza das coisas físicas e sociais na sua estabilidade metahumana14 Assim a historicidade era uma característica do direito da época que por não sofrer influências burocráticas seguiu o fluxo histórico15 9 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 152 10 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 168 11 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 193 12 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 1191 13 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 192 14 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 71 15 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 74 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 288 A ordem jurídica era portanto um conglomerado de ordenamentos eventualmente incompatíveis o que gerava a preocupação em harmonizálos O papel de equilibrálos cabia ao juiz caso a caso guiado pelos princípios gerais16 José Reinaldo de Lima Lopes cita como características da Idade Média a o pluralismo de jurisdições b a rejeição da legislação pelo desuso c a ideologia do direito natural como controle substancial de leis abusivas d a subordinação do superior aos direitos tradicionais dos inferiores d o costume como fonte do direito podendo a lei corrigir os costumes irracionais ou desarrazoados e o impedimento de interesses particulares como justificação de decisões relativas a um grupo17 Durante os séculos V a IX aplicouse o princípio da efetividade havia um naturalismo jurídico um apego à praxis a necessidade de o direito se alinhar aos fatos sociais e regêlos Elementos como terra sangue e duração definiam a imperfeição do indivíduo em face da comunidade 18 e os dogmas da Igreja Romana contribuíram para afastar o individualismo e acentuar a importância da coletividade Nos séculos X a XII houve um processo de modernização do panorama agrário com aumento de produção e consumo de circulação da moeda e crescimento demográfico Surgiu a figura do comerciante e aumentouse o diálogo entre os indivíduos os debates e a circulação de informação Nesse contexto as cidades tornaramse figuras importantes pois consistiam nos locais onde os comerciantes se encontravam para trocar produtos 19 Esse cenário impulsionou uma evolução da ordem jurídica A partir do final do século XI surge uma nova consciência jurídica preocupada com a identificação da lex com o papel do príncipe e com a observância do direito a chamada baixa Idade Média ou Idade Média tardia 16HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 173174 17 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 75 18 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 88 e 93 19 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 159161 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 289 A lex consistia no ordenamento produzido pela razão voltado ao bem comum redigido por quem governa uma comunidade relacionavamse a ela o populus que deveria cumprila o jurista que lhe dava forma técnica e conteúdo e o príncipe que a sancionava20 Havia uma associação entre soberano e juiz na medida em que o rei era representado como o juiz supremo que exercia seu poder declarando um direito já existente decorrente do mundo dos fatos 21 O soberano era o único detentor da iurisdictio22 plenissima que associava realeza e justiça poder e juízo pois não submetido a controle23 A lex pertencia à realidade objetiva e era legitimada pela natureza seu conteúdo aequitas já existia e deveria ser apenas revelado pelo legislador A aequitas consistia na equidade em um conjunto ordenado e harmônico de fatos princípios e regras Nesse contexto o papel da ordem jurídica era descobrir o conteúdo da aequitas redigilo em preceitos e impôlo ao populus24 A ciência adquiriu um importante papel nesse período devido a alguns fatores a por ser um caminho para a verdade b pelo século XI ser caracterizado por lutas contra contaminações laicas choque contra abusos do clero fracionamento dos costumes oposição entre a verdade da Igreja e os costumes c a necessidade de estabelecimento de uma ordem por meio da organização d a importância de diferenciar o que era autêntico daquilo que foi corrompido pela Igreja durante os seus mil anos de história25 Esse papel foi desempenhado pelos homens da ciência os doctores Com as modificações sociais ocorridas nos séculos X a XII o direito costumeiro já não dava conta de tutelar uma sociedade complexa Como a lei abstrata e rígida não poderia ser instituída naquele momento diante dos moldes da Idade Média coube à ciência organizar o novo sistema De mesmo modo tendo em vista que o príncipe raramente cumpria a sua função de intérprete tal papel foi atribuído à ciência jurídica 20 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 175 21 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 105106 22 A iurisdictio consistia na faculdade de dizer o direito numa causa em que dois interesses particulares e contrapostos entravam em conflito HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 219 23 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios d e história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 