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Direito ·

Introdução ao Estudo do Direito

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Breves considerações sobre o olhar ouvir e escrever enquanto passos constitutivos da pesquisa qualitativa no âmbito jurídico aproximações entre antropologia e direito1 Vinícius Gil Braga RESumo O presente escrito tem por finalidade a proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito Nesse sentido estabelece um diálogo atento à epistemologia e à antropologia sugerindo ao juristadiscente do direito a realização de um exercício de observação capaz de instigar o estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Para tanto estimulase o desenvolvimento de três faculdades de entendimento sociocultural inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais o olhar o ouvir e o escrever Palavraschave Direito Antropologia Epistemologia Pesquisa qualitativa Short contributions about watching listening and writing as constitutives steps of qualitative research in the juridical space Approaches between anthropology and law ABStRAct The present work aims at the proposition of new possibilities for qualitative law research Therefore an attentive dialogue is established in relation to epistemology and anthropology Such dialogue suggests to juristlaw students the performance of an observation exercise capable of providing the viable establishment of new perspectives about an experienced reality modifying it Thus the development of three sociocultural understanding senses is stimulated those inserted into the social sciences pattern of acquiring knowledge watching listening and writing Keywords Law Anthropology Epistemology Qualitative research Vinícius Gil Braga é Mestre em Ciências Criminais PUCRS Professor de Direito na Faculdade Cenecista de Osório CNECOsório e American College of Brazilian Studies AMBRA Email viniciusgilbragahotmailcom 1 O presente artigo se constitui em fragmento de um trabalho de maior fôlego ainda inédito voltado ao exame e proposição de novas possibilidades à pesquisa qualitativa no direito ademais esse escrito segue como fonte de estímulo e orientação o artigo intitulado O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever de autoria de Roberto Cardoso de Oliveira CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP vol 39 nº 1 São Paulo 1996 p1337 Direito e Democracia v10 n2 p189199 juldez 2009 Canoas Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 190 a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrálas Gabriel García Márquez Cem anos de solidão 1 conSiDERAçõES iniciAiS ou DA nEcESSiDADE DE um PEnSAmEnto comPlExo Je travaille les idées qui me travaillent2 Edgar Morin Não falamos todos do mesmo lugar Ter posições claras a respeito de condições e circunstâncias históricas culturais sociais psicológicas particulares importa na assunção de uma posição particular a nossa posição enquanto sujeitos do conhecimento a partir da qual falamos e direcionamos nossos esforços para a construção do conhecimento através de um exercício reflexivo pessoal e compartilhado Nesse particular atentese à formação sutil da palavra conviver necessário viver com o outro em aberto respeito à sua dignidade e diferença3 Somos sobreviventes de nossa história4 O conhecimento produzido traz consigo nossa carga de historicidade vivências relações angústias limites etc Encontra se portanto sujeito às nossas ideias experiências e faltas persistindo sempre a inextricável relação entre o saber próprio ao pesquisador e o conhecimento por ele produzido ou da influência do observador no resultado de sua observação Ditas contingências delineiam nossos conceitos e concepções importando nessa esteira que um ponto de vista seja tão somente a vista de um ponto ou em melhor expressão a consciência de que o olhar lançado dirigese sobre uma perspectiva apenas uma no seio de tantas outras possíveis As duas assertivas acima traduzem a sensível necessidade de refletir as questões inerentes ao conhecer isto é que o embasam e fundamentam e a partir das quais são informadas e legitimadas suas formas de construção Tão somente a partir desse horizonte compreensivo uma base metodológica qualitativa e suas técnicas de pesquisa passam a auferir sentido isto é tratase fundamentalmente da conscientização crítica sobre os modos de expressão do processo científico necessariamente marcados pela indagação e pelo questionamento de seus limites e possibilidades 2 Trabalho as ideias que me trabalham tradução livre do francês Entretien avec Edgar Morin MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique nº 6 Paris 1996 p59 3 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004 p1516 4 Esse breve escrito é tributário do convívio e dos ensinamentos do filósofo e professor Ricardo Timm