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Relações Internacionais ·

Economia Política

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crítica 217 crítica O antiHerói DesenvOlvimentista Alexandre de Freitas Barbosa raÚL PrEBiScH 19011986 a cONStrUÇÃO Da aMÉrica LatiNa E DO tErcEirO MUNDO de Dosman Edgar Jr Trad Teresa Dias Carneiro e César Benjamin Rio de Janeiro ContrapontoCentro Internacional Celso Furtado 2011 Raúl Prebisch e Ernesto Che Guevara antípodas em quase tudo foram as duas maiores contribuições argentinas para a política internacio nal do século xx A tal ponto se tornaram cidadãos do mundo que o apodo argentino vem apenas como local de origem Mas enquanto Che possui várias biografias figura como símbolo pop e é perseguido por estudiosos em cada uma de suas facetas don Raúl parecia relegado ao esquecimento O leitor latinoamericano tem agora acesso à bela e rigorosa biografia escrita por Edgar Dosman professor de ciência políti ca da Universidade de York no Canadá publicada em inglês em 2009 lançada em espanhol em 2010 e em português em 2011 Sim um autor canadense produziu a obra que nenhum latinoameri cano se dispôs a escrever como forma de erguer trincheiras contra a avalanche livrecambista que tomou a região no último quarto do século xx Prebisch o outsider Prebisch foi o primeiro grande pensador econômico latinoameri cano tendo iluminado as trilhas próprias percorridas por Celso Furta do e Aníbal Pinto formados na escola da cepal e que o superariam em vários aspectos Seu papel foi o de um ousado abridor de caminhos não o de um economista acadêmico Interpretou a realidade argentina e depois latinoamericana porque a conhecia a partir da perspectiva privilegia da de servidor público e de construtor de instituições nacionais Banco Central argentino regionais cepal e ilpes e globais unctad Antidogmático por essência o escrutínio do real lhe permitira romper 12Barbosacritica94p216a229indd 217 121012 514 PM 218 1 Dosman Edgar Jr Raúl Prebisch 19011986 a construção da América Latina e do Terceiro Mundo Rio de Janeiro ContrapontoCentro In ternacional Celso Furtado 2011 p 489 2 Ibid p 246 os diques das teorias consagradas avançando a sua reflexão à medida que propunha novas políticas e instrumentos de ação Economista que possuía tão somente um diploma de contador Prebisch revolucionaria a forma de pensar a economia latinoameri cana e seria o primeiro a cunhar teórica e politicamente a ideia de uma nova ordem econômica internacional1 De livrecambista com res salvas nos anos 1920 se tornaria nos anos 1930 defensor de um papel ativo do Estado na vida social e econômica Nos anos 1940 ainda de maneira solitária e nos anos 1950 e 1960 com maior contundência formularia com rigor teórico os conceitos de centro e periferia desenvolvimento para dentro insuficiência dinâmica ao mesmo tempo que apostava na integração latinoamericana e na alteração das relações de dependência entre os países do Sul e do Norte Ao contrário da versão tão difundida de que fora um conservador um financista e um funcionário próeua Prebisch acionou políti cas anticíclicas nos anos 1930 fez a reforma do imposto de renda na Argentina tornandoo mais progressivo e defendeu a industrializa ção latinoamericana com reforma agrária Se não relutava em negociar com os Estados Unidos no governo argentino durante a cepal e a unctad era porque este país aparecia como a principal e talvez única potência efetiva de sua época por outro lado talvez tenha sido quem mais sofreu na pele o poder do império norteamericano que sempre podou seus esforços por uma distribuição mais justa do poder econômico em escala regional e global Muito do que se escreveu sobre Prebisch em artigos acadêmicos nas revistas da economia convencio nal ou foi publicado na imprensa dos países latinoamericanos pelos novos policymakers dos anos 1980 e 1990 não resiste à pesquisa cui dadosa realizada por Dosman Prebisch era um outsider em todos os aspectos Filho de imi grante alemão nascido em Tucumán longe do brilho de Buenos Aires o funcionário acusado de entreguista na sua terra natal criou uma burocracia econômica com sentimento de dever ao Estado e à nação O poder curvarase a ele não o contrário Depois daria fôlego inusitado às duas instituições rebeldes do sistema internacional cepal e unctad não para estilhaçálo mas na pretensão de corrigilo Dosman procura revelar a personalidade