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Revista Subjetividades EISSN 23590777 revistasubjetividadesgmailcom Universidade de Fortaleza Brasil Araujo Silva Roberta Cavalcante Teixeira Leônia ADOLESCÊNCIA E O TRAUMÁTICO SOBRE ABUSO SEXUAL E AS VICISSITUDES DO SUJEITO Revista Subjetividades vol 17 núm 3 diciembre 2017 pp 92103 Universidade de Fortaleza Fortaleza Brasil Disponível em httpwwwredalycorgarticulooaid527555046003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina Caribe Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto eISSN 23590777 SUBJETIVIDADES Subjetividades Dossiê Adolescencia em Psicanálise ADOLESCÊNCIA E O TRAUMÁTICO SOBRE ABUSO SEXUAL E AS VICISSITUDES DO SUJEITO In the Wanderings of Street kids an inventive act of the subject En la errancia del niño de la calle un acto inventivo del sujeto Dans lerrance du gamin de rue un act inventif du sujet DOI 10502023590777rsv17i36955 Roberta Araujo Silva Lattes Psicóloga Mestra em Psicologia Leônia Cavalcante Teixeira Lattes Profa Titular do Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza Resumo O atendimento de Liz uma adolescente de 14 anos de idade abusada sexualmente é o início de uma discussão acerca da investigação e do atendimento psicanalítico de adolescentes que vivenciaram situação de abuso sexual Considerase a vivência de abuso sexual como traumática de acordo com as concepções teóricoclínicas de Freud Ferenczi e Winnicott Este ensaio teve como objetivo conhecer por meio da escuta psicanalítica as implicações subjetivas referentes à vivência de abuso sexual na adolescência Para tal foram utilizadas consultas terapêuticas no atendimento com a adolescente após sua experiência traumática de abuso O trabalho de investigação do psiquismo é operado com suporte na constituição de um setting profissional adequado em que é possível ao terapeuta o uso da experiência de mutualidade Na sua clínica Donald Winnicott desenvolveu a consulta terapêutica um método de investigação e atendimento em Psicanálise que possibilita uma exploração integral do primeiro atendimento bem como enseja encontrar em determinados pacientes o seu conflito psíquico e intervir de modo a proporcionar saúde psíquica Com o amparo no atendimento de Liz discutese a contribuição da Psicanálise para a compreensão do impacto do abuso sexual no psiquismo sobretudo no aprofundamento do conhecimento sobre a singularidade dos destinos psíquicos dados à experiência traumática Contextos distintos e múltiplas repercussões associamse a cada vivência de abuso sexual que deve ser analisada em sua complexidade Em conclusão o atendimento psicanalítico por meio das consultas terapêuticas é um importante instrumento de intervenção para os profissionais que atendem casos de violência em todos os âmbitos institucionais Palavraschave abuso sexual adolescência psicanálise trauma consulta terapêutica Abstract It takes into consideration the different contexts and multiple repercussions associated with each specific experience of sexual abuse in adolescence It is based on the premise that the psychodynamic approach offers the possibility to access the subjective implications of sexual abuse in adolescence This paper used to illustrate the case study of Liz a 14years old girl interviewed after being sexually abused The purpose of this paper is to discuss the contribution of the use of the Therapeutic Consultation to understand the impact of the sexual abuse of adolescents especially the unique vicissitudes of being after the traumatic experience Donald Winnicott developed this psycho dynamic approach as a way to make the fullest use of the undefended material of the historytaking of the first interview or interviews It requires an appropriate analytic setting a holding environment where the analyst can make use of the experience of mutuality The objective of the Therapeutic Consultation is to identify the psychic conflict and to intervene to provide mental health In conclusion the psychoanalytic technique of Therapeutic Consultation is a useful mean of intervention for professionals who have to deal with cases of sexually abused adolescents in institutions 93 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito Keywords sexual abuse trauma adolescent abuse psychoanalysis therapeutic consultation Resumen La atención de Liz una adolescente de 14 años de edad abusada sexualmente es el paso inicial para una discusión acerca de la investigación y la atención psicoanalítica de adolescentes que han vivido una situación de abuso sexual Consideramos la vivencia de abuso sexual como traumática de acuerdo con las concepciones teóricoclínicas de Freud Ferenczi y Winnicott El presente trabajo tuvo como objetivo conocer por medio de la escucha psicoanalítica las implicaciones subjetivas referentes a la vivencia de abuso sexual en la adolescencia Para ello se utilizaron consultas terapéuticas en la atención con la adolescente después de su experiencia traumática de abuso El trabajo de investigación del psiquismo se opera a partir de la constitución de un ajuste profesional adecuado donde es posible al terapeuta el uso de la experiencia de mutualidad Desde su clínica Donald Winnicott desarrolló la consulta terapéutica un método de investigación y atención en Psicoanálisis que posibilita una exploración integral de la primera atención así como encontrar en determinados pacientes su conflicto psíquico e intervenir para proporcionar salud psíquica A partir de la atención de Liz se discute la contribución del Psicoanálisis para la comprensión del impacto del abuso sexual en el psiquismo sobre todo en la profundización del conocimiento sobre la singularidad de los destinos psíquicos posterior a la experiencia traumática Diferentes contextos y múltiples repercusiones se asocian a cada vivencia de abuso sexual que debe ser analizada en su complejidad En conclusión la atención psicoanalítica a través de las consultas terapéuticas es un importante instrumento de intervención para los profesionales que atienden casos de violencia en todos los ámbitos institucionales Palabras clave abuso sexual adolescencia psicoanálisis traumatismo consulta terapéutica Résumé Lassistance personnalisée de Liz une adolescente de 14 ans abusée sexuellement cest le départ pour un débat sur linvestigation et le soin psychanalytique des adolescents qui ont vécu situations dabus sexuel On considère lexpérience dabus sexuel comme traumatique conforme les conceptions théoriqueclinique de Freud Ferenczi et Winnicott Cette recherche a eu le but de connaître par lécoute psychanalytique des implications subjectives relatives aux expériences dabus sexuel à ladolescence Pour cela on a utilisé visites thérapeutiques dans les assistances personnalisées avec ladolescente après leurs expériences traumatiques dabus Le travail de recherche de la psyché est basé sur la constitution dun cadre professionnel approprié où cest possible le thérapeute utiliser lexpérience de la mutualité À partir de sa clinique Donald Winnicott a développé la consultation thérapeutique une méthode dinvestigation et dassistance en psychanalyse qui permet une exploration intégrale de la première assistance ainsi que pour trouver dans certains patients leur conflit psychique et intervenir pour assurer la santé psychique À partir de lassistance de Liz on débat la contribution de la psychanalyse pour la compréhension de limpact de labus sexuel sur la psyché en particulier dans lapprofondissement de la connaissance de lunicité des destinées psychiques apportées à lexpérience traumatique Des contextes différents et des répercussions multiples sont associés à chaque expérience dabus sexuel qui doit être analysée dans sa complexité En conclusion les soins psychanalytiques par des consultations thérapeutiques constituent un important outil dintervention pour les professionnels qui traitent des cas de violence dans tous les milieux institutionnels Motsclés abus sexuels ladolescence psychanalyse traumatisme assistance thérapeutique Este artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado intitulada O abuso sexual e o traumático escuta de adolescentes numa perspectiva psicanalítica É uma investigação de teor qualitativo realizada por meio de estudo de casos clínicos Aqui se reporta o atendimento de Liz nome fictício dado a uma adolescente de 14 anos de idade abusada sexualmente pelo padrasto dos seis aos treze anos a qual realizou denúncia de violência de abuso sexual na Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DCECA O atendimento de Liz é o começo de uma discussão acerca da investigação do funcionamento psíquico e do atendimento psicanalítico de adolescentes que vivenciaram situação de abuso sexual bem como da contribuição da Psicanálise para o entendimento do impacto operado pelo abuso sexual no psiquismo O abuso sexual é um fenômeno mundial em curso na totalidade das classes sociais Configura um problema social subjetivo e cultural vivenciado por crianças e adolescentes de maneiras diversas das mais cruéis às mais sutis desde os tempos primitivos em variadas culturas Minayo 2001 É um tema bastante pesquisado nas últimas décadas sob variadas perspectivas Evidenciase entretanto a carência de estudos que privilegiem o sujeito e sua história considerando que a vivência de abuso sexual varia de acordo com a singularidade e a história de vida de cada um 94 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Dentre as violências cometidas contra crianças e adolescentes o abuso sexual se destaca por denotar características específicas e grande potencial de dano físico e psíquico uma vez que incide diretamente sobre a saúde física e mental podendo causar danos que persistirão por toda a vida Com frequência caracterizase como tipo intrafamiliar contribuindo para a manutenção do sigilo em torno do ocorrido Aded Dalcin Moraes Cavalcanti 2006 Brauner Carlos 2004 Habigzang Koller Azevedo Machado 2005 Pfeiffer Salvagni 2005 A literatura especializada define o abuso sexual como todo e qualquer ato ou jogo sexual relação heterossexual ou homossexual com ou sem contato físico com intenção de estimular sexualmente a criança ou o adolescente ou cujo objetivo é utilizálo para obter satisfação sexual de alguém que atingiu um estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado envolvendo assim uma pessoa que não compreende ou que ainda não adquiriu maturidade Boarati Sei Arruda 2009 Brasil 2006 Habigzang Koller Azevedo Machado 2005 Minayo 2001 Pfeiffer Salvagni 2005 Santos DellAglio 2010 O fenômeno do abuso sexual contra crianças e adolescentes implica uma compreensão do processo que seu caráter sexual confere como transforma as relações afetivas entre adultos e crianças ou adolescentes em relações erotizadas e genitalizadas negando os limites intergeracionais descaracteriza as representações sociais e funções dos adultos de pai a agressor por exemplo confunde as relações entre os adultos e as crianças ou adolescentes definidas socialmente tornando as dominadoras agressivas e arriscadas em lugar de democráticas afetivas e protetoras Faleiros 2000 Em toda situação de abuso sexual há exercício de poder do agressor sobre a vítima Gabel 1997 vista como um objeto destituída de direitos e sentimentos Amazarray Koller 1998 Vivenciar uma experiência de abuso sexual é inscrever uma violência no corpo e principalmente no psiquismo pois incide diretamente na manutenção do funcionamento psíquico É um tipo de violência diferenciada que implica um