de Souza exemplo de serhumano que levaremos sempre conosco como fonte de incentivo e inspiração Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 191 Como bem refere Edgar Morin até a metade do século XX a maior parte das ciências tinha a redução como método do conhecimento isto é do conhecimento de um todo para o conhecimento das partes que o compõem e o determinismo como conceito principal ou seja a ocultaçãodesconsideração do acaso do novo das invenções e a aplicação da lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos humanos e sociais Interessante perceber em contraponto que a cultura humana geral sempre admitiu a possibilidade de se buscar a contextualização de toda informação ou ideia Ao passo que a cultura técnica e científica como referido em nome do seu caráter disciplinar especializado optou por seguir um modelo de racionalidade responsável por separar e compartimentar os conhecimentos prejudicando ainda mais a contextualização dos mesmos5 Com propriedade assevera o epistemólogo francês Deveríamos portanto ser animados por um princípio de pensamento que nos permitisse ligar as coisas que nos parecem separadas umas em relação às outras Ora nosso sistema educativo privilegia a separação em vez de praticar a ligação A organização do conhecimento sob a forma de disciplinas seria útil se estas não estivessem fechadas em si mesmas compartimentadas umas em relação às outras assim o conhecimento de um conjunto global o homem é um conhecimento parcelado Se quisermos conhecer o espírito humano podemos fazêlo através das ciências humanas como a psicologia mas o outro aspecto do espírito humano o cérebro órgão biológico será estudado pela biologia Vivemos numa sociedade multidimensional simultaneamente econômica psicológica mitológica sociológica mas estudamos estas dimensões separadamente e não umas em relação com as outras O princípio de separação tornanos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto6 destaque nosso Acreditamos que a leitura jurídica do corrente Século XXI somente apresenta sentido de realidade se tomar o direito como uma ciência aberta ao seu tempo Um modo de pensar aberto disposto a explorar os sentidos plurais pertencentes às interfaces entre direito e sociedade qual seja disposto à reflexão e à problematização com vistas a desenvolver nova consistência e tratamento legitimidade e fundamentação Em outras palavras voltado à configuração de uma dogmática jurídica renovada que vislumbra no direito um mecanismo renovado de regulação social o que todavia não se confunde com engessamento da realidade mais próximo e adequado à realidade social a qual se destina O referido modelo reflexivo enseja a assunção de um compromisso com a arte de 5 MORIN Edgar A necessidade de um pensamento complexo In Representação e complexidade MENDES Candido organizador Rio de Janeiro Garamond 2003 6 MORIN Edgar Da necessidade de um pensamento complexo In Para navegar no século 21 Tecnologias do imaginário e cibercultura MARTINS Francisco Menezes SILVA Juremir Machado da organizadores 2ª ed Porto Alegre Sulina 2000 p20 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 192 saberviver em espaço aberto plural e de respeito à diferença Isto é uma cultura de protagonistas cujos diferentes projetos oriundos da diversidade possam ser respeitados e valorizados na medida e riqueza de cada experiência As recentes percepções em torno ao Estado democrático de direito já caminham nessa direção muito embora demasiado resta ao que se aprenderdiscutirreformular um projeto vivo no tempo Para tanto fazse necessário estabelecer novas relações quer dizer dar azo ao diálogo para com outras dimensões do conhecimento inclusive à arte Nesse sentido a partir deste escrito gostaríamos de ensejar a percepção de que o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer7 Isto se aplica diretamente às chamadas metodologias qualitativas marcadas por privilegiar de modo geral a análise de microprocessos através do estudo das ações sociais individuais e grupais realizando um exame intensivo dos dados tanto em amplitude quanto em profundidade caracterizada consoante se depreende do exposto pela heterodoxia no momento da análise8 As páginas que seguem visam a estabelecer um exercício de observação capaz de instigar o discente do direito ao estabelecimento de novos olhares sobre a realidade experienciada transformandoa Sobretudo quando se reconhece o fato do quão adstrita está a pesquisa jurídica ao uso de fontes bibliográficas eou jurisprudenciais bem como do consequente imobilismo que essa postura tem acarretado 7 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ª ed Rio de Janeiro Record 2007 8 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p292 Nas palavras da autora Outra característica importante da metodologia qualitativa