por trás do mito de modo a desmontálo Em vez de autoritário pretensioso e europei zado vemos um homem reservado sem arroubos dedicado ao ser viço público e contemporizador Orgulhavase dos quatrocentos anos de história argentina que correm nas suas veias2 e da tarefa que se impôs numa quadra histórica que permitiu a ascensão de um pensamento latinoamericano original Enfim um antiherói pois jamais posou de mártir 12Barbosacritica94p216a229indd 218 121012 514 PM crítica 219 3 Ibid p 27 O livro nos conta de maneira romanceada a trajetória quixotesca desse homem abnegado movido por uma busca de momentos his tóricos3 mas que encontraria sempre a cada esquina a história ou as artimanhas do poder do qual se aproximara como a única forma de mudar o mundo pregandolhe peças impedindo que a sua missão fosse concluída De derrota em derrota ele mudaria a história da Amé rica Latina embora não no sentido que almejara A construção do estAdo Argentino e o exílio forçAdo O jovem Prebisch chega a Buenos Aires em 1918 aos dezessete anos A capital exibia o fausto da prosperidade econômica gerada pelas exportações de cereais e de carne Os sistemas de ensino de transpor tes e eleitoral estavam anosluz à frente dos demais países da região Parecia uma nova Europa gerada pela pampa humeda Estudaria economia na primeira universidade a criar este curso na região Logo se desanima entretanto com a retórica fastidiosa de seus professores que repetiam os tratados ingleses sem qual quer originalidade Em 1920 antes de se formar já trava debate com Alejandro Bunge o Roberto Simonsen argentino Discorda então o jovem de dezenove anos da industrialização como alterna tiva para o desenvolvimento de seu país Chega a tentar uma filia ção ao Partido Socialista argentino mas desiste depois que um artigo seu contra a volta da Argentina ao padrãoouro rendelhe uma censura por parte de nada menos que Juan Justo o famoso líder socialista Influenciado pela leitura de Vilfredo Pareto decepcionado com a tradição bacharelesca da vida acadêmica avessa à pesquisa empírica e sentindose não contemplado por nenhuma das facções políticas argentinas decide servir ao seu país dotandoo de uma nova elite administrativa Trabalha para a poderosa Sociedade Rural argenti na por duas vezes nos anos 1920 sendo em ambas demitido pela independência dos seus relatórios Como consultor do Ministério da Fazenda visita a Austrália e o Canadá onde percebe as vastas diferen ças com sua terra natal que sofria os efeitos da concentração da pro priedade fundiária e a da lenta modernização do Estado Vira assessor do Ministério da Agricultura e depois se torna diretoradjunto do Departamento Nacional de Estatísticas Em 1927 dá o primeiro salto de sua carreira É nomeado aos 26 anos para o cargo de diretor do Banco de la Nación tornandose res ponsável pelo novo departamento de pesquisas econômicas Procura trazer para o Sul a experiência do fed norteamericano que tanto o impressionara Em 1930 logo após o golpe de Uriburu é convidado para assumir a subsecretaria da Fazenda Prebisch toma então as 12Barbosacritica94p216a229indd 219 121012 514 PM 220 4 Ibid p 121 5 Ibid p 261 rédeas da economia argentina Procura inovar abandonando as teo rias sem serventia num momento de crise A saída do presidente leva à sua queda Faltavam então as bases institucionais para uma gestão econômica eficiente Do contrário pensava teria que depender sempre do beneplácito dos poderosos de ocasião Ao final de 1932 é escolhido como membro da Comissão Preparatória da Conferência Econômica Mundial da Liga das Nações É então que percebe a irrelevância dos países periféricos tratavase de uma briga de cachorro grande No início do ano seguinte é convo cado para fazer parte das negociações do famigerado Pacto RocaRun ciman quando a Argentina é forçada a aceitar as concessões exigidas pelos ingleses Estava morta a teoria neoclássica e junto com ela o multilateralismo É então que lê entusiasmado na Inglaterra o artigo Road to prosperity de Keynes Na volta à Argentina a sorte ou a mudança na administração lhe presenteia com a dupla assessoria dos ministérios da Fazenda e da Agricultura acumulando tais cargos com o que ainda ocupava no Banco de la Nación Formula o Plano de Recuperação Econômica que tira a Argentina da crise antes dos países industrializados Acusado de participar de um governo autoritário Prebisch aproveita as brechas do poder para