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História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR A RECEPÇÃO DO DIREITO ROMANO NO OCIDENTE EUROPEU MEDIEVAL PORTUGAL UM CASO DE AFIRMAÇÃO RÉGIA Reception of Roman law in Medieval European West Portugal a case of royal assertion Fátima Regina Fernandes RESUMO O nosso estudo está voltado especificamente para a compreensão do fenômeno de ressurgimento dos estudos de Direito Romano na Europa do século XII as vias de penetração no reino português e a sua utilização como fonte de afirmação do poder real Afonso III é o monarca que dá início a esse processo em Portugal daí centrarmos nossa análise no seu governo o qual serve de paradigma de análise de outros tantos processos similares nas outras monarquias européias Palavraschave direito romano centralização régia monarquias medievais ABSTRACT Our study aims specifically at understanding the phenomenon of the resurgence of Roman Law studies in 12thcentury Europe its paths of penetration in the Portuguese kingdom and its use as a source of assertion of the royal power Being Afonso III the monarch who begins this process in Portugal our study will focus its analysis on his government which will serve as a paradigm for analyzing so many similar processes in other European monarchies Keywords Roman law royal centralization medieval monarchies O nosso estudo está voltado especificamente para a compreensão do fenômeno de ressurgimento dos estudos de Direito Romano na Europa do século XII as vias de penetração no reino português e a sua utilização como fonte de afirmação do poder real Afonso III é o monarca que dá início a esse Doutora em História Medieval pela Universidade do Porto Professora Adjunto IV de História Medieval da UFPR Pesquisadora CNPq FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 74 processo em Portugal daí centrarmos nossa análise no seu reinado o qual serve de paradigma de análise de outros tantos processos similares em outras monarquias européias Mas para compreendermos esse fenômeno tornase necessário fazer uma contextualização dele e para isso teremos de recuar no tempo até o século XI É nesse século que se dá o primeiro grande embate entre os poderes ditos universais1 o Papado e o Sacro Império Romano Germânico de onde sairão os novos critérios que regerão as relações entre o Monarca e a Igreja2 O Papa Gregório VII em 1075 ao emitir os princípios de autonomia da Igreja frente ao poder laico e sua interferência tutelar sobre o mundo temporal acaba por delimitar a esfera de ação desse mesmo poder laico Nas palavras de Joseph Strayer a concepção gregoriana de Igreja quase reclamava a invenção do conceito de Estado3 A este a seus líderes restavam duas áreas de atuação livres da influência eclesiástica a justiça e as finanças4 Assim os reinos ficam sob a tutela da Igreja em várias áreas menos naquelas relativas à sua própria estrutura administrativa interna Aos poucos começam a enunciarse limites de atuação entre os poderes espiritual e temporal5 Fixamse assim no panorama político medieval três forças distintas e interatuantes o Papado Sacerdotium o Império Imperium e os Reinos Regna6 A disputa pela hegemonia de poder entre as duas primeiras chegará ao século seguinte século XII num plano já não simplesmente político mas também cultural Observase então o fenômeno de renascimento do Direito Romano como Direito do Império no Ocidente europeu Renascimento não no sentido de que anteriormente se tenha perdido o conhecimento do Direito Romano mesmo porque fora a própria Igreja quem até então o preservara mas no sentido de reencontro do Direito Romano por meio do estudo independente dos genuínos textos justinianeus7 Esse renascimento parte da Escola de Bolonha defensora do partido dos imperiais que formará uma plêiade de juristas glosadores e comentadores 1 MITRE Emílio Introducción a la historia de la Edad Media Europea 3 ed Madrid Istmo 1986 p183 2 COING Helmut Las tareas del historiador del derecho reflexiones metodologicas Sevilha Publicaciones de la Universidad de Sevilha 1977 p 54 3 STRAYER Joseph As origens medievais do Estado Moderno Lisboa Gradiva sd p 39 4 Ibid p 53 5 FÉDOU Réné LÉtat au Moyen Âge Paris PUF 1971 p 62 ULLMANN Walter Historia del pensamiento político en la Edad Media Barcelona Ariel 1983 p 134 OAKLEY Francis Los siglos decisivos La experiencia medieval Madrid Alianza 1980 p 152 6 SILVA Nuno J Espinosa Gomes da História do direito português fontes de direito Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1985 p 130 7 Ibid p 141142 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 