sentimento de enorme solidão e confusão em que a criança foi utilizada com a finalidade de satisfazer sexualmente o adulto e experimentou sensações sexuais antes desconhecidas Mesmo numa situação de passividade física a criança ou adolescente participa psiquicamente pois sensações são despertadas mas não integradas desejos afetos e fantasias entram em ação facilitando ou dificultando a sedução Fuks 1998 2006 e a elaboração psíquica Considerando a complexidade das questões envolvidas nas situações relacionadas ao abuso sexual neste trabalho buscou se compreender as implicações subjetivas referentes à vivência de abuso sexual na adolescência utilizase a Psicanálise como referencial teórico e técnico enfocando a noção de trauma psíquico como desdobramento da referida vivência O Abuso Sexual como Trauma Psíquico Freud Ferenczi e Winnicott Segundo Laplanche e Pontalis 2001 o trauma pode ser compreendido como um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica P 522 Conforme indicam os referidos autores Freud atribui ao conceito de trauma uma ideia econômica Assim o traumatismo caracterizase por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações Laplanche Pontalis 2001 p 522 Sabese que Freud nunca sistematizou um conceito de trauma embora essa ideia pontilhe em toda a sua obra Ao longo de seus escritos o trauma se mostra de modo distinto à medida que seus estudos em Psicanálise avançam Após ocupar um papel de determinante na etiologia da neurose e ser deixado em segundo plano após a descoberta das fantasias o trauma voltou à cena ocupando lugar de destaque na teoria pulsional Em 1896 no primoroso texto A etiologia da histeria Freud 1896 p 210 aponta o efeito traumático da violação física e psíquica do abuso sexual no psiquismo infantil todas essa sic incongruências grotescas mas trágicas mostramse impressas no desenvolvimento posterior do indivíduo e de sua neurose em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser delineados nos mínimos detalhes Para Freud 18961996a o caráter traumático e patogênico de uma recordação decorre do fato de não ter havido nenhuma reação nem motora tampouco verbal ao acontecimento ficando o afeto ligado à recordação e esta excluída da cadeia de representações mas constituindo juntamente com outras cenas traumáticas as próprias cadeias associativas ainda que não sejam lembradas O trauma psíquico pode ser efeito de um só e intenso trauma ou de várias experiências traumáticas que se acumulam ao longo da vida ou seja pode advir do impacto de um acontecimento que poderá deixar marcas corporais como no abuso sexual mas ele não é provocado pela lesão em si mas pelo susto pela surpresa A situação traumática está intimamente relacionada à vivência de desamparo do ego ante um excesso de excitação pulsional provocando angústia cujo efeito é danoso à simbolização e elaboração do sujeito formando sintomas Considera 95 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito se a elaboração psíquica como capacidade do aparelho psíquico de dominar e integrar as excitações no psiquismo e estabelecer conexões associativas entre elas Laplanche Pontalis 2001 O evento traumático é registrado impresso e inscrito mas não é simbolizado necessitando ser transposto do físico para o psíquico e posteriormente transcrito do registro do sensorialperceptivo para o da representaçãopalavra Uchitel 2011 Muito embora Freud 18961996a 19201996b inicialmente tenha formulado a teoria do trauma enfocando a relação do adulto com a criança para explicar a etiologia da neurose posteriormente ele retomou à ideia de trauma relacionada ao pulsional cabendo ao psicanalista húngaro Sándor Ferenczi reaver a noção de trauma relacionandoo ao papel do adulto na constituição do psiquismo infantil Em seu texto Confusão de línguas entre os adultos e a criança Ferenczi 19331992a aborda o trauma enfatizando o impacto das experiências reais de abuso sexual da criança na sua organização psíquica a relação entre a criança e seu agressor e a dificuldade para o restabelecimento da confiança nos adultos o que incide diretamente na transferência na situação analítica Confusão de línguas é uma expressão utilizada por Ferenczi para explicar uma das fontes do trauma a confusão entre a linguagem da ternura sexualidade infantil ingênua e a linguagem da paixão sexualidade adulta culposa Ao assinalar que a linguagem da criança é a linguagem da ternura Ferenczi enfatiza sobretudo a importância da qualidade do vínculo com os objetos para o desenvolvimento psíquico da criança Conceber a existência de uma sexualidade infantil não significa o estabelecimento de uma simetria com a sexualidade adulta O encontro entre ambas pode ser traumático A criança é sexualizada e estabelece relações amorosas e eróticas com os adultos mas com sua sexualidade prégenital opera na linguagem da ternura a qual é lúdica imaginativa e onipotente o que permite o desenvolvimento da capacidade de desejar É por meio dela que no encontro com o mundo adulto o psiquismo infantil se expande cria mais sentidos para o viver Se no entanto nesse encontro a criança for tomada pelo adulto na linguagem da paixão perdese a diferença ocorrendo uma violência que pode acarretar interrupções desvios e impedimentos Ferenczi 19331992a O abuso sexual modelo do trauma desestruturante no construto teórico de Ferenczi 19331992a corresponde ao primeiro tempo do trauma O segundo tempo referese ao desmentido por parte do adulto em quem a criança confia e recorre buscando amparo e sentido para essa vivência Ao negar a realidade do ocorrido ou ser indiferente ao sofrimento da criança o adulto age de modo a impossibilitar que ela atribua um sentido ao ocorrido e o que ela experimenta é o abandono e o desamparo em total solidão perde o prazer de viver e volta a agressão contra si A confiança que ela possuía em si mesma e no mundo é abalada Sentindose desamparada e abandonada a criança tem de se haver com a culpa transmitida pelo adulto atormentado Além disso ela não pode abrir mão do amor do agressor Com efeito a solução psíquica encontrada é a introjeção do agressor com o seu sentimento de culpa originando uma clivagem da personalidade ou cisão cujo objetivo é protegerse Sobre os destinos psíquicos do trauma Ferenczi 19321990 19341992b 19331992a aponta a clivagem psíquica com dois destinos possíveis a identificação com o agressor e a progressão traumática ou prematuração Na identificação com o agressor a criança é muito frágil para protestar Ainda que em pensamento ante a força e autoridade do adulto introjeta aquele que a ameaça e agride Portanto pacientes que experimentaram um trauma grave não conseguem reagir ao desprazer pela defesa ou pelo ódio uma vez que uma parte de sua personalidade ficou fixada num momento em que não era possível reagir ao meio externo mas somente era possível uma mudança interna autoplástica a identificação dado que essa antecede a defesa porque o ego ainda não dispõe de meios para se defender Ferenczi 19331992a Na prematuração ou progressão traumática a criança que sofreu uma agressão sexual pode de súbito sob pressão da urgência traumática manifestar todas as emoções de um adulto maduro as faculdades potenciais para o casamento a paternidade a maternidade faculdades virtualmente préformadas nela Ferenczi 19331992a p 104 A prematuridade acarreta uma insensibilidade que compromete a capacidade de expressão dos afetos de amor e ódio de ser afetado pelo outro e resulta numa diminuição da potência para se colocar de modo pessoal Assim sendo na concepção de Ferenczi o traumático psíquico resulta não somente do evento traumático propriamente mas também da maneira como os adultos reagem ao sofrimento da criança com indiferença ou descrédito Para ele o aspecto traumático é fruto das dificuldades encontradas na relação entre a criança e a família da incapacidade da família cuidar para que as excitações provenientes do meio externo ou interno não atuem de modo traumático Quando os adultos não se adequam às necessidades infantis traumatizam e os efeitos desses traumas são a dependência e a desconfiança Ferenczi 19331992a considera a realidade externa como produtora de traumas psíquicos embora não tenha negado a importância das fantasias sexuais e seu poder traumático Assim como Ferenczi Winnicott com suporte na sua prática clínica enfatizou a dimensão relacional tanto nos processos de desenvolvimento inicial como na experiência analítica além de apontar o fator ambiental como preponderante na questão do trauma O pediatra e psicanalista britânico concebe o trauma como consequência das falhas ambientais no desenvolvimento e em especial na relação mãebebê Segundo ele o trauma adquire um significado dependendo do estágio de desenvolvimento emocional dependência absoluta dependência relativa rumo à independência em que a criança se encontra 96 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira A concepção de desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott 19451982 privilegia o ambiente e sua influência sobre o indivíduo especialmente na primeira infância De acordo com ele a mãe é o primeiro ambiente que se constitui para o bebê sendo que no início ambos estão fundidos não havendo diferenciação ambienteindivíduo O ambiente contudo não é unicamente responsável pela saúde emocional do bebê mas pode ser facilitador ou danoso Quando o ambiente é facilitador favorece o crescimento do indivíduo que já traz na sua constituição uma tendência inata ao desenvolvimento quando é danoso o ambiente falha podendo desencadear uma instabilidade emocional e a doença principalmente se no início da vida Abram 2000 A série complementar estabelecida por Freud é retomada por Winnicott isto é personalidade é igual à constituição mais vivências infantis mais situação atual quando este último considera a relação entre o bebê e o seu ambiente No início da vida a mãe ou quem exerce a função materna funciona como um escudo protetor entre a criança e o mundo estímulos externos evitando falhas no cuidado e fornecendo ao bebê uma proteção quanto à traumatização Os cuidados maternos é que possibilitam o desenvolvimento da criança pois assim ela poderá experimentar o movimento espontâneo e viver as sensações próprias desse período inicial da vida A continuidade dos cuidados e da sustentação física e psíquica holding mantidos pela mãe suficientemente boa proporcionam ao bebê a experiência de amor amparo e confiança no ambiente uma vez que nesse momento a comunicação verbal ainda não prevalece e o bebê registra aspectos relacionados à forma e não ao conteúdo A presença materna e a continuidade e repetição dos cuidados estabelecem um ritmo que possibilitam ao bebê o desenvolvimento da capacidade de confiar nos objetos Quando essa experiência de continuidade é interrompida pela necessidade de reação do bebê isso implica um colapso do setor da confiabilidade no meio ambiente resultando num fracasso ou trauma com implicações no estabelecimento da integração do ego e estrutura de personalidade O trauma é ocasionado por um fracasso relativo à dependência em um processo que poderia seguir naturalmente a linha do desenvolvimento caso encontrasse um ambiente facilitador Diz Winnicott 19651994b p 113 O trauma é aquilo que rompe a idealização de um objeto pelo ódio do indivíduo reativo ao fracasso desse objeto em desempenhar sua função Quando no entanto o ambiente primeiro se adapta para depois fracassar o fracasso contribui para a aquisição da capacidade de acreditar Na dependência