modernizar o Estado Acreditase um economista nacio nalista e profissional que escolhera participar em vez de ficar de fora4 No íntimo percebe a mediocridade dos militares e das elites tradicio nais que dão sustentação aos governos da Concordancia O próximo salto se daria quando assume o cargo de gerentegeral do Banco Central argentino criado em 1935 Ele e seu cartel de cére bros implantam um novo estilo de gestão na máquina pública carac terizado pela sobriedade dedicação abnegada e capacidade técnica Prebisch redige de próprio punho os relatórios anuais da instituição O Banco Central exerce o papel de garantidor da estabilidade ao mesmo tempo em que apoia a expansão econômica modulando os ciclos Em 1940 Prebisch elabora o Plan Pinedo não aprovado em virtude da crescente oposição ao governo enfraquecido e sem base de susten tação Procura reduzir a dependência da Inglaterra aproximandose dos Estados Unidos para quem quer vender produtos industriali zados e da América do Sul Em 1943 é demitido com a ascensão de Perón à estrutura de poder Passa a sofrer vigilância policial e tem que fugir para Mar del Plata Tem seu salário suspenso o que faz com que volte a ministrar aulas na Faculdade de Ciências Econômicas Entretanto convites não lhe faltam Assessora o Banco Central mexicano e os governos da Venezuela Paraguai República Dominica na e Guatemala dentre outros Rejeita todos os convites para ensinar em universidades norteamericanas Preparase para voltar ao gover no na expectativa de que o peronismo acabaria um dia5 12Barbosacritica94p216a229indd 220 121012 514 PM crítica 221 O homem que ditara os rumos da economia argentina por quin ze anos entra em depressão o que faz com que se lance numa ten tativa árdua de processar teoricamente a sua experiência Não con segue publicar o que escreve à exceção de Introducción a Keynes de 1947 lançado pela Fondo de Cultura Económica apesar da recepção que seu trabalho tem nos Estados Unidos e na América Latina inclusive no Brasil onde tem em Eugenio Gudin um grande admirador embora este conhecesse tão somente o gerente financei ro O teórico iconoclasta estava àquela altura ainda lapidando seu novo sistema de ideias A cePAl e A invenção dA AméricA lAtinA Pouca gente sabe que ao fim de 1948 Prebisch parte para Washington para assumir o cargo de assessor do diretorgeral do fmi E que graças às vicissitudes da política norteamericana bem como à oposição dos governos brasileiro e argentino lhe sobra como última opção a de consultor da cepal recémcriada e que ele imaginara como uma instituição de fachada Deparase desde logo com o desafio de tornála efetiva a depender dos Estados Unidos a cepal nasceria moribunda Santiago era a última opção para o obstinado construtor de ins tituições econômicas Tinha um desafio elaborar em três meses o documento Investigación Económica de América Latina para a sessão da cepal a se realizar em maio de 1949 em Havana Além de tecer um panorama geral da região deveria oferecer uma direção para a ins tituição que contava com a oposição cerrada dos Estados Unidos que pareciam determinados a extinguila em 1951 Com uma equipe pequena enfrentando o ceticismo dos norteamericanos do Banco Mundial e do fmi e contando apenas com algum apoio da onu o documento é elaborado Mas Prebisch queria também apresentar algo menos técnico que refletisse o seu acúmulo teórico nos tempos de exílio do governo argen tino já em 1945 os conceitos centro e periferia aparecem nos seus textos e correspondências e apontasse para uma nova estratégia de desenvolvimento na região Algo que juntasse teoria política e utopia A primeira versão do que viria a ser o manifesto latinoamerica no de abril de 1949 era bastante rebuscada Celso Furtado já então na cepal a lera tendo achado o texto muito acadêmico e defensivo Prebisch também insatisfeito reescreveo completamente em três dias e três noites tornandoo mais acessível Introduzia assim um novo vocabulário no debate sobre desenvolvimento em escala inter nacional partindo da especificidade latinoamericana E o diagnós tico convidava à ação 12Barbosacritica94p216a229indd 221 121012 514 PM 222 6 Ibid p 285 7 Cardoso F H As ideias e seu lugar ensaios sobre as teorias do desen volvimento Petrópolis Vozes 1993 pp 29 59 704 Nesse texto dialo gando com os conceitos de Roberto Schwarz o sociólogo aponta para a originalidade da cópia cepalina A apresentação em Havana