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Psicologia ·

Psicanálise

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OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD NEUROSE PSICOSE PERVERSÃO Tradução Maria Rita Salzano Moraes autêntica APRESENTAÇÃO Gilson Iannini Pedro Heliodoro Tavares Os textos reunidos neste volume recobrem um arco que se inicia no contexto da correspondência de Freud com Fließ no último decênio do século XIX até o célebre artigo sobre o fetichismo redigido no período entreguerras Portanto um pouco mais ou um pouco menos de um século nos separa desses escritos Há neles contudo algo de extremamente contemporâneo Freud não esteve apenas à frente de seu tempo Em alguns aspectos ele ainda está à frente de nosso tempo Por exemplo quando afirma que a Patologia não pôde fazer justiça ao problema da causa imediata da doença Krankheitsveranlassung nas neuroses enquanto esteve preocupada apenas em decidir se essas afecções eram de natureza endógena ou exógena neste volume p 79 Talvez até hoje um certo discurso psicopatológico esteja demasiado aprisionado nessa infértil dicotomia entre fatores genéticos ou ambientais biológicos ou psíquicos A perspectiva freudiana é nesse sentido mais moderna e mais ousada a Psicanálise nos advertiu a abandonarmos a infecunda oposição entre fatores externos e internos entre destino e constituição e nos ensinou a encontrar a causação do adoecimento neurótico regularmente em uma determinada situação psíquica que pode se produzir por diversos caminhos p 79 Ou ainda quando insiste assim se mistura e se une continuamente na observação aquilo que nós na teoria queremos distinguir como um par de opostos herança e aquisição p 192 Nesses 30 anos que separam os manuscritos de 18951896 e os ensaios de 19241927 Freud estabeleceu o essencial da psicopatologia psicanalítica As assim chamadas estruturas clínicas freudianas neurose psicose e perversão não apenas constituem as principais entidades nosográficas psicanalíticas mas também se articulam à reflexão metapsicológica e à teoria da clínica Com efeito uma das principais lições de Freud nesse âmbito é a de que não existe nosografia ateórica como mera descrição de sintomas ou de protocolos de observação supostamente neutros assim como evidentemente não pode haver teoria sobre o psiquismo que não esteja diretamente vinculada à prática clínica OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD Ao contrário toda descrição nosográfica supõe explícita ou implicitamente uma certa teoria do aparelho psíquico um trabalho prático de escutaobservação além de suposições acerca da causação e das diretrizes de tratamento Desde a célebre carta 52 de 6 de dezembro 1896 a primeira teoria do aparelho psíquico já mostra uma forte concatenação com a clínica e com a nosografia Freud distingue histeria neurose obsessiva paranoia e perversão ao mesmo tempo que constrói hipóteses tópicas acerca do aparelho psíquico e hipóteses genéticas acerca da causação de cada estrutura Os principais pilares da nosografia psicanalítica estão erguidos desde muito cedo O que não impede uma série de revisões e ajustes efetuados a partir de impasses clínicos e das grandes reformulações da teoria pulsional e da teoria do aparelho psíquico como aliás atestam os breves e imprescindíveis ensaios de 19241927 Esses ensaios consolidaram as linhas gerais do que posteriormente veio a ser designado como estruturas clínicas freudianas Os textos aqui reunidos mostram também como Freud articulava a reflexão psicopatológica ao material clínico É digno de nota que todas as grandes narrativas clínicas de Freud os famosos cinco casos ou histórias clínicas são ambientadas exclusivamente no que se convencionou chamar de primeira tópica anteriores portanto às reformulações teóricas de Além do princípio de prazer 1920 e O Eu e o Isso 1923 Mas isso não quer dizer que depois dos grandes cinco casos Freud tenha se silenciado acerca de sua clínica Ao contrário ocorre que ao esgotamento de um determinado gênero literário predominantemente narrativo a história clínica seguese a adoção de um modelo de escrita em que a teoria e a clínica se mesclam e se interpenetram de maneira ainda mais desconcertante Alguns dos ensaios aqui coligidos oferecem abundante material clínico Houve um momento relativamente recente na história da Psicanálise em que a discussão acerca das estruturas clínicas ficou enredada numa pretensa vinculação biunívoca entre as três principais estruturas e os mecanismos psíquicos de negação subjacentes Assim neurose psicose e perversão seriam respectivamente definidas pela prevalência ou mesmo pela exclusividade em cada uma delas do recalque Verdrängung da rejeição ou forclusão Verwerfung ou da recusa ou desmentido Verleugnung Contudo uma leitura atenta dos artigos que compõem o presente volume mostra como em Freud essa vinculação é menos homogênea do que se quer crer embora não deixe de obedecer a uma lógica própria O presente volume não esgota a nosografia freudiana No volume Histeria NEUROSE PSICOSE PERVERSÃO neurose obsessiva e outras neuroses no prelo separamos os artigos atinentes aos problemas específicos das neuroses É evidente que toda edição temática incorre necessariamente em escolhas nem sempre inteiramente justificáveis Na edição francesa da PUF Jean Laplanche reuniu em um só volume sob o título Névrose psychose et perversion alguns dos textos que preferimos dispor em dois volumes diferentes Ainda que o título tripartite com elementos em mesma ordem convenção consagrada aliás anteriormente à elaboração da coletânea francesa possa levar o leitor a crer que se trate de uma mesma proposta bastará cotejar o sumário de cada volume para perceber as enormes diferenças entre a edição francesa e a brasileira Três artigos incluídos nesta coletânea não se referem explicitamente às estruturas clínicas embora forneçam a nosso ver alguns dos fundamentos indispensáveis para pensar a psicopatologia psicanalítica São eles O declínio do complexo de Édipo texto capital para a compreensão das consequências estruturais desse momento decisivo da subjetivação principalmente no que concerne aos critérios distintivos entre neurose e psicose consolidados nos textos de 1924 A negação um curto mas decisivo ensaio que trata das formas lógicas e psicológicas da negação desde a perspectiva do inconsciente além de Sobre o sentido antitético das palavras primitivas que fornece em certa medida o fundamento linguístico da tese de que a negação não opera no inconsciente Lidos lado a lado esses textos ajudam a compreender o que está em jogo nos diferentes mecanismos psíquicos de defesa e como eles se relacionam à nosografia freudiana NOTÍCIA Este volume conta com um aparato editorial original inexistente em outras edições Esse aparato contém não apenas notas da tradutora NT mas também notas do revisor NR elaboradas pelo coordenador de tradução e notas do editor NE Ao fim de cada texto de Freud o editor incluiu ainda uma notícia bibliográfica que pretende reconstituir sumariamente a gênese e o contexto discursivo de cada ensaio assim como apontar sempre que possível as principais linhas de força do texto e referir uma ou outra notícia acerca de sua recepção ou repercussão na história da Psicanálise Ao leitor familiarizado com o pensamento de Freud e com a história da recepção de seus trabalhos a leitura Tradução Maria Rita Salzano Moraes desse material é dispensável AGRADECIMENTOS A disponibilidade e a competência de Maria Rita Salzano Moraes devem ser lembradas como ingredientes fundamentais desta publicação O presente volume contou também com a consultoria científica dos psicanalistas Paulo César Ribeiro e Guilherme Massara Rocha que revisaram o aparato editorial Agradecemos ainda a Antônio Teixeira pela redação do Posfácio autêntica CARTAS E MANUSCRITOS Seleção da correspondência com Fließ 18871904 MANUSCRITO H ANEXO À CARTA A FLIESS DE 24 DE JANEIRO DE 1895 PARANOIA A representação delirante situase na Psiquiatria ao lado da representação obsessiva como um distúrbio puramente intelectual e a paranoia ao lado da loucura obsessiva como psicose intelectual Uma vez que a representação obsessiva tenha sido reconduzida a uma perturbação afetiva e se tenha demonstrado que ela deve sua força a um conflito então a representação delirante deve ser situada dentro da mesma concepção portanto ela também é consequência de distúrbios afetivos e deve sua força a um processo psicológico O contrário disso é aceito pelos psiquiatras enquanto o leigo está habituado a derivar a loucura delirante Wahnsinn de vivências psíquicas abaladoras Aquele que não perde a razão com determinadas coisas não tem nada a perder1 Ora de fato ocorre o seguinte a paranoia crônica em sua forma clássica é um modo patológico de defesa tal como a histeria a neurose obsessiva e a confusão alucinatória Alguém se torna paranoico em relação a coisas que não pode suportar desde que tenha a predisposição psíquica específica para isso Em que consiste essa predisposição Na tendência para aquilo que representa a marca psíquica distintiva da paranoia e isso queremos examinar com um exemplo Uma mulher solteira não muito nova de cerca de 30 anos mora junto com o irmão e a irmã Eles fazem parte do melhor padrão da classe trabalhadora o irmão empenhouse em se tornar um pequeno fabricante Nesse meiotempo alugam um quarto a um colega de trabalho muito viajado algo enigmático muito habilidoso e inteligente que mora com eles durante um ano e é para eles o melhor camarada e a melhor das companhias O homem se vai para retornar depois de seis meses Desta vez ele fica só por pouco tempo e desaparece definitivamente As irmãs frequentemente lamentam sua ausência só podem falar bem dele até que a mais nova conta à mais velha sobre uma ocasião em que ele fez a tentativa de colocála em perigo Ela estava arrumando o quarto enquanto ele ainda estava na cama então ele a chamou para junto da cama e quando ela se aproximou sem nada suspeitar ele colocou seu pênis na mão dela A cena não teve nenhum tipo de continuação e o estranho partiu em viagem logo depois No decorrer dos anos seguintes a irmã que havia tido essa experiência adoeceu começou a se queixar e por fim formouse um inequívoco delírio de ser notada Beachtungswahn e de perseguição com o seguinte conteúdo as vizinhas sentiam pena dela por ela ser uma mulher abandonada que ainda fica esperando por aquele homem sempre lhe faziam insinuações desse tipo contavamlhe toda espécie de coisas sobre esse homem e assim por diante É claro que tudo isso não era verdade Desde então a doente entra nesse estado apenas por semanas depois torna a ficar lúcida temporariamente explica tudo como consequência da exaltação embora mesmo nos intervalos sofra de uma neurose que não é difícil de interpretar sexualmente e logo volta a entrar em uma nova crise de paranoia A irmã mais velha percebeu atônita que assim que começava a conversa sobre aquela cena de sedução a doente a negava Breuer ficou sabendo do caso a paciente me foi encaminhada e me empenhei em curar o ímpeto Drang2 à paranoia procurando colocar a lembrança daquela cena em seu devido lugar Não deu certo Falei duas vezes com ela deixei que me contasse tudo o que se referia ao hóspede sob hipnose de concentração Konzentrationshypnose mas em resposta às minhas insistentes perguntas sobre se não teria mesmo acontecido algo embaraçoso recebi a mais decidida negação e nunca mais a vi Ela mandou me dizer que aquilo a havia irritado demais Defesa Era óbvio Ela não queria ser lembrada daquilo e em consequência recalcouo intencionalmente A defesa estava fora de dúvida e poderia igualmente ter conduzido a um sintoma histérico ou a uma representação obsessiva Onde está então o peculiar da defesa paranoica Ela se poupou de algo algo foi recalcado Podemos imaginar o que era É provável que realmente tenha ficado nervosa com a visão e com a lembrança dessa visão Logo estava se poupando da recriminação de ser uma má pessoa Passou então a ouvir o mesmo vindo de fora O conteúdo objetivo permaneceu portanto inalterado mas algo se alterou na posição da coisa toda Antes era uma repreensão interna agora é um desaforo vindo de fora O julgamento sobre ela fora desalojado para fora As pessoas diziam aquilo que normalmente ela teria dito para si mesma Ganhouse algo com isso O julgamento vindo de dentro ela teria de aceitar O que vinha de fora ela podia recusar ablehnen Dessa forma o julgamento a recriminação era afastado do Eu A paranoia tem portanto o propósito de se defender de uma representação intolerável para o Eu projetando seu conteúdo no mundo exterior Duas perguntas como se chega a uma transposição Verlegung como essa Isso vale também para outros casos de paranoia 1 Muito simples Tratase do abuso de um mecanismo psíquico utilizado com frequência dentro do normal a transposição ou projeção Em qualquer alteração interior temos a opção de supor uma causa interna ou externa Quando algo nos aparta do andamento interior naturalmente recorremos ao exterior Em segundo lugar estamos habituados a que nossos estados interiores através da expressão das emoções sejam revelados aos outros Isso tem como resultado o delírio normal de ser notado e a projeção normal É normal com efeito enquanto permanecemos conscientes de nossa própria alteração interior Se a esquecemos só nos resta a premissa do silogismo que se conduz ao exterior e então temos a paranoia com a supervalorização daquilo que se sabe a nosso respeito e daquilo que nos fizeram Aquilo que se sabe a nosso respeito e que absolutamente não sabemos não podemos admitir Portanto um abuso do mecanismo de projeção para fins defensivos Com as representações obsessivas ocorre algo bastante análogo O mecanismo de substituição também é normal Quando a velha solteira adota um cão quando o solteirão coleciona caixas de tabaco a primeira substitui sua necessidade de companhia conjugal e o último sua necessidade de inúmeras conquistas Todo colecionador é um Don Juan Tenorio substituído como o são igualmente o montanhista o desportista e outros semelhantes São os equivalentes eróticos As mulheres também os conhecem O tratamento ginecológico entra nessa categoria Há duas espécies de pacientes mulheres aquelas que são tão fiéis ao seu médico quanto ao seu marido e as que trocam de médico como trocariam de amantes Esse mecanismo de substituição de efeito normal tem um mau uso no caso de representações obsessivas também nesse caso para fins de defesa 2 Pois bem uma concepção como essa vale também para outros casos de paranoia Eu diria que para todos Quero tomar exemplos O paranoico querelante não suporta a ideia de ter feito algo errado ou de que precisa se separar de seus bens Em consequência o julgamento não é legalmente válido ele não está errado e assim por diante O caso é claro demais talvez não de todo evidente mas mais simples de resolver A grande nação não pode reconhecer a ideia de que pode ser vencida na guerra Ergo ela não foi vencida a vitória não vale ela dá o exemplo de uma paranoia de massa e inventa o delírio da traição O alcoólatra nunca admitirá a si mesmo que ficou impotente por causa da bebida Ele tolera esse tanto de álcool mas não tolera saber sobre isso Portanto a mulher é a culpada delírio de ciúme e assim por diante O hipocondríaco vai se debater um bom tempo até encontrar a chave para suas sensações de estar gravemente doente Ele não admitirá a si mesmo que elas têm a ver com a sua vida sexual mas o que lhe traz a maior satisfação é seu sofrimento não ser endógeno segundo Moebius mas exógeno e em consequência encontrase envenenado O funcionário preterido numa promoção precisa do complô de perseguição e de ser espionado em sua sala do contrário ele teria de admitir seu fracasso Não é preciso necessariamente ser o delírio de perseguição a surgir dessa maneira Um delírio de grandeza consegue talvez ainda melhor manter o que é penoso afastado do Eu É o caso da cozinheira que perdeu seus atrativos e que deveria se acostumar à ideia de que está excluída da felicidade do amor Esse é o momento certo para o senhor da casa em frente que claramente quer casarse com ela e lhe dá a entender de um modo notavelmente tímido mas mesmo assim inconfundível Em todos os casos a ideia delirante é mantida com a mesma energia com que o Eu se defende de alguma outra ideia penosamente insuportável Portanto eles amam o delírio como a si mesmos Eis o segredo Pois bem como se relaciona essa forma de defesa com as já conhecidas 1 Histeria 2 Representação obsessiva 3 Confusão alucinatória 4 Paranoia Estamos levando em conta afeto conteúdo da representação e as alucinações 1 Histeria a representação intolerável não é admitida na associação com o Eu Seu conteúdo se mantém isolado falta na consciência seu afeto é despachado erledigt por conversão ao corporal a única psiconeurose3 2 Representação obsessiva a representação intolerável não é igualmente admitida na associação O afeto permanece conservado o conteúdo é substituído 3 Confusão alucinatória a representação intolerável inteira afeto e conteúdo se mantém afastada do Eu o que só é possível às custas de um desligamento do mundo externo Chegase às alucinações que são favoráveis ao Eu e apoiam a defesa 4 Paranoia conteúdo e afeto da representação intolerável se conservam em direto contraste com 3 mas são projetados no mundo externo Alucinações que se originam em diversas formas são hostis ao Eu mas reforçam a defesa Em contraste com isso as psicoses histéricas nas quais justamente as representações rechaçadas ganham poder Tipo ataque e état secondaire As alucinações são hostis ao Eu RESUMO A ideia delirante ou é uma cópia ou o oposto da representação rechaçada delírio de grandeza Paranoia e confusão alucinatória são as duas psicoses de desafio ou oposição A referência a si mesmo da paranoia é igual às alucinações dos estados confusionais que justamente procuram afirmar exatamente o contrário do fato rechaçado Assim a referência a si mesmo sempre tenta provar que a projeção está correta MANUSCRITO K ANEXO À CARTA A FLIESS DE 1º DE JANEIRO DE 1896 AS NEUROSES DE DEFESA Conto de fadas natalino Existem quatro tipos e muitas formas dessas neuroses Posso apenas traçar uma comparação entre histeria neurose obsessiva e uma forma de paranoia Elas têm diversas coisas em comum São aberrações patológicas de estados psíquicos afetivos normais do conflito4 histeria da recriminação neurose obsessiva da ofensa Kränkung paranoia do luto amência alucinatória aguda Distinguemse desses afetos por não levarem a nenhuma resolução mas a um dano permanente do Eu Elas surgem das mesmas ocasiões que seus modelos afetivos se para o desencadeamento mais duas condições forem preenchidas que seja de natureza sexual e que ocorra no período anterior à maturidade sexual condições da sexualidade e do infantilismo Sobre as condições da pessoa não conheço nada de novo gostaria de dizer que de maneira geral a hereditariedade é uma condição a mais no que ela facilita e intensifica o efeito patológico Portanto é aquela condição que possibilita sobretudo as gradações do normal ao extremo Não creio que a hereditariedade determine a escolha da neurose de defesa Existe uma tendência normal à defesa isto é uma tendência contrária a direcionar a energia psíquica de tal maneira que produza desprazer Essa tendência que está ligada às mais fundamentais relações do mecanismo psíquico princípio de constância não pode ser empregada contra as percepções pois estas sabem como conquistar atenção testemunhada pela consciência ela só é levada em conta contra lembranças e representações do pensamento Ela é inócua quando se trata de representações que na época estavam ligadas ao desprazer mas que não são capazes de suscitar nenhum desprazer atual a não ser o recordado em tais casos ela também pode ser superada pelo interesse psíquico No entanto a tendência à defesa se torna nociva quando se volta para representações que mesmo como recordações podem ocasionar um novo desprazer tal como é o caso das representações sexuais De fato aqui se realiza a única possibilidade de a lembrança produzir a posteriori nachträglich o efeito de uma liberação mais intensa do que a de sua vivência correspondente Para isso só é preciso uma coisa que entre a vivência e sua repetição na lembrança se interponha a puberdade que tanto intensifica o efeito do despertar Para essa exceção o mecanismo psíquico parece não estar preparado e por isso a condição para que se fique livre das neuroses de defesa é que não ocorra nenhuma irritação sexual significativa antes da puberdade cujo efeito aliás deve ser ampliado até uma magnitude patologizante através da disposição hereditária Daqui se ramifica um problema colateral a que se deve o fato de que sob condições análogas produzase em vez da neurose a perversidade ou simplesmente a imoralidade 5 Ao fundo do enigma psicológico conduz a interrogação sobre onde se origina o desprazer que vai ser ocasionado através de estimulação sexual prematura sem o qual um recalcamento não pode ser explicado A resposta mais imediata vai apontar para o fato de que vergonha e moralidade são as forças recalcadoras e que a vizinhança natural dos órgãos sexuais infalivelmente despertará também repugnância na vivência sexual Onde não existe nenhuma vergonha como no indivíduo masculino onde nenhuma moralidade tem êxito como nas classes sociais mais baixas onde a repugnância é embrutecida pelas condições de vida como no campo nesses casos não haverá nenhum recalcamento e assim nenhuma neurose será a consequência da estimulação sexual infantil Contudo temo que essa explicação não se sustente em um exame mais profundo Não creio que a liberação de desprazer em vivências sexuais seja a consequência da combinação fortuita de determinados fatores de desprazer A experiência cotidiana ensina que quando a libido está suficientemente intensa a repugnância não é sentida e a moralidade é superada e eu acho que o aparecimento da vergonha está ligado à vivência sexual por uma conexão mais profunda Em minha opinião deve haver uma fonte independente de liberação de desprazer na vida sexual uma vez que esteja presente ela pode animar as percepções de repugnância emprestar força à moralidade e assim por diante Atenhome ao modelo da neurose de angústia do adulto em que uma quantidade proveniente da vida sexual causa uma perturbação no psíquico perturbação que igualmente teria encontrado uma utilização no processo sexual Enquanto não houver uma teoria correta do processo sexual permanece a questão sobre o aparecimento do desprazer atuante no recalcamento O desenrolar do adoecimento nas neuroses de recalcamento é em geral sempre o mesmo 1 a vivência sexual ou a série de vivências traumática prematura a ser recalcada 2 seu recalcamento em uma ocasião anterior que desperta a lembrança correspondente ocasião em que há formação de um sintoma primário 3 um estágio de defesa bemsucedida que equivale à saúde exceto quanto à existência do sintoma primário 4 a fase em que as representações recalcadas retornam e na luta entre elas e o Eu são formados os novos sintomas da doença propriamente dita 5 uma fase de nivelamento de dominação ou de cura deficiente Na maneira como retornam as representações recalcadas revelamse as diversas diferenças de cada uma das neuroses outras no modo de formação do sintoma e na sua evolução No entanto o caráter específico de cada uma das neuroses reside no modo como o recalcamento é realizado O desenrolar mais transparente para mim é o da neurose obsessiva pois a conheci melhor A NEUROSE OBSESSIVA Aqui a vivência primária foi provida de prazer foi ativa no menino ou passiva na menina sem combinação com dor ou repugnância o que na menina em geral pressupõe uma idade maior cerca de oito anos Essa vivência recordada mais tarde dá motivo para a produção de desprazer mas na verdade primeiro é gerada uma recriminação que é consciente Parece até que todo o complexo psíquico lembrança e recriminação fora consciente desde o início Mais tarde sem que nada novo seja acrescentado ambas são recalcadas e em troca formase na consciência um contrassintoma Gegensymptom uma nuance de conscienciosidade O recalcamento pode acontecer porque a lembrança prazerosa em si gera desprazer quando de sua reprodução em anos posteriores o que seria explicável por uma teoria da sexualidade Mas pode ocorrer de outra maneira Em todos os meus casos de neurose obsessiva descobriuse numa idade muito precoce anos antes da experiência de satisfação uma vivência puramente passiva o que dificilmente seria um acaso Podese pensar então que é a combinação posterior dessa vivência passiva com a vivência de prazer que agrega desprazer à lembrança prazerosa e possibilita o recalcamento Seria então uma condição clínica da neurose obsessiva que a vivência passiva aconteça tão cedo que não seja capaz de impedir a ocorrência espontânea da vivência de prazer A fórmula seria então Desprazer prazer recalcamento As relações temporais entre ambas as vivências e o momento da maturidade sexual seriam o fator determinante No estágio do retorno do recalcado verificase que a recriminação retorna inalterada mas só raramente a ponto de chamar a atenção para si emerge portanto durante certo tempo como pura consciência de culpa sem conteúdo Muitas vezes dependendo do tempo e do conteúdo ela vem ligada a um conteúdo que fica duplamente desfigurado primeiro por ela dizer respeito a uma ação presente ou futura por último por ela não significar o acontecimento real mas sim um sucedâneo da categoria do análogo ou seja uma substituição A representação obsessiva é portanto um produto de compromisso correto no tocante ao afeto e à categoria mas falso pelo deslocamento temporal e pela substituição analógica O afeto da recriminação pode através de diversos estados psíquicos transformarse em outros afetos que podem então entrar na consciência de maneira mais nítida do que ele próprio portanto como angústia Angst a partir das consequências da ação recriminatória hipocondria temor Furcht por seus efeitos corporais delírio de perseguição temor por suas consequências sociais vergonha temor do conhecimento dos outros sobre a ação recriminatória e assim por diante O Eu consciente se contrapõe à representação obsessiva como algo estranho parece que lhe recusa a crença com ajuda da representação contrária da conscienciosidade formada muito tempo antes mas nesse estágio pode às vezes acontecer uma dominação do Eu pela representação obsessiva por exemplo quando episodicamente se interpola uma melancolia do Eu Fora isso o estágio da doença é tomado pela luta defensiva do Eu contra a representação obsessiva luta que produz novos sintomas os da defesa secundária A representação obsessiva é como qualquer outra atacada de forma lógica apesar de sua compulsão não poder ser resolvida aumento da conscienciosidade compulsão a testar e a acumular são os sintomas secundários Surgem outros sintomas secundários em que a compulsão se transfere para impulsos motores contra a representação obsessiva por exemplo para a ruminação de ideias para a bebida dipsomania para rituais de proteção e assim por diante folie de doute Assim formamse três espécies de sintoma a o sintoma primário da defesa conscienciosidade b os sintomas de compromisso da doença representações obsessivas ou afetos obsessivos c os sintomas secundários da defesa compulsão para a ruminação de ideias compulsão a acumular dipsomania obsessão cerimoniosa Aqueles casos em que não é o conteúdo da lembrança que se torna capaz de consciência através de substituição mas sim o afeto da recriminação através de transformação dão a impressão de ter ocorrido ali um deslocamento ao longo de uma cadeia de deduções me repreendo por causa de um acontecimento temoque outros saibam sobre isso por isso me envergonho diante de outras pessoas Assim que o primeiro elo dessa cadeia é recalcado a compulsão se lança ao segundo ou terceiro e produz duas formas de delírio de ser notado que no entanto pertencem de fato à neurose obsessiva O desenlace da luta defensiva acontece através da mania generalizada de dúvida ou do desenvolvimento de uma existência extravagante com inumeráveis sintomas de defesa secundária se é que chega a haver esse desenlace Uma questão ainda em aberto é se as representações recalcadas retornam em si e por si sem o trabalho auxiliar de uma força psíquica atual ou se precisam de um auxílio como esse para cada golpe de retorno Minhas experiências apontam para a última situação Parecem ser os estados de libido atual insatisfeita que utilizam sua força de desprazer para despertar a recriminação recalcada Uma vez ocorrido esse despertar e tendo surgido sintomas através da influência do recalcado sobre o Eu a massa de representações recalcada deve seguir trabalhando independentemente mas nas oscilações de sua potência quantitativa permanece sempre dependente do montante da tensão libidinal em cada caso A tensão sexual que não tem o tempo para se tornar desprazer porque é apaziguada permanece inofensiva Os neuróticos obsessivos são pessoas que finalmente correm o perigo de que toda a tensão sexual neles produzida diariamente se transforme em recriminação ou em sintomas que são sua consequência mesmo que no presente não reconheçam novamente aquela recriminação primária A cura da neurose obsessiva ocorre fazendose retroceder todas as substituições e transformações de afeto encontradas até que a recriminação primária e sua vivência sejam libertadas e possam ser colocadas diante do Eu para novo julgamento Para isso é preciso elaborar a fundo durcharbeiten6 um número inimaginável de representações intermediárias ou de compromisso que fugazmente podem se tornar representações obsessivas Ganhase a mais viva convicção de que para o Eu é impossível dirigir ao recalcado aquela parte da energia psíquica conectada com o pensamento consciente É preciso acreditar que as representações recalcadas subsistem e entram desinibidamente nas mais corretas conexões de pensamento mas a sua lembrança também pode ser despertada por meras acusações A suposição de que a moralidade como força recalcante era apenas um pretexto é corroborada pela experiência de que no trabalho terapêutico a resistência se serve de quaisquer motivos possíveis de defesa PARANOIA As condições clínicas e proporções temporais de prazer e desprazer na vivência primária ainda me são desconhecidas O que conheço é o fato do recalcamento o sintoma primário e o estágio da doença condicionado pelo retorno das representações recalcadas A vivência primária parece ser de natureza semelhante à da neurose obsessiva o recalcamento acontece depois que essa lembrança não se sabe como ocasionou desprazer No entanto não se forma nenhuma recriminação que seria logo recalcada mas o desprazer que surge é atribuído segundo o esquema psíquico da projeção a alguém próximo Nebenmensch O sintoma primário que se forma é a desconfiança sensibilidade a outros Nesse caso a crença em uma recriminação foi impedida É possível vislumbrar agora diversas formas dependendo de se apenas o afeto foi recalcado por projeção ou se o conteúdo da vivência também foi juntamente recalcado O retorno atinge então apenas o afeto penoso ou também a lembrança No caso II que eu mesmo conheço mais exatamente o conteúdo da vivência retorna como um pensamento em forma de ocorrência repentina ou como uma alucinação visual ou sensorial O afeto recalcado parece retornar sempre como alucinação auditiva Os fragmentos de lembrança que retornam estão desfigurados na medida em que são substituídos por imagens análogas da atualidade portanto só são desfigurados de maneira simples por substituição temporal e não por formação de sucedâneos As vozes restituem a recriminação igualmente como sintoma de compromisso e na verdade primeiro no teor desfigurado até a indeterminação e transformado em ameaça e segundo referido em vez de à vivência primária justamente à desconfiança isto é ao sintoma primário Como a crença foi impedida à recriminação primária ela fica disponível aos sintomas de compromisso sem oscilações7 O Eu não os considera estranhos e é estimulado por eles a fazer tentativas de esclarecimento que podemos chamar de delírio de assimilação Aqui a defesa com o retorno do recalcado em forma desfigurada fracassa imediatamente e o delírio de assimilação não pode ser interpretado como sintoma da defesa secundária mas como o início de uma alteração no Eu como expressão do avassalamento O processo atinge sua conclusão na melancolia pequenez do Eu que secundariamente liga às distorções aquela crença que foi impedida à recriminação primária ou o que é mais frequente e mais sério em uma formação delirante de proteção delírio de grandeza até o Eu ser completamente reelaborado O elemento determinador da paranoia é o mecanismo de projeção com a recusa Ablehnung da crença na recriminação Daí os traços característicos comuns da neurose a significação das vozes como aquele meio através do qual os outros nos influenciam e igualmente a dos gestos que nos denunciam a vida anímica dos outros a importância do tom da fala e das alusões tendo em vista que a relação direta do conteúdo da fala com a lembrança recalcada não é suscetível de consciência O recalcamento teve lugar na paranoia a partir de um processo consciente e complicado de pensamento impedimento da crença talvez isso seja um indício de que ela só se instalou numa idade mais tardia do que na neurose obsessiva e na histeria As premissas do recalcamento são sem dúvida as mesmas Ainda está pendente se o mecanismo de projeção se situa inteiramente na disposição individual ou se é escolhido a partir de determinados fatores temporais e fortuitos Quatro espécies de sintomas a sintomas primários de defesa b sintomas de compromisso do retorno c sintomas secundários de defesa d sintomas de subjugação do Eu HISTERIA A histeria pressupõe necessariamente uma vivência primária de desprazer portanto de natureza passiva A passividade sexual natural da mulher explica a sua predileção pela histeria Quando encontrei histeria em homens pude comprovar extensa passividade sexual em sua anamnese É condição da histeria além disso que a vivência desprazerosa primária não aconteça numa idade muito precoce quando a liberação de desprazer é ainda muito limitada e quando ainda podem ocorrer eventos prazerosos de maneira independente do contrário chega se apenas à formação de representações obsessivas É por isso que nos homens encontramos com frequência uma combinação de ambas as neuroses ou a substituição de uma histeria inicial por uma neurose obsessiva posterior A histeria começa com a subjugação do Eu que é o fim aonde leva a paranoia A elevação da tensão na vivência desprazerosa primária é tão grande que o Eu não resiste a ela não forma nenhum sintoma mas precisa tolerar uma manifestação de escoamento em geral uma expressão hiperintensa de excitação Podemos chamar esse primeiro estágio de histeria de susto Schreckhysterie seu sintoma primário é a manifestação de susto com lacuna psíquica Ainda não se sabe até que idade pode chegar essa primeira subjugação histérica do Eu O recalcamento e a formação de sintomas de defesa ocorrem só posteriormente na lembrança e a partir daí numa histeria podem se combinar ao acaso defesa e subjugação isto é formação de sintoma e irrupção de ataques O recalcamento não ocorre pela formação de uma representação superintensa contrária mas pelo reforço de uma representaçãolimite Grenzvorstellung8 que de agora em diante representa a lembrança recalcada no curso do pensamento Ela pode ser chamada de representaçãolimite porque por um lado pertence ao Eu consciente e por outro constitui um fragmento não desfigurado da lembrança traumática Então ela é igualmente o resultado de um compromisso que no entanto não se manifesta na substituição baseada em alguma categoria lógica e sim no deslocamento da atenção ao longo de uma série de representações ligada por simultaneidade Quando o evento traumático encontrou saída em uma manifestação motora é justamente esta que se torna uma representaçãolimite e o primeiro símbolo do recalcado Assim não há necessidade de se supor que a cada repetição do ataque primário uma representação esteja sendo reprimida unterdrückt tratase antes de tudo de uma lacuna no psíquico Lücke im Psychischen9 CARTA A FLIESS 112 5210 6 de dezembro de 1896 Meu querido Wilhelm Depois de ter hoje desfrutado da plena medida de trabalho e de rendimento de que preciso para o meu bemestar 10 horas e 100 florins depois de estar morto de cansaço e espiritualmente bemdisposto quero tentar te apresentar de maneira simples um pouquinho da última especulação Você sabe que eu trabalho com a suposição de que nosso mecanismo psíquico tenha surgido de uma sobreposição de camadas na qual de tempos em tempos o material presente na forma de traços mnêmicos Erinnerungsspuren sofre uma reorganização uma reescrita11 a partir de novas relações Portanto o que há de fundamentalmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória não está disposta em apenas uma mas em várias camadas que é escrita12 com vários tipos de signos Zeichen Postulei a existência de uma reorganização semelhante algum tempo atrás Afasia13 para as vias Bahnungen que provêm da periferia do corpo até o córtex Quantos desses tipos de escrita existem eu não sei Pelo menos três provavelmente mais Isso pode ser visto no diagrama esquemático abaixo que pressupõe que os diferentes modos de escrita Niederschriften14 sejam também separados não necessariamente em termos tópicos de acordo com seus neurônios portadores Neuronträgern Figura 115 P são neurônios em que se originam as percepções às quais a consciência se liga mas que em si não retêm nenhum vestígio Spur do que aconteceu Vale dizer que consciência e memória excluemse mutuamente sP signos de percepção são o primeiro modo de escrita das percepções totalmente incapaz de produzir consciência e organizado a partir de associações por simultaneidade Ic inconsciência16 é o segundo modo de escrita disposto a partir de outras relações talvez causais Traços Ic corresponderiam talvez a lembranças conceituais e seriam da mesma forma inacessíveis à consciência Pc préconsciência é o terceiro modo de escrita ligado a representações de palavra Wortvorstellungen correspondendo ao nosso Eu oficial Os investimentos Besetzungen provenientes dessa Pc tornamse conscientes de acordo com determinadas regras e na verdade essa consciência secundária do pensamento é algo da ordem da posterioridade nachträglichesno que diz respeito ao tempo provavelmente ligado à reanimação alucinatória de representações de palavra de modo que os neurônios da consciência seriam novamente neurônios de percepção e em si sem memória Se eu pudesse fornecer as características da percepção e dos três modos de escrita eu teria descrito uma nova psicologia Tenho algum material à disposição mas essa não é minha intenção agora Quero enfatizar que os modos de escrita sobrepostos em sequência representam o trabalho psíquico de épocas sucessivas da vida Na fronteira de duas dessas épocas precisa acontecer a tradução Übersetzung17 do material psíquico Explico as singularidades das psiconeuroses através do fato de essa tradução não ter ocorrido para um determinado material o que tem determinadas consequências Isso porque persistimos na tendência à equivalência quantitativa Cada escrita sobreposta Überschrift posterior inibe a anterior e desvia seu processo excitatório Onde quer que falte a escrita sobreposta posterior a excitação é resolvida de acordo com as leis psicológicas vigentes no período psíquico anterior e segue pelos caminhos disponíveis naquela ocasião Dessa maneira subsiste um anacronismo numa determinada província ainda vigoram os fueros18 sobrevivências acontecem A falha da tradução die Versagung der Übersetzung é isso que clinicamente se chama recalcamento Seu motivo é sempre uma liberação de desprazer que seria gerado pela tradução como se esse desprazer provocasse uma perturbação no pensamento que não permitisse o trabalho de tradução Dentro da mesma fase psíquica e entre modos de escrita da mesma espécie fazse valer uma defesa normal por causa do desenvolvimento de desprazer mas a defesa patológica só ocorre contra um vestígio de lembrança Erinnerungsspur ainda não traduzido da fase anterior Não pode ser pela magnitude da liberação de desprazer que a defesa consiga promover o recalcamento19 Com frequência nos esforçamos em vão justamente contra lembranças de mais intenso desprazer Então chegamos à seguinte configuração se um evento A enquanto era atual despertou um determinado desprazer então sua escrita mnêmica Erinnerungsniederschrift AI ou AII encontra um meio de inibir a liberação de desprazer no caso de reativação da lembrança Quanto mais for lembrado mais inibida por fim tornase a liberação No entanto existe um caso para o qual a inibição não basta se A enquanto era atual ocasionou determinado desprazer e no despertar libera um novo desprazer então este não pode ser inibido A lembrança comportase então como se fosse algo atual Esse caso só é possível em ocorrências sexuais porque as magnitudes das excitações que elas liberam aumentam por si só no decorrer do tempo com o desenvolvimento sexual Portanto a ocorrência sexual em uma fase tem efeito atual e consequentemente não é passível de inibição na fase seguinte Portanto a condição da defesa patológica recalcamento é a da natureza sexual do evento e sua ocorrência em uma fase anterior Nem todos os eventos sexuais geram desprazer a maioria gera prazer Então a reprodução da maioria deles deve estar ligada a um prazer não passível de inibição Esse tipo de prazer não passível de inibição constitui uma compulsão Zwang Assim chegamos às seguintes teses quando um evento sexual com diferença de fase é lembrado surge uma compulsão na geração de prazer e recalcamento na geração de desprazer Em ambos os casos parece estar inibida a tradução para os signos da nova fase A clínica nos apresenta três grupos de psiconeuroses sexuais histeria neurose obsessiva e paranoia e ensina que as lembranças recalcadas no caso da primeira na idade de 1 ano e meio até 4 anos no caso da neurose obsessiva na idade de 4 até 8 anos e paranoia na idade de 8 até 14 anos figuram como algo atual Mas antes dos 4 anos ainda não ocorre nenhum recalcamento portanto os períodos psíquicos do desenvolvimento e as fases sexuais não coincidem O seguinte pequeno esquema deve ser exposto neste ponto Outra consequência das vivências sexuais prematuras é a perversão20 cuja condição parece ser o fato de a defesa não ocorrer antes de o aparelho psíquico ter se constituído por completo ou de jamais ocorrer Até aqui tratamos da superestrutura Oberbau Agora segue a tentativa de colocála sobre a base orgânica É preciso esclarecer por que experiências sexuais geradoras de prazer quando eram atuais ao serem recordadas numa fase diferente produzem desprazer em algumas pessoas e persistem como compulsão em outras No primeiro caso elas precisam claramente produzir mais tarde um desprazer que no início não foi liberado É preciso também mostrar as derivações das diferentes fases as psicológicas e as sexuais As últimas21 você me ensinou a conhecer como múltiplos especiais do ciclo feminino de 28 dias22 100 π 7 ¾ anos além de 20 π 1 ano e 6 ½ meses 200 π 15 anos 50 π 3 anos e 10 meses23 Se eu tomar todos os períodos observados como múltiplos desse tipo teremos de um lado que o período de 23 dias continuará não sendo considerado e de outro continuará sem explicação por que fases psíquicas e sexuais não coincidem 4 anos e por que surge ora a perversão ora a neurose Faço então a tentativa de supor que há uma substância masculina de 23 dias cuja liberação será sentida como prazer em ambos os sexos e uma substância de 28 dias cuja liberação será sentida como desprazer Percebo então que posso apresentar todos os períodos psíquicos como múltiplos de períodos π de 23 dias se eu incluir no cálculo o período de gestação 276 dias 12 π 3 12 π 1 ½ anos 6 12 π 3 ¾ anos 12 12 π 8 anos 18 12 π 12 13 anos 21 12 π 14 ¼ anos 24 12 π 17 anos Isso significaria que o desenvolvimento psíquico ocorre em períodos de 23 dias que se somariam a múltiplos de 3 6 12 24caso em que o sistema duodecimal seria eficaz A unidade seria em todos os casos o período de gestação que é igual a 10 π ou 12 π aproximadamente O resultado seria apenas que o desenvolvimento psíquico progrediria de acordo com os múltiplos 3 6 12 dessa unidade enquanto o período de gestação é igual a 12 π e o desenvolvimento sexual de acordo com os múltiplos 5 10 20 enquanto o mesmo tempo é igual a 10 π Há dois pontos dignos de nota 1 que no desenvolvimento psíquico o tempo intrauterino precisa ser levado em conta não há outro jeito enquanto no sexual o cálculo só pode começar no nascimento Isso faz lembrar que durante a gravidez ocorre um acúmulo da substância de 28 dias que só é liberada no parto 2 que os períodos de 28 dias somamse de maneira mais rara e mais intensa que os de 23 dias como se o desenvolvimento humano superior dependesse dessa característica vergonha moral Os dois tipos de fase estariam assim entrelaçados A maioria das fases psíquicas se encaixaria muito bem na suposição da existência de ainda outras traduções ou inovações no aparelho psíquico Observase também que a somação no curso da vida abrange unidades temporais cada vez maiores Para decidir entre perversão ou neurose sirvome da bissexualidade de todos os seres humanos Num ser puramente masculino haveria também nas duas barreiras sexuais um excesso de liberação masculina portanto produção de prazer e em consequência perversão no puramente feminino um excesso de substância desprazerosa nessas ocasiões Nas primeiras fases ambas as liberações seriam paralelas isto é produziriam um excesso normal de prazer Daí é possível explicar a preferência das mulheres genuínas pelas neuroses de defesa Desse modo a natureza intelectual dos homens estaria comprovada na base da tua teoria Por fim não posso ignorar unterdrücken24 a suposição de que a distinção clinicamente identificada por mim entre a neurastenia e a neurose de angústia esteja ligada à existência de ambas as substâncias de 23 e de 28 dias Além das duas aqui supostas poderia haver várias de cada espécie A histeria me é cada vez mais apontada como consequência da perversão do sedutor a hereditariedade cada vez mais como sedução por parte do pai Assim surge uma alternância entre as gerações 1ª geração perversão 2ª geração histeria que então é estéril Às vezes na mesma pessoa uma metamorfose perversa na idade vigorosa e depois a partir de um período de angústia histérica Afinal a histeria não é sexualidade repudiada abgelehnte mas melhor dizendo perversão repudiada Por trás disso então a ideia das zonas erógenas abandonadas isto é na infância a liberação sexual seria obtida por várias partes do corpo as quais então posteriormente só conseguem liberar a substância da angústia de 28 dias e não as outras Nessa diferenciação e limitação residiriam o progresso da cultura e o desenvolvimento moral e individual O ataque histérico não é um descarregamento Entladung e sim uma ação e preserva o caráter original de qualquer ação o de ser um meio de reprodução de prazer Isso é o que ele é ao menos essencialmente além disso ele se motiva a partir do préconsciente com toda espécie de outras razões Assim têm ataques de sono aqueles doentes aos quais foi feito algo sexual enquanto dormiam eles voltam a dormir para vivenciar a mesma coisa e com isso provocam em si frequentemente desmaios histéricos a tontura os acessos de choro tudo isso visa ao outro na maioria das vezes no entanto visa àquele outro préhistórico inesquecível que ninguém mais pode alcançar Até o sintoma crônico de ficar deitado na cama Bettsucht25 se explica assim Um de meus pacientes ainda choraminga dormindo tal como fazia naquela época para ser levado para a cama pela mãe que morreu quando ele tinha 22 meses o ataque nunca parece ocorrer como expressão intensificada da emoção2627 Eis um pouquinho da minha experiência cotidiana uma de minhas pacientes em cuja história o pai altamente perverso desempenha o papel principal tem um irmão mais novo que é tido como um perfeito maucaráter Um belo dia ele aparece em meu consultório para declarar chorando que não é um maucaráter e sim um doente com impulsos anormais e uma inibição da vontade Além disso ele se queixa num comentário totalmente à parte do que certamente são dores de cabeça de origem nasal Eu lhe recomendo procurar a irmã e o cunhado os quais ele vai efetivamente visitar De noite a irmã me chama por causa de uma situação grave Fico sabendo no dia seguinte que após a partida do irmão ela teve um acesso dos mais pavorosos de dor de cabeça que ela normalmente nunca tem Motivo o irmão tinha contado que quando tinha 12 anos sua atividade sexual consistia em beijar lamber os pés das irmãs quando elas se despiam de noite A respeito disso chegou a ela no inconsciente a lembrança de uma cena na qual ela com 4 anos observa o pai em pleno arrebatamento sexual lambendo os pés de uma ama de leite Com isso ela tinha intuído que as preferências sexuais do filho derivavam das do pai Logo que este fora também o sedutor do filho Agora ela podia identificarse com ele e assumir sua dor de cabeça Ela pôde fazêlo aliás porque na mesma cena o pai enfurecido havia atingido com a bota a cabeça da criança escondida embaixo da cama O irmão odeia qualquer perversidade ao mesmo tempo que sofre de impulsos compulsivos Portanto ele recalcou determinados impulsos que são substituídos por outros com compulsão Esse é de modo geral o segredo dos impulsos compulsivos Zwangsimpulse Se ele conseguisse ser perverso seria saudável como o pai É interessante que o cálculo após somas sucessivas não revela nada quer se inclua ou não o período intrauterino nas contas I 12 π T período de gestação 276 dias intrauterino 3 12 π 3T 2 anos e 3 meses extrauterino 6 12 π 9T 6 anos e 9 meses 12 12 π 21T 15 anos e 9 meses II 12 π 9 meses 3 12 π 4T 3 anos 6 12 π 10T 7 anos e 6 meses 12 12 π 22T 16 ½ anos Isso só funciona quando os 12 π intrauterinos são incluídos no cálculo e na soma total como colocado na última carta28 Isso significa alguma coisa Fico feliz por eles não terem mais colocado em foco a tua conferência Assim podemos xingálos tranquilamente eles são um bando de idiotas e deveriam nos deixar em paz Agora um assunto particular Oscar e Melanie estiveram em casa e causaram boa impressão Preciso voltar a gostar dele Sobre a veracidade de um boato que vem ligando Marie Bondy e Robert Breuer não quero te perguntar explicitamente apenas indicar que estou sabendo sobre ele Desejolhes tudo de bom só que tenho certeza absoluta de que não quero me encontrar com o clã dos Breuer Tenho estado trabalhando de 10 a 11 horas diariamente e me sentindo consideravelmente bem mas quase rouco Será que isso é tensão excessiva das cordas vocais ou aneurisma Também não é preciso nenhuma resposta O melhor é travailler sans raisonner trabalhar sem pensar como aconselha o velho Candide Sobre a resolução espontânea da paralisia pupilar no caso do olhar fixo não sei realmente nada e duvido que possa descobrir algo É claro que a priori é muito improvável Certamente fósforo não é Agora enfeitei minha sala com cópias de estátuas florentinas Foi uma fonte de extraordinário revigoramento para mim estou pensando em ficar rico para poder repetir essas viagens Um congresso29 em solo italiano Nápoles Pompeia As mais cordiais saudações a todos vocês Teu Sigm CARTA A FLIESS 139 69 Viena 21 de setembro de 1897 Dr Sigm Freud Docente de doenças nervosas ad Universidade Querido Wilhelm Aqui estou eu novamente desde ontem de manhã reanimado bemdisposto empobrecido sem trabalho no momento e escrevo a você em primeiro lugar depois de organizada a nova moradia E agora quero confiarlhe imediatamente o grande segredo que nos últimos meses foime lentamente ficando claro Não acredito mais em minha neurótica Neurotika30 É claro que isso não é compreensível sem uma explicação aliás você mesmo considerou digno de crédito o que eu consegui te contar Portanto quero começar num sentido histórico a falar de onde surgiram os motivos para a descrença As contínuas decepções nas tentativas de levar uma análise efetivamente a cabo a evasão de pessoas que durante algum tempo estavam mais bem impressionadas a falta de resultados plenos com os quais eu estava contando a possibilidade de explicar a mim mesmo os resultados parciais de outra maneira que não a habitual eis aí o primeiro grupo Depois a surpresa de que em todos os casos o pai tinha de ser acusado de perversão sem excluir o meu a constatação da inesperada frequência da histeria na qual é sempre a mesma condição que permaneceria mantida muito embora uma difusão como essa da perversão contra crianças seja pouco provável A perversão tem de ser incomensuravelmente mais frequente do que a histeria pois o adoecimento só aparece quando há um acúmulo de eventos e quando se soma um fator que enfraquece a defesa Depois em terceiro lugar a constatação segura de que não há um signo de realidade Realitätszeichen no inconsciente de forma que não se pode distinguir entre a verdade e a ficção investida com afeto Assim restaria a solução de que a fantasia sexual se apodera regularmente do tema dos pais Em quarto lugar a ponderação de que a lembrança inconsciente não vem à tona na psicose mais profunda de maneira que o segredo das vivências juvenis não pode ser revelado nem mesmo no delírio mais confuso Se vemos então que o inconsciente jamais supera a resistência do consciente diminui também a expectativa de que no tratamento Kur possa acontecer o inverso até a completa domesticação Bändigung do inconsciente pelo consciente Eu estava tão influenciado por isso que estive prestes a desistir de duas coisas da solução plena de uma neurose e do conhecimento seguro de sua etiologia na infância Agora não sei absolutamente como me situar pois não conseguir chegar à compreensão teórica do recalcamento e de seu jogo de forças Parece novamente discutível que somente as vivências posteriores deem ensejo a fantasias que remontam à infância e com isso o fator da disposição hereditária recupera um âmbito de poder do qual eu havia me proposto a removêlo zu verdrängen31 no interesse do esclarecimento da neurose Se eu estivesse irritado confuso extenuado essas dúvidas poderiam ser interpretadas como sinais de fraqueza Como me encontro no estado oposto preciso reconhecêlas como resultado de um trabalho intelectual honesto e vigoroso e me orgulhar de ainda ser capaz de tecer essa crítica depois de ter ido tão fundo Será que essa dúvida representa apenas um episódio no avanço de um novo conhecimento É curioso também que não tenha havido nenhum sentimento de vergonha para o qual afinal poderia haver motivo É claro que não vou contar isso em Dan não vou falar sobre isso em Ascalon32 terra dos filisteus mas diante de você e cá para mim tenho na verdade mais o sentimento de uma vitória do que de uma derrota o que certamente não é correto33 Que bom que a tua carta acaba de chegar Ela faz com que eu antecipe uma proposta com a qual eu queria concluir Se neste tempo ocioso eu for à Estação Norte estarei com você no domingo na hora do almoço e posso voltar na noite seguinte Você pode liberar esse dia para um idílio a dois interrompido por um idílio a três e três e meio Era isso que eu queria perguntar Ou você estará com um convidado querido em casa ou tem algo urgente a fazer fora de casa Ou se eu tiver de voltar para casa de noite o que não valeria a pena estariam valendo as mesmas condições para o caso de eu ir para a Estação Norte na sexta de noite e ficar um dia e meio com você Agora vou continuar a minha carta Altero a afirmação de Hamlet To be in readiness34 estar preparado para estar animado é tudo A rigor eu poderia estar muito insatisfeito A expectativa da fama eterna era tão boa assim como a da segurança da riqueza a total independência viajar elevar as crianças acima das preocupações graves que me levaram a juventude Tudo dependia de a histeria ser ou não entendida Agora que posso ficar calmo e modesto novamente preocuparme e economizar eis que me ocorre a seguinte curta história da minha coleção Rebeca vá tirar o vestido você não é mais noiva35 Mas apesar de tudo isso estou muito animado e satisfeito por você sentir uma necessidade semelhante à minha de me ver novamente Ainda resta uma pequena angústia O que posso entender sobre as tuas questões Certamente incapaz de avaliálas criticamente mal estarei em condições de compreendêlas e a dúvida que então surge não é um produto de trabalho intelectual como a minha própria dúvida sobre minhas questões mas sim o resultado de insuficiência intelectual É mais fácil para você você pode entender tudo o que eu trago e fazer uma crítica vigorosa Preciso acrescentar mais uma coisa nesse colapso de tudo o que é valioso apenas o psicológico permaneceu incólume O sonho ainda está firme e os inícios do meu trabalho metapsicológico só ganharam admiração Pena que não se possa viver por exemplo de interpretar sonhos Martha voltou comigo a Viena Minna e as crianças ainda ficam uma semana fora Todos estiveram excelentemente bem Meu aluno o Dr Gattel foi parte da minha decepçãoApesar de muito talentoso e inteligente graças ao seu nervosismo e a diversos traços desfavoráveis de caráter pode bem ser classificado como intragável Sobre como vão vocês todos e o que mais está acontecendo entre o céu e a terra espero antecipando a tua resposta saber logo pessoalmente Cordialissimamente teu Sigm CARTA A FLIESS 228 125 Viena 9 de dezembro de 1899 Dr Sigm Freud IX Berggasse 19 Docente de doenças nervosas ad Universidade Querido Wilhelm Tua última presença aplacou um pouco mais a minha sede de notícias pessoais a teu respeito Posso então tranquilamente voltarme às questões científicas Talvez eu tenha tido êxito recentemente em um primeiro vislumbre de coisas novas Tenho diante de mim o problema da escolha da neurose Quando é que um ser humano se torna histérico em vez de paranoico Uma primeira tentativa tosca na época em que eu queria tomar a cidadela à força supunha que dependia da idade em que ocorrem os traumas sexuais da idade na vivência Isso foi abandonado há muito tempo mas fiquei então sem nenhuma suspeita até há poucos dias quando se abriu para mim um nexo com a teoria sexual A mais inferior das camadas sexuais é o autoerotismo que renuncia a uma meta psicossexual e só exige a sensação satisfatória local É seguido então pelo alo homo e hétero erotismo mas ele certamente continua a existir como uma corrente separada A histeria e sua variante a neurose obsessiva é aloerótica sua via principal é a da identificação com a pessoa amada A paranoia torna a diluir a identificação reinstaura todas as pessoas amadas que foram abandonadas na infância comparar com a discussão sobre os sonhos de exibicionismo e dissolve auflösen o próprio Eu em pessoas estranhas Assim passei a considerar a paranoia como um assalto da corrente autoerótica como um retorno ao ponto anterior A formação de perversão a ela correspondente seria a assim chamada loucura original As relações singulares do autoerotismo com o Eu originário lançariam uma boa luz sobre o caráter dessas neuroses Aqui se rompe novamente o fio da meada Quase que simultaneamente dois de meus pacientes produzem recriminações após o próprio tratamento e a morte dos pais e me mostram que meus sonhos a esse respeito foram típicos A recriminação está fadada a se ligar todas as vezes à vingança à satisfação com a desgraça alheia Schadenfreude e à satisfação diante das dificuldades excretórias dos doentes urina e fezes Um canto realmente esquecido da vida psíquica LG está progredindo mas é provável que permaneça uma trabalhadora lenta No entanto não vejo razão para temer um fracasso em nenhum ponto 14 de dezembro É mesmo uma raridade você escrever antes de mim A desolação dos últimos dias me impediu de terminar Uma época natalina em que precisamos nos abster de fazer compras pesame sobre o ânimo Que Viena não seja o lugar certo para nós estamos cansados de saber A discrição exigiu que eu não te afastasse demais de tua família A reivindicação mais antiga encontrou oposição por parte da mais íntima Assim a despedida na estação foi somente simbólica Tua notícia sobre o punhado de leitores em Berlim muito me alegra Leitores eu bem que também os tenho por aqui mas para seguidores ainda não chegou o tempo Há demasiadas coisas novas e inacreditáveis e muito poucas provas rigorosas Também não consegui convencer o meu filósofo embora ele me tivesse fornecido as mais brilhantes comprovações A inteligência é sempre fraca e para o filósofo é fácil transformar a resistência interna em refutação lógica Mais uma vez há um caso novo em perspectiva Salvo por meu resfriado a saúde reina entre nós Volto a escrever antes que o rebento chegue à tua casa As mais cordiais saudações a todos Teu Sigm 1950 Aus den Anfängen der Psychoanalyse estabelecida por Marie Bonaparte Anna Freud e Ernst Kris 1985 The complete letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fließ 18871904 editadas por J M Masson 1986 Briefe an Wilhelm Fließ 18871904 Ungekürzte Ausgabe É difícil exagerar a importância que a correspondência com Fließ teve para a constituição das principais linhas de força do pensamento de Freud Em 6 de outubro de 1910 numa carta a Ferenczi alguns anos depois da ruptura com Fließ no contexto de seu esforço de desinvestir o afeto dirigido a este Freud escreve uma frase que se tornou célebre Uma porção de investimento homossexual foi retraída e empregada no engradencimento do próprio Eu Foi me possível ter êxito onde fracassa o paranoico A existência desses documentos não era conhecida até a Segunda Guerra Mundial Foi o pulso firme da princesa Marie Bonaparte que além de adquirir o material logrou conserválo apesar das instâncias do próprio Freud de destruílo devido a seu caráter íntimo A primeira edição completa desse material apareceu apenas em 1985 depois que Jeffrey Masson convenceu Anna Freud de sua importância Freud e Fließ se conheceram no outono de 1887 em Viena Freud tinha 31 anos Fließ era dois anos mais novo Freud recémcasado com Martha Bernays acabara de montar seu consultório médico Fließ era otorrinolaringologista em Berlim A família de sua esposa Ida Bondy era próxima dos Breuer A troca epistolar entre os dois homens durou mais de 15 anos A seleção temática que o leitor tem em mãos pretende apenas oferecer algumas pinceladas de um complexo quadro de ideias muitas vezes incompletas às vezes incongruentes mas que de alguma forma fornecem os impulsos iniciais da reflexão freudiana acerca dos temas discutidos neste volume Durante a década de 1890 Freud havia enviado a Fließ diversos Manuscritos que contêm rascunhos de artigos posteriormente desdobrados Para o tema deste volume selecionamos por sua pertinência temática dois manuscritos O Manuscrito H de 24 de janeiro de 1895 intitulado Paranoia juntamente com o Manuscrito K de 1 de janeiro de 1896 intitulado As neuroses de defesa Conto de fadas natalino apresentam entre outras coisas ideias seminais da nosografia freudiana relacionadas aos diferentes mecanismos de defesa ou formas de negação de cada entidade nosográfica Eles destacam o papel da sexualidade e abordam o decisivo tema da escolha da neurose O importante artigo Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa publicado pouco tempo depois formaliza e consolida esse material A famosa Carta 112 52 de 6 de dezembro 1896 é com justiça considerada uma das mais importantes Ela apresenta um esboço da teoria do aparelho psíquico que será desenvolvido em diversos sentidos Ela tem ainda o interesse de articular a reflexão clínica e nosográfica ao distinguir histeria neurose obsessiva paranoia e perversão à reflexão tópica O leitor poderá estranhar um longo desenvolvimento de quase duas páginas em que Freud se esforça para vincular suas descobertas à teoria de Fließ acerca dos períodos esforço que logo se demonstrará infecundo A edição de 1950 assim como a Standard Edition preferiu omitir esse trecho De todo modo cabe ao leitor e não aos editores excluir ou não o que assim desejar Completam essa seleção a Carta 139 69 de 21 setembro 1897 em que Freud abandona sua teoria da sedução Não acredito mais em minha neurótica e reavalia as relações entre histeria e perversão e a Carta 228 125 de 9 de dezembro de 1899 que retorna ao importante tema dos diferentes modos de adoecimento que será retomado em 1912 em Sobre tipos neuróticos de adoecimento neste volume Nesta coleção os dois artigos sobre as Neuropsicoses de defesa serão incluídos no volume Histeria obsessão e outras neuroses NE NOTAS 1 LESSING G Emilia Galotti ato IV cena 7 NT 2 Aqui Freud parece ter empregado o termo em um sentido não técnico Nos casos em que ao contrário refere um dos termos da pulsão Trieb traduzimos Drang por pressão seu fator motor NR 3 Segundo Masson editor do original das Cartas a Fließ Freud teria escrito posteriormente a única die einzige abaixo da linha e que o trecho também poderia ser lido como psiconeurose a única NT 4 Segundo Masson o editor do original das Cartas a Fließ no lugar de conflito Freud havia escrito susto Schreckes NT 5 Sobre a questão da escolha da neurose ver Carta 228 125 de 9 de dezembro de 1899 neste mesmo volume NT 6 O verbo alemão durcharbeiten pode ser também traduzido pelo neologismo perlaborar NR 7 Apesar de constar Schwanken oscilações no texto de partida aparentemente o sentido aponta para Schranken barreiras NR 8 Grenzvorstellung representaçãolimite ou representaçãofronteira Salvo engano essa expressão não foi mais empregada por Freud ao longo de sua obra NT 9 Lücke im Psychischen lacuna no psíquico outra expressão que ao que tudo indica também não foi mais retomada ou discutida por Freud em sua obra NT 10 A numeração entre colchetes referese à seleção publicada em 1950 por Anna Freud o outro número referese à edição completa estabelecida por Masson em 1985 e retomada na edição alemã de 1986 NE 11 Traduzimos o termo Umschrift por reescrita Tomamos a liberdade de assim fazêlo tendo em vista o fato de não se tratar de uma nova inscrição Tomando o prefixo um como um movimento circular entendemos que a palavra Umschrift remete mais a um escrever com o já escrito reescrever do que a uma nova inscrição NT 12 Niedergelegt particípio passado de baixar pôr no chão consignar deitar por escrito NT 13 Freud referese ao texto Sobre a concepção das afasias Zur Auffassung der Aphasien eine kritische Studie publicado nesta coleção em 2013 Essa é uma das raras passagens em que o próprio Freud faz menção à semelhança entre o estudo das afasias e seus trabalhos posteriores NT 14 Freud concebe o aparelho psíquico como um sistema de escrita Os próprios termos escolhidos mostram isso os efeitos ou a impressão Eindruck do mundo exterior são dispostos como uma escrita Niederschrift e posterior reescrita Umschrift do signo Zeichen que se modifica em traço de memória Erinnerungsspur Todos esses processos são da ordem da escrita Se Freud insiste em caracterizar esse material como literal está nos dizendo que o inconsciente sistema de memória tem como suporte a dimensão do escrito Isso está também de acordo com a reorganização Umordnung proposta por Freud no texto NT 15 As siglas designam P percepções sP signos de percepção Ic inconsciência Pc préconsciência Cs consciência No original alemão correspondem a W Wahrnehmungen Wz Wahrnehmungszeichen Ub Unbewusstsein Vb Vorbewusstsein Bew Bewusstsein NE 16 Notese que Freud faz uso da forma Unbewusstsein inconsciência e não ainda da forma que se tornaria célebre Das Unbewusste o inconsciente O mesmo vale para a instância seguinte a préconsciência Por essa razão não empregamos aqui a consagrada sigla ICS inconsciente mas apenas Ic NE 17 Übersetzung tem em tradução a sua acepção mais usual embora possa aqui também ser interpretado como transposição NR 18 O termo fuero em espanhol no original deriva do latim forum foro em português De maneira geral designa o conjunto de direitos locais espanhóis da Idade Média Originalmente o fuero não era necessariamente escrito Na modernidade o termo adquiriu uma nova significação Com a unificação da nação espanhola sob a égide do direito castelhano muitos de seus territórios passam a reivindicar sua própria constituição frente ao centralismo do Estado moderno Os fueros passam a significar pois o direito especial de uma região como de Aragão Navarra ou Valência Cf GARCÍAGALLO DE DIEGO Alfonso Aportación al estudio de los fueros Anuario de historia del derecho español n 26 p 387446 1956 NE 19 Os próximos parágrafos ligam as suposições sobre a função do aparelho psíquico com aquelas sobre a posição privilegiada do recalcamento como defesa contra traumas sexuais Essas suposições encontramse ainda no campo da hipótese de sedução NT 20 Freud levantou o problema da perversão pela primeira vez no Manuscrito K publicado neste volume NT 21 Na versão original editada por Moussaieff Masson p 221 consta que a expressão foi corrigida para as primeiras A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fließ 18871904 Editado por Jeffrey Moussaieff Masson tradução de Vera Ribeiro Rio de Janeiro Imago 1986 NT 22 O trecho que segue continua na Carta 113 e constitui o auge dos esforços de Freud em ligar seus pontos de vista aos de Fließ NT A primeira edição alemã Aus den Anfängen der Psychoanalyse assim como a edição inglesa Standard Edition omitiu o trecho abaixo Na presente edição a cor cinza indica trechos suprimidos naquelas edições NE 23 Nessa clara e fracassada tentativa de Freud de