absoluta de acordo com Winnicott 19601983a chegam ao bebê coisas boas e más totalmente fora do seu alcance Ele está em condições somente de aproveitar ou sofrer as perturbações Nesse momento o que é bom ou mau não é uma projeção de fato mas paradoxalmente é crucial ao desenvolvimento saudável da criança que tudo o que chega seja percebido como uma projeção pois a onipotência e o princípio do prazer estão plenamente em ação e ainda não há uma diferenciação entre eu e nãoeu O bebê e os cuidados maternos formam uma unidade A distinção entre o eu e o nãoeu depende da maturidade emocional e intelectual das condições favoráveis ou não Inicialmente o bebê não se atém à dependência e se relaciona com objetos subjetivos Depois se desenvolvendo satisfatoriamente reconhece os objetos fora de seu controle onipotente ou seja objetos objetivamente percebidos Nessa mudança do relacionamento com os objetos é que será possível ao indivíduo fazer sentido dos aspectos agressivos e fusioná los aos aspectos eróticos É também nesse momento do desenvolvimento que o indivíduo saudável organiza a fantasia e o senso de realidade Winnicott 19641994a Posteriormente na fase da dependência relativa a criança é capaz de perceber os cuidados maternos assim como suas necessidades Além disso ela pode relacionálos aos impulsos pessoais Nesse estágio já se estabeleceu a diferenciação eu e nãoeu Portanto há um ego integrado e as falhas maternas adquirem outro status agora são importantes no processo ilusãodesilusão ou apresentação da realidade que é fundamental para a criatividade A criatividade resulta da sobrevivência da mãe e do bebê ao ódio que o bebê sente da mãe É com suporte nessa experiência de sobrevivência que a criança cria seu espaço e a mãe aceita a criatividade do bebê havendo uma separação As falhas são necessárias para que haja diferenciação individuação e amadurecimento psíquico da criança Esse processo ilusãodesilusão é a base para o desenvolvimento da ambivalência Winnicott 19651994b No decorrer do amadurecimento a adaptação da mãe às necessidades do bebê deve levar a um fracasso adaptativo gradual ou desilusão desde a capacidade da mãe de perceber a capacidade do bebê para suportar as falhas ambientais Assim sendo a mãe proporciona ao bebê a ilusão da experiência de onipotência para depois fracassar num processo que vai da onipotência regido pelo princípio do prazer à desilusão e apresentação do princípio de realidade Desse modo o meio ambiente facilitador pode ser entendido como holding progredindo para o handling ou manejo sendo acrescido da apresentação de objeto Winnicott 19741963 1994f Vale ressaltar que nos primeiros momentos de vida o bebê necessita da mãe no papel de ego auxiliar para seu eu ir tomando configuração Esse papel de proteção e sustentação contudo não é exclusivo da mãe pois a família também pode exercêlo a família fornece à criança que cresce uma proteção quanto ao trauma Winnicott 19651994b p 102 Logo do mesmo modo que a família pode proteger a criança também pode perturbála traumatizandoa Ainda sobre o trauma diz Winnicott 19651994b p 114 o trauma é a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou impredizível de fatos reais e pela geração de ódio no indivíduo ódio do 97 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito objeto bom experienciado não como ódio mas delirantemente como sendo odiado No texto A experiência mãebebê de mutualidade Winnicott 19691994e oferece uma definição taxativa do trauma Um trauma é aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada de maneira que um estado de confusão sobrevém seguido talvez de uma reorganização de defesas defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma Em outras palavras experienciaram trauma e suas personalidades têm de ser construídas em torno da reorganização de defesas que seguem os traumas defesas que devem precisar reter aspectos primitivos tais como a cisão da personalidade P 201 Para Winnicott 19691994e os destinos psíquicos do traumático apresentam como possibilidades de defesa a cisão da personalidade a interrupção da continuidade do self e a construção de um falso self No início da vida o trauma compromete a construção de um self verdadeiro dado que o desenvolvimento do ego depende do ambiente Quando o ambiente fracassa há um congelamento dessa situação de fracasso uma interrupção da continuidade do self e um sentimento de desamparo criando um falso self como defesa As expressões falso self e verdadeiro self são empregadas por Winnicott 1994g na descrição de uma organização defensiva na qual se dá uma assunção prematura das funções de amamentação da mãe p 36 em que o bebê concomitantemente se adapta ao meio ambiente e protege o verdadeiro self fonte de seus impulsos Nos casos de falso self clinicamente há uma vivência de não sentirse real Em tais casos o self verdadeiro está aprisionado não funciona e sua vivência é limitada mas a espontaneidade e o impulso real ou seja o viver criativo provém do verdadeiro self No desenvolvimento emocional são possíveis duas vias de evolução A primeira quando há uma adaptação suficientemente boa da mãe leiase ambiente facilitador e como resultado disso o bebê inicia a crença na realidade externa que o atende magicamente propiciandolhe uma área de ilusão e o controle onipotente Então será possível à criança renunciar sua onipotência gradativamente pois os acontecimentos externos estão adaptados a sua espontaneidade propiciando o desenvolvimento de um self verdadeiro e o reconhecimento do ilusório ou seja brincar de imaginar e simbolizar A segunda via ocorre quando não há uma adaptação suficientemente boa por parte do ambiente e o bebê se submete e desenvolve um falso self submisso que atende à exigência do ambiente que a criança parece aceitar de bom grado No que tange ao trabalho analítico Winnicott 19641994a refere que a situação traumática deve ser reatualizada pela regressão à dependência no setting analítico sendo o último um representante do ambiente Para isso é necessário um setting confiável e seguro ao paciente Assim será possível descongelar a situação de fracasso e possibilitar um novo posicionamento do ego de falso self para um verdadeiro self Há no processo analítico um desfazerse gradual do falso self em que o terapeuta ocupa o lugar de cuidador e assume as funções defensivas do falso self possibilitando a emergência do verdadeiro self Nesse tipo de trabalho com pacientes traumatizados o setting é modificado em relação ao enquadre clássico da Psicanálise para um mais flexível no qual mais importante do que a interpretação é a vivência de experiências organizadoras e o terapeuta possibilita o desenvolvimento da confiança que fora abalada no trauma Ressalta que como disse o próprio Winnicott 19641994a no texto A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise os princípios básicos da análise estabelecidos por Freud são seguidos e fundamentais ao trabalho analítico Assim podese afirmar que o setting winnicottiano é o setting materno que atende às necessidades do indivíduo com modalidades de intervenção estabelecidas com base na demanda do paciente ou consulta terapêutica abordagem utilizada nesta pesquisa na qual os atendimentos podem ser realizados em poucas sessões ou numa somente É diferente do setting analítico freudiano que trabalha o desejo privilegiando a transferência paterna condizente com a clínica da neurose pois na neurose os conflitos são intrapsíquicos dizem respeito aos impulsos do id que ameaçam o ego mantendo assim uma relativa independência do ambiente Winnicott 19631983b faz uma correlação entre a relação mãebebê e a relação analítica Assim como a mãe que se identifica com o seu bebê para atender as suas necessidades na clínica com pacientes regredidos o analista deve ser capaz de identificarse com o paciente Tal aspecto remonta a Ferenczi quando assinala que o analista deve ser capaz de desenvolver uma benevolência materna e que só a compreensão não é suficiente mas fazse necessária uma experiência De acordo com o psicanalista inglês o analista não pode falhar até que o paciente o fará falhar com a sua história pessoal o que significa que a falha aqui adquire uma importância crucial pois é a oportunidade de o paciente experimentar no processo analítico na transferência a falha original ambiental fora do seu alcance onipotente naquela época Agora na situação analítica a falha transformada em dependência pelo analista está sob o controle onipotente do paciente 98 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Breves Considerações sobre o Método Esta pesquisa foi de caráter qualitativo na medida em que seu interesse foi conhecer mediante a escuta clínica em Psicanálise as implicações e possíveis efeitos psíquicos referentes ao abuso sexual Para isso reportouse à consulta terapêutica ou entrevista psicoterapêutica Winnicott 19651994a 19651994c 19681994d 19711984 como método nos atendimentos clínicos uma modalidade singular de produção do saber que envolve a comunicação inconsciente e permite a articulação entre teoria e clínica A consulta terapêutica apoiase na ideia de que quando um setting profissional é adequadamente ofertado o paciente que está sofrendo apresentará sua aflição e o mais importante é o que acontece independente do que for Winnicott 19651994c Assim sendo essa estratégia comporta um aprofundamento ao explorar diferenças e similaridades da questão investigada A pesquisa referese a um estudo de caso constituído com esteio em duas consultas terapêuticas com a adolescente apresentada pelo nome fictício de Liz de 14 anos de idade abusada pelo padrasto dos seis aos treze anos A adolescente foi convidada a participar da pesquisa desde a realização de denúncia de abuso sexual junto à Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DCECA localizada no município de Fortaleza A pesquisa aconteceu em dois momentos distintos o primeiro sucedeu na delegacia por meio de anúncio público que constituiu em informar sobre a pesquisa e convidar as adolescentes a participar Esse momento aconteceu quando da realização do atendimento psicológico naquele mesmo espaço O segundo momento da pesquisa as consultas terapêuticas foi realizado no consultório particular de Psicologia As questões éticas envolvendo sujeitos adolescentes em situação de vulnerabilidade foram consideradas em profundidade discutindose a pesquisa e os atendimentos com a adolescente e seu responsável Esta investigação foi submetida à apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza com o título Abuso sexual considerações psicanalíticas autorização CAAE 35908614000005052 número do Parecer n 1104622 em 12 de junho de 2015 seguindo todos os princípios éticos e a orientação da Resolução n 4662012 do Conselho Nacional de SaúdeMinistério da Saúde e pela Resolução n 0162000 do Conselho Federal de Psicologia Por ser uma pesquisa com sujeitos vulneráveis houve o compromisso de se acompanhar e encaminhar para cuidados necessários quaisquer eventualidades que pudessem surgir nos sujeitos advindos da pesquisa ressaltando que a ética clínica norteou toda a estratégia da pesquisa Liz A Escuta do Singular por Meio das Consultas Terapêuticas Liz 14 anos realizou denúncia de abuso sexual na DCECA por intermédio de sua mãe em março de 2015 A adolescente foi abusada pelo padrasto dos seis aos treze anos quando ele saiu de casa Na época das consultas Liz residia com a mãe e o irmão materno de quatro anos de idade filho do padrasto Bartolomeu nome