110 24 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 177 25 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 180181 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 290 Diante da considerável assunção de competências pela ciência jurídica houve um aumento de sua importância de seu poder e da preocupação com questões de validade e obediência O Plácito de Márturi ocorrido em 1076 na Toscana foi o marco de uma redescoberta do direito romano de Justiniano na medida em que este poderia ser o momento de validade buscado pela ciência26 Podese afirmar três fases de reinserção do direito romano a séculos XVII e XIII predominância do direito romano na doutrina b séculos XIV e XV desenvolvimento do direito justinianeu c a partir do século XVI supremacia dos preceitos legais sobre direito privado clássico27 A Escola dos Glosadores surgiu na primeira metade do século XII quando o direito justinianeu passou a ser ensinado em Bolonha tendo como características mais expressivas a fidelidade ao texto justinianeu e o caráter analítico e não sistemático 28 Essa escola trabalhava por meio da glosa uma breve explicação sobre um trecho obscuro ou difícil do texto do Corpus Iuris e foi responsável pela criação de uma linguagem técnica sobre o direito29 Seus expoentes foram Irnério Acúrsio Azo Hugo Odofredo Martinho Búlgaro entre outros O direito justinianeu tinha traços evidentemente católicos o Corpus Iuris era fundado na sacralidade e na veneralidade e consistia em uma garantia segura30 Sobre o Corpus Iuris e sua relação com o soberano explica Pietro Costa O imperador é para o jurista um símbolo de validade a válvula de fechamento do sistema jurídico Ele não é tanto a encarnação de uma vontade onipotente quanto é o fundamento de validade de um sistema normativo o Corpus Iuris retirado do longínquo passado da Roma imperial e colocado em uma espécie de presente eterno Se é verdadeiro assim que o Corpus Iuris é quanto à sua origem o fruto de uma vontade de legislar é igualmente verdadeiro que para o jurista medieval ele parece principalmente a expressão de uma racionalidade capaz de conter em si mesma a essência da ordem31 26 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 193 27 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 194195 28 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 198 29 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 199200 30 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 194 31 COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 p 111 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 291 Assim o Corpus Iuris se espalhou rapidamente pela Europa ocidental nos séculos XIII e XIV garantindo à ciência jurídica uma época intensa e fértil representada por glosadores e comentadores Como previsto tornouse a base formal do discurso e seu momento de validade e os juristas os seus intérpretes32 As modificações havidas na sociedade dos séculos XIII e XIV surto urbanista e mercantil impulsionou uma valorização dos direitos locais o que gerou a necessidade de introduzir os princípios do direito local no ius commune visando transformálo em um corpo orgânico dominado por princípios sistematizadores que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso orgânico embora respeitador de pontos de vista dissonantes33 E o papel de atualizar e sistematizar o direito comum coube aos juristas mais especificamente aos comentadores São estes juristas que debruçandose pela primeira vez sobre todo o corpo do direito direito romano direito canónico direito feudal estatutos das cidades e orientados por finalidades marcadamente práticas vão procurar unificálo e adaptálo às necessidades normativas dos fins da Idade Média34 Enquanto o príncipe era o representante de Deus na terra o jurista se limitava a ler o mundo factual e ditar as regras conforme a natureza das coisas reicentrismo Aos juristas cabia apenas assumir o direito como algo adquirido não o criavam mas interpretavam observavam refletiam sobre ele 35 A função de interpretatio assumiu cada vez maior importância Nesse mundo medieval onde Deus é o verdadeiro e único criador do direito o único verdadeiro legislador graças à Revelação e à natureza ou seja graças ao direito divino positivo e natural nesse mundo onde o direito é sentido como algo ôntico duradouro que está além do cotidiano das suas turbulências e das suas vicissitudes inconstantes nesse mundo medieval tudo é visto numa abordagem essencialmente interpretativa e é interpretatio a atividade normativa do príncipe e a da comunidade por meio do costume assim como é interpretatio a justiça feita pelo juiz ou a elaboração teórica feita pelo magister É uma objeção oportuna corroborada por tudo o que se disse até agora interpretatio é a própria ordem jurídica que vive que se desenvolve lentamente na história36 32 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 197198 33 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 209 34 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 211 35 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna nálise