75 dos textos justinianeus Os imperiais armamse de legistas capazes não só de ler mas também interpretar a essência de princípios que foram constituídos numa época bem distante e para uso de jurisconsultos romanos8 Defendendo e recuperando a ordem jurídica do Império Romano os imperiais do século XII afirmavamse frente ao Papado E por que se afirmavam Para compreender isso é preciso penetrar no espírito que perpassa a obra justiniana As três grandes compilações de Justiniano9 528534 que darão origem no início do século XII ao Corpus Iuris Civilis além da função de organização jurídicolegislativa que buscaram promover tiveram o cuidado de absterse de preservar e aplicar os princípios republicanos acentuando a figura do governante como Princeps cuja vontade é lei aquele que tem a Plenitudo Potestatis10 A Igreja percebe o peso do trunfo de seus adversários e como hábil estrategista faz a definitiva adoção do Direito Romano Justinianeu ao seu Direito Canônico O Direito Romano será seu Direito em matéria temporal corrige e esclarece o Direito Canônico Aquele deve ser aplicado sempre que não contrarie este Junção perfeita para uma instituição que tem poderíamos dizer um pé na Cidade de Deus e outro na Cidade dos Homens Formase assim um só Direito o Direito Comum o Utrumque Ius11 composto dessa junção do Direito Romano Justinianeu ao Direito Canônico ambos aprovados pela Igreja Vemos assim que no panorama internacional as duas grandes forças políticas Império e Papado travam uma luta no plano jurídico O Império é cada vez mais fragmentado internamente e até sua base de justificação de supremacia seu Direito é incorporado pelo Papado Este já no século XIII parece dominar a situação É natural portanto que a terceira grande força política em formação os Reinos busque o apoio do Papado pelo menos no início servindo como partidários deste Portugal não foge à regra e tornase desde a sua formação política independente um dos súditos mais fiéis dos Papas12 8 GIBERT Rafael Elementos formativos del derecho en Europa germanico romano canonico Madrid Manuel Huerta 1982 p 7475 e 809 SILVA opcit p 143146 CAETANO Marcelo História do direito português Fontes Direito Público 11401495 2 ed Lisboa Verbo 1985 p 337 9 Código 12 livros leis ou constituições imperiais Digesto ou Pandectas 50 livros repositório da doutrina dos jurisconsultos e Institutastexto para ensino escolar GIBERT opcit p61 4 10 MITRE op cit p 184 11 SILVA op cit p 155 CAETANO op cit p 338 12 HERCULANO Alexandre História de Portugal desde o começo da monarquia até ao fim do reinado de D Afonso III com prefácio e notas críticas de José MATTOSO Lisboa Bertrand t II 1980 1 p 45563 CAETANO op cit p 203206 SILVA op cit p 103105 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 76 Ora como todo partidário o reino português só fará uso das normas e estruturas jurídicas aprovadas pela Igreja poderá portanto no século XIII utilizarse livremente do Direito Romano na organização interna do reino Essa utilização será bastante proveitosa pois como vimos anteriormente em relação à Justiça e às Finanças que os monarcas têm autonomia decisória e para promover a organização dos seus reinos nesses dois campos tornase imprescindível o conhecimento do corpo jurídicolegislativo do Direito Romano Além disso há outro interesse nessa adoção do Direito Romano no reino português e em seus congêneres europeus o de afirmação política dos seus monarcas Em Portugal esse fenômeno tem grande impulso no reinado de Afonso III 12451279 na segunda metade do século XIII Ele saberá utilizarse dos princípios centralizadores contidos nessa obra reforçando a figura do rei legislador da concepção de que os Reges no plano jurídicopolítico dentro do seu reino são Imperatores13 Vemos assim que além do indispensável subsídio para a organização interna do reino português o Direito Romano Justinianeu é difusor de uma atraente concepção de governante aos monarcas em vias de afirmação como Afonso III É um Direito duplamente bemvindo e este monarca português saberá utilizálo muito proveitosamente Os especialistas em História do Direito são unânimes em considerar o reinado de Afonso III como o de início do período de recepção do Direito Comum e portanto do Direito Romano Justinianeu em Portugal14 E isso porque é a partir desse monarca que a Justiça começa a constituirse em Portugal como instituição com órgãos competentes com princípios e formas de execução jurídica iniciando um processo de sistematização das normas de funcionamento do aparelho burocráticoadministrativo As condições que tornam possível a ascensão de Afonso III ao trono