estabelecer relações entre suas teses e as de Fließ a letra grega pi π é utilizada como abreviação para Periode período NR 24 Quando usado como vocábulo da metapsicologia tratase do reprimir relacionado ao recalcar verdrängen Aqui parece o caso de um uso corrente como deixar de lado não levar em conta NR 25 Literalmente algo como vício do leito NR 26 No artigo As psiconeuroses de defesa 1894 Freud cita a frase de Oppenheim a histeria é uma expressão intensificada de emoção gesteigerter Ausdruck der Gemütsbewegung NT 27 A edição Standard seguindo a primeira edição alemã Anfängen interrompe a carta nesse ponto NE 28 Tratase desta mesma carta e não da carta anterior NT 29 Ironicamente Freud e Fließ chamavam seus encontros de congressos NR 30 Referência acerca de sua teoria sobre a etiologia das neuroses NR 31 O verbo verdrängen traduzido por recalcar em contextos teóricos parece aqui ser usado num sentido mais cotidiano como o de remover pôr de lado NR 32 Alusão à passagem bíblica do Segundo Livro de Samuel capítulo 1 versículo 20 Não o conteis em Gat nem o proclameis nas ruas de Ascalon para que não se alegrem as filhas dos filisteus tradução da CNBB São Paulo Loyola 2002 NR 33 Em uma nota agregada em 1924 ao artigo Observações adicionais às neuropsicoses de defesa 1896 especificamente na Parte II Natureza e mecanismo da neurose obsessiva a ser publicado nesta coleção no volume Histeria obsessão e outras neuroses encontramos o seguinte Esta seção está sob o domínio de um erro que desde então repetidamente reconheci e corrigi Na época eu ainda não sabia distinguir entre as fantasias dos analisandos sobre sua infância e as recordações reais Em consequência disso atribuí ao fator etiológico da sedução uma importância e uma validade universal que ele não possui Após a superação desse erro abriuse o panorama para as manifestações espontâneas da sexualidade infantil que descrevi em Três ensaios sobre a teoria sexual em 1905 Nem por isso o conteúdo do texto acima deve ser desprezado a sedução preserva uma certa importância para a etiologia e ainda hoje considero também pertinentes alguns comentários psicológicos NT 34 SHAKESPEARE Hamlet V 2 The readiness is all Em alemão In Bereitschaft oder bereit sein ist alles estar preparado é tudo NT 35 O sentido da frase é oferecido por Max Schur Freud vida e agonia Uma biografia Trad Marco Aurélio de Moura Matos Rio de Janeiro Imago 1981 p 234 Você já foi uma noiva orgulhosa mas meteuse em encrencas e o casamento está desfeito Vá tirar o vestido de noiva NT SOBRE O SENTIDO ANTITÉTICO1 DAS PALAVRAS PRIMITIVAS 1910 Em minha Interpretação dos sonhos fiz uma afirmação a partir de um resultado não compreendido do trabalho analítico que agora repetirei para iniciar esta exposição1 Chamanos especialmente a atenção o modo como o sonho se relaciona com a categoria da oposição e da contradição Ela simplesmente é ignorada O não parece não existir para o sonho Oposições são preferencialmente combinadas em uma unidade ou apresentadas como uma mesma coisa O sonho também se dá a liberdade de representar um elemento pelo seu oposto de desejo Wunschgegensatz de modo que à primeira vista não se sabe de nenhum elemento que admita um oposto se ele está contido nos pensamentos de sonho Traumgedanken2 de maneira positiva ou negativa Os intérpretes de sonhos da Antiguidade parecem ter feito extenso uso da suposição de que uma coisa no sonho pode significar seu contrário Ocasionalmente essa possibilidade também é reconhecida por modernos pesquisadores do sonho quando atribuíram sentido e possibilidade de interpretação a eles2 Eu também acredito não levantar nenhuma contestação se suponho que todos aqueles que me seguiram pelo caminho de uma interpretação científica do sonho encontraram confirmação para a afirmação acima citada Para compreender a tendência peculiar do trabalho do sonho de prescindir da negação Verneinung e de expressar elementos opostos por meio dos mesmos recursos figurativos depareime inicialmente com a leitura acidental de um trabalho do linguista Sprachforschers3 K Abel publicado em 1884 como folheto separado e no ano seguinte incluído nos Ensaios de linguagem Sprachwissenschaftliche Abhandlungen do autor4 O interesse do tema justificará que eu cite aqui literalmente as passagens decisivas do ensaio de Abel embora omitindo a maioria dos exemplos De fato estaremos obtendo o esclarecimento surpreendente de que a indicada prática do trabalho do sonho coincide com uma peculiaridade das mais antigas línguas conhecidas por nós Depois de Abel destacar a antiguidade da língua egípcia que deve ter se desenvolvido muito tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas ele continua p 4 Na língua egípcia essa relíquia única de um mundo primitivo encontrase um considerável número de palavras com dois significados dos quais um é o oposto exato do outro Imaginemos se é que se pode imaginar um patente absurdo como esse que a palavra forte stark na língua alemã signifique tanto forte como fraco schwach que o substantivo luz Licht seja usado em Berlim tanto para designar luz quanto escuridão Dunkelheit que um cidadão de Munique chame a cerveja de cerveja Bier enquanto outro usa a mesma palavra para falar de água Wasser E assim temos a prática surpreendente que os antigos egípcios utilizavam regularmente em sua língua Como podemos censurar alguém que diante disso balance a cabeça incrédulo exemplos idem p 7 Em vista deste e de outros casos semelhantes de significação antitética ver Apêndice não pode haver nenhuma dúvida de que pelo menos em uma língua existiu uma abundância de palavras que designassem ao mesmo tempo uma coisa e o oposto dessa coisa Por mais assombroso que pareça estamos diante de um fato e temos de reconhecêlo O autor recusa então a explicação desse estado de coisas a partir de coincidências homofônicas e protesta com idêntica firmeza contra a tentativa de remetêlas ao baixo nível de desenvolvimento intelectual dos egípcios idem p 9 Mas o Egito não era de modo algum a terra do absurdo Ao contrário ele foi um dos mais antigos berços da razão humana Ele conheceu uma moral pura e digna e formulou boa parte dos 10 mandamentos enquanto os povos pertencentes à atual civilização tinham o costume de sacrificar vítimas humanas aos ídolos sedentos de sangue Um povo que acendeu a tocha da justiça e da cultura em tempos tão obscuros não pode ter sido completamente estúpido em suas falas e seus pensamentos cotidianos Quem fabricou vidro e conseguiu erguer e movimentar blocos imensos com máquinas precisa ao menos ter tido juízo o suficiente para não considerar uma coisa por si mesma e ao mesmo tempo pelo seu contrário Como então conciliar isso com o fato de os egípcios terem admitido uma linguagem tão singularmente contraditória que eles atribuíssem aos mais díspares pensamentos o mesmo veículo sonoro e que conseguissem conectar numa espécie de união indissolúvel o que reciprocamente se opõe com a máxima intensidade Antes de qualquer tentativa de explicação é preciso considerar ainda uma exacerbação desse processo incompreensível da língua egípcia De todas as excentricidades do léxico egípcio talvez a mais extraordinária seja que além das palavras que reúnem em si significados opostos ele ainda possui palavras compostas nas quais dois vocábulos de significação oposta formam um que possui o significado de apenas um de seus membros constitutivos Portanto existem nessa língua extraordinária não apenas palavras que significam tanto forte stark como fraco schwach ou tanto ordenar befehlen como obedecer gehorchen há também compostos tais como velhojovem altjung longeperto fernnah ligarseparar bindentrennen foradentro ausseninnen que apesar de incluírem em sua composição o que há de mais diverso entre si significam a primeira apenas jovem jung a segunda apenas perto nah a terceira apenas ligar verbinden a quarta apenas dentro innen Temos então nessas palavras compostas algumas contradições conceituais reunidas deliberadamente não para criar um terceiro conceito como ocasionalmente acontece com o chinês mas apenas para expressar por meio da palavra composta o significado de uma de suas partes contraditórias que isolada poderia significar a mesma coisa No entanto o enigma se resolve mais facilmente do que parece Nossos conceitos se originam de comparações5 Se sempre estivesse claro hell não poderíamos distinguir entre claro e escuro dunkel e portanto não teríamos nem o conceito nem a palavra para a claridade Helligkeit É evidente que tudo neste planeta é relativo e tem existência independente mas apenas na medida em que se diferencia em suas ligações com outras coisas Tendo em vista que todo conceito é o gêmeo de seu oposto como ele poderia de início ser pensado e como poderia ser comunicado a outras pessoas que tentavam concebêlo a não ser medindoo pelo seu oposto p 15 Já que não se podia conceber o conceito de força Stärke a não ser em oposição a fraqueza Schwäche então a palavra que significava forte stark continha uma lembrança simultânea de fraco schwach através da qual ela ganhou existência Essa palavra na verdade não significava nem forte stark nem fraco schwach mas a relação entre ambas e a diferença de ambas que as criou na mesma medida O ser humano de fato não pôde obter seus mais antigos e mais simples conceitos a não ser por oposição ao seu oposto6 e só gradualmente pôde distinguir os dois lados da antítese e aprendeu a pensar em um deles sem medilo conscientemente com o outro Como a linguagem serve não apenas para a expressão dos próprios pensamentos mas essencialmente para comunicálos a outros podemos levantar a questão de como o egípcio primevo Urägypter dava a entender a seu próximo a qual parte do conceito dual ele estava se referindo a cada vez Na escrita isso acontecia com o auxílio das assim chamadas imagens determinativas que colocadas atrás dos caracteres alfabéticos indicavam o seu sentido mesmo não sendo adequadas para a pronúncia idem p 18 Quando a palavra egípcia ken devia significar forte atrás de seu som escrito alfabeticamente era colocada a imagem de um homem em pé e armado quando a mesma palavra devia expressar fraco às letras que figuravam o som seguia a imagem de um ser humano agachado de maneira largada De modo semelhante a maioria das outras palavras ambíguas era acompanhada de imagens explicativas Na opinião de Abel na língua os gestos serviam para dar o sinal desejado à palavra falada É nas raízes antigas que se observa segundo Abel o surgimento do duplo sentido antitético No desenvolvimento posterior da língua desapareceu essa equivocidade e pelo menos na língua egípcia antiga foi possível acompanhar todas as transições até a univocidade do léxico moderno As palavras originalmente de duplo sentido separamse na língua posterior em duas com um único sentido em um processo através do qual cada um dos sentidos opostos toma para si apenas uma redução modificação fonética da mesma raiz Assim já na língua hieroglífica ken fortefraco dividese em ken forte e kan fraco Em outras palavras os conceitos que só podiam ser encontrados como antitéticos ocuparam o espírito humano em medida suficiente para possibilitar a cada uma de suas duas partes uma existência autônoma e para lhes encontrar um substituto fonético separado A prova da existência de significações primordiais contraditórias facilmente estabelecida para a língua egípcia estendese também segundo Abel às línguas semíticas e indoeuropeias É preciso aguardar para se saber até onde isso pode acontecer em outras famílias linguísticas pois embora a antítese possa estar presente originariamente nos pensadores de cada raça não foi necessário que ela tenha sido reconhecível ou conservada nas significações em geral Abel destaca a seguir que o filósofo Bain aparentemente sem conhecimento dos fenômenos efetivos sustentou esse duplo sentido das palavras como uma necessidade lógica utilizando fundamentos puramente teóricos O trecho em questão Logic I p 54 se inicia com as seguintes frases The essential relativity of all knowledge thought or consciousness cannot but show itself in language If everything that we can know is viewed as a transition from something else every experience must have two sides and either every name must have a double meaning or else for every meaning there must be two names7 Do Apêndice de exemplos de antíteses das línguas egípcia indogermânica e arábica destaco alguns casos que podem causar impressão até em nós que não somos especialistas em linguagem Sprachunkundigen em Latim altus significa alto hoch e profundo tief sacer sagrado heilig e maldito verflucht nesses casos portanto subsiste a antítese completa sem modificação no som da palavra Wortlautes A alteração fonética para a distinção dos contrários é ilustrada com exemplos como clamare gritar schreien clam baixo leise quieto still sicus seco trocken succus suco Saft Em alemão solochãoterra Boden significa ainda hoje o mais alto das Oberste e o mais baixo das Unterste na casa Ao nosso bös schlecht mau corresponde um bass gut bom em saxão antigo temos bat gut bom contra o inglês bad schlecht mau em inglês to lock schliessen fechar contra o alemão Lücke Loch lacuna buraco Em alemão kleben colar e em inglês to cleave spalten clivar em alemão Stumm calado Stimme voz etc Desse modo talvez a risível derivação lucus a non lucendo8 chegaria a um bom sentido Em seu ensaio sobre A origem da linguagem 1885 p 305 Abel chama a atenção sobre outros vestígios de antigos esforços de pensamento Ainda hoje para dizer sem ohne o inglês diz without portanto comsem mitohne e igualmente o prussiano oriental O próprio with que hoje corresponde ao nosso mit com originalmente queria dizer tanto com mit como sem ohne tal como em withdraw fortgehen retirarse ir embora reconhecemos withhold entziehen reter Reconhecemos essa transformação no alemão wider gegen contra e wieder juntamente com Para a comparação com o trabalho do sonho tem importância ainda outra peculiaridade altamente singular da língua do antigo Egito Em egípcio as palavras podem diremos de início aparentemente inverter igualmente som e sentido Suponhamos que a palavra alemã gut bom fosse egípcia Ela poderia significar além de bom mau e poderia soar além de gut tug De tais inversões fonéticas que são muito numerosas para que se possa explicálas como ocorrência fortuita também é possível trazer numerosos exemplos das línguas arianas e semíticas Se nos limitarmos em princípio às línguas germânicas temos Topf pote em alemão e pot pote em inglês boat tub barco e banheira em inglês wait täuwen aguardar tardar em inglês e em alemão hurry Ruhe pressa em inglês e calma em alemão care reck cuidado e preocupação em inglês Balken klobe club viga e cepo em alemão e em inglês Se passamos às outras línguas indogermânicas o número de casos significativos aumenta correspondentemente por exemplo capere packen tomar em latim e agarrar em alemão ren Niere rim em latim e em alemão leaf Blatt folium folha em inglês e em latim duma pensamento em russo Θυμός Thymós espírito e coragem em grego mêdh mûdha mente em sânscrito Mut coragem em alemão Rauchen fumar em alemão Kuríti fumar em russo kreischen to shriek gritar em alemão e em inglês etc Abel tenta explicar o fenômeno de inversão fonética por uma duplicação ou reduplicação das raízes Neste ponto encontraríamos uma dificuldade para seguir o pesquisador Lembramonos de como as crianças gostam de brincar com a inversão fonética das palavras e do quanto é frequente o trabalho do sonho se servir para diversos fins da inversão de seu material figurativo nesse caso não são mais letras mas imagens cuja série é invertida Portanto estaríamos mais inclinados a remeter a inversão de som a um fator de origem mais profunda3 Na concordância entre a peculiaridade do trabalho do sonho destacada no início e a prática descoberta pelo pesquisador nas línguas mais antigas podemos ver uma confirmação da nossa concepção sobre o caráter regressivo arcaico da expressão dos pensamentos no sonho E a nós psiquiatras Psychiatern9 impõese como uma suposição incontestável o fato de que entenderíamos melhor a linguagem do sonho e o traduziríamos com mais facilidade se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem4 1 2ª edição p 232 no capítulo VI O trabalho do sonho 2 Aufl Ges Werke S 232 im Abschnitte VI Die Traumarbeit 2 Ver por exemplo G H v Schubert O simbolismo do sonho 4 ed 1862 Cap 2 A linguagem do sonho Die Symbolik des Traumes 4 Aufl 1862 Kap 2 Die Sprache des Traumes 3 Sobre o fenômeno de inversão fonética metátese que talvez possua ligações mais estreitas com o trabalho do sonho do que a antítese Gegensinn cf ainda W MeyerRinteln em Kölnische Zeitung de 7 de março de 1909 4 Também é possível supor que o originário sentido antitético das palavras represente o mecanismo prefigurado que é utilizado desde o ato falho Versprechen até o contrário Gegenteile a serviço de múltiplas tendências Über den Gegensinn der Urworte 1910 1910 Primeira publicação Jahrbuch der Psychoanalytischen und Psychopathologische Forschung t 2 n 1 p 178184 1924 Gesammelte Schriften t X p 221228 1943 Gesammelte Werke t VIII p 213222 O título do artigo de Freud é idêntico ao do trabalho de Karl Abel publicado em 1884 Na edição original do Jahrbuch há um subtítulo esclarecedor Resenha de um livro com o mesmo título de Karl Abel Embora se trate de uma resenha em sua intenção e forma o que Freud realmente empreende é um trabalho original sob o prétexto literalmente de Abel Numa carta a Ferenczi datada de 22 de outubro de 1909 Freud referese com entusiasmo à leitura que acabara de fazer O trabalho de pesquisador da linguagem Sprachforscher efetuado por Abel seria uma espécie de confirmação em um domínio do saber conexo ao da Psicanálise da teoria dos sonhos fornecendo o fundamento linguístico da tese de que a negação não opera no inconsciente Uma nota sobre o tema foi introduzida na terceira edição de sua Interpretação dos sonhos 1911 precisamente no parágrafo em que Freud afirma que o sonho não conhece nem a oposição Gegensatz nem a contradição Widerspruch As teses de Abel retomadas por Freud suscitaram enorme desconfiança por parte dos linguistas como atesta por exemplo o célebre estudo crítico de Émile Benveniste intitulado Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne publicado no primeiro número da revista La Psychanalyse Benveniste contesta de maneira inapelável os dados filológicos em que Abel baseia seu estudo Mas isso não esgota o assunto Um balanço sofisticado do estado da questão que restitui o que está em jogo no debate pode ser encontrado no texto de JeanClaude Milner Sens opposés et noms indiscernables K Abel comme refoulé dEBenveniste O leitor pode se beneficiar ainda do estudo do também linguista Michel Arrivé Le Sens opposé des mots primitifs et dautres Passando ao largo dos aspectos técnicos sobre a indecidibilidade própria à linguagem pano de fundo do debate em pauta vale ressaltar que as contribuições de Freud a esse tema situamse em um nível que poderíamos chamar de infralinguístico O único ponto no artigo em que Freud se distancia de Abel fornece a chave da discussão as palavras primitivas não são apenas aquelas que o pesquisador descobre na raiz das línguas mas também o uso assemântico que as crianças fazem quando brincam com as palavras A tese da concordância entre processos psíquicos inconscientes e o nível infrassemântico da linguagem é uma das pedras de toque do que Jacques Lacan vai chamar de instância da letra no inconsciente e posteriormente de lalangue sublinhando o que há de real na língua Por seu turno Jean Laplanche interpreta essa tese no contexto de sua concepção do inconsciente como formado de restos dessignificados das mensagens provenientes do outro Entre tais restos estariam incluídas palavras que não comunicam nada palavras tomadas como coisas ARRIVE M Le Sens opposé des mots primitifs et dautres In Langage et psychanalyse linguistique et inconscient Paris PUF 1994 p 189208 BENVENISTE É Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne In Problèmes de linguistique générale Paris Gallimard 1966 v 1 p 7587 LACAN J Autres écrits Paris Seuil 2001 Trad bras Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 LAPLANCHE J Court traité de linconscient In Entre séduction et inspiration lhomme Paris PUF 1993 MILNER JC Sens opposés et noms indiscernables K Abel comme refoulé dEBenveniste In Le Périple structural Paris Seuil 2002 p 6585 NOTAS 1 Gegensinn aqui traduzido por sentido antitético também significa antítese como pode ser conferido neste texto na penúltima nota de Freud NT 2 Noção também comumente traduzida como pensamentos oníricos NR 3 De um modo mais literal pesquisador da linguagemlíngua Cabe destacar que àquela altura a ciência linguística como a conhecemos não estava à disposição de Freud para seus estudos NR 4 Karl Abel 18371906 era especialista em filologia comparativa Trabalhou em Berlim e em Oxford Seu Dicionário de egípciosemíticoindoeuropeu foi publicado em 1884 com mais de 400 páginas Além disso traduziu algumas peças de Shakespeare para o alemão NE 5 A crítica de uma concepção ingênua da natureza das relações entre as palavras e as coisas particularmente no que concerne à postulação do caráter opositivo ou diferencial da significação das palavras é uma das raízes das comparações entre as pesquisas freudianas acerca da linguagem e a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure NE 6 Embora possa parecer redundante são exatamente essas as palavras empregadas por Freud im Gegensatz zu ihrem Gegensatz NT 7 Tradução A relatividade essencial de todo conhecimento pensamento ou consciência só pode se mostrar na linguagem Se tudo o que podemos saber é visto como uma transição de alguma outra coisa qualquer experiência deve ter dois lados e cada nome deve ter um sentido duplo ou ainda para cada significado deve haver dois nomes NT 8 Do latim lucus pequeno bosque que estaria relacionado ao que não tem luz non lucendo NT 9 Cabe destacar que apesar de a palavra utilizada por Freud coincidir com a especialidade médica da atualidade seu uso e contexto era outro tal qual na tradução de Sprachforscher por linguista no início deste texto NR SOBRE TIPOS NEURÓTICOS DE ADOECIMENTO 1912 Nas próximas páginas serão expostas com base em impressões obtidas empiricamente quais alterações de condições determinam a irrupção de um adoecimento neurótico nas pessoas a ele predispostas Trataremos portanto da questão dos fatores desencadeadores da doença pouco será dito sobre suas formas Essa organização das causas precipitantes será diferente de outras dada a característica de que as mudanças enumeradas dizem respeito exclusivamente à libido do indivíduo Pela Psicanálise reconhecemos que os destinos da libido são decisivos para a saúde ou para a doença nervosa Também sobre o conceito da predisposição Disposition não vamos despender palavra alguma Foi justamente a investigação psicanalítica que nos possibilitou demonstrar que a predisposição neurótica reside na história do desenvolvimento da libido e reconduzir os fatores que nela atuam a variedades congênitas da constituição sexual e a influências do mundo exterior vivenciadas na tenra frühen1 infância a O motivo mais evidente mais fácil de ser descoberto e mais compreensível para o adoecimento neurótico reside no fator externo que de maneira geral pode ser descrito como impedimento Versagung2 O indivíduo estava sadio enquanto sua necessidade amorosa estava sendo satisfeita por um objeto real no mundo exterior tornase neurótico quando esse objeto lhe for subtraído sem que se encontre um substituto para ele Aqui felicidade coincide com saúde e infelicidade com neurose É mais fácil a cura Heilung vir pelo destino do que pelo médico pois o destino pode oferecer um substituto para a possibilidade de satisfação que foi perdida Para esse tipo ao qual pertence a maioria dos seres humanos a possibilidade de adoecimento começa portanto apenas com a abstinência o que permite avaliar o quão importantes podem ser para o desencadeamento da neurose as limitações culturais no acesso à satisfação O impedimento tem efeito patogênico pois represa a libido e assim submete o indivíduo a uma prova de quanto tempo pode tolerar esse aumento da tensão psíquica e que caminhos irá tomar para se livrar dele Só existem duas possibilidades de se permanecer sadio quando há um impedimento real duradouro da satisfação a primeira é transformar a tensão psíquica em energia ativa que permaneça voltada para o mundo exterior e que acabe por arrancar dele uma satisfação real da libido e a segunda é renunciar à satisfação libidinal sublimando a libido represada de modo a alcançar metas que não são mais eróticas e que escapam do impedimento O fato de essas duas possibilidades se realizarem nos destinos humanos nos prova que infelicidade não coincide com neurose e que o impedimento não decide sozinho sobre saúde ou adoecimento dos atingidos O efeito do impedimento reside sobretudo em fazer valer os fatores disposicionais que até então se mostravam ineficientes Onde quer que esses fatores estejam presentes em formação suficientemente forte há o risco de que a libido se torne introvertida5 Ela se desvia da realidade que através do impedimento persistente perdeu valor para o indivíduo voltase para a vida de fantasia na qual cria novas formações de desejo e reanima os traços de formações de desejo anteriores esquecidas Em consequência da íntima ligação da atividade da fantasia com o material infantil recalcado e tornado inconsciente presente em todo indivíduo e graças à isenção quanto à prova de realidade que é reservada à vida de fantasia6 a libido pode então continuar retrocedendo e encontrar pela via da regressão trilhamentos Bahnungen infantis e aspirar por metas que lhe sejam condizentes Se esses esforços Strebungen que são inconciliáveis com o atual estado de individualidade ganharem intensidade suficiente vai acontecer um conflito entre elas e a outra parte da personalidade que seguiu ligada à realidade Esse conflito é dissolvido em formações de sintoma e passa a um adoecimento manifesto O fato de que todo esse processo tenha partido do impedimento real se reflete no resultado de que os sintomas com os quais o terreno da realidade é novamente alcançado irão configurar darstellen satisfações substitutivas b O segundo tipo de desencadeamento da doença não é de maneira alguma tão evidente quanto o primeiro e na verdade só foi possível descobrilo a partir de minuciosos estudos analíticos sobre a Doutrina dos Complexos desenvolvidos na Escola de Zurique7 Nesse caso o indivíduo não adoece em consequência de uma alteração no mundo exterior que colocou o impedimento no lugar da satisfação mas em virtude de um esforço interior para encontrar na realidade a satisfação acessível Ele adoece na tentativa de se adequar à realidade e de cumprir sua exigência real o que o faz depararse com dificuldades internas insuperáveis É recomendável distinguir nitidamente os dois tipos de adoecimento mais do que geralmente a observação permite No primeiro tipo destacase uma alteração no mundo externo no segundo a ênfase recai sobre uma alteração interior No primeiro tipo se adoece a partir de uma vivência no segundo a partir de um processo de desenvolvimento No primeiro caso é colocada a tarefa de renunciar à satisfação e o indivíduo adoece por sua incapacidade de resistência no segundo caso a tarefa consiste em trocar um modo de satisfação por outro e a pessoa fracassa por sua rigidez No segundo caso está presente desde o início o conflito entre o anseio Bestreben do indivíduo em permanecer assim como é e em se alterar a partir de novos propósitos e novas exigências da realidade no primeiro caso o conflito surge apenas depois que a libido represada escolheu outras possibilidades na verdade inconciliáveis de satisfação Os papéis do conflito e da fixação prévia da libido no segundo tipo são incomparavelmente mais evidentes do que no primeiro no qual podem se produzir essas fixações inutilizáveis eventualmente apenas em consequência do impedimento exterior Um jovem que até então vinha satisfazendo sua libido com fantasias que levavam à masturbação e agora quer trocar esse regime próximo do autoerotismo pela eleição real de objeto uma moça que dedicou toda a sua ternura ao pai ou ao irmão e agora por um homem que a corteja deve deixar que se tornem conscientes os até então inconscientes desejos libidinais incestuosos uma mulher que queria renunciar a suas inclinações polígamas e a suas fantasias de prostituição para se tornar uma companheira fiel ao marido e uma mãe perfeita para o filho todos eles adoecem pelos mais louváveis esforços se as fixações anteriores de sua libido são fortes o bastante para se opor a um deslocamento no qual novamente são decisivos os fatores da predisposição da constituição estrutural da vivência infantil Todos eles vivenciam por assim dizer o destino da arvorezinha nos contos de Grimm que queria ter folhas diferentes do ponto de vista higiênico3 que obviamente não é o único a ser levado em conta aqui só lhes poderia desejar que continuassem tão pouco desenvolvidos tão inferiores e inúteis como antes de adoecer A mudança pela qual os doentes anseiam mas que só realizam incompletamente ou não realizam de modo algum tem em geral o valor de um progresso no sentido da vida real Mas será diferente se o medirmos por um padrão ético vemos os seres humanos adoecerem tão frequentemente quando abandonam um ideal como quando querem alcançálo Apesar das diferenças muito claras dos dois tipos de adoecimento descritos eles coincidem no essencial e podem facilmente ser reunidos em uma unidade O adoecimento por impedimento também pode ser encarado do ponto de vista da incapacidade de adaptação à realidade a saber ao fato de a realidade impedir versagt a satisfação da libido O adoecimento sob as condições do segundo tipo conduz diretamente a um caso especial de impedimento Pois é certo que a realidade não impede todo tipo de satisfação mas justamente aquela que o indivíduo declara como a única possível para ele e o impedimento não parte diretamente do mundo exterior mas primariamente de determinadas aspirações do Eu no entanto o impedimento segue sendo o fator comum e mais abrangente Em consequência do conflito que se estabelece imediatamente no segundo tipo são igualmente inibidas as duas formas de satisfação tanto a habitual quanto aquela a que se aspira acontece um represamento da libido com todas as suas consequências tal como no primeiro caso Os processos psíquicos que conduzem à formação de sintoma são muito mais evidentes no segundo tipo do que no primeiro pois as fixações patogênicas da libido não precisaram se produzir já que vigoravam nos tempos de saúde Uma certa medida de introversão da libido já estava presente de maneira geral uma parte da regressão ao infantil é poupada porque o desenvolvimento ainda não tinha percorrido todo o seu curso c Como uma exacerbação do segundo tipo aquele no qual se adoece por uma exigência real temos o próximo tipo que descreverei como adoecimento por inibição de desenvolvimento Não existiria motivo teórico para distinguilo apenas prático pois se trata de pessoas que adoecem assim que deixam para trás os anos irresponsáveis da infância e que portanto nunca atingiram uma fase de saúde ou seja uma fase de capacidade quase irrestrita de realização Leistung e de fruição Genuss O essencial do processo predisposicional nesses casos fica muito claro A libido nunca abandonou as fixações infantis a exigência real não se apresenta repentinamente ao indivíduo total ou parcialmente maduro mas se dá na própria circunstância do crescer ou envelhecer na qual obviamente varia continuamente com a idade do indivíduo O conflito dá lugar à insuficiência mas nós temos que também aqui postular um anseio a partir de todos os nossos outros conhecimentos para superar as fixações infantis do contrário o resultado do processo nunca poderia ser uma neurose mas um infantilismo estacionário d Assim como o terceiro tipo nos apresentou a condição predisponente quase isolada o quarto que agora segue chamanos a atenção sobre um outro fator cuja eficácia é considerada em todos os casos e justamente por isso facilmente negligenciável em nossa elucidação teórica Vemos adoecerem indivíduos até então sadios aos quais nenhuma vivência nova se apresentou cuja relação com o mundo exterior não sofreu nenhuma alteração de forma que seu adoecimento causa a impressão de ser algo espontâneo Uma observação mais detida desses casos nos mostra entretanto que neles de fato ocorreu uma mudança que precisamos avaliar como altamente significativa para a causação da doença Por haverem atingido um determinado período de vida e em conformidade com processos biológicos regulares a quantidade de libido em sua vida anímica sofreu uma intensificação Steigerung que em si mesma é suficiente para perturbar o equilíbrio da saúde e estabelecer as condições para a neurose Como sabemos essas repentinas intensificações estão geralmente associadas à puberdade e à menopausa quando as mulheres atingem determinada idade além disso em alguns seres humanos elas se manifestam em periodicidades ainda desconhecidas O represamento da libido é aqui o fator primário ele se torna patogênico em consequência do impedimento relativo de seu mundo exterior que ainda teria permitido a satisfação a uma reivindicação menor da libido A libido insatisfeita e represada pode abrir novamente os caminhos para a regressão e incitar os mesmos conflitos que constatamos no caso do impedimento exterior absoluto Assim somos advertidos a não omitir o fator quantitativo em nenhuma reflexão sobre as causas dos adoecimentos Todos os outros fatores o impedimento a fixação a inibição do desenvolvimento permanecem ineficientes enquanto não afetam determinada quantidade de libido e provocam um represamento libidinal de determinada envergadura É verdade que não podemos mensurar essa quantidade de libido que nos parece indispensável para um efeito patogênico só podemos postulála depois do advento da doença Somente numa direção podemos determinála mais precisamente podemos supor que não se trata de uma questão de quantidade absoluta mas da proporção entre o montante eficiente de libido e a quantidade de libido que o Eu individual pode dominar isto é manter em tensão sublimar ou utilizar diretamente É por isso que um aumento relativo da quantidade de libido pode ter os mesmos efeitos que um absoluto Um enfraquecimento do Eu por doença orgânica ou por alguma exigência especial à sua energia será capaz de trazer à luz neuroses que de outro modo apesar de toda a predisposição teriam ficado latentes A importância que devemos atribuir à quantidade de libido na causação da doença se harmoniza de maneira satisfatória com duas teses principais da doutrina das neuroses resultantes da Psicanálise Primeiro com a afirmação de que as neuroses surgem do conflito entre o Eu e a libido e segundo com a descoberta de que não existe nenhuma distinção qualitativa entre as condições da saúde e as da neurose e que as pessoas sadias precisam se haver com as mesmas tarefas para dominar a libido só que elas se saem melhor Resta ainda dizer algumas palavras sobre a relação entre esses tipos e a experiência Se tenho uma visão do conjunto dos doentes de cuja análise me ocupo neste momento preciso constatar que nenhum deles encarna puramente um dos quatro tipos de adoecimento Encontro muito mais atuando wirksam em cada um deles um fragmento do impedimento ao lado de uma parte de incapacidade de se adequar à exigência real o ponto de vista da inibição de desenvolvimento que coincide com a rigidez das fixações é considerado em todos os casos e como foi mencionado acima nunca podemos desprezar a importância da quantidade de libido Descubro na verdade que em muitos desses doentes a doença apareceu em ondas sucessivas entre as quais houve intervalos de saúde e que cada uma dessas ondas se deixou remontar a um tipo diferente de causa precipitadora Portanto a apresentação desses quatro tipos não possui nenhum valor teórico tratase apenas de diversos caminhos para o estabelecimento de uma determinada constelação patogênica na economia anímica a saber o represamento da libido do qual o Eu não pode se defender com seus recursos sem sofrer danos Mas a situação mesma só se torna patogênica em consequência de um fator quantitativo ela não chega a ser uma novidade para a vida anímica nem é criada pela intrusão de uma assim chamada causa da doença Gostaríamos de atribuir alguma importância prática aos tipos de adoecimento Em alguns casos eles podem também ser encontrados em forma pura não teríamos dado atenção ao terceiro e ao quarto tipos se eles não tivessem conservado as únicas causas do adoecimento para alguns indivíduos O primeiro tipo coloca diante de nossos olhos a influência extraordinariamente poderosa do mundo exterior o segundo a influência não menos importante da singularidade do indivíduo que contraria essa influência A Patologia não pôde fazer justiça ao problema da causa imediata da doença Krankheitsveranlassung nas neuroses enquanto esteve preocupada apenas em decidir se essas afecções eram de natureza endógena ou exógena A todas as experiências que apontavam para a importância da abstinência no sentido mais amplo como causa imediata ela sempre tinha de colocar a objeção de que outras pessoas suportavam esse mesmo destino sem adoecer Mas se ela queria acentuar a singularidade do indivíduo como sendo o essencial para a doença e para a saúde então precisaria aceitar a reprimenda de que pessoas com uma singularidade como essa poderiam ficar indefinidamente saudáveis apenas enquanto lhes fosse permitido conservar essa singularidade A Psicanálise nos advertiu a abandonarmos a infecunda oposição entre fatores externos e internos entre destino e constituição e nos ensinou a encontrar a causação do adoecimento neurótico regularmente em uma determinada situação psíquica que pode se produzir por diversos caminhos 5 Para empregar um termo introduzido por C G Jung 6 Cf minhas Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico nesta coleção no volume Conceitos fundamentais da psicanálise NE 7 Cf JUNG A significação do pai no destino do indivíduo Die Bedeutung des Vaters für das Schicksal des Einzelnen Jahrbuch für Psychoanalyse I 1909 Über neurotische Erkrankungstypen 1912 1912 Primeira publicação Zeltralblatt für Psychoanalyse t II n 6 p 297302 1924 Gesammelte Schriften t V p 400408 1943 Gesammelte Werke t VIII p 322330 Publicado em março de 1912 ano em que veio a lume a maior parte de seus casos clínicos este artigo apresenta uma tipologia dos modos de adoecimento neurótico isto é das diferentes maneiras como um sujeito se torna neurótico Nesse sentido faz parte do que podemos chamar de teoria geral da neurose O tema da escolha da neurose foi abordado diversas vezes por Freud No contexto da correspondência com Fließ é uma questão recorrente embora a ênfase na realidade do trauma tendesse a obscurecêla Salta aos olhos a fineza com que Freud faz trabalhar a dialética entre tipo e singularidade Além disso quanto à espinhosa questão da causação da neurose o artigo nos convida a abandonarmos a infecunda oposição entre fatores externos e internos entre destino e constituição o que basta para mostrar como Freud estava à frente não apenas de seu tempo mas talvez até mesmo do nosso Do ponto de vista conceitual destacamse o papel da Fixierung fixação e da Versagung impedimento na causação da neurose Muitas vezes incorretamente traduzida por frustração a noção foi de tal modo incorporada no senso comum psicologicista que se tornou banal A tradução por impedimento permitirá restituir seu valor epistemológico e clínico A pista sobre o papel da fixação da libido foi aberta um ano antes no início da terceira parte do célebre estudo sobre a paranoia do presidente Schreber HANNS L Tradução frustrada CULT n 181 p 3033 jul 2013 NOTAS 1 Apesar de früh significar cedo em alemão o termo costuma ser empregado como adjetivo por Freud no sentido de precoce não como o que antecede o período esperado ex talento precoce mas como o que se dá nos tempos primeiros da vida NR 2 Versagung costuma ser traduzido por frustração mas não parece ser esse o seu significado no presente contexto nem na maioria dos casos em que Freud faz uso do vocábulo Cabe aqui o crédito ao tradutor e psicanalista brasileiro Luiz Alberto Hanns grande responsável por evidenciar essa questão em artigos científicos e em seu Dicionário comentado do alemão de Freud Imago 1996 NR 3 Higiênico aqui não se refere à acepção usual em língua portuguesa relativa a assepsia e limpeza mas sim ao que diz respeito à saúde do grego Ύγήια num sentido amplo NR COMUNICAÇÃO DE UM CASO DE PARANOIA QUE CONTRADIZ A TEORIA PSICANALÍTICA 1915 Há alguns anos um conhecido advogado solicitoume um parecer sobre um caso cuja versão lhe parecia duvidosa Uma jovem dirigiuse a ele para pedir proteção contra as perseguições de um homem que a induziu a uma ligação amorosa Ela afirmava que esse homem havia abusado de sua amabilidade fazendo com que espectadores desconhecidos tirassem fotografias de seus ternos encontros agora estava em suas mãos envergonhála com a revelação dessas fotos e obrigála a deixar seu emprego O amigo advogado era experiente o bastante para reconhecer o tom doentio dessa acusação mas achava que já que ocorrem tantas coisas nessa vida que consideramos inacreditáveis a opinião de um psiquiatra sobre o caso seria de grande valia Prometeu visitarme uma próxima vez em companhia da acusadora Klägerin1 Antes de continuar este relato quero confessar que alterei as circunstâncias ambientais do caso investigado visando ao anonimato mas nada mais do que isso Normalmente considero abusivo Missbrauch mesmo que seja pelos melhores motivos alterar traços de um historial clínico Krankengeschichte2 em uma comunicação pois é impossível saber qual lado do caso será destacado por um leitor de julgamento independente e assim correse o risco de conduzir este último ao erro A paciente que acabei conhecendo logo depois era uma moça de 30 anos de rara graça e beleza ela parecia muito mais jovem do que era e passava uma impressão legitimamente feminina Em relação ao médico ela portouse de maneira inteiramente negativa e não se deu ao trabalho de esconder sua desconfiança Estava claro que só sob a pressão do amigo advogado presente ela contou a história que se segue o que me colocou um problema que será mencionado mais tarde Na ocasião nem suas expressões faciais nem as manifestações de afeto traíram alguma timidez envergonhada como seria de se esperar de uma atitude dirigida a um ouvinte estranho Ela estava inteiramente sob o domínio da preocupação provocada por sua experiência Por muitos anos ela esteve empregada em um instituto em que ocupava um cargo de responsabilidade para a sua satisfação e a de seus superiores Nunca procurou ligações com homens vivia tranquila com sua mãe idosa de quem era o único apoio Não tinha irmãos e o pai já havia morrido há muitos anos Nos últimos anos aproximouse dela um funcionário do mesmo escritório um homem muito culto e atraente a quem ela não quis negar versagen sua simpatia Um casamento entre eles estava excluído por motivos externos mas o homem não queria saber de abandonar essa relação por causa dessa impossibilidade Ele a repreendia dizendo o quanto não fazia sentido renunciar a tudo o que tinham desejado por causa de convenções sociais a tudo a que tinham o direito indubitável o que contribuía como nenhuma outra coisa para a intensificação da vida Como ele lhe prometeu não colocála em perigo ela finalmente concordou em visitálo durante o dia em seu apartamento de solteiro Lá beijavamse e se abraçavam ficavam deitados um ao lado do outro e ele admirava sua beleza em parte revelada No meio dessa cena de amor Schäferstunde ela se assustou com um barulho repentino uma espécie de pancada ou clique Ele veio de perto da escrivaninha que ficava atravessada diante da janela o espaço entre a mesa e a janela estava em parte coberto por uma cortina pesada Ela contou que perguntou imediatamente ao namorado o que era aquele barulho e recebeu dele a informação de que se tratava provavelmente do pequeno relógio em cima da escrivaninha mas vou tomar a liberdade de mais tarde fazer uma observação sobre essa parte do seu relato Quando ela deixou a casa ainda na escada passou por dois homens que ao vêla murmuraram alguma coisa entre si Um dos dois desconhecidos carregava um objeto embrulhado que parecia uma caixa Esse encontro ocupou seus pensamentos ainda no caminho de casa ela engendrou a seguinte concatenação de ideias Kombination essa caixinha podia facilmente ser um aparelho fotográfico o homem que a carregava era um fotógrafo que durante sua presença no quarto tinha ficado escondido atrás da cortina e o clique que ela ouviu era o barulho do aperto do botão que ocorreu assim que o homem conseguiu a situação particularmente comprometedora que ele queria registrar na foto A partir daí não se conseguiu mais calar a sua suspeita contra o amado ela o inquiriu com palavras e por escrito exigindo obter explicações e ser tranquilizada e com censuras mostrouse inacessível às garantias que ele lhe dava quando ele sustentava a sinceridade de seus próprios sentimentos e a falta de fundamento das suspeitas que ela levantava Por fim ela foi ao advogado contoulhe a experiência e entregoulhe as cartas que ela tinha recebido do suspeito nessa ocasião Mais tarde pude dar uma olhada em algumas dessas cartas elas me passaram a melhor impressão seu conteúdo principal era o pesar pelo fato de que uma relação tão bonita e tão terna tivesse sido destruída por essa infeliz ideia doentia unglückselige krankhafte Idee Não é preciso nenhuma justificativa por eu ter feito o mesmo julgamento do acusado Entretanto esse caso teve para mim outro interesse além do meramente diagnóstico Foi afirmado na literatura psicanalítica que o paranoico luta contra uma intensificação de suas tendências homossexuais o que no fundo remete a uma escolha narcísica de objeto Além disso foi assinalado que o perseguidor seria no fundo o amado ou alguém amado no passado Da junção dessas duas proposições resulta a exigência de que o perseguidor teria de ser do mesmo sexo que o perseguido É verdade que não apresentamos como de validade geral e sem exceções a tese de que a paranoia é condicionada pela homossexualidade mas só não o fizemos porque nossas observações não eram suficientemente numerosas É que essa tese pertencia àquelas que em consequência de determinadas circunstâncias só são importantes se puderem reivindicar universalidade Sabemos que na literatura psiquiátrica não faltam casos em que o doente se acreditava perseguido por uma pessoa do outro sexo mas a impressão é diferente se lemos sobre esses casos ou se temos um deles diante dos olhos O que meus amigos e eu pudemos observar e analisar tinha confirmado até então e sem dificuldade a ligação da paranoia com a homossexualidade O caso apresentado aqui depunha decididamente contra isso A moça parecia se defender do amor por um homem ao transformar diretamente o amado no perseguidor nada foi encontrado sobre a influência de uma mulher ou sobre uma luta contra um vínculo homossexual Nessas circunstâncias o mais fácil seria abandonar novamente a declaração em favor Parteinahme da validade universal de o delírio de perseguição depender da homossexualidade e de tudo o que se ligasse a ela Era preciso desistir desse reconhecimento a não ser que nos deixássemos guiar por esse desvio da expectativa e agíssemos como advogado3 admitindo como tal tratar se de uma vivência corretamente interpretada em vez de uma concatenação paranoica No entanto vislumbrei outra saída que tornou possível adiar a decisão Lembreime de quantas vezes se chega a uma situação em que avaliamos mal os doentes psíquicos porque não nos ocupamos deles com atenção suficiente e dessa forma sabemos muito pouco sobre eles Expliquei então que naquele dia me seria impossível emitir um juízo e pedi a ela que me fizesse uma segunda visita para me contar essa história com mais detalhes e talvez dessa vez com outros fatos a ela ligados que na ocasião ficaram despercebidos Através da mediação do advogado consegui o consentimento da paciente que continuava relutante Ele também me auxiliou explicando que nessa segunda conversa sua presença seria desnecessária O segundo relato da paciente não invalidou o primeiro mas trouxe complementações tais que dissiparam todas as dúvidas e dificuldades Para começar ela não tinha visitado o jovem em seu apartamento uma vez mas duas No segundo encontro ocorreu a perturbação com o ruído ao qual ela ligou sua suspeita ela calou ou deixou de mencionar a primeira visita em seu primeiro relato porque essa não mais lhe parecia importante Nessa primeira visita não havia acontecido nada que chamasse a atenção mas no dia seguinte aconteceu A seção da grande empresa em que ela trabalhava era gerenciada por uma senhora idosa que ela descreveu com estas palavras Ela tem cabelos brancos como minha mãe Ela estava acostumada a ser tratada com muito carinho por essa chefe idosa até mesmo a ser mimada por ela e se considerava sua predileta No dia seguinte à sua primeira visita à casa do jovem funcionário este apareceu nas dependências do escritório para comunicar à velha dama algo relacionado ao trabalho e enquanto ele conversava com esta em voz baixa nasceu na jovem repentinamente a certeza de que ele estava contando à senhora sobre a aventura da véspera pois é ele mantinha uma relação com a senhora há muito tempo só que ela mesma até agora não tinha percebido nada A maternal senhora de cabelos brancos agora sabia de tudo Com o passar do dia ela pôde confirmar essa sua suspeita pela conduta e pela forma de se expressar da velha senhora Ela aproveitou a primeira oportunidade para demandar explicações do amado por sua traição É claro que ele protestou energicamente contra o que chamou de insinuação absurda e de fato dessa vez conseguiu desviála de seu delírio de maneira que algum tempo depois creio que algumas semanas ela estava suficientemente confiante para repetir a visita ao seu apartamento O restante já sabemos pelo primeiro relato da paciente O que aprendemos agora põe fim em primeiro lugar à dúvida sobre a natureza doentia da suspeita Facilmente reconhecemos que a chefe de cabelos brancos é um substituto da mãe que o homem amado apesar de ser tão jovem é colocado no lugar do pai e que o poder do complexo materno é o que obriga a doente a supor uma relação amorosa entre os dois parceiros tão díspares ungleich por mais improvável que ela seja Mas com isso evaporase também a aparente contradição com a expectativa alimentada pela doutrina psicanalítica de que uma ligação homossexual superintensa se apresentaria como a condição para o desenvolvimento de um delírio de perseguição O perseguidor original a instância de cuja influência se quer escapar também nesse caso não é o homem mas a mulher A chefe sabe sobre as ligações amorosas da moça desaprovaas e lhe apresenta esse julgamento através de insinuações misteriosas A ligação com o mesmo sexo se contrapõe aos esforços de conseguir um membro do outro sexo como objeto de amor O amor pela mãe se torna o portavoz de todas as aspirações que cumprindo o papel de uma consciência moral Gewissens procuram conter a moça em seu primeiro passo para o caminho novo e em muitos sentidos perigoso da satisfação sexual normal e também consegue perturbar a relação com o homem Quando a mãe inibe ou detém a atividade sexual da filha ela está cumprindo uma função normal que está preestabelecida pelas ligações da infância que possui poderosas motivações inconscientes e que encontrou a sanção da sociedade O papel da filha é desvencilharse dessa influência e decidirse com base em uma motivação mais ampla e mais racional por uma medida de permissão ou de impedimento do gozo sexual Sexualgenusses Se nessa tentativa de libertação ela é vítima de uma neurose isso implica a presença de um complexo materno em geral superintenso mas certamente não dominado cujo conflito com a nova corrente libidinal dependendo da disposição utilizada é resolvido na forma desta ou daquela neurose Em todos os casos as manifestações da reação neurótica não são determinadas pela ligação com a mãe atual mas pelas ligações infantis com a imagem primordial urzeitlichen da mãe De nossa paciente sabemos que era órfã de pai havia muitos anos e podemos supor que ela não teria se mantido longe de homens até a idade de 30 anos se uma forte ligação afetiva com a mãe não lhe tivesse oferecido um apoio Esse apoio se torna um fardo pesado para ela a partir de quando sua libido começa a ansiar pelo homem motivada por seu insistente galanteio Ela procura livrarse desse apoio libertarse de sua ligação homossexual Sua predisposição sobre a qual não precisamos comentar permite que isso ocorra como uma formação paranoica delirante A mãe se torna portanto observadora e perseguidora hostil e invejosa Como tal ela poderia ser vencida se o complexo materno não tivesse conservado o poder de mantêla afastada dos homens No final dessa primeira fase do conflito ela se afastou portanto da mãe sem se juntar ao homem Pois ambos estavam conspirando contra ela Foi o empenho vigoroso do homem que decididamente conseguiu atraíla para si Ela supera a objeção da mãe e está preparada para conceder um novo encontro ao amado A mãe não aparece mais nos próximos acontecimentos no entanto podemos insistir que nessa fase o amado não se tornou o perseguidor de maneira direta mas no caminho que passa pela mãe e por ele estar sendo relacionado à mãe que recebeu o papel principal na primeira formação delirante Devíamos então acreditar que a resistência tinha sido definitivamente superada e que a moça até agora ligada à mãe tinha conseguido amar um homem Porém após o segundo encontro seguese uma nova formação delirante que através de engenhosa utilização de algumas casualidades consegue arruinar esse amor e com isso levar adiante com êxito o propósito do complexo maternal Ainda nos parece estranho que a mulher consiga defenderse do amor pelo homem com a ajuda de um delírio paranoico Antes porém de esclarecermos essa relação queremos averiguar essas casualidades nas quais se apoia a segunda formação delirante que foi direcionada exclusivamente ao homem Deitada semidespida ao lado do amado no sofá Diwan4 ela ouve um ruído como um clique uma batida um estalido cuja causa ela não conhece mas que interpreta mais tarde assim que encontra dois homens na escada da casa dos quais um carregava algo como uma caixinha escondida Ela ganha a convicção de que por instrução do amado ela teria sido observada e fotografada durante seu encontro íntimo É claro que estamos longe de pensar que se não tivesse ocorrido esse ruído infeliz a formação delirante também não se teria realizado Reconhecemos muito mais por detrás dessa coincidência algo necessário que precisava se impor de maneira tão compulsiva quanto à suposição de uma relação amorosa entre o homem amado e a velha senhora escolhida como substituto da mãe A observação da relação amorosa dos pais é uma peça que raramente falta no repertório das fantasias inconscientes que se pode descobrir através da análise de todos os neuróticos provavelmente de todas as crianças Chamo essas formações de fantasia Phantasiebildungen a da observação da relação sexual dos pais a da sedução a da castração e outras de fantasias primordiais Urphantasien e em outro lugar irei examinar em profundidade sua origem e sua relação com a experiência individual Portanto o ruído acidental só desempenha o papel de uma provocação que ativa a fantasia típica de escutar secretamente contida no complexo parental É portanto questionável se devemos caracterizálo como acidental zufällig Tal como Otto Rank me fez notar tratase muito mais de um requisito necessário da fantasia de escutar secretamente que ou repete o ruído através do qual se denuncia a relação dos pais ou aquele pelo qual a criança que escuta escondido teme ser traída Agora então sabemos de um só golpe em que terreno estamos pisando O amado continua sendo o pai e ela mesma entra no lugar da mãe Então o escutar secretamente precisa ser atribuído a outra pessoa Fica evidente a maneira como ela se libertou da dependência homossexual da mãe Foi por meio de uma pequena regressão em vez de tomar a mãe como objeto de amor identificouse com ela ela mesma se tornou a mãe A possibilidade dessa regressão remete à origem narcísica de sua escolha homossexual de objeto e com isso à sua predisposição ao adoecimento paranoico Poderíamos esboçar um encadeamento de pensamento que leva ao mesmo resultado que essa identificação Se minha mãe faz isso eu também posso eu tenho o mesmo direito Podemos dar um passo a mais na suspensão Aufhebung das casualidades sem exigir que o leitor nos acompanhe pois a falta de uma investigação analítica mais profunda torna em nosso caso impossível passar de um certo grau de probabilidade Em nossa primeira entrevista a doente mencionou que perguntou imediatamente sobre a origem do ruído e que lhe foi dito que provavelmente era o clique do pequeno relógio de mesa sobre a escrivaninha Tomo a liberdade de decifrar esse relato como sendo uma confusão de lembranças Erinnerungstäuschung5 Para mim é muito mais plausível que ela a princípio tenha deixado de ter qualquer reação ao ruído e que este só lhe tenha se tornado significativo depois do encontro com os dois homens na escada Quanto à tentativa de explicação do clique do relógio o homem que talvez nem tenha ouvido o ruído pode ter se arriscado mais tarde quando solicitado pela suspeita da moça Não sei o que você pode ter ouvido talvez o relógio de mesa tenha feito o ruído como de costume Essa posterioridade Nachträglichkeit6 na recuperação de impressões e um deslocamento como esse da lembrança são justamente frequentes na paranoia e a caracterizam Tendo em vista que eu nunca falei com o homem e não pude continuar a análise da moça minha suposição não pôde ser comprovada Eu poderia me arriscar a continuar eliminando essa casualidade aparentemente real Não acredito absolutamente que o relógio de mesa tenha emitido algum clique ou que havia um ruído para se ouvir A situação na qual ela se encontrava podia justificar uma sensação de batimento ou palpitação no clitóris Foi isso então que posteriormente ela projetou para fora como percepção de um objeto externo Algo bastante parecido é possível no sonho Uma de minhas pacientes histéricas relatou uma vez um sonho curto que a despertou ao qual nenhuma ocorrência havia sido associada O sonho era Estão batendo e ela acordou Ninguém tinha batido à porta mas nas noites anteriores ela havia sido despertada por sensações desagradáveis de polução e portanto agora tinha interesse em acordar tão logo se iniciassem os primeiros sinais da excitação genital Tinham batido geklopft7 no clitóris Eu vou colocar o mesmo processo de projeção de nossa paranoica no lugar do ruído acidental É claro que não posso garantir que a doente em um rápido contato e com todos os sinais de um manifesto desagrado pela premência Zwanges da situação tenha me dado um relatório sincero sobre os acontecimentos em ambos os encontros amorosos mas a contração isolada do clitóris combinava com a sua afirmação de que na ocasião não tinha acontecido uma união dos genitais Na subsequente recusa do homem a insatisfação também teve certamente a sua parte ao lado da consciência moral Vamos voltar agora ao fato excepcional de que a doente se defendia do amor pelo homem com a ajuda de uma formação delirante paranoica A história do desenvolvimento desse delírio nos dá a chave para a sua compreensão Como podíamos esperar este estava voltado originalmente contra a mulher mas agora no terreno da paranoia realizavase o avanço da mulher para o homem como objeto Um avanço desse tipo não é comum na paranoia em geral verificamos que o perseguido permanece fixado nas mesmas pessoas portanto também no mesmo sexo no qual recaiu sua escolha amorosa antes da transformação paranoica Mas o avanço não é excluído pela afecção neurótica nossa observação poderia ser exemplar para muitas outras Além da paranoia há muitos processos semelhantes entre os quais alguns muito conhecidos que até agora não foram reunidos sob esse ponto de vista Por exemplo o assim chamado neurastênico por sua ligação inconsciente com objetos de amor incestuosos é impedido de tomar uma mulher desconhecida como objeto e está limitado à fantasia em sua atividade sexual Mas no terreno da fantasia ele realiza esse avanço que lhe foi recusado e pode substituir mãe e irmã por outros objetos Tendo em vista que para esses objetos falta o veto da censura a escolha dessas pessoas substitutas em suas fantasias se torna consciente Os fenômenos do avanço tentado a partir do novo terreno geralmente conquistado por via regressiva instalamse ao lado de esforços que são empreendidos em algumas neuroses para recuperar uma posição da libido que já se possuiu mas foi perdida Teoricamente as duas séries de manifestações não podem ser separadas uma da outra Estamos demasiadamente inclinados a pensar que o conflito que está na base da neurose se encerraria com a formação de sintoma Mas na verdade a luta continua de muitas maneiras mesmo depois da formação do sintoma De ambos os lados surgem novos componentes pulsionais que a prolongam O próprio sintoma se torna objeto dessa luta inclinações que querem afirmála se medem com outras que estão empenhadas em suspendêla Aufhebung e restabelecer o estado anterior Com frequência se procuram caminhos para desvalorizar o sintoma tentando reconquistar o que foi perdido e o que foi impedido pelo sintoma a partir de outras saídas Essas relações lançam uma luz esclarecedora sobre uma declaração de C G Jung segundo a qual uma inércia psíquica peculiar que se opõe à mudança e ao avanço é a condição fundamental da neurose Essa inércia é de fato muito peculiar não é geral mas altamente especializada ela também não domina sozinha seu próprio campo mas luta com tendências ao avanço e à recuperação que não aquiescem mesmo depois da formação de sintoma da neurose Se rastrearmos o ponto de partida dessa inércia especial ela se revela como a expressão de enodamentos Verknüpfungen de pulsões estabelecidos muito cedo frühzeitig e difíceis de desatar com impressões e com os objetos nelas existentes através de cujos enodamentos se deteve a continuidade do desenvolvimento desses componentes pulsionais Ou para dizer de outro modo essa inércia psíquica especializada é apenas uma expressão diversa mas dificilmente a melhor para aquilo que na Psicanálise estamos habituados a chamar de fixação Mitteilung eines der psychoanalytischen Theorie widersprechenden Falles von Paranoia 1915 1915 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 3 n 6 p 321329 1946 Gesammelte Werke t X 1946 p 233246 Em 1911 Freud havia publicado suas Considerações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado de forma autobiográfica Dementia paranoides conhecido como Caso Schreber em que articula a paranoia e uma determinada forma de fracasso do recalcamento de fantasias homossexuais Numa carta a Jung de 17 de fevereiro de 1908 Freud confessa que sua suspeita acerca das relações entre paranoia e homossexualidade remontava ao contexto de sua ruptura com Fließ O presente artigo trata de um caso clínico que pelo menos aparentemente contradiz a teoria psicanalítica da paranoia Tratase portanto de um esforço em testar o alcance da teoria não a partir de casos que a confirmem mas justamente de casos que a refutem ao contrário do que a crítica popperiana da Psicanálise faz crer Embora a conclusão do texto acabe por desfazer a contradição durante boa parte de sua argumentação ele mantém em aberto a contradição e a faz trabalhar O relato do fragmento de caso é notável em sua construção narrativa Esse esforço resulta entre outras coisas na formulação pela primeira vez do conceito de fantasias originárias Urphantasien O texto foi escrito em 1915 durante a guerra Não custa lembrar que Freud estava perto de completar 60 anos quando a guerra havia sido deflagrada um ano antes Embora não tenha sido atacada Viena sofreu toda sorte de escassez Durante aquele período apesar da parca atividade clínica e editorial Freud escreveu abundantemente Seu principal projeto era a escrita do conjunto de 12 artigos que comporiam a Metapsicologia dos quais dispomos de apenas cinco efetivamente publicados O tema do delírio de ciúme feminino foi retomado a convite do próprio Freud por Ruth Mack Brunswick em seu Die Analyse eines Eifersuchtwahnes Análise de um delírio de ciúme MACK BRUNSWICK R Die Analyse eines Eifersuchtwahnes Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse n 14 1928 NOTAS 1 Vemos em Luto e melancolia a íntima relação entre o queixarse e prestar queixas a partir da construção Ihre Klagen sind Anklagen No linguajar jurídico Klägerin queixosa é a denuncianteacusadora sendo Angeklagte queixado o réuacusado NR 2 Termo que designa o que chamamos habitualmente de caso clínico Vale observar que a expressão empregada por Freud ressalta o caráter temporal do tratamento analítico NR 3 Não parece ser aqui uma referência direta ao advogado que procurou Freud no presente caso mas ao papel habitual do advogado que acredita e defende a versão de seu cliente para um fato A posição do analista é diversa NR 4 Apesar da tentação de assimilar esse móvel àquele em que os pacientes de Freud se deitavam vale ressaltar que o segundo foi designado preferencialmente pela palavra Liegebett Ver por exemplo os Artigos sobre técnica NR 5 Num registro mais técnico o termo pode referir também a paramnésia No léxico psiquiátrico alguns autores equivalem ainda à vivência do déjà vu NE 6 Termo de difícil tradução Jacques Lacan conferiu especial importância ao termo por ele traduzido como aprèscoup que seria uma característica fundamental da temporalidade inconsciente NE 7 Cabe destacar que o verbo klopfen em alemão designa o bater à porta Es klopft mas também o palpitar da pulsação NR LUTO E MELANCOLIA 1917 Depois de o sonho ter nos servido como protótipo normal Normalvorbild das perturbações anímicas narcísicas queremos fazer a tentativa de esclarecer a natureza da melancolia comparandoa com o afeto normal do luto Mas desta vez precisamos começar fazendo uma confissão que deve servir como advertência para que os resultados não sejam superestimados A melancolia cuja definição conceitual oscila mesmo na Psiquiatria descritiva apresentase sob várias formas clínicas cuja síntese em uma unidade não parece assegurada e das quais algumas lembram mais afecções somáticas do que psicogênicas Nosso material se limita independentemente das impressões que estejam disponíveis a qualquer observador a um pequeno número de casos cuja natureza psicogênica era indubitável Portanto vamos de antemão deixar de lado a pretensão de validade universal para os nossos resultados e nos consolar com a ponderação de que com os nossos atuais meios de pesquisa dificilmente podemos descobrir algo que não seja típico se não para toda uma classe de afecções pelo menos para um grupo menor delas Considerar melancolia e luto1 conjuntamente parece se justificar pelo quadro geral dos dois estados8 Também coincidem as influências vitais que as ocasionam sempre que estão visíveis O luto via de regra é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela como a pátria a liberdade um ideal etc Em certas pessoas sob as mesmas influências observamos no lugar do luto uma melancolia e por isso as colocamos sob a suspeita de uma predisposição patológica Também é notável que nunca nos ocorre considerar o luto como um estado patológico e encaminhálo ao tratamento médico embora ele traga consigo sérios desvios quanto à conduta normal na vida Confiamos que ele terá sido superado depois de certo tempo e consideramos sem propósito e mesmo prejudicial perturbálo A melancolia se caracteriza psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso por uma suspensão do interesse pelo mundo externo pela perda da capacidade de amar pela inibição da capacidade para realização Leistung e pelo rebaixamento da autoestima Selbstgefühl2 que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos até atingir a expectativa delirante de punição Para que tal configuração se aproxime melhor do nosso entendimento precisamos considerar que o luto apresenta esses mesmos traços menos um falta nele a perturbação do sentimento de autoestima No resto ele é o mesmo O luto profundo a reação à perda de uma pessoa querida contém o mesmo estado de ânimo doloroso a perda do interesse pelo mundo externo na medida em que este não lembre o morto a perda da capacidade de escolher qualquer novo objeto de amor em substituição ao pranteado o afastamento de qualquer atividade que não esteja ligada com a memória do morto É fácil entender que essa inibição e limitação do Eu seja a expressão da dedicação exclusiva ao luto do qual nada resta para outros propósitos e interesses Na verdade essa conduta só não nos parece patológica porque sabemos explicála muito bem Também estamos de acordo com a comparação que caracteriza o estado de ânimo do luto como doloroso A justificativa dessa comparação nos será compreensível quando estivermos em condições de caracterizar a dor do ponto de vista econômico Em que consiste então o trabalho realizado pelo luto Creio que não será nada exagerado descrevêlo da seguinte maneira a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e decreta a exigência de que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto Contra isso