fictício Os pais de Liz separaramse quando ela era criança Desde a separação dos pais ela ficou com a mãe que posteriormente casouse com Bartolomeu O pai reside próximo e também se casou novamente mas não teve outros filhos Liz é ótima aluna cursa o 1º ano do Ensino Médio e é líder de sala Durante as consultas terapêuticas mostrouse comprometida com os estudos e com o papel de líder que ora ocupa e diz gostar Além de estudar ela pratica artes marciais assim como seu pai e vai começar a participar de competições atividade da qual fala com prazer e tensão Na primeira consulta terapêutica convido Liz a falar sobre sua vida sobre si Liz Não sei por onde começar se por depois ou antes de eu nascer Digo que ela comece por onde quiser Liz Eu morava com minha avó lá tinha muito bicho e eu era alérgica quase morri por causa disso e ela preferiu ficar com os bichos do que comigo pausa Aí eu fui morar na casa da minha tia Meus pais se separaram quando eu era pequena eu lembro que eles viviam brigando Depois minha mãe começou a namorar o Bartolomeu e foram morar juntos Nas consultas terapêuticas com Liz ela traz algumas questões apresentando seu conflito naquele dado momento Sobre o abuso sexual ela nos diz A primeira vez eu não lembro mas ele ficava passando a mão em mim chora A primeira vez eu acordei com ele na minha cama eu não falei nada Não sei como eu dei um chute nele A minha mãe desconfiou uma vez ela levantou à 99 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito noite e ele estava sentado na minha cama Em outro momento fala Acontecia todo dia era quando minha mãe saía pra ir trabalhar Eu queria era esquecer tudo isso A respeito da revelação do abuso Liz refere Eu cresci sem pai e não queria que o meu irmão também crescesse sem pai Eu sei como é sofrido chora Eles eram casados e a nossa religião só permitia separação por traição Depois nós mudamos de igreja e lá tem grupo sabe e uma pessoa que coordena chegou pra mim e pra minha mãe e perguntou se estava acontecendo como ela podia ajudar Foi só quando eu falei Eu tinha medo que meu pai soubesse e fizesse alguma coisa com ele ou culpasse minha mãe Acho que falei numa briga com a minha mãe Ela falou mal do meu pai e eu disse e o teu marido que faz isso e isso Ele ouviu Eu ia pra casa de uma amiga sozinha e minha mãe mandou ele ir me deixar de bicicleta Ele foi o caminho todo falando eu ouvi o que você falou pra sua mãe Só repetindo Até que eu não aguentei mais e pulei da bicicleta e fui andando atrás Liz fala sobre sua relação com a mãe Minha mãe fez a denúncia eu nem sabia Quando as coisas melhoraram lá em casa eu achei que ia ficar tudo bem ela resolveu fazer e eu só soube depois Eu queria era esquecer isso aí ela voltou com isso Ela não fala as coisas Falou com uma amiga eu fiquei sabendo pelas conversas A mãe fala para as pessoas já eu guardo as coisas só comigo Eu nunca falei pra ninguém Eu tinha vergonha achava que eu tinha culpa Eu não sei direito quando ela soube mas foi ano passado e a denúncia foi em março Eu nem queria achava que já tinha passado Agora eu vou ter duas provas esta semana as provas que eu perdi pra ir à delegacia e não consigo estudar Eu não consigo parar de pensar nisso Em tudo o que aconteceu Eu não paro de pensar que ela disse que eu tinha que ir à delegacia naquele dia A amiga dela disse que tinha falado com a delegada e a delegada tinha dito que se eu não fosse ela mandava a viatura me buscar Quando eu fui a delegada disse que não tinha problema que eu poderia ter ido outro dia Sobre a relação com o pai Sabe às vezes eu acho que mais difícil do que o que aconteceu comigo é não ter tido meu pai por perto chora Eu acho que se meu pai fosse mais presente ele não teria feito aquilo comigo Meu pai disse que se eu quisesse eu podia ir morar com ele não tinha problema Disse até que dava pra eu fazer um cursinho pra eu estudar pro ENEM que eu ia ficar só estudando Eu ia ter mais tempo pra estudar porque lá em casa eu faço muita coisa Se eu for morar com ele não vou poder mais vir aqui nem na delegacia Eu ajudo a minha mãe com o meu irmão Eu indo morar com o meu pai não vou poder ficar saindo e mesmo se eu sair com a minha mãe ele vai querer saber pra onde vou ter que dar satisfação e ele não sabe de nada Eu tenho medo do que ele possa fazer se souber Meu pai é muito impulsivo e agora ele tem arma é da Polícia Ele disse se alguma coisa acontecer comigo ele não tá nem aí pra esse concurso Não sei se ele vai saber nem quando Não sei se ele vai ficar com raiva de mim porque eu não falei ou vai culpar a minha mãe Liz trouxe para os atendimentos a sua busca pelas funções parentais pai e mãe fala dos pais que não a protegeram dos abusos reiterados do padrasto da ausência de pai e mãe não fala de amor nem de seus sentimentos em relação às figuras parentais Os abusos podem ser compreendidos como uma falha na função parental que não protegeu a criança do que é excessivo seja das tensões internas seja das situações externas como no caso do abuso sexual Na concepção winnicottiana o trauma é o resultado da não adaptação do ambiente às necessidades da criança uma falha ambiental que acarreta reação da criança à intrusão Reagindo à intrusão a criança adaptase ao ambiente sendo invadida pelos estímulos externos e suas consequências nocivas sobretudo quando elas se dão de modo repetitivo formando um núcleo de reações patogênicas Uma vez que o 100 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira ambientefamília não se adaptou às necessidades da criança ocorre um desenvolvimento prematuro do ego acarretando dificuldades de separação e individuação além de um investimento precoce na realidade externa e interna Na situação de abuso sexual a criança reage às agressões submetendose e adaptandose ao ambiente abusivo numa reação autoplástica modificação interna ou numa saída para o falso self alguns dos destinos do trauma na situação de abuso Assim sendo podese hipotetizar a ideia de que o abuso sexual pode vir a repousar sobre o que se relaciona à comunicação estabelecida entre a mãe e o bebê sobre as falhas do ambientemãe na adaptação às necessidades do bebê Como disse Winnicott 19711975 o bebê se vê no rosto da mãe porém quando isso não acontece o bebê vê o que é refletido pela mãe e consequentemente busca adaptarse ao que lhe é imposto O esquecimento dos detalhes e as falhas na memória consoante o relato de Liz possivelmente são desdobramentos do evento traumático Aos seis anos idade que se iniciaram os abusos possivelmente Liz ainda estava às voltas com as fantasias edipianas incestuosas Nesse momento do desenvolvimento psicossexual a situação de abuso pode ser sentida pela menina como tendo sido provocada por ela Fantasia e realidade se confundem emergindo daí o sentimento de culpa Uma vez identificada com o agressor a criança introjeta o sentimento de culpa do adulto e o que antes era uma brincadeira terna passa a ser um ato proibido que merece uma punição Ferenczi 19331992a Tomada pelo sentimento de culpa a criança vive a angústia ser vítima ou não ser vítima Nas consultas terapêuticas Liz fala sobre o início de sua vida do abuso vivido e principalmente de sua relação com o casal parental Ela comunica as falhas ambientais a que fora submetida fala do pouco investimento amoroso da avó e dos pais do descrédito e indiferença de sua mãe em relação ao ocorrido e do distanciamento afetivo do pai Entendese que se na situação de abuso a excitação excessiva a violência psíquica e física e a impossibilidade de reagir pelo ataque ou por uma fuga dão lugar inicialmente a um estado traumático é na relação com a mãe que o trauma encontra razões para se perpetuar no caso de Liz por meio do desmentido Como ensina Ferenczi 19311992c o mais danoso é o desmentido por parte do adulto a quem a criança está ligada e que se apresenta como modelo identificatório para ela A negação de que há um sofrimento O adulto ao negar a realidade do evento ou se mostrar indiferente ao sofrimento da criança impossibilita a atribuição de um sentido ao ocorrido O resultado disso é a vivência do desamparo abandono solidão e um estado de confusão por parte da criança Isto pode ser visto quando Liz traz sua angústia ante a decisão que solitariamente tem que tomar o convite para ir morar com o pai Supõese que ela quer isso ser protegida pelo pai que ela vê como poderoso Cabe salientar que para a Psicanálise o pai é o instaurador da lei interditor do incesto Ir morar com o pai no entanto significa abandonar a mãe e o irmão deixar o irmão aos cuidados da mãe ou deixálo ser negligenciado pela mãe como pode ela ter se sentido Durante a consulta ela comunica o seu estado de desamparo solidão e desconfiança Com isso buscase desempenhar papel ativo colocandose na posição de atender às necessidades dela de ser cuidada por um adulto e assim estabelecer com ela possíveis opções ao lhe dizer pode pensar sobre o convite do pai e responder depois que ela pode buscar esclarecimentos no que se refere à denúncia junto à Psicóloga na delegacia Ao final Liz reaproximouse do pai Acreditase que numa tentativa de ser protegida e cuidada concedendo a esperança de um reposicionamento na sua posição subjetiva Considerações Finais Concluise que além da cena de abuso sexual há uma história de vida em um contexto familiar específico denotando marcas psíquicas que antecedem a vivência do abuso já que as primeiras relações objetais e o investimento libidinal dispensado pela mãeambiente são essenciais para a criança construir sua identidade subjetiva e estabelecer relações objetais para o longo da vida Os abusos podem ser compreendidos como uma falha na função parental que não protegeu a criança dos excessos seja das tensões internas seja das situações externas como no caso da violência sexual Desse modo o atendimento clínico psicanalítico por via do processo transferencial possibilita ao sujeito uma retomada do seu desenvolvimento emocional sem a necessidade das defesas patológicas Com amparo no estudo de caso relatado entendese que a Psicanálise contribui para o entendimento dos processos mentais relativos ao funcionamento psíquico sobretudo no aprofundamento do conhecimento sobre a singularidade dos destinos psíquicos dados a vivência traumática bem como pela valorização e aposta na elaboração psíquica do trauma Verificouse nas consultas terapêuticas realizadas com a adolescente que a clínica do trauma ou do abuso sexual está situada no campo da delicadeza exigindo do terapeuta uma disponibilidade afetiva num exercício de afetação mútua e sensibilidade clínica de saber o que quando e como se deve comunicar algo e que a comunicação é mais abrangente do que o conteúdo das falas Na escuta de adolescentes abusadas sexualmente é necessário absterse de qualquer furor normativo 101 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito eou curativo para estar com a pessoa em sua singularidade Por fim distintos contextos e múltiplas repercussões são associados a cada vivência de abuso sexual que deve ser analisada em sua complexidade Ademais o atendimento psicanalítico por meio das consultas terapêuticas é um importante instrumento de intervenção para os profissionais que atendem casos de violência em todos os âmbitos institucionais Referências Abram J 2000 A linguagem de Winnicott Dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W Winnicott M D G da Silva Trad Rio de Janeiro Revinter Aded N L O Dalcin B L G S Moraes T M Cavalcanti M T 2006 Abuso sexual em crianças e adolescentes