português contribuem para isso daí o interesse de apresentarmos a crise de 1245 gerada pela deposição de Sancho II rei até então legítimo pela iniciativa do Papa Inocêncio IV durante o Concílio de Lyon realizado naquele mesmo ano e sua substituição por seu irmão Afonso Conde de Bolonha futuro Afonso III Os anos que antecedem o de 1245 são marcados por uma total ausência de ação governativa do monarca vigente Sancho II Apesar de este ter levado a fronteira dos territórios portugueses perante os muçulmanos até quase o Algarve sua preocupação administrativa é bastante fraca denunciando uma 13 MOUSNIER Roland La monarquia absoluta en Europa del siglo V a nuestros dias Madrid Taurus 1986 p5051 ULLMANN op cit p 148 14 CAETANO op cit p 339 SILVA op cit p 158 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 77 prioridade de expansão militar territorial em detrimento da centralização administrativa Além disso observase em Portugal desde o século XI como no resto do Ocidente europeu um crescimento demográfico e uma melhoria geral das condições climáticas e das técnicas de produção agrícola que vão afetar sobretudo a nobreza Seus descendentes cujas propriedades encontramse concentradas no norte começam a dispor cada vez de menos territórios sob seu domínio direto pois as famílias crescem demasiadamente e o sistema de sucessão cognática permite a partilha das heranças entre todos os filhos A fim de alterar essa situação aos poucos e de uma forma natural as famílias nobres vão adotando o sistema linhagista que privilegia o varão mais velho em detrimento dos filhossegundos Teoricamente o balanço entre o crescimento demográfico e os recursos econômicos do reino estavam restabelecidos no entanto os secundogênitos que se encontravam numa posição desfavorável transformamse num fator de agitação política e social buscando na usurpação de bens e direitos os recursos que lhes são negados na herança15 Portanto gerase uma crise social uma desestruturação da nobreza concentrada no norte do reino que contrasta com o centro e o sul regiões de autonomia de liberdade de constante perigo e escassa densidade demográfica A anarquia social gerada pela interação destes dois fatores o desgoverno e a cisão interna da nobreza caracterizase por lutas dos nobres entre si lutas entre os nobres e as igrejas e mosteiros de quem os filhos segundos usurpam direitos e bens abusos de poder e violências dos nobres contra os vilãos em senhorios e tenências além do puro banditismo Enfim uma situação pintada em cores negras principalmente na bula papal Inter alia Desiderabilia emitida pelo Papa Inocêncio IV em março de 1245 exigindo do rei Sancho II uma posição de contenção das agitações Afinal o monarca é teoricamente o garante da paz e estabilidade do seu reino16 É aí que se define o seu caráter de Utilitas Publica Essa bula é portanto uma ameaça ao rei se não cessarem as agressões e ameaças aos interesses e representantes do Papado será retirada do rei a sua legitimação seus súditos estarão desligados do seu compromisso de fidelidade 15 GENICOT Leopold Le XIII siécle européen Paris PUF 1968 DUBY Georges Hombres y estructuras de la Edad Media Madrid Siglo XXI 1977 MATTOSO José Estrututras familiares e estratégias de poder História e Crítica Lisboa n 12 1985 p 4853 Ricoshomens infanções e cavaleiros Lisboa Guimarães 1985 A nobreza medieval portuguesa Lisboa Estampa 1987 16 RIBEIRO Ângelo A revolução do Bolonhês In PERES Damião Org História de Portu gal ed Monumental Barcelos Portucalense 1929 v 2 VASCONCELOS Carolina Michaellis de Em volta de Sancho II Lusitânia Lisboa n 2 1924 p 725 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 78 Enquanto as negociações transcorrem em Roma uma comitiva de nobres e clérigos portugueses vai procurar Afonso que vivia em Paris na Corte de seu primo Luís IX a fim de oferecerlhe a possibilidade de assumir o trono em troca do juramento de fidelidade aos interesses do clero e da nobreza e da manutenção de seus privilégios e imunidades Esse é o chamado Juramento de Paris compromisso aceito pelo próprio Infante Afonso Assim no Concílio de Lyon de julho de 1245 Inocêncio IV excomunga e destitui Sancho II do trono português por meio da bula Grandi Non Immerito sob a acusação de Rex Inutilis confiando interinamente a administração do reino ao Infante Afonso Conde de Bolonha e irmão de Sancho17 Após a deposição de Sancho quase a totalidade dos grupos privilegiados do reino já apóiam Afonso A justificativa de apoio era o desligamento do juramento de fidelidade ao antigo rei que acarretava a deposição e excomunhão papal Poucos castelos ainda