se levanta uma notável oposição em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição libidinal Libidoposition nem mesmo quando um substituto já se lhe acena Essa oposição pode ser tão intensa que dá lugar a um afastamento da realidade e a uma adesão Festhalten ao objeto através de uma psicose alucinatória de desejo ver o artigo anterior a este3 O normal é que vença o respeito à realidade Entretanto a tarefa que a realidade solicita não pode ser atendida imediatamente Ela é cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento Besetzungsenergie ao mesmo tempo que a existência do objeto é psiquicamente prolongada Cada uma das lembranças e expectativas pelas quais a libido estava conectada ao objeto é enfocada superinvestida überbesetzt e nelas ocorre a dissolução da libido Não se pode indicar com facilidade em uma fundamentação econômica por que essa operação de compromisso Kompromissleistung em que a tarefa solicitada pela realidade é executada passo a passo é tão extraordinariamente dolorosa O curioso é que esse desprazer doloroso nos parece natural Mas de fato o Eu se torna novamente livre e desimpedido ungehemmt4 depois de concluído o trabalho do luto Apliquemos agora à melancolia o que aprendemos com o luto Em uma série de casos é evidente que ela também pode ser a reação à perda de um objeto amado em outras ocasiões é possível reconhecer que a perda é de natureza mais ideal Não é que o objeto tenha realmente morrido mas como objeto de amor foi perdido por exemplo o caso de uma noiva abandonada Ainda em outros casos acreditamos dever nos apoiar na suposição de uma perda como essa mas não conseguimos discernir com clareza o que foi perdido e com razão podemos supor que o doente também não é capaz de entender conscientemente o que ele perdeu Esse também poderia ser o caso de quando o doente sabe qual é a perda que ocasionou a melancolia na medida em que ele na verdade sabe quem mas não sabe o que perdeu nele Isso nos levaria de alguma forma a ligar a melancolia com uma perda de objeto que foi subtraída da consciência diferentemente do luto no qual não há nada inconsciente no que se refere à perda No luto achamos a inibição e a falta de interesse inteiramente esclarecidas pelo trabalho do luto que absorve o Eu A perda desconhecida na melancolia também vai ter como consequência um trabalho interno semelhante e que portanto será responsável pela inibição da melancolia É que a inibição melancólica nos passa uma impressão enigmática porque não conseguimos ver o que arrebata o doente tão completamente O melancólico ainda nos mostra algo que falta no luto um extraordinário rebaixamento na autoestima do Eu Ichgefühls5 um grandioso empobrecimento do Eu No luto o mundo se tornou pobre e vazio na melancolia foi o próprio Eu O doente nos descreve seu Eu como indigno incapaz e moralmente desprezível ele se recrimina insultase e espera ser rejeitado e castigado Ele se humilha diante de qualquer pessoa e sente pesar por seus familiares estarem ligados a uma pessoa tão indigna Ele não julga que uma mudança lhe aconteceu mas estende sua autocrítica ao passado ele afirma que nunca foi melhor O quadro desse delírio de inferioridade Kleinheitswahn predominantemente moral completase com insônia recusa de alimentação e uma superação da pulsão extremamente peculiar do ponto de vista psicológico que obriga todo ser vivo a se apegar à vida Tanto do ponto de vista científico quando do terapêutico seria igualmente infrutífero contrariar o doente que apresenta essas acusações contra seu Eu De alguma forma ele deve ter razão em descrever algo que é como lhe parece Portanto temos de reconhecer imediatamente alguns de seus dados sem restrições Ele é realmente tão desinteressado tão incapaz para o amor e para o trabalho como ele diz Mas isso como sabemos é secundário é consequência do trabalho interior para nós desconhecido e comparável ao luto que consome seu Eu Em algumas de suas outras autorrecriminações ele nos parece igualmente ter razão e até mesmo captar a verdade com mais agudeza do que outras pessoas não melancólicas Quando em uma autocrítica exacerbada ele se descreve como um homem mesquinho egoísta insincero e dependente que sempre só se esforçou para esconder as fraquezas de seu ser talvez ele tenha se aproximado bastante a nosso ver do autoconhecimento e só nos perguntamos por que é preciso primeiro que alguém fique doente para se ter acesso a uma verdade como essa Pois não resta dúvida de que aquele que chegou a uma autoapreciação como essa e a expressa diante de outros uma apreciação que o príncipe Hamlet fez de si mesmo e de todos os outros9 está doente quer ele agora diga a verdade quer seja mais ou menos injusto consigo mesmo Também não é difícil perceber que entre a medida de autodegradação e sua justificativa real não há a nosso ver nenhuma correspondência Na melancolia a mulher outrora bem comportada capaz e conscienciosa não se referirá a si mesma de um modo melhor do que aquela que na verdade é inútil e talvez a primeira tenha mais perspectivas de adoecer de melancolia do que a outra da qual nós também não saberíamos dizer nada de bom Por fim tem de nos chamar a atenção o fato de que a conduta do melancólico não é bem a de alguém com sentimento de culpa Zerknirschter que normalmente faz contrição de arrependimento e autorrecriminação Falta a vergonha diante dos outros que caracterizaria sobretudo este último estado ou então pelo menos ela não aparece de maneira chamativa No melancólico quase se poderia destacar o traço oposto o de uma premente comunicabilidade que encontra certo apaziguamento Befriedigung na exposição de si mesmo O essencial não é portanto que o melancólico tenha razão por causa de sua dolorosa autodepreciação no sentido de essa crítica coincidir com o julgamento dos outros Importa muito mais que ele descreva corretamente a sua situação psicológica Ele perdeu o respeito por si mesmo e deve ter um bom motivo para isso Estamos então na verdade diante de uma contradição que nos coloca um enigma de difícil solução segundo a analogia com o luto tivemos de concluir que ele sofreu uma perda no objeto a partir de suas afirmações surge uma perda em seu Eu Antes de tratarmos dessa contradição vamos nos deter por um momento na visão que nos proporciona a afecção do melancólico na constituição do Eu humano Vemos como nele uma parte do Eu se contrapõe à outra avaliaa criticamente e a toma como se fosse um objeto Nossa suspeita de que a instância crítica clivada6 do Eu vom Ich abgespaltene nesse caso também poderia provar sua autonomia sob outras condições será confirmada por todas as observações posteriores Nós realmente vamos encontrar motivo para separar essa instância do restante do Eu O que aqui acabamos de conhecer é a instância habitualmente chamada de consciência moral Gewissen7 vamos contála entre as grandes instituições do Eu juntamente com a censura consciente e a prova de realidade e em algum lugar encontraremos também as provas de que ela pode adoecer por conta própria O quadro clínico da melancolia coloca em evidência a insatisfação moral com o próprio Eu acima de outras críticas defeito físico feiura fraqueza e inferioridade social são muito mais raramente objeto da autoavaliação somente o empobrecimento Verarmung assume um lugar preferencial entre os temores e afirmações do doente Então uma observação que nem é difícil de fazer conduz ao esclarecimento da contradição apresentada anteriormente Se escutamos pacientemente as múltiplas autoacusações Selbsanklagen do melancólico não conseguimos no final conter a impressão de que as mais violentas entre elas frequentemente se adéquam muito pouco à sua própria pessoa mas que com ligeiras modificações podem ser adequadas para outra pessoa que o doente ama amou ou devia amar Sempre que examinamos esse assunto ele confirma essa suposição Assim temos na mão a chave do quadro clínico no qual reconhecemos as autorrecriminações como recriminações contra um objeto de amor a partir do qual se voltaram para o próprio Eu A mulher que em voz alta lamenta que seu marido esteja ligado a uma mulher tão incapaz quer na verdade queixarse anklagen da incapacidade do marido não importa em que sentido esta possa ser entendida Não é preciso ficar muito surpreso com o fato de que há algumas autorrecriminações legítimas espalhadas entre as que foram retrovertidas elas podem passar à frente porque ajudam a esconder as outras e a tornar impossível o reconhecimento do assunto na verdade elas também derivam dos prós e contras da disputa amorosa que levou à perda amorosa A conduta dos doentes também fica agora muito mais inteligível Suas queixas são acusações ihre Klagen sind Anklagen8 no velho sentido do termo eles não se envergonham nem se escondem porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos é dito no fundo acerca de outra pessoa eles estão longe de dar provas àqueles que os cercam de humildade e submissão as únicas que conviriam a pessoas tão indignas ao contrário eles são extremamente martirizantes estão sempre como que ofendidos e agindo como se tivessem sido objeto de uma grande injustiça Tudo isso só é possível porque as reações de sua conduta provêm sempre da constelação psíquica da revolta que depois em decorrência de um determinado processo foi transportada para a contrição melancólica Então não há dificuldade alguma em reconstruir esse processo Houve uma escolha de objeto uma ligação da libido a uma determinada pessoa em consequência de uma ofensa real ou de uma decepção causada pela pessoa amada sobreveio um abalo dessa relação de objeto Objektbeziehung O resultado não foi o normal de uma retirada da libido desse objeto e o seu deslocamento para um novo mas foi outro que parece exigir várias condições para a sua realização O investimento de objeto provou ser pouco resistente foi suspenso porém a libido livre não se deslocou para outro objeto mas se recolheu no Eu Lá no entanto ela não encontrou uma utilidade qualquer mas serviu para estabelecer uma identificação do Eu com o objeto abandonado A sombra do objeto caiu sobre o Eu que agora pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto como o objeto abandonado Desse modo a perda do objeto se transformou em uma perda do Eu e o conflito entre o Eu e a pessoa amada em uma cisão entre a crítica do Eu Ichkritik e o Eu modificado pela identificação Dos pontos de partida e resultados de um processo como esse podemos intuir algo imediatamente É preciso haver de um lado uma intensa fixação ao objeto de amor e de outro no entanto e em contradição com isso uma mínima resistência do investimento de objeto Essa contradição parece exigir de acordo com uma pertinente observação de Otto Rank que a escolha de objeto tenha sido feita sobre uma base narcísica de maneira que o investimento de objeto caso se defronte com dificuldades possa regredir para o narcisismo A identificação narcísica com o objeto se torna então o substituto do investimento amoroso o que tem como resultado que a ligação amorosa apesar do conflito com a pessoa amada não precise ser abandonada Essa substituição do amor objetal através de identificação constitui um mecanismo importante para as afecções narcísicas recentemente K Landauer o descobriu no processo curativo de uma esquizofrenia10 Corresponde naturalmente à regressão de um tipo de escolha de objeto ao narcisismo originário Afirmamos em outro lugar que a identificação é uma etapa preliminar da escolha de objeto e a primeira forma ambivalente em sua expressão com que o Eu distingue um objeto Ele gostaria de incorporar esse objeto e na verdade de devorálo de acordo com a fase oral ou canibalística do desenvolvimento da libido Abraham com razão remete a esse contexto a recusa de alimentação que se apresenta na formação mais grave do estado melancólico A conclusão requerida pela teoria de que a predisposição ao adoecimento melancólico ou uma parte dela reside no predomínio do tipo narcísico de escolha de objeto infelizmente ainda precisa ser confirmada pela investigação Nas frases iniciais deste ensaio admiti que o material empírico sobre o qual este estudo foi construído não é suficiente para as nossas pretensões Se pudéssemos supor uma coincidência da observação com as nossas deduções não hesitaríamos em incluir em nossa caracterização da melancolia a regressão do investimento de objeto à fase oral da libido que ainda pertence ao narcisismo Identificações com o objeto também não são de modo algum raras nas neuroses de transferência e na verdade até constituem um conhecido mecanismo de formação de sintoma em especial na histeria No entanto podemos distinguir a identificação narcísica da histérica porque na primeira o investimento de objeto é abandonado ao passo que na última ele persiste e manifesta um efeito que habitualmente se limita a determinadas ações e inervações isoladas Seja como for também nas neuroses de transferência a identificação é a expressão de algo em comum que pode ser amor A identificação narcísica é a mais arcaica e nos franqueia o acesso à compreensão da menos bem estudada identificação histérica Portanto a melancolia toma emprestada uma parte de suas características do luto e a outra parte do processo de regressão da escolha narcísica de objeto até o narcisismo Por um lado como o luto ela é reação à perda real do objeto mas além disso está comprometida com uma condição que falta no luto normal ou quando presente converteo em luto patológico A perda do objeto de amor é uma excelente ocasião para realçar e trazer à luz a ambivalência das ligações amorosas Por isso onde existe a predisposição à neurose obsessiva o conflito de ambivalência empresta ao luto uma configuração patológica e o obriga a expressar na forma de autorrecriminações que se é culpado pela perda do objeto de amor ou seja que se a desejou Nessas depressões neuróticoobsessivas zwangsneurotischen Depressionen após a morte de pessoas queridas nos é revelado o que o conflito de ambivalência se realiza por si só quando o recolhimento regressivo da libido não está presente Os motivos que ocasionam a melancolia frequentemente vão além do acontecimento claro da perda por morte e abrangem todas as situações de ofensa desprezo e decepção através das quais pode manifestarse na ligação uma oposição de amor e ódio ou uma ambivalência já existente pode ser reforçada Esse conflito de ambivalência ora de origem mais real ora mais constitutiva não deve ser desconsiderado entre os pressupostos da melancolia Se o amor pelo objeto que não pode ser abandonado ao passo que o próprio objeto o é se refugiou na identificação narcísica então o ódio entra em ação nesse objeto substituto insultando ohumilhandoo trazendolhe sofrimento e ganhando uma satisfação sádica nesse sofrimento O autotormento indubitavelmente gozoso genussreiche da melancolia significa tal como o fenômeno correspondente na neurose obsessiva a satisfação de tendências sádicas e de ódio11 relativas a um objeto e que por essa via voltaramse contra a própria pessoa Em ambas as afecções os doentes ainda conseguem pelo desvio da autopunição vingarse dos objetos originários e torturar seus entes queridos por intermédio de sua condição de doentes des Krankseins depois de terem se entregado à doença para não ter de lhes mostrar diretamente a sua hostilidade E de fato a pessoa que provocou a perturbação afetiva no doente e para a qual está orientada a sua condição de doente pode ser encontrada habitualmente em seu ambiente mais próximo Assim o investimento amoroso do melancólico em seu objeto experimentou um duplo destino parte dele regrediu até a identificação mas a outra parte sob a influência do conflito de ambivalência foi deslocada de volta até a etapa do sadismo mais próxima desse conflito Só esse sadismo resolve para nós o enigma da tendência ao suicídio pela qual a melancolia se torna tão interessante e tão perigosa Reconhecemos como o estado originário do qual parte a vida pulsional um amor tão grande do Eu por si mesmo e vemos liberarse na angústia que sobrevém diante da ameaça à vida um montante tão gigantesco de libido narcísica que não conseguimos compreender como esse Eu pode consentir em sua própria destruição Na verdade sabíamos há muito tempo que nenhum neurótico percebe intenções suicidas que não sejam voltadas para si mesmo a partir do impulso de matar os outros porém não entendíamos a partir de qual jogo de forças uma intenção como essa pode entrar em ação Foi então que a análise da melancolia nos ensinou que o Eu só pode se matar se através do retorno do investimento de objeto ele puder se tratar a si próprio como objeto se lhe for permitido dirigir contra si mesmo a hostilidade que vale para um objeto e que representa a reação originária do Eu contra objetos do mundo exterior9 Assim na regressão da escolha narcísica de objeto o objeto foi de fato suspenso aufgehoben mas provou ser mais poderoso do que o próprio Eu Nas duas situações opostas do apaixonamento mais extremo e do suicídio o Eu mesmo que por caminhos totalmente diferentes é subjugado pelo objeto Parece então plausível admitir a respeito do caráter marcante da melancolia o surgimento da angústia de empobrecimento Verarmungsangst que se origina do erotismo anal retirado de suas conexões e regressivamente transformado A melancolia ainda nos coloca diante de outras questões cuja resposta em parte nos escapa Ela compartilha com o luto essa peculiaridade de desaparecer após certo período de tempo sem deixar grandes alterações demonstráveis No luto encontramos a informação de que o tempo era necessário para executar detalhadamente a ordem Gebot10 da prova de realidade após cujo trabalho o Eu conseguiu liberar a sua libido do objeto perdido Podemos pensar que o Eu durante a melancolia ocupase com um trabalho análogo a compreensão econômica do processo falta tanto em um como no outro caso A insônia na melancolia testemunha a rigidez desse estado a impossibilidade de levar a cabo o recolhimento geral dos investimentos necessário para o sono O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta atraindo para si de todos os lados energias de investimento que chamamos de contrainvestimentos Gegenbesetzungen nas neuroses de transferência e esvaziando o Eu até o total empobrecimento ele pode facilmente se provar resistente ao desejo de dormir do Eu Um fator provavelmente somático que não deve ser explicado psicogenicamente aparece regularmente na atenuação desse estado ao anoitecer A estas considerações acrescentamos a pergunta se uma perda do Eu sem consideração pelo objeto uma ofensa puramente narcísica não basta para produzir o quadro da melancolia e se um empobrecimento da libido do Eu provocado diretamente por toxinas não pode gerar certas formas de afecção A peculiaridade mais notável da melancolia a que mais requer esclarecimento é dada através de sua tendência a se transformar no estado sintomaticamente oposto da mania Sabemos que nem toda melancolia tem esse destino Alguns casos transcorrem com recidivas periódicas em cujos intervalos não observamos nenhuma ou muito poucas nuances de mania Outros mostram aquela alternância regular entre fases melancólicas e maníacas que encontrou expressão na formulação da insanidade cíclica zyklischen Irreseins Estaríamos tentados a excluir esses casos da formulação psicogênica se o trabalho psicanalítico não tivesse permitido encontrar a solução e a influência terapêutica para justamente muitos desses adoecimentos Portanto não é apenas lícito mas até mesmo obrigatório estender um esclarecimento analítico da melancolia também à mania Não posso prometer que essa tentativa chegue a ser inteiramente satisfatória Ela não vai muito além da possibilidade de uma primeira orientação Temos aqui dois pontos de apoio à disposição o primeiro uma impressão psicanalítica o outro podemos chamar de experiência econômica geral A impressão à qual vários investigadores psicanalistas já emprestaram palavras é de que a mania não possui um conteúdo diferente da melancolia que ambas as afecções lutam contra o mesmo complexo ao qual o Eu provavelmente sucumbe na melancolia enquanto na mania ele o dominou ou o colocou de lado O outro ponto de apoio é dado pela experiência de que todos os estados de alegria júbilo e triunfo que nos oferecem o protótipo normal da mania apresentam as mesmas condições econômicas Tratase nesses casos de uma interferência por meio da qual um grande dispêndio psíquico mantido por muito tempo ou produzido habitualmente finalmente se torna supérfluo de maneira que ele fica disponível para inúmeras aplicações e possibilidades de descarga Abfuhr11 Então por exemplo quando um pobre diabo por ganhar uma grande soma de dinheiro fica subitamente desobrigado da preocupação crônica com o pão de cada dia quando uma longa e árdua luta se vê finalmente coroada de êxito quando se chega a uma situação de poder se libertar de um só golpe de uma coerção opressiva de uma dissimulação que se prolongou por muito tempo etc Todas essas situações se caracterizam pelo estado de ânimo elevado pelas marcas de descarga do afeto prazeroso e por maior prontidão para todo tipo de ações tal como acontece na mania e em franca oposição com a depressão e com a inibição da melancolia Podemos ousar afirmar que a mania nada mais é do que um triunfo como esse só que mais uma vez permanece oculto para o Eu o que ele superou e sobre o que ele triunfa A embriaguez alcoólica que se inclui na mesma série de estados pode contanto que seja alegre ser colocada do mesmo modo pode ser que nela se trate da suspensão por via tóxica de dispêndios de energia com o recalcamento A opinião leiga tende a supor que nessa conformação maníaca só se está tão ativo e empreendedor porque se está bem ligado É claro que é preciso desfazer essa falsa conexão É porque foi preenchida aquela mencionada condição econômica na vida psíquica que se está por um lado tão bem humorado e por outro tão desinibido na ação Se agora reunirmos essas duas indicações o resultado é o seguinte na mania o Eu precisa ter superado a perda do objeto ou o luto pela perda ou talvez o próprio objeto e agora fica disponível todo o montante de contrainvestimento que o sofrimento doloroso da melancolia havia atraído do Eu para si e havia ligado O maníaco também nos demonstra de maneira inequívoca sua libertação do objeto que o fez sofrer quando como um faminto sai em busca de novos investimentos de objeto Embora esse esclarecimento soe plausível ainda está em primeiro lugar pouco definido e em segundo faz com que surjam mais perguntas e dúvidas do que podemos responder Não queremos nos esquivar da sua discussão mesmo que não possamos esperar encontrar através delas o caminho da clareza Em primeiro lugar o luto normal também supera a perda do objeto e absorve enquanto dura todas as energias do Eu Por que depois que passou não há indícios de que nele se produza a condição econômica para uma fase de triunfo Acho impossível responder de imediato a essa objeção Ela chama a nossa atenção no sentido de que nem sequer conseguimos dizer com que meios econômicos o luto resolve a sua tarefa mas talvez nesse caso uma suposição possa nos ajudar Em cada uma das recordações e das situações de expectativa que mostram a libido ligada ao objeto perdido a realidade pronuncia seu veredicto de que o objeto não existe mais e o Eu por assim dizer colocado diante da pergunta se quer compartilhar desse destino deixase determinar pela soma de satisfações narcísicas de estar vivo e desfaz sua ligação com o objeto aniquilado Podemos imaginar que esse desligamento aconteça tão lenta e gradualmente que ao terminar o trabalho também se tenha dissipado o gasto que ele requeria12 É estimulante procurar a partir da conjectura sobre o trabalho do luto o caminho para uma figuração do trabalho melancólico Eis que se nos defronta de início uma incerteza nesse caminho Até agora mal consideramos o ponto de vista tópico na melancolia nem nos perguntamos em quais e entre quais sistemas psíquicos se realiza o trabalho da melancolia O que dos processos psíquicos da afecção ainda se passa nos investimentos de objeto inconscientes que foram abandonados e o que se passa em seu substituto por identificação no Eu É rápido responder e fácil escrever que a representação de coisa Ding inconsciente do objeto é abandonada pela libido Mas na realidade essa representação se apoia em incontáveis impressões singulares traços inconscientes delas e a execução desse recolhimento da libido não pode ser um processo momentâneo mas como no luto certamente um processo lento que avança pouco a pouco Se ele começa simultaneamente em vários lugares ou se inclui uma determinada sequência não é fácil de distinguir nas análises constatamos frequentemente que ora uma ora outra lembrança é ativada e que as queixas monocórdicas fatigantes por sua monotonia provêm no entanto a cada vez de outro fundamento inconsciente Se o objeto não tiver para o Eu uma importância tão grande reforçada por milhares de conexões sua perda não será adequada para causar um luto ou uma melancolia A característica da execução minuciosa do desligamento da libido deve ser atribuída igualmente à melancolia e ao luto provavelmente se apoia nas mesmas proporções econômicas e serve às mesmas tendências Mas a melancolia como sabemos tem como conteúdo algo mais do que o luto normal Nela a relação com o objeto não é nada simples e se torna complicada pelo conflito de ambivalência Ou a ambivalência é constitucional isto é inerente a qualquer ligação amorosa do Eu ou surge justamente das experiências que carregam em si a ameaça da perda de objeto Por isso a melancolia quanto aos motivos que a acarretam pode ir muito mais longe do que o luto que em geral só é desencadeado pela perda real a morte do objeto Portanto na melancolia tramase um semnúmero de batalhas isoladas pelo objeto nas quais ódio e amor se enfrentam um para desligar a libido do objeto o outro para defender essa posição da libido contra o ataque Não podemos situar essas batalhas isoladas em outro sistema que não o Ics12 o reino dos vestígios mnêmicos de coisas sachlichen Erinnerungsspuren em oposição aos investimentos de palavra Wortbesetzungen13 É lá que acontecem as tentativas de desligamento no luto mas neste nada impede que esses processos avancem pelo caminho normal através do Pcs até a consciência Esse caminho está interditado para o trabalho melancólico talvez em consequência de inúmeras causas ou do efeito de sua conjunção No fundo a ambivalência constitutiva pertence ao recalcado as experiências traumáticas com o objeto podem ter ativado um outro material recalcado Então dessas batalhas de ambivalência tudo permanece subtraído à consciência enquanto não sobrevém o desenlace Ausgang característico da melancolia Ele consiste como sabemos no fato de o investimento de libido ameaçado finalmente abandonar o objeto mas apenas para se recolher de volta ao lugar do Eu do qual havia partido Dessa maneira o amor deixou de ser suspenso Aufhebung por sua fuga para o Eu Após essa regressão da libido o processo pode se tornar consciente e se representa repräsentiert para a consciência como um conflito entre uma parte do Eu e a instância crítica O que a consciência Bewußtsein apreende do trabalho melancólico não é portanto sua parte essencial não é nem mesmo aquela à qual podemos atribuir uma influência sobre a solução do sofrimento Vemos que o Eu se degrada enfurecese contra si mesmo e compreendemos tão pouco quanto o doente aonde isso leva e como pode mudar Podemos atribuir uma produção Leistung como essa mais à parte inconsciente do trabalho porque não é difícil descobrir uma analogia essencial entre o trabalho da melancolia e aquele do luto Assim como o luto leva o Eu a renunciar ao objeto declarandoo morto e oferecendo lhe o prêmio de continuar a viver também cada uma das batalhas de ambivalência afrouxa a fixação da libido no objeto desvalorizandoo rebaixandoo e por assim dizer matandoo Existe a possibilidade de o processo terminar no Ics quer seja depois que a fúria se aplacou quer seja depois que o objeto foi abandonado como destituído de valor Não compreendemos qual dessas duas possibilidades põe fim à melancolia regularmente ou com maior frequência nem como esse término influencia o andamento posterior do caso Talvez o Eu possa com isso desfrutar a satisfação de poder reconhecerse como o melhor como superior ao objeto Mesmo que aceitemos essa versão do trabalho melancólico ela não nos pode fornecer a explicação almejada Nossa expectativa de que a condição econômica para o surgimento da mania depois de a melancolia ter seguido o seu curso fosse encontrada na ambivalência que domina essa afecção pôde apoiar se em analogias extraídas de vários outros campos mas existe um fato diante do qual ela precisa se inclinar Das três premissas da melancolia perda do objeto ambivalência e regressão da libido para o Eu reencontramos as duas primeiras nas recriminações obsessivas depois de casos de morte Lá sem dúvida é a ambivalência que representa a mola do conflito e a observação mostra que depois de passado esse conflito nada mais resta de parecido com o triunfo de uma condição maníaca Então somos remetidos ao terceiro fator como o único eficaz Aquele acúmulo de investimento antes ligado que se libera com o término do trabalho da melancolia e possibilita a mania tem de estar relacionado com a regressão da libido ao narcisismo O conflito no Eu que a melancolia substitui pela luta pelo objeto tem de ter o efeito de uma dolorosa ferida que exige um contrainvestimento extraordinariamente intenso Mas aqui será novamente adequado fazer uma parada e adiar o posterior esclarecimento da mania até que possamos compreender a natureza econômica da dor primeiro da física e depois da anímica análoga àquela Já sabemos que o contexto dos intrincados problemas psíquicos nos obriga a interromper cada investigação sem concluíla até que os resultados de outra possam vir em seu auxílio13 8 Abraham a quem devemos o mais importante dos poucos estudos analíticos sobre o tema também partiu dessa comparação Zentralblatt für Psychoanalyse II 6 1912 9 Dê a cada homem o que merece e quem escapará do açoite Use every man after his desert and who should scape whipping Hamlet II 2 10 Intern Zeitschr für Psychoanalyse II 1914 11 Sobre a distinção entre ambas ver meu artigo As pulsões e seus destinos 12 O ponto de vista econômico foi pouco considerado até agora nos trabalhos psicanalíticos Como exceção mencionamos o artigo de V Tausk Desvalorização por recompensa do motivo do recalcamento Intern Zeitschr für ärztl Psychoanalyse I 1913 13 Ver uma continuação desse exame sobre a mania em Psicologia das massas e análise do Eu Massenpsychologie und IchAnalyse Trauer und Melancholie 1917 1917 Primeira publicação Zeitschrift für Psychoanalyse t IV n 6 p 288301 1924 Gesammelte Schriften t V p 535553 1946 Gesammelte Werke t X p 427446 Este ensaio faz parte do conjunto de 12 títulos inicialmente propostos para compor a Metapsicologia Desse conjunto que visava formalizar e consolidar quase duas décadas de atividade clínica e de prática teórica apenas cinco vieram a lume Foi escrito durante a guerra entre abril e maio de 1915 mesma época em que escreveu o Complemento metapsicológico à doutrina nos sonhos ver nota anterior Assim que conclui sua redação em 4 de maio de 1915 Freud o anuncia a Karl Abraham agradecendolhe por suas observações preciosas então já incorporadas ao texto Com efeito Freud havia trabalhado o tema da melancolia 20 anos antes notadamente no Manuscrito G cuja data provável seria 7 de janeiro de 1885 Mas foi apenas por volta de 1911 devido ao interesse de Abraham que Freud volta a se interessar pela temática Escreve a Ernest Jones sobre o assunto em dezembro de 1914 depois que Viktor Tausk apresenta junto à Sociedade Psicanalítica de Viena um trabalho sobre a melancolia Mas o acontecimento teórico decisivo foi a introdução do conceito de narcisismo que permitiu reelaborar sua concepção de melancolia Um esboço das linhas gerais deste ensaio pode ser encontrado na carta enviada a Ferenczi em 7 de fevereiro de 1915 Esse esboço não foi redigido em papel carta mas em folhas de formato grande característica da maior parte dos manuscritos freudianos Em seguida esse mesmo manuscrito é enviado a Abraham Segundo PaulLaurent Assoun 2009 p 390 o título do ensaio não espelha apenas uma vaga analogia entre o luto e a melancolia mas no plano dos processos psíquicos uma relação mais profunda em que o primeiro fornece o modelo explicativo do segundo Neste texto aparece pela primeira vez uma noção que terá forte impacto na história da Psicanálise a noção de Objektbeziehung ligação ou relação de objeto Além disso a concepção de objeto contida nele será decisiva para Melanie Klein fundar sua concepção acerca dos estados depressivos Em 1934 em sua Contribuição à psicogênese dos estados maníacodepressivos Klein referese ao processo fundamental da melancolia que seria a perda do objeto amado Finalmente também Jacques Lacan apoia em grande parte sua teoria do objeto a neste escrito como confessa em sua Conferência em Louvain Vale destacar uma fórmula abundantemente citada na literatura secundária da Psicanálise que é um dos melhores exemplos do modo como Freud se vale de metáforas para fundar conceitos e teorias A sombra do objeto caiu sobre o Eu que agora pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto como o objeto abandonado KLEIN M A Contribution to the Psychogenesis of ManiacDepressive States International Journal of PsychoAnalysis n 16 LACAN J Conférence à Louvain le 13 octobre 1972 Quarto n 5 1981 NOTAS 1 Trauer em alemão tem uma clara relação com a noção de tristeza como se pode depreender do adjetivo traurig triste ou do substantivo composto Trauerspiel tragédia encenação de tristeza NR 2 Numa tradução mais literal sentimento de si NR 3 Tratase do texto Metapsychologische Ergänzung zur Traumlehre Complementação metapsicológica à Doutrina dos Sonhos Na presente coleção será incluído no volume Sonhos sintomas e atos falhos NR 4 De um modo mais literal teríamos desinibido NR 5 Literalmente Sentimento do Eu NR 6 Cabe aqui a remissão à noção de Spaltung como divisão separação ou clivagem Termo retomado por Freud no texto A clivagem do Eu no processo de defesa publicado nesta coleção no volume Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados NR 7 No alemão há duas palavras distintas para dois sentidos distintos do vocábulo consciência Designase a consciência como instância ou qualidade psíquica ao qual o inconsciente se opõe como Bewusstsein ao passo que a consciência moral é designada por Gewissen NR 8 Célebre jogo de palavras de Freud brilhantemente traduzido por Marilene Carone como Para eles queixarse é dar queixa Aqui Freud aponta a íntima relação em alemão entre as noções de acusar prestar uma queixa formal em juízo anklagen e reclamar queixarse klagen NR 9 O volume As pulsões e seus destinos foi publicado em 2013 nesta coleção em edição bilíngue contendo ainda três ensaios que buscam elucidar alguns aspectos decisivos do artigo de Freud NR 10 Outra tradução possível solicitação NR 11 Abfuhr esse vocábulo é reiteradamente utilizado por Freud e tem em descarga uma possível tradução Entretanto cabe ressaltar que enquanto o termo em português traz a imagem de algo abrupto o termo em alemão geralmente remete a um decurso de escoamento que pode ser lento e processual NR 12 Freud utiliza aqui a abreviação Ubw para se referir a Unbewusste Inconsciente Mais adiante vemos Vbw Pcs relativo a Vorbewusste Pré Consciente NR 13 Vale observar que a língua alemã dispõe de dois vocábulos para o que designamos em português por coisa das Ding e die Sache Na presente passagem Freud referese a vestígios mnêmicos de coisas sachlichen Erinnerungsspuren Um pouco acima referese à representação de coisa inconsciente do objeto die unbewußte Ding Vorstellung des Objekts Os parênteses em torno de Ding são do próprio Freud Quanto a um eventual valor conceitual dessa distinção cabe ao leitor decidir de acordo com suas inclinações teóricas NE BATESE NUMA CRIANÇA CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DA ORIGEM DAS PERVERSÕES SEXUAIS 1919 I A representação fantasística Phantasievorstellung batesenuma criança é admitida com surpreendente frequência por pessoas que procuram o tratamento analítico por causa de uma histeria ou de uma neurose obsessiva É muito provável que ela se apresente com ainda maior frequência a outras pessoas que não tenham chegado a essa conclusão pressionadas pela urgência de uma enfermidade manifesta A essa fantasia estão ligados sentimentos de prazer em virtude dos quais ela foi reproduzida inúmeras vezes ou continua sendo reproduzida No ápice da situação imaginada obtémse quase que invariavelmente uma satisfação masturbatória portanto nos genitais inicialmente por vontade da pessoa mas posteriormente contra todos os seus esforços de caráter compulsivo A admissão dessa fantasia só acontece com hesitação a lembrança de sua primeira aparição é incerta uma inequívoca resistência se opõe ao seu tratamento analítico vergonha e sentimento de culpa Schuldbewußtsein1 são despertados talvez mais intensamente nesse caso do que em relatos semelhantes sobre as lembranças do início da vida sexual Por fim é possível estabelecer que as primeiras fantasias dessa espécie foram cultivadas desde muito cedo certamente antes da idade escolar já no quinto ou sexto ano de vida No entanto quando a criança observou na escola o professor batendo em outras crianças essa vivência reavivou as fantasias adormecidas caso estivessem dormentes reforçouas caso estivessem presentes e modificou seu conteúdo de maneira considerável A partir daí bateuse em muitas crianças A importância da escola foi tão evidente que os pacientes em questão tentaram de início remeter suas fantasias de surra Schlagephantasien exclusivamente às impressões da época escolar posteriores ao sexto ano de vida Mas isso nunca se sustentou elas já estavam presentes anteriormente Se o bater em crianças cessou nas séries mais adiantadas sua influência foi mais do que apenas substituída pelo efeito das leituras que logo se tornariam significativas No ambiente de meus pacientes as leituras eram quase sempre as mesmas livros acessíveis aos jovens de cujo conteúdo as fantasias de surra colhiam novos estímulos a assim chamada Biblioteca Rosa A cabana do Pai Tomás2 e outros semelhantes Competindo com essas obras literárias tinha início a própria atividade de fantasia da criança produzindo uma riqueza de situações e instituições nas quais crianças apanhavam ou recebiam outra espécie de castigo ou de corretivo por suas maldades ou travessuras Tendo em vista que a representação batese numa criança era invariavelmente investida com um alto grau de prazer e desembocava em um ato de satisfação autoerótica prazerosa seria de se esperar que também a visão de uma criança apanhando na escola fosse uma fonte de fruição Genusses semelhante Mas esse não era o caso Vivenciar cenas reais de surra na escola provocava na criança espectadora uma emoção singular provavelmente mista na qual a repulsa tinha uma participação considerável Em alguns casos a vivência real das cenas de surra era sentida como intolerável A propósito mesmo nas fantasias mais sofisticadas dos anos posteriores havia uma condição de que as crianças que recebessem o castigo não sofreriam nenhum dano mais sério Era preciso levantar a questão sobre qual ligação poderia haver entre o significado das fantasias de surra e o papel que teriam desempenhado os corretivos corporais reais na educação familiar A primeira suposição de que existiria uma relação inversa não pôde se comprovar em virtude da parcialidade do material As pessoas que forneceram os dados para essa análise só apanharam raramente em sua infância e de qualquer forma não foram criadas com sovas É claro que cada uma dessas crianças deve ter sentido em algum momento a força corporal superior de seus pais ou educadores e o fato de não terem faltado estapeamentos Schlägereien entre as crianças que dividiam o mesmo ambiente não exige destaque especial Seria importante continuar a investigação sobre as fantasias precoces e simples que claramente não podiam ser atribuídas à influência das impressões escolares ou às cenas das leituras Quem era a criança que apanhavaAquela que estava fantasiando ou uma estranha Era sempre a mesma criança ou por vezes uma outra Quem estava batendo nela Um adulto Quem Ou a criança fantasiava que ela própria estava batendo em outra Não houve esclarecimento para nenhuma dessas perguntas apenas a única tímida resposta Não sei mais nada sobre isso estão batendo numa criança Por outro lado conseguimos melhores informações sobre o sexo3 Geschlecht da criança que apanhava que no entanto não trouxeram esclarecimentos Às vezes respondiam São sempre meninos ou Só meninas mas na maioria das vezes Não sei ou Tanto faz Com relação ao pesquisador não se obteve o que interessava um vínculo constante entre o sexo da criança que fantasiava e o sexo da criança que apanhava De vez em quando surgia um detalhe característico do conteúdo da fantasia Estão batendo no bumbum pelado da criancinha Nessas circunstâncias não se podia inicialmente sequer decidir se o prazer relativo à fantasia de surra deveria ser descrito como sádico ou como masoquista II A concepção de uma fantasia emergente na primeira infância talvez por motivos acidentais e voltada à satisfação autoerótica só pode querer dizer de acordo com nossas atuais posições que se trata de um traço Zug primário de perversão Um dos componentes da função sexual teria se antecipado aos outros no curso do desenvolvimento teria se tornado independente prematuramente teria se fixado e por isso subtraídose dos processos posteriores de desenvolvimento e com isso atestaria uma constituição singular e anormal da pessoa Sabemos que uma perversão infantil como essa não precisa necessariamente durar a vida toda ela pode cair sob o recalcamento4 ser substituída por uma formação reativa ou transformada por uma sublimação É possível que a sublimação provenha de um processo especial que seria detido pelo recalcamento Entretanto se faltarem esses processos a perversão se conserva até a maturidade e sempre que encontramos uma aberração Abirrung sexual no adulto perversão fetichismo inversão temos motivos para esperar que a anamnese revele na infância um evento fixador como esse Muito antes da época da Psicanálise observadores como Binet já tinham podido atribuir as estranhas aberrações sexuais da maturidade a impressões desse tipo e exatamente na mesma época da infância aos 5 ou 6 anos Mas nesse ponto encontrávamos uma barreira em nossa compreensão pois faltava qualquer força traumática às impressões fixadas elas eram banais em sua maioria e não estimulantes para outros indivíduos não se podia dizer por que o anseio sexual Sexualstrebens tinha se fixado exatamente nelas Por outro lado era possível procurar sua importância no fato de que elas teriam oferecido aos componentes sexuais que se desenvolviam prematuramente e que estavam preparados para se colocar em primeiro plano a ocasião mesmo que acidental para a fixação e tínhamos de estar preparados para prever que a cadeia de conexão causal teria em algum momento um final provisório Nesse sentido a constituição congênita parecia corresponder exatamente a todos os requisitos para um ponto de apoio como esse Se o componente sexual que se separou prematuramente for o sádico podemos esperar com base no conhecimento advindo de outro lugar que através de seu recalcamento posterior será gerada uma disposição para a neurose obsessiva5 Não se pode dizer que essa expectativa será contrariada pelo resultado da investigação Entre os seis casos sobre cujo estudo exaustivo se baseia este pequeno artigo quatro mulheres e dois homens havia dois de neurose obsessiva um extremamente grave incapacitante6 lebenszerstörender e um de gravidade mediana bastante acessível à influência do tratamento e ainda um terceiro que ao menos apresentava alguns traços nítidos da neurose obsessiva O quarto caso era abertamente uma franca histeria com dores e inibições e um quinto que procurou a análise simplesmente por causa de indecisão na vida e não seria absolutamente classificado no diagnóstico clínico comum ou seria despachado como psicastenia Não é necessário que fiquemos desapontados com essa estatística porque em primeiro lugar sabemos que nem toda disposição vai se desenvolver numa afecção Affektion e em segundo ela deve bastar se pudermos explicar o que existe e podemos nos dar o direito de evitar a tarefa de esclarecer por que algo não aconteceu Até aqui mas não adiante nossos conhecimentos atuais nos permitiram penetrar quanto à compreensão das fantasias de surra Uma vaga suspeita de que dessa maneira o problema não está resolvido passa pela cabeça do médico analista quando ele precisa admitir para si próprio que essas fantasias em sua maioria permanecem separadas do conteúdo restante da neurose e não possuem um lugar adequado em sua estrutura no entanto como sei por minha própria experiência devemos prontamente rejeitar essas impressões III A rigor e por que não tomar isso tão rigorosamente quanto possível só merece o reconhecimento como Psicanálise correta o empenho analítico que logra remover a amnésia que esconde ao adulto o conhecimento de sua infância desde o início ou seja aproximadamente do segundo até o quinto ano Entre analistas não se consegue dizer isso com voz suficientemente alta nem repetilo o bastante Os motivos para desconsiderarem essa advertência são na verdade compreensíveis Eles querem obter resultados práticos em tempo mais curto e com o menor esforço Acontece que no momento o conhecimento teórico é muitíssimo mais importante para cada um de nós do que o sucesso terapêutico e aquele que menospreza a análise da infância incorrerá fatalmente em sérios erros Insistir na importância das primeiras vivências não implica subestimar a influência das posteriores Ocorre que as impressões vitais posteriores falam suficientemente alto na análise através da boca do paciente enquanto somente o médico pode levantar a voz em favor das reivindicações da infância O período da infância entre 2 e 4 ou 5 anos é aquele no qual pela primeira vez os fatores libidinais congênitos são despertados pelas vivências e ligados a determinados complexos As fantasias de surra aqui tratadas só se revelam mais para o final desse período ou depois de seu término Portanto é bem possível que elas tenham uma préhistória que sofram um desenvolvimento e que correspondam a um resultado final e não a uma manifestação inicial Essa suspeita é confirmada pela análise O exercício consequente da análise ensina que as fantasias de surra possuem uma história evolutiva nada simples em cujo decurso a maior parte delas é modificada mais de uma vez sua relação com o autor da fantasia seu objeto conteúdo e seu significado Para que fique mais fácil seguir essas transformações nas fantasias de surra vou me permitir limitar minhas descrições às pessoas do sexo feminino que de qualquer forma quatro contra dois constituem a maioria do meu material Além disso às fantasias de surra nos homens está ligado outro tema que deixarei de lado neste ensaio7 Vou me esforçar para não esquematizar mais do que o inevitável na apresentação de um caso comum Se uma observação posterior trouxer uma maior diversidade dessas relações então estarei seguro de ter compreendido um acontecimento típico e não algo de natureza incomum A primeira fase das fantasias de surra nas meninas deve pertencer portanto a um período muito remoto da infância Alguma coisa nelas permanece curiosamente indefinida como se fosse indiferente A escassa informação que se recebe das pacientes na primeira comunicação Batese numa criança parece justificada para essa fantasia Entretanto há outra coisa que pode ser determinada com segurança e em todos os casos no mesmo sentido A criança que apanha com efeito nunca é aquela que fantasia via de regra é outra criança quase sempre um irmãozinho ou uma irmãzinha quando houver algum Como pode ser um irmão ou uma irmã não é possível estabelecer um vínculo constante entre o sexo da criança que fantasia e o da que apanha Então certamente a fantasia não é masoquista poderíamos chamála de sádica mas não podemos desconsiderar que a criança que fantasia nunca é a que bate Não fica claro de início quem é realmente a pessoa que bate Só se pode comprovar que não é outra criança mas um adulto Essa pessoa adulta indeterminada é então mais tarde reconhecível de maneira clara e inequívoca como o pai da menina Essa primeira fase da fantasia de surra pode portanto ser enunciada plenamente através da frase O meu pai está batendo na criança Der Vater schlägt das Kind Estarei denunciando grande parte do conteúdo que ainda apresentarei se em vez disso eu disser O meu pai está batendo na criança que eu odeio Der Vater schlägt das mir verhaßte Kind Podemos inclusive hesitar sobre se devemos atribuir o caráter de fantasia a esse estágio preliminar da futura fantasia de surra Talvez se trate antes de lembranças de eventos presenciados ou de desejos que tenham surgido de diversas ocasiões mas essas dúvidas não têm nenhuma importância Entre essa primeira e a próxima fase aconteceram grandes transformações A pessoa que bate continua sendo a mesma o pai mas a criança que apanha transformouse em outra em geral é a pessoa da própria criança que produz a fantasia a fantasia é altamente prazerosa e foi preenchida com um conteúdo significativo a cujo desenrolar Ableitung nos dedicaremos mais tarde Seu teor agora seria Estou sendo surrada pelo meu pai Ich werde vom Vater geschlagen Ela tem um caráter indiscutivelmente masoquista Essa segunda fase é a mais importante e a mais significativa de todas Porém em certo sentido podemos dizer que ela nunca teve uma existência real Em nenhum caso ela é lembrada nunca conseguiu tornarse consciente Ela é uma construção da análise mas nem por isso é menos necessária A terceira fase assemelhase novamente à primeira Ela soa conforme a comunicação da paciente A pessoa que bate nunca é o pai ou ela permanece indefinida como na primeira fase ou é substituída tipicamente por um substituto do pai como o professor A própria pessoa da criança que fantasia não aparece mais na fantasia de surra Em resposta às insistentes perguntas as pacientes apenas dizem Provavelmente estou olhando Em vez de apenas uma criança apanhando há agora quase sempre muitas crianças Com excessiva frequência são os meninos que apanham nas fantasias das meninas mas elas não os conhecem pessoalmente A situação originalmente simples e monótona de apanhar pode experimentar as mais diversas variações e adornos e o próprio apanhar pode ser substituído por castigos e humilhações de outra natureza Entretanto a característica essencial que distingue mesmo as mais simples fantasias dessa fase daquelas da primeira e que estabelece a ligação com a fase intermediária é a seguinte agora a fantasia é a portadora de uma excitação intensa inequivocamente sexual e como tal proporciona a satisfação masturbatória No entanto é exatamente isto que é enigmático por que caminho a fantasia que a partir de agora é sádica de meninos estranhos e desconhecidos apanhando chegou a se tornar a partir daí propriedade permanente do anseio libidinal da menininha Também não escondemos de nós mesmos que o nexo e a sequência das três fases da fantasia de surra bem como as suas outras peculiaridades permaneceram até aqui bastante incompreensíveis IV Se conduzimos a análise por aqueles anos remotos em que a fantasia de surra se situa e a partir dos quais ela é recordada ela mostra a criança enredada nas excitações de seu complexo parental A menininha está ternamente fixada ao pai que provavelmente fez tudo para ganhar seu amor e que dessa forma inculca o gérmen de uma atitude de ódio e concorrência em relação à mãe atitude que subsiste ao lado de uma corrente de terna dependência Como o gérmen dessa atitude pode ficar conservado é possível que com o passar dos anos essa atitude se torne cada vez mais forte e mais nitidamente consciente ou dê ensejo para uma exagerada ligação amorosa reativa com a mãe Mas a fantasia de surra não está ligada à relação com a mãe Há no mesmo ambiente outras crianças alguns anos mais velhas ou mais novas de quem ela não gosta por quaisquer outros motivos mas principalmente porque precisa compartilhar com elas o amor dos pais e que por isso são repelidas com toda a energia selvagem que caracteriza essa idade Se há um irmãozinho menor como em três dos meus quatro casos ele é desprezado e odiado e ainda por cima ela precisa observar como pode atrair para si aquela porção de ternura que os pais enceguecidos sempre estão prontos a dedicar ao mais novo Logo se percebe que apanhar mesmo quando não dói muito significa uma retração do amor e uma humilhação E muitas crianças que se acreditavam seguras no trono que lhes oferece o amor inabalável de seus pais foram derrubadas com um único golpe das alturas de sua presumida onipotência Que o pai bata nessa criança odiada é portanto uma representação agradável independentemente de ter sido visto batendo E significa meu pai não ama essa outra criança ele só ama a mim Esse é então o conteúdo e o significado da fantasia de surra em sua primeira fase É evidente que a fantasia satisfaz o ciúme da criança e depende de sua vida amorosa mas ela também é poderosamente reforçada pelos seus interesses egoístas Assim sendo não se sabe se ela pode ser caracterizada como puramente sexual também não nos atrevemos a chamála de sádica Sabemos que quando se trata de origem perdese a clareza sobre todos os sinais com os quais estamos habituados a construir nossas distinções Talvez isso seja semelhante à profecia que as três bruxas fizeram a Banquo8 não claramente sexual nem mesmo sádico mas certamente a matéria da qual ambos posteriormente serão feitos Entretanto não existe motivo algum para a suspeita de que essa primeira fase da fantasia já esteja a serviço de uma excitação que recorrendo aos genitais obtenha descarga em um ato onanista Nessa prematura escolha de objeto do amor incestuoso a vida sexual da criança alcança evidentemente o estágio da organização genital Para o menino isso é mais fácil de provar mas é também indubitável para a menininha Algo como um vislumbre sobre as posteriores metas sexuais definitivas e normais domina o anseio libidinal da criança mesmo que com razão fiquemos surpresos quanto a sua origem podemos tomálo como prova de que os genitais já começaram a desempenhar seu papel no processo de excitação Jamais está ausente no menino o desejo de ter um filho com a mãe o desejo de ter um filho com o pai é constante na menina e isso na total ignorância sobre como esses desejos se realizariam O que parece estar estabelecido para a criança é que os genitais têm algo a ver com isso embora suas cogitações a levem a procurar a essência da intimidade que pressupõe entre os pais em outras formas de ligação por exemplo em dormirem juntos em urinarem em presença um do outro e outras semelhantes e esse conteúdo pode ser mais bem apreendido na forma de representações de palavra Wortvorstellungen do que da forma obscura que diz respeito aos genitais Mas chega o tempo em que essa florada prematura é prejudicada pela geada nenhum desses enamoramentos incestuosos pode escapar da fatalidade do recalcamento Ou sucumbem a ele pela comprovação de eventos externos que provocam um desengano por ofensas Kränkungen inesperadas pelo nascimento indesejado de um novo irmãozinho que será sentido como infidelidade etc ou sem a necessidade de nenhum desses motivos a partir de dentro talvez apenas devido à não realização tão longamente almejada É inquestionável que esses motivos não são as causas efetivas mas é certo que essas relações amorosas estão fadadas a se extinguir em algum momento e não sabemos por que motivo9 É muito provável que elas passem porque seu tempo acabou porque as crianças entram em uma nova fase de desenvolvimento na qual é necessário que repitam o recalcamento da escolha de objeto incestuosa ocorrida na história da humanidade da mesma forma como foram pressionadas anteriormente a efetuar essa escolha de objeto ver o destino no mito de Édipo O que restou inconsciente como resultado psíquico das moções amorosas incestuosas não será mais retomado pela consciência da nova fase e o que já tinha se tornado consciente será expulso novamente Simultâneo a esse processo de recalcamento surge um sentimento de culpa Schuldbewusstsein este também de origem desconhecida mas indubitavelmente ligado àqueles desejos incestuosos justificado por sua permanência no inconsciente14 A fantasia do período de amor incestuoso havia dito Ele o pai só ama a mim não a outra criança pois ele está batendo nela O sentimento de culpa não sabe encontrar castigo maior do que a inversão desse triunfo Não ele não te ama pois está batendo em você Dessa forma a fantasia da segunda fase ser surrado pelo próprio pai se transforma em expressão direta do sentimento de culpa diante do qual sucumbe agora o amor pelo pai Portanto a fantasia tornou se masoquista pelo que sei é sempre assim o sentimento de culpa é o fator que transforma o sadismo em masoquismo Mas é claro que esse não é o conteúdo integral do masoquismo O sentimento de culpa não pode ter conquistado o campo sozinho uma parcela dele também deve ser atribuída à moção amorosa Lembremonos de que se trata de crianças nas quais o componente sádico pôde se adiantar prematura e isoladamente por motivos constitucionais Não precisamos desistir desse ponto de vista É justamente nessas crianças que é particularmente facilitado um retorno à organização prégenital sádicoanal da vida sexual Quando a ainda mal alcançada organização genital encontra o recalcamento não acontece apenas a consequência de que toda e qualquer representação psíquica do amor incestuoso se torna ou permanece inconsciente mas uma outra se agrega a de que a própria organização genital sofre uma degradação regressiva O que era Meu pai me amafoi dito no sentido genital e através da regressão se transforma em Meu pai me bate estou apanhando do meu pai Der Vater schlägt mich ich werde vom Vater geschlagen Esse ser surrado é agora um encontro de sentimento de culpa com erotismo ele não é apenas o castigo pela relação genital proibida mas também seu substituto regressivo e dessa última fonte a fantasia recebe a excitação libidinal que de agora em diante se aderirá a ela e encontrará descarga em atos onanistas Mas essa é pois a essência do masoquismo A fantasia da segunda fase apanhar do próprio pai permanece via de regra inconsciente provavelmente em consequência da intensidade do recalcamento Não posso indicar o porquê de justamente em um de meus seis casos um masculino ela ter sido lembrada conscientemente Esse homem agora adulto havia guardado bem claramente na memória que costumava utilizar a representação de apanhar da mãe para fins de masturbação é claro que logo ele substituiu a própria mãe pela mãe de colegas de escola ou outras que de alguma forma assemelhavamse a ela Não se deve esquecer que no caso da transformação da fantasia do menino na correspondente fantasia masoquista produzse uma inversão a mais do que no caso da menina a saber a substituição de atividade por passividade e esse a mais de desfiguração pode proteger a fantasia de permanecer inconsciente como resultado do recalcamento Assim para o sentimento de culpa teria bastado a regressão em vez do recalcamento nos casos femininos o sentimento de culpa talvez por ser em si mais exigente só se acalmaria através da combinação de ambos Em dois de meus quatro casos femininos desenvolveuse sobre a fantasia de surra uma engenhosa superestrutura de sonhos diurnos10 Tagträume muito significativa para a vida da pessoa em questão uma cuja função era possibilitar um sentimento de que a excitação fora satisfeita mesmo com a renúncia ao ato onanista Em um desses casos era permitido que o conteúdo ser surrado pelo pai se aventurasse novamente até a consciência se o próprio Eu se tornasse irreconhecível através de um ligeiro disfarce O herói dessas histórias apanhava sistematicamente do pai sendo posteriormente apenas punido humilhado etc Mas eu torno a repetir que via de regra a fantasia permanece inconsciente e só vai ser reconstruída na análise Talvez isso nos deixe dar razão aos pacientes que querem se lembrar de que o onanismo surgiu para eles mais cedo do que a fantasia de surra da terceira fase considerada logo adiante esta última só teria sido acrescentada posteriormente talvez sob a impressão de cenas escolares Sempre que demos crédito a esses dados tendíamos a supor que o onanismo estava inicialmente sob o comando de fantasias inconscientes posteriormente substituídas por conscientes Vamos então tomar um substituto como esse para a conhecida fantasia de surra da terceira fase em sua configuração definitiva na qual a criança que fantasia aparece ainda no máximo como espectador e o pai é mantido na pessoa de um professor ou de outra autoridade qualquer A fantasia que agora é semelhante àquela da primeira fase parece ter se tornado novamente sádica Temse a impressão de que na frase Meu pai está batendo na outra criança ele ama só a mim Der Vater schlägt das andere Kind er liebt nur mich a ênfase recuou para a primeira parte depois que a segunda sofreu recalcamento Na verdade apenas a forma dessa fantasia é sádica a satisfação que se obtém com ela é masoquista e seu significado reside no fato de que ela assumiu o investimento libidinal da parte recalcada e junto com ele o sentimento de culpa ligado ao conteúdo Todas as crianças indefinidas que apanham do professor são afinal substitutos da própria pessoa Aqui também pela primeira vez apresentase algo como uma constância do sexo nas pessoas que servem à fantasia As crianças que apanham são quase sempre meninos tanto nas fantasias dos meninos quanto nas das meninas É evidente que esse traço não pode ser explicado por qualquer rivalidade entre os sexos pois do contrário muito mais meninas teriam de apanhar nas fantasias dos meninos ele também não pode ser explicado pelo sexo da criança odiada da primeira fase mas aponta para um processo complicado no caso das meninas Quando elas se afastam do amor incestuoso do pai entendido como genital rompem facilmente com seu papel feminino reavivam seu complexo de masculinidade conforme Van Ophuijsen11 e a partir daí só querem ser meninos É por isso que os bodes expiatórios que as representam também são meninos Em ambos os casos de devaneios um deles quase chegou ao nível de uma criação literária os heróis eram sempre apenas homens jovens pois as mulheres nem sequer apareciam nessas criações e só apareceram depois de muitos anos em papéis secundários V Espero ter apresentado minhas experiências analíticas de maneira suficientemente detalhada e peço apenas que se considere que os seis casos reiteradamente mencionados não esgotam o meu material e que disponho tal como outros analistas de um número muito maior de casos não tão bem investigados Essas observações podem ser utilizadas em vários sentidos para esclarecimento da gênese das perversões em geral particularmente do masoquismo e para avaliar o papel que desempenha a diferença entre os sexos na dinâmica da neurose O resultado mais evidente dessa discussão diz respeito à origem das perversões Na verdade não está abalada a concepção de que nelas o reforço constitucional ou a prematuridade de um componente sexual passa ao primeiro plano mas com isso nem tudo foi dito A perversão não se encontra mais isolada na vida sexual da criança mas é acolhida dentro da trama dos nossos processos de desenvolvimento já conhecidos e típicos para não dizer normais Ela é colocada em relação com o amor objetal incestuoso da criança com o seu complexo de Édipo surge primeiro no terreno desse complexo e depois que ele sucumbe ela permanece em geral sozinha como sua sequela como herdeira de sua carga Ladung libidinal e carregada com o sentimento de culpa a ele ligado A constituição sexual anormal mostrou finalmente sua força pressionando o complexo de Édipo em uma determinada direção forçandoo a se tornar um fenômeno residual incomum A perversão infantil pode como sabemos tornarse o fundamento para a formação de uma perversão semelhante que dure toda a vida consumindo toda a vida sexual da pessoa ou pode ser interrompida e se conservar ao fundo de um desenvolvimento sexual normal do qual então ela sempre retira certo montante de energia A primeira alternativa já era conhecida em épocas préanalíticas mas o abismo entre ambas é quase que coberto pela pesquisa analítica das perversões plenamente desenvolvidas De fato descobrimos muito frequentemente que também esses perversos habitualmente na puberdade ensaiaram uma tentativa de atividade sexual normal Mas ela não foi forte o suficiente e foi abandonada diante das primeiras dificuldades que nunca faltam e então a pessoa retrocedeu definitivamente à fixação infantil É claro que seria importante saber se podemos atribuir de maneira bem geral a origem das perversões infantis ao complexo de Édipo Isso não pode ser decidido sem outras investigações mas não pareceria impossível Se consideramos as anamneses obtidas das perversões de pessoas adultas percebemos que a impressão decisiva a primeira vivência de todos esses perversos fetichistas etc quase nunca remonta a períodos anteriores ao sexto ano Mas nessa época já cessou o domínio do complexo de Édipo a vivência efetiva que é recordada de maneira tão enigmática poderia muito bem representar o legado desse complexo As ligações entre a vivência e o complexo agora recalcado vão permanecer obscuras enquanto a análise não iluminar o período que está por trás da primeira impressão patogênica De maneira que se pode imaginar quão pouco valor possui por exemplo a afirmação de uma homossexualidade inata baseada na informação de que a pessoa em questão já sentira preferência pelo mesmo sexo desde os 8 ou 6 anos Se então de modo geral for estabelecido que as perversões derivam do complexo de Édipo nossa avaliação delas sofreu um novo fortalecimento Pois acreditamos que o complexo de Édipo seja o verdadeiro núcleo da neurose e que a sexualidade infantil que culmina nesse complexo seja a condição efetiva da neurose e que o que resta dele no inconsciente representaria a disposição do adulto para posteriormente contrair uma neurose A fantasia de surra e outras fixações perversas análogas também seriam então apenas resíduos do complexo de Édipo cicatrizes por assim dizer deixadas pelo processo que terminou da mesma forma que a famigerada noção de inferioridade Minderwertigkeit corresponde a uma cicatriz narcísica desse tipo Devo expressar meu total acordo com essa concepção de Marcinowski que a sustentou de maneira feliz15 Esse delírio de insignificância Kleinheitswahn dos neuróticos também é sabidamente apenas parcial e inteiramente compatível com a existência de uma supervalorização de si Selbstüberschätzung oriunda de outras fontes Sobre a origem do próprio complexo de Édipo e sobre o destino reservado ao ser humano provavelmente único entre todos os animais de ter de iniciar duas vezes a vida sexual primeiro como todas as outras criaturas desde a tenra infância e posteriormente depois de longa interrupção de novo na puberdade sobre tudo isso ligado à sua herança arcaica já me manifestei em outro lugar e não pretendo voltar a abordálo aqui Para a gênese do masoquismo a discussão sobre nossas fantasias de surra traz apenas parcas contribuições Parece confirmarse inicialmente que o masoquismo não constitui uma manifestação pulsional primária mas se origina de uma reversão do sadismo contra a própria pessoa portanto por regressão do objeto para o Eu ver As pulsões e seus destinos12 Pulsões com metas passivas existem desde o início principalmente na mulher mas a passividade ainda não chega a constituir o todo do masoquismo ainda faz parte dele o caráter desprazeroso que é bem estranho numa realização pulsional A transformação do sadismo em masoquismo parece acontecer através da influência do sentimento de culpa que faz parte do recalcamento Portanto o recalcamento opera por meio de três tipos de efeito ele torna inconscientes os resultados da organização genital forçaa à regressão até a fase anterior sádico anal e transforma o sadismo dessa fase no masoquismo passivo em certo sentido novamente narcísico Desses três resultados o segundo é possível pela fraqueza da organização genital suposta nesses casos o terceiro é necessário porque o sentimento de culpa se escandaliza tanto com o sadismo como na ocasião da escolha incestuosa de objeto entendida como genital Uma vez mais as análises não dizem de onde vem esse sentimento de culpa Parece ter sido trazido da nova fase na qual a criança ingressa e se ele persiste a partir daí parece corresponder a uma formação cicatricial tal como o sentimento de inferioridade De acordo com a nossa orientação atual ainda incerta sobre a estrutura do Eu deveríamos atribuílo àquela instância que se contrapõe ao resto do Eu como consciência crítica que no sonho produz o fenômeno funcional de Silberer13 e que se desprende do Eu no delírio de ser observado Beachtungswahn De passagem queremos assinalar que a análise da perversão infantil aqui tratada também ajuda a solucionar um antigo enigma que na verdade atormentou mais os que estão fora da análise do que os próprios analistas No entanto recentemente o próprio E Bleuler14 admitiu ser curioso e inexplicavelmente reconhecido que os neuróticos coloquem o onanismo no centro de seu sentimento de culpa Há