Revisão de 100 anos de literatura Revista de Psiquiatria Clínica 334 204213 Amazarray M R Koller S H 1998 Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual Psicologia Reflexão e Crítica 113 559578 Boarati M C B Sei M B Arruda S L S 2009 Abuso sexual na infância A vivência em um ambulatório de psicoterapia de crianças Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano 193 426434 Brasil Ministério da Saúde 2006 Violência faz mal à saúde Série B Textos Básicos de Saúde Link Brasil Conselho Nacional de Saúde 2012 Resolução no 466 Diretrizes e normas regulamentadoras sobre pesquisa envolvendo seres humanos Link Brauner M C C Carlos P P de 2004 A violência intrafamiliar sob a perspectiva dos Direitos Humanos In G Maluschke J S N F BucherMaluschke K Hermanns Org Direitos humanos e violência Desafios da ciência e da prática Fortaleza Fundação Konrad Adenauer Conselho Federal de Psicologia 2000 Resolução no 016 Link Faleiros E T S 2000 Repensando os conceitos de violência abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes Espirito Santo CECRIA Ferenczi S 1990 Diário Clínico A Cabral trad São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 19691932 Ferenczi S 1992a Confusão de línguas entre os adultos e a criança a linguagem da ternura e da paixão In Obras completas Psicanálise IV A Cabral trad pp 97106 São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 1933 Ferenczi S 1992b Reflexões sobre o trauma In Obras completas A Cabral trad Vol 4 pp 109117 São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 193419311932 Freud S 1996a A etiologia da histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud J Strachey trad Vol 3 pp187215 Rio de Janeiro Imago Trabalho original publicado em 1896 Freud S 1996b Além do princípio do prazer In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud J Strachey trad Vol 18 pp1175 Rio de Janeiro Imago Trabalho original publicado em 1920 Fuks L B 1998 Abuso sexual de crianças na família Reflexões psicanalíticas Revista Percurso 20 120126 Fuks L B 2006 Consequências do abuso sexual infantil Revista Percurso 1836 4152Gabel M 1997 Crianças vítimas de abuso sexual S Goldfeder Trad São Paulo Summus 102 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Habigzang L F Koller S H Azevedo G A Machado P X 2005 Abuso sexual infantil e dinâmica familiar Aspectos observados em processos jurídicos Psicologia Teoria e Pesquisa 213 341348 Laplanche J Pontalis JB L 2001 Vocabulário de Psicanálise 4a ed P Tamen trad São Paulo Martins Fontes Minayo M C de S 2001 Violência contra crianças e adolescentes Questão social questão de saúde Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil 12 91102 Pfeiffer L Salvagni E P 2005 Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência Jornal de Pediatria 581 197204 Santos S S DellAglio D D 2010 Quando o silêncio é rompido O processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil Psicologia Sociedade 222 328335 Uchitel M 2011 Neurose traumática Uma revisão crítica do conceito de trauma Coleção clínica psicanalítica 3a ed São Paulo Casa do Psicólogo Winnicott D W 1982 Desenvolvimento emocional primitivo In D W Winnicott Textos selecionados Da Pediatria à Psicanálise 2a ed J Russo trad pp 269286 Rio de Janeiro F Alves Obra originalmente publicada em 1945 Winnicott D W 1983a Teoria do relacionamento paternoinfantil In D W Winnicott O ambiente e os processos de maturação Estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional I C S Ortiz Trad pp 3854 Porto Alegre Artmed Obra originalmente publicada em 1960 Winnicott D W 1983b Dependência no cuidado do lactente no cuidado da criança e na situação analítica In D W Winnicott O ambiente e os processos de maturação estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional I C S Ortiz Trad pp 225233 Porto Alegre Artmed Obra originalmente publicada em 1963 Winnicott D W 1984 Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil J M X Cunha trad Série Analytica Rio de Janeiro Imago Ed Obra original publicada em 1971 Winnicott D W 1994a A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 7781 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994b O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 102115 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994c O valor da consulta terapêutica In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 244248 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994d O jogo do rabisco In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 230243 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1968 Winnicott D W 1994e A experiência mãebebê de mutualidade In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 106202 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1969 Winnicott D W 1994f O medo do colapso breakdown In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 7076 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 19741963 103 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito Recebido em 09012017 Revisado em 16102017 Aceito em 20122017 Endereço para correspondência Roberta Araujo Silva Email robertamadeirogmailcom Leônia Cavalcante Teixeira Email leoniactgmailcom Winnicott D W 1994g Ideias e definições In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 3637 Porto Alegre Artes Médicas Winnicott D W 1975 O brincar e a realidade Coleção Psicologia Psicanalítica J O de A Abreu V Nobre Trad Rio de Janeiro Imago editora Ltda Obra original publicada em 1971
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Revista Subjetividades EISSN 23590777 revistasubjetividadesgmailcom Universidade de Fortaleza Brasil Araujo Silva Roberta Cavalcante Teixeira Leônia ADOLESCÊNCIA E O TRAUMÁTICO SOBRE ABUSO SEXUAL E AS VICISSITUDES DO SUJEITO Revista Subjetividades vol 17 núm 3 diciembre 2017 pp 92103 Universidade de Fortaleza Fortaleza Brasil Disponível em httpwwwredalycorgarticulooaid527555046003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina Caribe Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto eISSN 23590777 SUBJETIVIDADES Subjetividades Dossiê Adolescencia em Psicanálise ADOLESCÊNCIA E O TRAUMÁTICO SOBRE ABUSO SEXUAL E AS VICISSITUDES DO SUJEITO In the Wanderings of Street kids an inventive act of the subject En la errancia del niño de la calle un acto inventivo del sujeto Dans lerrance du gamin de rue un act inventif du sujet DOI 10502023590777rsv17i36955 Roberta Araujo Silva Lattes Psicóloga Mestra em Psicologia Leônia Cavalcante Teixeira Lattes Profa Titular do Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza Resumo O atendimento de Liz uma adolescente de 14 anos de idade abusada sexualmente é o início de uma discussão acerca da investigação e do atendimento psicanalítico de adolescentes que vivenciaram situação de abuso sexual Considerase a vivência de abuso sexual como traumática de acordo com as concepções teóricoclínicas de Freud Ferenczi e Winnicott Este ensaio teve como objetivo conhecer por meio da escuta psicanalítica as implicações subjetivas referentes à vivência de abuso sexual na adolescência Para tal foram utilizadas consultas terapêuticas no atendimento com a adolescente após sua experiência traumática de abuso O trabalho de investigação do psiquismo é operado com suporte na constituição de um setting profissional adequado em que é possível ao terapeuta o uso da experiência de mutualidade Na sua clínica Donald Winnicott desenvolveu a consulta terapêutica um método de investigação e atendimento em Psicanálise que possibilita uma exploração integral do primeiro atendimento bem como enseja encontrar em determinados pacientes o seu conflito psíquico e intervir de modo a proporcionar saúde psíquica Com o amparo no atendimento de Liz discutese a contribuição da Psicanálise para a compreensão do impacto do abuso sexual no psiquismo sobretudo no aprofundamento do conhecimento sobre a singularidade dos destinos psíquicos dados à experiência traumática Contextos distintos e múltiplas repercussões associamse a cada vivência de abuso sexual que deve ser analisada em sua complexidade Em conclusão o atendimento psicanalítico por meio das consultas terapêuticas é um importante instrumento de intervenção para os profissionais que atendem casos de violência em todos os âmbitos institucionais Palavraschave abuso sexual adolescência psicanálise trauma consulta terapêutica Abstract It takes into consideration the different contexts and multiple repercussions associated with each specific experience of sexual abuse in adolescence It is based on the premise that the psychodynamic approach offers the possibility to access the subjective implications of sexual abuse in adolescence This paper used to illustrate the case study of Liz a 14years old girl interviewed after being sexually abused The purpose of this paper is to discuss the contribution of the use of the Therapeutic Consultation to understand the impact of the sexual abuse of adolescents especially the unique vicissitudes of being after the traumatic experience Donald Winnicott developed this psycho dynamic approach as a way to make the fullest use of the undefended material of the historytaking of the first interview or interviews It requires an appropriate analytic setting a holding environment where the analyst can make use of the experience of mutuality The objective of the Therapeutic Consultation is to identify the psychic conflict and to intervene to provide mental health In conclusion the psychoanalytic technique of Therapeutic Consultation is a useful mean of intervention for professionals who have to deal with cases of sexually abused adolescents in institutions 93 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito Keywords sexual abuse trauma adolescent abuse psychoanalysis therapeutic consultation Resumen La atención de Liz una adolescente de 14 años de edad abusada sexualmente es el paso inicial para una discusión acerca de la investigación y la atención psicoanalítica de adolescentes que han vivido una situación de abuso sexual Consideramos la vivencia de abuso sexual como traumática de acuerdo con las concepciones teóricoclínicas de Freud Ferenczi y Winnicott El presente trabajo tuvo como objetivo conocer por medio de la escucha psicoanalítica las implicaciones subjetivas referentes a la vivencia de abuso sexual en la adolescencia Para ello se utilizaron consultas terapéuticas en la atención con la adolescente después de su experiencia traumática de abuso El trabajo de investigación del psiquismo se opera a partir de la constitución de un ajuste profesional adecuado donde es posible al terapeuta el uso de la experiencia de mutualidad Desde su clínica Donald Winnicott desarrolló la consulta terapéutica un método de investigación y atención en Psicoanálisis que posibilita una exploración integral de la primera atención así como encontrar en determinados pacientes su conflicto psíquico e intervenir para proporcionar salud psíquica A partir de la atención de Liz se discute la contribución del Psicoanálisis para la comprensión del impacto del abuso sexual en el psiquismo sobre todo en la profundización del conocimiento sobre la singularidad de los destinos psíquicos posterior a la experiencia traumática Diferentes contextos y múltiples repercusiones se asocian a cada vivencia de abuso sexual que debe ser analizada en su complejidad En conclusión la atención psicoanalítica a través de las consultas terapéuticas es un importante instrumento de intervención para los profesionales