defendem Sancho II o qual em 1247 abandona o reino indo para Toledo onde um ano mais tarde virá a morrer É nesse momento que se dá um verdadeiro contragolpe por iniciativa do novo monarca Afonso III reconhecido como tal em 1248 Ao contrário do que prometera em Paris o monarca assume o propósito de afirmarse perante a nobreza tradicional pela montagem de um aparelho burocráticoadministrativo e pela captação do apoio dos elementos desprezados pela estrutura linhagística O monarca tornase assim um elemento dinâmico da sua realidade agitada por uma crise que nada mais é que uma crise de crescimento uma crise que gera a mudança apesar de sua motivação inicialmente reacionária Afonso III aproveitase de um momento de cisão interna e conseqüente enfraquecimento da nobreza e apóiase nos filhossegundos dessa fidalguia oferecendolhes importantes cargos na Corte assim como o controle de castelos nas regiões do centro e sul do reino regiões despovoadas e carentes de administração territórios não dominados pela nobreza tradicional onde multiplicamse os Concelhos cujos forais são concedidos pelos monarcas Assim Afonso III promove uma ação libertadora das regiões de hegemonia nobre não só para os filhossegundos como para a burguesia e o povo Promovese assim um novo enquadramento das forças sociopolíticas que é acompanhado por uma transferência do centro da base econômicopolítica do poder do norte para essas regiões periféricas Estas em breve encontrarse 17 SOUSA António Caetano de et al Provas da história genealógica da Casa Real Portugue sa 2 ed Coimbra Imprensa NacionalCasa da Moeda 1985 p 60 4 A partir de 1248 já se apresenta nos documentos usando o título de Rex Portugaliae et Comes Boloniae FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 79 ão perfeitamente adaptadas ao desenvolvimento de uma economia de produção senhorial e comercial bastante rentável ao contrário dos tradicionais e esgotados domínios do norte É dessas regiões que logo provirão os principais ingressos fiscais e direitos cobrados pelo monarca É lá ainda que se fixa preferencialmente sua Corte em Coimbra A pequena nobreza vêse assim atraída pela monarquia que cada vez mais se assume como o distribuidor de bens e influências e árbitro das questões internas do reino Afonso III é mais que um hábil estrategista que sabe aproveitar uma conjuntura favorável para afirmarse é também um homem culto Na trajetória pessoal do rei Afonso III podemos observar que ele estivera em contato com o grande centro onde ocorreu o renascimento dos estudos de Direito Romano na medida em que fora casado com a Condessa de Bolonha18 Além disso foi educado em Paris na Corte de Luís IX onde travou contato com os novos conceitos de poder administração e política Quando assume o poder como Regedor e Defensor em 1245 deparase com um reino totalmente desorganizado por causa da má administração de seu irmão e antecessor Sancho II Diante de uma verdadeira anarquia social na qual forças de turbulência agitam ainda mais um contexto já marcado pela privatização de prerrogativas originariamente régias tornavase fundamental restaurar o equilíbrio entre as forças sociopolíticas do reino Cabe ao rei distribuir justiça e paz entre seus súditos esta é a essência da Utilitas Publica Ele representa o primeiro nível do qual emana a justiça em poucas palavras ele centraliza o poder Centralizar nesse momento consiste em difundir os princípios do Direito Romano por meio da justiça e administração do reino Agora analisaremos de que maneira esses princípios estão presentes na política interna de Afonso III Em primeiro lugar esse é um processo que se vai constituindo a partir da formulação de leis e valoração de costumes Leis que criam soluções para o preenchimento de lacunas deixadas pelo Direito consuetudinário particularmente as Leis Gerais19 as quais teoricamente atingiriam a todos os 18 Em 1227 Afonso III Infante e filhosegundo parte para a Corte de seu primo Luís IX de França sendo que nesta altura o reino francês encontravase ainda sob a regência da rainha D Branca de Castela Esta tia de Afonso arranjalhe o casamento com a Condessa Matilde de Bolonha No entanto depois de assumir o trono português repudia a primeira mulher e consorciase com D Beatriz filha bastarda de Afonso X de Castela numa manobra matrimonial diplomática Apesar disso Afonso III jamais abandonará o título de Conde de Bolonha MATTOSO J Dir História de Portugal a monarquia feudal 10961480 Lisboa Estampa t II1993 p127133 et passim 19 CRUZ Guilherme Braga da História do direito português p187 et passim CAETANO op cit p 344 SILVA op cit p 167 