muito tempo fizemos a suposição de que esse sentimento de culpa dizia respeito ao onanismo da primeira infância e não ao da puberdade e que em grande parte não estava relacionado com o ato onanista mas à fantasia embora inconsciente que estava em sua base ou seja o complexo de Édipo Já comentei sobre a importância da terceira fase aparentemente sádica da fantasia de surra como portadora da excitação que pressiona para o onanismo e para qual atividade fantasística essa fase parece incitar para aquela que por um lado lhe dá continuidade no mesmo sentido e por outro a suspende por compensação No entanto a segunda fase inconsciente e masoquista é incomparavelmente a mais importante a fantasia de apanhar do próprio pai Não apenas porque estende seu efeito por mediação daquela que a substitui podem igualmente ser detectados efeitos sobre o caráter que derivam de sua forma inconsciente Aqueles que carregam essa fantasia desenvolvem uma particular sensibilidade e irritabilidade contra pessoas que podem incluir na série paterna são facilmente ofendidas por elas e assim realizam a situação fantasística de apanhar do pai produzindoa para seu próprio sofrimento e prejuízo Eu não me espantaria se algum dia fosse possível demonstrar que essa mesma fantasia é a base do paranoico delírio querelante Querulantenwahns VI A descrição das fantasias infantis de surra teria ficado totalmente incompreensível se eu não a tivesse limitado com exceção de poucas referências às situações de pessoas de sexo feminino Vou resumir rapidamente os resultados a fantasia de surra das meninas pequenas passa por três fases das quais a primeira e a última são lembradas conscientemente mas a do meio permanece inconsciente As duas conscientes parecem ser sádicas a do meio inconsciente é indubitavelmente de natureza masoquista seu conteúdo é apanhar do pai e a ela estão ligadas a carga libidinal e a consciência de culpa A criança que apanha nas duas primeiras fantasias é sempre outra na do meio é apenas a própria pessoa e na terceira fase consciente são em sua maioria meninos que estão apanhando A pessoa que bate é desde o começo o pai e posteriormente um substituto tomado da série paterna A fantasia inconsciente da fase do meio teve originalmente um sentido genital ela surgiu por recalcamento e regressão do desejo incestuoso de ser amada pelo pai Em conexão aparentemente mais frouxa temos o caso de as meninas entre a segunda e a terceira fase mudarem o seu sexo fantasiando que são meninos Talvez eu tenha avançado menos no conhecimento das fantasias de surra dos meninos apenas por causa da adversidade do meu material É compreensível que eu esperasse encontrar no caso de meninos e meninas plena analogia entrando a mãe no lugar do pai na fantasia Essa expectativa pareceu confirmar se pois a fantasia que consideramos correspondente no menino tinha como conteúdo apanhar da mãe posteriormente de uma pessoa substituta Apenas a fantasia em que a própria pessoa é tomada como objeto distinguiuse da segunda fase no caso das meninas pelo fato de que ela podia tornarse consciente Se entretanto por causa disso se quisesse equiparála à terceira fase da menina teríamos uma nova diferença a saber a de que a própria pessoa do menino não seria substituída por muitas pessoas indeterminadas e estranhas e muito menos por muitas meninas Portanto malogrouse a expectativa de um paralelismo completo Meu material masculino só consistia de poucos casos de fantasia infantil de surra sem qualquer outro dano sério da atividade sexual em contrapartida incluía um número maior de pessoas que eu devia descrever como verdadeiros masoquistas no sentido da perversão sexual Alguns deles encontravam sua satisfação sexual com fantasias masoquistas exclusivamente no onanismo outros conseguiam combinar de tal maneira o masoquismo e a atividade genital que nas encenações masoquistas e sob condições dessa mesma ordem alcançavam ereção e ejaculação ou estavam em condições para executar um coito normal A isso se somou o raro caso de um masoquista que em sua ação perversa foi perturbado por representações obsessivas de intensidade intolerável Perversos satisfeitos muito raramente veem razão para procurar análise no entanto para os três grupos mencionados de masoquistas pode haver fortes motivos que os levem ao analista O onanista masoquista vai se achar absolutamente impotente no momento em que finalmente tentar o coito com a mulher e aquele que até agora conseguiu realizar o coito com o auxílio de uma representação ou encenação masoquista pode fazer de repente a descoberta de que essa confortável aliança falha quando o genital não mais reage ao estímulo masoquista Estamos acostumados a prometer um restabelecimento confiante aos psiquicamente impotentes que demandam o nosso tratamento entretanto deveríamos ser mais cautelosos nesse prognóstico enquanto desconhecermos a dinâmica da perturbação Pois a análise nos apresenta uma surpresa desagradável quando revela como causa da impotência meramente psíquica uma peculiar posição masoquista talvez há muito tempo arraigada No caso desses homens masoquistas fazemos agora uma descoberta que nos adverte a não continuar perseguindo a analogia com as relações encontradas nas mulheres mas para julgarmos o estado de coisas separadamente Isso porque fica revelado que eles tanto nas fantasias masoquistas quanto nas encenações para a sua realização assumem sistematicamente o papel de mulheres e que portanto seu masoquismo coincide com uma posição feminina Isso é facilmente demonstrado pelos detalhes da fantasia muitos pacientes no entanto já o sabem ou o expressam como uma certeza subjetiva Nada se altera se o embelezamento da cena masoquista se atém à ficção de um menino um pajem ou um aprendiz malcriado Mas as pessoas que aplicam o castigo são sempre mulheres tanto nas fantasias como nas encenações Isso é bastante confuso também gostaríamos de saber se o masoquismo da fantasia infantil de surra já se baseia nessa posição feminina16 Por isso deixemos de lado as proporções de difícil explicação do masoquismo dos adultos e voltemonos para as fantasias infantis de surra do sexo masculino Nesse caso a análise dos primeiros anos da infância nos permite novamente fazer uma descoberta surpreendente a fantasia consciente ou suscetível de consciência de apanhar da mãe não é primária Ela tem um estágio preliminar que é sistematicamente regelmässig inconsciente com o seguinte conteúdo Sou surrada por meu pai Esse estágio preliminar corresponde realmente portanto à segunda fase da fantasia da menina Já a fantasia conhecida e consciente Sou surrada pela minha mãe encontrase no lugar da terceira fase da menina na qual como foi mencionado meninos desconhecidos são os objetos que apanham Não consegui demonstrar no menino um estágio preliminar de natureza sádica comparável à primeira fase da menina mas não quero aqui externar nenhuma desistência Ablehnung definitiva pois vejo muito bem a possibilidade da existência de tipos mais complicados O fato de ser surrado relativo à fantasia masculina como a chamarei de maneira breve esperando não ser mal interpretado é também um ser amado no sentido genital que foi rebaixado através da regressão Portanto a fantasia masculina inconsciente não era originalmente Sou surrado por meu pai como antes supusemos provisoriamente mas muito mais Sou amado por meu pai Ela foi transformada pelos processos conhecidos na fantasia consciente Sou surrado pela minha mãe A fantasia de surra dos meninos é portanto passiva desde o início nascida realmente da posição feminina diante do pai Ela também se equipara com a posição feminina a da menina no complexo de Édipo Só que o paralelismo entre ambas esperado por nós deve ser trocado por uma qualidade comum de outro tipo Em ambos os casos a fantasia de surra deriva da ligação incestuosa com o pai Penso que contribuirá para uma visão mais clara do conjunto se eu introduzir aqui as outras concordâncias e distinções entre as fantasias de surra de ambos os sexos Na menina a fantasia masoquista inconsciente parte da posição edípica normal no menino da invertida que toma o pai como objeto de amor Na menina a fantasia possui uma fase prévia a primeira fase na qual o surrar aparece em seu significado indiferente e recai sobre uma pessoa odiada por ciúme ambos os elementos faltam no menino e exatamente essa diferença poderia ser removida por uma observação mais feliz Na passagem para a substituída fantasia consciente a menina retém a pessoa do pai e dessa forma o sexo da pessoa que bate mas ela troca a pessoa que apanha e seu sexo de maneira que no final um homem bate em crianças do sexo masculino ao contrário o menino troca a pessoa e o sexo daquele que bate ao substituir o pai pela mãe e mantém sua própria pessoa de maneira que ao final aquele que bate e a pessoa que apanha são de sexos diferentes Na menina a situação originariamente masoquista passiva é transformada pelo recalcamento em sádica cuja característica sexual está muito apagada no menino ela permanece masoquista e conserva por causa da diferença sexual entre quem bate e quem apanha mais semelhança com a fantasia originária de significado genital O menino evita a homossexualidade através do recalcamento e do remodelamento da fantasia inconsciente e o que é notável em sua posterior fantasia consciente é que ela tem como conteúdo uma posição feminina sem escolha homossexual de objeto Ao contrário pelo mesmo processo a menina escapa da exigência da vida amorosa fantasiase como homem sem se tornar masculinamente ativa e agora só presencia mais como espectadora o ato que substitui o sexual Estamos autorizados a supor que não é muito o que muda com o recalcamento da fantasia originalmente inconsciente Tudo o que para a consciência foi recalcado e substituído permanece conservado e eficaz no inconsciente Não é o mesmo que acontece com o efeito da regressão a uma fase anterior da organização sexual Desta podemos acreditar que ela também altera as condições no inconsciente de modo que em ambos os sexos na verdade não se conservaria no inconsciente após o recalcamento a fantasia passiva de ser amado pelo pai mas a masoquista de ser surrado por ele Também não faltam indícios de que o recalcamento só logrou o seu propósito de maneira muito incompleta O menino que queria fugir de uma escolha homossexual de objeto e não mudou seu sexo se sente mulher em suas fantasias conscientes e dota as mulheres que batem de atributos e particularidades masculinas A menina que renunciou ao próprio sexo e que de modo geral executou um trabalho de recalcamento mais profundo não se livra do pai não se atreve por si mesma a bater e como ela se tornou um menino faz com que sejam principalmente meninos os que apanham Sei que não estão suficientemente esclarecidas as distinções aqui descritas no que diz respeito à fantasia de surra em ambos os sexos Entretanto abstenho me da tentativa de desembaraçar essas complicações insistindo em sua dependência de outros fatores porque eu mesmo não considero exaustivo o material da observação No entanto enquanto esse material está disponível quero utilizálo para testar duas teorias que apesar de se oporem entre si tratam ambas da relação entre o recalcamento e o caráter sexual cada uma com seu sentido apresentando essa ligação como muito íntima Adianto que sempre considerei essas teorias incorretas e equivocadas A primeira dessas teorias é anônima ela me foi apresentada há muitos anos por um colega15 com quem na época eu mantinha amizade Sua generosa simplicidade é tão sedutora que só podemos nos perguntar espantados por que desde então só a encontramos representada na Literatura em algumas alusões esparsas Ela se apoia na constituição bissexual dos seres humanos e afirma que em cada um deles o motivo do recalcamento seria a luta entre os dois caracteres sexuais O sexo dominante das Geschlecht na pessoa aquele que foi mais fortemente desenvolvido teria recalcado no inconsciente a representação psíquica do sexo subjugado O núcleo do inconsciente o recalcado seria portanto em cada ser humano aquele do sexo oposto nele presente No entanto isso só pode oferecer um sentido palpável se deixarmos que se determine o sexo de um ser humano pela forma dos seus genitais do contrário não se saberia ao certo qual o sexo mais forte de um ser humano e correríamos o risco de voltar a obter como resultado da investigação aquilo mesmo que deveria servir como ponto de apoio Resumidamente no homem o que há de recalcado inconsciente pode remontar a moções pulsionais femininas ocorrendo o inverso na mulher A segunda teoria é de origem mais recente ela condiz com a primeira porque também considera a luta entre os sexos decisiva para o recalcamento No restante ela teve de se opor à primeira além disso ela não faz uso de apoios biológicos mas sociológicos Essa teoria do protesto masculino formulada por Alfred Adler tem como conteúdo que todo indivíduo resiste a permanecer na inferior linha feminina e se esforça para a única linha satisfatória a masculina A partir desse protesto masculino Adler explica de um modo geral a formação do caráter e da neurose Infelizmente os dois processos que certamente deveriam ser mantidos separados são tão pouco diferenciados por Adler e o fato do recalcamento é tão pouco valorizado que nos expomos ao perigo do mal entendido se tentarmos aplicar a doutrina do protesto masculino ao recalcamento Penso que em todos os casos essa tentativa teria como resultado que o protesto masculino o querer separarse da linha feminina é o motivo do recalcamento Portanto o recalcante das Verdrängende seria sempre uma moção pulsional masculina e o recalcado uma feminina Mas o sintoma também seria resultado de uma moção feminina pois não podemos deixar de lado o fato de o sintoma ser um substituto do recalcado que se afirmou apesar do recalcamento Testemos agora as duas teorias das quais podemos dizer que compartilham a noção de sexualização do processo de recalcamento no exemplo da fantasia de surra aqui estudada A fantasia originária Sou surrado por meu pai corresponde no menino a uma posição feminina e é portanto uma expressão de sua disposição ao sexo oposto Se esta se submete ao recalcamento parece estar correta a primeira teoria que formulou a regra de que o sexo oposto coincide com o recalcado É claro que isso vai corresponder pouco às nossas expectativas no momento em que a fantasia consciente que se apresenta depois do recalcamento exibir novamente a posição feminina desta vez direcionada à mãe Mas não queremos começar pela dúvida quando a decisão está tão próxima A fantasia originária da menina Sou surrada por meu pai isto é sou amada corresponde sem dúvida como posição feminina ao sexo manifesto nela predominante e portanto de acordo com a teoria devia se subtrair ao recalcamento e não precisaria se tornar inconsciente No entanto ela se torna inconsciente e sofre uma substituição por uma fantasia consciente que recusa verleugnet o caráter sexual manifesto Então essa teoria não serve para a compreensão das fantasias de surra e é refutada por elas É possível que se objetasse que precisamente em meninos femininos e meninas masculinas essas fantasias de surra se apresentam e sofrem esses destinos ou que um traço de feminilidade no menino e de masculinidade na menina seria o responsável pelo aparecimento da fantasia passiva no menino e pelo seu recalcamento na menina É provável que concordássemos com essa concepção mas nem por isso seriam menos insustentáveis tanto a afirmada ligação entre caráter sexual manifesto quanto a escolha do que está destinado ao recalcamento No fundo o que vemos é apenas que nos indivíduos masculinos e femininos estão presentes moções pulsionais masculinas e femininas e que da mesma forma podem se tornar inconscientes através do recalcamento Muito melhor parece se afirmar a teoria do protesto masculino na prova das fantasias de surra Tanto no menino quanto na menina a fantasia de surra corresponde a uma posição feminina vale dizer a uma permanência na linha feminina e ambos os sexos se apressam a se libertar dessa posição através do recalcamento Ainda que pareça que o protesto masculino só alcança êxito completo na menina temos nesse caso um exemplo francamente ideal da ação do protesto masculino No menino o êxito não é totalmente satisfatório a linha feminina não é abandonada e o menino certamente não está por cima em sua fantasia masoquista consciente Portanto será adequado à expectativa derivada da teoria se reconhecermos nessa fantasia um sintoma que nasceu do fracasso do protesto masculino É claro que nos incomoda o fato de a fantasia surgida na menina depois do recalcamento ter igualmente o valor e o significado de um sintoma É que aqui onde o protesto masculino conseguiu atingir plenamente o seu propósito deveria justamente faltar a condição para a formação do sintoma Antes que por causa dessa dificuldade suspeitemos que o enfoque todo do protesto masculino seja inadequado para os problemas das neuroses e perversões além de infecundo em sua aplicação a elas iremos retirar nossa atenção das fantasias passivas de surra e dirigila para outras manifestações pulsionais da vida sexual da criança que igualmente sucumbem ao recalcamento Ninguém pode duvidar que existam também desejos e fantasias que de antemão mantêm a linha masculina e expressam moções pulsionais masculinas por exemplo impulsos sádicos ou desejos do menino em relação à sua mãe que se originam do complexo de Édipo normal Também não há dúvida de que esses também serão afetados pelo recalcamento se o protesto masculino conseguiu explicar bem o recalcamento das fantasias passivas e posteriormente masoquistas é por esse motivo então que ele será totalmente desnecessário para o caso oposto das fantasias ativas Ou seja a doutrina do protesto masculino é absolutamente incompatível com o fato do recalcamento Só quem esteja preparado para jogar fora todas as aquisições psicológicas desde o primeiro tratamento catártico de Breuer e através dele pode esperar que o princípio do protesto masculino ganhe algum significado no esclarecimento das neuroses e perversões A teoria psicanalítica apoiada na observação sustenta firmemente que os motivos do recalcamento não podem ser sexualizados O núcleo do inconsciente psíquico é configurado pela herança arcaica do homem e tudo o que dela deve ser abandonado no progresso para fases posteriores seja porque não serve seja porque é incompatível com o que é novo ou prejudicial sucumbe ao processo de recalcamento Essa seleção tem mais êxito em um grupo de pulsões do que no outro Estas últimas as pulsões sexuais por causa de situações especiais que já foram assinaladas várias vezes são capazes de fazer fracassar o propósito do recalcamento e de forçar sua representação através de formações substitutivas de natureza perturbadora Por isso a sexualidade infantil submetida ao recalcamento é a força pulsional mais importante da formação de sintoma ao passo que a parte essencial de seu conteúdo o complexo de Édipo é o complexo nuclear da neurose Espero com este ensaio ter despertado a expectativa de que também as aberrações sexuais infantis assim como as da maturidade derivam do mesmo complexo 14 Ver a continuação em O declínio do complexo de Édipo 1924 neste volume na p 259 NE 15 As fontes eróticas dos sentimentos de inferioridade Die erotischen Quellen der Minderwertigkeitsgefühle Zeitschrift für Sexualwissenschaft IV 1918 16 Cf sobre isso O problema econômico do masoquismo 1924 neste volume na p 287 NE Ein Kind wird geschlagen Beitrag zur Kenntnis der Entstehung sexueller Perversionen 1919 1919 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 5 n 3 p 151172 1924 Gesammelte Schriften t V p 344375 1947 Gesammelte Werke t XII p 197226 O título deste trabalho pode ser traduzido de diferentes formas A primeira opção encontrada pela tradutora deste volume para traduzir Ein Kind wird geschlagen tinha sido Estão batendo em uma criança De fato seria uma das soluções mais adequadas do ponto de vista semântico e dos usos correntes da língua portuguesa falada no Brasil Entretanto como Freud recorre a aspectos estruturais da língua e da sintaxe para esclarecer suas proposições a presente edição adotou a versão mais próxima da sintaxe original construída pela voz passiva no presente Nesse sentido idealmente traduziríamos por uma criança é batidaespancada Contudo se por um lado espancada pode trair um grau de violência mais intenso que bater por outro seria estranho dizer que uma criança seja batida por alguém Por isso a solução batese numa criança acabou se impondo Este texto pode ser lido na esteira dos desenvolvimentos da teoria da perversão formulada pela primeira vez de forma sistemática no célebre Três ensaios sobre a teoria sexual 1905 Em janeiro de 1919 Freud anunciou a Ferenczi que trataria da gênese do masoquismo O artigo foi concluído em março Sua redação é portanto aproximadamente contemporânea dos esboços de Além do princípio de prazer e da retomada do artigo sobre o Unheimliche que havia sido interrompida havia algum tempo Tratase de uma contribuição maior sobre a estrutura da fantasia e sobre o estatuto das perversões A discussão interessa não apenas para a clínica das perversões mas também para a clínica da neurose ao esclarecer em negativo o funcionamento da fantasia perversa do neurótico e da paranoia ao sugerir que a fantasia em pauta estaria na base do delírio querelante do paranoico Ao reafirmar a gênese alteritária da fantasia Jean Laplanche nota que Batese uma criança é um dos textos de Freud em que a origem da fantasia na criança está mais bem articulada ao efeito de enigma que algumas mensagens eou ações do adulto comprometidas pela sexualidade inconsciente produzem na criança Um detalhe curioso Freud anuncia que iria descrever alguns elementos de seis casos clínicos mas na verdade apresenta apenas cinco Na biografia que consagrou a Anna Freud Elisabeth YoungBruehl especula que o sexto caso clínico mencionado por Freud neste texto seria o da própria Anna Freud que iniciara seu tratamento analítico com o pai cerca de um ano antes Sabese da importância dessas fantasias de fustigação para Anna Freud que estreou no mundo psicanalítico com seu estudo sobre a fantasia de apanhar e o sonho diurno Schlagephantasie und Tragtraum LAPLANCHE J La Position originaire du masochisme dans le champ de la pulsion sexuelle In La Révolution coperniciènne inachevée Paris Aubier 1992 YOUNGBRUEHL E Anna Freud Paris Payot 1991 NOTAS 1 Schuldbewußtsein num sentido mais literal consciência de culpa Entretanto num uso mais coloquial e frequente referese ao sentimento consciente de culpa Este parece ser o sentido no reiterado uso que Freud faz do vocábulo composto neste texto sobretudo na seção IV NR 2 Tradução consagrada do título do livro Uncle Toms Cabin da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe em que retrata a brutalidade dos senhores de escravos contra os cativos NR 3 A palavra tem aqui a clara conotação de gênero NR 4 O substantivo Verdrängung é traduzido nesta coleção por recalque quando se trata de um estado ou recalcamento quando a ênfase recai sobre o processo de recalcar verdrängen NR 5 Ver S Freud 1913 A disposição para a neurose obsessiva Uma contribuição ao problema da escolha da neurose NT 6 Literalmente o adjetivo significa destruidor de vida NR 7 Tratase certamente do tema da castração que aqui não é aqui mencionado por Freud NT 8 Alusão à peça Macbeth de William Shakespeare ato 1 cena 3 NR 9 Este parágrafo só se torna inteligível a partir do que foi elaborado por Freud entre 1923 e 1926 Encontramos em O declínio do complexo de Édipo 1924 a resposta dada por ele mesmo à sua confessada ignorância de 1919 o valor da castração para a entrada das meninas no Édipo e para a saída dos meninos neste volume NT 10 Forma como Freud se referia aos devaneios ou ao fantasiar consciente das Phantasieren NR 11 Johan van Ophuijsen um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica holandesa propôs a expressão complexo de masculinidade em um artigo intitulado Contribuição ao complexo de masculinidade na mulher publicado no International Journal of Psychoanalysis n 5 p 3949 1924 NE 12 Volume disponível nesta coleção publicado em formato bilíngue em 2013 NR 13 Freud considerava que o fenômeno funcional introduzido por Herbert Silberer em 1909 foi um dos raros acréscimos feitos à sua própria teoria dos sonhos Segundo o autor no estado entre a vigília e o sono ocorreria uma espécie de transposição direta de pensamentos em imagens não do conteúdo dos pensamentos mas de seu modo de funcionamento atual relativos ao estado do indivíduo cansaço por exemplo NE 14 Paul Eugen Bleuler 18571939 foi um psiquiatra suíço que se destacou por suas contribuições para o entendimento da esquizofrenia tendo introduzido o conceito de ambivalência Interessouse pela Psicanálise freudiana e chegou a ser preceptor de Jung NE 15 Clara referência a Wilhelm Fließ NR SOBRE A PSICOGÊNESE DE UM CASO DE HOMOSSEXUALIDADE FEMININA 1920 I A homossexualidade feminina certamente não menos frequente que a masculina embora seja muito menos ruidosa que esta não apenas tem sido ignorada pela lei penal Strafgesetzt mas foi também negligenciada pela investigação psicanalítica É por isso que a comunicação de um único caso não muito flagrante pode reivindicar certa consideração no sentido de ter sido possível determinar a história de sua gênese psíquica quase sem lacunas e com plena certeza Se esta exposição traz apenas os contornos mais gerais dos acontecimentos e dos entendimentos obtidos no caso omitindo todos os detalhes característicos sobre os quais se funda a interpretação essa limitação pode ser facilmente explicada pela necessária discrição médica exigida em um caso recente como esse Uma jovem de 18 anos bonita e inteligente de uma família de elevada posição social desperta o desgosto e a preocupação de seus pais pelo carinho com o qual ela persegue uma dama da sociedade cerca de 10 anos mais velha que ela Os pais afirmam que essa dama apesar de seu proeminente sobrenome não passa de uma cocota O que se sabe sobre ela é que vive com uma amiga casada com a qual mantém relações íntimas ao mesmo tempo que se envolve em relações amorosas levianas com um certo número de homens A jovem não desmente essa má reputação mas não se deixa confundir por ela em sua adoração pela dama apesar de não lhe faltar o sentido da conveniência e do decoro Nenhuma proibição e nenhuma vigilância a impedem de aproveitar as raras ocasiões de se encontrar com a amada de descobrir todos os seus hábitos de esperar por ela horas a fio na porta de sua casa ou nas paradas de bonde de lhe enviar flores etc É evidente que esse único interesse da jovem havia devorado todos os outros Ela não se preocupa em continuar a sua formação não dá mais importância às relações sociais e aos prazeres próprios às jovens e só conserva a ligação com algumas amigas que lhe possam servir como confidentes ou auxiliares Os pais não sabem até que ponto haviam chegado as coisas entre a sua filha e aquela dama duvidosa e se os limites de um entusiasmo carinhoso já haviam sido ultrapassados Nunca notaram na jovem qualquer interesse por homens jovens nem prazer por seus galanteios por outro lado estava claro para eles que essa inclinação atual por uma mulher era apenas a continuação intensificada do que se anunciou nos últimos anos quanto a outras pessoas do sexo feminino o que provocou a suspeita e a inclemência do pai Dois aspectos de sua conduta aparentemente em oposição deixaram os pais mais aborrecidos ela não tinha nenhum escrúpulo em se exibir publicamente com a amada de fama duvidosa nas ruas mais frequentadas desconsiderando portanto sua própria honra e não menosprezava nenhum meio de enganar nenhum subterfúgio e nenhuma mentira para encobrir e tornar possíveis os encontros com ela Portanto muita sinceridade por um lado e completa dissimulação por outro Certo dia acabou ocorrendo o que de fato nessas circunstâncias teria de acontecer o pai encontrou pela rua sua filha em companhia daquela dama de quem já havia tomado conhecimento Ele passou por elas com um olhar furioso que não anunciava nada de bom Imediatamente a jovem correu e jogouse por cima do muro em direção à linha de trem urbano que passava ali perto Ela pagou por essa tentativa de suicídio indubitavelmente séria com uma longa convalescença mas por sorte sem lesões permanentes Depois de sua recuperação descobriu que a situação estava mais favorável para os seus desejos do que antes Os pais não mais ousavam contrariála com tanta determinação e a dama que até então havia se mostrado inacessível não aceitando suas investidas ficou tocada com uma prova tão inequívoca de séria paixão e passou a tratála mais amigavelmente Cerca de meio ano após esse acidente os pais se dirigiram ao médico e lhe confiaram a tarefa de reconduzir sua filha à normalidade A tentativa de suicídio da jovem lhes tinha mostrado claramente que os instrumentos de autoridade da disciplina caseira não foram capazes de dominar tal perturbação Mas é bom tratar aqui separadamente a atitude do pai e a da mãe O pai era um homem sério respeitável e no fundo muito terno um tanto distanciado dos filhos por sua assumida rigidez Sua conduta para com a única filha era fortemente influenciada por sua esposa a mãe da moça Quando ele primeiro tomou conhecimento das inclinações homossexuais da filha isso o enfureceu e quis reprimilas com ameaças na ocasião ele deve ter oscilado entre diversas mas igualmente penosas concepções possíveis se devia ver nela um ser vicioso degenerado ou mentalmente perturbado Mesmo depois do acidente ele não conseguiu levar a questão à altura de uma resignação racional sobre a qual um dos nossos colegas médicos por causa de um deslize de alguma forma parecido em sua família expressouse da seguinte maneira é uma infelicidade como qualquer outra A homossexualidade de sua filha tinha algo que despertava a sua completa amargura Ele estava decidido a combatêla com todos os meios não se deteve diante do tão amplamente difundido menosprezo geral pela Psicanálise em Viena e se voltou a ela em busca de auxílio Se essa via fracassasse ele ainda teria na reserva o mais poderoso antídoto um rápido casamento poderia despertar os instintos naturais da jovem e sufocar suas inclinações não naturais A atitude da mãe da jovem não foi tão fácil de visualizar Era uma mulher ainda jovem que claramente não queria renunciar à pretensão de agradar por sua própria beleza O que estava claro é que não tomava o entusiasmo de sua filha tão tragicamente e de maneira alguma se indignava com ela como o pai Durante algum tempo ela até mesmo havia usufruído da confiança da jovem com relação ao enamoramento por aquela dama parece que basicamente tomou o partido contrário por causa da prejudicial franqueza com a qual a filha proclamava seus sentimentos diante do mundo inteiro Ela própria havia sido neurótica durante vários anos deleitavase com a grande atenção por parte do marido tratava suas crianças de maneira bastante desigual sendo na verdade dura com a filha e demasiado carinhosa com seus três filhos dos quais o mais novo era temporão e na ocasião ainda não tinha 3 anos de idade Não foi fácil apurar algo mais preciso sobre seu caráter pois em consequência de motivos que só mais tarde serão compreendidos as indicações da paciente sobre sua mãe sempre continham uma reserva que no caso do pai não se mantinha O médico que fosse assumir o tratamento analítico da jovem tinha várias razões para se sentir desconfortável Ele não tinha diante de si a situação que a análise exige e a única na qual ela pode demonstrar sua eficácia Essa situação em sua configuração ideal como se sabe apresenta o seguinte aspecto alguém que normalmente é senhor de si sofre de um conflito interior ao qual sozinho não consegue colocar um fim então vai ao analista formula sua queixa e lhe pede auxílio O médico trabalha então de mãos dadas com a parte da personalidade bipartida pela doença contra a outra parte do conflito Outras situações diferentes dessas são mais ou menos desfavoráveis para a análise e acrescentam novas dificuldades àquelas que são internas ao caso As situações como a do cliente que encomenda ao arquiteto a planta de uma mansão de acordo com seu gosto e sua necessidade ou a de um devoto doador que pede ao artista para pintar uma imagem sagrada em cujo canto deve ter lugar seu próprio retrato em posição de adorador não são fundamentalmente compatíveis com as condições da Psicanálise Na verdade todo dia acontece de um marido se voltar para o médico com a seguinte informação Minha mulher sofre dos nervos e por isso se dá mal comigo curea para que possamos ter novamente uma vida conjugal feliz Porém fica claro com bastante frequência que cumprir uma incumbência como essa é impossível isto é que o médico não pode apresentar o resultado com vistas ao qual o marido desejava o tratamento Assim que a mulher se livra de suas inibições neuróticas ela impõe o fim do casamento cuja conservação só era possível sob a premissa da neurose dela Ou os pais que exigem que se cure seu filho nervoso e desobediente Para eles uma criança saudável é aquela que não traz nenhuma dificuldade para os pais e lhes dá apenas alegria O médico pode até conseguir o restabelecimento da criança mas depois da cura ela toma seu próprio caminho muito mais decididamente e os pais ficam então muito mais insatisfeitos do que antes Em resumo não é indiferente se alguém vem para a análise por seu próprio esforço ou porque outros o levam se ele próprio deseja sua mudança ou apenas seus parentes que o amam ou aqueles dos quais se deveria esperar esse amor Outros fatores desfavoráveis a serem avaliados eram os fatos de que a jovem nem era doente ela não sofria por razões internas não reclamava sobre seu estado e de que a tarefa solicitada não era a de solucionar um conflito mas a de converter uma variante da organização sexual para outra Essa operação de remover a inversão genital ou homossexualidade nunca pareceu fácil segundo a minha experiência Achei muito mais que ela só é bemsucedida sob circunstâncias particularmente favoráveis e mesmo assim o êxito consiste essencialmente em liberar a via até então interditada à pessoa estritamente homossexual para o outro sexo portanto em restabelecer sua plena função bissexual Dependia então de saber se preferia essa outra via proscrita pela sociedade e em alguns casos foi o que se deu É preciso pensar que também a sexualidade normal depende de uma limitação da escolha de objeto e que em geral empreender a mudança de um homossexual declarado vollentwickelten em um heterossexual não é mais promissor do que o inverso umgekehrte exceto que por boas razões práticas este último caso nunca é tentado Os êxitos da terapia psicanalítica no tratamento da homossexualidade que aliás apresenta muitas formas não são de acordo com os números realmente excepcionais Via de regra o homossexual não pode abandonar seu objeto de prazer não é possível convencêlo de que o prazer ao qual ele aqui renuncia seria reencontrado em outro objeto no caso da mudança Se acaso se submete ao tratamento é porque em geral motivos externos o pressionaram as desvantagens sociais e os perigos de sua escolha de objeto e esses componentes da pulsão de autoconservação demonstram ser muito fracos na luta contra as aspirações sexuais Então logo descobrimos seu plano secreto conseguir através do flagrante fracasso dessa tentativa a tranquilização por ter feito todo o possível contra a sua condição especial Sonderartung e agora poder entregarse a ela de consciência limpa Quando a consideração pelos pais e parentes amados motivou a tentativa de cura o caso é algo diferente Há então aspirações realmente libidinais que podem desenvolver energias opostas à escolha homossexual de objeto mas cuja força raramente é suficiente Só quando a fixação no objeto de mesmo sexo ainda não se tornou suficientemente forte ou quando preexistem rudimentos e restos da escolha heterossexual de objeto portanto em caso de haver uma organização ainda oscilante ou claramente bissexual é que o prognóstico da terapia psicanalítica pode apresentarse mais favorável Por essas razões evitei completamente oferecer aos pais a perspectiva da realização do seu desejo Apenas me declarei preparado para estudar cuidadosamente a jovem durante algumas semanas ou meses para então poder me manifestar sobre as probabilidades de influenciála com a continuação da análise De fato em um grande número de casos a análise se decompõe em duas fases claramente distintas em uma primeira o médico consegue do paciente os conhecimentos necessários familiarizao com as premissas e os postulados da análise e desenvolve diante dele a construção da origem do seu sofrimento para a qual se acredita autorizado a partir do material oferecido pela análise Em uma segunda fase é o próprio paciente que se apossa do material que lhe foi exposto trabalha nele recorda o que consegue daquilo que nele está aparentemente recalcado e tenta repetir o material restante de certa forma revivendoo Com isso ele pode confirmar completar e corrigir as formulações do médico É só durante esse trabalho que ele experimenta a alteração interna pela almejada superação de resistências e adquire as convicções que o tornam independente da autoridade médica Nem sempre essas duas fases estão nitidamente separadas no curso do tratamento analítico isso só pode acontecer se a resistência cumprir certas condições Mas quando é o caso podemos traçar a comparação com duas correspondentes etapas de uma viagem A primeira compreende todos os preparativos necessários e hoje tão complicados e difíceis de cumprir até que finalmente se compra a passagem chegase à plataforma e se garante um lugar no vagão Agora se tem o direito e a possibilidade de viajar para um país distante mas após todos esses preparativos ainda não se está lá nem se avançou nenhum quilômetro em direção à meta Para isso ainda é preciso que se cumpra a própria viagem de uma estação à outra e essa parte da viagem pode bem ser comparada à segunda fase A análise de minha paciente em questão se desenrolou de acordo com esse esquema de duas fases mas não continuou depois do início da segunda fase Mesmo assim uma constelação particular da resistência possibilitou a plena confirmação de minhas construções e o ganho de um entendimento Einsicht geral e suficiente quanto ao curso do desenvolvimento da sua inversão Mas antes de expor os resultados de sua análise preciso resolver alguns pontos que eu mesmo já abordei ou que se impuseram ao leitor como os primeiros objetos de seu interesse Eu tinha feito o prognóstico depender em parte do ponto até onde a jovem tinha chegado na satisfação de sua paixão A informação que obtive na análise pareceu favorável a esse respeito De nenhum dos objetos de sua adoração ela havia usufruído mais do que alguns beijos e abraços sua castidade genital se podemos dizêlo assim permaneceu intacta Quanto à dama malafamada que despertou nela os mais novos e de longe os mais intensos sentimentos tinha permanecido inacessível a ela e nunca lhe concedera um favor maior que lhe beijar a mão Provavelmente a jovem fez da sua necessidade uma virtude quando repetidamente acentuava a pureza do seu amor e sua repulsa física contra uma relação sexual Mas talvez ela não estivesse de todo errada quando proclamava sobre sua admirada amada que esta por ser de origem nobre e forçada à presente posição apenas por circunstâncias familiares adversas também nessa situação teria conservado boa parte de sua dignidade Pois essa dama costumava aconselhála em cada encontro para que desistisse inteiramente de sua inclinação por ela e pelas mulheres em geral e até a tentativa de suicídio sempre só a havia estritamente ignorado Um segundo ponto que tentei esclarecer em seguida dizia respeito aos próprios motivos da jovem sobre os quais talvez o tratamento analítico pudesse se apoiar Ela não tentou me enganar com a afirmação de que para ela havia uma necessidade urgente de se libertar de sua homossexualidade Ao contrário ela não conseguia imaginar outra espécie de enamoramento mas acrescentou que por causa dos pais ela queria colaborar sinceramente com a tentativa terapêutica pois era difícil para ela causarlhes tamanha preocupação Também precisei tomar essa manifestação inicialmente como favorável eu não conseguia vislumbrar qual posição afetiva inconsciente estava por trás dela O que mais tarde veio à luz sobre esse ponto influenciou a configuração do tratamento e sua interrupção prematura Os leitores não analíticos devem estar há muito tempo aguardando impacientes a resposta a duas outras perguntas Essa jovem homossexual apresentava nítidas características somáticas do outro sexo E seu caso foi comprovado como homossexualidade inata ou adquirida desenvolvida posteriormente Não desconheço a importância que tem a primeira dessas perguntas Só que não se deve exagerar essa importância e em seu nome obscurecer os fatos de que atributos secundários isolados do outro sexo aparecem geralmente com muita frequência em seres humanos normais e que características somáticas bem acentuadas do outro sexo podem ser encontradas em pessoas cuja escolha de objeto não tenha sofrido nenhuma alteração no sentido de uma inversão Dito de outra forma nos dois sexos a medida do hermafroditismo físico é em alto grau independente da do psíquico Como restrição a ambos os enunciados acrescentamos que essa independência é mais evidente no homem do que na mulher em que a compleição corporal e a psíquica do caráter sexual oposto coincidem mais regularmente Entretanto não me encontro em posição de responder satisfatoriamente a primeira das perguntas apresentadas sobre o meu caso Em determinadas ocasiões o psicanalista deve se recusar a fazer um exame corporal detalhado de seus pacientes De qualquer maneira não havia nenhum desvio chamativo no tipo corporal do sexo feminino e também nenhum distúrbio menstrual Se a jovem bonita e bemformada exibia a figura esguia do pai e no rosto traços mais marcados do que suaves próprios das meninas então talvez se possa ver aí indícios de uma masculinidade somática Também algumas de suas qualidades intelectuais podiam ser atribuídas a um ser masculino tais como sua aguda racionalidade e a fria clareza de seu pensamento quando não estava dominada por sua paixão Mas essas distinções são mais convencionais do que científicas Mais importante certamente é o fato de sua conduta com relação ao objeto amoroso ter assumido inteiramente o tipo masculino isto é a humildade e a enorme supervalorização sexual do amante masculino a renúncia a qualquer satisfação narcísica a preferência por amar antes de ser amado Portanto ela não tinha apenas eleito um objeto feminino mas adotado uma posição masculina para com ele A segunda pergunta se seu caso correspondia a uma homossexualidade inata ou adquirida vai ser respondida ao longo da história do desenvolvimento de sua perturbação Aí veremos o quanto esse tipo de questionamento é infecundo e inadequado II Após uma introdução tão prolixa só posso prosseguir com uma exposição sucinta e panorâmica da história libidinal desse caso Na infância a jovem passou de maneira pouco chamativa pela posição normal do complexo de Édipo feminino17 e também posteriormente começou a substituir o pai por um irmão um pouco mais velho Traumas sexuais na juventude não foram lembrados nem descobertos pela análise A comparação dos genitais do irmão com os seus que ocorreu no início do período de latência aos 5 anos ou pouco antes deixoulhe uma forte impressão e foi possível rastrear seus efeitos por um bom tempo Sobre o onanismo na primeira infância houve poucos indícios ou a análise não avançou o suficiente para esclarecer esse ponto O nascimento de um segundo irmão quando ela tinha entre 5 e 6 anos não exerceu nenhuma influência especial sobre seu desenvolvimento Nos anos escolares e da pré puberdade ela se familiarizou pouco a pouco com os fatos da vida sexual e os acolheu com uma mescla de volúpia e temerosa recusa que se pode chamar de normal e sem exagero Todas essas informações parecem ser bem escassas e nem sequer posso garantir que estejam completas Pode ser que a história da juventude tenha sido muito mais rica eu não sei Como já disse a análise se interrompeu depois de pouco tempo e por isso produziu uma anamnese não muito mais confiável que as outras anamneses de homossexuais que com razão foram questionadas A jovem também nunca tinha sido neurótica e nem sequer trouxe um sintoma histérico para a análise de maneira que as oportunidades para investigar sua história infantil não puderam se apresentar tão prontamente Com 13 e 14 anos ela manifestou uma carinhosa predileção exageradamente forte na opinião de todos por um garotinho de quase 3 anos que ela podia ver regularmente em um parque infantil Apegouse à criança tão calorosamente que daí nasceu uma longa relação amistosa com os pais do pequenino Desse acontecimento é possível concluir que na época ela foi dominada por um forte desejo de ser mãe e de ter um filho Mas pouco tempo depois o garoto passou a lhe ser indiferente e ela começou a mostrar um interesse por mulheres maduras mas ainda jovens interesse cujas manifestações logo lhe renderam um doloroso castigo por parte do pai Ficou estabelecido acima de qualquer dúvida que essa mudança coincidiu com um acontecimento na família a partir do qual podemos esperar o esclarecimento da mudança Antes sua libido estava focada na maternidade e depois ela se tornou uma homossexual apaixonada por mulheres maduras o que seguiu sendo desde então O acontecimento tão importante para a nossa compreensão foi uma nova gravidez da mãe e o nascimento de um terceiro irmão quando ela tinha 16 anos A trama que revelarei em seguida não é um produto dos meus dons para concatenações ela me foi sugerida por um material analítico tão digno de confiança que posso reivindicar para ele uma segurança objetiva Uma série de sonhos interligados e de fácil interpretação foi particularmente decisiva para tal A análise permitiu confirmar sem sombra de dúvidas que a dama amada era um substituto da mãe Mas a dama não era mãe nem tinha sido o primeiro amor da jovem Os primeiros objetos de sua preferência desde o nascimento do último irmão foram realmente mães mulheres entre 30 e 35 anos cujos filhos ela conheceu nas férias de verão ou no círculo familiar da cidade A condição para a maternidade foi mais tarde abandonada porque na realidade não se conciliava bem com outra que foi se tornando cada vez mais importante A ligação particularmente intensa com a última amada a dama tinha mais uma razão de ser que a jovem descobriu certo dia com facilidade A silhueta esbelta a beleza severa e a natureza rude da dama faziamna lembrarse de seu próprio irmão um pouco mais velho Assim o objeto escolhido por último não correspondia apenas ao seu ideal de mulher mas também ao seu ideal de homem e reunia a satisfação da orientação do desejo homossexual e a do heterossexual Como se sabe a análise de homossexuais masculinos mostrou a mesma coincidência em numerosos casos um sinal para que não concebamos a natureza e a origem da inversão de maneira demasiado simplista e não percamos de vista a bissexualidade geral do ser humano18 Mas como podemos entender que justamente por causa do nascimento tardio de uma criança quando a jovem já estava madura e tinha os próprios desejos intensos foi levada a orientar sua ternura apaixonada à mulher que deu à luz essa criança sua própria mãe e a expressála em um substituto da mãe A partir de tudo o que sabemos devíamos esperar o contrário Nessas situações as mães costumam se acanhar diante das filhas quase em idade de casamento as filhas têm pela mãe um sentimento misto de pena desprezo e inveja que em nada contribui para aumentar a ternura pela mãe A jovem que observamos tinha bem poucos motivos para sentir carinho por sua mãe Essa filha que desabrochou rapidamente era uma incômoda concorrente para a mãe ainda jovem que a preteriu em relação aos irmãos limitou ao máximo a sua autonomia e a vigiou com entusiasmo para que permanecesse longe do pai Portanto a necessidade de ter uma mãe mais amorosa deve ter sido mais que justificável na jovem no entanto a razão pela qual ela se inflamou naquele momento e na forma de uma paixão ardente é difícil de entender A explicação é a seguinte a jovem se encontrava na puberdade na fase de renovação do complexo de Édipo infantil quando a decepção se abateu sobre ela Ficou claramente consciente para ela o desejo de ter um filho na verdade um filho homem sua consciência não podia saber que era um filho do pai e que deveria ser a imagem dele Mas daí sucedeu o fato de não ter sido ela a gerar o filho mas a concorrente odiada no inconsciente a mãe Furiosa e amargurada afastouse absolutamente do pai e dos homens em geral Depois desse primeiro fracasso rejeitou sua feminilidade e procurou outra colocação para a sua libido Assim comportouse de maneira bem semelhante à de muitos homens que após uma primeira experiência desagradável rompem para sempre com o infiel sexo das mulheres e se tornam misóginos Contase sobre uma das personalidades principescas mais atraentes e mais infelizes de nossa época que ele se tornou homossexual porque sua noiva o traiu com um estranho Não sei se essa é uma verdade histórica mas atrás desse boato se esconde uma verdade psicológica A libido de todos nós oscila normalmente ao longo da vida entre o objeto masculino e o feminino o solteiro abandona suas amizades quando se casa e volta para a mesa do bar quando seu casamento fica insosso É claro que quando essa oscilação é tão profunda e tão definitiva nossa suspeita se volta para um fator especial que favorece decisivamente um ou outro lado e talvez só tenha aguardado o momento propício para impor a escolha de objeto em seu proveito Portanto nossa jovem depois daquela decepção expulsou de si completamente o desejo de ter um filho o amor pelo homem e o papel feminino E é evidente que várias outras coisas poderiam ter acontecido mas o que realmente aconteceu foi o mais extremo Ela se transformou em homem e tomou a mãe em vez do pai como objeto de amor19 Sua relação com a mãe foi certamente ambivalente desde o início foi fácil reanimar o anterior amor pela mãe e com a ajuda desse amor supercompensar a atual animosidade contra a mãe Tendo em vista que com a mãe real pouco havia o que fazer produziuse desse deslocamento de sentimentos a procura por um substituto da mãe no qual se poderia apoiar com apaixonada ternura20 Um motivo prático decorrente de suas relações reais com a mãe veio a se acrescentar ainda como ganho da doença A própria mãe ainda apreciava ser cortejada e admirada pelos homens Então se ela se tornasse homossexual e deixasse os homens para a mãe lhe deixasse o caminho livre1 por assim dizer ela tiraria do caminho algo que até então tinha carregado a culpa pela antipatia da mãe21 A posição libidinal conseguida dessa maneira foi então reforçada quando a jovem percebeu o quanto ela era desagradável para o pai Desde aquela primeira punição por causa de uma aproximação muito carinhosa a uma mulher ela sabia com o que podia ofender o pai e como poderia se vingar dele Agora ela permanecia homossexual para desafiar o pai Também não tinha escrúpulos por enganálo e por lhe mentir de todas as maneiras Com a mãe ela só era insincera enquanto fosse necessário para que o pai não ficasse sabendo de nada Eu tinha a impressão de que ela agia de acordo com a lei de Talião se você me enganou precisa aceitar que eu também te engane Também não posso julgar de outra maneira a flagrante falta de precaução dessa jovem em geral refinadamente inteligente O pai tinha de ficar sabendo de vez em quando de seus encontros com a dama do contrário ela perderia a satisfação da vingança que para ela era a mais urgente Assim tomou providências para se mostrar publicamente em companhia de sua adorada indo passear nas ruas próximas ao local de trabalho do pai entre outras atitudes Mesmo essas inadequações não aconteciam sem propósito Além disso é digno de nota que ambos os pais se comportavam como se entendessem a secreta psicologia da filha A mãe se mostrava tolerante como se recebesse o deixar o caminho aberto da filha como uma deferência e o pai se enfurecia como se sentisse a intenção da vingança dirigida contra a sua pessoa Mas a inversão da jovem recebeu o último reforço quando viu na dama um objeto que ao mesmo tempo oferecia satisfação à parte de sua libido heterossexual ainda ligada ao irmão III A exposição linear não é muito apropriada para descrever os processos anímicos entrelaçados2 verschlungenen e que se desenrolam em diversas camadas anímicas Vejome obrigado a interromper a discussão do caso bem como a ampliar e aprofundar alguns pontos do que foi comunicado Mencionei que a jovem em sua relação com a dama adorada assumiu o tipo masculino de amor Sua humildade e sua doce despretensão che poco spera e nulla chiede3 que pouco espera e nada pede a felicidade quando lhe era permitido acompanhar a dama em mais um trecho e beijarlhe a mão ao se despedir a alegria quando ela ouvia elogiaremna enquanto o reconhecimento de sua própria beleza por parte de estranhos não lhe significava absolutamente nada suas peregrinações a lugares em que a amada estivera antes o silenciamento de todos os mais sensuais desejos todos esses pequenos traços correspondiam à primeira paixão entusiasmada de um jovem por uma atriz célebre que ele considera estar em plano mais alto que ele e para quem ele mal ousa levantar os olhos A correspondência com um tipo masculino de escolha de objeto descrito por mim cujas peculiaridades eu remeti à ligação com a mãe22 chegava até os detalhes Podia parecer curioso que ela não se horrorizasse minimamente com a má reputação da amada embora suas próprias observações a convencessem suficientemente da justeza desses boatos Ela era afinal uma jovem bemeducada e recatada que evitava aventuras sexuais para a própria pessoa e que considerava antiestéticas as satisfações grosseiramente sensuais Mas suas primeiras paixões já tinham sido dirigidas a mulheres que não possuíam nenhuma inclinação a uma moralidade especialmente rígida O primeiro protesto do pai contra sua escolha amorosa foi provocado pela obstinação com que ela investiu a relação com uma atriz de cinema em um local de veraneio Entretanto nunca se tratava de mulheres com reputação homossexual e que lhe oferecessem a perspectiva de uma satisfação desse tipo ela tentava muito mais ilogicamente conquistar mulheres cocotas no sentido comum da palavra ela rejeitou sem pestanejar uma homossexual amiga sua e de mesma idade que se colocou voluntariamente à sua disposição Contudo para ela a má fama da dama era precisamente uma condição para o amor e tudo o que havia de misterioso nessa relação desaparece se lembrarmos que também para aquele tipo masculino de escolha de objeto derivado da mãe permanece a condição de que a amada tenha de alguma forma má reputação sexual de que poderia ser chamada de cocota Quando mais tarde ela fica sabendo em que medida essa qualificação era adequada para a sua amada dama e que esta vivia simplesmente da entrega de seu corpo sua reação consistiu em uma grande compaixão e no desenvolvimento de fantasias e planos de como poderia salvar a amada dessas circunstâncias indignas Saltamnos à vista os mesmos esforços de salvamento nos homens do tipo descrito por mim e no trecho citado tentei oferecer a derivação analítica desse ímpeto Por outro lado a tentativa de suicídio que preciso considerar seriamente intencionada leva a regiões bem diferentes de explicação e aliás melhorou consideravelmente a sua posição tanto em relação aos pais quanto à dama amada Um dia foi com ela passear em um lugar e em uma hora nos quais não era improvável um encontro com o pai voltando do escritório O pai passou por elas e lançou um olhar furioso sobre ela e sua acompanhante que ele já conhecia Imediatamente ela se jogou no vão da linha de trem Sua justificativa sobre a causa imediata de sua decisão soa agora inteiramente plausível Ela havia confessado à dama que o senhor que as tinha olhado de maneira tão feroz era seu pai que não queria saber nada sobre essa relação A dama então ficou colérica e ordenou que a deixasse imediatamente que não mais a esperasse ou lhe dirigisse a palavra essa história tinha de terminar naquele momento No desespero de ter perdido a amada dessa forma para sempre ela quis se entregar à morte Contudo a análise permitiu descobrir uma outra e mais profunda interpretação por trás da sua apoiada em seus próprios sonhos A tentativa de suicídio era além disso como esperado determinada por dois motivos uma realização de punição autopunição e uma realização de desejo Este último significava a consecução daquele desejo cuja decepção a havia movido à homossexualidade a saber ter um filho do pai pois agora ela caía23 niederkommen4por culpa do pai O que estabelece a ligação entre essa interpretação profunda e a consciente superficial da jovem é o fato de nesse momento a dama ter falado exatamente como o pai e de ter colocado a mesma proibição Quanto à autopunição a ação da jovem nos mostra que ela desenvolveu em seu inconsciente fortes desejos de morte contra um ou outro dos membros do casal parental Talvez por ganas de vingança contra o pai que perturbou o seu amor mas ainda mais provavelmente também contra a mãe quando engravidou do irmão menor Pois a análise nos trouxe para o enigma do suicídio a explicação de que talvez ninguém encontre a energia psíquica para se matar se não estiver em primeiro lugar matando um objeto com o qual se tenha identificado e em segundo lugar voltando contra si mesmo um desejo de morte que estava dirigido a outra pessoa Aliás não é preciso que tomemos como estranha a descoberta regular desses desejos inconscientes de morte no suicídio ou que ela se imponha como confirmação de nossas deduções pois o inconsciente de todos os seres vivos está repleto desses desejos de morte mesmo contra pessoas normalmente queridas24 Na identificação com a mãe que deveria ter morrido no parto do filho a ela negado à filha essa própria realização de punição é no entanto novamente uma realização de desejo Por último o fato de que os mais diversos e intensos motivos devem ter cooperado para possibilitar um ato como o da nossa jovem não irá contradizer a nossa expectativa Na motivação da jovem o pai não aparece sequer é mencionado o medo de sua ira Na fundamentação descoberta pela análise cabe a ele o papel principal A relação com o pai também teve a mesma importância decisiva para o andamento e o final do tratamento analítico ou melhor da exploração analítica Por detrás da pretensa consideração pelos pais por amor aos quais ela quis apoiar a tentativa de transformação escondiase a posição de desafio e vingança contra o pai posição que a manteve na homossexualidade Protegida com essa cobertura a resistência liberou uma vasta região para a exploração analítica A análise prosseguiu quase sem sinais de resistência com a participação intelectual ativa da analisanda mas também com sua total tranquilidade emocional Certo dia quando lhe expus uma parte especialmente importante da teoria e que lhe dizia respeito ela respondeu em tom inimitável Ah mas isso é muito interessante tal como uma dama do mundo que é guiada ao longo de um museu e que olha através de um monóculo os objetos que lhe são completamente indiferentes A impressão sobre sua análise se aproximava à de um tratamento hipnótico no qual a resistência se retirou igualmente até uma determinada fronteira na qual ela então se põe invencível A resistência obedece frequentemente à mesma tática russa5 poderíamos chamála assim em casos de neurose obsessiva que por isso durante certo tempo apresentam os mais claros resultados e permitem uma clara visão da causação dos sintomas Começamos então a ficar curiosos sobre como é que tão grandes progressos na compreensão analítica não trazem a mais leve mudança nas obsessões e inibições dos doentes até que finalmente percebemos que tudo o que se conseguiu está sujeito à reserva da dúvida por trás de cuja parede protetora a neurose podia sentirse segura Seria tudo maravilhoso pensa o doente muitas vezes também de maneira consciente se eu tivesse de acreditar nesse homem mas como não se trata disso e enquanto esse não for o caso eu também não preciso mudar nada Se depois nos aproximamos da motivação dessa dúvida a luta com as resistências irrompe seriamente No caso de nossa jovem não foi a dúvida mas o fator afetivo da vingança contra o pai que possibilitou sua fria reserva dividiu a análise claramente em duas fases e permitiu que os resultados da primeira fase se tornassem tão completos e visíveis Também pareceu que nada semelhante a uma transferência com o médico tivesse ocorrido Mas é claro que isso é um absurdo ou um modo impreciso de expressão algum tipo de relação com o médico precisa se estabelecer e esta é na maioria das vezes transferida de uma relação infantil Na verdade ela transferiu para mim a fundamental recusa ao homem recusa que a tinha dominado desde sua decepção com o pai Em geral a amargura contra o homem facilmente encontra satisfação no médico ela não precisa evocar quaisquer manifestações tempestuosas de sentimento pois basta boicotar todos os seus esforços e aferrarse na condição de doente Sei por experiência o quanto é difícil levar o analisando a compreender justamente essa sintomatologia muda e fazer com que tome consciência dessa animosidade latente e muitas vezes excessivamente forte sem colocar o tratamento em perigo Portanto interrompi o tratamento assim que reconheci a posição da jovem para com o pai e recomendei que se ela dava valor à tentativa terapêutica devia prosseguir com uma médica Nesse meiotempo a jovem havia prometido ao pai suspender pelo menos a relação com a dama e não sei se meu conselho cujo motivo é óbvio será seguido Uma única vez ocorreu algo nessa análise que eu pude entender como uma transferência positiva como uma renovação extremamente enfraquecida da entusiasmada paixão original pelo pai Mesmo essa manifestação não estava isenta do acréscimo de uma outra razão mas eu a menciono porque ela coloca em questão em outra direção um problema interessante da técnica analítica Durante certo tempo não muito depois do início do tratamento a jovem trouxe uma série de sonhos que devidamente deformados entstellt e vertidos na linguagem correta dos sonhos eram fáceis e seguros de traduzir No entanto seu conteúdo interpretado era surpreendente Eles antecipavam a cura da inversão pelo tratamento expressavam sua alegria pelas perspectivas de vida que agora se abriam para ela confessavam a ânsia pelo amor de um homem e por filhos e assim podiam ser acolhidos como uma bemvinda preparação para a mudança desejada A contradição com suas simultâneas manifestações na vigília era muito grande Ela não me fazia segredo do fato de que pensava em se casar mas apenas para se livrar da tirania do pai e viver imperturbada suas verdadeiras inclinações Sobre o marido observava com uma ponta de desprezo ela faria o que fosse necessário e finalmente ela também poderia como mostrava o exemplo da dama adorada manter relações sexuais simultâneas com um homem e uma mulher Advertido por alguma ligeira impressão disselhe certo dia que não acreditava nesses sonhos eles eram mentirosos e hipócritas e que sua intenção era me enganar como ela costumava enganar o pai Eu tinha razão esse tipo de sonho cessou a partir desse esclarecimento Mas ainda acredito que além da intenção de despistar havia um pouco de galanteio nesses sonhos era também uma tentativa de ganhar meu interesse e minha boa opinião talvez para mais tarde me decepcionar mais profundamente ainda Posso imaginar que apontar a existência de sonhos complacentes mentirosos como esses provocará em alguns autodenominados analistas uma verdadeira tempestade de impotente indignação Então o inconsciente também pode mentir o verdadeiro núcleo da nossa vida anímica aquele que em nós está muito mais próximo do divino do que nossa pobre consciência E então como ainda podemos confiar nas interpretações da análise e na certeza de nossos conhecimentos Ao contrário é preciso dizer que o reconhecimento desses sonhos carregados de mentira não constitui uma novidade chocante Sei na verdade que a necessidade mística dos seres humanos é inesgotável e que ela faz incessantes tentativas de ganhar novamente o território que foi arrancado da mística pela Interpretação dos sonhos mas no caso que nos ocupa tudo é bastante simples O sonho não é o inconsciente ele é a forma pela qual um pensamento remanescente vindo do préconsciente ou mesmo do consciente da vida de vigília pôde ser remodelado graças às condições favoráveis do estado de sono No estado de sono ele recebeu o apoio de moções inconscientes de desejo e sofreu deformação através do trabalho do sonho que é determinado pelos mecanismos que regem o inconsciente No caso da nossa sonhadora a intenção de me confundir tal como ela costumava fazer com o pai certamente provinha do préconsciente se é que não era mesmo consciente mas esta só pôde se estabelecer porque se ligou com a moção inconsciente de desejo de agradar o pai ou o substituto do pai e criou assim um sonho mentiroso Ambas as intenções enganar o pai e agradar o pai provêm do mesmo complexo a primeira cresceu a partir do recalcamento da última e a posterior é levada de volta à anterior pelo trabalho do sonho Portanto não há como se falar de uma desvalorização do inconsciente ou de um abalo da confiança nos resultados da nossa análise Não quero perder a oportunidade de também colocar em palavras o meu espanto pelo fato de os seres humanos conseguirem atravessar longas e importantes fases de sua vida amorosa sem percebêlas adequadamente na verdade sem terem sobre elas a menor noção ou que quando isso lhes chega à consciência equivoquemse tão profundamente quanto ao seu julgamento Isso não acontece apenas sob as condições da neurose com cujo fenômeno estamos familiarizados mas parece ser bastante comum Em nosso caso uma jovem desenvolve uma paixão por mulheres paixão que os pais a princípio sentem apenas como desagradável mas que não é levada a sério ela própria sabe muito bem o quanto vai ser exigida por isso mas ainda sente muito pouco das sensações de uma paixão intensa até que um determinado impedimento Versagung provoca uma reação bastante excessiva mostrando a todos os envolvidos que se trata de uma paixão devoradora de força elementar A jovem também nunca percebeu nada sobre as condições requeridas para a irrupção de uma tempestade anímica como essa Em outros casos encontramos jovens ou senhoras em graves depressões e quando perguntadas sobre a provável causa de seu estado informam que teriam sentido algum interesse por uma determinada pessoa mas que não o tomaram muito profundamente e encerraram esse assunto assim que foi preciso abandonálo E de fato essa renúncia que pareceu tão facilmente superada tornouse a causa da grave perturbação Ou também encontramos homens que encerraram ligações amorosas superficiais com mulheres e só a partir dos efeitos subsequentes puderam perceber que estavam ardentemente apaixonados pelo objeto aparentemente menosprezado Também nos espantamos com os impensáveis efeitos que podem advir de um aborto artificial a morte de um fruto do ventre decisão a que se chegou sem remorso nem hesitação Assim vemos que é preciso dar razão aos poetas Dichter que nos descrevem de preferência pessoas que amam sem sabêlo ou que não sabem se amam ou que acreditam odiar quando na verdade amam Parece que justamente a informação que a nossa consciência recebe de nossa vida amorosa pode ser com especial facilidade incompleta lacunosa ou falseada É claro que nestas elucidações não me descuidei de descontar a parte de um esquecimento posterior IV Agora volto à discussão do caso interrompida anteriormente Traçamos um panorama sobre as forças que transportaram a libido da jovem da posição normal no Édipo até a da homossexualidade e sobre os caminhos psíquicos percorridos no processo No topo entre essas forças móveis ficava a impressão causada pelo nascimento de seu irmão mais novo e isso nos sugere classificar o caso como o de uma inversão adquirida tardiamente Só que aqui nos damos conta de um estado de coisas com o qual nos deparamos em muitos outros exemplos de esclarecimento psicanalítico de um processo anímico Quando perseguimos o desenvolvimento partindo de seu resultado final e voltando para trás produzse uma conexão sem lacunas e consideramos o nosso entendimento perfeitamente satisfatório e talvez até exaustivo Mas se tomamos o caminho inverso se partimos das premissas descobertas pela análise e procuramos perseguilas até o resultado desaparece totalmente a impressão de um encadeamento necessário e que não poderia ser determinado de nenhuma outra maneira Percebemos imediatamente que poderia ter havido outro resultado e que também teríamos entendido e podido explicálo igualmente bem A síntese não é portanto tão satisfatória quanto a análise em outras palavras não teríamos sido capazes de prever a partir do conhecimento das premissas a natureza do resultado É muito fácil reconduzir esse conhecimento perturbador às suas causas Mesmo que os fatores etiológicos decisivos para um determinado resultado sejamnos inteiramente conhecidos nós apenas os conhecemos por sua especificidade qualitativa e não pela sua força relativa Alguns deles serão reprimidos unterdrückt por outros por serem muito fracos e não serão considerados no resultado final Mas nunca sabemos