foi acontecimento inesquecível para os que ali estavam O documento recebeu o apoio dos governos lati noamericanos e foi recebido com frieza pela delegação de baixo per fil do governo norteamericano Acadêmicos do mainstream da época como o professor Jacob Viner de Princeton sentiram calafrios O documento continha no seu entender fantasias desvairadas con jecturas históricas distorcidas e hipóteses simplistas6 Não era para menos o texto batia de frente com a ortodoxia das vantagens com parativas Ainda pior para os seus detratores não era comunista nem protecionista Defendia o comércio apostava na industrialização sem menosprezo pela agricultura e propugnava uma ação reformadora e inteligente do Estado Inventavase assim a América Latina uma região com especificida de histórica decorrente da sua inserção no sistema internacional mas agora dotada de ferramentas de reflexão próprias e de um conjunto de novos instrumentos de política econômica adequados à sua realida de Ao voltarse sobre si mesma a América Latina oferecia uma nova interpretação sobre o universal O véu que protegia o mundo ociden tal era descoberto pelo olhar periférico As ideias encontravam nesta quadra histórica o seu lugar7 Para Prebisch não se tratava de separar a periferia do centro ou de negar os aportes científicos da teoria econô mica o próprio manifesto não continha uma teoria acabada antes prometia mais pesquisa e reflexão mas de destacar a dinâmica e estrutura da desigualdade global Diferenciavase inclusive do mar xismo dominante refutando as análises acerca do imperialismo como simples manifestação do capitalismo monopolista De regresso ao Chile Prebisch possuía agora um novo cartel de cérebros que contava com economistas de vários países da região e formações teóricas bem diversas como Celso Furtado o cubano Regi no Boti o mexicano Juan Noyola que chegaria apenas em 1951 e o chileno Jorge Ahumada Este último de Harvard chefiava a Divisão de Treinamento enquanto Furtado ficara com a de Desenvolvimento chamada de divisão vermelha A ameaça contínua à própria existência da cepal criava um vín culo especial entre os seus combatentes Prebisch estimulava o debate entre os quadros exigindolhes maior rigor na exposição dos argumentos Chamava para si a responsabilidade política e dava autonomia para os seus jovens tocarem o barco inclusive resistindo às perseguições ideológicas durante a maré montante do macartismo norteamericano A segunda grande batalha foi a Conferência do México de 1951 A cepal passava agora a ter um mandato por tempo indeterminado com plena independência e novas funções além da produção de rela tórios de pesquisa Na sua nova fase a organização latinoamericana 12Barbosacritica94p216a229indd 222 121012 514 PM crítica 223 atuaria como centro de treinamento para quadros governamentais da região e de assistência técnica para as políticas de desenvolvi mento de cada país As expectativas eram elevadas A cepal assumia o papel de usina de ideias para a América Latina Aproveitando o cenário positivo Pre bisch secretárioexecutivo da cepal desde 1950 amplia e reestrutu ra a equipe da organização que contaria ao final de 1953 com um corpo técnico de 130 funcionários em regime de tempo integral É quando clama por cooperação internacional reforço do planejamento econô mico estabilidade de preços para as exportações de matériasprimas necessidade de um banco regional de desenvolvimento mudança tri butária e reforma agrária Entretanto na segunda metade dos anos 1950 Prebisch vê o seu raio de manobra se estreitar O cenário internacional não é favorável A instituição agora consolidada está atolada de projetos A reflexão teó rica fica em segundo plano contra os anseios de Furtado e Noyola que passam inclusive a se ressentir da visão mais ortodoxa de Prebisch que vira uma espécie de representante político de alto nível priorizan do as relações com os governos da região Na sua nova fase a cepal concentrase na defesa da integração latinoamericana Seria a solução para a expansão do comércio e para o prosseguimento da industrialização rumo aos setores intensivos em capital nos países maiores e abrindo novas possibilidades de especialização para os menores Mas o projeto de mercado comum transformase na proposta tímida da alalc lançada em 1960 Os Estados Unidos recusam qualquer perspectiva de colaboração mais ativa com a região O quadro aparentemente mudaria com a