consiste na heterodoxia no momento da análise dos dados A variedade de material obtido qualitativamente exige do pesquisador uma capacidade integrativa e analítica que por sua vez depende do desenvolvimento de uma capacidade criadora e intuitiva A maior dificuldade da disciplina de métodos e técnicas de pesquisa está na dificuldade de ensinar como se analisa os dados isto é como se atribui a eles significados sendo mais fácil ensinar a coletálos ou a realizar trabalho de campo A intuição aqui mencionada não é um dom mas uma resultante da formação teórica e dos exercícios práticos do pesquisador Já no desenvolvimento do emprego de metodologias quantitativas o que se procura é justamente o contrário isto é controlar o exercício da intuição e da imaginação mediante a adoção de procedimentos bem delimitados que permitam restringir a ingerência e a expressão da subjetividade do pesquisador O uso de uma metodologia ou de outra dependerá muito do tipo de problema colocado e dos objetivos da pesquisa no que se refere especificamente à metodologia qualitativa é que com ela a pesquisa depende fundamentalmente da competência teórica e metodológica do cientista social Tratase de um trabalho que só pode ser realizado com o uso da intuição da imaginação e da experiência do sociólogo o que não significa que no caso da metodologia quantitativa também não seja requerida a competência é que neste caso a formalização técnica acaba dominando o pesquisador p292293 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 193 2 PoR um REmAnEjo Do olhAR BREVE ExERcício DE AnáliSE com ViStAS à PRomoção DE noVAS PoSSiBiliDADES REflExiVAS Ao EStuDo Do DiREito A metodologia qualitativa trabalha sempre com unidades sociais privilegia os estudos de caso entendendose como caso o indivíduo a comunidade o grupo a instituição9 Em seu seio estão presentes três faculdades de entendimento sociocultural isto é inerentes ao modo de conhecer das ciências sociais e do direito enquanto modalidade de ciência social aplicada a saber o olhar o ouvir e o escrever10 Notoriamente quando aludimos ao reaprender a olhar está se fazendo referência à postura epistemológica do conhecer conformadora de uma visão de mundo e igualmente do estudo escolhido envolvendo por conseguinte as três faculdades de entendimento nomeadas O olhar em sentido estrito é no mais das vezes a primeira experiência do pesquisador em sua situação de pesquisa marcado sobremaneira por sua domesticação teórica Consoante adverte Roberto Cardoso de Oliveira a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizálo Em outras palavras seja qual for esse objeto ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade11 Nas palavras de Cardoso de Oliveira Esse esquema conceitual disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico daí o termo disciplina para as matérias que estudamos funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração É certo que isso não é exclusivo do Olhar uma vez que está presente em todo processo de conhecimento envolvendo portanto todos aqueles atos cognitivos em seu conjunto Mas é certamente no Olhar que essa refração pode ser mais bem compreendida A própria imagem óptica refração chama a atenção para isso12 9 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v 30 nº 2 São Paulo 2004 p294 10 CARDOSO DE OLIVEIRA opcit p14 e seguintes 11 Idem p15 12 Idem p16 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 194 Imaginemos a situação de um estudante de direito que se dirige ao Fórum de sua cidade com vistas a observar o Juizado Especial Criminal13 em sua ritualística dinâmicas e procedimentos Claro está que a sua condição de estudante de direito não pode ser desconsiderada no processo de seu exercício de observação Ao ingressar no ambiente do Fórum perceberá os olhares que a ele são dirigidos de parte dos funcionários de segurança servidores dos cartórios e demais transeuntes A sua postura vestimenta e empatia poderão levar um simples pedido de informações a diferentes possibilidades Olhares e posturas que poderão encetar ou não alguma significação Com o passar do tempo vaise desenvolvendo uma espécie de sensibilidade no trato dessas questões uma sorte de conhecimento produzido a partir de acertos e equívocos responsáveis por ao longo desse processo conduzirnos a uma gradativa sensação de segurança e colocação diante destas situações Retomando o argumento Não obstante além da sua vivência junto à prática jurídica de igual modo serão os seus conhecimentos de direito material e processual responsáveis por balizar as suas percepções primeiras Ao adentrar na sala de audiência o observador identificará a disposição dos atores jurídicos juiz de direito defesa e acusação tal qual estudou em disciplinas e manuais de direito penal processo penal e organização judiciária