Social vol XXXVI 161 2001 p 1189 36 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 201 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 292 Detinham legitimidade para a realização da interpretatio o príncipe o juiz e o mestre mas como visto anteriormente o príncipe raramente desempenhava suas funções Sendo assim os glosadores praticamente afastaram a sua função na ordem jurídica por meio do procedimento que determinou a sua consulta somente nos casos em que a interpretatio não era suficiente e somente se o príncipe estivesse no local A atitude filosófica empreendida pelos comentadores pode ser caracterizada como realista propõe a investigar a natureza das coisas e racionalista a investigação é pautada por processos racionais como a lógica Surgem então novas figuras dogmáticas a teoria da pluralidade de situações reais o dominium deixa de ser exclusivo b aplicação espacial dos ordenamentos jurídicos as leis deveriam vigorar de acordo com o território e não com a origem da população c teoria da naturalidade do poder político iurisdictio existência de um poder natural pertencente à própria ordem das coisas37 O apreço pelos costumes permaneceu na nova ordem jurídica os costumes ou seja um costume prolongado no tempo e sustentado pelo consentimento dos usuários têm dignidade e valor de lei o costume interpreta as leis de maneira notável mas também possui força para abrogálas38 No século XIV houve uma crise derivada de fatores de ordem social climática e demográfica a a peste negra iniciada em 1347 b os prejuízos sofridos pela nobreza com a migração das pessoas do campo para a cidade c o fim da Reconquista e d o desenvolvimento da economia comercial nas cidades39 Tais fatores deram azo a uma maior regulamentação das atividades econômicas pelo direito de acordo com o interesse de segmentos específicos da sociedade notadamente pelos argumentos do justo preço e da utilidade pública40 Houve também a integração dos povos das cidades no sistema de relações políticas e a criação de estatutos jurídico políticos para diversos segmentos da sociedade como as corporações religiosas e de mestres as universidades algumas profissões e outras figuras como as viúvas e os pobres41 37 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 212217 38 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 228 39 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 187189 40 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 192 e 197 41 HESPANHA António Manuel História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 p 199200 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 293 Todavia o ser humano não era visto e regulamentado individualmente mas somente dentro dos grupos dos quais fazia parte Com a crise do feudalismo a fiscalidade real tornou se o meio para obtenção da renda da população pelo Estado somente assim a partir do século XVI surgiu um compromisso com o estabelecimento de um Estado unitário e absoluto42 Tal movimento obteve força nas ordens franciscanas e no nominalismo de Guilherme de Ockham que deu origem ao positivismo jurídico e cuja característica mais marcante foi o individualismo43 Como visto a Idade Média findou com a queda de Constantinopla em 1453 Todavia seu encerramento não coincidiu com o fim desse panorama jurídico representado até o momento o marco histórico estabelecido para o fim da Idade Média não se relacionou especificamente com as mudanças ocorridas no plano do direito Podese dizer que no fim da Idade Média havia um Estado fraco um direito fragmentado e não exclusivamente estatal sendo ambos fortemente influenciados pela Igreja Romana 3 O DIREITO CANÔNICO O direito canônico apresentou uma evolução gradual de acordo com os poderes adquiridos pela Igreja Teve suas raízes no século IV quando o imperador Constantino possibilitou o exercício da jurisdição do papa sobre os fiéis No século V a Igreja adquiriu jurisdição privativa sobre os clérigos e no século X obteve jurisdição privativa sobre todas as matérias relacionadas aos sacramentos44 No entanto até o momento a autoridade religiosa era muito mais moral do que jurídica somente a revolução institucional operada por Gregório VII papa entre os anos 1073 e 1085 operou uma mudança nesse panorama45 Com a reforma gregoriana o direito canônico tornouse mais burocrático formal e com propósitos determinados a reforma foi rápida total universal e socioeconômica46 44 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 148 45 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 6869 46 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 74 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 294 Dentre as características do direito canônico à época podese citar a o repúdio às ideias de igualdade formal e rigorismo formalístico47 b a dicotomia ente ius divinum e ius humanum c possibilidade de aplicações diversas para a mesma norma48 d Deus como garantia da ordem e importância da equidade aequitas49 f auxiliou na criação do ius commune g gerou novas penas como a perda de função confinamento em mosteiro prisão e prática de obras de