Revolução Cubana e a eleição de Kennedy Em março de 1961 os Estados Unidos lançam de maneira retumbante a Aliança para o Progresso com a presença acla mada de Prebisch seu arquiteto intelectual O Império assimila todo o vocabulário cepalino e o oferece de volta para a região capitalismo pro gressista reformas estruturais cooperação para o desenvolvimento Prebisch sentese desnorteado Desconfia da adesão dos governos da região às reformas fiscal e agrária e do compromisso estaduni dense com o desenvolvimento A liberação de recursos da Aliança para o Progresso deveria estar subordinada no seu entender a uma comis são de sete especialistas com a responsabilidade de aprovar os planos nacionais A comissão de sete transformase no painel dos nove de perfil apenas consultivo facilitando a vida dos governos latinoame ricanos e dos Estados Unidos que poderiam distribuir os recursos de acordo com suas prioridades políticas Nosso antiherói entrega os pontos O triunfo dos Estados Unidos na guerra dos mísseis joga a penúltima pá de cal justamente no momento em que a ala econômica 12Barbosacritica94p216a229indd 223 121012 514 PM 224 mais conservadora do governo Kennedy assume a dianteira A última seria o desembarque das ditaduras militares no Cone Sul Prebisch volta a Santiago em 1962 e enquanto espera a transição na secretariaexecutiva cria com apoio do Fundo Especial da onu e do bid o ilpes Instituto LatinoAmericano de Planejamento Eco nômico e Social Quer voltar à reflexão teórica deixando à cepal o trabalho mais aplicado o desPertAr do terceiro mundo Se os ventos cepalinos se haviam abrandado na América Latina eles voltariam a soprar pelos mares revoltos do Terceiro Mundo com a descolonização africana e asiática Na Conferência do Cairo de 1962 com a participação de 36 países não alinhados Prebisch percebe que um novo mundo podia emergir ou seja que as ideias cepalinas podiam ser globalizadas O G77 seria criado naquele ano com a aprova ção na Assembleia Geral da onu da realização da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento a futura unctad em 1964 Prebisch com seu prestígio junto aos países do Terceiro Mundo assume o cargo de secretáriogeral até a conferência A oposição dos países desen volvidos especialmente dos Estados Unidos mostravase forte E o gatt composto majoritariamente pelo clube dos ricos não queria concorrente Trabalhando em Nova York Prebisch organizaria mais uma vez uma equipe só de craques provenientes de todas as partes do mundo para viabilizar o maior evento internacional da história das Nações Unidas até o momento Diferentemente de hoje quando dispomos de voos diretos para a Europa de todas as partes acesso a internet e blackberries os repre sentantes dos 119 países ficariam isolados em Genebra durante três meses Tratavase de uma nova aventura para Prebisch o mesmo script da cepal mas em escala ampliada O documento por ele produzido lançava o conceito de desequilíbrio comercial Se este se mantivesse entre países do Norte e do Sul fluxos financeiros equivalentes a US 20 bilhões anuais teriam que ser acionados pelos primeiros para man ter as contas externas dos últimos em ordem caso estes lograssem um ritmo de crescimento anual de 5 A solução seria uma nova ordem econômica internacional que estabilizasse os preços dos produtos primários criasse um sistema de preferências para os manufaturados dos países do Sul e ampliasse o financiamento para o desenvolvimento O burocrata global viajaria o mundo inteiro antes da unctad I desembarcando em várias capitais do mundo rico e pobre para apresentar seu novo evangelho Prebisch seria aplaudido de pé após seu discurso inaugural em Genebra Nele afirmara que a cooperação internacional não poderia 12Barbosacritica94p216a229indd 224 121012 514 PM crítica 225 8 Ver a reedição dos mesmos con flitos na recente unctad xiii rea lizada na cidade de Doha em 2012 unctad expõe racha entre ricos e emergentes Valor Econômico 27 28 e 29 de abril de 2012 p A13 9 Tratase da sigla de Sistema Geral de Preferências gps em inglês que até hoje responde por parcela importante das exportações de manufaturados da periferia capita lista para os países do Norte 10 Edgar Dosman op cit pp 5378 ser vista como substituta do desenvolvimento Cada país deveria fazer sua parte Ele sabia da oposição que encontraria da parte dos Estados Unidos e das demais potências O desastre era iminente Para impedilo nosso