de antemão quais fatores determinantes provarão ser os mais fracos ou os mais fortes Só no final dizemos que se impuseram os que eram os mais fortes Assim a causação na direção da análise pode ser reconhecida a cada vez com segurança mas a sua previsão na direção da síntese é impossível Portanto não queremos afirmar que toda jovem que experimenta uma decepção como essa no anseio amoroso derivado da posição do Édipo nos anos da puberdade necessariamente cairá por isso na homossexualidade Ao contrário outros tipos de reação a esse trauma serão mais frequentes Mas então no caso dessa jovem fatores especiais devem ter sido decisivos fatores externos ao trauma provavelmente de natureza interna Também não há dificuldade em apontálos Como sabemos também no caso de uma pessoa normal é preciso um determinado tempo até que se imponha definitivamente a decisão sobre o sexo do objeto de amor Entusiasmos homossexuais amizades exageradamente intensas e sensualmente matizadas são bem habituais em ambos os sexos nos primeiros anos após a puberdade Foi assim também com a nossa jovem mas essas inclinações se revelavam nela indubitavelmente mais fortes e duravam mais tempo do que nos outros Acrescentase a isso que esses prenúncios da homossexualidade posterior sempre ocuparam sua vida consciente enquanto a posição derivada do Édipo permaneceu inconsciente e só veio à luz em indícios tais como o mimo por aquele garotinho Como estudante ela esteve durante muito tempo apaixonada por uma professora inacessível e rígida um evidente substituto da mãe Ela mostrou um interesse muito vivo por algumas jovens mães bem antes do nascimento do irmão e com maior certeza muito tempo antes daquela primeira reprimenda do pai Portanto desde os anos muito precoces sua libido fluía em duas correntes das quais a que está mais na superfície pode ser chamada sem hesitação de homossexual Provavelmente essa era a continuação direta sem alteração de uma fixação infantil na mãe É possível que com a nossa análise também não tenhamos descoberto nada além do processo que em ocasião apropriada também transportou a corrente de libido heterossexual mais profunda para a homossexual manifesta Além disso a análise demonstrou que a jovem trouxe de sua infância um complexo de masculinidade fortemente acentuado Cheia de vida briguenta nada disposta a ficar atrás do irmão um pouco mais velho ela desenvolveu desde aquela inspeção dos genitais uma poderosa inveja do pênis cujos derivados ainda povoavam seu pensamento Na verdade ela era uma feminista achava injusto que as meninas não gozassem da mesma liberdade que os meninos e rebelavase absolutamente contra a sina da mulher Na época da análise a gravidez e o parto eram para ela representações desagradáveis como eu presumo também por causa da desfiguração corporal a eles ligada A essa defesa havia se recolhido seu narcisismo feminino25 que não mais se expressava como orgulho por sua beleza Diversos indícios apontavam para um antigo prazer de olhar e de exibição Schau und Exhibitionslust Quem não quiser ver diminuído na etiologia o papel do adquirido chamará a atenção para o fato de que a conduta da jovem tal como descrita era exatamente o que precisaria ser determinado pelo efeito combinado da discriminação da mãe e da comparação de seus genitais com os do irmão em meio a uma forte fixação na mãe Aqui também há a possibilidade de atribuir algo a uma marca deixada pela operação de uma influência externa nos primeiros anos o que se gostaria de considerar como especificidade constitucional E também a respeito dessa aquisição se ela realmente aconteceu uma parte será considerada de constituição inata Assim se mistura e se une continuamente na observação aquilo que nós na teoria queremos distinguir como um par de opostos herança e aquisição Se um término prematuro provisório da análise tivesse levado à afirmação de que se tratava de um caso de aquisição tardia da homossexualidade o exame do material que agora empreendemos nos impeliria muito mais à conclusão de que preexistiu uma homossexualidade inata que como é habitual só se fixou e se revelou sem disfarce no período posterior à puberdade Cada uma dessas classificações faz justiça apenas a uma parte do estado de coisas estabelecido pela observação e negligencia a outra Melhor seria não supervalorizarmos essa maneira de colocar as questões A literatura sobre a homossexualidade não costuma distinguir com suficiente clareza as questões sobre a escolha de objeto por um lado e sobre o caráter6 sexual e a posição sexual por outro como se a decisão sobre um desses pontos estivesse necessariamente ligada com a do outro Entretanto a experiência revela o contrário um homem com qualidades predominantemente masculinas e que também exiba o tipo masculino de vida amorosa pode ser invertido em relação ao objeto e amar apenas homens em vez de mulheres Um homem em cujo caráter predominam as qualidades femininas de maneira chamativa e que se comporte no amor como uma mulher deveria em virtude dessa posição feminina endereçarse ao homem como objeto de amor mas apesar disso ele pode ser heterossexual e não mostrar em relação ao objeto uma inversão maior do que uma pessoa normal O mesmo vale para as mulheres nelas caráter sexual psíquico e escolha de objeto também não coincidem em uma relação fixa Portanto o mistério da homossexualidade não é de maneira alguma tão simples quanto comumente é apresentado no uso popular uma alma feminina que por isso precisa amar o homem e por infelicidade está instalada em um corpo masculino ou uma alma masculina que é atraída irresistivelmente pela mulher e infelizmente está desterrada em um corpo feminino Tratase muito mais de três séries de caracteres Caracteres sexuais somáticos caráter sexual psíquico hermafroditismo físico posição masculina ou feminina tipo de escolha de objeto que até determinado grau variam independentemente um do outro e se apresentam em cada indivíduo em permutações múltiplas A literatura tendenciosa dificultou o entendimento dessas proporções quando por motivos práticos colocou em primeiro plano a única conduta chamativa para o leigo a correspondente ao terceiro ponto o da escolha de objeto e além disso exagerou na solidez da ligação entre este e o primeiro ponto Ela também bloqueia seu caminho que leva ao entendimento mais profundo de tudo isso que se designa uniformemente como homossexualidade quando rejeita dois fatos fundamentais que a investigação psicanalítica descobriu O primeiro que os homens homossexuais experimentaram uma fixação particularmente intensa na mãe o segundo que todos os normais ao lado de sua heterossexualidade manifesta deixam notar uma medida considerável de homossexualidade latente ou inconsciente Se levamos em conta esses achados não se sustenta a suposição de um terceiro sexo criado por um capricho da natureza Não é papel da Psicanálise resolver o problema da homossexualidade Ela precisa se contentar em revelar os mecanismos psíquicos que levaram à decisão sobre a escolha de objeto e em rastrear seus caminhos até as disposições pulsionais Então ela encerra e deixa o restante para a investigação biológica que justamente agora nos experimentos de Steinach26 produziu esclarecimentos tão importantes sobre a influência da primeira das séries mencionadas sobre a segunda e a terceira Ela se situa em terreno comum com a Biologia na medida em que adota como premissa uma bissexualidade originária do indivíduo humano assim como do animal Mas a Psicanálise não pode esclarecer a natureza daquilo que no sentido convencional ou biológico chamase masculino e feminino ela assume ambos os conceitos e faz deles a base de seu trabalho Quando fazemos a tentativa de uma nova recondução a masculinidade se dissolve em atividade e a feminilidade em passividade e isso é muito pouco Já tentei explicar a medida em que é admissível ou está corroborada a expectativa de obter um ponto de apoio para alterar a inversão através do trabalho de esclarecimento que faz parte da análise Se comparamos essa medida de influência com as notáveis transformações que Steinach7 conseguiu em casos particulares mediante intervenções cirúrgicas ela não causa nenhuma impressão imponente Mas seria apressado ou exagero prejudicial abrigar desde já a esperança de uma terapia da inversão que fosse de aplicação universal Os casos de homossexualidade masculina com os quais Steinach foi bemsucedido satisfaziam a nem sempre presente condição de um hermafroditismo somático marcado ao extremo A terapia de uma homossexualidade feminina por caminhos análogos é em princípio bastante obscura Se tivesse de consistir na remoção dos ovários provavelmente hermafroditas e na implantação de outros que se supõe serem de um único sexo ela teria poucas perspectivas de aplicação prática Um indivíduo feminino que se sente masculino e amou de maneira masculina dificilmente se deixará forçar no papel feminino se tiver de pagar pela transformação nada vantajosa em todos os aspectos com a renúncia à maternidade 17 Não vejo nenhum progresso ou vantagem em introduzir a expressão complexo de Elektra e não gostaria de promover o seu uso 18 Cf I Sadger Jahresbericht über sexuelle Perversion Jahrbuch der Psychoanalyse VI 1914 e a a O 19 Não é tão raro que alguém rompa uma ligação amorosa identificandose com o objeto o que corresponde a uma espécie de regressão ao narcisismo Depois que isso ocorreu em uma nova escolha de objeto é facilmente possível investir com sua libido o sexo oposto ao anterior 20 Os deslocamentos da libido aqui descritos são sem dúvida conhecidos por qualquer analista pela pesquisa das anamneses dos neuróticos Só que nestes últimos eles acontecem na primeira infância na época do florescimento da vida amorosa em nossa jovem que de modo algum é neurótica eles se desenvolvem nos primeiros anos após a puberdade aliás da mesma forma de maneira totalmente inconsciente Será que esse fator temporal algum dia se revelará de elevada importância 21 Como até agora esse deixar o caminho livre para alguém não foi mencionado entre as causas da homossexualidade ou do mecanismo de fixação da libido gostaria de acrescentar aqui uma observação analítica semelhante interessante por uma circunstância particular Há algum tempo conheci dois irmãos gêmeos ambos dotados de intensos impulsos libidinais Um deles tinha muita sorte com mulheres e mantinha inúmeras relações com senhoras e moças O outro a princípio estava no mesmo caminho mas depois tornouse desagradável para ele rivalizar com o irmão ser confundido com ele em circunstâncias íntimas por causa de sua semelhança e resolveu a dificuldade tornandose homossexual Ele deixou as mulheres para o irmão e assim lhe deixou o caminho livre Outra vez tratei um homem jovem artista de disposição inequivocamente bissexual para quem a homossexualidade se instalou simultaneamente a uma perturbação no trabalho Fugiu ao mesmo tempo das mulheres e do trabalho A análise que pôde devolvê lo a ambos provou que o temor diante do pai era o motivo mais poderoso das duas perturbações na verdade renúncias Em sua imaginação todas as mulheres pertenciam ao pai e ele se refugiou nos homens por resignação para deixar o caminho livre para o pai e resolver o conflito Essa motivação da escolha homossexual de objeto deve ser frequente nos tempos primordiais da espécie humana era realmente assim todas as mulheres pertenciam ao pai e chefe da horda primordial Em irmãos não gêmeos esse deixar o caminho livre também desempenha um papel importante em outros domínios além da escolha amorosa Por exemplo o irmão mais velho dedicase à música e é reconhecido por isso o mais novo muito mais dotado musicalmente logo interrompe seus estudos de música apesar da falta que sente deles e não mais é possível movêlo a tocar um instrumento Esse é apenas um exemplo para um acontecimento muito mais frequente e a investigação dos motivos que levam a deixar o caminho livre em vez de aceitar a concorrência revela circunstâncias psíquicas muito complicadas 22 Gesammelte Werke v III p 65 23 Essas interpretações dos modos de suicídio através de realizações sexuais de desejo já são conhecidas há muito tempo pelos analistas envenenarse ficar grávida afogarse dar à luzparir jogarse do alto cairparir 24 Cf Considerações contemporâneas sobre guerra e morte Zeitgemässes über Krieg und Tod Gesammelte Werke v X este artigo será publicado nesta coleção no volume Sociedade religião cultura NE 25 Cf a admissão de Cremilda Kriemhilde na Canção dos Nibelungos Nibelungenlied 26 Cf A Lipschütz A glândula da puberdade e seus efeitos Die Pubertätsdrüse und ihre Wirkungen Bern E Bircher 1919 Über die Psychogenese eines Falles von weiblicher Homosexualität 1920 1920 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 6 n 1 p 159194 1924 Gesammelte Schriften t V p 312343 1947 Gesammelte Werke t XII p 271302 Escrito em janeiro de 1920 no intervalo da escrita de um de seus mais importantes trabalhos Além do princípio de prazer o presente artigo seria intitulado apenas Sobre a gênese de um caso de homossexualidade feminina A substituição de gênese por psicogênese é notável como resultado da investigação e não como seu ponto de partida Esse caso inaugura uma nova modalidade de escrita clínica Com efeito desde a reformulação da teoria das pulsões Freud não publicou mais nenhum grande relato clínico nenhuma história clínica Não obstante os artigos desse período são muitas vezes vertiginosos exercícios de escrita em que clínica e metapsicologia se entrecruzam A narrativa exaustiva dá lugar a fragmentos e excertos com fins precisos Os fatos relatados nesse caso remontam a 1917 A jovem em questão tinha 18 anos quando depois de uma tentativa de suicídio seu pai obrigoua a se tratar com Freud Perto de completar 100 anos de idade Margareth Csonka verdadeira identidade da paciente de Freud declara que não passa um dia sem se lembrar da dama pela qual se apaixonara em sua juventude Durante sua longa vida fez diversos relatos e ofereceu diferentes versões dos episódios relatados por Freud frequentemente em tom crítico Sob o pseudônimo de Sidonie Csillag revelou os principais dados que permitem contextualizar sua vida sua paixão pela baronesa Leonie von Puttkamer e os detalhes relativos à sua malograda tentativa de suicídio quando seu pai a surpreendera em um passeio entre o pavilhão de exposições da Secessão e a Kettenbrückengasse quando ela se lança no cais do trem urbano Mais tarde casouse por conveniência com o barão Eduard von Trautenegg de quem adotou o sobrenome mas nunca deixou de ter uma vida dupla De origem judia mesmo convertida ao catolicismo e depois ao protestantismo não escapou de perder toda a sua fortuna depois da anexação da Áustria por Hitler Durante seu curto tratamento inventava sonhos e histórias infantis que imaginava satisfazer seu analista Ao perceber a manobra Freud interrompeu o tratamento dando assim uma grande margem para que nos interroguemos se os sonhos e as histórias inventadas seriam um material menos valioso para a análise do que os sonhos de fato sonhados e as histórias consideradas verdadeiras Neste texto destacase a posição ética do analista diante da demanda dos pais ao se furtar a realizar o desejo deles Freud nunca considerou que a homossexualidade da jovem fosse uma doença que precisasse ser curada Vale destacar que estamos diante da primeira ocorrência do conceito de construção como uma estratégia diversa da interpretação tema que será plenamente desenvolvido apenas em 1937 Construções em análise O ensaio de Freud tornouse a referência principal para a compreensão do complexo de castração nas mulheres formulado por Karen Horney em um texto que marcou época nos debates sobre a feminilidade Sobre a gênese do complexo de castração feminino Uma contribuição relevante a essa discussão embora não cite expressamente o artigo de Freud pode ser encontrada em Joan Rivière A feminilidade como máscara HORNEY K Zur Genese des weiblichen Kastrationskomplex Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse n 9 1923 RIVIÈRE J A feminilidade como máscara Psyche São Paulo v 9 n 16 p 1324 2005 RIEDER I VOIGT D Desejos secretos a história de Sidonie C a paciente homossexual de Freud Rio de Janeiro Companhia das Letras 2008 NOTAS 1 Aqui Freud faz simplesmente uso do verbo reflexivo sich ausweichen cujas primeiras acepções são as de desviarse sair do caminho NR 2 Freud já havia empregado o adjetivo entrelaçado verschlungenen em Studien über Hysterie cap IV Über die Psychopathologie der Hysterie Parte 3 Gesammelte Werke v I p 290307 para dizer que é por causa da ordenação dinâmica das camadas psíquicas que o sintoma é tão frequentemente determinado por várias causas mehrfach determiniert é sobredeterminado überbestimmt Em outras palavras para dizer que em um entrelaçamento linguístico qualquer elemento isolado não é solidário apenas do conjunto cronologicamente falando mas se recorta e se constitui por toda uma série de afluências de sobredeterminações oposicionais que o situam ao mesmo tempo em vários registros NT 3 Essa citação é retirada de Jerusalém libertada peça de Torquato Tasso canto V estrofe 16 NR 4 O verbo utilizado niederkommen cujo sentido usual é o de parir é composto dos elementos nieder embaixo para baixo e kommen vir Logo Freud aqui associa o ato de cair lá embaixo com a noção de vir para baixo presente na construção alemã que expressa o ato de dar à luz um filho NR 5 Freud parece aludir a uma tática militar russa que consiste em entregar território ao inimigo recuando em seu próprio território sem travar batalha A ideia era atrair o exército invasor não sem antes destruir todos os recursos disponíveis deixando a terra arrasada Foi essa a tática que o Marechal Kutuzov empregou em 1812 para vencer Napoleão Chegado o inverno o exército francês estava sem suprimentos e sem abrigo a centenas de quilômetros da linha de suprimentos quando foi derrotado NE 6 Charakter pode significar caráter caractere característica e em determinados casos personalidade Cabe aqui uma importante ressalva à tradução mais direta e frequente por caráter nos usos atuais da língua portuguesa no Brasil essa palavra tende a trair certa conotação moralizante e prescritiva geralmente ausente nos usos freudianos do termo alemão NR 7 Eugen Steinach 18611944 foi um fisiologista austríaco pioneiro na endocrinologia Ganhou notoriedade por suas cirurgias sexuais que visavam aumentar o vigor masculino Em suas pesquisas iniciais insistiu acerca do papel das glândulas sexuais na determinação da sexualidade a partir de experimentos com animais em que por exemplo transplantava testículos dos porquinhosda índia machos para as fêmeas observando as consequências comportamentais da produção de testosterona na fêmea NE SOBRE ALGUNS MECANISMOS NEURÓTICOS NO CIÚME NA PARANOIA E NA HOMOSSEXUALIDADE 1922 A O ciúme faz parte dos estados afetivos que como o luto podemos chamar de normais Quando ele parece faltar no caráter e na conduta de um ser humano podemos concluir que sofreu um forte recalcamento e por isso desempenha um papel ainda maior na vida anímica inconsciente Os casos de ciúme anormalmente intensificados com os quais a análise se ocupa apresentamse estratificados em três camadas As três camadas ou fases do ciúme merecem os nomes de 1 competitivo ou normal 2 projetado e 3 delirante Sobre o ciúme normal há pouco a dizer do ponto de vista analítico É fácil perceber que ele é basicamente composto pelo luto pela dor da perda do objeto de amor que se crê perdido e pela ofensa Kränkung1 narcísica na medida em que ela pode ser distinguida das outras além disso por sentimentos hostis contra o rival favorecido e pelo maior ou menor grau de autocrítica que responsabiliza o próprio Eu pela perda de amor Esse ciúme mesmo que o chamemos de normal não é de forma alguma racional isto é oriundo de vínculos atuais proporcionais às efetivas circunstâncias e inteiramente dominado pelo Eu consciente pois ele está profundamente arraigado no inconsciente prolonga as mais antigas moções da afetividade infantil e nasce do complexo de Édipo ou do fraternal do primeiro período sexual Mas é notável que ele possa ser vivenciado bissexualmente por algumas pessoas isto é no homem além da dor pela mulher amada e do ódio pelo rival masculino também são intensificados a tristeza Trauer2 pelo homem amado inconscientemente e o ódio pela mulher como rival Conheço um homem que sofria terrivelmente com seus ataques de ciúme e de acordo com seus dados passava pelos mais terríveis tormentos quando se colocava conscientemente no lugar da mulher infiel A sensação de desamparo Hilflosigkeit que ele então sentia as imagens que ele encontrava para o seu estado como se tal como Prometeu tivesse sido exposto para ser devorado pelo abutre ou acorrentado em um ninho de cobras ele mesmo as referia à impressão advinda de vários ataques homossexuais que ele tinha sofrido quando rapaz O ciúme da segunda fase ou o projetado provém tanto no homem como na mulher da própria infidelidade praticada na vida ou de impulsos Antriebe à infidelidade que sucumbiram ao recalcamento Constitui uma experiência cotidiana o fato de a fidelidade sobretudo a exigida no casamento só poder ser mantida às custas de contínuas tentações Aquele que recusa verleugnet a sua existência em si mesmo experimenta de fato sua pressão Andrängen3 de maneira tão intensa que aceita de bom grado servirse de um mecanismo inconsciente para seu alívio Esse alívio na verdade uma absolvição de sua consciência moral ele alcança se projetar seus próprios impulsos à infidelidade na outra parte a quem deve fidelidade Esse forte motivo pode então servirse do material da percepção que denuncia verrät as moções inconscientes do mesmo tipo na outra parte e poderia se justificar com o argumento de que provavelmente o parceiro ou a parceira também não é muito melhor do que ele próprio27 Os costumes sociais levaram em conta sabiamente esse comum estado de coisas quando dão certo espaço à coqueteria da mulher casada e à ânsia do marido em conquistar na esperança de assim drenar e tornar inócua a inegável tendência à infidelidade A convenção estabelece que nenhuma das partes deve responsabilizar a outra por esses pequenos passos em direção à infidelidade e geralmente consegue que o anseio despertado pelo novo objeto se satisfaça através de um certo retorno à fidelidade ao objeto original No entanto o ciumento não quer reconhecer essa tolerância convencional ele não acredita que exista uma interrupção ou uma volta ao caminho uma vez trilhado que o flerte social também possa constituir uma segurança contra uma infidelidade efetiva No tratamento desse tipo de ciumento é preciso evitar contestarlhe o material no qual se apoia só podemos desejar leválo a uma outra apreciação dele O ciúme nascido desse tipo de projeção tem na verdade um caráter quase delirante mas não resiste ao trabalho analítico que descobre as fantasias inconscientes da própria infidelidade O pior acontece com o ciúme da terceira camada o propriamente delirante Este também parte de anseios de infidelidade recalcados mas os objetos dessas fantasias são do mesmo sexo da pessoa O ciúme delirante corresponde a uma homossexualidade fermentada e com razão afirma seu lugar entre as formas clássicas de paranoia Como tentativa de defesa contra uma moção homossexual superintensa ele poderia no homem ser descrito pela fórmula Não sou eu que o amo ela o ama28 Em um caso de delírio de ciúme precisamos estar preparados para encontrar o ciúme de todas as três camadas nunca apenas o da terceira B Paranoia Por motivos conhecidos os casos de paranoia na maioria das vezes subtraemse à investigação analítica Mas nos últimos tempos a partir de um estudo intensivo de dois paranoicos pude depreender algo que era novo para mim O primeiro caso dizia respeito a um homem jovem com paranoia de ciúme plenamente formada cujo objeto era sua esposa impecavelmente fiel Já ficara para trás um período tormentoso no qual o delírio o havia perseguido sem interrupção Quando o vi ele só produzia ataques bem isolados que duravam vários dias e ocorriam curiosamente no dia seguinte a um ato sexual de resto satisfatório para ambos os lados É justo concluir que toda vez depois de saciada a libido heterossexual o componente homossexual concomitantemente excitado forçava sua expressão no ataque de ciúme O ataque extraía seu material da observação dos mínimos sinais através dos quais o havia traído a coqueteria inteiramente inconsciente da mulher imperceptível para um terceiro Ora ela tinha tocado inadvertidamente com sua mão o senhor sentado ao seu lado ora seu rosto estava muito inclinado para ele ou abria um sorriso mais amistoso do que quando estava sozinha com seu marido Ele demonstrava uma atenção extraordinária a todas essas manifestações do inconsciente dela e sempre sabia interpretálas corretamente de maneira que na verdade ele sempre estava com a razão e ainda podia invocar a análise para justificar seu ciúme Na verdade sua anormalidade se reduzia a que ele observava o inconsciente de sua mulher com maior acuidade e depois lhe atribuía uma importância muito maior do que qualquer outra pessoa poderia fazêlo Lembramonos de que também os paranoicos perseguidos se comportam de maneira bem semelhante Eles também não enxergam nada de indiferente nos outros e em seu delírio de referência Beziehnungswahn aproveitam os mínimos detalhes que esses outros estranhos oferecemlhes O sentido de seu delírio de referência é com efeito que esperam de todos os estranhos algo como o amor mas esses outros não lhes mostram nada semelhante eles riem consigo mesmos agitam suas bengalas ou até mesmo cospem no chão quando eles passam e isso realmente não se faz quando se tem algum tipo de interesse amigável pela pessoa que está próxima Só o fazemos quando essa pessoa é totalmente indiferente para nós quando ela pode ser tratada como se fosse ar e o paranoico não está tão errado a respeito do parentesco fundamental entre os conceitos de estranho fremd e hostil feindlich quando ele sente essa indiferença com relação à sua demanda de amor como hostilidade Agora percebemos que descrevemos insatisfatoriamente a conduta do paranoico ciumento assim como a do perseguido quando dizemos que eles projetam para fora sobre outros aquilo que não querem perceber em seu próprio interior É claro que o fazem mas não projetam digamos no vazio lá onde não há nada semelhante mas se deixam orientar por seu conhecimento do inconsciente e deslocam sobre o inconsciente dos outros a atenção que retiram de seu próprio inconsciente Nosso ciumento reconhece a infidelidade de sua esposa em lugar da sua própria na medida em que torna consciente a da esposa aumentada em escala gigantesca ele consegue manter inconsciente a sua própria Se consideramos seu exemplo como modelar podemos concluir que também a hostilidade que o perseguido encontra nos outros é o reflexo dos próprios sentimentos hostis contra eles Como sabemos que para o paranoico é justamente a pessoa mais querida do mesmo sexo que se torna o perseguidor surge a pergunta quanto a de onde vem essa reversão do afeto e a resposta mais imediata seria a de que o sentimento de ambivalência já presente proporciona a base para o ódio e que a não realização das exigências de amor o reforça Assim a ambivalência de sentimentos presta ao perseguido o mesmo serviço de defesa contra a homossexualidade que o ciúme prestou ao nosso paciente Os sonhos do meu paciente ciumento me prepararam uma grande surpresa Na verdade eles não se apresentaram simultâneos ao desencadeamento do ataque mas ainda sob o domínio do delírio estavam inteiramente desprovidos de delírio e permitiam reconhecer as moções homossexuais subjacentes num disfarce não muito mais intenso do que o habitual Com minha pouca experiência sobre os sonhos de paranoicos pareceu plausível supor na ocasião que de maneira geral a paranoia não se introduz no sonho Foi fácil visualizar o estado de homossexualidade nesse paciente Ele não construiu nenhuma amizade e nenhum interesse social tinhase a impressão de que o delírio só teria assumido o desenvolvimento posterior de suas ligações com os homens como que para recuperar uma parte do que foi perdido A pouca importância do pai em sua família e um humilhante trauma homossexual no início de sua mocidade tinham cooperado para forçar sua homossexualidade ao recalcamento e impedirlhe o caminho para a sublimação Toda a sua juventude foi dominada por uma intensa ligação com a mãe De todos os filhos ele era declaradamente o favorito da mãe e desenvolveu em relação a ela um intenso ciúme do tipo normal Quando mais tarde ele fez sua escolha matrimonial basicamente dominado pelo motivo de enriquecer a mãe sua necessidade de uma mãe virginal veio à tona através de dúvidas obsessivas sobre a virgindade da noiva Os primeiros anos de seu casamento transcorreram sem ciúme Depois tornouse infiel à sua esposa e ingressou em uma prolongada relação com uma outra mulher Só quando desistiu dessa ligação amorosa assustado por uma determinada suspeita foi que lhe irrompeu um ciúme do segundo tipo do tipo projetivo com o qual pôde aplacar as recriminações contra a sua infidelidade Logo esse ciúme se complicou pelo acréscimo das moções homossexuais cujo objeto era o sogro e se tornou uma paranoia de ciúme plenamente desenvolvida Meu segundo caso não teria provavelmente sido classificado como paranoia persecutória4 sem análise mas tive de ver no rapaz um candidato a esse desfecho patológico Havia nele uma ambivalência de extraordinária amplitude em relação ao pai Por um lado era o mais declarado rebelde que se desenvolveu desviandose manifestamente e em todos os sentidos dos desejos e ideais do pai por outro em nível mais profundo era ainda o filho mais submisso que após a morte do pai impediuse a fruição Genuss da mulher com um carinhoso sentimento de culpa Suas relações reais com homens permaneciam claramente sob o signo da suspeita com seu forte intelecto ele sabia como racionalizar essa posição e entendia como dispor as coisas de maneira a ser enganado e explorado por conhecidos e amigos O que aprendi com ele e que era novo para mim foi que pensamentos persecutórios clássicos podem estar presentes sem encontrarem crença ou valor Eles fulguravam ocasionalmente durante a sua análise mas ele não lhes dava nenhuma importância e em geral desdenhava deles Isso pode acontecer da mesma maneira em muitos casos de paranoia e quando se desencadeia um adoecimento como esse talvez tomemos as ideias delirantes manifestas como produções novas quando na verdade elas podem ter estado presentes há muito tempo Pareceme ser uma compreensão Einsicht importante o fato de um fator qualitativo a presença de certas formações neuróticas ter menos valor prático do que o fator quantitativo ou seja o grau de atenção ou melhor a medida de investimento que essas estruturas podem atrair para si mesmas A discussão do nosso primeiro caso o da paranoia de ciúme conduziunos a uma mesma estimativa do fator quantitativo ao demonstrar que lá a anormalidade consistia essencialmente na tradução das interpretações do inconsciente alheio Da análise da histeria conhecemos um fato análogo há muito tempo As fantasias patogênicas que são os derivados de moções pulsionais recalcadas são toleradas longo tempo junto à vida anímica normal e não produzem efeitos patogênicos enquanto não receberem um superinvestimento ocasionado por uma reviravolta na economia libidinal só então irrompe o conflito que leva à formação de sintoma Dessa forma no avanço do nosso conhecimento Erkenntnis estamos cada vez mais sendo pressionados a trazer o ponto de vista econômico para o primeiro plano Gostaria também de colocar a questão sobre se o fator quantitativo aqui destacado não bastaria para cobrir os fenômenos para os quais Bleuler e outros quiseram introduzir recentemente o conceito de conexão Schaltung Só seria necessário supor que um aumento da resistência em uma direção do decurso psíquico tem como consequência um superinvestimento de um outro caminho e isso significa a introdução desse aumento no referido decurso5 Uma instrutiva oposição quanto ao comportamento dos sonhos revelouse em meus dois casos de paranoia Ao passo que no primeiro caso os sonhos como mencionei não apresentavam delírios o outro paciente produziu um grande número de sonhos de perseguição que podem ser considerados os precursores ou formações substitutivas das ideias delirantes de mesmo conteúdo O perseguidor de quem ele só conseguia escapar com grande medo era geralmente um vigoroso touro ou outro símbolo da masculinidade que às vezes ele próprio mesmo no sonho reconhecia como substituto do pai Certa vez ele relatou um característico sonho paranoico de transferência Ele me via fazendo a barba em sua presença e percebeu pelo cheiro que eu estava usando o mesmo sabonete que seu pai Eu o fazia para obrigálo a transferir seu pai para a minha pessoa Na escolha da situação sonhada revelouse de maneira inequívoca o menosprezo do paciente por suas fantasias paranoicas e sua descrença nelas pois a visão cotidiana poderia ensinarlhe que eu nunca me encontraria na situação de usar sabão para barba e portanto nesse aspecto a transferência paterna não oferecia nenhum apoio A comparação dos sonhos de nossos dois pacientes nos ensinou entretanto que nosso questionamento quanto a se a paranoia ou outra psiconeurose também poderia entrar no sonho se baseia apenas em uma concepção incorreta do sonho O sonho se distingue do pensamento de vigília pelo fato de poder acolher conteúdos da esfera do recalcado que não podem aparecer no pensamento de vigília Além disso ele é apenas uma forma de pensar uma reconfiguração Umformung do material préconsciente de pensamento elaborada pelo trabalho do sonho e por suas condições Nossa terminologia das neuroses não é aplicável ao recalcado este não pode ser chamado nem de histérico nem de neurótico obsessivo nem de paranoico Em contrapartida a outra parte do material submetido à formação do sonho os pensamentos pré conscientes pode ser normal ou trazer em si o caráter de uma neurose qualquer Os pensamentos préconscientes podem ser os resultados de todos aqueles processos patogênicos nos quais reconhecemos a natureza de uma neurose Não vemos razão por que qualquer ideia patógena como essa não possa sofrer a reconfiguração em um sonho Um sonho pode portanto simplesmente corresponder a uma fantasia histérica a uma representação obsessiva ou a uma ideia delirante isto é revelar ergeben uma delas em sua interpretação Em nossa observação de dois paranoicos achamos que o sonho de um é normal enquanto esse homem se acha em meio a um ataque e que o do outro tem um conteúdo paranoico enquanto o homem ainda desvaloriza suas ideias delirantes Portanto o sonho recolheu em ambos os casos aquilo que na vida de vigília estava retrocalcado zurückgedrängt6 Mas isto também não precisa ser a regra C Homossexualidade Reconhecer o fator orgânico da homossexualidade não nos dispensa da obrigação de estudar os processos psíquicos de sua origem O processo típico já estabelecido para inúmeros casos consiste em que o rapaz até então fixado intensamente em sua mãe alguns anos depois da puberdade empreende uma viragem Wendung identificase com a mãe e procura objetos de amor nos quais possa se reencontrar e que ele gostaria de amar como a mãe o amou Como marca característica desse processo habitualmente se estabelece por muitos anos a condição de amor de que os objetos masculinos devem ter a idade em que ocorreu nele a transformação Conhecemos vários fatores que provavelmente em intensidades alternadas contribuem para esse resultado Em primeiro lugar a fixação na mãe que dificulta a passagem para outro objeto feminino A identificação com a mãe advém dessa ligação com o objeto e possibilita simultaneamente permanecer fiel em certo sentido a esse objeto Depois a inclinação para a escolha narcísica de objeto que geralmente está mais acessível e é mais fácil de efetuar do que a viragem para o outro sexo Por trás desse fator escondese outro de força bastante especial ou que talvez coincida com ele a supervalorização do órgão masculino e a incapacidade de renunciar à sua presença no objeto de amor A depreciação da mulher a aversão contra ela na verdade o horror a ela derivam geralmente da descoberta prematura de que a mulher não possui um pênis Mais tarde descobrimos ainda como motivo poderoso da escolha homossexual de objeto a consideração pelo pai ou o medo dele pois a renúncia à mulher tem o significado de deixar a ele o caminho livre de concorrência ou a todas as pessoas de sexo masculino que fazem as suas vezes Os últimos dois motivos a obstinação na condição do pênis bem como o deixar o caminho livre podem ser atribuídos ao complexo de castração Ligação com a mãe narcisismo medo da castração tínhamos descoberto esses fatores aliás de modo algum específicos até o presente na etiologia psíquica da homossexualidade e a eles se somaram ainda a influência da sedução responsável pela prematura fixação da libido assim como a do fator orgânico que favorece o papel passivo na vida amorosa No entanto nunca acreditamos que essa análise da origem da homossexualidade estivesse completa Hoje posso apontar um novo mecanismo que leva à escolha homossexual de objeto embora não possa indicar qual o tamanho do seu papel na configuração da homossexualidade extrema da manifesta e da exclusiva A observação chamou minha atenção sobre muitos casos em que durante a primeira infância haviam surgido moções de ciúme particularmente intensas derivadas do complexo materno contra rivais na maioria irmãos mais velhos Esse ciúme levou a posições fortemente hostis e agressivas contra os irmãos que podiam ao extremo chegar ao desejo de morte mas não resistiram ao desenvolvimento Sob as influências da criação e certamente também em consequência de sua continuada impotência em relação a essas moções chegouse ao recalcamento destas e a uma transformação de sentimentos de modo que os anteriormente rivais tornaramse agora os primeiros objetos de amor homossexual Essa saída do vínculo com a mãe mostra múltiplas e interessantes ligações com outros processos conhecidos por nós Ela é em primeiro lugar a contraparte exata para o desenvolvimento da paranoia persecutória na qual as primeiras pessoas amadas se tornam os perseguidores odiados enquanto aqui os rivais odiados se transformaram em objetos de amor Além disso ela se apresenta como um exagero do processo que em minha opinião conduz à gênese individual das pulsões sociais29 Tanto aqui como lá estão inicialmente presentes moções de ciúme e hostis que não podem conseguir satisfação e tanto os sentimentos de identificação ternos quanto os sociais surgem como formações reativas contra os impulsos de agressão recalcados Esse novo mecanismo da escolha homossexual de objeto sua origem em uma rivalidade sobrepujada e uma inclinação agressiva recalcada misturase em certos casos às condições típicas que já conhecemos Não é raro ficarmos sabendo a partir da história da vida de homossexuais que sua viragem aconteceu depois que a mãe elogiou outro menino e o tomou como modelo Assim foi estimulada a tendência à escolha narcísica de objeto e depois de uma breve fase de agudo ciúme o rival tornouse o objeto de amor Porém normalmente o novo mecanismo se distingue pelo fato de que nele a transformação se produz num período muito mais precoce e a identificação com a mãe aparece em segundo plano Além disso nos casos que observei ele apenas levou a posições homossexuais que não excluíam a heterossexualidade e não traziam consigo um horror feminae horror à mulher Sabemos que um número considerável de pessoas homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial das moções pulsionais sociais e por sua devoção aos interesses úteis para a comunidade Estaríamos tentados a oferecer para isso a seguinte explicação teórica um homem que vê em outros homens possíveis objetos de amor precisa se conduzir na comunidade dos homens de maneira diferente de outro que diante da mulher precisa considerar o homem antes de tudo como o rival A única objeção a isso é que também no amor homossexual há ciúme e rivalidade e que a comunidade dos homens também inclui esses possíveis rivais Mas também à parte essa explicação especulativa não pode ser indiferente no tocante à conexão entre a homossexualidade e sensibilidade social o fato de que não é raro que a escolha homossexual de objeto provenha da superação precoce da rivalidade com os homens Na observação psicanalítica estamos acostumados a considerar os sentimentos sociais como sublimações de posições homossexuais de objeto Parece que nos homossexuais com interesses sociais acentuados não teria logrado satisfatoriamente o desligamento dos sentimentos sociais a respeito da escolha de objeto 27 Cf a estrofe no canto de Desdêmona Otelo IV 3 Chameio de falso e o que ele respondeu então Se eu cortejar mais mulheres você dormirá com mais homens 28 Cf as explicações ao Caso Schreber Considerações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado de forma autobriográfica Dementia paranoides 1911 Gesammelte Werke v VIII nas Obras incompletas de Sigmund Freud será incluído no volume Histórias clínicas NE 29 Cf Psicologia das massas e análise do Eu Massenpsychologie und IchAnalyse 1921 Ges Werke v XIII Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht Paranoia und Homosexualität 1922 1922 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 8 n 3 p 249258 1924 Gesammelte Schriften t V p 387399 1940 Gesammelte Werke t XIII p 195207 Em virtude das primeiras guerras intestinas da Psicanálise e das rupturas com alguns discípulos próximos como Adler e Jung coube a Ernest Jones a iniciativa de formar em torno de Freud um pequeno comitê de analistas dignos de confiança Esse comitê que durou até 1924 reuniu nomes como Abraham Eitingon Ferenczi Rank e Sachs além é claro do próprio Jones O presente artigo foi lido por Freud diante desse comitê em setembro de 1921 em Harz A redação do artigo remonta a janeiro do mesmo ano Tratase do contexto da grande reformulação dos fundamentos da metapsicologia tanto de sua teoria das pulsões quanto da teoria do aparelho psíquico Foi a escuta de um paciente norteamericano que suscitou em Freud suas principais hipóteses acerca dos mecanismos envolvidos no ciúme paranoico Não por acaso é um texto impregnado de clínica como ressalta PaulLaurent Assoun 2009 p 1113 A estratégia argumentativa do trabalho é semelhante à adotada em Luto e melancolia Freud parte de um estado afetivo normal o ciúme e a partir dele interroga suas formas patológicas tentando descrever seus mecanismos psíquicos e a dinâmica pulsional subjacente Não se trata aqui de uma teoria geral de uma suposta estrutura comum do ciúme da paranoia e da homossexualidade mas da tentativa de costurar esses fenômenos a partir de exemplos extraídos da clínica que continua funcionando como principal campo indutor da reflexão teórica O que reúne elementos tão heterogêneos é o mecanismo da projeção tomado aqui não apenas de modo descritivo mas também como um operador clínico ASSOUN 2009 p 1112 Freud nutria um carinho especial pelo estilo desse escrito como confessa em carta a Eitingon de 4 de fevereiro de 1921 A primeira tradução francesa desse artigo apareceu em 1932 na Revue Française de Psychanalyse Seu tradutor era Jacques Lacan NOTAS 1 A palavra Kränkung significando essencialmente ofensa deriva do adjetivo krank doente Cabe lembrar que em Estudos sobre histeria Studien über Hysterie Freud aponta para o parentesco epistemológico entre tais palavras mostrando o quanto a ofensa moral pode levar ao adoecimento NR 2 Trauer tem em luto sua primeira acepção mas serve para designar a tristeza em um âmbito maior No português costumase reservar o termo luto para a tristeza provocada pela perda de alguém para a morte NR 3 Neste parágrafo vemos vocábulos muito próximos de Trieb pulsão e de seu termo motor Drang pressão matizados pelo prefixo an AntriebAndrang O termo Drang um dos componentes da pulsão é discutido detalhadamente por Freud em seu As pulsões e seus destinos Sua tradução é discutida minunciosamente no primeiro volume desta coleção NR 4 Paranoia persecutoria designação latina no original NR 5 No Projeto de uma psicologia parte I item 9 O funcionamento do aparelho Aus den Anfängen der Psychoanalyse Fischer Verlag 1975 há um pequeno desenho feito por Freud para mostrar que um estímulo mais forte faz caminhos diferentes do que um mais fraco ein stärkerer Reiz geht andere Wege als ein schwächerer e que quantidade portanto se expressa por complicação em j Quantität in j drückt sich also aus durch Komplikation NT 6 Aqui vemos o particípio passado zurückgedrängt relativo ao verbo composto zurückdrängen formado pelo prefixo zurück indicando o que retrocede e o verbo drängen forçar passagem fazer pressão componente do verbo recalcar verdrängen NR PRANCHAS 18 Trophaeum MarianoCellense Biblioteca Nacional da Áustria Viena Página de rosto com legenda danificada Prancha 1 Primeira aparição o Diabo como honrado burguês Prancha 2 Segunda aparição o Diabo com seios nus Prancha 3 Terceira aparição o Diabo com um livro de magia Prancha 4 Quarta aparição o Diabo com um ducado Prancha 5 Quinta aparição o Diabo faz ameaças com seu pênisserpente Prancha 6 Sexta aparição o Diabo prescreve diversão e distração Prancha 7 Sétima aparição o Diabo com chifres e cauda Prancha 8 Oitava aparição o Diabo como dragão alado Manuscrito primeira página Trophaeum MarianoCellense seu annotatio Christophorum Haizmann pictorem concernens qui se daemoni syngrapha mancipavit Haitzmann Christoph Viena 1714 Biblioteca Nacional da Áustria Cod 14086 Han UMA NEUROSE DEMONÍACA1 NO SÉCULO XVII 1923 Aprendemos com as neuroses da infância que muito do que nelas pode ser visto facilmente a olho nu só pode ser compreendido mais tarde através de uma investigação detalhada Uma expectativa semelhante pode se dar para os adoecimentos neuróticos dos séculos anteriores se apenas estivermos preparados para encontrar os mesmos adoecimentos com títulos diferentes daqueles das nossas neuroses de hoje em dia Não devemos nos surpreender se as neuroses desses tempos antigos se apresentam com roupagem demoníaca ao passo que as não psicológicas dos tempos de agora aparecem em roupagem hipocondríaca disfarçadas de doenças orgânicas Muitos autores Charcot é o mais importante deles identificaram como se sabe nas figurações Darstellungen de possessão e êxtase tal como a arte as transmitiu para nós as formas de manifestação da histeria não teria sido difícil reencontrar os conteúdos da neurose nas histórias desses doentes se na época lhes tivesse sido dada mais atenção A teoria demonológica daqueles tempos obscuros estava certa em relação a todas as concepções somáticas do período da ciência exata As possessões correspondem às nossas neuroses para cuja explicação recorremos novamente aos poderes psíquicos Para nós os demônios são desejos maus e repudiados verworfene2 derivados de moções pulsionais rechaçadas recalcadas Da Idade Média nós recusamos apenas a projeção para o mundo exterior que ela realizou com esses seres anímicos nós os deixamos nascer na vida interior dos doentes onde é sua morada I A HISTÓRIA DO PINTOR CHRISTOPH HAITZMANN Agradeço ao gentil interesse do conselheiro Dr R PayerThurn diretor da antiga Fideikommissbibliotek Imperial de Viena por permitir que eu tomasse conhecimento de uma dessas neuroses demoníacas do século XVII PayerThurn havia descoberto na biblioteca um manuscrito proveniente do Santuário de Mariazell no qual é relatada detalhadamente uma miraculosa redenção de um pacto com o Diabo pela graça da Virgem Maria Seu interesse foi despertado pela ligação desse conteúdo com a lenda de Fausto e o levou a uma exaustiva descrição e elaboração do material Mas como ele achou que a pessoa cuja redenção será descrita sofria de crises convulsivas e visões dirigiuse a mim para um parecer médico do caso Combinamos de publicar nossos trabalhos de maneira independente um do outro e em separado Expresso a ele meu agradecimento por seu estímulo bem como pelas muitas maneiras como prestou auxílio no estudo do manuscrito Essa história clínica demonológica traz realmente um achado valioso fácil de ser reconhecido sem muita interpretação tal como muitas jazidas fornecem metal puro que em outros casos precisa ser extraído pelo derretimento do minério com muita dificuldade O manuscrito do qual uma cópia exata está diante de mim dividese em duas partes de naturezas inteiramente distintas o relato escrito em latim pelo monge escriba ou compilador e o fragmento do diário do paciente escrito em alemão A primeira parte contém o relato preliminar e a cura milagrosa propriamente dita a segunda parte pode não ter sido importante para os senhores religiosos tendo muito maior valor para nós Ele contribui sobremaneira para reforçar o nosso julgamento normalmente hesitante sobre o caso clínico Krankheitsfall e temos boas razões para agradecer aos religiosos por terem conservado esse documento mesmo que ele não seja favorável às suas opiniões e até mesmo possa têlas perturbado Mas antes de prosseguir com a composição dessa pequena brochura manuscrita que leva o título de Trophaeum MarianoCellense preciso contar um pouco sobre seu conteúdo que extraio do relato preliminar Em 5 de setembro de 1677 o pintor bávaro Christoph Haitzmann foi trazido à cidade vizinha de Mariazell com uma carta de recomendação do pároco de Pottenbrunn na Baixa Áustria30 na qual se lia que ele teria residido alguns meses em Pottenbrunn exercitando sua arte quando em 29 de agosto foi acometido por terríveis convulsões e como estas se repetiram nos dias seguintes o Praefectus Dominii Pottenbrunnensis prefeito da cidade de Pottenbrunn o examinou para saber o que o oprimia e se ele não teria se envolvido em uma relação proibida com o Espírito Maligno31 Ao que ele confessou que efetivamente nove anos antes em um período de desânimo com sua arte e de incerteza sobre seu autossustento havia cedido ao Diabo que o tentara por nove vezes e se comprometido por escrito a lhe pertencer de corpo e alma após aquele período O fim do prazo estava próximo ao dia 24 do mês corrente32 O infeliz prosseguia a carta arrependerase e estava convencido de que só a graça da Mãe de Deus em Mariazell3 poderia salválo obrigando o Maligno a lhe devolver o contrato Verschreibung escrito com sangue Por esse motivo permitimonos recomendar miserum hunc hominem omni auxilio destitutum este homem mísero destituído de todo auxílio à benevolência dos padres de Mariazell Até aqui tivemos a narrativa de 1º de setembro de 1677 do padre de Pottenbrunn Leopoldo Braun Agora posso prosseguir com a análise do manuscrito Ele consta de três partes a saber 1 Uma página de rosto colorida que apresenta a cena do pacto e a da redenção na capela de Mariazell na página seguinte há oito desenhos também coloridos das posteriores aparições do Diabo com breves legendas em língua alemã Essas imagens não são originais mas cópias como nos asseguram solenemente cópias fiéis das pinturas originais de Christoph Haizmann 2 O Trophaeum MarianoCellense propriamente dito em latim a obra de um compilador religioso que ao final assina P A E e agrega a essas letras quatro linhas em verso que contêm a sua biografia O encerramento é constituído por um testemunho do abade Kilian de S Lambert de 12 de setembro de 1729 que com letra diferente da do compilador confirma a correspondência exata do manuscrito e das imagens com os originais preservados no arquivo Não é indicado em que ano o Trophaeum foi compilado Temos a liberdade de supor que ocorreu no mesmo ano em que o abade Kilian apresentou seu testemunho portanto em 1729 ou tendo em vista que o último ano mencionado no texto é 1714 podemos situar a obra do compilador em algum momento entre 1714 e 1729 O milagre que foi preservado do esquecimento através desse escrito aconteceu em 1677 portanto de 37 a 52 anos antes 3 O diário do pintor escrito em alemão que se estende desde o momento de sua redenção na capela até 13 de janeiro do ano seguinte 1678 Ele está inserido no texto do Trophaeum um pouco antes do final A essência do Trophaeum propriamente dito é constituída por dois escritos a já mencionada carta de recomendação do padre Leopold Braun de Pottenbrunn de 1º de setembro de 1677 e o relato do abade Francisco de Mariazell e S Lambert que descreve a cura miraculosa de 12 de setembro de 1677 portanto datada de apenas poucos dias depois A atividade do redator ou compilador P A E forneceu uma introdução que por assim dizer funde os dois documentos e além disso acrescenta alguns elementos de ligação de menor importância e ao final um relatório sobre as vicissitudes posteriores do pintor de acordo com uma informação recuperada em 171433 Portanto a história prévia do pintor é contada três vezes no Trophaeum 1 na carta de recomendação do pároco de Pottenbrunn 2 no solene relato do abade Francisco e 3 na Introdução do redator Comparando essas três fontes surgem algumas incongruências que não será irrelevante acompanhar Agora posso continuar a história do pintor Depois de ter passado um longo período de penitência e oração em Mariazell no dia 8 de setembro dia do nascimento de Maria por volta da décima segunda hora da noite o Diabo que apareceu na Capela Santa na figura de um dragão alado devolveulhe o contrato escrito com sangue Ficamos sabendo mais tarde para o nosso assombro que na história do pintor Christoph Haitzmann houve dois pactos com o Diabo um anterior escrito com tinta preta e um posterior escrito com sangue Então na mencionada cena do exorcismo tratase como também se pode verificar na página de rosto do pacto escrito com sangue portanto do posterior Nesse ponto poderia surgir em nós uma hesitação quanto à credibilidade dos religiosos relatores advertindonos para não desperdiçarmos nosso trabalho em um produto da superstição de monges É relatado que muitos sacerdotes mencionados pelo nome prestaram assistência ao exorcizado o tempo todo e que também estiveram presentes durante a aparição do Diabo na capela Se fosse afirmado que eles também viram quando o Dragão Demoníaco entregou ao pintor o documento escrito em vermelho Schedam sibi porrigentem conspexisset então estaríamos diante de várias possibilidades desagradáveis dentre as quais a de uma alucinação coletiva seria a mais branda Mas o teor do testemunho exposto pelo abade Francisco dissipa essa dúvida Nesse testemunho de forma alguma é afirmado que os religiosos presentes também viram o Diabo mas de maneira sincera e sóbria que o pintor subitamente se soltou dos religiosos que o seguravam precipitouse para o canto da capela onde viu a aparição e depois retornou com o documento na mão34 O milagre foi grande a vitória da Santa Mãe sobre Satã indubitável mas a cura infelizmente não durou Que seja mais uma vez destacada a dignidade dos religiosos por não terem ocultado esse fato Algum tempo depois o pintor deixou Mariazell no melhor estado de saúde e seguiu para Viena onde se hospedou na casa de uma irmã casada Lá em 11 de outubro começaram novamente os ataques em parte muito graves sobre os quais o diário relata até 13 de janeiro Ele tinha visões e ausências nas quais experimentava todo tipo de coisas estados convulsivos acompanhados de sensações as mais dolorosas e uma vez paralisia das pernas e assim por diante Dessa vez entretanto não era o Diabo que o atormentava mas figuras sagradas que o visitavam Cristo e a própria Virgem Maria É curioso que ele não tenha sofrido menos com essas aparições celestiais e com os castigos que eles lhe infligiam do que antes quando ainda no comércio com o Diabo No diário ele também reuniu essas novas experiências como aparições do Diabo e em maio de 1678 quando voltou para Mariazell queixouse de maligni Spiritus manifestationes manifestações do Espírito Maligno Aos senhores padres ele indicou como motivo de seu regresso que ele ainda tinha de exigir do Diabo um pacto anterior escrito com tinta35 Também dessa vez a Virgem Maria e os piedosos religiosos o ajudaram a realizar o seu pedido Mas o relatório nada diz sobre como isso aconteceu Apenas indica em poucas palavras qua iuxta votum reddita quando este lhe foi devolvido conforme sua prece Ele orou novamente e conseguiu o contrato de volta Então sentiuse inteiramente livre e ingressou na Ordem dos Irmãos de Misericórdia Novamente temos motivo para reconhecer que a evidente intenção que guia o seu esforço não induziu o compilador a recusar verleugnen a veracidade exigida em um caso clínico Pois ele não oculta a informação sobre a saída do pintor apresentada pelo superior do Convento dos Irmãos de Misericórdia em 1714 O reverendo Pater Provincialis relata que o irmão Cristótomo sofreu ainda repetidas tentações do Espírito Maligno que queria seduzilo a assinar um novo pacto mas na verdade apenas quando tinha bebido um pouco a mais de vinho e que no entanto pela graça de Deus sempre havia sido possível afastálo O irmão Cristótomo morreu então suavemente e confortado de hética Hektica4 no Convento da Ordem de Neustatt junto ao rio Moldava no ano 1700 II O MOTIVO DO PACTO COM O DIABO Se encaramos esse pacto com o Diabo como história clínica de uma neurose nosso interesse se volta primeiramente à questão de sua motivação que por certo está estreitamente ligada à sua causação Por que se faz um pacto com o Diabo Na verdade o Dr Fausto pergunta com desdém O que você tem para dar pobre Diabo Mas ele está errado em troca de uma alma imortal o Diabo tem muitas coisas a oferecer que são muito valorizadas pelos seres humanos riqueza segurança contra o perigo poder sobre os homens e sobre as forças da natureza até mesmo artes mágicas e acima de tudo fruição Genuss de belas mulheres E essas realizações ou obrigações do Diabo também devem ser mencionadas especificamente no contrato com ele36 Então qual foi para Christoph Haiztmann o motivo do seu pacto Curiosamente nenhum desses desejos tão naturais Para afastar qualquer dúvida a esse respeito precisamos apenas conferir as breves observações que o pintor acrescenta às suas ilustrações das aparições do Diabo Por exemplo a nota sobre a terceira visão Pela terceira vez em um ano e meio ele me apareceu nessa forma abominável com um livro na mão repleto de feitiçaria e magia negra37 Mas ficamos sabendo pela legenda colocada em uma aparição posterior que o Diabo lhe faz violentas censuras porque ele queimou seu livro anteriormente mencionado38 e ameaçou despedaçálo se não lhe devolvesse Na quarta aparição ele lhe mostra um grande saco amarelo e um grande ducado e promete que em qualquer ocasião lhe daria tantos iguais a esse quanto ele quisesse mas não aceitei nada dessa espécie39 pôde gabarse o pintor Numa outra vez exigiu que ele se divertisse que conversasse com alguém Ao que o pintor observa o que por certo ocorreu segundo o seu desejo mas depois de três dias eu não continuei e logo fui novamente liberado40 Já que ele então rejeita as artes mágicas dinheiro e fruição Genuss quando o Diabo os oferece a ele mais ainda que ele os torne condições do pacto precisamos saber urgentemente o que esse pintor realmente queria do Diabo quando fez o pacto com ele Algum motivo para se envolver com o Diabo ele deve ter tido O Trophaeum também fornece informação segura sobre esse ponto Ele estava abatido não podia ou não queria trabalhar direito e se preocupava com o sustento de sua existência portanto sofria de depressão melancólica com inibição para trabalhar e tinha justificada preocupação com a vida Vemos que estamos lidando realmente com um caso clínico e também ficamos sabendo o que ocasionou esse adoecimento que o próprio pintor em suas notas às imagens do Diabo chama exatamente de melancolia devia me alegrar e afugentar a melancolia De nossas três fontes a primeira a carta de recomendação do pároco menciona na verdade apenas o estado depressivo dum artis suae progressum emolumentumque secuturum pusillanimis perpenderet41 mas a segunda o relato do abade Francisco menciona também a fonte desse desânimo ou desgosto pois afirma accepta aliqua pusillanimitate ex morte parentis42 e correspondentemente também lemos na Introdução do compilador essas mesmas palavras apenas em ordem diferente ex morte parentis accepta aliqua pusillanimitate Então seu pai havia morrido e como consequência ele entrava em melancolia daí o Diabo se aproximou dele e lhe perguntou por que ele estava tão abatido e triste e lhe prometeu ajudálo de todas as maneiras e oferecerlhe a mão43 Eis aqui portanto alguém que assina um pacto com o Diabo para se livrar de uma depressão afetiva Gemütsdepression Certamente um motivo excelente no julgamento daquele que puder sentir os tormentos de um estado como esse e que saiba quão pouco a arte médica entende sobre como mitigar esse sofrimento Entretanto ninguém que tenha acompanhado esse relato até aqui iria poder intuir como estava redigido o teor do pacto com o Diabo ou melhor de ambos os pactos um primeiro escrito com tinta e um segundo cerca de um ano mais tarde com sangue e ambos supostamente ainda disponíveis na câmara do tesouro de Mariazell e transcritos no Trophaeum portanto com que teor estavam redigidos esses pactos Esses dois pactos nos trazem duas grandes surpresas Primeiro eles não mencionam uma obrigação do Diabo em troca de cuja observância é penhorada a felicidade eterna mas apenas uma exigência do Diabo que o pintor deve cumprir Parecenos inteiramente ilógico absurdo que esse homem não troque sua alma por algo que ele vá receber do Diabo mas por algo que ele deve fazer para ele Mais estranha ainda soa a obrigação do pintor O primeiro Syngrapha escrito com tinta preta diz o seguinte Eu Christoph Haizmann subscrevome a esse Senhor como seu filhoservo leibeigener por nove anos Ano de 1669 O segundo escrito com sangue dizia Ano de 1669 Christoph Haizmann Eu me comprometo com esse Satã a ser seu filhoservo e no nono ano a lhe pertencer de corpo e alma Mas todo o espanto se dissipa se arrumarmos o texto dos pactos de tal maneira que o que neles figura como exigência do Diabo seja muito mais um serviço prestado por ele portanto exigência do pintor Então esse pacto incompreensível receberia um sentido correto e poderia ser explicado da seguinte maneira o Diabo se obriga a substituir por nove anos o pai perdido do pintor Passado esse tempo o pintor se entrega de corpo e alma ao Diabo tal como era o costume usual em barganhas como essas O curso do pensamento do pintor que motivou o seu pacto parece ser o seguinte com a morte do pai ele perdeu o ânimo e a capacidade de trabalhar se agora ele consegue um substituto do pai ele tem esperança de recuperar o que perdeu A pessoa que se tornou melancólica com a morte de seu pai deve ter amado muito esse pai Entretanto é muito estranho que alguém possa chegar à ideia de tomar o Diabo como substituto do pai querido III O DIABO COMO SUBSTITUTO DO PAI Temo que uma crítica sóbria não irá admitir que nós com essa reinterpretação tenhamos estabelecido definitivamente o sentido do pacto com o Diabo Ela irá levantar dois tipos de objeção primeiro que não teria sido necessário considerar o pacto como um contrato no qual constassem as obrigações de ambas as partes Na verdade ele só continha a obrigação do pintor e a do Diabo teria ficado fora do texto sousentendue subentendida por assim dizer No entanto o pintor se compromete com duas coisas primeiro ser o filho do Diabo por nove anos e segundo pertencer a ele inteiramente após a morte Com isso está afastada uma das justificativas da nossa conclusão A segunda objeção dirá que não é justo atribuir importância especial à expressão ser filho carnal do Diabo leibeigener Sohn Porque isso seria uma expressão comum que qualquer um poderia entender da maneira como os senhores padres devem têla entendido Estes não traduzem para o latim a filiação prometida nos pactos mas apenas dizem que o pintor se mancipavit ao Maligno entregouse a ele como servo aceitou levar uma vida pecaminosa e recusou verleugnen a existência de Deus e da Santíssima Trindade Por que deveríamos nos afastar dessa concepção evidente e espontânea44 O estado de coisas seria então simplesmente o de alguém que no tormento e desamparo de uma depressão melancólica faz um pacto com o Diabo em cujo grande poder terapêutico também confia Não se considerou que esse desânimo foi ocasionado pela morte do pai pois poderia ter sido por outro motivo Isso se mostra forte e razoável Contra a Psicanálise torna a se levantar a recriminação de que ela sofisticamente complica situações simples de que vê mistérios e problemas onde não existem e de que ela realiza tudo isso enfatizando sobremaneira detalhes pequenos e de menor importância que podem ser encontrados em qualquer lugar e os eleva como portadores das mais vastas e estranhas conclusões Em vão argumentaríamos que com essa rejeição estão suspensas tantas analogias significativas e rompidas tantas conexões sutis que podemos mostrar nesse caso Os opositores dirão que essas analogias e conexões justamente não existem mas que as introduzimos no caso com demasiada perspicácia Pois bem não iniciarei minha réplica com as palavras sejamos honestos ou sejamos sinceros porque sempre devemos poder sêlo sem termos de tomar impulso para isso mas direi com palavras simples que sei muito bem que se alguém já não acreditar na justificação Berechtigung do modo psicanalítico de pensar ele também não obterá essa convicção sobre o caso do pintor Christoph Haizmann do século XVII Também não é minha intenção utilizar esse caso como meio para provar a legitimidade Gültigkeit da Psicanálise ao contrário eu pressuponho a Psicanálise como legítima e a utilizo para esclarecer o adoecimento demonológico do pintor A justificação para isso eu tomo do êxito de nossas investigações sobre a natureza das neuroses em geral Com toda a modéstia podemos sustentar que hoje até os mais obtusos entre os nossos contemporâneos e colegas começam a entender que sem a ajuda da Psicanálise não é possível chegar a uma compreensão dos estados neuróticos Só estas flechas conquistarão Tróia só elas confessa Odisseu no Filocteto de Sófocles Se é correto considerar o pacto de nosso pintor com o Diabo uma fantasia neurótica então uma apreciação psicanalítica desse pacto não requer justificativa Até os pequenos indícios possuem seu sentido e valor mais especialmente entre as condições de origem da neurose Não há dúvida de que é tão possível superestimálos quanto subestimálos e permanece sendo uma questão de tato até onde se quer ir com a sua utilização Entretanto se alguém não acredita na Psicanálise nem no Diabo é preciso deixar que decida o que quer fazer com o caso do pintor seja usando seus próprios meios para contestar a explicação seja não encontrando nele nada que exija explicação Retomemos à nossa suposição de que o Diabo com o qual nosso pintor fez o pacto é para ele um substituto direto do pai Isso é confirmado pela figura Gestalt na qual ele lhe aparece pela primeira vez a de um honesto cidadão idoso de barba castanha com casaco vermelho chapéu preto a mão direita apoiada em uma bengala e um cão preto ao lado Figura 145 Posteriormente sua aparição se torna cada vez mais assustadora quer dizer mais mitológica chifres garras de águia asas de morcego são utilizados em sua apresentação Ausstattung Por último ele aparece na capela como dragão voador Vamos precisar retornar mais adiante a um detalhe específico de sua forma corporal Que o Diabo seja escolhido como substituto do pai querido soa realmente estranho mas apenas quando ouvimos isso pela primeira vez pois sabemos de muitas coisas que podem diminuir essa surpresa Em primeiro lugar que Deus é um substituto do pai ou mais corretamente para o indivíduo em sua própria infância é um pai enaltecido ou dito de outro modo uma cópia do pai tal como ele foi visto e experimentado na infância sendo o pai da horda primitiva para a humanidade em sua préhistória Mais tarde o indivíduo viu seu pai diferentemente e menor mas a imagem representacional infantil permaneceu conservada e se fundiu com o vestígio de memória transmitido pelo pai primitivo para formar no indivíduo a representação de Deus Também sabemos da história secreta do indivíduo revelada pela análise que a relação com esse pai talvez tenha sido ambivalente desde o início ou de certo modo logo veio a ser assim isto é ela continha duas moções de sentimentos mutuamente opostas não apenas uma ternamente submissa mas também uma de desafiadora hostilidade Segundo a nossa concepção a mesma ambivalência domina a relação da espécie humana com a sua divindade A partir do conflito não resolvido entre a saudade Sehnsucht do pai de um lado e o medo Angst e o desafio do filho de outro conseguimos esclarecer importantes características e destinos decisivos das religiões46 Sobre o Demônio Maligno sabemos que ele é pensado como a contraparte de Deus e contudo está muito próximo de sua natureza No entanto sua história não foi tão bem investigada como a de Deus nem todas as religiões adotaram o Espírito Maligno o adversário de Deus e seu modelo na vida individual permanece obscuro até o presente Mas uma coisa é certa deuses podem tornar se demônios malignos quando novos deuses os suplantam verdrängen5 Quando um povo é derrotado por outro não é raro que os deuses destronados dos vencidos se transformem em demônios para o povo vencedor O Demônio Maligno da crença cristã o Diabo da Idade Média foi de acordo com a própria mitologia cristã um anjo caído e de natureza divina Não é preciso muita perspicácia analítica para intuir que Deus e Diabo eram idênticos originariamente uma figura Gestalt única que mais tarde