caridade50 As diferenças entre ius divinum e ius humanum podem ser explicitadas conforme a tabela abaixo51 Ius Divinum Ius Humanum Necessidade Utilidade Revelado por Deus Revelado pela Igreja Requisito para acesso ao reino dos céus Utilidade e facilidade Composto por poucas regras essenciais Grande conjunto de regras Grossi afirma que o direito canônico apresentava duas fontes básicas a Revelação o que Deus revelou nas Sagradas Escrituras e a Tradição o que Deus revelou por intermédio dos Apóstolos e foi conservado pela Igreja52 A aequitas apresentava a importante função de fonte e princípio do direito Podese dizer que a equidade é fonte e origem da justiça é aquela harmonia de fatos que exige igual tratamento jurídico para causas iguais nada mais é do que Deus tornase justiça no momento em que a vontade humana se apropria dela Se essa vontade se concretiza em preceitos escritos ou transmitidos oralmente pelo uso é qualificada como direito53 Segundo Grossi a aequitas estava presente nas coisas e se projetava nos homens devia ser retirada do mundo fático interpretada e reduzida a preceitos Tinha como objetivo garantir a igualdade substancial de situações de fatos mas acabou por possibilitar que o próprio intérprete criasse a norma54 47 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 148 48 Para manter seu caráter instrumental a norma deve poder variar conforme as variações sobre as quais se organiza GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 152 49 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 217 50 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 68 51 Tabela elaborada com base nas informações trazidas por GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 151 52 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 142 53 FITTING H Juristische Schriften de früheren Mitellalters Halle Buchhandlung Waisenhaus 1876 p 216 apud GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 217 54 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 220224 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 295 O direito canônico apresentou institutos muito criticados dentre eles a dissimulatio e a tolerantia as quais possibilitavam uma espécie de flexibilização das normas de acordo com as circunstâncias do caso as fundações pastorais da equidade canônica impõem a desigualdade formal e o escândalo aparente do pecador tolerado e do justo punido55 Além desses institutos havia também uma flexibilidade por meio da ideia de graça afinal o direito estava abaixo do reino dos céus Os únicos capazes de praticar atos de graça que modificavam a ordem estabelecida eram os príncipes na qualidade de representantes de Deus na terra Ao imitarem a graça de Deus os príncipes flexibilizam a ordem humana56 Enquanto senhor da graça o príncipe Introduz novas normas potestas legislativa ou revoga antigas normas potestas revocatoria Torna pontualmente ineficazes normas existentes v g desobrigando a lei Modifica a natureza das coisas v g emancipando menores legitimando bastardos concedendo títulos nobiliárquicos a plebeus Reformula e redefine aquilo que é devido a cada um v g distribuindo recompensas ou mercês57 No entanto a graça não era uma liberdade absoluta pois estava limitada à necessidade utilidade pública salvação ou justiça Também deveriam ser observados a equidade a boafé a justa razão e a indenização aos afetados58 O final do século XI inaugurou a nova fase das coleções canônicas coletâneas de textos que sistematizaram as ideias e dogmas religiosos ao longo do tempo Sobre esse período da história explica Paolo Grossi 55 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 264 56 Dentre as possíveis flexibilizações por meio da graça citese legitimar bastardos emancipar menores perdoar criminosos HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 p 208 57 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 11921193 58 HESPANHA António Manuel Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 1193 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 296 E depois o novo século com toda a carga de novidade de que é portador de um lado uma Igreja que sai vencedora da controvérsia com o Império mais desejosa ainda de definirse como ordenamento jurídico de produzir um direito não mais ofuscado na teologia como aquele que no início servira de maneira notável à luta contra os heréticos de produzir um direito com a mesma qualidade técnica do direito civil e portanto dotado de força expansiva em toda a sociedade de produzir orientar e condicionar um valioso instrumento de controle da vida social de outro lado um renovado fortalecimento cultural que já é patrimônio difuso uma reflexão jurídica que não é mais uma manifestação imprecisa de empiristas mas análise científica racional rigorosa solidamente fundada59 Em 1140 Graciano elaborou o Concordia Discordantium Canonum mais conhecido como o Decreto Tratavase de uma coleção canônica de sistematização orgânica com mais de 3800 textos os quais contavam com seus comentários pessoais60 A partir do método escolástico Graciano organizou hierarquizou e expressou