Observará ainda as características arquitetônicas da sala de audiência e suas similitudes eou diferenças em relação às outras que por ventura tenha presenciado ou assistido em filmes ou demais fontes de informação Todavia em seguida chegará à conclusão de que para dar conta da natureza das relações sociojurídicas estabelecidas nesse ambiente somente o Olhar não seria suficiente Como alcançar o significado dessas relações sem se valer concomitantemente de outro recurso para obtenção dos dados o Ouvir Se o Olhar possui uma significação específica para um cientista social o Ouvir também o tem Ao observador de uma audiência do Juizado Especial Criminal os discursos terão como liame comum o desenvolvimento de argumentos pautados por essa esfera do direito penal e processual penal Entretanto o mesmo poderá reparar em certos equívocos ou imprecisões no uso dessa linguagem e inclusive dos próprios termos e institutos do direito Ninguém está livre de falhas Poderá perceber ainda uma ampla gama de nãoditos por vezes ensurdecedores e inclusive posturas violadoras ao sentimento de justiça O Olhar aliado ao Ouvir poderá portanto informar ao estudante uma série de circunstâncias imponderáveis imprevistas que não estavam presentes no repertório legislativo e doutrinário de seu aprendizado em uma disciplina acadêmica Outro aspecto o pesquisador poderá avançar em seu entendimento desde que atento à globalidade de informações que se entrecruzam naquele campo a exemplo dos ditosnãoditos olhares etc presentes no próprio intervalo entre as audiências da pauta de julgamentos em questão ou ainda no perfil das partes envolvidas e suas dinâmicas entre outros Em suma tratase 13 Os Juizados Especiais Criminais tiveram sua origem por ocasião da Lei 909995 responsável por estabelecer a informalização dos procedimentos judiciais civil e criminal no âmbito da administração da justiça Sob esse prisma a esfera criminal do dispositivo passou a se ocupar das chamadas infrações de menor potencial ofensivo isto é contravenções penais e demais crimes cuja pena máxima não excede dois anos de prisão Lei 1025101 Para tanto compreende um amplo rol de pequenos delitos que com o passar dos anos encontravamse afastados da justiça criminal tradicional em nome do princípio da insignificância ou bagatela assim regressando ao sistema penal e às agências oficiais de controle Para uma rápida referência aos juizados especiais criminais princípios e regras gerais vide GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 195 de um repertório amplo de possibilidades que podem fazerse presentes nas situações de pesquisa experienciadas delineadas de acordo com o recorte da pesquisa em particular seu problema de estudo e seus objetivos anteriormente delimitados orientando inclusive para novos rumos e eventuais correções de adequação da pesquisa Todavia fazse relevante esclarecer que o Ouvir não se restringe à sua manifestação passiva isto é um observador mergulhado no curso de um ritual judiciário não pode se manifestar interromper a audiência eou retirar suas dúvidas com as partes envolvidas Imaginemos por conseguinte um momento posterior em que o mesmo tem a oportunidade de realizar entrevistas Mas para isso há de se saber Ouvir Acompanhando Roberto Cardoso de Oliveira entendemos que esse exercício se apresenta como delicado problemático ínsito à própria natureza da relação estabelecida entre entrevistador e entrevistado O observadorentrevistador deve estar aberto às situações a ele colocadas consoante referimos anteriormente o aprender exigenos um remanejamento do olhar reaprender a olhar aqui compreendido como olhar em sentido estrito ouvir e escrever não raro importando em certas circunstâncias desaprender qual seja estarmos abertos a novas experiências e possibilidades reconstrutivas Legitimamente experimentar Extrair do conhecimento todo o seu sabor O sabor de conhecer Pois bem percebase que caso essa atitude não seja espontaneamente assumida teremos tão somente perguntas feitas em busca de respostas pontuais criando um campo ilusório de interação Em outras palavras não se pode perguntar com vistas a orientar a resposta que se quer ouvir Isto porque a rigor não há verdadeira interação entre entrevistador e entrevistado se não se cria condições de efetivo diálogo Portanto estamos falando de dois níveis de importância a saber a primeira atinente ao próprio sujeito do conhecimento que deve se mostrar aberto crítico e positivamente inquieto no curso do processo de pesquisa e ainda uma segunda que diz respeito à necessidade de se perceber no informante um interlocutor qual seja edificar uma relação em que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o entrevistado e por ele ser igualmente ouvido construir pontes cognitivas encetando um diálogo teoricamente de iguais sem