que atienden casos de violencia en todos los ámbitos institucionales Palabras clave abuso sexual adolescencia psicoanálisis traumatismo consulta terapéutica Résumé Lassistance personnalisée de Liz une adolescente de 14 ans abusée sexuellement cest le départ pour un débat sur linvestigation et le soin psychanalytique des adolescents qui ont vécu situations dabus sexuel On considère lexpérience dabus sexuel comme traumatique conforme les conceptions théoriqueclinique de Freud Ferenczi et Winnicott Cette recherche a eu le but de connaître par lécoute psychanalytique des implications subjectives relatives aux expériences dabus sexuel à ladolescence Pour cela on a utilisé visites thérapeutiques dans les assistances personnalisées avec ladolescente après leurs expériences traumatiques dabus Le travail de recherche de la psyché est basé sur la constitution dun cadre professionnel approprié où cest possible le thérapeute utiliser lexpérience de la mutualité À partir de sa clinique Donald Winnicott a développé la consultation thérapeutique une méthode dinvestigation et dassistance en psychanalyse qui permet une exploration intégrale de la première assistance ainsi que pour trouver dans certains patients leur conflit psychique et intervenir pour assurer la santé psychique À partir de lassistance de Liz on débat la contribution de la psychanalyse pour la compréhension de limpact de labus sexuel sur la psyché en particulier dans lapprofondissement de la connaissance de lunicité des destinées psychiques apportées à lexpérience traumatique Des contextes différents et des répercussions multiples sont associés à chaque expérience dabus sexuel qui doit être analysée dans sa complexité En conclusion les soins psychanalytiques par des consultations thérapeutiques constituent un important outil dintervention pour les professionnels qui traitent des cas de violence dans tous les milieux institutionnels Motsclés abus sexuels ladolescence psychanalyse traumatisme assistance thérapeutique Este artigo é recorte de uma pesquisa de mestrado intitulada O abuso sexual e o traumático escuta de adolescentes numa perspectiva psicanalítica É uma investigação de teor qualitativo realizada por meio de estudo de casos clínicos Aqui se reporta o atendimento de Liz nome fictício dado a uma adolescente de 14 anos de idade abusada sexualmente pelo padrasto dos seis aos treze anos a qual realizou denúncia de violência de abuso sexual na Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DCECA O atendimento de Liz é o começo de uma discussão acerca da investigação do funcionamento psíquico e do atendimento psicanalítico de adolescentes que vivenciaram situação de abuso sexual bem como da contribuição da Psicanálise para o entendimento do impacto operado pelo abuso sexual no psiquismo O abuso sexual é um fenômeno mundial em curso na totalidade das classes sociais Configura um problema social subjetivo e cultural vivenciado por crianças e adolescentes de maneiras diversas das mais cruéis às mais sutis desde os tempos primitivos em variadas culturas Minayo 2001 É um tema bastante pesquisado nas últimas décadas sob variadas perspectivas Evidenciase entretanto a carência de estudos que privilegiem o sujeito e sua história considerando que a vivência de abuso sexual varia de acordo com a singularidade e a história de vida de cada um 94 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Dentre as violências cometidas contra crianças e adolescentes o abuso sexual se destaca por denotar características específicas e grande potencial de dano físico e psíquico uma vez que incide diretamente sobre a saúde física e mental podendo causar danos que persistirão por toda a vida Com frequência caracterizase como tipo intrafamiliar contribuindo para a manutenção do sigilo em torno do ocorrido Aded Dalcin Moraes Cavalcanti 2006 Brauner Carlos 2004 Habigzang Koller Azevedo Machado 2005 Pfeiffer Salvagni 2005 A literatura especializada define o abuso sexual como todo e qualquer ato ou jogo sexual relação heterossexual ou homossexual com ou sem contato físico com intenção de estimular sexualmente a criança ou o adolescente ou cujo objetivo é utilizálo para obter satisfação sexual de alguém que atingiu um estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado envolvendo assim uma pessoa que não compreende ou que ainda não adquiriu maturidade Boarati Sei Arruda 2009 Brasil 2006 Habigzang Koller Azevedo Machado 2005 Minayo 2001 Pfeiffer Salvagni 2005 Santos DellAglio 2010 O fenômeno do abuso sexual contra crianças e adolescentes implica uma compreensão do processo que seu caráter sexual confere como transforma as relações afetivas entre adultos e crianças ou adolescentes em relações erotizadas e genitalizadas negando os limites intergeracionais descaracteriza as representações sociais e funções dos adultos de pai a agressor por exemplo confunde as relações entre os adultos e as crianças ou adolescentes definidas socialmente tornando as dominadoras agressivas e arriscadas em lugar de democráticas afetivas e protetoras Faleiros 2000 Em toda situação de abuso sexual há exercício de poder do agressor sobre a vítima Gabel 1997 vista como um objeto destituída de direitos e sentimentos Amazarray Koller 1998 Vivenciar uma experiência de abuso sexual é inscrever uma violência no corpo e principalmente no psiquismo pois incide diretamente na manutenção do funcionamento psíquico É um tipo de violência diferenciada que implica um sentimento de enorme solidão e confusão em que a criança foi utilizada com a finalidade de satisfazer sexualmente o adulto e experimentou sensações sexuais antes desconhecidas Mesmo numa situação de passividade física a criança ou adolescente participa psiquicamente pois sensações são despertadas mas não integradas desejos afetos e fantasias entram em ação facilitando ou dificultando a sedução Fuks 1998 2006 e a elaboração psíquica Considerando a complexidade das questões envolvidas nas situações relacionadas ao abuso sexual neste trabalho buscou se compreender as implicações subjetivas referentes à vivência de abuso sexual na adolescência utilizase a Psicanálise como referencial teórico e técnico enfocando a noção de trauma psíquico como desdobramento da referida vivência O Abuso Sexual como Trauma Psíquico Freud Ferenczi e Winnicott Segundo Laplanche e Pontalis 2001 o trauma pode ser compreendido como um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica P 522 Conforme indicam os referidos autores Freud atribui ao conceito de trauma uma ideia econômica Assim o traumatismo caracterizase por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações Laplanche Pontalis 2001 p 522 Sabese que Freud nunca sistematizou um conceito de trauma embora essa ideia pontilhe em toda a sua obra Ao longo de seus escritos o trauma se mostra de modo distinto à medida que seus estudos em Psicanálise avançam Após ocupar um papel de determinante na etiologia da neurose e ser deixado em segundo plano após a descoberta das fantasias o trauma voltou à cena ocupando lugar de destaque na teoria pulsional Em 1896 no primoroso texto A etiologia da histeria Freud 1896 p 210 aponta o efeito traumático da violação física e psíquica do abuso sexual no psiquismo infantil todas essa sic incongruências grotescas mas trágicas mostramse impressas no desenvolvimento posterior do indivíduo e de sua neurose em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser delineados nos mínimos detalhes Para Freud 18961996a o caráter traumático e patogênico de uma recordação decorre do fato de não ter havido nenhuma reação nem motora tampouco verbal ao acontecimento ficando o afeto ligado à recordação e esta excluída da cadeia de representações mas constituindo juntamente com outras cenas traumáticas as próprias cadeias associativas ainda que não sejam lembradas O trauma psíquico pode ser efeito de um só e intenso trauma ou de várias experiências traumáticas que se acumulam ao longo da vida ou seja pode advir do impacto de um acontecimento que poderá deixar marcas corporais como no abuso sexual mas ele não é provocado pela lesão em si mas pelo susto pela surpresa A situação traumática está intimamente relacionada à vivência de desamparo do ego ante um excesso de excitação pulsional provocando angústia cujo efeito é danoso à simbolização e elaboração do sujeito formando sintomas Considera 95 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito se a elaboração psíquica como capacidade do aparelho psíquico de dominar e integrar as excitações no psiquismo e estabelecer conexões associativas entre elas Laplanche Pontalis 2001 O evento traumático é registrado impresso e inscrito mas não é simbolizado necessitando ser transposto do físico para o psíquico e posteriormente transcrito do registro do sensorialperceptivo para o da representaçãopalavra Uchitel 2011 Muito embora Freud 18961996a 19201996b inicialmente tenha formulado a teoria do trauma enfocando a relação do adulto com a criança para explicar a etiologia da neurose posteriormente ele retomou à ideia de trauma relacionada ao pulsional cabendo ao psicanalista húngaro Sándor Ferenczi reaver a noção de trauma relacionandoo ao papel do adulto na constituição do psiquismo infantil Em seu texto Confusão de línguas entre os adultos e a criança Ferenczi 19331992a aborda o trauma enfatizando o impacto das experiências reais de abuso sexual da criança na sua organização psíquica a relação entre a criança e seu agressor e a dificuldade para o restabelecimento da confiança nos adultos o que incide diretamente na transferência na situação analítica Confusão de línguas é uma expressão utilizada por Ferenczi para explicar uma das fontes do trauma a confusão entre a linguagem da ternura sexualidade infantil ingênua e a linguagem da paixão sexualidade adulta culposa Ao assinalar que a linguagem da criança é a linguagem da ternura Ferenczi enfatiza sobretudo a importância da qualidade do vínculo com os objetos para o desenvolvimento psíquico da criança Conceber a existência de uma sexualidade infantil não significa o estabelecimento de uma simetria com a sexualidade adulta O encontro entre ambas pode ser traumático A criança é sexualizada e estabelece relações amorosas e eróticas com os adultos mas com sua sexualidade prégenital opera na linguagem da ternura a qual é lúdica imaginativa e onipotente o que permite o desenvolvimento da capacidade de desejar É por meio dela que no encontro com o mundo adulto o psiquismo infantil se expande cria mais sentidos para o viver Se no entanto nesse encontro a criança for tomada pelo adulto na linguagem da paixão perdese a diferença ocorrendo uma violência que pode acarretar interrupções desvios e impedimentos Ferenczi 19331992a O abuso sexual modelo do trauma desestruturante no construto teórico de Ferenczi 19331992a corresponde ao primeiro tempo do trauma O segundo tempo referese ao desmentido por parte do adulto em quem a criança confia e recorre buscando amparo e sentido para essa vivência Ao negar a realidade do ocorrido ou ser indiferente ao sofrimento da criança o adulto age de modo a impossibilitar que ela atribua um sentido ao ocorrido e o que ela experimenta é o abandono e o desamparo em total solidão perde o prazer de viver e volta a agressão contra si A confiança que ela possuía em si mesma e no mundo é abalada Sentindose desamparada e abandonada a criança tem de se haver com a culpa transmitida pelo adulto atormentado Além disso ela não pode abrir mão do amor do agressor Com