foi dividida em duas com características opostas47 Nas épocas primordiais das religiões o próprio Deus trazia todos os traços assustadores que na sequência reuniramse em uma contraparte dele Tratase do processo bem conhecido por nós da divisão de uma representação com conteúdo antitético ambivalente em dois opostos nitidamente contrastantes Mas as contradições na natureza original de Deus são um reflexo da ambivalência que domina a relação do indivíduo com seu pai pessoal Se o Deus bom e justo é um substituto do pai então não devemos nos surpreender com o fato de que também a posição hostil que o odeia que o teme e dele reclama tenha encontrado expressão na criação de Satã Portanto o pai seria a imagem primordial individual tanto de Deus quanto do Diabo Mas as religiões permaneceriam sob o efeito inextinguível do fato de que o pai primevo era um ser ilimitadamente maligno menos semelhante a Deus do que ao Diabo Evidentemente não é tão fácil apontar vestígios dessa concepção satânica do pai na vida anímica do indivíduo Quando o menino desenha caretas e caricaturas talvez se consiga demonstrar que neles ele está zombando do pai e quando pessoas de ambos os sexos se assustam de noite com ladrões e intrusos então não há nenhuma dificuldade em reconhecer neles partes cindidas do pai Abspaltungen48 Os animais que aparecem nas fobias de animais das crianças também são em sua maioria um substituto do pai como o animal totêmico na época primordial Mas normalmente não se ouve falar tão claramente que o Diabo é uma cópia do pai e que pode servir como seu substituto como foi o caso do nosso pintor neurótico do século XVII Foi por isso que no início deste trabalho formulei a expectativa de que uma história clínica demonológica iria nos mostrar tal como metal puro o que nas neuroses de uma época posterior não mais supersticiosa mas que se tornou hipocondríaca precisa ser cuidadosamente extraído pelo trabalho analítico do minério das ocorrências de pensamento e dos sintomas49 Se penetrarmos mais profundamente na análise do adoecimento do nosso pintor provavelmente obteremos uma convicção mais forte Não é nada fora do comum que com a morte do pai um homem desenvolva uma depressão melancólica e uma inibição para trabalhar Concluímos que ele estava apegado a esse pai com um amor particularmente intenso e lembramos com que frequência a melancolia grave também se apresenta na forma neurótica do luto É certo que até aqui temos razão mas não se continuarmos concluindo que essa relação foi de puro amor Ao contrário um luto pela perda do pai está muito mais propenso a se transformar em melancolia quanto mais sua relação com ele tenha permanecido sob o signo da ambivalência A ênfase nessa ambivalência nos prepara para a possibilidade de rebaixamento do pai tal como ele encontrou expressão na neurose demoníaca do pintor Se acaso pudéssemos saber tanto sobre Christoph Haizmann quanto sobre um paciente que se submete à nossa análise seria fácil desenvolver essa ambivalência fazêlo lembrarse de quando e por quais motivos ele encontrou razão para temer seu pai e odiálo além de sobretudo descobrir os fatores acidentais que se acrescentaram aos motivos típicos do ódio ao pai que se enraízam inevitavelmente na relação natural filho pai Talvez então a inibição para trabalhar encontrasse um esclarecimento especial É provável que o pai tivesse se oposto ao desejo do filho de ser pintor essa incapacidade de exercer sua arte após a morte do pai seria então por um lado a expressão da conhecida obediência a posteriori nachträglichen e por outro ao tornar o filho incapaz de se sustentar ela forçosamente aumentaria seu anseio pelo pai como protetor contra as preocupações da vida Como obediência a posteriori essa incapacidade seria também expressão do remorso e uma bemsucedida autopunição Tendo em vista que não podemos empreender uma análise como essa com Christoph Haizmann morto em 1700 precisamos nos limitar a destacar os traços de sua história clínica que podem apontar para causas típicas de uma posição negativa em relação ao pai São apenas poucos não muito chamativos mas bem interessantes Em primeiro lugar o papel do número nove O pacto com o Maligno foi fechado em nove anos O relato certamente inquestionável do pastor de Pottenbrunn é claro nesse aspecto pro novem annis Syngraphen scriptam traditit estabeleceu com ele um pacto firmado por nove anos Essa carta de recomendação datada de 1º de setembro de 1677 também pode indicar que o prazo estaria expirando em poucos dias quorum et finis 24 mensis hujus futurus appropinquat50 Portanto o pacto tinha sido assinado em 24 de setembro de 166851 Nesse mesmo relato o número nove tem ainda outra utilização Nonies nove vezes disse o pintor ter resistido às tentações do Maligno antes de se entregar Esse detalhe não é mais mencionado nos relatos posteriores Post annos novem52 está escrito também na declaração do abade e ad novem annos53 repete o compilador em seu extrato prova de que esse número não foi considerado indiferente O número nove nos é bem conhecido através das fantasias neuróticas Ele é o número dos meses da gravidez e sempre que aparece guia nossa atenção para a fantasia de gravidez É claro que no caso do nosso pintor tratase de nove anos e não de nove meses e dizse que o nove também é um número significativo em outros aspectos Mas quem sabe se o nove não deve boa parte de sua sacralidade ao seu papel na gravidez e a alteração de nove meses para nove anos não deve nos confundir Pelo sonho sabemos como a atividade psíquica inconsciente vira os números com um salto Por exemplo se encontramos um cinco no sonho a cada vez ele deve ser referido a um importante cinco da vida de vigília mas o que na realidade foram cinco anos de diferença de idade ou um grupo de cinco pessoas aparece no sonho como cinco notas de dinheiro ou cinco frutas Isso quer dizer que o número é mantido mas seu denominador é trocado arbitrariamente segundo as exigências da condensação e do deslocamento Portanto nove anos no sonho podem facilmente corresponder a nove meses da realidade O trabalho do sonho joga ainda de outra maneira com os números da vida de vigília quando com soberana indiferença não se preocupa com os zeros não os trata como números Cinco dólares no sonho podem representar cinquenta quinhentos cinco mil dólares na realidade Outro detalhe nas relações do pintor com o Diabo remete igualmente à sexualidade Na primeira vez como já mencionado ele vê o Maligno na forma de um cidadão honrado Mas já na próxima vez ele está nu deformado e tem dois pares de seios femininos Os seios ora simples ora múltiplos não faltam em nenhuma das aparições subsequentes Apenas em uma delas o Diabo mostra além dos seios um longo pênis que termina em uma cobra Essa ênfase no caráter sexual feminino através de seios grandes e pendentes nunca se encontra uma indicação do genital feminino pode nos parecer uma notável contradição com a nossa suposição de que o Diabo significaria para o nosso pintor um substituto do pai E de fato essa maneira de representar o Diabo é em si e por si incomum Enquanto demônio é um conceito de espécie e aparecem portanto diabos em grande número não há nada de estranho em representar diabos femininos mas me parece que aquele Diabo que constitui uma grande individualidade o Senhor do Inferno o Adversário de Deus não pode ser figurado a não ser como masculino na verdade como supermasculino com chifres cauda e uma grande serpentepênis Pennisschlange A partir desses dois pequenos indícios podemos adivinhar qual é o fator típico que condiciona o aspecto negativo de sua relação com o pai Aquilo contra o que ele se rebela é a posição feminina em relação ao pai que culmina na fantasia de lhe parir um filho nove anos Conhecemos claramente essa resistência por nossas análises nas quais ela assume notáveis formas na transferência e nos dá muito o que fazer Com o luto pelo pai perdido com o aumento do anseio por ele também é reativada em nosso pintor a fantasia de gravidez há muito tempo recalcada contra a qual ele precisa se defender com a neurose e a degradação do pai Mas por que o pai rebaixado a Diabo carrega no corpo a marca da mulher Esse traço parece inicialmente ser difícil de interpretar mas logo surgem duas explicações para ele que concorrem entre si sem se excluírem mutuamente A posição feminina em relação ao pai sofreu recalcamento assim que o rapaz compreendeu que a competição com a mulher pelo amor do pai tem como condição a renúncia ao próprio genital masculino portanto a castração A recusa Ablehnung da posição feminina é portanto a consequência da revolta contra a castração e em geral ela encontra sua expressão mais intensa na fantasia inversa a de castrar o próprio pai de transformálo em mulher Os seios do Diabo corresponderiam portanto a uma projeção da própria feminilidade sobre o substituto do pai A outra explicação para essa figuração no corpo do Diabo não tem mais sentido hostil mas afetuoso ela vê nessa forma um indício de que a ternura infantil foi deslocada da mãe para o pai e assim aponta para uma intensa fixação anterior na mãe que por sua vez é novamente responsável por uma parte da hostilidade contra o pai Os seios grandes são signos sexuais positivos da mãe mesmo numa época em que o caráter negativo da mulher a falta de pênis ainda não é conhecido pela criança54 Se a resistência Widerstreben em aceitar a castração impossibilita ao nosso pintor resolver seu anseio pelo pai é perfeitamente compreensível que ele se volte para a imagem da mãe em busca de ajuda e salvação É por isso que ele explica caber somente à Santa Mãe de Deus de Mariazell poder livrálo do pacto com o Diabo e recuperar sua liberdade no dia do aniversário da mãe 8 de setembro É claro que nunca saberemos se o dia em que o pacto foi selado 24 de setembro também não foi determinado de maneira semelhante Nenhum outro elemento entre as constatações psicanalíticas sobre a vida anímica da criança soa tão chocante e inacreditável ao adulto normal quanto a posição feminina em relação ao pai e sua consequente fantasia de gravidez do menino Só pudemos falar sobre ela sem preocupação e sem necessidade de desculpas depois que o presidente do Senado da Saxônia Daniel Paul Schreber tornou conhecida a história de seu adoecimento psicótico e de seu amplo restabelecimento55 Através dessa inestimável publicação sabemos que o senhor presidente do Senado por volta da idade de 50 anos de vida ficou firmemente convencido de que Deus que aliás possuía nítidos traços de seu pai o digno médico Dr Schreber tomou a decisão de emasculálo usálo como mulher e fazer nascer dele novos humanos de espírito schreberiano ele próprio não tinha filhos em seu casamento Na revolta contra essa intenção de Deus que lhe parecia altamente injusta e contrária à ordem do mundo adoeceu com sintomas semelhantes a uma paranoia que retrocedeu com o passar dos anos até tornarse um mínimo resíduo O inteligente autor de sua própria história clínica não podia ter adivinhado que nela ele tinha descoberto um típico fator patogênico Essa revolta contra a castração ou contra a posição feminina foi tirada de seu contexto orgânico por Alfred Adler ela foi ligada superficial ou falsamente ao anseio de poder e apresentada como algo independente sob o nome de protesto masculino Como uma neurose sempre só pode resultar do conflito de duas aspirações é igualmente justificável ver no protesto masculino bem como na posição feminina a causa de todas as neuroses contra as quais se protesta O que é certo é que esse protesto masculino desempenha um papel regular na formação do caráter em certos tipos um papel muito grande e que o encontramos como resistência vigorosa na análise de homens neuróticos A Psicanálise considera o protesto masculino em conexão com o complexo de castração sem poder defender sua onipotência ou onipresença nas neuroses O caso mais acentuado de protesto masculino com todas as reações manifestas e traços de caráter veio ao meu tratamento demandouo devido a uma neurose obsessiva com ideias obsedantes nas quais o conflito não resolvido entre a posição masculina e a feminina angústia Angst de castração e prazer de castração encontrava plena expressão Além disso o paciente tinha desenvolvido fantasias masoquistas derivadas inteiramente do desejo de aceitar a castração e avançou mesmo a partir dessas fantasias até a satisfação real em situações perversas Seu caso se baseava inteiramente como na própria teoria de Adler no recalcamento na recusa Verleugnung de fixações amorosas da primeira infância O Senatspräsident6 Schreber encontrou sua cura quando decidiu abandonar a resistência contra a castração e acomodarse no papel feminino que Deus lhe destinara Tornouse então lúcido e calmo conseguiu providenciar sua própria alta do sanatório e levou uma vida normal salvo em um ponto o de dedicar algumas horas do dia ao cultivo de sua feminilidade de cujos lentos progressos até chegar à meta determinada por Deus permaneceu convencido IV OS DOIS PACTOS Um detalhe curioso na história de nosso pintor é o dado de que ele selou dois pactos diferentes com o Diabo O primeiro escrito com tinta preta dizia Eu Christoph Haizmann subscrevome a esse Senhor como seu filhoservo por nove anos O segundo escrito com sangue dizia Chr H Eu me comprometo com esse Satã a ser seu filhoservo e no nono ano a lhe pertencer de corpo e alma O original de ambos deve ter estado no arquivo de Mariazell na época em que o Trophaeum foi redigido e ambos estão datados com o mesmo ano 1669 Já mencionei os dois pactos mais de uma vez e agora me proponho a me ocupar com eles mais a fundo embora seja exatamente aqui que o perigo de supervalorizar detalhes insignificantes parece especialmente ameaçador É incomum o fato de alguém assinar duas vezes um pacto com o Diabo de modo que o primeiro escrito seja substituído pelo segundo sem no entanto perder sua própria validade Talvez esse fato incomode menos as pessoas que estão mais familiarizadas com assuntos demonológicos Eu só podia ver aí uma peculiaridade especial do nosso caso e fiquei desconfiado quando percebi que nesse ponto os relatórios não concordavam Rastrear essas contradições nos conduzirá de maneira inesperada a uma compreensão mais profunda da história clínica O escrito de recomendação do pastor de Pottenbrunn apresenta as circunstâncias mais simples e mais claras Nele só é mencionado um pacto que o pintor teria assinado com sangue nove anos antes e que expiaria nos próximos dias em 24 de setembro Logo ele teria sido assinado em 24 de setembro de 1668 infelizmente esse ano não é expressamente mencionado embora se possa inferilo com segurança O informe do abade Francisco como sabemos datado de poucos dias depois 12 de setembro de 1677 já descreve um estado de coisas mais complicado Podemos supor que o pintor nesse meiotempo teria trazido informações mais exatas Nesse informe é relatado que o pintor assinou dois pactos um no ano 1668 tal como consta na carta de recomendação escrito com tinta preta mas o outro sequenti anno 1669 no ano seguinte 1669 escrito com sangue O contrato que lhe foi devolvido no dia do Nascimento de Maria foi aquele escrito com sangue portanto o posterior assinado em 1669 Isso não saiu do informe do abade pois lá simplesmente consta schedam redderet devia devolverlhe o documento e schedam sibi porrigentem conspexisset viuo oferecendo o documento como se se tratasse apenas de um único escrito Mas isso se infere do curso posterior da história e também da página de rosto colorida do Trophaeum em que se pode ver claramente um escrito vermelho sobre a folha que o Dragão Demoníaco está segurando A continuação da história como já foi mencionado é que o pintor volta para Mariazell em maio de 1678 depois de ter experimentado em Viena outras tentações do Maligno e apresenta o pedido de que por um novo ato de graça da Santa Mãe também lhe fosse devolvido o primeiro documento escrito com tinta A maneira como isso aconteceu já não é mais descrita com tantos detalhes como na primeira vez Apenas consta qua iuxta votum reddita quando este foi devolvido de acordo com sua prece e em outra passagem o compilador relata que justamente esse pacto amassado e rasgado em quatro pedaços foi atirado pelo Diabo ao pintor em 9 de maio de 1678 na nona hora noturna Mas ambos os pactos levam a mesma data ano 1669 Ou essa contradição não significa nada ou ela leva à seguinte pista Se partirmos da exposição do abade por ser a mais detalhada encontramos várias dificuldades Quando Christoph Haizmann informou ao pároco de Pottenbrunn que estava em apuros com o Diabo e que o prazo expirava logo ele só pode ter pensado no pacto assinado em 1668 portanto no primeiro escrito em preto que no entanto é mencionado como único na carta de recomendação e especificado como sendo o escrito com sangue Poucos dias depois em Mariazell ele só está preocupado em recuperar o posterior o escrito com sangue que ainda não está para expirar 16691677 e deixa que o primeiro expire Só em 1678 ou seja no décimo ano ele solicita a devolução deste Além disso por que os dois pactos estão datados com o mesmo ano 1669 quando um deles é explicitamente atribuído ao anno subsequenti O compilador deve ter sentido essas dificuldades pois faz uma tentativa de eliminálas Em sua introdução ele retoma a exposição do abade mas a modifica em um ponto O pintor diz ele no ano 1669 teria assinado com o Diabo um pacto com tinta deinde vero e mais tarde com sangue Ele ignora portanto a indicação expressa nos dois relatórios de que um pacto foi assinado no ano 1668 e negligencia a observação no informe do abade de que o número do ano mudou entre os dois pactos para ficar em harmonia com a datação de ambos os escritos devolvidos pelo Diabo No informe do abade encontrase depois das palavras sequenti vero anno 1669 uma passagem entre parênteses que diz sumitur hic alter annus pro nondum completo uti saepe in loquendo fieri solet nam eundum annum indicant Syngraphae quarum atramento scripta ante praesentem attestationem nondum habita fuit56 Essa passagem é sem dúvida uma inserção do compilador pois é claro que o abade que só viu um pacto não pode afirmar que ambos possuem a mesma data Além disso ela também foi colocada entre parênteses para que fique claro se tratar de um apêndice ao documento O que ela contém é outra tentativa do compilador de conciliar as contradições existentes Ele quer dizer que na verdade estava correto que o primeiro pacto tivesse sido assinado no ano 1668 mas como o ano já estava avançado setembro o pintor teria indicado o ano seguinte para que os dois pactos pudessem apresentar o mesmo ano O argumento que utilizou de que isso se faz com frequência no registro oral torna toda essa tentativa de explicação um preguiçoso subterfúgio Não sei agora se a minha exposição causou alguma impressão no leitor e se ela o colocou em uma posição de se interessar por essas minúcias Eu achava impossível estabelecer o correto estado de coisas de maneira a não deixar dúvidas porém no estudo desse assunto confuso cheguei a uma suposição que tem a vantagem de introduzir o processo mais natural mesmo que os testemunhos escritos também não se ajustem inteiramente a ela Penso que quando o pintor veio pela primeira vez a Mariazell ele só falou de um pacto formal escrito com sangue que logo devia expirar e que portanto tinha sido assinado em 1668 tudo exatamente conforme relatado na carta de recomendação do pároco Em Mariazell ele também apresentou esse pacto escrito com sangue como sendo aquele que lhe tinha sido devolvido pelo Demônio sob a pressão da Santa Mãe Sabemos o que acontece depois Logo em seguida o pintor deixou o santuário e foi para Viena onde se sentiu livre até meados de outubro Mas então começaram novamente os sofrimentos e as aparições nos quais ele via a obra do Espírito Maligno Ele se sentia novamente necessitado de redenção porém encontrouse diante da dificuldade de esclarecer por que o exorcismo na Santa Capela não lhe havia trazido nenhuma redenção duradoura Como reincidente não curado certamente não teria sido bem recebido em Mariazell Nesse desespero inventou um pacto anterior um primeiro que contudo precisava ter sido escrito com tinta para que sua anulação em relação a um posterior escrito com sangue pudesse parecer plausível Tendo voltado a Mariazell ele conseguiu que também esse suposto primeiro pacto lhe fosse devolvido Depois disso ficou em paz com o Maligno mas fez ao mesmo tempo outra coisa que nos levará ao pano de fundo dessa neurose É certo que os desenhos só foram feitos em sua segunda estadia em Mariazell a página de rosto que é uma composição única contém a figuração das duas cenas dos pactos com o Diabo A tentativa de harmonizar suas novas declarações com as anteriores lhe deve ter causado embaraços Para ele era desfavorável inventar apenas um pacto anterior e não um posterior Por isso ele não pôde evitar o resultado desastroso de ter se libertado muito cedo do pacto escrito com sangue no oitavo ano e muito tarde do outro escrito com tinta preta no décimo ano Como indício traidor de sua dupla redação aconteceu de ele se confundir na datação dos pactos e de colocar também no primeiro o ano 1669 Esse erro tem o significado de uma sinceridade involuntária ele nos deixa intuir que o suposto primeiro pacto foi estabelecido em data posterior O compilador que certamente não assumiu o material antes de 1714 talvez só em 1729 precisou esforçarsecomo pôde para remover as contradições não essenciais Tendo em vista que ambos os pactos datavam de 1669 recorreu ao subterfúgio que intercalou no informe do abade É fácil perceber onde se encontra a fraqueza dessa construção sedutora em outros aspectos A menção de dois pactos um em tinta preta e outro em vermelho já se encontra no informe do abade Francisco Tenho portanto a opção de ou atribuir ao compilador que ele nesse informe em estreita conexão com a sua intercalação também tenha alterado alguma coisa ou admitir que não consigo resolver a confusão57 Há tempos que toda essa discussão terá parecido superficial aos leitores e irrelevantes os detalhes a ela relacionados Mas o assunto ganha um novo interesse se o levarmos em outra direção Acabei de dizer que o pintor desagradavelmente surpreendido pelo curso de sua doença inventou um pacto anterior o redigido com tinta para poder afirmar sua posição junto aos religiosos Agora escrevo para leitores que certamente acreditam na Psicanálise mas não no Diabo e estes poderiam objetar que seria absurda uma recriminação desse tipo ao pobre infeliz do pintor hunc miserum tal como é chamado na carta de recomendação pois o pacto escrito com sangue foi tão fantasioso quanto o suposto anterior escrito com tinta e que na verdade nunca lhe apareceu Diabo algum e todo esse pacto com o Diabo só existiu em sua fantasia Eu reconheço isso perfeitamente não se pode negar ao pobre homem o direito de completar sua fantasia original com uma nova quando as novas circunstâncias parecem exigilo Contudo aqui também há uma continuação Ambos os pactos não são fantasias como as visões são documentos que segundo a garantia do copista e o informe posterior do abade Kilian estão preservados no arquivo de Mariazell para todos os que desejarem vêlos e tocálos Estamos portanto diante de um dilema Ou supomos que o pintor escreveu ele próprio os dois documentos que supostamente foramlhe devolvidos pela Graça Divina na ocasião em que precisava deles ou temos de recusar credibilidade aos religiosos de Mariazell e S Lambert apesar de todas as solenes garantias confirmações com testemunhos e seladas etc Confesso que suspeitar dos religiosos não me seria fácil Mas estou inclinado a supor que o compilador interessado na coerência tenha falsificado alguma coisa no informe do primeiro abade mas essa elaboração secundária não vai muito além das operações semelhantes realizadas por historiadores modernos e laicos e em todo caso foi feita de boafé Sob outro aspecto os senhores padres conquistaram o justo direito de nossa confiança Já disse que nada os teria impedido de suprimir unterdrücken os relatos sobre a parcialidade da cura e sobre a continuidade das tentações e mesmo a descrição do exorcismo na Capela que se poderia ter considerado com alguma apreensão é sóbria e digna de crédito Portanto não resta outra alternativa a não ser culpar o pintor Não há dúvida de que ele estava com o pacto vermelho quando se voltou à prece penitencial na Capela e então o agarrou quando depois de seu encontro com o Demônio voltou aos seus assistentes espirituais Nem precisa ter sido o mesmo documento que posteriormente foi preservado no arquivo mas de acordo com a nossa construção ele pode ter inserido o ano 1668 nove anos antes do exorcismo V O CURSO POSTERIOR DA NEUROSE Mas então isso seria uma fraude e não uma neurose o pintor um simulador e falsário e não um doente possuído Ora as passagens entre neurose e simulação são como se sabe fluidas Eu também não encontro nenhuma dificuldade em supor que o pintor escreveu esse documento da mesma forma que os posteriores em um estado particular equiparável ao de suas visões e que o tenha levado consigo Se ele quis realizar a fantasia do pacto com o Diabo e a da redenção ele não podia absolutamente ter feito outra coisa Por outro lado o diário íntimo escrito em Viena que ele entregou aos religiosos em sua segunda estadia em Mariazell traz o selo da veracidade Não há dúvida de que ele nos permite observar profundamente a motivação melhor dizendo o uso da neurose Os apontamentos se estendem desde seu exorcismo bemsucedido até 157 de janeiro do ano seguinte 1678 Até 11 de outubro sentiuse muito bem em Viena onde se hospedou na casa de uma irmã casada depois começaram novamente as crises com visões e convulsões estados de inconsciência e sensações dolorosas que também o levaram a retornar para Mariazell em maio de 1678 A nova história de sofrimentos se divide em três fases Primeiro a tentação se anuncia na figura de um cavalheiro bemvestido que quer convencêlo a jogar fora o documento que atestava seu ingresso na Irmandade Sagrada do Santo Rosário Como ele resistiu a mesma visão se repetiu no dia seguinte mas dessa vez em um salão luxuosamente decorado no qual dançavam distintos senhores com formosas damas O mesmo cavalheiro que o tinha tentado uma vez fezlhe uma proposta58 referente à pintura e em troca prometeu lhe dar uma boa soma de dinheiro Depois que conseguiu fazer desaparecer essa visão com orações ela se repetiu alguns dias mais tarde de forma ainda mais insistente Desta vez o cavalheiro enviou até ele uma das mais belas senhoras que estavam sentadas à mesa de banquete para fazêlo tomála como companhia e muito lhe custou evitar a sedutora Porém o mais assustador foi a visão que se seguiu pouco depois de um salão ainda mais suntuoso no qual havia um trono de ouro maciço Cavalheiros se encontravam ao redor e aguardavam a chegada de seu rei A mesma pessoa que estava sempre lhe dando atenção foi em sua direção e o convidou a subir ao trono pois eles queriam têlo como rei e honrálo pela eternidade Com esse exagero de sua fantasia encerrase a primeira fase inteiramente transparente da história de sedução Produziuse agora um efeito contrário A reação ascética mostrou sua face Em 20 de outubro apareceulhe uma grande luz e dela uma voz que se deu a conhecer como Cristo e o convocou a renunciar a este mundo mau e a servir a Deus por seis anos em um deserto É evidente que o pintor sofria mais com essas aparições sagradas do que com as demoníacas anteriores Ele despertou dessa crise só depois de duas horas e meia Na visão seguinte a pessoa sagrada cercada de luz foi muito mais descortês ameaçouo por não ter aceitado a proposta divina e levouo até o inferno para que se assustasse com o destino dos condenados Tudo indica que não houve consequências pois as aparições da pessoa cercada de luz supostamente Cristo repetiramse outras vezes mais para o pintor e a cada vez com estados de ausência e de êxtase que duravam horas No mais notável desses êxtases a pessoa cercada de luz levouo primeiramente até uma cidade em cujas ruas as pessoas entregavamse a todos os atos sombrios e em seguida por oposição até uma bela campina na qual anacoretas levavam uma vida devotada a Deus e recebiam provas palpáveis da Graça e Providência Divina Logo apareceu em vez de Cristo a própria Santa Mãe que referindose ao auxílio que prestou anteriormente advertiuo a seguir o comando de seu filho amado Como ele não conseguia decidirse a isso Cristo tornou a voltar no dia seguinte e pressionouo fortemente com ameaças e promessas Finalmente ele cedeu decidiu sair deste mundo e fazer o que era exigido dele Com essa decisão termina a segunda fase O pintor constatou que a partir desse momento não houve mais nenhuma aparição nem tentação No entanto essa decisão não deve ter sido muito firme ou sua execução deve ter sido postergada por tempo demais pois em 26 de dezembro quando cumpria suas devoções na Catedral de Santo Estevão ao avistar uma honrada jovem acompanhada por um cavalheiro elegantemente trajado não consegue se livrar da ideia de que ele mesmo poderia estar em seu lugar Isso exigia castigo que o atingiu na mesma noite como um raio ele viuse envolto em chamas ardentes e caiu desmaiado Tentaram acordálo mas ele rolou pelo quarto até sangrar pela boca e pelo nariz sentiu que estava quente e fétido e ouviu uma voz dizer que esse estado lhe tinha sido enviado como castigo por seus pensamentos inúteis e ociosos Mais tarde foi açoitado com cordas por maus espíritos que lhe prometeram que todos os dias ele seria assim atormentado até que se decidisse por entrar para a Ordem dos Monges Essas experiências prosseguiram até onde chegam as anotações 13 de janeiro Vemos que em nosso pobre pintor as fantasias de tentação são resolvidas por fantasias de abstinência e por último por fantasias de castigo já conhecemos o final da história de sofrimentos Em maio ele dirigese a Mariazell expõe a história de um pacto anterior escrito com tinta ao qual ele explicitamente acrescenta que ainda pode ser atormentado pelo Diabo também consegue tal documento de volta e fica curado Durante essa segunda estadia ele pinta os quadros que estão copiados no Trophaeum mas depois também faz outra coisa que coincide com a exigência da fase de abstinência de seu diário Na verdade ele não vai ao deserto para se tornar um anacoreta mas entra para a Ordem dos Irmãos de Misericórdia religiosus factus est Na leitura do diário conseguimos entender uma nova peça da trama Lembramonos de que o pintor assinou o pacto com o Diabo porque depois da morte do pai e incapaz de trabalhar preocupavase em manter sua existência Esses fatores depressão Depression inibição para trabalhar e luto pelo pai estão de algum modo vinculados de maneira simples ou complicada Talvez as aparições do Diabo tenham sido tão fartamente dotadas de seios porque o Maligno deveria se tornar seu pai nutridor A esperança não se realizou ele continuou indo mal não conseguia trabalhar direito ou não tinha sorte e não encontrava trabalho suficiente A carta de recomendação do pastor o menciona como hunc miserum omni auxilio destitutum este homem mísero destituído de todo auxílio Portanto ele não se encontrava apenas em necessidades morais ele também passava por necessidade material No relato de suas visões posteriores encontramse anotações dispersas que como os conteúdos das cenas vistas mostram que nada se alterou mesmo depois do primeiro exorcismo bem sucedido Ficamos conhecendo um homem para quem nada dá certo e em quem por essa razão não se pode confiar Na primeira visão o cavalheiro lhe pergunta o que pensava em fazer já que ninguém poderia ajudálo já que todos me abandonaram o que eu pensava em fazer59 A primeira série de visões em Viena está em perfeita correspondência com as fantasias de desejo do pobre do ávido por fruição Genuss do destituído de tudo salões magníficos bemestar baixelas de prata e belas mulheres aqui é recuperado o que perdemos na relação com o Diabo Na época havia uma melancolia que o tornava incapaz de fruir e lhe ordenava renunciar às ofertas mais tentadoras Desde o exorcismo parece que a melancolia foi superada e todos os desejos do mundano apreciador da vida se animaram de novo Em uma das visões de abstinência ele se queixa contra a pessoa que o guia Cristo que ninguém quer acreditar nele de modo que por causa dele não pode executar o que lhe foi ordenado A resposta que recebe infelizmente permanece obscura para nós se não acreditam em mim mas é o que vai acontecer eu sei bem mas para mim mesmo é impossível pronunciar60 Entretanto é particularmente instrutivo o que seu Guia Divino o faz vivenciar entre os anacoretas Ele chega a uma caverna em que um homem velho está sentado já há 60 anos e em resposta a uma pergunta sua fica sabendo que esse velho é alimentado diariamente pelos anjos de Deus Então ele vê por si mesmo um anjo trazer comida ao velho Três pratos com comida um pão uma almôndega e bebida61 Depois que o monge comeu o anjo recolhe tudo e leva embora Compreendemos a tentação que as visões piedosas têm a oferecer elas querem movêlo a escolher uma forma de existência na qual as preocupações com a subsistência estão removidas Dignas de nota são também as falas de Cristo na primeira visão Depois da ameaça de que se ele não se submetesse iria acontecer algo que o obrigaria bem como o povo a ter de acreditar nisso8 ele adverte diretamente Não devo prestar atenção ao povo apesar de ter sido perseguido por ele ou de não ter recebido dele nenhuma ajuda Deus não me abandonaria62 Até então Christoph Haizmann tinha sido artista e mundano o suficiente para não lhe ser fácil abandonar este mundo pecaminoso Mas finalmente o faz em consideração à sua posição de desamparo Entrou para uma ordem religiosa com isso tanto sua luta interior como sua necessidade material chegaram ao fim Esse desfecho se reflete em sua neurose pelo fato de que a devolução de seu suposto primeiro pacto elimina suas crises e visões Afinal ambos os capítulos de seu adoecimento demonológico tinham tido o mesmo significado Ele sempre quis apenas assegurar sua existência na primeira vez com a ajuda do Diabo ao preço de sua salvação e quando esta não funcionou e precisou ser abandonada com a ajuda do clero ao preço de sua liberdade e da maioria das possibilidades de fruição da vida Talvez Christoph Haizmann tenha mesmo sido apenas um pobre diabo que justamente não teve sorte ou talvez não tenha sido suficientemente inteligente ou talentoso para prover seu próprio sustento e se contasse entre aqueles tipos que são conhecidos como eternos bebês que não conseguem se desprender da posição venturosa junto ao seio da mãe e que durante a vida inteira se aferram ao propósito de serem alimentados por algum outro E assim nessa história clínica ele percorreu o caminho partindo do pai passando pelo Diabo como substituto do pai até os padres piedosos Em uma observação superficial sua neurose parece uma bufonaria que encobre um fragmento da séria mas banal luta pela vida É claro que isso não acontece sempre dessa maneira mas também não é raro que ocorra Os analistas experimentam com frequência como é desvantajoso tratar um comerciante que apesar de normalmente ter saúde tem apresentado há algum tempo os sinais de uma neurose A catástrofe comercial pela qual o comerciante se sente ameaçado evoca essa neurose como efeito colateral que também lhe oferece a vantagem de poder esconder atrás dos sintomas da neurose suas reais preocupações com a vida Fora isso ela é extremamente inadequada pois utiliza forças que teriam tido um emprego mais vantajoso na resolução prudente da perigosa situação Em um número muito maior de casos a neurose é mais autônoma e independente dos interesses da conservação e afirmação da vida No conflito que engendra a neurose estão em jogo ou interesses apenas libidinais ou interesses libidinais em íntima conexão com os da conservação da vida O dinamismo da neurose em todos os três casos é o mesmo Um represamento libidinal que não encontra satisfação real consegue com ajuda da regressão a fixações antigas encontrar escoamento através do inconsciente recalcado Enquanto o Eu do doente puder extrair um ganho da doença nesse processo admite a neurose ainda que não haja dúvida quanto à sua nocividade em termos econômicos Tampouco a grave situação de vida do nosso pintor teria provocado nele uma neurose demoníaca se de sua necessidade não tivesse resultado uma intensa saudade do pai No entanto depois que a melancolia e o demônio foram recusados ele ainda teve de enfrentar a luta entre o prazer libidinal da vida e a percepção de que o interesse pela conservação da vida exigia imperiosamente renúncia e ascese É interessante como o pintor está bem ciente da uniformidade das duas partes de sua história de sofrimentos pois ele reconduz tanto uma quanto a outra a pactos com o diabo Por outro lado ele não distingue nitidamente entre as influências do Espírito Maligno e as dos Poderes Divinos pois tem uma única designação para ambas aparições do Diabo 30 A idade do pintor não é indicada em lugar algum O contexto sugere que se tratava de um homem de 30 a 40 anos provavelmente mais próximo do limite mais baixo Ele morreu como veremos em 1700 31 Apenas menciono de passagem a possibilidade de que esse questionamento tenha inspirado sugerido ao acometido pelo sofrimento a fantasia de seu pacto com o Diabo 32 Quorum et finis 24 mensis hujus futurus appropinquat 33 Isso parecia indicar que 1714 também é a data do esboço do Trophaeum 34 ipsunque Daemonem ad Aram Sac Cellae per fenestrellam in cornu Epistolas Schedam sibi porrigentem conspexisset eo advolans e Religiosorum minibus ipsam Schedam ad manum obtinuit viu o próprio demônio ao lado do sagrado altar de Zell através da janelinha no canto da epístola oferecendolhe o papel ele precipitouse para lá soltandose das mãos dos religiosos que o seguravam e apoderouse do mesmo papel 35 Este teria sido assinado em setembro de 1668 e em maio de 1678 nove anos e meio mais tarde já deveria ter vencido há muito tempo 36 Cf Fausto I Studierzimmer Parte I cena 4 Aqui eu quero me ligar ao teu serviço Ao teu sinal não descansarei nem dormirei Quando lá nos encontrarmos novamente Então você deverá fazer o mesmo por mim 37 Zum driten ist er mir in anderthalb Jahren in disser abscheühlichen Gestalt erscheien mit einen Buuch in der Hand darin lauter Zauberey und schwarze Kunst war begrüffen 38 sein vorgemeldtes Buuch verbrennt 39 aber ich solliches gar nicht angenomben 40 welliches zwar auch auf sein begehren geschehen aber ich yber drey Tag nit continuirt und gleich widerumb aussgelöst worden 41 quando estava se sentindo desanimado quanto ao progresso de sua arte e seus ganhos futuros 42 tendo sucumbido ao desânimo devido à morte de seu pai 43 O primeiro quadro da página de rosto e sua legenda representam o Diabo na forma de um homem honesto 44 De fato quando mais tarde viermos a considerar quando e para quem esses pactos foram redigidos nós mesmos iremos entender que o seu texto tinha de ser expresso em termos não chamativos e compreensíveis para todos Contudo para nós é suficiente que ele mantenha essa ambiguidade à qual nossa explicação também poderá se ligar 45 Em Goethe Fausto o próprio Diabo se desenvolve a partir de um cão preto como esse 46 Cf Totem e tabu e especialmente Th Reik Problemas da psicologia da religião Probleme der Religionspsychologie 47 Cf Theodor Reik O deus próprio e o alheio Der eigene und der fremde Gott ImagoBücher III 1923 no capítulo Deus e Diabo 48 O lobo pai também aparece como um ladrão intruso no conhecido conto de fadas Os sete cabritinhos 49 Como é tão raro conseguirmos encontrar o Diabo como substituto do pai em nossas análises isso pode estar indicando que para as pessoas que se submetem à nossa análise essa figura da mitologia da Idade Média há muito tempo perdeu seu papel Para o cristão piedoso dos séculos anteriores a crença no Diabo não era menos obrigatória do que a crença em Deus Na verdade ele precisava do Diabo para poder se aferrar em Deus Depois por diversas razões o retrocesso da fé afetou primeiro e sobretudo a pessoa do Diabo Se ousarmos utilizar a ideia do Diabo como substituto históricocultural do pai podemos também ver sob nova luz os processos de bruxaria da Idade Média 50 cujo término se aproxima aos 24 deste mês 51 Mais adiante iremos nos ocupar da contradição de que ambos os pactos transcritos apresentem o mesmo ano 1669 52 após nove anos 53 durante nove anos 54 Cf Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci Ges Werke v VIII 55 D P Schreber Memórias de um doente dos nervos Cf minha análise do Caso Schreber Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia Dementia paranoides Ges Werke v VIII 56 Aqui se toma o ano seguinte em lugar do que ainda não havia terminado como amiúde se faz em conversa pois o mesmo ano é indicado pelos dois pactos dos quais o escrito com tinta ainda não havia sido devolvido ao redigirse o atual depoimento 57 O compilador pareceme ficou apertado entre dois pontos Por um lado encontrou a indicação tanto na carta de recomendação do pastor quanto no informe do abade de que o pacto com o Diabo pelo menos o primeiro tinha sido assinado em 1668 e por outro ambos os pactos conservados no arquivo apresentavam o ano 1669 como tinha em sua frente dois pactos pareceulhe certo que os dois tinham sido assinados Se conforme acredito no informe do abade se falava de apenas um o compilador se viu forçado a introduzir nele a menção do outro e logo eliminar a contradição com a hipótese da datação do ano seguinte A alteração do texto feita por ele é imediatamente contígua à inserção que só pode ser atribuída a ele Ele foi obrigado a ligar a inserção e a modificação com as palavras sequenti vero anno 1669 mas no ano 1669 porque o pintor escreveu expressamente na legenda muito danificada do quadro na página de rosto Um ano depois Ele terríveis ameaças em figura nº 2 foi forçado a assinar um compromisso com sangue O deslize Verschreiben do pintor quando redigiu os Syngraphae deslize que me obrigou a uma tentativa de explicação não me parece menos interessante do que seus próprios pactos Verschreibungen 58 Uma passagem ininteligível para mim 59 dieweillen ich von iedermann izt verlassen wass anfangen würde 60 so fer man mir nit glauben wass aber geschechen waiss ich wol ist mir aber selbes auszuspröchen unmöglich 61 Drei Schüsserl mit Speiss ein Brot und ein Knödl und Getränk 62 Ich solle die Leith nit achten obwollen ich von ihnen verfolgt wurdte oder von ihnen keine hilfflaistung empfienge Gott würde mich nit verlassen Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert 1923 1923 Primeira publicação Imago t 9 n 1 p 134 1924 Gesammelte Schriften t X p 409445 1940 Gesammelte Werke t XIII p 317353 Este trabalho foi escrito no final de 1922 e publicado na revista Imago em janeiro de 1923 Em certa medida quanto ao procedimento guarda algumas semelhanças com o Caso Schreber na medida em que o próprio Freud concede a ele o estatuto de um caso clínico Krankheitsfall apesar de a análise basearse apenas no fragmento do diário do paciente Freud trabalhou sobre uma cópia do Manuscrito n 14086 da Biblioteca Nacional Austríaca o Trophaeum de Mariazell que relata um caso de possessão demoníaca e de redenção pela Virgem Maria O que interessa ao analista não é o texto em latim que conta o milagre de sua redenção mas o relato em alemão do próprio paciente Christoph Haitzmann um pintor bávaro que sofria de convulsões Podese especular que o aumento do obscurantismo no pósguerra tenha suscitado em Freud o desejo de oferecer explicações racionais acerca dos mecanismos psíquicos envolvidos em fenômenos supostamente sobrenaturais como a possessão ou a telepatia Aquilo que em períodos obscurantistas projetamos para o exterior a Psicanálise descobre na vida interior e em seus mecanismos subjacentes que podem ser explicados sem recorrer a instâncias supranaturais Nesse sentido este trabalho pode ser visto também na perspectiva do interesse freudiano pela experiência religiosa parcela mais significativa do inventário psíquico de uma cultura Acerca das circunstâncias com que travou conhecimento do material que embasa essa análise o próprio Freud narra a gênese logo no início de seu ensaio Agradeço ao gentil interesse do conselheiro Dr R PayerThurn diretor da antiga Fideikommissbibliotek Imperial de Viena por permitir que eu tomasse conhecimento de uma dessas neuroses demoníacas do século XVII PayerThurn havia descoberto na biblioteca um manuscrito proveniente do Santuário de Mariazell no qual é relatada detalhadamente uma miraculosa redenção de um pacto com o Diabo pela graça da Virgem Maria Seu interesse foi despertado pela ligação desse conteúdo com a lenda de Fausto e o levou a uma exaustiva descrição e elaboração do material Mas como ele achou que a pessoa cuja redenção será descrita sofria de crises convulsivas e visões dirigiuse a mim para um parecer médico do caso Não se pode esquecer que o Fausto de Goethe e a lenda que o inspira é a obra mais frequentemente citada por Freud em todo o conjunto de sua obra NOTAS 1 A palavra composta Teufelsneurose é formada pelo substantivo Neurose e seu qualificador Teufel diabodemônio Nem sempre é simples inferir como o qualificador se articula ao elemento final como é o caso de alguns usos desse recurso da língua alemã do qual Freud se serve por exemplo Wortvorstellung Todestrieb Wiederholungszwang Preferimos aqui usar o adjetivo demoníaca ainda que o leitor logo se dê conta de que em se tratando do caráter secular e laico dos textos de Freud a neurose envolve a figura ou representação do demônio NR 2 Particípio do verbo verwerfen associado em Freud à forma de negação típica da psicose Verwerfung NR 3 Cabe aqui esclarecer que o nome da localidade significa Cela de Maria em língua alemã NR 4 Antiga designação para tísica NR 5 Aqui vemos Freud utilizar o verbo verdrängen traduzido geralmente como recalcar em seus usos metapsicológicos numa acepção cotidiana daquilo que exerce uma força sobre algo afastandoa e tomando seu lugar desalojar suplantar NR 6 Cargo associado à magistratura que poderia ser vertido como juizpresidente NR 7 Apesar de a data assim constar nas Gesammelte Werke na edição que aqui nos serve de base há uma observação sabemos pela Standard Edition inglesa de James e Alix Strachey que na primeira edição do texto alemão a data constante era 13 de janeiro NR 8 A inserção em colchetes da palavra daran é de Freud NT O DECLÍNIO DO COMPLEXO DE ÉDIPO 1924 Cada vez mais o complexo de Édipo revela sua importância como fenômeno central do período sexual da primeira infância Depois ele declina sucumbe ao recalcamento como costumamos dizer e a ele se segue o período de latência Mas ainda não ficou claro como ele se desfaz as análises parecem demonstrar que isso ocorre devido a dolorosas decepções A menininha que quer se considerar a amada predileta do pai vai ter um dia de sofrer um severo castigo da parte dele e se ver lançada para fora do paraíso O menino que vê a mãe como sua propriedade passa pela experiência de vêla retirar seu amor e seus cuidados e dirigilos a um recémchegado Quando a reflexão enfatiza serem inevitáveis essas experiências dolorosas que contradizem o conteúdo do complexo ela reforça o valor dessas influências Mesmo não ocorrendo acontecimentos especiais como os mencionados a título de exemplo é preciso que a ausência da satisfação esperada e a continuada privação Versagung1 do filho desejado demovam o pequeno apaixonado de sua inclinação sem esperança Assim por seu fracasso como resultado de sua impossibilidade interna o complexo de Édipo seria dissolvido ginge so zugrunde Outra concepção dirá que o complexo de Édipo precisa cair porque chegou a hora de sua dissolução Auflösung assim como caem os dentes de leite quando os permanentes começam a empurrálos Ainda que o complexo de Édipo também seja vivenciado de maneira individual pela maioria dos humanos ele não deixa de ser um fenômeno determinado pela hereditariedade e por ela organizado que deve transcorrer de acordo com o programa quando começar a seguinte e predeterminada fase do desenvolvimento Então pouco importa saber por quais motivos isso acontece ou se eles não são de modo algum encontrados Não se pode negar razão a ambas as concepções Além disso elas são conciliáveis entre si há espaço para a ontogenética ao lado da filogenética mais abrangente Também o indivíduo como um todo já no nascimento está destinado a morrer e sua disposição orgânica talvez já contenha o indício de como irá morrer Portanto há interesse em acompanhar como esse programa inato é executado e de que maneira danos acidentais exploram a predisposição Nosso sentido foi ultimamente aguçado pela percepção de que o desenvolvimento sexual da criança avança até uma fase na qual o que é genital já assumiu o papel principal Mas esse genital é apenas o masculino mais precisamente o pênis o feminino permaneceu não descoberto Essa fase fálica simultânea à do complexo de Édipo não continua se desenvolvendo até a organização genital definitiva mas submerge versinkt e é dissolvida abgelöst2 pelo período de latência Seu desfecho porém consumase de maneira típica e apoiandose em acontecimentos sistematicamente recorrentes Quando a criança o menino voltou seu interesse ao genital é traída também pela reiterada manipulação deste e então precisa passar pela experiência de que os adultos não estão de acordo com essa ação Apresentase a ameaça mais ou menos clara mais ou menos brutal de que lhe será tirada essa parte por ela tão valorizada Geralmente é de mulheres que parte a ameaça de castração elas procuram com frequência reforçar sua autoridade referindose ao pai ou ao médico que para a sua garantia irá consumar o castigo Em um número de casos as próprias mulheres assumem um abrandamento simbólico da ameaça anunciando não a eliminação do genital a bem da verdade passivo des eigentlich passiven mas sim a da mão ativamente pecaminosa Com particular frequência acontece de o menininho não ser afetado pela ameaça de castração por brincar com a mão no pênis mas por molhar a cama todas as noites e não conseguir ficar limpo As pessoas que cuidam da criança comportamse como se essa incontinência noturna fosse a consequência e a prova da entusiasmada atividade com o pênis e provavelmente elas têm razão De qualquer forma molhar a cama por tempo prolongado que pode ser equiparado com a polução do adulto é uma expressão da mesma excitação genital que nessa época impeliu a criança à masturbação Agora afirmo que a organização genital fálica da criança perece por essa ameaça de castração Porém não imediatamente e não sem que outras influências se somem a isso Pois de início o menino não acredita na ameaça nem lhe obedece A Psicanálise revalorizou dois tipos de experiência dos quais nenhuma criança é poupada e através dos quais ela deve estar preparada para a perda de partes muito estimadas do corpo a retirada do seio materno de início temporariamente e depois definitivamente e a separação diariamente exigida do conteúdo do intestino Mas nada é percebido sobre essas experiências se efetivarem devido à ameaça de castração Só depois que foi feita uma nova experiência é que a criança começa a contar com a possibilidade de uma castração mas então ainda hesitante de má vontade e não sem o esforço para diminuir o alcance da própria observação A observação que finalmente rompe a sua descrença é a do genital feminino Em algum momento a criança orgulhosa de ser possuidora de um pênis defrontase com a região genital de uma menininha e tem de se convencer da falta de um pênis num ser tão semelhante a ela Assim a perda do próprio pênis se torna imaginável e a ameaça de castração obtém seu efeito a posteriori nachträglich Não podemos fazer vistas grossas como a pessoa cuidadora que ameaça com a castração nem devemos ignorar que de forma alguma a vida sexual da criança nessa época se esgota na masturbação Ela está comprovadamente na posição edípica em relação aos pais e a masturbação é apenas a descarga genital da excitação sexual relativa ao complexo e em todas as épocas posteriores irá dever sua importância a essa relação O complexo de Édipo ofereceu à criança duas possibilidades de satisfação uma ativa e uma passiva Ela poderia se colocar masculinamente no lugar do pai e como ele relacionarse com a mãe de forma que logo o pai seria sentido como um obstáculo ou substituir a mãe e ser amada pelo pai de maneira que a mãe se tornaria supérflua Sobre o que constitui essa satisfatória relação amorosa a criança deve ter apenas noções Vorstellungen imprecisas mas é certo que o pênis teve aí um papel pois as sensações no órgão o testemunham Ainda não houve ocasião para duvidar do pênis na mulher A aceitação da possibilidade de castração a compreensão de que a mulher é castrada poria fim às duas possibilidades de satisfação a partir do complexo de Édipo Ambas trariam consigo a perda do pênis a masculina como efeito da punição e a feminina como precondição Se a satisfação amorosa no terreno do complexo de Édipo deve custar o pênis então vai haver um conflito entre o interesse narcísico nessa parte do corpo e o investimento libidinal dos objetos parentais Nesse conflito vence normalmente a primeira força o Eu da criança se afasta do complexo de Édipo Expus em outro lugar a maneira como isso acontece Os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por identificação A autoridade parental ou paterna introduzida no Eu forma aí o núcleo do SuperEu que toma emprestado do pai sua severidade perpetua a sua proibição do incesto e assim assegura o Eu contra o retorno dos investimentos libidinais de objeto Os anseios libidinais pertencentes ao complexo de Édipo serão em parte dessexualizados e sublimados o que provavelmente ocorre em cada transformação em identificação e em parte inibidos quanto às metas zielgehemmt e transformados em moções de ternura O processo salvou por um lado o genital afastou dele o perigo de sua perda e por outro paralisouo suspendeu sua função Com ele se inicia o período de latência que agora interrompe o desenvolvimento sexual da criança Não vejo nenhuma razão para negar versagen o nome de recalcamento ao afastamento do Eu3 do complexo de Édipo embora recalcamentos posteriores em sua maioria acontecerão com a participação do SuperEu Über Ich que aqui está apenas sendo formado Mas o processo descrito é mais do que um recalcamento ele equivale se executado de maneira ideal a uma destruição e uma suspensão do complexo Podemos supor que aqui chegamos a uma linha fronteiriça nunca inteiramente nítida entre o normal e o patológico Se o Eu realmente não conseguiu muito mais do que um recalcamento do complexo então ele subsistirá inconsciente no Isso Es e manifestará posteriormente seu efeito patogênico A observação analítica permite reconhecer ou intuir essas correlações entre organização fálica complexo de Édipo ameaça de castração formação do SuperEu e período de latência Elas justificam a suposição de que o complexo de Édipo sucumbe à ameaça de castração Mas com isso o problema não está resolvido e há espaço para uma especulação teórica que pode mudar radicalmente o resultado obtido ou colocálo sob uma nova luz Antes de entrarmos por esse novo caminho precisamos nos voltar para uma pergunta que surgiu durante nossos esclarecimentos até aqui e que todo esse tempo foi deixada de lado O processo descrito referese tal como foi expressamente dito apenas ao menino Como se realiza o desenvolvimento correspondente na menininha Nesse caso o nosso material se torna incompreensivelmente muito mais obscuro e lacunar O sexo feminino também desenvolve um complexo de Édipo um SuperEu e um período de latência Podemos atribuirlhe também uma organização fálica e um complexo de castração A resposta é afirmativa isso não se dá como no menino A exigência feminista por igualdade entre os sexos não nos leva muito longe pois a diferença morfológica vai se expressar em distinções no desenvolvimento psíquico A anatomia é o destino parodiando a expressão de Napoleão4 O clitóris da menina se comporta de início exatamente como um pênis mas a criança percebe através da comparação com um coleguinha menino que ele ficou muito pequeno e sente esse fato como um prejuízo e como motivo de inferioridade Ela ainda se consola durante algum tempo com a expectativa de que mais tarde quando crescer ela receberá um apêndice tão grande quanto o do menino É nesse ponto então que se bifurca o complexo de masculinidade da mulher Porém a menininha não entende a sua falta atual como sendo de natureza sexual mas a explica com a suposição de que já possuiu um membro igualmente grande e que depois perdeu pela castração Ela parece não estender essa conclusão sobre si mesma a outras mulheres adultas mas atribui a elas exatamente no sentido da fase fálica um genital grande e completo portanto masculino Assim se produz a diferença essencial de que a menina aceita a castração como um fato consumado enquanto o menino teme pela possibilidade de sua consumação Com a exclusão da angústia da castração Kastrationsangst cai também um motivo poderoso para o estabelecimento do SuperEu e para a interrupção da organização genital infantil Essas alterações parecem ser muito mais do que no menino resultado da educação da intimidação do mundo externo que ameaçam com a perda do amor O complexo de Édipo da menina é muito mais inequívoco do que o do pequeno portador de pênis de acordo com a minha experiência só raramente ele vai além da substituição da mãe e da posição feminina em relação ao pai A renúncia ao pênis não é tolerada sem uma tentativa de compensação Ela desliza poderíamos dizer ao longo de uma equação simbólica do pênis para bebê seu complexo de Édipo culmina no desejo mantido por muito tempo de receber um filho do pai como presente de lhe dar um filho Temos a impressão de que o complexo de Édipo é então lentamente abandonado porque esse desejo nunca se realiza Ambos os desejos de possuir um pênis e um filho permanecem fortemente investidos no inconsciente e ajudam a preparar o ser feminino para futuro papel sexual A intensidade menor da contribuição sádica para a pulsão sexual que sem dúvida podemos juntar com o atrofiamento do pênis facilita a transformação dos anseios diretamente sexuais em anseios afetuosos com meta inibida De modo geral no entanto precisamos admitir que nossa compreensão desses processos de desenvolvimento na menina é insatisfatória lacunar e vaga Não tenho dúvida de que as aqui descritas relações temporais e causais entre complexo de Édipo intimidação sexual ameaça de castração formação do SuperEu e entrada no período de latência têm uma natureza indiscutivelmente típica mas não quero afirmar que essa tipicidade seja a única possível Variações na sequência temporal e no encadeamento desses processos terão de ser muito importantes para o desenvolvimento do indivíduo Por outro lado desde a publicação do interessante estudo de Otto Rank Trauma do nascimento não se pode aceitar sem discussão o próprio resultado dessa pequena investigação de que o complexo de Édipo do menino perece pela angústia de castração No entanto pareceme prematuro entrar hoje nessa discussão e talvez também inadequado iniciar a crítica ou apreciação da concepção de Rank neste ponto Der Untergang des Ödipuskomplexes 1924 1923 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 10 n 3 p 245252 1924 Gesammelte Schriften t V p 423430 1940 Gesammelte Werke t XIII p 395402 Em carta a Lou AndreasSalomé de 14 de março de 1924 Freud diz esperar que o título do artigo ressoe tão tragicamente quanto o título do livro de Spengler A alusão diz respeito ao recémpublicado Der Untergang des Abendlandes O declínio do Ocidente Com efeito o substantivo que dá título a este escrito Untergang formase do prefixo também usado como preposição unter em baixo para baixo e Gang associado ao verbo gehen ir deslocarse Seus usos portanto abarcam noções como declínio ocaso naufrágio queda dissolução Sonnenuntergang é o pôr do sol Der Untergang des Römischen Reiches é o declínio do império romano Der Untergang der Titanic o naufrágio do Titanic No contexto empregado por Freud vemos a ideia de algo que encontra uma espécie de ocaso de fim mas cuja queda deixa consequências Do ponto de vista da história do movimento analítico o artigo de Freud pode ser visto como uma vigorosa contestação da tese de Otto Rank segundo a qual o evento psíquico central na vida de um ser humano seria o traumatismo do nascimento principal eixo de seu O trauma do nascimento 1924 Contudo a ruptura com Rank não foi imediata Assim que termina de redigir o presente artigo Freud escreve a Rank em 23 de março de 1924 convidandoo a presidir a Associação Psicanalítica de Viena Qual o estatuto desse convite Freud já não conhecia os planos de Rank de deixar Viena Diversas vezes Freud reafirma que não considerava as teses de Rank heréticas Pouco antes em carta de 1º de dezembro de 1923 chega a felicitálo por sua produtividade e acrescenta que via seu trabalho como uma continuação do seu próprio Non omnis moriar não morri completamente Vale lembrar que Rank gozava de um carinho especial junto ao professor Algumas edições da Traumdeutung incorporaram tantas contribuições de Rank que este chegou a figurar como coautor na folha de rosto Foi um caso único entre seus discípulos De todo modo as tensões no interior do comitê eram indisfarçáveis Depois da publicação conjunta da obra de Ferenczi e Rank sobre as relações entre teoria e técnica Perspectivas da Psicanálise 1923 uma espécie de cisão interna não pôde mais ser mascarada Abraham via nessas duas obras uma regressão científica como afirma a Freud em 26 de fevereiro de 1924 Jones também não poupou críticas As missivas circulavam entre os membros do comitê num ritmo vertiginoso Freud demorou cerca de dois anos para decidir pela recusa da tese de Rank E sua resposta é justamente recolocar o complexo de Édipo aqui visto do ponto de vista de seu declínio e de suas consequências como um dos pilares da Psicanálise Tratase aqui do esforço de Freud de repensar o complexo de Édipo no contexto de sua recémformulada teoria das instâncias psíquicas publicada um ano antes em O Eu e o Isso Para Freud o complexo de Édipo tem um papel fundamental na constituição do sujeito e do desejo Por essas razões o declínio do Édipo é determinante para a psicopatologia psicanalítica Além disso os destinos da sexualidade masculina e feminina definemse a partir desse declínio Ao final do artigo Freud alude ao movimento feminista de seu tempo e logo em seguida parodia uma sentença de Napoleão A política é o destino Le destin cest la politique Essa declaração foi documentada por Goethe que relata seu encontro com o imperador francês em outubro de 1808 quando Napoleão expõe sua convicção de que a política ocupa para o homem moderno o lugar que a tragédia ocupava para o homem antigo A versão de Freud a anatomia é o destino não deixa de dizer que para o homem contemporâneo a sexualidade é o destino sem que isso signifique que a relação entre anatomia e sexualidade se deixe reduzir ao campo da Biologia No entanto não há como esquecer que para a Psicanálise nenhuma substituição metafórica realmente logra eliminar aquilo que foi substituído Não é difícil perceber como o trágico retorna no político assim como o político retorna no sexual Esse artigo foi uma referência importante na reformulação kleiniana da teoria do complexo de Édipo RANK O Das Trauma der Geburt 1924 KLEIN M The Oedipus Complex in the Light of Early Anxieties International Journal of PsychoAnalysis 1945 NOTAS 1 A palavra Versagung tem em frustração sua principal acepção nos usos correntes da língua ainda que Freud geralmente empregue o termo para designar um impedimento ou uma privação mais do que um estado de ânimo marcado pela decepção diante de algo esperado e não ocorrido NR 2 Aqui remetemos o leitor à nota associada ao título deste escrito Como vimos o hiperônimo Untergang aqui traduzido como declínio instala uma rede associativa da qual retiramos a ideia de naufragar sinken versinken e dissolver lösen ablösen termos aqui empregados num sentido menos ambíguo NR 3 Como provavelmente é de conhecimento do leitor assíduo de Freud há uma grande polêmica envolvendo a tradução dos termos da segunda organização tópica do aparelho psíquico elaborada por Freud Os termos Es Ich e ÜberIch foram traduzidos por Id Ego e Superego na célebre Standard Edition inglesa O pano de fundo daquela escolha era empregar termos latinos a fim de emprestar uma pretensa respeitabilidade científica ao aparelho psíquico freudiano Um dos argumentos em favor da manutenção da solução proposta pela Standard Edition seria o fato da relativa institucionalização daquele vocabulário na comunidade psicanalítica brasileira Se isso foi verdade um dia com certeza esse argumento não se sustenta mais Nesta coleção preferimos uma tradução a partir do que os termos designam na linguagem corrente Isso Eu e SuperEu respectivamente Afinal Freud fez uso de pronomes simples apenas transformandoos em substantivos ao grafálos com inicial maiúscula regra da língua alemã NR 4 Referência ao célebre dito napoleônico A política é o destino Le destin cest la politique NR NEUROSE E PSICOSE 1924 Em meu recémpublicado escrito O Eu e o Isso Das Ich und das Es propus um desmembramento do aparelho psíquico a partir do qual pode ser apresentada uma série de relações de maneira simples e panorâmica Em outros pontos por exemplo no que diz respeito à origem e ao papel do SuperEu ÜberIch muito segue obscuro e não resolvido Pois bem é lícito exigir que uma configuração como essa prove ser igualmente útil e fecunda para outros assuntos mesmo que seja apenas para ver o que já conhecemos em uma nova concepção para agrupálo de outra maneira e para descrevêlo de modo mais convincente A essa aplicação também poderia ser vinculado um proveitoso retorno da teoria cinzenta ao verde perpétuo da experiência1 No trabalho mencionado foram descritas as múltiplas dependências do Eu sua posição intermediária entre o mundo exterior e o Isso e seu anseio em servir a todos os seus senhores a um só tempo Em conexão com uma discussão iniciada em outro lugar que dizia respeito à origem e à prevenção das psicoses ocorreume então uma fórmula simples que trata do que talvez seja a mais importante diferença genética genetische2 entre neurose e psicose a neurose é o resultado de um conflito entre o Eu e seu Isso ao passo que a psicose é o resultado análogo de uma perturbação semelhante nas relações entre o Eu e o mundo exterior É certamente legítimo desconfiar de soluções tão simples É por isso que nossa expectativa máxima sobre essa fórmula é que se mostre correta de modo geral E isso já seria alguma coisa Mas de imediato também nos lembramos de toda uma série de descobertas e achados que parecem fortalecer nossa hipótese As neuroses de transferência se originam de acordo com o resultado de todas as nossas análises do fato de o Eu não aceitar nem querer conduzir para a descarga motora uma moção pulsional poderosa do Isso ou de lhe barrar o acesso ao objeto ao qual ela visa O Eu se defende dela através do mecanismo do recalcamento o recalcado luta contra esse destino cria para si próprio por caminhos sobre os quais o Eu não tem nenhum poder um substituto que se impõe ao Eu pela via do compromisso Kompromisses o sintoma o Eu descobrindo sua unidade ameaçada e prejudicada por esse intruso prossegue na luta contra o sintoma tal como o fez com a moção pulsional original e tudo isso produz o quadro da neurose De nada adianta objetar ao fato de que o Eu ao empreender o recalcamento está no fundo obedecendo às leis do SuperEu que por sua vez têm sua origem nas influências do mundo real exterior e que no SuperEu encontraram sua representação O que permanece é o fato de que o Eu tomou o partido dessas forças que suas exigências são nele mais fortes do que as exigências pulsionais do Isso e que o Eu é a força que promove o recalcamento contra aquela parte do Isso e o fortifica através de um contrainvestimento da resistência A serviço do SuperEu e da realidade o Eu entrou em conflito com o Isso eis o estado de coisas em todas as neuroses de transferência Por outro lado é igualmente fácil mencionar exemplos de nossa concepção atual a respeito dos mecanismos da psicose que apontam para a perturbação das relações entre o Eu e o mundo exterior No caso da amência de Meynert3 a aguda confusão alucinatória talvez a forma mais extrema e notável de psicose o mundo exterior não é absolutamente percebido ou sua percepção permanece totalmente ineficaz Normalmente o mundo exterior governa o Eu de duas maneiras primeiro através de percepções atuais e sempre renováveis segundo através do repertório de percepções antigas que como mundo interior configuram um patrimônio e um componente do Eu Na amência não apenas a aceitação de novas percepções é recusada verweigert4 mas também o mundo interior que até agora representou o mundo exterior como sua cópia teve sua significação investimento retirada o Eu cria autonomamente para si um novo mundo exterior e interior e não resta dúvida sobre dois fatos que esse novo mundo é construído de acordo com as moções de desejo do Isso e que o motivo dessa ruptura com o mundo exterior foi um grave e intolerável impedimento de desejo Wunschversagung por parte da realidade O estreito parentesco dessa psicose com o sonho normal é inequívoco No entanto a condição do sonho é o estado de sono cujas características são o total afastamento da percepção e do mundo exterior Sabemos que outras formas de psicose as esquizofrenias