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 80 súditos independentemente de sua condição social Leis que iniciam a promoção de uma uniformização dos direitos das penas e dos processos Leis que regulam as variações do valor da moeda de fixação de preços de produtos e serviços dentre outros20 Todo um conjunto de princípios legais que se encontram coligidos no Livro das leis e posturas21 compilação que contém as leis de Afonso III e seus sucessores até meados do século XIV A emissão de Leis Gerais num período de grande difusão de direitos privilégios foros e costumes marca uma política de vanguarda especialmente se a considerarmos sob o prisma da intenção uniformizadora que lhe está subjacente É óbvio que Afonso III lida ainda com limitações que perpassam a sua obra legislativa Um dos muitos exemplos dessas limitações é o estabelecimento de penalizações variáveis conforme o estatuto social do réu e do autor nos processos denunciando a sobrevivência e validade dos privilégios e imunidades dos grupos privilegiados No entanto ele é o primeiro monarca português a emitir princípios claros de definição de regras e ordenação da Justiça e das formas de relacionamento entre a sociedade e o poder central medidas claramente influenciadas pelas novas fórmulas de inspiração romano canônica do Direito Comum22 Outro elemento da sua política de afirmação a partir dos princípios do Direito Romano é a regulação dos processos de recurso judicial A Corte é apresentada como última instância de recurso23 Quando o rei colocase como última instância de Justiça ele capta para si as expectativas de resolução de questões que até então estavam sob o jugo arbitrário dos juízes locais normalmente parciais nos interesses dos senhores locais que os instituíam O rei consegue assim aguçar a fidelidade dos seus súditos na medida em que entrepõese entre estes e os estratos privilegiados do reino Além disso quando se faz a regulação jurídica dos recursos pressupõese uma prévia hierarquia das funções na Corte a organização de cargos e a definição de funções como 20 FERNANDES Fátima Regina Comentários à legislação medieval portuguesa de Afonso III Curitiba Juruá 2000 21 Compilação sem data precisa segundo as referências dos estudiosos a qual deve ter sido coligida no reinado de D João I por causa do tipo de letra do códice original A transcendência desta obra é reforçada pelo fato de ter servido de pano de fundo para coletâneas futuras como as Ordenações de D Duarte e Afonsinas Utilizamos em nosso trabalho a seguinte edição SILVA Nuno Espinosa Gomes da RODRIGUES Maria Thereza Campos Livro das leis e posturas Lisboa Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 1971 Vide ainda BENTO Manuel Subsídios para a história do direito português Lisboa União Gráfica 1941 p 6667 COSTA Moacyr Lobo da O agravo no direito lusitano Rio de Janeiro Borsoi 1974 p 11 22 COSTA op cit p 21 AZEVEDO Luís Carlos de Origem e introdução da apelação no direito lusitano São Paulo 1976 Dissertação Mestrado em Direito Faculdade de Direito Universidade de São Paulo 1976 p 23 et passim 23 CAETANO op cit p 378 e 401 FERNANDES op cit p142187 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 81 a dos juízes entre juízes inferiores e superiores estes últimos capazes de rever as sentenças interlocutórias emitidas pelos primeiros Implica portanto em todo um processo de sistematização e regularização das funções jurídicas24 O Livro das leis e posturas possui uma espécie de Código Processual que define as formas de efetivação dos recursos judiciais25 E essa fixação escrita é fundamental pois um apelo ou queixa ao rei não pode ser considerado recurso enquanto não for facultado regularmente aos requisitantes segundo um processo com etapas bem definidas26 Títulos que tratam do chamamento à autoria sobre prazos concedidos ao autor e réu critérios de citação à Casa del Rey sobre procuradores advogados e testemunhas formulários de cartas de sentenças interlocutórias e de agravo dentre muitos outros Princípios e fórmulas que seguem uma tendência de sistematização e unicidade da prática jurídica claramente influenciados pelos princípios do Direito Comum e com tal importância que apesar de serem os primeiros do reino português permanecerão com poucas alterações nos reinados posteriores27 Outro reflexo da centralização é a confirmação de direitos um conjunto de documentos emitidos pela Chancelaria régia que confirmam a posse e o uso de bens concedidos pelos monarcas Essas medidas promovem o fortalecimento da Chancelaria régia órgão da administração central responsável pela emissão de diplomas cartas e todo tipo de