efeito a solução psíquica encontrada é a introjeção do agressor com o seu sentimento de culpa originando uma clivagem da personalidade ou cisão cujo objetivo é protegerse Sobre os destinos psíquicos do trauma Ferenczi 19321990 19341992b 19331992a aponta a clivagem psíquica com dois destinos possíveis a identificação com o agressor e a progressão traumática ou prematuração Na identificação com o agressor a criança é muito frágil para protestar Ainda que em pensamento ante a força e autoridade do adulto introjeta aquele que a ameaça e agride Portanto pacientes que experimentaram um trauma grave não conseguem reagir ao desprazer pela defesa ou pelo ódio uma vez que uma parte de sua personalidade ficou fixada num momento em que não era possível reagir ao meio externo mas somente era possível uma mudança interna autoplástica a identificação dado que essa antecede a defesa porque o ego ainda não dispõe de meios para se defender Ferenczi 19331992a Na prematuração ou progressão traumática a criança que sofreu uma agressão sexual pode de súbito sob pressão da urgência traumática manifestar todas as emoções de um adulto maduro as faculdades potenciais para o casamento a paternidade a maternidade faculdades virtualmente préformadas nela Ferenczi 19331992a p 104 A prematuridade acarreta uma insensibilidade que compromete a capacidade de expressão dos afetos de amor e ódio de ser afetado pelo outro e resulta numa diminuição da potência para se colocar de modo pessoal Assim sendo na concepção de Ferenczi o traumático psíquico resulta não somente do evento traumático propriamente mas também da maneira como os adultos reagem ao sofrimento da criança com indiferença ou descrédito Para ele o aspecto traumático é fruto das dificuldades encontradas na relação entre a criança e a família da incapacidade da família cuidar para que as excitações provenientes do meio externo ou interno não atuem de modo traumático Quando os adultos não se adequam às necessidades infantis traumatizam e os efeitos desses traumas são a dependência e a desconfiança Ferenczi 19331992a considera a realidade externa como produtora de traumas psíquicos embora não tenha negado a importância das fantasias sexuais e seu poder traumático Assim como Ferenczi Winnicott com suporte na sua prática clínica enfatizou a dimensão relacional tanto nos processos de desenvolvimento inicial como na experiência analítica além de apontar o fator ambiental como preponderante na questão do trauma O pediatra e psicanalista britânico concebe o trauma como consequência das falhas ambientais no desenvolvimento e em especial na relação mãebebê Segundo ele o trauma adquire um significado dependendo do estágio de desenvolvimento emocional dependência absoluta dependência relativa rumo à independência em que a criança se encontra 96 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira A concepção de desenvolvimento emocional primitivo de Winnicott 19451982 privilegia o ambiente e sua influência sobre o indivíduo especialmente na primeira infância De acordo com ele a mãe é o primeiro ambiente que se constitui para o bebê sendo que no início ambos estão fundidos não havendo diferenciação ambienteindivíduo O ambiente contudo não é unicamente responsável pela saúde emocional do bebê mas pode ser facilitador ou danoso Quando o ambiente é facilitador favorece o crescimento do indivíduo que já traz na sua constituição uma tendência inata ao desenvolvimento quando é danoso o ambiente falha podendo desencadear uma instabilidade emocional e a doença principalmente se no início da vida Abram 2000 A série complementar estabelecida por Freud é retomada por Winnicott isto é personalidade é igual à constituição mais vivências infantis mais situação atual quando este último considera a relação entre o bebê e o seu ambiente No início da vida a mãe ou quem exerce a função materna funciona como um escudo protetor entre a criança e o mundo estímulos externos evitando falhas no cuidado e fornecendo ao bebê uma proteção quanto à traumatização Os cuidados maternos é que possibilitam o desenvolvimento da criança pois assim ela poderá experimentar o movimento espontâneo e viver as sensações próprias desse período inicial da vida A continuidade dos cuidados e da sustentação física e psíquica holding mantidos pela mãe suficientemente boa proporcionam ao bebê a experiência de amor amparo e confiança no ambiente uma vez que nesse momento a comunicação verbal ainda não prevalece e o bebê registra aspectos relacionados à forma e não ao conteúdo A presença materna e a continuidade e repetição dos cuidados estabelecem um ritmo que possibilitam ao bebê o desenvolvimento da capacidade de confiar nos objetos Quando essa experiência de continuidade é interrompida pela necessidade de reação do bebê isso implica um colapso do setor da confiabilidade no meio ambiente resultando num fracasso ou trauma com implicações no estabelecimento da integração do ego e estrutura de personalidade O trauma é ocasionado por um fracasso relativo à dependência em um processo que poderia seguir naturalmente a linha do desenvolvimento caso encontrasse um ambiente facilitador Diz Winnicott 19651994b p 113 O trauma é aquilo que rompe a idealização de um objeto pelo ódio do indivíduo reativo ao fracasso desse objeto em desempenhar sua função Quando no entanto o ambiente primeiro se adapta para depois fracassar o fracasso contribui para a aquisição da capacidade de acreditar Na dependência absoluta de acordo com Winnicott 19601983a chegam ao bebê coisas boas e más totalmente fora do seu alcance Ele está em condições somente de aproveitar ou sofrer as perturbações Nesse momento o que é bom ou mau não é uma projeção de fato mas paradoxalmente é crucial ao desenvolvimento saudável da criança que tudo o que chega seja percebido como uma projeção pois a onipotência e o princípio do prazer estão plenamente em ação e ainda não há uma diferenciação entre eu e nãoeu O bebê e os cuidados maternos formam uma unidade A distinção entre o eu e o nãoeu depende da maturidade emocional e intelectual das condições favoráveis ou não Inicialmente o bebê não se atém à dependência e se relaciona com objetos subjetivos Depois se desenvolvendo satisfatoriamente reconhece os objetos fora de seu controle onipotente ou seja objetos objetivamente percebidos Nessa mudança do relacionamento com os objetos é que será possível ao indivíduo fazer sentido dos aspectos agressivos e fusioná los aos aspectos eróticos É também nesse momento do desenvolvimento que o indivíduo saudável organiza a fantasia e o senso de realidade Winnicott 19641994a Posteriormente na fase da dependência relativa a criança é capaz de perceber os cuidados maternos assim como suas necessidades Além disso ela pode relacionálos aos impulsos pessoais Nesse estágio já se estabeleceu a diferenciação eu e nãoeu Portanto há um ego integrado e as falhas maternas adquirem outro status agora são importantes no processo ilusãodesilusão ou apresentação da realidade que é fundamental para a criatividade A criatividade resulta da sobrevivência da mãe e do bebê ao ódio que o bebê sente da mãe É com suporte nessa experiência de sobrevivência que a criança cria seu espaço e a mãe aceita a criatividade do bebê havendo uma separação As falhas são necessárias para que haja diferenciação individuação e amadurecimento psíquico da criança Esse processo ilusãodesilusão é a base para o desenvolvimento da ambivalência Winnicott 19651994b No decorrer do amadurecimento a adaptação da mãe às necessidades do bebê deve levar a um fracasso adaptativo gradual ou desilusão desde a capacidade da mãe de perceber a capacidade do bebê para suportar as falhas ambientais Assim sendo a mãe proporciona ao bebê a ilusão da experiência de onipotência para depois fracassar num processo que vai da onipotência regido pelo princípio do prazer à desilusão e apresentação do princípio de realidade Desse modo o meio ambiente facilitador pode ser entendido como holding progredindo para o handling ou manejo sendo acrescido da apresentação de objeto Winnicott 19741963 1994f Vale ressaltar que nos primeiros momentos de vida o bebê necessita da mãe no papel de ego auxiliar para seu eu ir tomando configuração Esse papel de proteção e sustentação contudo não é exclusivo da mãe pois a família também pode exercêlo a família fornece à criança que cresce uma proteção quanto ao trauma Winnicott 19651994b p 102 Logo do mesmo modo que a família pode proteger a criança também pode perturbála traumatizandoa Ainda sobre o trauma diz Winnicott 19651994b p 114 o trauma é a destruição da pureza da experiência individual por uma demasiada intrusão súbita ou impredizível de fatos reais e pela geração de ódio no indivíduo ódio do 97 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito objeto bom experienciado não como ódio mas delirantemente como sendo odiado No texto A experiência mãebebê de mutualidade Winnicott 19691994e oferece uma definição taxativa do trauma Um trauma é aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada de maneira que um estado de confusão sobrevém seguido talvez de uma reorganização de defesas defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma Em outras palavras experienciaram trauma e suas personalidades têm de ser construídas em torno da reorganização de defesas que seguem os traumas defesas que devem precisar reter aspectos primitivos tais como a cisão da personalidade P 201 Para Winnicott 19691994e os destinos psíquicos do traumático apresentam como possibilidades de defesa a cisão da personalidade a interrupção da continuidade do self e a construção de um falso self No início da vida o trauma compromete a construção de um self verdadeiro dado que o desenvolvimento do ego depende do ambiente Quando o ambiente fracassa há um congelamento dessa situação de fracasso uma interrupção da continuidade do self e um sentimento de desamparo criando um falso self como defesa As expressões falso self e verdadeiro self são empregadas por Winnicott 1994g na descrição de uma organização defensiva na qual se dá uma assunção prematura das funções de amamentação da mãe p 36 em que o bebê concomitantemente se adapta ao meio ambiente e protege o verdadeiro self fonte de seus impulsos Nos casos de falso self clinicamente há uma vivência de não sentirse real Em tais casos o self verdadeiro está aprisionado não funciona e sua vivência é limitada mas a espontaneidade e o impulso real ou seja o viver criativo provém do verdadeiro self No desenvolvimento emocional são possíveis duas vias de evolução A primeira quando há uma adaptação suficientemente boa da mãe leiase ambiente facilitador e como resultado disso o bebê inicia a crença na realidade externa que o atende magicamente propiciandolhe uma área de ilusão e o controle onipotente Então será possível à criança renunciar sua onipotência gradativamente pois os acontecimentos externos estão adaptados a sua espontaneidade propiciando o desenvolvimento de um self verdadeiro e o reconhecimento do ilusório ou seja brincar de imaginar e simbolizar A segunda via ocorre quando não há uma adaptação suficientemente boa por parte do ambiente e o bebê se submete e desenvolve um falso self submisso que atende à exigência do ambiente que a criança parece aceitar de bom grado No que tange ao trabalho analítico Winnicott 19641994a refere que a situação traumática deve ser reatualizada pela regressão à dependência no setting analítico sendo o último um representante do ambiente Para isso é