receio de estar assim contaminando o discurso do informante com elementos de seu próprio discurso pesquisador Portanto sabendose não ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta é tão somente no diálogo marcado pela fusão de horizontes que o Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação qual estrada de mão única numa outra de mão dupla constituindo assim uma verdadeira interação14 De outra sorte é oportuno referir que uma relação em tal nível envolve um exercício mais aprofundado de pesquisa mais intenso o que em antropologia convencionouse chamar de observação participante Nas palavras de Cardoso de Oliveira 14 Idem p21 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 196 o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade ou situação de pesquisa observada a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade ou situação pelo menos afável de modo a não impedir a necessária interação Entendo que tal modalidade de observação realiza um inegável ato cognitivo desde que a compreensão Verstehen que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de excedente de sentido i e aquelas significações por conseguinte dados que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica Portanto por meio do qual o pesquisador busca interpretar melhor dizendo compreender a sociedade e a cultura do Outro de dentro em sua verdadeira interioridade Tentando penetrar nas formas de vida que lhe são estranhas a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto uma vez que essa vivência só assegurada pela observação participante estando lá passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina15 Assim para que a pesquisa se realize é necessário que o pesquisado aceite o pesquisador disponhase a falar sobre sua vida introduza o pesquisador no seu grupo e dêlhe liberdade de observação Esse mergulho na vida de grupos e culturas aos quais o pesquisador não pertence exige uma aproximação baseada na simpatia confiança afeto amizade empatia etc16 Entretanto há de se ter prudência na escolha dos informantes sobretudo quando se restringe a pesquisa tão somente a um informante privilegiado Sobre a questão adverte Heloísa Martins O recurso ao depoimento oral como forma de construção do documento tem levado várias questões e objeções que dizem respeito à memória A referência às peças que a memória prega baseiase na compreensão de que entre o tempo do acontecimento e o tempo presente do relato o informante cuja memória se apela viveu um conjunto de experiências que de certa forma orientam a visão que ele tem do passado Seu olhar presente para o já vivido sofre a interferência daquelas experiências muitas vezes ele não espelha a verdade sobre a vida passada mas se limita a lembrar aquilo que ele quer ou pode recordar à luz das vivências mais recentes Nesse sentido o informante estaria fazendo interpretações e não expondo a verdade Essa é uma questão que frequentemente preocupa os historiadores que sempre recomendaram que se fizesse a crítica do dado da fonte do documento para averiguar sua veracidade Daí a constante desconfiança acerca da confiabilidade de certos relatos17 15 Idem p2122 31 16 MARTINS opcit p294 17 Idem p295 Interessante referir em contraponto o relato presente no texto O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral de autoria de Janaína Amado AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História nº 14 São Paulo 1995 p125136 A autora com base na análise de uma entrevista explora a questão da mentira na história oral para tanto defende a ideia de que depoimentos desprezados por historiadores por serem mentirosos isto é por não promoverem reconstituições históricas fidedignas dos fatos pesquisados podem conter dimensões simbólicas extremamente importantes O exemplo utilizado demonstra como tradição imaginação e cultura erudita e popular combinaramse para produzir um depoimento mentiroso que entretanto se revelou o mais rico e fértil para a análise histórica Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 197 Retomando o argumento se o Olhar etnográfico tanto quanto o Ouvir cumpre sua função elementar na pesquisa empírica é o Escrever momento posterior e particular que se revela como o passo mais fecundo da interpretação e é por meio dele quando se textualiza a realidade sociocultural que o pensamento se manifesta em sua plena criatividade18 Desse modo o Escrever é a etapa seguinte à observação olhar e ouvir cumprindo a mais alta função cognitiva Em outros termos envolve o processo de textualização dos fenômenos socioculturais observados estando lá trazendo ao texto os fatos observados vistos e ouvidos para o plano do discurso Tratase de um empreendimento bastante complexo que não se confunde com as anotações eou rabiscos que por ventura tenham sido feitos na primeira