antiherói reúne em seu apartamento em Genebra representantes de oito países A pauta não avança na direção das ações concretas reivin dicadas pelo G77 Prebisch entretanto consegue parir a unctad garantindo sua autonomia e independência A entidade atuaria como espaço de pesquisa e fórum de negociação não neutro ou seja a serviço dos países em desenvolvimento mas sem oposi ção aberta ao Norte essencial para que qualquer acordo vingasse Apesar da recepção hostil da plateia do G77 que lamentava os ganhos retóricos Prebisch vencera e a unctad está aí até hoje8 com menos poder do que ele gostaria mas assumindo o papel que ele imaginara Durante a unctad II realizada em Nova Delhi os mesmos choques de posições se sucederiam O prazo para o término da conferência seria prorrogado duas vezes Os países desenvolvidos comemoravam o sucesso da inércia enquanto o G77 via o novo vocabulário do desenvolvimento em escala ampliada ser soterra do Prebisch aparecia como algoz dos países desenvolvidos e trai dor do Terceiro Mundo Mas o sgp9 seria aprovado novos con ceitos introduzidos propostas concretas elaboradas mesmo que engavetadas com relatórios de qualidade produzidos a serviço dos países mais pobres Acertada a sua demissão da unctad para março de 1969 Pre bisch iria para Washington trabalhar no novo relatório sobre o desen volvimento latinoamericano a convite do bid Nele apontaria para a crise do desenvolvimentismo contrapondo a região aos países do Sudeste Asiático capazes de realizar reforma agrária transformações institucionais e em sua estrutura econômica Com o golpe de Pino chet a cepal tornase uma organização sitiada Apenas com a crise do petróleo Prebisch voltaria a ser saudado por ricos e pobres como um visionário global10 Prebisch ainda teria tempo para criticar o endividamento exces sivo dos países latinoamericanos no final dos anos 1970 contra os prognósticos das entidades tradicionais que o louvava e parti cipar do governo Alfonsín na Argentina defendendo o Consenso de Cartagena em prol de uma posição comum para os países deve dores trazendo calafrios para o fmi o Banco Mundial e o governo norteamericano Não obstante mais uma vez seria visto em casa como entreguista Os peronistas já se encontravam na antessala do poder como se a história dos anos 1940 tivesse que se repetir mas dessa vez como farsa 12Barbosacritica94p216a229indd 225 121012 514 PM 226 11 Hodara J Prebisch y la CEPAL sustancia trayectoria y contexto institu cional Mexico El Colegio de Mexico 1987 pp 124 1623 389 12 OHirschman A A economia como ciência moral e política São Paulo Brasiliense 1986 pp 667 75 O autor menciona a estranha coali zão entre marxismo e monoecono mismo 13 Furtado C A fantasia organizada Rio de Janeiro Paz e Terra 1985 5 ed cap vii 14 Dosman op cit p 314 15 Rodríguez O O estruturalismo latinoamericano Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2009 pp 27 e 41 16 Bielschowsky R Cincuenta años del pensamiento de la cepal una reseña In Cincuenta años de pensa miento en la CEPAL textos selecciona dos vol 1 Santiago Fondo de Cultura Económicacepal 1998 pp 14 e 17 17 Prebisch Raúl El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales proble mas In Cincuenta años de pensamien to en la CEPAL op cit Tratase do texto original de 1949 Prebisch furtAdo e o estruturAlismo Seguimos acima a trajetória de Prebisch a partir da câmera lenta de nosso cineastabiógrafo Por mais que procure integrar as ideias de Prebisch e o seu estilo de liderança iluminando as restrições e poten cialidades das organizações em que nosso antiherói trabalhara em cada momento histórico nem sempre Dosman abarca essas várias dimensões em toda a sua complexidade Joseph Hodara11 ressalta a importância de um paradigma trian gular entre ideias estilo de liderança e entorno organizacional para entender a contribuição de Prebisch No seu entender a cepal alçou voo em virtude da ética de seita instaurada pelo argentino Depois ela teria se enrijecido alcançando o estágio eclesiástico na qual a rotina burocrática acaba por vencer inclusive se amoldando às novas modas do pensamento econômico no máximo temperadas por adje tivos desenvolvimentistas Em vez de um típico tecnocrata o economista argentino destaca vase pelo estilo argumentativo nada neutro brindando novas men sagens políticas e uma clara preocupação pedagógica Adicionalmen te se o vocabulário prebischiano caracterizavase