os princípios para eliminação de antinomias utilizandose de quatro critérios a ratione significationis b ratione temporis c ratione loci d ratione dispensationis61 Tal obra revolucionou a Igreja e fez sucesso na Europa pois consistiu na primeira obra semelhante ao Corpus iuris a contemplar todo o direito canônico além de ter servido como arma para a política teocrática do Pontificado romano62 Sobre esse uso dos doctores explica Rogério Dultra dos Santos A Igreja passou a monopolizar a produção intelectual jurídica na idade feudal Definese a função dogmática dos doutores universitários doutores não pelo conhecimento mas pela autorização divina de revelar ou melhor de dizer a verdade da lei legitimando o discurso oficial do papa e da Igreja de forma extremamente regrada Tal legitimação deve assim ser percebida como fundamentação teórica para um eficaz e real exercício de dominação e submissão levado a cabo pela Igreja na Idade Média mais que revelar a verdade o que o jurista canônico externa é a vontade política do poder eclesiástico em fazer valer os seus comandos63 59 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 249 60 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 250 61 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 79 62 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 251252 63 SANTOS Rogério Dultra dos A institucionalização da dogmática jurídicocanônica medieval In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 234 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 297 Posteriormente surgiram as decretais consistentes em decisões do Pontífice que tinham por objeto notadamente a aequitas que se tornou princípio geral e fonte formal do direito64 Segundo Lopes eram vereditos ou decisões de casos concretos ou de consultas que se tornavam normas gerais65 Após as Decretais de Gregório IX que elaborou um compilado de tudo que havia sido produzido em direito canônico desde Graciano houve uma constante burocratização da Igreja com divisão de competências e de jurisdição e limitações do objeto do poder Nesse contexto houve uma racionalização do processo civil canônico que passou a contar com as seguintes novidades a introdução da escrita e perda da oralidade e imediatidade da investigação b notário como oficial do tribunal c divisão clara das fases processuais d surgimento do advogado e abolição das provas irracionais em 1215 f inserção da ideia de que a investigação visa ao convencimento judicial g introdução dos princípios de aceitabilidade das provas probabilidade relevância e materialidade h poderes investigatórios do juiz i sistema da prova legal juiz é obrigado a valorar a prova de acordo com a lei66 Quanto à sentença e à coisa julgada no direito canônico em artigo que tem por objeto a análise dos efeitos da sentença canônica e dos institutos que podem ser compatibilizados com o processo civil atual Eduardo Talamini explica que foi apenas com a estabilização do direito canônico por meio do Decretum que houve a diferenciação entre sentença e coisa julgada no direito canônico 64 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 261 65 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p 80 66 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p8790 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 298 Portanto foi depois da estabilização do direito canônico com o Decretum que se veio a esboçar o princípio da permanente possibilidade de determinadas causas serem revistas Coube aos glosadores do Decretum às decretais de Papas posteriores e às obras de outros doutrinadores essa tarefa Foi então que se formulou o conceito de transitus in rem iudicatam trânsito em julgado passagem em julgado É que até esse momento res iudicata era noção que se identificava com a da própria sentença ou quando menos com o efeito essencial de qualquer sentença No instante em que se começaram a conceber sentenças que não eram imutáveis já não era mais possível a identificação entre as duas categorias Daí a distinção entre a sentença considerada em si mesma e a passagem em julgado consistente na condição de irrevogabilidade que não precisa estar presente em todas as sentenças Eis uma das principiais contribuições do processo canônico para o instituto da coisa julgada Com a distinção reconheciase a existência de um momento formal em que a sentença adquire a força de coisa julgada momento esse que não se identifica necessariamente com o do surgimento da própria sentença Mais do que isso estabeleciase que nem toda sentença definitiva precisaria revestirse dessa eficácia O conceito de trânsito em coisa julgada foi rapidamente assimilado pelos juristas do ius civile67 Segundo o autor o direito canônico trouxe várias contribuições ao direito processual civil dentre eles a querela nullitatis ação que visa à declaração de nulidade da sentença e cujas hipóteses de cabimento foram consideravelmente ampliadas pelo direito canônico68 Frisese que a inquisição medieval foi uma exceção a esse cenário positivo do processo canônico Instituída para combater as heresias69 crescentes durante os séculos