fase da pesquisa É portanto necessariamente recursivo19 cíclico um processo de idas e vindas aliando o conhecimento teórico em compasso com as circunstâncias experienciadas mediadas permanentemente pela reflexão Como bem pondera Roberto Cardoso de Oliveira Pelo menos minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que juntos formam praticamente um mesmo ato cognitivo Isso significa que nesse caso o texto não espera que o seu autor tenha primeiro todas as respostas para só então poder ser iniciado Entendo que ocorra na elaboração de uma boa narrativa que o pesquisador de posse de suas observações devidamente organizadas já inicie o processo de textualização uma vez que esta não é apenas uma forma escrita de simples exposição uma vez que há também a forma oral porém é a produção do texto também produção de conhecimento Não obstante sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo esse ato tende a ser repetido quantas vezes for necessário portanto ele é escrito e reescrito repetidamente não apenas para aperfeiçoar o texto do ponto de vista formal mas também para melhorar a veracidade das descrições e da narrativa aprofundar a análise e consolidar argumentos20 Desse modo concluindo o exemplo mencionado imaginemos que o nosso observador poderia textualizar em sua síntese final de que o exercício de pesquisa realizado permitiulhe estranhar um descompasso entre a previsão abstrata da lei e o âmbito das práticas rituais ou seja do exercício do poder emanado da lei e sua imbricação com as dinâmicas estabelecidas ilustrado a partir da corporalidade e demais expressões performáticas olhares posturas atos de fala brincadeiras sutis repreensões violências explícitas e simbólicas entre outros dos atores nas diferenciadas relações envolvidas Portanto depreendese do exposto que o olhar 18 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p13 19 A respeito do caráter recursivo da construção do conhecimento no âmbito das ciências humanas vide DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 p213215 20 CARDOSO DE OLIVEIRA op cit p29 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 198 o ouvir e o escrever podem e devem ser questionados em si mesmos embora num primeiro momento possam nos parecer tão familiares e por isso tão triviais a ponto de nos sentirmos dispensados de problematizálos todavia num segundo momento marcado por nossa inserção nas ciências sociais essas faculdades ou melhor dizendo esses atos cognitivos delas decorrentes assumem um sentido todo particular de natureza epistêmica uma vez que é com tais atos que logramos construir o nosso saber21 3 conSiDERAçõES finAiS Este breve escrito objetivou informar ao discente do direito sobre a análise e reflexão dos atos inerentes ao processo cognitivo orientandoo à realização de exercícios de pesquisa de cunho qualitativo Notoriamente o exposto não pode ser desvinculado de outras ideias centrais vinculadas a um conjunto mínimo de decisões e práticas que devem necessariamente acompanhar o desenho de qualquer pesquisa conduzindo a mesma a diferentes possibilidades a saber a decisões relativas à construção do objeto ou delimitação do problema a ser investigado b decisões relativas à seleção dos dados e suas especificidades pessoas locais documentos entre outros c decisões relativas à coleta dos dados e seus corolários os meios necessários para a obtenção da informação indispensável para fins de investigação questionários entrevistas dentre outros d decisões concernentes à análise dos dados e demais elementos da pesquisa técnicas e ferramentas empregadas para ordenar resumir dar sentido às informações coletadas22 Considerando portanto o processo de conhecimento em toda sua complexidade REfERênciAS AMADO Janaína O grande mentiroso tradição veracidade e imaginação em história oral História n14 São Paulo 1995 CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O trabalho do antropólogo olhar ouvir escrever Revista de Antropologia USP v39 n1 São Paulo 1996 DESHAIES Bruno Metodologia da investigação em ciências humanas Lisboa Instituto Piaget 1992 ENTRETIEN AVEC EDGAR MORIN MARS Le Monde Arabe dans la Recherche Scientifique n6 Paris 1996 GOLDENBERG Mirian A arte de pesquisar como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais 10ed Rio de Janeiro Record 2007 GONÇALVES Victor Eduardo Rios Juizados especiais criminais doutrina e jurisprudência atualizadas São Paulo Saraiva 1998 21 Idem p15 22 MARRADI Alberto ARCHENTI Nélida PIOVANI Juan Metodología de las ciencias sociales Buenos Aires Emecé 2007 p7185 Direito e Democracia v10 n2 juldez 2009 199 MARTINS Heloísa Metodologia qualitativa de pesquisa Educação e pesquisa v30 n2 São Paulo 2004 SOUZA Ricardo Timm de Sobre a construção do sentido o pensar e o agir entre a vida e a filosofia São Paulo Perspectiva 2004