pronunciamento oficial do monarca e sua Corte onde o chancelermor guarda o selo régio símbolo de poder e autoridade por excelência Neste mesmo sentido se aplicam as Inquirições inquéritos feitos nas regiões de mais antiga dominação do poder senhorial a fim de promover um inventário dos bens e direitos devidos ao rei Isso porque em princípio toda terra é por direito do monarca e sua ocupação e exploração implicam numa concessão explícita dele como pagamento por um serviço prestado um cargo exercido pela fidelidade demonstrada enfim pelo cumprimento do auxilium et consilium que a estrutura feudal cobra do vassalo e de seu senhor Apoiado por um grupo de letrados na sua maioria filhos da pequena nobreza que não dispondo de riqueza conseguem prestígio e poder apoiando 24 Livro das leis e posturas p 400 p 216 p 39 p 9596 p 124126 p 3942 p 4648 p 221 p 144 et passim TORRES Ruy d Abreu Juízes In SERRÃO Joel Dir Dicionário de história de Portu gal Porto Livraria Figueirinhas 1990 v 3 p 416417 CAETANO op cit p 400 FERNANDES op cit p 158162 25 Livro das leis e posturas p 2050 Vide nota 22 e vide ainda MERÊA Paulo Lições de história do direito português Coimbra sn 1933 p 121 26 CAETANO op cit p 400 AZEVEDO op cit p 108109 27 CAETANO op cit p 346347 e p 530 SILVA op cit p 174 COSTA op cit p 9 FERNANDES op cit p 142187 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 82 o rei e passando a integrar a sociedade política com o exercício de cargos públicos Afonso III tenta estabelecer um determinado sistema de valores que tem na lei na escrita e na representação política os seus mais fortes apoios ideológicos Para tanto exige a apresentação de documentos escritos que comprovem a concessão e o usufruto das imunidades e bens dos inquiridos pondo cobro aos abusos e usurpações de poder tão constantes até então apoiados na consagrada prática de transferência oral da tradição Observase assim uma ação disciplinadora dos processos uma crescente importância dos documentos e processos escritos e provas documentais além do aumento de importância dos tabeliães e escrivães que dão fé pública a essas peças processuais28 Podemos dizer portanto que a recepção do Direito Romano em Portugal no século XIII é utilizada como estratégia de centralização régia A organização das finanças estará em perfeito paralelo com essa evolução jurídica na medida em que o aperfeiçoamento de um alimentará o fortalecimento do outro Manteremos o foco na análise da sistematização judicial na medida em que está mais diretamente relacionado com o renascimento dos estudos de Direito Romano Um Direito que permanece desde a Antiguidade Tardia como símbolo de organização institucional e política e que é reaproveitado no século XIII em favor de uma luta de afirmação entre o Papado e o Sacro Império Um Direito que é fruto de uma criação intelectual e cuja interpretação dos juristas de Bolonha reforça sua original tendência centralizadora O reino português ao abrir suas portas à recepção e aplicação do Direito Comum busca organizarse internamente mas Afonso III e seus sucessores saberão conduzir essa organização no sentido da afirmação da sua autoridade O rei como fonte da Lei e da Justiça amparado por um quadro legislativo e jurídico bem organizado é o ideal buscado pelo monarca e o Direito Romano é sem dúvida o instrumento mais adequado à concretização deste ideal A monarquia portuguesa acompanha essa evolução e os reis especialmente após Afonso III afirmamse cada vez mais por meio da lei centralizando a administração penetrando com seus representantes no coração dos centros de poder local e regional senhorios e cidades difundindo uma propaganda régia que se fundamenta na precisão na lei e na justiça Um modelo ideológico que atraía os membros da pequena nobreza a burguesia emergente e o povo em geral 28 Vide KRUS Luís Escrita e poder as inquirições de Afonso III In Estudos Medievais Por to Centro de Estudos Humanísticos Secretaria de Estado da Cultura Delegação Regional do Norte 11981 p 5979 FERNANDES F R A recepção do direito romano no ocidente europeu História Questões Debates Curitiba n 41 p 7383 2004 Editora UFPR 83 Essas reflexões levamnos a compreender a verdadeira transformação promovida pela crise de 1245 que leva à ascensão de Afonso III ao trono de Portugal como ponto de partida de uma reestruturação da sociedade portuguesa que levará ao fortalecimento da monarquia pelo equilíbrio de forças sociopolíticas em favor da lei o princípio da modernização das estruturas políticas que promoverá a inserção do reino português num contexto de construção dos fundamentos de um Estado Moderno