pela polissemia de modo a permitirlhe maior margem de negociação ele encontrava pouca receptividade nos ambientes acadêmicos onde neoclássicos e marxistas ressentiamse ao ver seus conceitos sofrer interpretações por demais arejadas12 Não à toa Furtado o descrevera como o grande heresiarca13 Outro aspecto digno de menção referese à história do estrutu ralismo Prebisch aparece na biografia de Dosman como o primei ro praticante de um novo método de reflexão sobre as economias e sociedades latinoamericanas O próprio Dosman afirma que depois da Conferência da cepal de Cuba em 1949 Prebisch teria criado o estruturalismo14 Os estudos clássicos apontam para a mesma inter pretação É o caso de Rodríguez15 para quem nos anos 1950 o estru turalismo parte do enfoque econômico para depois nos anos 1960 incorporar as dimensões social e política Ou de Bielschowsky16 que percebe uma teoria estruturalista do subdesenvolvimento periféri co já no manifesto de Prebisch A origem está em Prebisch é certo No entanto ele não era nem estruturalista nem havia formulado nenhuma teoria do subdesen volvimento nos anos 1950 O manifesto latinoamericano17 sequer continha a palavra subdesenvolvimento Prebisch referese quando muito aos países da América Latina como novos que não seguem e nem há por que imaginar que devessem fazêlo os mesmos estágios e dinâmicas dos países centrais até porque não contam com as mesmas premissas 12Barbosacritica94p216a229indd 226 121012 514 PM crítica 227 18 Furtado Celso Desenvolvimento e subdesenvolvimento 3 ed Rio de Janeiro Fundo de Cultura 1965 A primeira edição é de 1961 19 Mallorquín Carlos Celso Furtado um retrato intelectual Rio de Janeiro Contraponto São Paulo Xamã 2005 pp 16 12231 261 e 328 20 Raúl Prebisch Capi talismo periférico crisis y trans formación México Fondo de Cultura Eco nómica 1981 p 9 21 Pinto A Naturaleza e im plicaciones de la heterogeneidad estructural de la América Latina In Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL textos seleccionados vol 2 op cit Esse texto foi publicado pela pri meira vez em 1970 e significou uma ruptura com as teses dualistas 22 Prebisch R Capitalismo periféri co op cit pp 1415 3745 23 Ibid pp 26 e 30 A segunda ruptura que levaria ao que se convencionou chamar de teoria do subdesenvolvimento é furtadiana até a medula Não se trata aqui de discutir paternidade teórica mas de ressaltar que a pri meira cepal apenas lançara a semente do que seria chamado de pen samento econômico estruturalista latinoamericano Depois de um esforço inaudito durante a segunda metade dos anos 1950 Furtado vai explicitar as características do método históricoestruturalista conferindolhe um enfoque teórico específico tal como apresenta do em Desenvolvimento e subdesenvolvimento18 Essa hipótese é lançada por Mallorquín19 Para além de se comportarem de maneira distinta nos ciclos em Furtado centro e periferia fazem parte de uma mesma totalidade histórica que se manifesta com dinâmicas estruturais distintas que extravasam o econômico O mais interessante é que o mestre Prebisch se transforma em discípulo com O capitalismo periférico publicado em 1981 mas escrito ao final da década de 1970 quando não se encontra mais preso às artimanhas organizacionais e ao peso da ação política O próprio Prebish o admite nos agradecimentos ao livro ante todo Celso Furtado nadie ha penetrado com más profundidad en la interpretación del desarrollo20 antes de entrar de cheio na dinâmica do capitalismo periférico da sua estrutura social e de suas travas políticas Prebisch não deixa de assinalar as mudanças do capitalismo central até porque ambos fazem parte de um todo integrado mas concentra o seu olhar na assincronia das estruturas latinoamericanas A heterogeneidade estrutural o mestre também aprendeu com Aníbal Pinto21 é antes reforçada pela industrialização pois este capitalismo por ser imitativo está baseado fundamentalmente na desigualdade Isto porque parcela expressiva do excedente é esteri lizada internamente ou drenada para fora desperdiçando o potencial de acumulação de capital que poderia atender às demandas sociais e revigorar os processos de democratização22 Nesse último exercício teórico Prebisch argumenta que o esque ma centroperiferia pode e deve ser enriquecido de acordo com as mudanças históricas mas desde que tenha como objetivo a elabora ção de uma teoria global do desenvolvimento23 que capte as