tendem a desembocar em um embotamento afetivo isto é na perda de toda participação no mundo exterior Sobre a gênese das formações delirantes algumas análises nos ensinaram que o delírio se apresenta como um remendo colocado onde originariamente havia surgido uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior Se a condição do conflito com o mundo exterior só não é muito mais evidente do que atualmente já reconhecemos isso se deve ao fato de que no quadro clínico da psicose as manifestações do processo patogênico estão frequentemente recobertas por manifestações de uma tentativa de cura ou de reconstrução A etiologia comum para o início de uma psiconeurose ou psicose permanece sendo o impedimento Versagung a não realização de algum daqueles eternamente indomáveis desejos de infância enraizados profundamente em nossa organização filogeneticamente determinada Esse impedimento é sempre em última análise exterior em casos particulares ele pode partir daquela instância interior no SuperEu que assumiu a representação das exigências da realidade Nesse caso o efeito patogênico depende de o Eu numa tensão de conflito como essa permanecer fiel à sua dependência do mundo exterior e ou bem tentar silenciar o Isso ou se deixar subjugar pelo Isso e portanto ser arrancado da realidade No entanto a existência do SuperEu introduz nessa situação aparentemente simples uma complicação por meio de um vínculo ainda obscuro para nós o SuperEu unifica em si influências tanto do Isso quanto do mundo exterior tornandose de certa forma um modelo ideal daquilo a que visa todo o anseio do Eu a reconciliação com suas diversas dependências A conduta do SuperEu deveria ser levada em consideração o que até agora não aconteceu em todas as formas de adoecimento psíquico Entretanto podemos postular provisoriamente que também deve haver afecções que têm por base um conflito entre Eu e SuperEu A análise nos dá certo direito de supor que a melancolia5 seria um exemplo desse grupo então reservaríamos o nome de psiconeuroses narcísicas para perturbações desse tipo Aliás não destoa das nossas impressões o fato de encontrarmos motivos para separar estados como a melancolia de outras psicoses Então percebemos no entanto que pudemos aperfeiçoar nossa simples fórmula genética sem precisar abandonála A neurose de transferência corresponde ao conflito entre o Eu e o Isso a neurose narcísica a um conflito entre o Eu e o SuperEu a psicose a um conflito entre o Eu e o mundo exterior É claro que não sabemos dizer imediatamente se de fato ganhamos algum conhecimento novo ou se apenas enriquecemos a nossa fórmula Mas penso que essa possibilidade de aplicação precisa nos encorajar a continuar mantendo no horizonte a sugerida divisão do aparelho psíquico em Eu SuperEu e Isso No entanto é necessária outra discussão para complementar a afirmação de que neuroses e psicoses se originam do conflito do Eu com as várias instâncias que o controlam correspondendo a um fracasso na função do Eu que mostra seu esforço em conciliar as exigências das várias instâncias Gostaríamos de saber sob quais circunstâncias e por quais meios o Eu consegue sair ileso sem adoecer desses conflitos que indubitavelmente estão sempre presentes Trata se pois de um novo campo de investigação no qual seguramente os mais diferentes fatores deverão ser considerados Dois deles já se destacam de imediato Não há dúvida de que a saída de todas essas situações dependerá das relações econômicas das proporções relativas dos anseios em disputa Além disso será possível ao Eu evitar a ruptura de qualquer um dos lados deformandose a si mesmo deixandose perder sua unicidade e eventualmente até segmentandose e cindindose Assim as inconsequências as excentricidades e as loucuras dos seres humanos apareceriam sob uma luz semelhante às de suas perversões sexuais através de cuja aceitação eles estariam se poupando de recalcamentos Para concluir cabe uma pergunta para a reflexão qual seria o mecanismo análogo ao do recalcamento através do qual o Eu se desliga do mundo exterior Penso que isso não pode ser respondido sem novas investigações mas ele teria como o recalcamento de ter como conteúdo a retirada do investimento enviado pelo Eu Neurose und Psychose 1924 1924 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 10 n 1 p 15 1924 Gesammelte Schriften t V p 418422 1940 Gesammelte Werke t XIII p 387391 Escrito e publicado em 1924 tratase da primeira ocorrência do termo psicose em um título de Freud Embora ao longo das últimas três décadas Freud tivesse se interessado por fenômenos presentes em diversas manifestações e formas da psicose é a primeira vez que isola essas duas entidades clínicas neurose vs psicose na forma como serão consolidadas na literatura psicanalítica subsequente Este artigo pode ser lido como uma vertente nosográfica das inovações conceituais de O Eu e o Isso publicado um ano antes Tratase portanto do esforço de pensar duas das principais entidades nosográficas psicanalíticas neurose e psicose nos quadros da nova apresentação do aparelho psíquico com três instâncias o Isso o Eu e o SuperEu O próprio Freud rapidamente percebeu a necessidade de prolongar as reflexões apenas iniciadas aqui num texto publicado poucos meses mais tarde A perda de realidade na neurose e na psicose Uma leitura crítica de Lacan pode ser encontrada na lição do dia 7 de dezembro de 1955 de seu seminário sobre As psicoses Vale lembrar também do uso que Piera Aulaigner faz em seu A violência da interpretação 1975 AULAGNIER P A violência da interpretação do pictograma ao enunciado Rio de Janeiro Imago 1979 LACAN J Seminário III As psicoses Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 NOTAS 1 Freud remete a Fausto parte I cena 4 em que Mefistófeles diz Cinzenta meu querido amigo é toda teoria e verde a dourada árvore da vida Grau theurer Freudn ist alle Theorie und grün des Lebens goldner Baum NT 2 Cabe aqui destacar o uso do adjetivo genetisch para designar o que diz respeito à gênese à origem e não necessariamente ao biológico ou hereditário NR 3 A amentia foi descrita por Theodor Meynert em 1890 como um estado agudo de delírio alucinatório Freud foi seu aluno em 1883 quando estagiou por um semestre em sua clínica psiquiátrica Dois anos mais tarde Meynert o apoiou em sua candidatura ao almejado posto de Privatdozent na Universidade de Viena Não obstante Freud não acreditava no modelo neuroanatômico de seu professor para quem os conteúdos surgidos no delírio eram desprovidos de sentido NE 4 Nesse passo Freud emprega o verbo verweigern que também indica uma forma de recusa sem contudo equivaler aos demais mecanismos de defesa que atuam por negação iniciando também com o prefixo Ver O que indica como Freud explora diferentes acepções da língua alemã para traduzir diferentes matizes dos fenômenos psíquicos NE 5 No presente volume o leitor pode conferir como Freud abordava a melancolia em seu célebre ensaio Luto e melancolia antes portanto da reformulação da teoria do aparelho psíquico NE A PERDA DE REALIDADE NA NEUROSE E NA PSICOSE 1924 Recentemente63 estabeleci um dos traços distintivos entre neurose e psicose de maneira que na primeira o Eu dependente da realidade reprime unterdrückt uma parte do Isso da vida pulsional enquanto o mesmo Eu na psicose a serviço do Isso afastase de uma parte da realidade Para a neurose seria então decisivo o predomínio da influência real des Realeinflusses e para a psicose o do Isso A perda de realidade estaria dada de início para a psicose para a neurose ao que parece ela seria evitada No entanto isso não condiz absolutamente com a experiência pela qual todos passamos de que toda neurose perturba de alguma maneira a relação do doente com a realidade de que a neurose é para ele um meio para se afastar da realidade e de que em suas formas graves a neurose significa diretamente uma fuga da vida real Essa contradição parece preocupante mas é facilmente contornável e seu esclarecimento só facilitará a nossa compreensão da neurose Na verdade a contradição só perdura se focalizamos a situação inicial da neurose na qual o Eu a serviço da realidade empreende o recalcamento de uma moção pulsional Mas essa ainda não é a neurose de fato Ela consiste muito mais nos processos que fornecem uma compensação para a parte prejudicada do Isso portanto na reação contra o recalcamento e no fracasso deste O afrouxamento do vínculo com a realidade é então a consequência desse segundo passo na formação da neurose e não deveria nos surpreender se o exame detalhado mostrasse que a perda de realidade diz respeito exatamente àquela parte de realidade a partir de cuja exigência ocorreu o recalcamento da pulsão Triebverdrängung1 Caracterizar a neurose como resultado de um recalcamento fracassado não é algo novo Nós sempre o afirmamos e só foi preciso repetilo por causa do novo contexto A mesma preocupação voltará a aflorar aliás de maneira particularmente acentuada quando se tratar de um caso de neurose cujo fator desencadeador a cena traumática for conhecido e no qual se puder observar como a pessoa se afasta de uma experiência como essa e a relega à amnésia Quero voltar por exemplo a um caso analisado há muitos anos64 no qual a moça apaixonada por seu cunhado fica abalada com a seguinte ideia no leito de morte da irmã agora ele está livre e pode se casar com você Essa cena é imediatamente esquecida e com isso é acionado o processo de regressão que leva aos sofrimentos histéricos Mas nesse caso é justamente instrutivo observar por qual caminho a neurose procura resolver o conflito A neurose desvaloriza a alteração real na medida em que recalca a exigência pulsional em questão isto é o amor pelo cunhado A reação psicótica teria sido recusar verleugnen2 a realidade do fato da morte da irmã Seria então de se esperar que no surgimento da psicose ocorresse algo análogo ao processo da neurose mas claro que entre outras instâncias que também na psicose se distinguissem dois passos dos quais o primeiro arrancaria dessa vez o Eu da realidade enquanto o segundo procuraria reparar o prejuízo e restabelecer a relação com a realidade às custas do Isso Realmente há algo análogo na psicose a ser observado há também nela dois passos dos quais o segundo traz em si o caráter da reparação acontece que essa analogia cede a uma semelhança muito mais ampla entre os processos O segundo passo da psicose também procura compensar a perda de realidade não às custas de uma limitação do Isso como a neurose fazia às custas de uma ligação real mas por outro caminho mais autocrático através da criação de uma nova realidade que não apresenta mais o mesmo embate da realidade abandonada Portanto o segundo passo na neurose como na psicose sustentase nas mesmas tendências em ambos os casos ele serve à ânsia por poder do Isso que não se deixa intimidar pela realidade Tanto a neurose quanto a psicose são a expressão da rebelião do Isso contra o mundo exterior seu desprazer ou se preferirem sua incapacidade de se adequar à necessidade real à Ananké Αυάγκη Neurose e psicose distinguemse muito mais entre si na primeira reação introdutória do que na subsequente tentativa de reparação A distinção inicial se expressa no resultado final da seguinte maneira na neurose uma parte da realidade é evitada por uma espécie de fuga enquanto na psicose ela é reestruturada Dito de outro modo na psicose seguese à fuga inicial uma fase ativa de reestruturação na neurose à obediência inicial seguese uma posterior tentativa de fuga Dito ainda de outro modo a neurose não recusa verleugnet a realidade apenas não quer saber nada sobre ela a psicose a recusa e procura substituíla Chamamos de normal ou saudável uma conduta que reúna determinados traços de ambas as reações que recuse tão pouco a realidade como a neurose mas que se esforce como a psicose para modificála Essa conduta adequada e normal leva naturalmente a um esforço de trabalho no mundo externo e não se satisfaz como a psicose com a produção de alterações internas ela não é mais autoplástica mas aloplástica A reelaboração da realidade na psicose ocorre nos sedimentos psíquicos dos vínculos até então mantidos com ela isto é nos traços mnêmicos representações e julgamentos que dela se obteve até então e através dos quais ela é representada na vida psíquica Esse vínculo no entanto nunca se completou ele foi continuamente enriquecido e alterado por novas percepções Com isso também se coloca para a psicose a tarefa de procurar para si as percepções que corresponderiam à nova realidade o que é alcançado fundamentalmente pela via da alucinação Se as confusões de memória as formações delirantes e as alucinações apresentam em tantas formas e casos de psicoses esse caráter extremamente penoso e se estão ligadas ao desenvolvimento de angústia esse é sem dúvida o sinal de que todo o processo de reconfiguração se consuma diante de forças contrárias altamente poderosas Podemos construir o processo de acordo com o modelo da neurose que nos é mais familiar Vemos nesse caso que sempre que a pulsão recalcada realiza um avanço há uma reação de angústia Angst e que o resultado do conflito é apenas um compromisso imperfeito enquanto satisfação Befriedigung É provável que na psicose a parte de realidade rechaçada se imponha repetidamente à vida psíquica assim como o fez a pulsão recalcada na neurose e é por isso que também são idênticas as consequências em ambos os casos O esclarecimento dos diferentes mecanismos que na psicose devem levar a cabo o afastamento da realidade e uma reconstrução desta bem como do grau de êxito que possam alcançar ainda é uma tarefa não assumida pela Psiquiatria especializada Portanto outra analogia entre neurose e psicose é que em ambas a tarefa empreendida no segundo passo fracassa parcialmente porque a pulsão recalcada não consegue encontrar um substituto completo neurose e o que representa a realidade Realitätsvertretung não se deixa verter nas formas satisfatórias pelo menos não em todas as modalidades de enfermidades psíquicas Mas as ênfases nos dois casos são distribuídas de maneira diferente Na psicose a ênfase incide integralmente no primeiro passo que é patológico em si e que só pode levar ao adoecimento na neurose por sua vez ela recai sobre o segundo o fracasso do recalcamento Verdrängung enquanto o primeiro passo pode alcançar êxito e o alcança inúmeras vezes nos limites da saúde se bem que não o faz sem custos nem sem deixar atrás de si indícios do gasto psíquico exigido Essas diferenças e talvez muitas outras constituem as consequências da diversidade tópica na situação inicial do conflito patógeno se aí o Eu se rendeu à sua lealdade ao mundo real ou à sua dependência do Isso A neurose se contenta via de regra com evitar a parte correspondente da realidade e protegerse do encontro com ela Contudo a diferença crucial entre neurose e psicose é enfraquecida pelo fato de que na neurose não faltam tentativas de substituir a realidade indesejada por uma mais de acordo com o desejo Essa possibilidade é franqueada pela existência de um mundo de fantasia Phantasiewelt de um setor que foi separado do mundo externo real no momento da instauração do princípio de realidade e que desde então é mantido livre como uma espécie de reserva contra as exigências da necessidade da vida e que não é inacessível ao Eu mas ligado a ele apenas frouxamente Desse mundo de fantasia a neurose retira o material para as suas novas formações de desejo e normalmente o encontra no caminho da regressão a um real período anterior mais satisfatório Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia na psicose desempenhe o mesmo papel que aqui ele também configure o reservatório de onde se recolhem a matéria e o protótipo para a construção da nova realidade Mas enquanto o fantástico novo mundo externo da psicose quer se alojar no lugar da realidade exterior o da neurose por sua vez gosta de se apoiar como a brincadeira da criança em uma parte da realidade diferente daquela contra a qual foi preciso se defender e lhe empresta um significado especial e um sentido secreto que chamamos nem sempre de maneira adequada de simbólico É assim que para ambas neurose e psicose não apenas conta a questão da perda de realidade mas também a de uma substituição da realidade 63 Neurose e psicose Neurose und Psychose Internationale Zeitschrift für Psychanalyse X 1924 Heft 1 Ges Werke Bd XIII artigo incluído no presente volume NE 64 Nos Estudos sobre histeria Studien über Hysterie 1895 Ges Werke Bd I Tratase do caso Elisabeth von R pseudônimo de Ilona Weiss uma jovem de 24 anos de origem húngara que Freud tratou entre 1892 e 1893 Freud considerava que essa tinha sido sua primeira análise completa de um caso de histeria NE Der Realitätsverlust bei Neurose und Psychose 1924 1924 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 10 n 4 p 374379 1940 Gesammelte Werke t XIII p 361368 Escrito poucas semanas depois da conclusão de Neurose e psicose Abraham leu este trabalho em maio de 1924 o que sugere que foi escrito um pouco antes o presente artigo prolonga e complementa o que ali foi aventado Tratase da mesma forma da tentativa de extrair consequências da nova tópica psíquica para a nosografia psicanalítica Tanto na neurose quanto na psicose a realidade é perdida Mas os mecanismos subjacentes são diversos assim como os resultados dos precipitados psíquicos a fantasia para a neurose o delírio na psicose Neste artigo Freud opõe neurose e psicose em termos de seus mecanismos psíquicos preponderantes Contudo o recurso ao original alemão permite restituir um emprego que pelo menos à primeira vista parece contradizer uma leitura demasiado estrita da vinculação dos três principais mecanismos psíquicos de negação Verdrängung Verwerfung Verleugnung às estruturas clínicas freudianas neurose psicose perversão Com efeito em pelo menos duas ocorrências centrais neste artigo Freud opõe a neurose à psicose com relação ao modo como ambas lidam com a Verleugnung mecanismo que em geral associamos à perversão Diz ele a neurose não recusa verleugnet nicht a realidade apenas não quer saber nada sobre ela a psicose a recusa verleugnet e procura substituíla NOTAS 1 Também passível de ser compreendido como recalcamento pulsional NR 2 Nesta passagem o mecanismo psíquico da Verleugnung é referido à psicose e não à perversão como faria supor uma leitura demasiado estrita da vinculação dos três principais mecanismos psíquicos de negação às estruturas clínicas freudianas NE O PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO 1924 É perfeitamente razoável numa ótica econômica designarmos como enigmática a existência de um anseio masoquista na vida pulsional humana Pois se o princípio de prazer domina os processos psíquicos de tal modo que sua meta primeira é a evitação do desprazer e o ganho de prazer então o masoquismo passa a ser incompreensível Se a dor e o desprazer não mais constituem advertências mas se tornam eles próprios as metas o princípio de prazer fica paralisado o guardião da nossa vida psíquica fica como que narcotizado Assim o masoquismo se nos apresenta sob a luz de um grande perigo o que de forma alguma vale para a sua contraparte o sadismo Sentimonos tentados a chamar o princípio de prazer de guardião de nossas vidas e não apenas de nossa vida psíquica Eis então que se coloca a tarefa de pesquisar a relação do princípio de prazer com os dois tipos de pulsão que distinguimos a pulsão de morte e a erótica libidinal pulsão de vida e não poderemos avançar na consideração do problema masoquista enquanto não tivermos seguido por essa trilha Concebemos como se pode lembrar65 o princípio que domina todos os processos psíquicos como um caso especial da tendência à estabilidade formulada por Fechner e assim atribuímos ao aparelho psíquico o propósito de reduzir a nada ou pelo menos de manter tão baixas quanto possível as somas de excitação que a ele afluem Barbara Low sugeriu o nome de princípio de nirvana para essa suposta vertente nome que aceitamos Porém identificamos apressadamente o princípio de prazer com esse princípio de nirvana todo desprazer teria de coincidir com um aumento e todo prazer com uma diminuição da tensão dos estímulos presentes no psíquico o princípio de nirvana e o princípio de prazer aparentemente idêntico a ele estaria inteiramente a serviço das pulsões de morte cuja meta é conduzir a inquietude da vida à estabilidade do estado inorgânico e teria a função de alertar contra as exigências das pulsões de vida da libido que tentam perturbar o intencionado curso da vida Acontece que essa concepção não pode estar correta Parece que sentimos o aumento e a diminuição das quantidades de estímulo diretamente na série das sensações de tensão e não se pode duvidar de que existam tensões prazerosas e relaxamentos desprazerosos A situação da excitação sexual é o exemplo mais notável de um aumento prazeroso de estímulo como esse mas certamente não é o único Prazer e desprazer não podem ser referidos ao aumento e diminuição de uma quantidade que chamamos de tensão de estímulo Reizspannung apesar de evidentemente terem muito a ver com esse fator Pareceme que eles não dependem desse fator quantitativo mas de uma característica própria que só podemos descrever como qualitativa Estaríamos muito mais adiantados na Psicologia se soubéssemos indicar qual é essa característica qualitativa Talvez se trate do ritmo do transcorrer do tempo nas alterações elevações e quedas na quantidade de estímulo não o sabemos De qualquer maneira precisamos ter claro que no ser vivo o princípio de nirvana pertencente à pulsão de morte sofreu uma modificação através da qual ele se tornou princípio de prazer e de agora em diante evitaremos considerar ambos os princípios como um Aliás se quisermos acompanhar essa reflexão não será difícil intuir de qual força partiu essa modificação Só pode se tratar da pulsão de vida a libido que impôs sobremaneira sua participação junto à pulsão de morte na regulação dos processos de vida Assim obtemos uma pequena mas interessante série de relações o princípio de nirvana expressa a tendência da pulsão de morte o princípio de prazer representa a exigência da libido e sua modificação o princípio de realidade a influência do mundo exterior Nenhum desses três princípios é na verdade destituído pelos outros Eles sabem em geral como conviver uns com os outros embora ocasionalmente surjam conflitos pelo fato de que de um lado estabelecese como meta o rebaixamento quantitativo da carga de estímulo e de outro uma característica qualitativa deste e finalmente um adiamento da descarga de estímulo e uma aceitação temporária da tensão desprazerosa A conclusão dessas considerações é que a descrição do princípio de prazer como guardião da vida não pode ser rejeitada Voltemos ao masoquismo Ele se oferece à nossa observação em três configurações como uma contingência da excitação sexual como a expressão da essência feminina e como uma norma da conduta de vida behaviour Correspondentemente podemos distinguir um masoquismo erógeno um feminino e um moral O primeiro o masoquismo erógeno o prazer da dor Schmerzlust também se encontra na base das outras duas formas ele pode ser justificado biológica e constitucionalmente e permanece incompreensível a menos que se decida fazer suposições sobre assuntos bem obscuros A terceira forma de manifestação do masoquismo em certos aspectos a mais importante só recentemente considerada pela Psicanálise como sentimento de culpa Schuldgefühl em geral inconsciente já permite porém uma completa explicação e inserção no restante de nosso conhecimento O masoquismo feminino ao contrário é o mais acessível à nossa observação o menos enigmático e pode ser examinado em todas as suas relações É com ele que iniciaremos nossa apresentação Conhecemos esse tipo de masoquismo no homem ao qual aqui me limito em razão do material de que disponho a partir de suficientes fantasias de pessoas masoquistas e frequentemente impotentes por isso cujas fantasias terminam no ato masturbatório ou constituem para elas próprias a satisfação sexual As atividades reais dos perversos masoquistas coincidem perfeitamente com as fantasias sejam elas executadas com um fim em si mesmas ou sirvam para produzir potência e iniciar o ato sexual Em ambos os casos as atividades são apenas a execução lúdica1 das fantasias o conteúdo manifesto é ser amordaçado amarrado dolorosamente espancado açoitado de alguma maneira maltratado forçado à obediência incondicional sujado e humilhado Muito mais raras e só com grandes limitações são também inseridas mutilações dentro desse conteúdo A interpretação mais imediata e fácil de se obter é que o masoquista quer ser tratado como uma criança pequena desamparada e dependente mas em especial como uma criança malcomportada É desnecessário acrescentar casos pois o material é bastante homogêneo e acessível a qualquer observador mesmo ao não analista Mas se temos a oportunidade de estudar casos nos quais as fantasias masoquistas sofreram uma elaboração Verarbeitung especialmente rica talvez se descubra facilmente que elas transpõem a pessoa a uma situação característica da feminilidade portanto significam ser castrado ser possuído sexualmente ou dar à luz É por isso que eu chamei de feminina de certo modo a potiori2 essa forma de manifestação do masoquismo apesar de tantos de seus elementos apontarem para a vida infantil Essa sobreposição do infantil e do feminino receberá mais adiante seu esclarecimento simples Nas fantasias a castração ou a cegueira sua representante deixou seu vestígio negativo na condição de que não pode haver nenhum dano justamente aos genitais ou aos olhos as torturas masoquistas raramente causam uma impressão tão séria quanto as crueldades fantasiadas ou atuadas do sadismo No conteúdo manifesto das fantasias masoquistas também se manifesta um sentimento de culpa do qual se supõe que a referida pessoa teria quebrado alguma coisa o que é deixado indefinido o que deve ser expiado mediante todos os procedimentos dolorosos e crueldades Isso parece uma racionalização superficial dos conteúdos masoquistas mas por detrás se esconde a ligação com a masturbação infantil Além disso esse fator de culpa remete à terceira forma o masoquismo moral O masoquismo feminino que descrevemos baseiase inteiramente no masoquismo primário erógeno no prazer da dor cuja explicação não será bem sucedida sem nos remetermos em amplo retrospecto quanto às nossas considerações Afirmei nos Três ensaios sobre a teoria sexual no capítulo sobre as fontes da sexualidade infantil que a excitação sexual em uma longa série de processos internos surge como efeito colateral tão logo a intensidade desses processos tenha apenas ultrapassado certos limites quantitativos E que talvez nada de considerável importância aconteça no organismo que não contribua com algum componente para a excitação da pulsão sexual De acordo com isso a excitação da dor e do desprazer teria essa mesma consequência Essa coexcitação libidinal no caso de tensão da dor e do desprazer seria um mecanismo fisiológico infantil que logo se esgotaria Ela atingiria nas diferentes constituições sexuais um grau diferente de desenvolvimento em todo caso forneceria a base fisiológica que seria construída psiquicamente como masoquismo erógeno A insuficiência dessa explicação se revela contudo no fato de não lançar nenhuma luz sobre as relações regulares e estreitas do masoquismo com sua contraparte na vida pulsional o sadismo Se retrocedemos mais um pouco até a suposição dos dois tipos de pulsão que consideramos operantes no ser vivo chegamos a outra derivação que no entanto não contradiz a mencionada acima Nos seres vivos pluricelulares a libido se enfrenta com a pulsão de morte ou de destruição neles dominante que procura desintegrar esse ser celular e levar cada um dos organismos elementares ao estado da estabilidade inorgânica mesmo que esta seja apenas relativa Sua tarefa é tornar inofensiva essa pulsão destrutiva e ela a desempenha desviandoa em grande parte e logo com a ajuda de um sistema orgânico especial a musculatura para fora contra os objetos do mundo exterior Recebe então o nome de pulsão de destruição Destruktionstrieb pulsão de empoderamento Bemächtigungstrieb vontade de poder Wille zur Macht3 Uma parte dessa pulsão é colocada diretamente a serviço da função sexual onde tem um papel importante a desempenhar Este é o sadismo propriamente dito Uma outra parte não compartilha dessa transposição para fora ela permanece no organismo e lá é ligada libidinalmente com a ajuda da coexcitação sexual mencionada é nessa parte que temos de identificar o masoquismo erógeno originário Faltanos toda e qualquer compreensão fisiológica sobre por quais caminhos e com que meios a libido realiza a domação Bändigung da pulsão de morte No meio psicanalítico só podemos supor que aconteça uma vasta e de acordo com suas proporções variável fusão e amalgamento de ambos os tipos de pulsão de maneira que absolutamente não devemos contar com puras pulsões de morte ou de vida mas apenas com combinações de diferentes magnitudes de ambas É possível que sob determinados efeitos à fusão das pulsões corresponda uma desfusão delas Não é possível intuir a extensão das partes das pulsões de morte que se subtraem a essa domação que ocorreu por meio da ligação com complementos libidinais Se estivermos dispostos a tolerar alguma imprecisão podemos dizer que a pulsão de morte atuante no organismo o sadismo originário Ursadismus seria idêntica ao masoquismo Depois que sua parcela principal foi deslocada para fora na direção dos objetos permanece no interior como resíduo o verdadeiro masoquismo erógeno que por um lado tornouse um componente da libido e por outro ainda toma o próprio ser como objeto Assim esse masoquismo seria uma testemunha e um resquício daquela fase de formação em que ocorreu a confluência tão importante para a vida entre pulsão de morte e Eros Não ficaremos espantados ao ouvir que sob certas circunstâncias o sadismo ou pulsão de destruição voltado e projetado para fora pode ser novamente voltado e introjetado para dentro de modo que regride à sua situação anterior Isso resulta então no masoquismo secundário que se somaria ao originário O masoquismo erógeno acompanha a libido em todas as suas fases de desenvolvimento e delas retira as suas próprias e variadas roupagens psíquicas O medo Angst de ser devorado pelo animal totêmico pai originase da organização oral primitiva o desejo de ser surrado pelo pai da fase seguinte a sádicoanal como precipitado do estágio fálico de organização66 entra a castração no conteúdo das fantasias masoquistas apesar de posteriormente recusada verleugnet e da organização genital definitiva derivam naturalmente as situações de ser possuído sexualmente e de dar à luz características da feminilidade Também é fácil entender o papel das nádegas no masoquismo independentemente das causas reais e óbvias As nádegas são a parte erógena preferida do corpo na fase sádicoanal assim como a mama o é na fase oral e o pênis na genital A terceira forma de masoquismo o masoquismo moral é sobretudo notável por ter afrouxado sua relação com aquilo que chamamos de sexualidade Via de regra em todos os sofrimentos masoquistas está implícita a condição de que venham da pessoa amada e de só serem suportados por partirem de sua estrita ordem verbal essa restrição desaparece no masoquismo moral O que conta é o próprio sofrimento não faz diferença se este parte da pessoa amada ou de uma pessoa qualquer caso o sofrimento seja ainda provocado por forças ou circunstâncias impessoais o verdadeiro masoquista sempre oferece a sua face quando vê a oportunidade de receber uma bofetada Na explicação dessa conduta estamos quase deixando de lado a libido e nos limitando a supor que nesse caso a pulsão de destruição foi novamente direcionada para dentro e atua agora violentamente contra a própria pessoa Contudo deve haver um sentido no fato de o uso linguístico também não ter abandonado a relação dessa norma de conduta de vida com o erotismo e chamar de masoquistas aqueles que causam danos a si próprios Fiéis a um hábito técnico vamos nos ocupar primeiro com a forma extrema e sem dúvida patológica desse masoquismo Em outro trabalho67 expusemos que no tratamento analítico nos deparamos com pacientes cuja conduta diante das influências do tratamento nos força a lhes atribuir um sentimento de culpa inconsciente Na ocasião indiquei em que se reconhecem essas pessoas a reação terapêutica negativa e também não deixei de mencionar que a intensidade de uma moção como essa representa uma das mais graves resistências e o maior perigo para o êxito de nossos propósitos médicos ou pedagógicos O apaziguamento Befriedigung desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o bastião mais poderoso do ganho da doença Krankheitsgewinn geralmente composto da soma de forças que luta contra o restabelecimento e não quer desistir da doença o sofrimento que a neurose traz consigo é exatamente o fator que a torna valiosa para a tendência masoquista É também instrutivo descobrir que contra toda teoria e expectativa uma neurose que resistiu a todo o esforço terapêutico pode desaparecer se a pessoa cai na miséria de um casamento infeliz perde seu patrimônio ou contrai uma grave doença orgânica Uma forma de sofrimento foi então dissolvida na outra e percebemos que só importou conservar uma certa dose de sofrimento Os pacientes não acreditam facilmente em nós sobre o sentimento inconsciente de culpa Eles sabem bem demais com que tormentos remorsos se expressa um sentimento consciente de culpa uma consciência de culpa e por isso não conseguem admitir que abrigariam em si mesmos moções bastante análogas sem delas nada perceber Em certa medida penso que podemos dar razão ao seu protesto se desistirmos da denominação de qualquer forma psicologicamente incorreta de sentimento inconsciente de culpa e em vez disso dissermos necessidade de punição com a qual podemos recobrir o assunto observado de maneira igualmente adequada Porém não podemos deixar de avaliar e localizar esse sentimento inconsciente de culpa unbewußte Schuldgefühl de acordo com o modelo do sentimento consciente Tínhamos atribuído ao SuperEu a função da consciência Gewissens e reconhecido no sentimento consciente de culpa Schuldbewußtsein a expressão de uma tensão entre Eu e SuperEu O Eu reage com sentimentos de angústia angústia pela consciência pesada Gewissensangst à percepção de que ficou aquém das exigências que lhe dirige seu ideal seu SuperEu Agora queremos saber como é que o SuperEu chegou a esse papel exigente e por que o Eu precisa se angustiar no caso de haver uma diferença com seu ideal Se dissemos que o Eu encontra sua função ao unificar e conciliar as exigências das três instâncias a que serve então agora podemos acrescentar que nesse caso ele também tem no SuperEu seu modelo a seguir Esse SuperEu é um representante tanto do Isso como do mundo exterior Ele surgiu quando os primeiros objetos das moções libidinais do Isso o casal parental foram introjetados no Eu ocasião em que a relação com eles foi dessexualizada sofreu um desvio das metas sexuais diretas Somente dessa maneira foi possível a superação do complexo de Édipo O SuperEu conservou características essenciais das pessoas introjetadas seu poder sua severidade sua inclinação para exercer o controle e para punir Como afirmado em outro trabalho68 é fácil pensar que através da desfusão das pulsões que acompanha essa introdução no Eu a severidade tenha sofrido uma intensificação O SuperEu a consciência moral ativa dentro dele só pode ser duro cruel e inclemente contra o Eu pelo qual ele zela Assim o imperativo categórico de Kant4 é o herdeiro direto do complexo de Édipo No entanto as mesmas pessoas que seguem atuando como a instância consciente no SuperEu depois que deixaram de ser objetos das moções libidinais do Isso também pertencem ao mundo exterior real É daí que elas foram subtraídas seu poder atrás do qual se escondem todas as influências do passado e da tradição foi uma das primeiras e mais sensíveis manifestações da realidade Graças a essa coincidência o SuperEu o substituto do complexo de Édipo tornase o representante do mundo exterior real e dessa forma o modelo para o anseio Streben do Eu Tal como já supusemos historicamente69 o complexo de Édipo comprova então ser a fonte de nossa eticidade5 individual Moral No decorrer do desenvolvimento infantil que leva a uma progressiva separação dos pais a significação pessoal dos pais para o SuperEu passa para um segundo plano Às suas Imagines6 se vinculam então as influências de professores autoridades modelos escolhidos e heróis socialmente reconhecidos cujas personagens Personen não mais precisam ser introjetadas pelo Eu que se tornou mais resistente A última figura dessa série que havia sido iniciada pelos pais é o obscuro poder do destino que apenas poucos de nós conseguem compreender como impessoal Nada temos a objetar ao poeta holandês Multatuli707 quando substitui a Moiрα Moira dos gregos pelo par de deuses Λόγος και Ἁνανκη Razão e Necessidade8 no entanto todos aqueles que transferem a orientação dos acontecimentos do mundo à Providência a Deus ou a Deus e à Natureza despertam a suspeita de que ainda consideram esses poderes extremos e longínquos como um casal parental mitologicamente e se creem ligados a eles por meio de laços libidinais Em O Eu e o Isso fiz a tentativa de também derivar de uma concepção parental do destino como essa o medo real que os seres humanos têm da morte Parece ser muito difícil livraremse dele Após esses preparativos podemos retornar para a apreciação do masoquismo moral Havíamos afirmado que as pessoas em questão por meio de sua conduta no tratamento e na vida despertam a impressão de serem demasiado inibidas moralmente de estarem sob o domínio de uma consciência moral especialmente sensível apesar de nada dessa supermoral Übermoral lhes ser consciente Todavia em uma observação mais cuidadosa percebemos bem a diferença que separa essa extensão inconsciente da moral e o masoquismo moral Na primeira a ênfase recai sobre o sadismo exacerbado do SuperEu ao qual o Eu se submete no último ao contrário sobre o próprio masoquismo do Eu que anseia por castigo seja do SuperEu seja dos poderes parentais exteriores Nossa confusão inicial pode ser desculpada pois nas duas vezes tratase de uma relação entre o Eu e o SuperEu ou entre poderes equivalentes a este último em ambos os casos o que está envolvido é uma necessidade que é apaziguada por meio de castigo e sofrimento Não se configura portanto como um detalhe insignificante o fato de o sadismo do SuperEu se tornar quase sempre gritantemente consciente enquanto o anseio masoquista do Eu permanecer via de regra oculto para a pessoa e ter de ser deduzido por sua conduta A inconsciência do masoquismo moral leva a uma pista fácil de seguir Poderíamos traduzir a expressão sentimento inconsciente de culpa por necessidade de punição que venha de um poder parental Sabemos também que o desejo de ser surrado pelo pai tão frequente em fantasias está muito próximo de outro o de entrar em ligação sexual passiva feminina com ele o que não é mais do que uma desfiguração regressiva deste último Se inserirmos esse esclarecimento no conteúdo do masoquismo moral seu sentido secreto nos ficará evidente A consciência moral e a moral nasceram da superação da dessexualização do complexo de Édipo através do masoquismo moral a moral será novamente sexualizada o complexo de Édipo será reanimado e se abre a via de uma regressão da moral para o complexo de Édipo Isso não redunda em vantagem para a moral ou para o indivíduo É verdade que o indivíduo pode ter conservado ao lado de seu masoquismo a totalidade ou determinada medida de eticidade mas também é possível que boa parte de sua consciência moral tenha se perdido no masoquismo Por outro lado o masoquismo cria a tentação para uma ação pecaminosa que depois precisa ser expiada por meio das críticas da consciência moral sádica como no caso de tantos tipos russos de caráter ou através do castigo corporal do grande poder parental do destino Para provocar o castigo através deste último representante parental o masoquista precisa fazer coisas inapropriadas trabalhar contra seu próprio benefício destruir as perspectivas que a ele se abrem no mundo real e eventualmente aniquilar sua própria existência real A reversão do sadismo contra a própria pessoa ocorre regularmente por ocasião da repressão cultural das pulsões kulturellen Triebunterdrückung que impede que uma grande parte dos componentes pulsionais destrutivos da pessoa seja utilizada no mundo É possível imaginar que essa parte recolhida da pulsão de destruição aparece no Eu como uma intensificação do masoquismo No entanto os fenômenos da consciência moral permitem afirmar que a destruição que retorna do mundo exterior mesmo sem essa transformação pode ser acolhida pelo SuperEu e aumentar seu sadismo contra o Eu O sadismo do SuperEu e o masoquismo do Eu se completam um ao outro e se unem para a promoção dos mesmos resultados Creio que só assim podemos entender que da repressão da pulsão Triebunterdrückung resulte frequentemente ou de maneira geral um sentimento de culpa e que a consciência moral se torne tanto mais severa e suscetível quanto mais a pessoa se abstém da agressão contra outros Seria de se esperar que um indivíduo ciente de que deve evitar agressões culturalmente indesejadas tenha por isso uma boa consciência moral e possa supervisionar o seu Eu com menor desconfiança Habitualmente a coisa se apresenta como se a exigência ética fosse a primária e a renúncia pulsional sua consequência Mas nesse caso a origem da eticidade permanece sem explicação Na realidade parece ocorrer o inverso a primeira renúncia pulsional é forçada por poderes exteriores e é só ela que cria a eticidade que se expressa na consciência moral e exige outra renúncia pulsional É assim que o masoquismo moral passa a ser a testemunha clássica da existência da fusão pulsional Triebvermischung Sua periculosidade se deve ao fato de derivar da pulsão de morte de corresponder àquela sua parcela que escapou de ser voltada para fora como pulsão de destruição Mas como por outro lado ele tem o valor de um componente erótico a autodestruição da pessoa também não pode se realizar sem uma satisfação libidinal 65 Além do princípio de prazer Jenseits des Lustprinzips I 66 Cf Die infantile Genitalorganisation Ges Werke Bd XIII nesta coleção A organização genital infantil fará parte do volume Amor sexualidade e feminilidade NE 67 O Eu e o Isso Das Ich und das Es 1923 nesta coleção no volume Conceitos fundamentais da psicanálise NE 68 O Eu e o Isso Das Ich und das Es 69 Totem e tabu Totem und Tabu Cap IV 70 Ed Douwes Dekker 18201887 Das ökonomische Problem des Masochismus 1924 1924 Primeira publicação Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse t 10 n 2 p 121133 1924 Gesammelte Schriften t V p 374386 1940 Gesammelte Werke t XIII p 369384 Redigido no inverno de 19231924 este artigo pode ser visto na esteira de Neurose e psicose e de seu correlato A perda de realidade na neurose e na psicose como um prolongamento do esforço de pensar questões de psicopatologia à luz das reformulações ocorridas entre 1920 e 1923 ou seja entre a nova doutrina pulsional de Além do princípio de prazer e a nova tópica psíquica tripartite apresentada em O Eu e o Isso Não podemos deixar de notar que uma das raras alusões de Freud a Nietzsche ocorre neste artigo O artigo começa discutindo uma questão metapsicológica das mais centrais a da relação entre os princípios fundamentais do funcionamento psíquico princípio de prazer e princípio de realidade e a doutrina das pulsões reformulada a partir de 1920 com a introdução do conceito de pulsão de morte em Além do princípio de prazer A ênfase na dimensão econômica mostra o alcance da problematização que o fenômeno do masoquismo implica para a metapsicologia como entender a tendência masoquista na vida libidinal se o aparelho psíquico visa evitar o desprazer e obter prazer Freud abordou o masoquismo nos quadros das perversões sexuais em seus Três ensaios sobre a teoria sexual Voltou ao tema do masoquismo desta vez acrescentando ao registro das perversões o prisma de seu papel na estruturação da fantasia em seu Batese numa criança O presente artigo dá ao masoquismo um alcance metapsicológico mais amplo ASSOUN 2009 p 976 Dois outros pontos a serem destacados são a retomada da teoria da coexcitação inicialmente formulada nos Três ensaios sobre a teoria sexual e o estabelecimento da posição primária do masoquismo relativamente ao sadismo contrariamente ao que havia sido postulado em As pulsões e seus destinos Esses dois aspectos teóricos dão sustentação metapsicológica à tese defendida por exemplo por Laplanche segundo a qual o masoquismo seria a forma mais primitiva de simbolizaçãotradução da dimensão invariavelmente traumática da inoculação do sexual na criança Fato que nem sempre tem sido ressaltado em sua devida importância chama a atenção a maneira como Freud mobiliza um caso clínico de um paciente homem para ilustrar sua análise do masoquismo feminino o que mostra como gênero não se confunde nem com posição sexual nem com sexo anatômico A posteridade do texto é digna de nota Helene Deutsch 1930 abordou de um ponto de vista funcional o masoquismo como uma etapa na constituição da feminilidade na medida em que deve abandonar a posição fálica Freud referese a esse trabalho em seu texto de 1931 Sobre a sexualidade feminina Sacha Nacht em 1938 Le Masochisme e Theodor Reik em 1949 Masochism in Modern Man escreveram sobre diferentes aspectos do problema do masoquismo o primeiro enfatizando aspectos históricos e clínicos o segundo enfatizando sua fenomenologia no homem moderno Uma crítica vigorosa da concepção freudiana que teve grande repercussão foi a publicação de Présentation de SacherMasoch de Gilles Deleuze que sugere a heterogeneidade formal entre o sadismo e o masoquismo DELEUZE G Présentation de SacherMasoch Paris Minuit 1967 DEUTSCH H Der feminine Masochismus und seine Beziehung zur Frigidität Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse n 16 1930 NACHT S Le Masochisme étude historique clinique psychogénétique et thérapeutique Paris Denoel 1938 REIK T Masochism in Modern Man New York Farrar 1949 NOTAS 1 spielerische Ausführung O adjetivo spielerisch deriva do verbo spielen ou do substantivo Spiel Assim como no caso de to play em inglês ou jouer em francês tal noção dá conta tanto do jogar e do brincar quanto do atuar cenicamente além de servir para designar o tocar um instrumento musical Usamos aqui o adjetivo de origem latina lúdico Ludus jogobrincadeira como aquele que em português melhor preserva a polissemia das outras línguas europeias NR 2 Locução latina Definir algo a potiori é definir algo considerando aquilo que é mais importante mais relevante naquela coisa NE 3 Wille zur Macht noção tornada célebre por Friedrich Nietzsche NR 4 Kant criticou todos os sistemas de filosofia moral anteriores a ele por se apoiarem em imperativos hipotéticos ie que estabelecem finalidades para a ação Aja de tal modo com a finalidade de ser feliz ou ser salvo etc Por serem condicionados por finalidades tais imperativos não seriam livres A única maneira segundo Kant de agir moralmente de realizar a liberdade seria paradoxalmente agir por amor ao dever Na sua fórmula mais canônica o imperativo categórico pode ser formulado assim Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de uma legislação universal KANT Immanuel Crítica da razão prática Trad Valério Rohden São Paulo Martins Fontes 2002 Essa perspectiva teve grande repercussão filosófica Em sua Genealogia da moral Nietzsche diria que o imperativo categórico cheira a crueldade Na presente passagem Freud também aponta a gênese psíquica do imperativo que Kant pretendia fundado apenas na razão NE 5 Sittlichkeit Palavra reiteradamente usada neste escrito remete ao conjunto de costumes ou condutas construídos por uma pessoa ou por um grupo de pessoas Sitte NE Em termos filosóficos Sittlichkeit eticidade distinguese de Moralität moralidade Essa distinção foi tornada célebre depois que Hegel distinguiu entre a moralidade que determina a vontade subjetivamente e a eticidade relativa à inserção social e política do sujeito O emprego que Freud faz do termo Moral entre parênteses como sinônimo de Sittlichkeit parece neutralizar essa distinção NR 6 Forma plural para o latinismo Imago NR 7 Pseudônimo literário do escritor holandês Eduard Douwes Dekker 1820 1887 composto por duas palavras latinas que juntas significam sofrimuito Quando Hugo Heller pediu a Freud uma lista com a indicação de 10 bons livros o analista interpreta o adjetivo bom Cf G W Nachtragsband p 663 No topo da lista figurava Briefe und Werk Cartas e obras de Multatuli autor mais conhecido por seu Max Havelaar que relata a violência da colonização holandesa e que também consta na biblioteca de Freud NE 8 Ananké é uma figura recorrente em Freud pelo menos desde o estudo sobre Leonardo cf Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci nesta coleção no volume Arte literatura e os artistas Já o par Logos e Ananké parece ocorrer mais tardiamente Numa carta ao pastor Oskar Pfister de 6 de abril de 1922 Freud referese à sua terrível dualidade Em entrevista concedida a Charles Baudouin cita a frase de Multatuli Tenho dois deuses Logos e Ananké e acrescenta Assim é mais digno Cf BAUDOUIN Charles Ma rencontre avec Freud Psyché Paris v 11 n 107108 p 467470 1955 Nessa passagem quando Freud endossa a substituição efetuada por Multatuli da Moira grega pelo par Logos e Ananké ele na verdade destrona a Moira destino inexorável de seu reinado soberano Além disso a necessidade que substitui o destino não mais reina sozinha mas sim em conjunção com a razão Cf ASSOUN PaulLaurent LEntendement freudien Logos et Ananké Paris Gallimard 1984 NE A NEGAÇÃO 1925 A maneira como nossos pacientes apresentam os pensamentos repentinos que lhes ocorrem Einfälle durante o trabalho analítico nos leva a fazer algumas observações interessantes Agora o senhor vai pensar que eu quero dizer algo ofensivo mas realmente não tenho essa intenção Entendemos que se trata da recusa Abweisung de um pensamento repentino que acaba de emergir por projeção Ou também O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho Minha mãe não é Nós retificamos portanto é a mãe Na interpretação tomamos a liberdade de ignorar a negação e extrair o conteúdo puro da ideia que ocorreu É como se o paciente tivesse dito Na verdade foi a minha mãe que me ocorreu em relação a essa pessoa mas não tenho a menor vontade de admitir que isso tenha me ocorrido Vez ou outra podemos conseguir chegar de uma maneira muito cômoda a um esclarecimento procurado sobre o recalcado inconsciente Perguntamos O que o senhor considera mais improvável nessa situação Em sua opinião o que lhe estava mais distante naquela ocasião Se o paciente cai na armadilha e nomeia aquilo em que ele menos consegue acreditar ele acaba com isso quase sempre confessando o correto Uma bela contrapartida a essa experiência se apresenta pelo neurótico obsessivo que já foi iniciado na compreensão de seus sintomas Ocorreume outra ideia obsessiva1 Imediatamente me ocorreu que ela poderia significar esta determinada coisa Mas não não pode ser verdade senão ela não poderia ter me ocorrido O que ele rejeita verwirft2 tomando essa justificativa que ouviu com atenção no tratamento é naturalmente o sentido correto da nova ideia obsessiva Portanto um conteúdo de representação ou de pensamento recalcado pode abrir caminho até a consciência sob a condição de que seja negado A negação é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado na verdade é já uma suspensão do recalcamento Verdrängung3 mas evidentemente não é uma admissão do recalcado Verdrängten Podemos ver como nesse caso a função intelectual se separa do processo afetivo Com a ajuda da negação apenas uma das consequências do processo de recalcamento é revogada a saber a de seu conteúdo de representação não chegar à consciência Disso resulta uma espécie de admissão intelectual do recalcado com manutenção do essencial quanto ao recalcamento71 No curso do tratamento analítico produzimos frequentemente outra mudança muito importante e bastante estranha da mesma situação Conseguimos vencer também a negação e estabelecer a plena aceitação intelectual do recalcado com isso ainda não foi suspenso aufgehoben4 o próprio processo de recalcamento Como é tarefa da função intelectual de juízo afirmar ou negar conteúdos de pensamento as observações precedentes nos levaram à origem psicológica dessa função Negar algo no juízo significa basicamente isso é alguma coisa que eu preferiria recalcar A condenação5 é o substituto intelectual do recalcamento seu não é a marca característica deste um certificado de origem tal como o made in Germany Por meio do símbolo da negação o pensar se liberta das limitações do recalcamento e se enriquece de conteúdos dos quais não pode prescindir para o seu desempenho A função do juízo Urteilsfunktion tem essencialmente duas decisões a tomar Ela deve atribuir ou desatribuir uma qualidade6 a uma coisa e ela deve aceitar ou contestar a existência de uma representação na realidade7 A qualidade sobre a qual se deve decidir poderia ter sido originariamente boa ou má útil ou nociva Na linguagem das mais antigas pulsões orais seria assim expresso isto eu quero comer ou quero cuspir e em uma tradução Übertragung mais ampla isto eu quero introduzir em mim e isto eu quero tirar de mim Portanto isto deve estar em mim ou fora de mim O EuPrazer LustIch originário quer como desenvolvi em outro lugar introjetarse tudo o que é bom e jogar fora werfen tudo o que é mau Em princípio o que é mau o que é alheio ao Eu e o que se encontra fora dele élhe idêntico72 A outra das decisões da função de juízo aquela sobre a existência real de uma coisa representada prova de realidade constitui um interesse do EuReal definitivo RealIchs que se desenvolve a partir do EuPrazer inicial Lust Ich Agora não se trata mais de saber se algo percebido uma coisa deve ou não ser acolhido no Eu mas se algo presente no Eu como representação pode também ser reencontrado na percepção realidade Como podemos ver tratase novamente da questão do fora e do dentro O não real o que é meramente representado o subjetivo é apenas interno o outro o que é real está presente também no exterior Nesse desenvolvimento a consideração ao princípio de prazer foi deixada de lado A experiência ensinou que não é apenas importante se uma coisa objeto de satisfação Befriedigungsobjekt possui a boa qualidade portanto se merece ser aceita no Eu mas também se ela está lá no mundo externo de maneira que se possa apoderarse dela segundo a necessidade Para compreendermos essa progressão é preciso que nos lembremos de que todas as representações se originam de percepções que são repetições daquelas Portanto originariamente a existência da representação já é uma garantia para a realidade do representado A oposição entre subjetivo e objetivo não existe desde o início Ela só se estabelece porque o pensar possui a habilidade de tornar novamente presente por meio da reprodução na representação algo que foi uma vez percebido sem que o objeto exterior precise ainda estar presente O primeiro e mais imediato objetivo da prova de realidade não é portanto o de encontrar na percepção real um objeto correspondente ao representado mas sim o de reencontrálo de se convencer de que ele ainda está presente Outra contribuição para a separação distintiva Entfremdung entre subjetivo e objetivo baseiase em outra faculdade da capacidade de pensar A reprodução da percepção na representação nem sempre é sua fiel repetição ela pode ser modificada por omissões e ser alterada por fusões de diversos elementos A prova de realidade deve então controlar até onde se estendem essas deformações Reconhecemos no entanto como condição para a instalação da prova de realidade que tenham sido perdidos os objetos que um dia trouxeram satisfação real O julgar é a ação intelectual que decide sobre a escolha da ação motora que põe fim ao adiamento do pensamento8 e que faz a passagem do pensar ao agir Também já tratei do adiamento do pensamento em outro lugar9 Ele deve ser visto como uma ação experimental um tatear motor com mínimos dispêndios de descarga Pensemos onde teria o Eu praticado esse tatear anteriormente em que ponto teria aprendido a técnica que ele utiliza agora nos processos de pensamento Isso aconteceu na extremidade sensória do aparelho psíquico nas percepções sensoriais Segundo nossa hipótese a percepção não é de forma alguma um processo puramente passivo mas o Eu envia periodicamente pequenas quantidades de investimento ao sistema perceptivo por meio das quais ele experimenta os estímulos externos para de novo retirarse depois de cada um desses avanços tateantes O estudo do juízo nos abre talvez pela primeira vez a compreensão Einsicht do surgimento de uma função intelectual a partir do jogo das moções pulsionais primárias O julgar é a continuação objetivada daquilo que originariamente é realizado de acordo com o princípio de prazer a inclusão no Eu ou a expulsão Ausstoßung para fora do Eu Sua polaridade parece corresponder à oposição dos dois grupos de pulsões supostos por nós A afirmação Bejahung como substituto da união pertence a Eros a negação sucessora da expulsão pertence à pulsão de destruição O prazer de negar em geral o negativismo de certos psicóticos deve provavelmente ser entendido como um sinal de desfusão pulsional Triebentmischung através da retração dos componentes libidinais No entanto o desempenho da função de julgamento só se torna possível pelo fato de que a criação do símbolo da negação permitiu ao pensar um primeiro grau de independência dos efeitos do recalcamento e portanto também da coerção Zwang do princípio de prazer A essa concepção da negação se ajusta muito bem o fato de que na análise não ocorre nenhum não vindo do inconsciente e de que o reconhecimento do inconsciente por parte do Eu se expressa numa fórmula negativa Não existe prova mais contundente da bemsucedida descoberta do inconsciente do que quando o analisando reage com a frase Não foi isso que eu pensei ou Nisso eu não pensei nunca 71 O mesmo processo está na base do conhecido fenômeno da invocação Que bom que faz tempo que não tenho a minha enxaqueca Mas esse é o primeiro prenúncio da crise cuja iminência já se pressentiu mas na qual ainda não se quer acreditar 72 Cf a esse respeito as observações em Pulsões e seus destinos volume X da Gesammelte Werke Cf As pulsões e seus destinos em edição bilíngue e comentada nesta coleção NE Die Verneinung 1925 1925 Primeira publicação Imago t 11 n 3 p 217221 1928 Gesammelte Schriften t X p 409445 1948 Gesammelte Werke t XIV p 916 Tratase de um texto curto mas cuja densidade e relevância são incontestes Foi escrito em julho de 1925 e publicado pouco mais tarde Segundo Assoun 2009 p 374 uma versão anterior do artigo teria por título Die Verneinung und Verleugnung A negação e a recusa mas Freud teria isolado apenas o primeiro termo deixando o segundo para o artigo sobre o Fetichismo Embora o termo Verneinung designe na língua alemã corrente a negação tanto no sentido lógico e gramatical isto não é um cachimbo quanto no sentido psicológico do termo não foi isso que eu disse a escola francesa preferiu ressaltar o uso especial do conceito traduzindoopor dénégation termo que teve ampla aceitação na comunidade psicanalítica brasileira No entanto em sua argumentação Freud parece fazer uso desse duplo registro linguístico e conceitual da negação No caso do Homem dos Ratos há uma célebre passagem em que o paciente se lembra de uma cena infantil em que fantasiara obter o amor de uma menina caso fosse vítima de uma desgraça quando lhe ocorre pensar na morte de seu pai Repele essa ideia imediatamente devido ao seu conteúdo intolerável mas nunca reconhece que essa ideia pudesse ter o estatuto de um desejo O conteúdo do desejo recalcado só pode manifestarse sob a forma da negação Quanto à repercussão deste breve artigo destacamse três vertentes Numa primeira vertente René Spitz em seu No and Yes on the Genesis of Human Communication 1957 interpreta o artigo de Freud nos quadros de uma psicologia do desenvolvimento Uma segunda vertente dessa vez manifestamente crítica com nomes como Wittgenstein e Popper acusa a Psicanálise de ser irrefutável apoiandose frequentemente em passagens como a última frase do artigo Não existe prova mais contundente da bemsucedida descoberta do inconsciente do que quando o analisando reage com a frase Não foi isso que eu pensei ou Nisso eu não pensei nunca neste volume p 310 Segundo essa crítica tal posicionamento buscaria tornar as proposições da Psicanálise imunes à verificação já que cara eu ganho coroa você perde O próprio Freud respondeu a essa crítica em seu artigo de 1937 Construções em análise quando lembra que assim como o analista não toma o não do paciente por seu valor nominal também não se contenta com o sim como critério de validade de uma interpretação Apenas o próprio curso do tratamento pode fornecer confirmações indiretas que mostram ou não a correção da interpretação Last but not least uma terceira vertente que marcou época na história da Psicanálise concede a esse curto texto um lugar central no que ficou conhecido como retorno a Freud Com efeito Jacques Lacan lê as estruturas clínicas freudianas a partir das formas de negação e seus correlativos mecanismos psíquicos O que diz respeito diretamente ao título deste volume Neurose psicose perversão já que o mecanismo de negação da Verdrängung estaria para a neurose assim como o da Verwerfung estaria para a psicose e o da Verleugnung para a perversão Nos três casos estaríamos diante de diferentes modalidades do mecanismo de negação Verneinung A leitura atenta dos textos que compõem este volume mostra no entanto que Freud emprega tais expressões principalmente quando na forma verbal de maneira menos homogênea ou menos exclusiva do que se supõe cf nota que fecha o artigo A perda de realidade na neurose e na psicose Um importante debate acerca da Verneinung ocorreu entre Jean Hyppolite e Jacques Lacan Esse debate está registrado na transcrição do Seminário I sobre Os escritos técnicos de Freud e na revista La Psychanalyse n 1 Devido à sua importância Lacan publicou em seus Escritos não apenas sua resposta a Hyppolite mas também o próprio comentário do filósofo na forma de apêndice HYPPOLITE J Comentário falado sobre a Verneinung de Freud In LACAN J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 893902 LACAN J Écrits Paris Seuil 1966 LACAN J Autres écrits Paris Seuil 2001 Trad bras Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 SPITZ R No and Yes on the Genesis of Human Communication Nova York International Universities Press 1957 NOTAS 1 Zwangsvorstellung o vocábulo Vorstellung quando empregado num sentido teórico tanto na Filosofia quanto na Psicanálise tende a ser traduzido como representação Entretanto tratase também de uma palavra de uso cotidiano próximo do que chamaríamos em português de ideia ou dependendo do contexto noção Nesta edição preferimos contextualizar sempre o seu uso ainda que dando ao leitor a informação quanto ao textofonte de Freud NR 2 verwirft verbo verwerfen na terceira pessoa do singular no indicativo O verbo verwerfen bem como o relacionado substantivo Verwerfung diz respeito àquilo que leitores de Freud tais como Jacques Lacan associam à forma de negação Verneinung inerente à psicose Como o próprio Lacan sugere a tradução de Verwerfung por forclusion em francês apoiandose no vocabulário jurídico de sua língua de expressão difundiramse no Brasil as traduções por forclusão foraclusão eou preclusão Apesar dos méritos inequívocos dessa perspectiva no presente contexto preferimos traduzir de um modo mais direto por rejeiçãorejeitar Cabe destacar que o verbo verwerfen é derivado de werfen significando o ato de lançar ou atirar por exemplo uma bola ao cesto no basquete ou uma folha de papel amassada em uma lixeira pertencendo pois à linguagem corrente e não a uma linguagem especializada como seria a tradução por forclusão NR 3 Verdrängung conforme vemos no substantivo que dá título a este escrito Verneinung e no mecanismo da Verwerfung rejeiçãoforclusão discutido na nota acima há uma regularidade morfológica que se repete aqui no termo Verdrängung recalquerecalcamento bem como no vocábulo Verleugnung recusadesmentido o uso do prefixo Ver que em alemão serve entre outras coisas para denotar transformação ou equívoco Vale observarmos que os capítulos de Psicopatologia da vida cotidiana 1901 são designados por verbos marcados por esse prefixo denotando sempre uma produção equivocada Ex Vergreifen Versprechen Verlesen etc 4 O verbo aufheben remete à noção de suspender tanto num sentido físico heben içar quanto de uma forma mais abstrata semelhante a anular cessar o efeito NR 5 Verurteilung O mesmo termo pode designar a condenação que no sentido jurídico ou moral opõese à absolvição e o juízo negativo que no sentido lógico opõese a juízo afirmativo Um juízo negativo é aquele que nega um predicado a um sujeito essa casa não é minha essa pessoa não é minha mãe Contudo Jean Hyppolite em seu célebre comentário a esse texto enfatiza que o que está em jogo aqui é uma espécie de julgar ao contrário distinguindo entre uma negação interna ao juízo e uma atitude de negação Cf HYPPOLITE J Comentário falado sobre a Verneinung de Freud In LACAN J Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p893902 NE 6 Eigenschaft Qualidade ou propriedade No caso aquilo que um juízo atribui a um sujeito Por exemplo essa maçã é verde em que verde é a qualidade ou a propriedade atribuída pelo juízo ao sujeito Por isso Freud pode falar em seguida numa qualidade boa ou má NE 7 Essa distinção corresponde à distinção entre juízo atributivo a justiça é cega o leite é morno la donna è mobile e juízo existencial não há justiça isso é um seio a mulher não existe NE 8 Denkaufschub adiamento do pensamento ou adiamento devido ao pensamento no sentido do genitivo subjetivo em que o pensamento é responsável pelo adiamento e não que o pensamento é adiado NE 9 Cf particularmente O Eu e o Isso Os pressupostos de toda essa passagem estão estabelecidos desde 1895 no célebre Entwurf einer psychologie e foram retomados posteriormente em diversos trabalhos principalmente naqueles mais voltados à metapsicologia em sentido estrito NE FETICHISMO 1927 Nos últimos anos tive oportunidade de estudar analiticamente um certo número de homens cuja escolha de objeto estaria sendo dominada por um fetiche Não se deve pensar que foi por causa do fetiche que essas pessoas procuraram a análise porque mesmo que o fetiche seja de fato reconhecido por seus adeptos como uma anormalidade só raramente é percebido como um sintoma de sofrimento na maioria das vezes as pessoas estão bastante satisfeitas com ele ou até mesmo elogiam as facilidades que ele oferece à sua vida amorosa Nesses casos o fetiche costuma desempenhar o papel de uma descoberta auxiliar Peculiaridades desses casos serão omitidas por razões óbvias de publicação Por isso não posso mostrar de que maneira circunstâncias acidentais contribuíram para a escolha do fetiche O caso que me pareceu mais interessante foi aquele em que um jovem elegeu um certo brilho no nariz Glanz auf der Nase como condição fetichista Isso encontrou seu surpreendente esclarecimento no fato de o paciente ter sido criado na Inglaterra mas depois ter vindo para a Alemanha onde esqueceu quase que completamente sua língua materna O fetiche originado em sua primeira infância não era para ser lido em alemão mas em inglês o brilho no nariz era na realidade um olhar para o nariz Blick auf die Nase glance inglês Blick alemão portanto o nariz era o fetiche ao qual aliás por sua predileção ele emprestou verlieh1 aquele brilho particularmente luminoso que os outros não podiam perceber A informação que a análise forneceu sobre sentido e propósito do fetiche foi a mesma em todos os casos Ela se revelou de modo tão natural e me pareceu tão convincente que estou pronto a pressupor a mesma solução para todos os casos de fetichismo Se agora comunico que o fetiche é um substituto do pênis certamente provocarei desapontamento Por isso apressome em acrescentar que ele não é substituto de um pênis qualquer mas de um pênis específico e muito especial que teve uma grande importância nos primeiros anos da infância mas que depois foi perdido Ou seja normalmente ele estaria destinado a desaparecer mas justamente o fetiche está determinado a preserválo do desaparecimento Untergang Para dizêlo mais claramente o fetiche é o substituto para o falo da mulher Phallus des Weibes da mãe no qual o garotinho acreditou e do qual sabemos o porquê não quer abrir mão73 O que ocorreu foi que o garoto se recusou sich geweigert hat a tomar conhecimento do fato concreto da sua percepção Wahrnehmung que a mulher não possui pênis Não isso não pode ser verdade pois se a mulher é castrada seu próprio pênis está ameaçado e contra isso se rebela a parte do narcisismo com o qual a natureza precavidamente dotou esse órgão O adulto provavelmente irá vivenciar um pânico semelhante quando for proclamado que o trono e o altar estão em perigo e esse pânico levará a consequências ilógicas semelhantes Se não me engano Laforgue diria nesse caso que o garoto escotomiza2 a percepção da falta de pênis na mulher74 Um termo novo só se justifica quando ele descreve e destaca um novo estado de coisas Não é esse o caso a mais antiga peça da nossa