XII e XIII a inquisição consistiu em um tribunal de exceção no qual o inquisidor munido de um mandado especial de Roma sobrepujava o poder local do bispo e realizava julgamentos sem observar o contraditório70 Dentre outros fatores a ocorrência da inquisição foi facilitada pela influência da Igreja sobre o Estado Em uma época em que o poder da Igreja estava de tal forma imbricado ao poder do Estado confundindose com este em alguns casos todas as rebeliões e manifestações políticas assumiam caráter religioso e eram combatidas por um sistema de repressão especificamente montado com o objetivo de justificar a existência da própria instituição eclesiástica Por outro lado a Inquisição espanhola foi citada como um exemplo claro na perseguição de adversários políticos ameaçadores do seu poder e de sua riqueza71 67 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 p 28 68 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 p 28 69 O termo heresia englobava qualquer atividade ou manifestação contrária ao que havia sido definido pela Igreja em matéria de fé Dessa forma na qualificação de hereges encontravamse os mouros os judeus os cátaros e albigenses no sul da França bem como os supostos praticantes de bruxaria NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 235 70 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 p9193 71 NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 p 246 Viviane Lemes da Rosa William Soares Pugliese Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 299 O esforço da Igreja em constituir um ordenamento normativo encerrouse com as Clementinae72 sendo que a fonte do direito canônico até 1917 foi o Corpus Iuris Canonici um aglomerado de fontes oficiais e extraoficiais73 4 CONCLUSÕES A Idade Média nasceu com a queda do Império Romano no século IV À época havia uma ausência estatal que permitiu a aquisição de grande poder pela Igreja Romana entre outras instituições e as suas ingerências no campo jurídico estatal e da vida social em geral Havia um sistema jurídico pluralista e hierarquizado formado pelo direito comum basicamente consuetudinário e romano pelo direito canônico e pelo direito dos povos O soberano era Deus representado na terra pelos príncipes que eram responsáveis pela interpretação das normas fornecidas pelo mundo fático Com as graduais evoluções da vida em sociedade o direito passou por uma transformação notadamente no fim do século XI com a utilização da ciência e dos juristas para a organização e sistematização do conhecimento jurídico O direito canônico também foi revolucionado com o passar do tempo caracterizandose pela burocratização e flexibilização das normas O direito passou a contar com alguns apanhados de normas como o Corpus Iuris de origem romana o Decreto de Graciano as Decretais de Gregório IX e o Corpus Iuris Canonici estes últimos de natureza canônica e com a participação ativa dos juristas glosadores e comentadores na interpretação do direito A partir do século XII a Igreja passou pelo período da inquisição em que lutava contra a gradual perda de poder através da punição severa de supostas heresias A Idade Média teve seu fim sem que tal panorama fosse alterado deixando como legado para a Idade Moderna a confiança na razão humana proveniente de São Tomás de Aquino e o nominalismo de Guilherme de Ockham que deram origem respectivamente à laicidade e ao individualismo da época moderna74 72 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 256 73 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 p 257 74 VILLEY Michel A formação do pensamento jurídico moderno São Paulo Martins Fontes p 180 Estado Direito e Religião na Europa Medieval Revista Brasileira de História do Direito eISSN 25259636 Brasília v 2 n 1 p 284 300 JanJun 2016 300 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA Pietro Soberania representação democracia ensaios de história do pensamento jurídico Curitiba Juruá 2010 GROSSI Paolo A ordem jurídica medieval São Paulo Martins Fontes 2014 HESPANHA António Manuel Cultura jurídica europeia síntese de um milênio Florianópolis Fundação Boiteux 2005 História das instituições épocas medieval e moderna Coimbra Almedina 2004 Os juristas como couteiros a ordem na Europa ocidental dos inícios da idade moderna Análise Social vol XXXVI 161 2001 p 11831208 LOPES José Reinaldo de Lima O direito na história lições introdutórias 3 ed São Paulo Atlas 2008 MARTINS Argemiro Cardoso Moreira O direito romano e seu ressurgimento no final da Idade Média In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4ª ed Belo Horizonte Del Rey 2007 NASPOLINI Samyra Haydêe Aspectos históricos políticos e legais da inquisição In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 SANTOS Rogério Dultra dos A institucionalização da dogmática jurídicocanônica medieval In Fundamentos da história do direito WOLKMER Antonio Carlos organizador 4 ed Belo Horizonte Del Rey 2007 TALAMINI Eduardo Eficácia e autoridade da sentença canônica Revista de Processo vol 107 p 2453 Jul2002 VILLEY Michel A formação do pensamento jurídico moderno São Paulo Martins Fontes 2005