dinâmi cas internas e articulações externas entre os capitalismos central e periférico Prebisch redivivo O Prebisch que podemos herdar mantendo a sua embocadura ana lítica é este que fala do meu pensamento cepalino como se um mar metodológico desaguasse em vários rios interpretativos bem diverso 12Barbosacritica94p216a229indd 227 121012 514 PM 228 24 Rodríguez op cit pp 468 25 Ibid pp 424 e 61 26 Bielschowsky op cit pp 11 e 17 da cepal no seu estágio póseclesiástico que inclusive endossou o credo neoliberal antepondolhe algumas vírgulas nos anos 1990 Um Prebish em diálogo profundo com Celso Furtado e Aníbal Pinto e com outras correntes de interpretação como a teoria da depen dência o pensamento históricoinstitucionalista e as contribuições neoschumpeterianas dentre outras Mas também um autor que casa embasamento empírico com generalizações teóricas e formulações políticas de longo prazo o que só é possível quando se assume uma perspectiva metodológica que associa o intervencionismo decidido do Estado num contexto social e histórico específico onde o não reducionismo econômico deriva de um não determinismo defini do nos termos de Rodríguez24 sempre levando em consideração os impactos das conformações cambiantes da totalidade capitalista Nesse sentido a compreensão da realidade histórica latinoameri cana ontem hoje e amanhã pode ser feita a partir dessa metodologia de análise que parte de tendências gerais como por exemplo a dinâmica do sistema centroperiferia sempre reciclada de modo a concentrar os frutos do progresso técnico em áreas privilegiadas da economiamundo capitalista reforçando por sua vez a heterogeneidade estrutural que per mite a recriação do subdesenvolvimento sob novas formas A pergunta que se coloca então é sobre o papel da ciência econô mica e das ciências sociais em geral Tal como no passado a marca da cepal está no ecletismo em assimilar e reprocessar as contribuições do pensamento clássico marxista e keynesiano a partir de uma experiên cia histórica peculiar Neste sentido o vigor de um programa científico do estruturalismo estriba justamente na capacidade de acompanhar os avanços teóricos das várias formulações heterodoxas de modo a fornecer os fundamentos para uma teoria especial do aconte cer econômico25 nos diversos países latinoamericanos no contexto histórico atual A própria evolução do pensamento cepalino propria mente dito esteve sempre relacionada não somente à história real do objeto de análise como com o próprio contexto ideológico relacio nando inserção internacional tendências e contradições internas do crescimento da periferia e ação do Estado26 Dessa forma associar o estruturalismo a teoria do subdesenvol vimento ou a economia política cepalina à teoria da deterioração dos termos de troca atitude hoje muito em voga é tomar a parte pelo todo Ora aquela tendência apenas indicava que num contexto específico o do novo centro global protagonizado pela economia norteamericana nos albores do pósSegunda Guerra Mundial levaria inexoravelmen te ao processo de industrialização que deveria ser planejado de modo a não internalizar as características concentradoras da dinâmica do sistema capitalista as quais encontravam solo fértil em virtude das peculiaridades estruturais da região 12Barbosacritica94p216a229indd 228 121012 514 PM crítica 229 27 Castro Antonio Barros de No espelho da China 2009 mimeo 28 Para um intento de aplicar as categorias cepalinas de modo a com preender os impactos da ascensão chinesa sobre a América Latina ver Barbosa Alexandre de Freitas China e América Latina na Nova Divisão Internacional do Trabalho In Leão Rodrigo Pimentel Ferreira Pinto Eduardo Costa e Acioly Luciana orgs A China na nova confi guração global impactos políticos e eco nômicos Brasília ipea 2011 Num contexto de ascensão chinesa crise das economias ditas cen trais e reorganização da divisão internacional do trabalho ou seja em que mais uma vez o centro de gravidade da economiamundo capi talista passa por deslocamentos que alteram de maneira sistêmica a sua dinâmica de funcionamento 27 Prebisch e seus companheiros de seita parecem mais bem aparelhados com suas categorias28 para enfrentar o real do que os economistas com instrumental estático ou os catastrofistas de plantão Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo iebusp e pesquisador associado do Cebrap 12Barbosacritica94p216a229indd 229 121012 514 PM