terminologia psicanalítica a palavra recalcamento Verdrängung já se refere a esse processo patológico Se nele quisermos separar mais nitidamente o destino da representação Vorstellung do destino do afeto e reservar a expressão recalcamento para o afeto então a palavra alemã correta para o destino da representação seria recusa Verleugnung da realidade Escotomização me parece particularmente inadequado pois evoca a ideia de que a percepção foi inteiramente apagada de modo que seu resultado seria o mesmo de quando uma impressão visual incide sobre o ponto cego da retina Mas nossa situação mostra ao contrário que a percepção permaneceu e que foi empreendida uma ação muito enérgica para sustentar a sua recusa da realidade ihre Verleugnung3 Não está correto que a criança após sua observação da mulher tenha salvado sem modificações a crença no falo da mulher Ela a conservou mas também a abandonou no conflito entre o peso da percepção indesejada e a força do desejo contrário ela chegou a um compromisso tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes de pensamento o processo primário Sim para a criança em seu psiquismo a mulher tem ainda assim um pênis mas esse pênis não é mais o mesmo de antes Outra coisa tomou o seu lugar podese dizer que ela foi nomeada para ser seu substituto que agora é o herdeiro do interesse anteriormente dirigido ao primeiro Esse interesse experimenta no entanto um aumento extraordinário porque o horror à castração ergueu para si um monumento na criação desse substituto Como stigma indelebile do recalcamento que se efetuou permanece também o estranhamento Entfremdung contra o real órgão genital feminino que não deixamos de ver em nenhum fetichista Agora podemos ver com clareza do que o fetiche é capaz e como ele se mantém Ele permanece como o signo do triunfo sobre a ameaça de castração e como a proteção contra ela ele também salva o fetichista de se tornar um homossexual emprestando à mulher aquela característica através da qual ela se torna suportável como objeto sexual Posteriormente o fetichista ainda acredita fruir de outra vantagem de seu substituto genital o significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas e por isso não o recusam ele é facilmente acessível e é cômodo alcançar a satisfação sexual a ele ligada Aquilo que os outros homens lutam por conquistar e para o qual precisam se esforçar não exige do fetichista nenhum esforço Nenhum ser masculino é provavelmente poupado do pavor da castração Kastrationsschreck diante da visão do genital feminino Certamente não sabemos explicar por que alguns se tornam homossexuais como efeito dessa impressão enquanto outros se defendem dela criando um fetiche e a imensa maioria a supera É possível que entre todas as condições em ação ainda não conheçamos aquelas que são decisivas para os raros desenlaces patológicos além disso devemos nos contentar se conseguirmos explicar o que aconteceu e nos autorizar a deixar de lado a tarefa de explicar por que algo não aconteceu Seria de esperar que em substituição ao falo ausente na mulher fossem escolhidos órgãos ou objetos que em geral também representariam o pênis como símbolos als Symbole Isso pode acontecer com bastante frequência mas certamente não é o decisivo Na instauração do fetiche parece muito mais que foi interrompido eingehalten um processo que lembra o bloqueio da memória na amnésia traumática4 Também nesse caso o interesse fica como que na metade do caminho é como se fosse retida como fetiche a última impressão antes da estranha da traumática É assim que o pé ou o sapato devem sua eleição como fetiche ou parte dela à circunstância de o garoto curioso ter espiado a partir de baixo das pernas para cima o genital feminino peles e veludo fixam como há muito tempo se suspeitou a visão dos pelos púbicos que deveria ter sido seguida pela desejada visão do membro feminino as peças de roupa íntima tão frequentemente escolhidas como fetiche pois retêm o momento de se despir o último no qual a mulher ainda pode ser considerada fálica Contudo não quero afirmar que em todos os casos se possa entender com transparente certeza a determinação do fetichismo A investigação do fetichismo deve ser altamente recomendada àqueles que ainda duvidam da existência do complexo de castração ou que acham que o susto Schreck diante dos genitais femininos tem outro fundamento por exemplo que derivaria de uma suposta lembrança do trauma do nascimento Para mim o esclarecimento do fetiche teve ainda outro interesse teórico Recentemente por vias puramente especulativas cheguei à proposição de que a diferença essencial entre neurose e psicose residiria no fato de que na primeira o Eu a serviço da realidade reprimiria unterdrücke uma parte do Isso enquanto na psicose ele se deixa arrastar pelo Isso desvinculandose de uma parte da realidade retornei posteriormente ao mesmo tema75 Mas logo depois tive motivo para lamentar por ter me aventurado tão longe Ao analisar dois meninos de 2 e 10 anos verifiquei que ambos não assimilaram a morte do querido pai a escotomizaram e contudo nenhum dos dois desenvolveu uma psicose Portanto é certo que uma importante parte da realidade foi recusada verleugnet pelo Eu como o faz o Eu do fetichista com o fato desagradável da castração da mulher Comecei a perceber também que acontecimentos semelhantes na infância de modo algum são raros e pude me convencer do meu erro na caracterização da neurose e da psicose Mas na verdade havia uma informação em aberto minha fórmula precisava apenas ser válida onde houvesse um grau mais elevado de diferenciação no aparelho psíquico seria permitido a uma criança aquilo que no caso do adulto seria punido com grave prejuízo Entretanto pesquisas posteriores levaram a outra solução para tal contradição Ficou evidente que os dois meninos haviam escotomizado a morte do pai tanto quanto um fetichista escotomiza a castração da mulher Apenas uma corrente em sua vida psíquica não reconhecia a morte do pai havia outra que se dava plena conta desse acontecimento a corrente ligada ao desejo e a ligada à realidade coexistiam uma ao lado da outra No caso de uma das crianças essa cisão Spaltung se tornou a base de uma neurose obsessiva moderada em todas as situações de sua vida ele oscilava entre duas proposições uma em que o pai ainda está vivo e impede sua atividade e outra oposta em que ele tem o direito de se considerar o sucessor do pai morto Portanto posso manter a expectativa de que no caso da psicose a corrente ligada à realidade teria realmente desaparecido Se agora retorno à descrição do fetichismo preciso acrescentar que existem ainda inúmeras e importantes evidências da posição bifurcada5 do fetichista frente à questão da castração da mulher Em casos mais refinados ela está no próprio fetiche em cuja construção tanto a recusa à realidade Verleugnung quanto a afirmação Behauptung da castração conseguiram se introduzir Esse foi o caso de um homem cujo fetiche era uma cinta pubiana que também pode ser usada como calção de banho Essa peça de vestimenta escondia inteiramente os genitais e a diferença genital De acordo com o que a análise demonstrou ele significava tanto que a mulher é castrada como também que ela não é castrada e além disso deixava em aberto a hipótese da castração do homem pois todas essas possibilidades podiam igualmente se esconder debaixo da peça de roupa cujo primeiro rudimento em sua infância fora a folha de parreira em uma estátua Um fetiche como esse duplamente enodado com opostos sustentase particularmente bem Em outros casos a bifurcação se mostra naquilo que o fetichista faz na realidade ou na fantasia com seu fetiche Não seria exaustivo destacar que ele venera o fetiche em muitos casos ele o trata de uma maneira que evidentemente equivale a uma figuração da castração Isso acontece particularmente quando se desenvolveu uma forte identificação ao pai ao papel do pai pois foi a ele que a criança atribuiu a castração da mulher A ternura e a hostilidade no tratamento do fetiche que correspondem à recusa da realidade e ao reconhecimento da castração mesclamse em proporções desiguais em casos diversos de modo que uma ou outra se dá a conhecer com maior nitidez A partir daqui mesmo que à distância acreditamos entender a conduta do cortador de tranças6 na qual a necessidade de executar a recusa da castração veio para o primeiro plano Sua ação reúne em si as duas suposições reciprocamente inconciliáveis a mulher conservou seu pênis e o pai castrou a mulher Outra variante paralela ao fetichismo no âmbito da psicologia dos povos pode ser encontrada no costume dos chineses de primeiro mutilar e depois venerar o pé feminino como um fetiche É como se o homem chinês quisesse agradecer à mulher por ela ter se submetido à castração Para concluir autorizamonos a afirmar que o modelo normal do fetiche é o pênis do homem assim como o modelo de órgão inferior é o pequeno pênis da mulher o clitóris 73 Essa interpretação já se encontra em meu artigo de 1910 Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci embora sem justificativa nesta coleção incluído no volume Arte literatura e os artistas publicado em 2015 NE 74 Eu mesmo me corrijo e acrescento que tenho os melhores motivos para supor que Laforgue não diria isso absolutamente Segundo suas próprias explicações escotomização é um termo que provém da descrição da dementia praecox não nasceu da transposição de uma concepção psicanalítica para as psicoses e não possui nenhuma aplicação sobre os processos de desenvolvimento e formação das neuroses A exposição do texto se empenha em deixar clara essa incompatibilidade 75 Neurose e psicose 1924 e A perda de realidade na neurose e na psicose 1924 Gesammelte Werke v XIII neste volume na p 271 NE Fetischismus 1927 1927 Primeira publicação Almanach der Psychoanalyse p 1724 1928 1928 Gesammelte Schriften t XI p 374386 1940 Gesammelte Werke t XIV p 309318 Uma primeira versão deste artigo foi concluída em agosto de 1927 Ele pode ser lido como um prolongamento da discussão tornada célebre no artigo sobre a Negação acerca dos diferentes mecanismos da negação e suas consequências para a constituição subjetiva René Laforgue um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Paris havia publicado em 1926 também na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse um artigo intitulado Recalcamento escotomização e transferência que suscitou um caloroso debate por introduzir um mecanismo específico diferente do recalcamento para descrever a esquizofrenia ao qual ele deu o nome de escotomização Em carta a Eitingon de 13 de setembro de 1927 Freud reage vigorosamente a esse termo que lhe parece um neologismo besta apud ASSOUN 2009 p 563 No entanto depois de uma visita de René Laforgue Freud resolve acrescentar uma nota que matiza a extensão de sua crítica ao conceito de escotomização que não se aplicaria à neurose De toda forma tornase imprescindível delinear com clareza o mecanismo de negação próprio às perversões a Verleugnung Se nos artigos de 1924 Freud ainda empregava esse termo para caracterizar também a psicose cf Nota ao artigo A perda de realidade na neurose e na psicose agora delimita seu escopo com relação ao complexo de castração na perversão Não há como não lembrar que o termo alemão Fetisch deriva do português feitiço através do francês fétiche registrado em 1605 com o sentido de sortilégio amuleto Feitiço por sua vez deriva do latim facticius artificial fictício No período colonial os portugueses designavam com essa palavra os objetos inanimados cultuados por povos africanos O termo foi difundido nas línguas europeias através do francês fétiche sendo reimportado para o português Seu emprego com conotação sexual remonta na França a Binet Le Fétichisme dans lamour 1888 e na Alemanha a KrafftEbing Psychopathia Sexualis 1886 Um notável emprego clínico do conceito de Verleugnung foi feito por Freud em seu estudo sobre Leonardo da Vinci nesta coleção no volume Arte literatura e os artistas à p 125 Donald Winnicott por sua vez buscou mostrar que o fetiche seria uma espécie de substituto coisificado dos objetos transicionais Por seu turno Jacques Lacan também reivindica a concepção freudiana de fetiche como um dos étimos epistemológicos de seu conceito de objeto a BINET A Le Fétichisme dans lamour Paris Payot 2001 KRAFFT EBING R Psychopathia Sexualis Trad francesa de Laurent e Csapo Paris Georges Carré Editeur 1886 LACAN J Autres écrits Paris Seuil 2001 Trad bras Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 LAFORGUE R Réfoulement scotomisation et transfert Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse 1926 WINNICOTT D W Transitional Objects and Transitional Phénomena In Collected Papers through Pediatrics to Psycho Analysis London Tavistock 1958 p 120146 NOTAS 1 Emprestou por sua predileção para distinguir da alucinação psicótica Emprestar é um ato consciente de atribuição essencial no fetichismo NT 2 René Laforgue 18941962 utiliza esse termo para explicar um processo próprio à psicose Tratase da anulação completa de uma percepção intolerável Escotoma do grego scotoma escuridão é uma região do campo visual que apresenta perda total ou parcial da acuidade visual NT 3 Segundo Freud além de a percepção permanecer é preciso um grande esforço do sujeito para manter a operação da Verleugnung Aqui temos um duplo movimento no qual a percepção indesejada é ao mesmo tempo aceita e negada Para se elevar à condição de fetiche passando por um recalcamento parcial o complexo representativo deve inicialmente ser capaz de substituir um objeto inexistente a saber o pênis feminino No entanto só posso substituir algo inexistente se eu for capaz de recusar a sua realidade É para viabilizar tal operação que encontramos aquilo que Freud chama de Verleugnung Normalmente esse termo é traduzido em português por desmentido devido à sua proximidade com palavras alemãs como Lüge mentira e ableugnen desautorizar Mas no presente texto a especificidade dessa forma de negação vem do fato de ela contrariamente ao recalcamento Verdrängung neurótico ou à negação rejeição Verwerfung psicótica não ser solidária de alguma forma de não saber Não se trata aqui de recalcar ou expulsar o saber sobre a castração e sobre o vazio de objeto que ela impõe Estamos diante de um movimento duplo no qual saber e não saber podem coexistir es hat ihn bewahrt aber auch aufgegeben ela a conservou mas também a abandonou Portanto em vez do saber marcado pelo esquecimento próprio ao recalcamento a Verleugnung será uma contradição posta que é ao mesmo tempo contradição resolvida Dois julgamentos contraditórios estão presentes no Eu mas sem que o resultado de tal contradição seja um nada SAFATLE V Fetichismo colonizar o Outro Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2010 p 8384 NT 4 O bloqueio da memória na amnésia traumática é um mecanismo também presente na estrutura das lembranças encobridoras em que fica retida a última impressão anterior a uma imagem investida libidinalmente tal como Freud exemplifica na continuidade do texto O que constitui o fetiche é o momento em que tal como na lembrança encobridora a imagem se detém na impressão anterior à imagem traumática NT 5 Traduzir por bifurcada ou bicindida a posição do Eu do fetichista é uma decisão difícil porque o próprio Freud explica a cisão do Eu Ichspaltung com o argumento de que a castração da mulher é ali ao mesmo tempo afirmada e negada Não entendo isso como uma divisão pois se o fetiche ali se instala é porque a mulher justamente não perdeu o falo a crença foi alterada mas ao mesmo tempo foi salva como consta do texto de Freud e ao mesmo tempo é possível fazêla perdêlo isto é castrála também segundo Freud que diz normalmente ele o pênis da mulher estaria destinado a desaparecer mas justamente o fetiche está determinado a preserválo do desaparecimento Untergang neste texto Tratase portanto não de uma divisão de uma cisão do Eu mas da convivência no Eu de dois elementos inconciliáveis NT 6 Tratase de um caso famoso na época utilizado por Freud para justamente descrever e reforçar a questão da presença simultânea de duas suposições reciprocamente inconciliáveis As tranças como substitutas do pênis feminino seriam uma forma de recusar a realidade da castração e o ato de cortálas realiza uma castração que o próprio fetichista não reconhece ao realizar a substituição Freud diz que essa seria uma maneira de conciliar as duas proposições contrárias a mulher conservou seu pênis e o pai castrou a mulher NT POSFÁCIO NEUROSE PSICOSE PERVERSÃO A IMPLICAÇÃO DO SUJEITO NA NOSOLOGIA FREUDIANA Antônio Teixeira O leitor que abrir o conjunto dos textos que compõem o presente volume Neurose psicose perversão encontrará toda uma série de formulações em que Freud busca desenvolver o diagnóstico diferencial das estruturas clínicas da Psicanálise distinguindo os vários modos de adoecimento psíquico conforme os meios empregados pelo sujeito ou para manter distantes exigências pulsionais incompatíveis com os modelos identificatórios que constituem a representação que tem de si mesmo76 ou para dizer com Freud para delas se defender abwehren Essas reflexões clínicas se desenvolvem num longo percurso que vai desde as cartas e os manuscritos que gravitam em torno de As neuropsicoses de defesa77 contemporâneos da própria invenção da Psicanálise passa pelos trabalhos metapsicológicos sobre o luto e a melancolia de 1917 e pela célebre discussão sobre O problema econômico do masoquismo de 1924 e conduz até o artigo sobre o fetichismo de 1927 Este volume contém igualmente valiosos estudos clínicos sobre os tipos de adoecimento psíquico relativo à experiência da renúncia pulsional duas importantes discussões sobre as soluções subjetivas no quadro das perversões além dos célebres ensaios clínicolinguísticos Sobre o sentido antitético das palavras primitivas e A negação Finalmente ainda inclui dois estudos seminais sobre a clínica diferencial da neurose e da psicose uma pesquisa históricoclínica sobre um caso de suposta possessão demoníaca que teria ocorrido no século XVII além da investigação Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina e da Comunicação de um caso de paranoia que contradiz a teoria psicanalítica Ao ler esses admiráveis ensaios clínicos com nosso olhar de hoje esse olhar profundamente transformado pelas modificações que a luz freudiana imprimiu sobre a própria visão contemporânea do mundo e sobre nosso lugar na civilização com esse olhar já um tanto naturalizado pela absorção quase geral das categorias psicanalíticas na abordagem contemporânea dos mais diversos fenômenos mentais ou psíquicos o leitor talvez não consiga estimar corretamente o valor extraordinário de sua subversão Para ter uma ideia mais precisa da radicalidade inovadora do gesto que orienta a construção da nosologia freudiana serlheia necessário entender a diferença que ela gerou em relação ao contexto que a precede e sobre o qual ela incide A esse fim inúmeras vias se lhe apresentam Ele poderia por exemplo tentar dimensionar a cisão produzida por Freud sobre as categorias psicológicas fundadas na primazia da consciência e do Eu ao estabelecer classes sintomáticas estruturadas a partir do destino dado a representações psíquicas recusadas pela consciência Serlheia igualmente importante avaliar o lugar dado por Freud à sexualidade tanto na etiologia miserável do adoecimento psíquico quanto na composição das obras mais edificantes da cultura Caberia também enfatizar a originalidade da concepção freudiana do circuito pulsional da libido no nível da satisfação autoerótica indiferente tanto aos critérios instrumentais da cultura quanto às normas biológicas da reprodução assim como a percepção não moralizante da perversão como verdade do recalcamento neurótico Valeria igualmente lembrar a mutação que a escuta clínica de Freud gerou sobre a própria percepção científica da linguagem e das categorias discursivas da realidade além de tantas outras transformações impossíveis de se listar nesse espaço Uma escolha portanto se nos impõe De nossa parte optamos por demonstrar um elemento de articulação conceitual inexplícito que funciona como denominador comum a essas transformações Sua importância se deixa particularmente medir pelo valor operatório de uma categoria discursiva da qual Freud jamais fez um uso propriamente conceitual mas por onde sua reflexão teórica se vincula com a prática clínica Referimonos à categoria de sujeito empregada com parcimônia por Freud categoria cujo devido valor será conceitualmente estabelecido por Jacques Lacan Mas para entender o que está em jogo nessa trama conceitual do sujeito como categoria operatória implícita na nosologia freudiana é preciso despregar os olhos da superfície do tabuleiro de xadrez e ver de cima a posição das peças Necessitamos nos afastar provisoriamente de nosso tema e meditar primeiramente sobre uma evidência mais genérica que tanto ultrapassa quanto emoldura o campo psicanalítico no âmbito da psicopatologia o diagnóstico altera o prognóstico Quem trabalha com o sofrimento psíquico ou mental não pode se furtar a medir o quanto o estigma produzido por uma categoria nosológica vem modificar a própria evolução da enfermidade assim definida cujo curso encontrase vinculado à expectativa que o paciente mantém em relação ao Outro social que o nomeia Seja na forma da patologia histérica que visa excitar o desejo do Outro ao fazer enigma do próprio sintoma seja na tarefa interminável do obsessivo que consagra sua vida a esmiuçar as regras do Outro buscando a garantia do seu reconhecimento seja ainda na perplexidade do sujeito psicótico às voltas com as exigências obscenas do Outro a expectativa gerada pelo diagnóstico que altera o prognóstico se formula numa mesma pergunta O que o Outro espera de mim Por vezes chegamos a comparar os efeitos químicos de um medicamento com os efeitos igualmente químicos da expectativa gerada pela percepção que o paciente passa a ter de si mesmo ao receber o veredito diagnóstico visto que existe factualmente uma alteração química provocada pela expectativa cientificamente demonstrada nos estudos atuais sobre o efeito placebo Se até hoje frequentemente falamos dos efeitos de estigmatização diagnóstica é porque por um bom tempo a solução clássica ao problema da expectativa consistia em responder à palavra pela via da marca ao significante pela via do signo Diante da questão significante endereçada ao sujeito a respeito do que dele espera o Outro o estigma é o signo que fixa a resposta na forma de uma marca inscrita no corpo Surgido no século XV como termo religioso referido às chagas de Cristo o substantivo stigmata veio denotar a partir do século XVII a ideia do castigo que inscreve sobre a pele a marca da infâmia que define a expectativa do Outro social Será somente mais tarde a partir do final do século XIX que a conotação moral desse termo será cientificamente neutralizada passando a receber no vocabulário médico o valor puramente semiológico do sinal mórbido sobre o qual se estabelece o diagnóstico de uma patologia Normalmente inferimos que a percepção de um fenômeno perde sua conotação moralizante quando esse mesmo fenômeno se torna objeto do discurso da ciência Assim o último eclipse lunar batizado de luadesangue nome aziago que na era précientífica evocava maus presságios em nosso tempo colonizado pelo discurso científico foi percebido apenas como uma curiosidade banal Mas se o estigma difamante da doença pôde ser neutralizado no campo da medicina científica por que então o opróbrio permanece ainda ligado ao sujeito diagnosticado como portador de patologia mental ou mesmo psíquica Porque é possível até hoje insultar alguém o chamando de psicótico de histérico ou de perverso sem que se produza o mesmo efeito ao chamar alguém de diabético ou de hipertenso Teríamos então de aguardar pela ocasião em que a objetivação científica do fenômeno mental viria neutralizar o efeito difamante ocasionado pelo diagnóstico psicopatológico momento enfim em que no lugar de nos referirmos ao sujeito melancólico falaríamos de um caso grave de serotoninopenia e em vez de psicose delirante diríamos se tratar de hiperdopaminemia Pelo tom visivelmente irônico da pergunta já se adivinha que nossa resposta é negativa Na verdade não é simplesmente em razão de uma suposta insuficiência do saber científico que o diagnóstico da patologia mental e do sofrimento psíquico resiste a ser abordado cientificamente Há um engano em supor que a loucura se deixa constituir naturalmente como um objeto da ciência como sucede no caso de uma reação química ou de um fenômeno físico É necessário antes de tudo entender que se a patologia dita mental pode ser tomada como objeto do saber científico essa objetivação dependeu de um gesto eminentemente moral não científico por meio do qual a ciência pôde conjurar em sua fundação cartesiana a possibilidade de coexistência entre loucura e racionalidade A historiografia de Foucault demonstranos amplamente que racionalidade e loucura nem sempre foram dimensões excludentes elas haviam mantido até o início da era clássica uma relação reversível na qual a loucura se revelava à razão na forma de sua verdade oculta Se Aristóteles podia aproximar no problema XXX o homem de gênio da melancolia é porque a loucura podia ser vista como uma espécie de paroxismo da razão Ela ora constituíase como sua consciência trágica visível por exemplo nas telas de Bosch ora como sua crítica irônica celebrada no famoso Elogio de Erasmo de Roterdã Esse tópos da razão louca lugar retórico da suspeita de que a construção racional do mundo pudesse no fundo ser ensandecida chegou a ser tão disseminado que não se podia isolálo num sítio definido Para que a loucura ganhasse seu lugar perceptivo próprio foi necessário um gesto que a desenredasse violentamente do pensamento Se ela pôde se constituir a partir do final do século XVIII como objeto de uma percepção racional positiva sua objetivação está condicionada pelo momento anterior do século XVII em que a construção racional do saber pôde se separar das figuras do desatino Distintamente do ceticismo quinhentista de Montaigne ensaísta que se recusava a construir sistemas por desconfiar de toda base racional do pensamento a Filosofia que se inaugura no século XVII com René Descartes propõese a edificar uma nova ciência pelo mesmo gesto que reduz a loucura ao silêncio a impossibilidade de ser louco passa a ser vista como condição essencial ao exercício metódico da dúvida na procura de uma base sólida para o pensamento Ao estabelecer em sua origem que a natureza pode ser objetivamente conhecida em sua estrutura matemática o pensamento científico moderno organizou a convicção de que o problema do engano e do erro não se encontra na racionalidade concebida nela mesma mas somente no seu uso indisciplinado Em vez de atacar a razão propõese sua reforma num movimento cujo eixo se desloca do ser para o conhecer da ontologia para a epistemologia Basta ler o título das obras dispostas na estante do século XVII numa biblioteca de Filosofia para perceber que todas traduzem a mesma preocupação preventiva Seja no Discurso do método elaborado por Descartes seja na Reforma do entendimento redigida por Espinosa seja no Ensaio sobre o entendimento humano proposto por Locke seja ainda na Investigação acerca do entendimento de Hume a percepção da loucura como erro de percepção se torna objeto de uma questão recorrente sob quais condições a razão delira78 Embora não caiba pormenorizar aqui em todos os detalhes o que foi esse longo processo de depuração da razão é importante salientar que em seu curso a loucura não mais será tomada como experiência de lucidez Diante da pergunta sobre o que o Outro espera de mim a ciência agora responde que do louco não se deverá esperar mais nenhum pensamento A loucura perderá sua dignidade de consciência trágica para ser tratada como fonte de erro a partir do gesto não científico de exclusão moral que a separou da razão Esse dado interessanos particularmente porque notamos que tal movimento de exclusão moral não se deixa neutralizar através dos esforços de objetivação científica Por mais que prática científica e prática de segregação moral estejam embasadas por discursos de natureza e finalidade estruturalmente distintas ambas até hoje se dão as mãos quando se encontram no campo da patologia mental e do sofrimento psíquico Em nosso entender se o discurso ciência cujo valor e nobreza jamais contestamos ao ser convocado no domínio da psicopatologia termina por fazer parte dessa infame aliança com as práticas segregacionistas é na medida em que todo esforço de objetivação dessas patologias se coloca a serviço daqueles que visam privar o louco do valor de sua palavra Ao definir alguém como alienado o discurso segregacionista apoiase na autoridade científica para silenciar sua fala seja excluindoo fisicamente da comunidade através de medidas de internação sistemática seja tratando cientificamente sua diferença nos termos veladamente morais de comportamento inadaptado ou de déficit cognitivo Quando se elimina a palavra do louco objetivando sua patologia só lhe resta o estigma das subjetividades desacreditadas de que fala Erving Goffman em seu estudo sobre as instituições totais O ponto é portanto este seja qual for o seu nível de êxito ou de dificuldade em tratar cientificamente o fenômeno mental a ciência estabelece axiomaticamente em sua fundação que da loucura como pensamento nada se deve esperar ela nada tem a dizer Desse rechaço original se explica o fato de que toda a psicopatologia constituída ao longo do século XIX pôde se valer de padrões normativos de classificação que embora desprovidos de verdadeira metodologia científica comungavam com a ciência o gesto de eliminação da palavra do alienado mental Com o surgimento propriamente moderno das práticas disciplinares a loucura passaria a ser tomada como um desvio do sujeito em relação à sua representação social sendo a cura a restituição dessa adequação perdida através de um processo que visa estabilizar o doente numa representação reconhecida socialmente Se nesse século se viu surgirem as ciências do homem foi na medida em que nele se gerou um saber ou um poder epistemológico para retomar o termo de Foucault calcado na prática de observação de registro e de comparação dos comportamentos humanos que objetivava em última instância sua representação nas classes sociais definidas pelo Estado É bem verdade que em princípio não há nada de propriamente descomedido numa prática classificatória Existem classes ou seja multiplicidades unificadas sobre a base de uma propriedade definida condicionadas pela existência exterior a ela de outra classe como limite sem tal propriedade Há contudo uma importante diferença quando se trata de classificar sujeitos sobretudo quando tratamos da nosologia como doutrina das classes diagnósticas as classes cujos elementos são sujeitos não se encontram fundadas sobre nenhuma propriedade empiricamente representável79 Por mais que se tente diferenciar grupos de indivíduos mediante algum traço predicativo o que pode bem ser um entalhe inscrito no corpo como no caso judaico da circuncisão não há nada que justifique a priori a inclusão de sujeitos numa classe determinada Existe apenas o efeito de alienação a um nome de modo que a propriedade identificatória que lhe é assim atribuída necessita ser constantemente reafirmada pelo gesto de sua nomeação O que explica em nossa prática clínica que o diagnóstico tenha incidência sobre o prognóstico conforme dizíamos no início é que as classes assim constituídas produzem efeitos consideráveis sobre os seres que nelas se representam Mas com a importante ressalva de que o sujeito não se deixa alienar inteiramente nessa representação que o unifica como elemento de uma classe Há sempre algo de sua apresentação que não se deixar representar há sempre um resto inerente ao sujeito que resiste a ser assimilado pelas propriedades representativas do indivíduo Munidos dessas considerações finalmente voltamos ao tabuleiro de nosso jogo para alcançar o aspecto propriamente inovador que diferencia a nosografia freudiana das práticas nosológicas que a precederam foi justamente por considerar a causa do desejo como resto irrepresentável da apresentação subjetiva que a perspectiva freudiana surgiu intercedendo como resposta ao contexto de objetivação do mental pelas práticas disciplinares Ao ser convocada a intervir como uma terapêutica a Psicanálise não procedeu como chegou a afirmar Foucault em continuidade com as práticas de controle que visavam ajustar o indivíduo à unidade de sua representação80 A Psicanálise surgiu antes como resposta ao malestar gerado pela dificuldade que experimenta o sujeito em se adequar à classe que o nomeia por se haver com algo da exigência pulsional que o divide ou seja que não se deixa integrar em sua unidade representativa de indivíduo Por isso ela deve sua origem à consideração clínica por parte de Freud da loucura histérica no que ela tinha de mais desconcertante para o saber classificatório doença inclassificável por excelência a histeria se modifica constantemente com relação a ela própria colocando a perder todo esforço de objetivação por sua capacidade de exibir de maneira aparentemente aleatória os sinais clínicos de todas as classes diagnósticas Sejamos portanto subjetivos para decifrar o enigma da histeria objetivála no nível pretensamente científico de uma psicologia dos fenômenos mentais ou psíquicos não nos leva muito longe é preciso antes de tudo escutar o que o sujeito histérico tem a dizer Para nos certificarmos disso basta abrir as páginas iniciais do ensaio sobre As neuropsicoses de defesa81 Abwehrneuropsychosen escrito em 1894 por um Freud neurologista ainda anônimo seis anos antes da publicação da Interpretação dos sonhos Die Traumdeutung Notamos de imediato em seu agudo comentário sobre os fenômenos histéricos de divisão da consciência que ele não visa esclarecer essa divisão pela hipótese objetivante de uma deficiência da capacidade de síntese psíquica do indivíduo como queria Pierre Janet Ao escutar seus pacientes Freud desnaturaliza a concepção de doença mental notando de saída que a cisão da consciência deriva não de uma falha de síntese mas antes de um ato de vontade eines Willenaktes do doente sem com isso afirmar que o doente tenha a intenção de produzir uma cisão Já existe portanto nesse algo da vontade que escapa à intenção da consciência a expressão da exigência pulsional como parte de uma satisfação que divide o sujeito alheia à representação unificada do eu Tudo se passa como se a sanidade psíquica subsistisse até o momento em que surgiu um caso de intolerabilidade em sua vida representacional isto é até que se apresentou ao seu Eu uma vivência que despertou um afeto tão desagradável que a pessoa decidiu a esquecer A solução histérica e não sua deficiência inata como diria uma vez mais Janet consiste em transpor esse fator libidinal incompatível para o corpo na forma da conversão com vistas a desembaraçar a unidade egoica do elemento desarmônico que passa assim a parasitar uma função corporal O traço mnêmico dessa ideia recalcada não é eliminado mas vem formar o núcleo de outro grupo psíquico inacessível à consciência que a operação psicanalítica tenta desvelar Não é contudo somente na loucura histérica que Freud identifica a inadequação entre a apresentação dividida do sujeito e a unidade representativa do Eu Ele a identifica em outro tipo de loucura a loucura obsessiva que tende a ser tanto mais grave quanto mais normal o indivíduo se esforça para ser No lugar de transpor o fator libidinal incompatível para o corpo a defesa consiste agora em manter a representação mental desse fator distante das associações do pensamento consciente fazendo com que o afeto dali desligado passe a habitar ideias obsessivas aparentemente absurdas que parasitam a consciência entulhandoadesses pensamentos Em sua paixão pela normalidade o sujeito não mais percebe que as ideias obsessivas são autorrecriminações alteradas de uma satisfação impedida submetendose a regras e cerimoniais que o exaurem na tarefa infinita de preservar uma unidade sem falhas No entender de Freud esse fator pulsional que se manifesta tanto na conversão histérica quanto na compulsão obsessiva deve expressar algo da realidade sexual que resiste a ser assimilado pela unidade representativa do eu em razão da impossibilidade de se representar cognitivamente o sentido da excitação sexual Se ele chega a definir a neurose nos termos de uma solução negativa da perversão é por divisar na atitude perversa o destino da pulsão sexual não submetida ao mecanismo de recalcamento Não é portanto casual conforme lembra Pedro Heliodoro Tavares que Freud estivesse atento à derivação do termo Kränkung que em alemão significa literalmente ofensa para o adjetivo krank doente em seus Estudos sobre a histeria Interessalhe fundamentalmente demonstrar a partir de sua escuta clínica da histeria e dos sintomas obsessivos o quanto a ofensa moral pode levar ao adoecimento Mas há também para além da loucura histérica e da loucura obsessiva a loucura propriamente dita ou seja a loucura psicótica em que o fator pulsional recebe um destino diverso Em vez de ser enquistado num pensamentoparasita ou transposto para algum componente somático de valor simbólico o elemento recusado se encontra de tal modo enredado na realidade externa que o Eu termina por se desligar total ou parcialmente da realidade As autorrecriminações do obsessivo e a satisfação impedida da histérica se deslocam via projeção para os sentimentos delirantes de desconfiança e perseguição situando no campo do Outro o excesso pulsional incompatível com a representação do sujeito Decerto nossa apresentação um tanto esquemática desses três modos de solução nem de longe faz justiça à riqueza de detalhes que Freud cuidadosamente desenvolve ao abordar o adoecimento psíquico como efeito da dificuldade do sujeito em atender a uma exigência de adequação Desse esquema nos servimos tão somente para enfatizar que sua inteligibilidade se deu na medida em que Freud no lugar de pensar o sofrimento na perspectiva objetivante do saber científico que silencia a palavra do louco preferiu ouvir o que seu paciente tinha a dizer Mas ao tomar seu paciente como sujeito e não como objeto de sua investigação Freud cedo percebeu que para alcançar pela via da palavra a verdade dessa inadequação do desejo seria necessário colocar em marcha um tipo de experiência da linguagem radicalmente diverso daquele que se dá no nível das significações sociais do discurso Pois se o que conforma o sujeito à sua representação unificada de indivíduo se liga ao uso regrado que ele faz da palavra em observância aos preceitos da comunidade discursiva à qual ele pertence a verdade irrepresentável do desejo somente pode ser tocada ao se dar à palavra um destino diverso das significações codificadas socialmente Dar de fato a palavra ao sujeito pela via da associação livre consiste em convidálo a desligar a linguagem da função instrumental de representar a realidade mostrandolhe como sua fala pode gerar efeitos significantes inéditos reveladores de uma verdade que se apresenta no engano alheia ao que se intenciona significar A hipótese clínica que guia Freud é a de que se há uma loucura no sintoma manifesta tanto na estranheza dos pensamentos parasitas quanto nas disfunções somáticas e nas inferências delirantes dar a palavra ao paciente significa ouvir o que essa perturbação quer dizer Mas ao tentar captar o sentido pulsional do desejo sob o sintoma aparentemente louco Freud constata que a língua na qual ele se expressa é ela também uma língua enlouquecida Para escutar o que o sintoma diz é necessário se formar numa língua que não reconhece o princípio de não contradição uma língua que se move mais pela assonância do que pela organização discursiva do conceito uma língua cujas palavras se ligam mais em função de sua conexão afetiva do que pelo significado convencional que governa seu uso na comunicação uma língua que escapa às regras tanto semânticas quanto sintáticas da língua comum uma língua cuja gramática longe de se reduzir a um conjunto de normas impessoais antes revela a própria posição que o sujeito adota em relação aos representantes simbólicos da pulsão A essa língua ensandecida Freud deu o nome de inconsciente82 Escusado lembrar que o caminho jamais esteve livre para tal experiência Se o gesto de Freud consistia como diz Foucault em fazer a palavra voltarse sobre si mesma emancipandoa da função de representação o projeto de uma linguagem científica universal levado a frente pelo trabalho de Ogden e Richard The Meaning of Meaning voltaria a reforçar ainda mais o ideal de concepção de uma língua representativa ideal depurada ao máximo das fontes de engano em que habita a verdade freudiana83 Não deixa aliás de ser interessante constatar que o programa difundido por Ogden e Richard em 1923 é contemporâneo do manifesto surrealista lançado por André Bréton no ano 1924 em direção diametralmente oposta a uma concepção higienista da língua No mesmo momento em que a versão neopositivista da ciência apostava nos efeitos terapêuticos do controle disciplinar da linguagem o programa surrealista de inspiração freudiana qualificado aliás por Walter Benjamin como o último instante de brilho da inteligência europeia visava expor o quão interessante pode ser extraviar as palavras de sua tarefa de significar Como se dá no processo de associação livre e no trabalho do sonho o sentido visado na escritura automática surge como resultado não previsível dos encontros e efeitos de assonância que a linguagem permite Destituído de sua função de ordenar as palavras o sentido passa a ser tomado como efeito puramente contingente de sua articulação Mas o surrealismo não satisfaria a Freud porque Freud não faz literatura apesar de ser em grande medida um homem de letras Freud é para sermos mais exatos um cientista letrado paradoxalmente conduzido a resgatar a dimensão subjetiva que o discurso da ciência visa excluir Na impossibilidade de encontrar entre seus pares um meio de projetar cientificamente o seu achado Freud irá recorrer à arqueologia linguística para produzir o instigante estudo Sobre o sentido antitético das palavras primitivas Ao estudar os ensaios publicados em 1884 pelo filólogo Karl Abel Freud encontra a demonstração empírica de que uma quantidade considerável de palavras pode assumir sentidos opostos na língua egípcia antiga imaginemos que a palavra forte signifique tanto forte como fraco que o substantivo luz seja usado para designar tanto luz quanto escuridão que haja também compostos como velhojovem longeperto e daí por diante Freud se entusiasma por descobrir um achado científico que verifica sua hipótese sobre o funcionamento inconsciente da linguagem no trabalho do sonho que lhe parece prescindir tanto da negação quanto da expressão de elementos opostos Ele acreditava ter diante dos seus olhos a prova cabal de que o uso representativo de uma linguagem unívoca seria na verdade apenas uma das versões possíveis do seu emprego que havia de fato uma equivocidade original das palavras que lhe permitia desvelar na fala de seus pacientes um sentido absolutamente distinto daqueles que se encontram codificados no discurso consciente Embora o aspecto propriamente metodológico de tal pesquisa possa ser questionado como se constata na acerba crítica que lhe foi dirigida pelo linguista Émile Benveniste o valor das inferências freudianas permanece absolutamente válido Por mais duvidosa que seja a veracidade dos dados filológicos recolhidos por Abel é injusto dizer como faz Benveniste que Freud dali infere a tese de que uma mesma palavra possa gerar sentidos opostos em seu uso lexical Freud não é ingênuo a ponto de supor que um elemento da língua possa designar ao mesmo tempo A e nãoA em sua locução visto que o próprio princípio de diferenciação linguística entre A e nãoA supõe a presença de elementos linguísticos de valores diferentes O que na verdade conta para Freud no que tange às palavras de sentido antitético é que por meio delas se verifica que a diferenciação dos elementos da língua não se encontra necessariamente dada a priori na própria estrutura da língua tal diferenciação depende para se produzir de uma decisão que encaminha essa diferença segundo a tática subjetiva de sua enunciação Mais importante portanto do que a tese extraída diretamente de Abel é sua consequência a impossibilidade de se decidir de saída quanto à significação de um dado elemento da língua MILNER 2002 Não é nem mesmo necessário recorrer a uma arqueologia da linguagem para verificála a sincronia nos basta Tal é o caso para retomar seus exemplos do artigo indefinido um que pode se aplicar a determinado referente justamente para designar sua multiplicidade quando se diz um cisne supõese que haja vários ao passo que o artigo definido singular se diz justamente do que é único a Terra o Sol a Lua etc O artigo indefinido um pode tanto designar um indivíduo no meio da multiplicidade por oposição à espécie um violino chora ao longe quanto o indivíduo típico que vale como representante da espécie um violino é um instrumento de cordas etc Caso se queira outros exemplos temos também o uso do não que ao preceder uma frase pode muito bem expressar o desejo afirmativo visível por exemplo na locução não me diga que fui aprovado etc Ora esses dados aparentemente triviais comportam um interesse eminentemente clínico para a prática psicanalítica da ambiguidade virtualmente presente em todo elemento da língua depende o próprio gesto da interpretação que aponta para a singularidade do desejo ao encaminhar a partir de uma palavra um sentido distinto de sua codificação discursiva A interpretação consiste precisamente em introduzir diferenciações sobre o elemento da língua no próprio lugar em que esse elemento não se diferencia Mas o que vem então orientar a decisão do psicanalista no momento da interpretação Por meio de qual sinalização ele escolhe a via em que encaminha o traço diferencial da palavra concernida Uma vez mais sejamos subjetivos A bússola que guia Freud é sempre a fala do seu paciente Mas se trata de escutálo enquanto sujeito e não no que se formula no nível consciente do Eu Ou seja importa mais escutar o que ele diz do que aquilo que se acrescenta ao que foi dito para tornar adequada a sua recepção como fica exposto na clássica discussão sobre a negação Negar um conteúdo para tornar uma fala aceitável é um sinal a mais para escutar naquilo que foi sonegado pela negação uma satisfação subjetiva incompatível com a representação unificada que se tem de si mesmo A ela se liga a percepção íntima do próprio como impróprio do qual a vergonha seria o afeto emblemático Por isso o sentido do qual se trata de interpretar diz menos respeito a uma significação presente em algum código esotérico do que a uma energética da satisfação pulsional relativa ao objeto de desejo A interpretação freudiana não se confunde com uma hermenêutica porquanto não visa ao significado encoberto de um determinado termo Longe de ser o conteúdo escondido a ser desnudado sob um disfarce o inconsciente freudiano se dá a ver na própria composição do disfarce na forma mesma de sua deformação Está muito mais em questão como se verifica exemplarmente nos chistes o efeito de satisfação semântica visível na deformação que o objeto de desejo impossível de se representar imprime sobre o discurso representativo do que o significado oculto de uma verdade latente É nessa via que Freud nos convida a entender os tipos de adoecimento neurótico a autorreprovação do melancólico os sentimentos persecutórios do paranoico assim como o elemento erótico que articula a gramática da fantasia em Batese numa criança Em todas as situações duas perguntas essenciais se colocam para o clínico qual modo de satisfação pulsional ali se encontra envolvido e que tipo de impedimento estaria em causa Com a importante ressalva de que se as diversas soluções subjetivas podem ser tipificadas no interior de classes diagnósticas estabelecidas pela doutrina psicanalítica o que verdadeiramente conta para a escuta clínica é a solução sintomática por meio da qual cada sujeito vem se haver com o problema da exigência pulsional e da prescrição social de seu modo de satisfação e renúncia Por mais que possamos nos referir à conversão corporal da satisfação impedida no caso da histeria de seu deslocamento para o pensamento parasita no obsessivo ou da transferência do excesso pulsional para o Outro no caso da paranoia as classes diagnósticas assim constituídas não devem convocar nenhum agrupamento Histeria obsessão e paranoia são nomes que somente indicam a maneira histérica obsessiva ou paranoica que tem um sujeito de ser inclassificável dessemelhante de todo outro MILNER 1983 É nessa perspectiva que entendemos o célebre preceito freudiano que nos exorta a abordar cada caso como se fosse o primeiro devemos deixar metodologicamente de lado o saber acumulado no estudo da nosologia para dar abertura ao saber que não se sabe do inconsciente que se desenvolve de maneira inédita em cada nova situação clínica Dela deriva a ênfase que a Psicanálise dá à dimensão do caso único da experiência ímpar que não se repete Falamos sempre do caso a caso do um a um estamos continuamente à espreita daquilo que o sintoma comporta como solução subjetiva incalculável assim como da resposta que cada um traz a problemas para cuja saída não havia coordenadas previstas Cabenos contudo tomar cuidado para que a exortação desse princípio não coloque a perder a sua inteligibilidade É sempre bom lembrar que a exaltação do singular tópos romântico por excelência traz frequentemente consigo a recusa da demonstração como se o procedimento demonstrativo viesse dissipar o frisson poético da invenção subjetiva na aridez formal do cálculo epistêmico Assim como para Hegel a Filosofia deve se guardar de ser uma prática edificante a Psicanálise por sua vez deve evitar se transformar numa prática exortatória A Psicanálise é filha do discurso científico e por isso mais afeita à demonstração do que à exortação Ela não pode ficar indiferente ao problema da formalização que se requer de cada caso singular e necessita por conseguinte encontrar um modo de articulação da singularidade subjetiva ao universal do discurso em que sua solução se transmite Diríamos então que a despeito de nosso interesse pelo elemento não tipificável do caso único da singularidade irreprodutível de cada solução subjetiva nem por isso devemos deixar de procurar os elementos recorrentes que apontam para o que há de constante no caso singular segundo um método que essa busca exige Importanos indicar para além da inclusão do sujeito nas classes determinadas pelos saberes diagnósticos o dado invariante relativo ao modo singular de satisfação pulsional do qual Freud amiúde extraía a própria nomeação do caso clínico Sintagmas tais como o homem dos ratos o homem dos lobos a jovem homossexual a bela açougueira aos quais se poderia acrescentar a mulher de Deus a propósito de Schreber ou o menino dos cavalos a propósito do pequeno Hans nada mais são do que nomeações que indicam nos modos singulares de encaminhamento da pulsão o elemento invariante metodologicamente apreensível que se repete na história singular de cada um REFERÊNCIAS FOUCAULT M A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro Nau 1999 IANNINI G Estilo e verdade em Jacques Lacan Belo Horizonte Autêntica 2013 OGDEN C K RICHARDS I A The Meaning of Meaning New York HarvestHBJ 1989 1923 MILNER JC Les Noms indistincts Paris Seuil 1983 MILNER JC Le Périple structural Paris Seuil 2002 76 É preciso deixar claro que aqui estamos dando ao termo representação no sentido de representação do sujeito como indivíduo um emprego absolutamente diverso daquele visado no léxico freudiano Vorstellung em que a palavra representação é usada para designar de maneira geral elementos psíquicos que se encadeiam no pensamento ou reproduções de percepções passadas 77 O texto intitulado As neuropsicoses de defesa será incluído em outro volume desta coleção NE 78 O comentário acima foi extraído de um dos cursos magistrais do professor Ricardo Fenati na Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 79 Retomamos aqui a discussão desenvolvida por JC Milner sobre as classes paradoxais MILNER 1983 80 Vale lembrar que Foucault situa a Psicanálise tanto em continuidade como em ruptura com relação a esse processo em momentos distintos de seu pensamento FOUCAULT 1999 p 122 81 O referido ensaio será incluído nesta coleção no volume Histeria obsessão e outras neuroses no prelo 82 Cf a propósito dessa língua ensandecida do sintoma a conferência A loucura do sintoma proferida por Ram Mandil na Seção Minas da Escola Brasileira de Psicanálise ainda inédita 83 A esse respeito leiase a discussão desenvolvida por Gilson Iannini nas seções 3 4 e 5 do primeiro capítulo de Estilo e verdade em Jacques Lacan IANNINI 2013 REFERÊNCIAS O aparato editorial do presente volume apoiouse nos principais aparatos críticos disponíveis em línguas estrangeiras nas biografias mais conhecidas e em alguns dicionários temáticos APARATOS CRÍTICOS ESTRANGEIROS LAPLANCHE J Ed Œuvres complètes de Freud Paris PUF 19882016 Notices notes et variantes de Alain Rauzy STRACHEY J Apparatus In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud Translated from the German under the General Editorship of James Strachey Londres 19561974 DICIONÁRIOS E CONGÊNERES ASSOUN PL Dictionnaire des œuvres psychanalytiques Paris PUF 2009 LAPLANCHE J PONTALIS JB Vocabulário de psicanálise São Paulo Martins Fontes 1998 ROUDINESCO E PLON M Dicionário de psicanálise Rio de Janeiro Zahar 1998 TAVARES Pedro Heliodoro Versões de Freud breve panorama crítico das traduções de sua obra Rio de Janeiro 7 Letras 2011 BIOGRAFIAS GAY P Freud uma vida para nosso tempo São Paulo Companhia das Letras 1989 JONES E Vida e obra de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1998 3 v ROUDINESCO E Sigmund Freud en son temps et dans le nôtre Paris Seuil 2014 OBRAS INCOMPLETAS DE SIGMUND FREUD A célebre enciclopédia chinesa referida por Borges dividia os animais em a pertencentes ao imperador b embalsamados c domesticados d leitões e sereias f fabulosos g cães em liberdade h incluídos na presente classificação i que se agitam como loucos j inumeráveis k desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo l et cetera m que acabam de quebrar a bilha A coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud é um convite para que o leitor estranhe as taxionomias sacramentadas pelas tradições de escolas e de editores classificações que incluem e excluem obras do cânone freudiano através do apaziguador adjetivo completas que dividem a obra em classes consagradas tais como publicações prépsicanalíticas artigos metapsicológicos escritos técnicos textos sociológicos casos clínicos outros trabalhos etc Como se um texto sobre a cultura ou sobre um artista não fosse também um documento clínico ou um escrito técnico não discutisse importantes questões metapsicológicas ou se trabalhos como Sobre a concepção das afasias por exemplo simplesmente jamais tivessem sido escritos A tradução e a edição da obra de Freud envolvem múltiplos aspectos e dificuldades Ao lado do rigor filológico e do cuidado estilístico ao menos em igual proporção deve figurar a precisão conceitual Embora Freud seja um escritor talentoso tendo sido agraciado com o prêmio Goethe entre outros motivos pela qualidade literária de sua prosa científica seus textos fundamentam uma prática a clínica psicanalítica É claro que os conceitos que emanam da Psicanálise também interessam em maior ou menor grau a áreas conexas como a crítica social a teoria literária a prática filosófica etc Nesse sentido uma tradução nunca é neutra ou anódina Isso porque existem dimensões não apenas linguísticas terminológicas semânticas estilísticas envolvidas na tradução mas também éticas políticas teóricas e sobretudo clínicas Assim escolhas terminológicas não são sem efeitos práticos Uma clínica calcada na teoria da pulsão não se pauta pelos mesmos princípios de uma clínica dos instintos para tomar apenas o exemplo mais eloquente A tradução de Freud autor tão multifacetado deve ser encarada de forma complexa Sua tradução não envolve somente o conhecimento das duas línguas e de uma boa técnica de tradução Do texto de Freud se traduz também o substrato teórico que sustenta uma prática clínica amparada nas capacidades transformadoras da palavra A questão é que na estilística de Freud e nas suas opções de vocabulário via de regra forma e conteúdo confluem É fundamental portanto proceder à escuta do texto para que alguém possa desse autor se tornar intérprete Certamente há um clamor por parte de psicanalistas e estudiosos de Freud por uma edição brasileira que respeite a fluência e a criatividade do grande escritor sem se descuidar da atenção necessária ao já tão amadurecido debate acerca de um vocabulário brasileiro relativo à metapsicologia freudiana De fato o leitor acostumado a um estranho método de leitura que requer a substituição mental de alguns termos fundamentais como instinto por pulsão repressão por recalque ego por eu id por isso não raro perde o foco do que está em jogo no texto de Freud Se tradicionalmente as edições de Freud se dicotomizam entre as edições de estudo que afugentam o leitor não especializado e as edições de divulgação que desagradam o leitor especializado procurouse aqui evitar tais extremos Quanto à prosa ou ao estilo freudianos procurouse preservar ao máximo as construções das frases evitando ambientações desnecessárias mas levando em conta fundamentalmente as consideráveis diferenças sintáticas entre as línguas A presente tradução direta do alemão envolve uma equipe multidisciplinar de tradutores e consultores composta por eminentes profissionais oriundos de diversas áreas como a Psicanálise as Letras e a Filosofia O trabalho de tradução e a revisão técnica de todos os volumes é coordenado pelo psicanalista e germanista Pedro Heliodoro Tavares encarregado também de fixar as diretrizes terminológicas da coleção O projeto é guiado pelos princípios editoriais propostos pelo psicanalista e filósofo Gilson Iannini A coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud não pretende apenas oferecer uma nova tradução direta do alemão e atenta ao uso dos conceitos pela comunidade psicanalítica brasileira Ela pretende ainda oferecer uma nova maneira de organizar e de tratar os textos A coleção se divide em duas vertentes principais uma série de volumes organizados tematicamente ao lado de outra série dedicada a volumes monográficos Cada volume receberá um tratamento absolutamente singular que determinará se a edição será bilíngue ou não o volume de paratexto e notas conforme as exigências impostas a cada caso Uma ética pautada na clínica Gilson Iannini Editor e coordenador da coleção Pedro Heliodoro Tavares Coordenador da coleção e coordenador de tradução Conselho editorial Antônio Teixeira Claudia Berliner Christian Dunker Claire Gillie Daniel Kupermann Edson L A de Sousa Emiliano de Brito Rossi Ernani Chaves Glacy Gorski Guilherme Massara Jeferson Machado Pinto João Azenha Junior Kathrin Rosenfield Luís Carlos Menezes Maria Rita Salzano Moraes Marcus Coelen Nelson Coelho Junior Paulo César Ribeiro Romero Freitas Romildo do Rêgo Barros Sérgio Laia Tito Lívio C Romão Vladimir Safatle Walter Carlos Costa VOLUMES PUBLICADOS As pulsões e seus destinos edição bilíngue Trad Pedro Heliodoro Tavares 2013 Sobre a concepção das afasias Trad Emiliano de Brito Rossi 2013 Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados Trad Pedro Heliodoro Tavares 2014 Arte literatura e os artistas Trad Ernani Chaves 2015 Neurose psicose perversão Trad Maria Rita Salzano Moraes 2016 VOLUMES TEMÁTICOS I Psicanálise O interesse pela Psicanálise 1913 História do movimento psicanalítico 1914 Psicanálise e Psiquiatria 1917 Uma dificuldade da Psicanálise 1917 A Psicanálise deve ser ensinada na universidade 1919 Psicanálise e Teoria da libido 19221923 Breve compêndio de Psicanálise 1924 As resistências à Psicanálise 1924 Autoapresentação 1924 PsicoAnálise 1926 Sobre uma visão de mundo 1933 II Fundamentos da clínica psicanalítica Tratamento psíquico tratamento anímico 1890 O método psicanalítico freudiano 1903 Sobre psicoterapia 1904 Sobre Psicanálise selvagem 1910 Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico 1912 Sobre a dinâmica da transferência 1912 Sobre o início do tratamento Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I 1913 Recordar repetir e perlaborar Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II 1914 Observações sobre o amor transferencial Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise III 1914 Sobre fausse reconnaissance déjà raconté no curso do trabalho psicanalítico 1914 Caminhos da terapia psicanalítica 1918 A questão da análise leiga 1926 Análise finita e infinita 1937 Construções em análise 1937 III Conceitos fundamentais da Psicanálise Cartas e rascunhos O mecanismo psíquico do esquecimento 1898 Lembranças encobridoras 1899 Formulações sobre dois princípios do acontecer psíquico 1911 Algumas considerações sobre o conceito de inconsciente na Psicanálise 1912 Para introduzir o narcisismo 1914 As pulsões e seus destinos 1915 O recalque 1915 O inconsciente 1915 A transferência 1917 Além do princípio de prazer 1920 O Eu e o Isso 1923 Nota sobre o bloco mágico 1925 A decomposição da personalidade psíquica 1933 IV Sonhos sintomas e atos falhos Sobre o sonho 1901 Manejo da interpretação dos sonhos 1911 Sonhos e folclore 1911 Um sonho como meio de comprovação 1913 Material de contos de fadas em sonhos 1913 Complementação metapsicológica à doutrina dos sonhos 1915 Uma relação entre um símbolo e um sintoma 1916 Os atos falhos 1916 O sentido do sintoma 1917 Os caminhos da formação de sintoma 1917 Observações sobre teoria e prática da interpretação de sonhos 1922 Algumas notas posteriores à totalidade da interpretação dos sonhos 1925 Inibição sintoma e angústia 1925 Revisão da doutrina dos sonhos 1933 As sutilezas de um ato falho 1935 Distúrbio de memória na Acrópole 1936 V Histórias clínicas Fragmento de uma análise de histeria Caso Dora 1905 Análise de fobia em um menino de cinco anos Caso Pequeno Hans 1909 Considerações sobre um caso de neurose obsessiva Caso Homem dos Ratos 1909 Considerações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado de forma autobiográfica Dementia paranoides Caso presidente Schreber 1911 História de uma neurose infantil Caso Homem dos Lobos 1914 VI Histeria obsessão e outras neuroses Cartas e rascunhos Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos 1893 Obsessões e fobias seu mecanismo psíquico e sua etiologia 1894 As neuropsicoses de defesa 1894 Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa 1896 A etiologia da histeria 1896 A hereditariedade e a etiologia das neuroses 1896 A sexualidade na etiologia das neuroses 1898 Minhas perspectivas sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses 1905 Atos obsessivos e práticas religiosas 1907 Fantasias histéricas e sua ligação com a bissexualidade 1908 Considerações gerais sobre o ataque histérico 1908 Caráter e erotismo anal 1908 O romance familiar dos neuróticos 1908 A disposição para a neurose obsessiva uma contribuição ao problema da escolha da neurose 1913 Paralelos mitológicos de uma representação obsessiva visualplástica 1916 Sobre transposições da pulsão especialmente no erotismo anal 1917 VII Amor sexualidade e feminilidade Sobre o esclarecimento sexual das crianças 1907 Teorias sexuais infantis 1908 Contribuições para a psicologia do amor 1910 a Sobre um tipo especial de escolha objetal no homem b Sobre a degradação geral da vida amorosa c O tabu da virgindade Duas mentiras contadas por crianças 1913 A vida sexual dos seres humanos 1916 Desenvolvimento da libido e organização sexual 1916 Organização genital infantil 1923 Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos 1925 Sobre tipos libidinais 1931 Sobre a sexualidade feminina 1931 A feminilidade 1933 VIII Sociedade religião cultura Moral sexual civilizada e doença nervosa 1908 Considerações contemporâneas sobre guerra e morte 1915 Psicologia de massas e análise do Eu 1921 O futuro de uma ilusão 1927 Uma vivência religiosa 1927 O malestar na cultura 1930 Sobre a conquista do fogo 1931 Por que a guerra 1932 Comentário sobre o antissemitismo 1938 VOLUMES MONOGRÁFICOS O inquietante edição bilíngue Seguido de O homem da areia de ETA Hoffmann O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen Seguido de Gradiva de W Jensen Três ensaios sobre a teoria sexual Psicopatologia da vida cotidiana O chiste e sua relação com o inconsciente Estudos sobre histeria Cinco lições de Psicanálise Totem e tabu O homem Moisés e a religião monoteísta Gilson Iannini Psicanalista filósofo editor Professor do Departamento de Filosofia da UFOP Doutor em Filosofia USP e mestre em Psicanálise Université Paris 8 Autor de Estilo e verdade em Jacques Lacan Autêntica Pedro Heliodoro Tavares Psicanalista germanista tradutor Professor da Área de Alemão Língua Literatura e Tradução USP Doutor em Psicanálise e Psicopatologia Université Paris VII Autor de Versões de Freud 7Letras 2011 e coorganizador de Tradução e Psicanálise 7Letras 2013 Antônio Teixeira Psicanalista e professor na UFMG onde leciona no Departamento de Psicologia É pósgraduado em Filosofia Contemporânea pela UFMG mestrado e em Psicanálise pela Universidade de Paris 8doutorado É autor de A soberania do inútil Annablume 2007 entre outros Maria Rita Salzano Moraes Professora do Departamento de Linguística Aplicada da Unicamp Doutora em Linguística Unicamp e mestre em Linguística Aplicada Unicamp Tradutora Copyright Copyright 2016 Autêntica Editora Títulos originais Aus den Anfängen der Psychoanalyse Über den Gegensinn der Urworte Über neurotische Erkrankungstypen Mitteilung eines der psychoanalytischen Theorie widersprechenden Falles von Paranoia Trauer und Melancholie Ein Kind wird geschlagen Beitrag zur Kenntnis der Entstehung sexueller Perversionen Über die Psychogenese eines Falles von weiblicher Homosexualität Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht Paranoia und Homosexualität Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert Der Untergang des Ödipuskomplexes Neurose und Psychose Der Realitätsverlust bei Neurose und Psychose Das ökonomische Problem des Masochismus Die Verneinung Fetischismus Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida seja por meios mecânicos eletrônicos ou em cópia reprográfica sem a autorização prévia da Editora EDITOR DA COLEÇÃO Gilson Iannini EDITORA RESPONSÁVEL Rejane Dias EDITORA ASSISTENTE Cecília Martins ORGANIZAÇÃO NOTAS E APARATO EDITORIAL Gilson Iannini Pedro Heliodoro Tavares REVISÃO TÉCNICA E DE TRADUÇÃO Pedro Heliodoro Tavares CONSULTORIA CIENTÍFICA Guilherme Massara Rocha Paulo César Ribeiro REVISÃO Aline Sobreira Lívia Martins PROJETO GRÁFICO E CAPA Diogo Droschi sobre imagem Sigmund Freuds Study Authenticated News DIAGRAMAÇÃO Larissa Carvalho Mazzoni Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Freud Sigmund 18561939 Neurose psicose perversão Sigmund Freud tradução Maria Rita Salzano Moraes Belo Horizonte Autêntica Editora 2016 Obras Incompletas de Sigmund Freud 5 Bibliografia ISBN 9788582179857 1 Neuroses 2 Perversões sexuais 3 Psicanálise 4 Psicopatologia 5 Psicoses 6 Textos Coletâneas I Título II Série 1602454 CDD1501952 Índices para catálogo sistemático 1 Psicanálise freudiana Psicologia 1501952 Belo Horizonte Rua Carlos Turner 420 Silveira 31140520 Belo Horizonte MG Tel 55 31 3465 4500 Rio de Janeiro Rua Debret 23 sala 401 Centro 20030080 Rio de Janeiro RJ Tel 55 21 3179 1975 São Paulo Av Paulista 2073 Conjunto Nacional Horsa I 23º andar Conj 2301 Cerqueira César 01311940 São Paulo SP Tel 55 11 3034 4468 wwwgrupoautenticacombr obras incompletas de sigmund freud Sobre a concepção das afasias Freud Sigmund 9788582173138 176 páginas Compre agora e leia Talvez seja uma novidade para muitos que este primeiro livro escrito e publicado por Freud permanecia inédito até hoje no Brasil A frequente justificativa para a sua exclusão das obras ditas completas de Freud seria o seu alegado teor mais neurológico do que psicanalítico Entretanto mesmo tendo sido escrito antes da cunhagem do termo Psicanálise sabemos hoje que Sobre a concepção das afasias Um estudo crítico é uma obra fundamental para a compreensão dos escritos posteriores Sobretudo se pensarmos o quanto a fundamental relação entre o psiquismo e a linguagem pauta o pensamento freudiano vemos aqui o itinerário de alguém que abandona as concepções hegemônicas do localizacionismo defendidas por seus mestres tornandose o cofundador de uma concepção dinâmica tanto do psiquismo quanto da linguagem em suas funções e disfunções Um psicanalista que lida cotidianamente com a fala dos pacientes que pratica o método que foi apelidado por uma paciente como talking cure não pode ser indiferente ao fato de que o primeiro texto importante do criador da psicanálise datado de 1891 anterior portanto à sua teoria do aparelho psíquico proponha literalmente um aparelho de linguagem A obra integra a coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud que pretende não apenas oferecer uma nova tradução direta do alemão e atenta ao uso dos conceitos pela comunidade psicanalítica brasileira mas oferecer uma nova maneira de organizar e de tratar os textos Um convite para que o leitor desconfie do caráter apaziguador que o adjetivo completas comporta Compre agora e leia