necessário um setting confiável e seguro ao paciente Assim será possível descongelar a situação de fracasso e possibilitar um novo posicionamento do ego de falso self para um verdadeiro self Há no processo analítico um desfazerse gradual do falso self em que o terapeuta ocupa o lugar de cuidador e assume as funções defensivas do falso self possibilitando a emergência do verdadeiro self Nesse tipo de trabalho com pacientes traumatizados o setting é modificado em relação ao enquadre clássico da Psicanálise para um mais flexível no qual mais importante do que a interpretação é a vivência de experiências organizadoras e o terapeuta possibilita o desenvolvimento da confiança que fora abalada no trauma Ressalta que como disse o próprio Winnicott 19641994a no texto A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise os princípios básicos da análise estabelecidos por Freud são seguidos e fundamentais ao trabalho analítico Assim podese afirmar que o setting winnicottiano é o setting materno que atende às necessidades do indivíduo com modalidades de intervenção estabelecidas com base na demanda do paciente ou consulta terapêutica abordagem utilizada nesta pesquisa na qual os atendimentos podem ser realizados em poucas sessões ou numa somente É diferente do setting analítico freudiano que trabalha o desejo privilegiando a transferência paterna condizente com a clínica da neurose pois na neurose os conflitos são intrapsíquicos dizem respeito aos impulsos do id que ameaçam o ego mantendo assim uma relativa independência do ambiente Winnicott 19631983b faz uma correlação entre a relação mãebebê e a relação analítica Assim como a mãe que se identifica com o seu bebê para atender as suas necessidades na clínica com pacientes regredidos o analista deve ser capaz de identificarse com o paciente Tal aspecto remonta a Ferenczi quando assinala que o analista deve ser capaz de desenvolver uma benevolência materna e que só a compreensão não é suficiente mas fazse necessária uma experiência De acordo com o psicanalista inglês o analista não pode falhar até que o paciente o fará falhar com a sua história pessoal o que significa que a falha aqui adquire uma importância crucial pois é a oportunidade de o paciente experimentar no processo analítico na transferência a falha original ambiental fora do seu alcance onipotente naquela época Agora na situação analítica a falha transformada em dependência pelo analista está sob o controle onipotente do paciente 98 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Breves Considerações sobre o Método Esta pesquisa foi de caráter qualitativo na medida em que seu interesse foi conhecer mediante a escuta clínica em Psicanálise as implicações e possíveis efeitos psíquicos referentes ao abuso sexual Para isso reportouse à consulta terapêutica ou entrevista psicoterapêutica Winnicott 19651994a 19651994c 19681994d 19711984 como método nos atendimentos clínicos uma modalidade singular de produção do saber que envolve a comunicação inconsciente e permite a articulação entre teoria e clínica A consulta terapêutica apoiase na ideia de que quando um setting profissional é adequadamente ofertado o paciente que está sofrendo apresentará sua aflição e o mais importante é o que acontece independente do que for Winnicott 19651994c Assim sendo essa estratégia comporta um aprofundamento ao explorar diferenças e similaridades da questão investigada A pesquisa referese a um estudo de caso constituído com esteio em duas consultas terapêuticas com a adolescente apresentada pelo nome fictício de Liz de 14 anos de idade abusada pelo padrasto dos seis aos treze anos A adolescente foi convidada a participar da pesquisa desde a realização de denúncia de abuso sexual junto à Delegacia de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes DCECA localizada no município de Fortaleza A pesquisa aconteceu em dois momentos distintos o primeiro sucedeu na delegacia por meio de anúncio público que constituiu em informar sobre a pesquisa e convidar as adolescentes a participar Esse momento aconteceu quando da realização do atendimento psicológico naquele mesmo espaço O segundo momento da pesquisa as consultas terapêuticas foi realizado no consultório particular de Psicologia As questões éticas envolvendo sujeitos adolescentes em situação de vulnerabilidade foram consideradas em profundidade discutindose a pesquisa e os atendimentos com a adolescente e seu responsável Esta investigação foi submetida à apreciação e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza com o título Abuso sexual considerações psicanalíticas autorização CAAE 35908614000005052 número do Parecer n 1104622 em 12 de junho de 2015 seguindo todos os princípios éticos e a orientação da Resolução n 4662012 do Conselho Nacional de SaúdeMinistério da Saúde e pela Resolução n 0162000 do Conselho Federal de Psicologia Por ser uma pesquisa com sujeitos vulneráveis houve o compromisso de se acompanhar e encaminhar para cuidados necessários quaisquer eventualidades que pudessem surgir nos sujeitos advindos da pesquisa ressaltando que a ética clínica norteou toda a estratégia da pesquisa Liz A Escuta do Singular por Meio das Consultas Terapêuticas Liz 14 anos realizou denúncia de abuso sexual na DCECA por intermédio de sua mãe em março de 2015 A adolescente foi abusada pelo padrasto dos seis aos treze anos quando ele saiu de casa Na época das consultas Liz residia com a mãe e o irmão materno de quatro anos de idade filho do padrasto Bartolomeu nome fictício Os pais de Liz separaramse quando ela era criança Desde a separação dos pais ela ficou com a mãe que posteriormente casouse com Bartolomeu O pai reside próximo e também se casou novamente mas não teve outros filhos Liz é ótima aluna cursa o 1º ano do Ensino Médio e é líder de sala Durante as consultas terapêuticas mostrouse comprometida com os estudos e com o papel de líder que ora ocupa e diz gostar Além de estudar ela pratica artes marciais assim como seu pai e vai começar a participar de competições atividade da qual fala com prazer e tensão Na primeira consulta terapêutica convido Liz a falar sobre sua vida sobre si Liz Não sei por onde começar se por depois ou antes de eu nascer Digo que ela comece por onde quiser Liz Eu morava com minha avó lá tinha muito bicho e eu era alérgica quase morri por causa disso e ela preferiu ficar com os bichos do que comigo pausa Aí eu fui morar na casa da minha tia Meus pais se separaram quando eu era pequena eu lembro que eles viviam brigando Depois minha mãe começou a namorar o Bartolomeu e foram morar juntos Nas consultas terapêuticas com Liz ela traz algumas questões apresentando seu conflito naquele dado momento Sobre o abuso sexual ela nos diz A primeira vez eu não lembro mas ele ficava passando a mão em mim chora A primeira vez eu acordei com ele na minha cama eu não falei nada Não sei como eu dei um chute nele A minha mãe desconfiou uma vez ela levantou à 99 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito noite e ele estava sentado na minha cama Em outro momento fala Acontecia todo dia era quando minha mãe saía pra ir trabalhar Eu queria era esquecer tudo isso A respeito da revelação do abuso Liz refere Eu cresci sem pai e não queria que o meu irmão também crescesse sem pai Eu sei como é sofrido chora Eles eram casados e a nossa religião só permitia separação por traição Depois nós mudamos de igreja e lá tem grupo sabe e uma pessoa que coordena chegou pra mim e pra minha mãe e perguntou se estava acontecendo como ela podia ajudar Foi só quando eu falei Eu tinha medo que meu pai soubesse e fizesse alguma coisa com ele ou culpasse minha mãe Acho que falei numa briga com a minha mãe Ela falou mal do meu pai e eu disse e o teu marido que faz isso e isso Ele ouviu Eu ia pra casa de uma amiga sozinha e minha mãe mandou ele ir me deixar de bicicleta Ele foi o caminho todo falando eu ouvi o que você falou pra sua mãe Só repetindo Até que eu não aguentei mais e pulei da bicicleta e fui andando atrás Liz fala sobre sua relação com a mãe Minha mãe fez a denúncia eu nem sabia Quando as coisas melhoraram lá em casa eu achei que ia ficar tudo bem ela resolveu fazer e eu só soube depois Eu queria era esquecer isso aí ela voltou com isso Ela não fala as coisas Falou com uma amiga eu fiquei sabendo pelas conversas A mãe fala para as pessoas já eu guardo as coisas só comigo Eu nunca falei pra ninguém Eu tinha vergonha achava que eu tinha culpa Eu não sei direito quando ela soube mas foi ano passado e a denúncia foi em março Eu nem queria achava que já tinha passado Agora eu vou ter duas provas esta semana as provas que eu perdi pra ir à delegacia e não consigo estudar Eu não consigo parar de pensar nisso Em tudo o que aconteceu Eu não paro de pensar que ela disse que eu tinha que ir à delegacia naquele dia A amiga dela disse que tinha falado com a delegada e a delegada tinha dito que se eu não fosse ela mandava a viatura me buscar Quando eu fui a delegada disse que não tinha problema que eu poderia ter ido outro dia Sobre a relação com o pai Sabe às vezes eu acho que mais difícil do que o que aconteceu comigo é não ter tido meu pai por perto chora Eu acho que se meu pai fosse mais presente ele não teria feito aquilo comigo Meu pai disse que se eu quisesse eu podia ir morar com ele não tinha problema Disse até que dava pra eu fazer um cursinho pra eu estudar pro ENEM que eu ia ficar só estudando Eu ia ter mais tempo pra estudar porque lá em casa eu faço muita coisa Se eu for morar com ele não vou poder mais vir aqui nem na delegacia Eu ajudo a minha mãe com o meu irmão Eu indo morar com o meu pai não vou poder ficar saindo e mesmo se eu sair com a minha mãe ele vai querer saber pra onde vou ter que dar satisfação e ele não sabe de nada Eu tenho medo do que ele possa fazer se souber Meu pai é muito impulsivo e agora ele tem arma é da Polícia Ele disse se alguma coisa acontecer comigo ele não tá nem aí pra esse concurso Não sei se ele vai saber nem quando Não sei se ele vai ficar com raiva de mim porque eu não falei ou vai culpar a minha mãe Liz trouxe para os atendimentos a sua busca pelas funções parentais pai e mãe fala dos pais que não a protegeram dos abusos reiterados do padrasto da ausência de pai e mãe não fala de amor nem de seus sentimentos em relação às figuras parentais Os abusos podem ser compreendidos como uma falha na função parental que não protegeu a criança do que é excessivo seja das tensões internas seja das situações externas como no caso do abuso sexual Na concepção winnicottiana o trauma é o resultado da não adaptação do ambiente às necessidades da criança uma falha ambiental que acarreta reação da criança à intrusão Reagindo à intrusão a criança adaptase ao ambiente sendo invadida pelos estímulos externos e suas consequências nocivas sobretudo quando elas se dão de modo repetitivo formando um núcleo de reações patogênicas Uma vez que o 100 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira ambientefamília não se adaptou às necessidades da criança ocorre um desenvolvimento prematuro do ego acarretando dificuldades de separação e individuação além de um investimento precoce na realidade externa e interna Na situação de abuso sexual a criança reage às agressões submetendose e adaptandose ao ambiente abusivo numa reação autoplástica modificação interna ou numa saída para o falso self alguns dos destinos do trauma na situação de abuso Assim sendo podese hipotetizar a ideia de que o abuso sexual pode vir a repousar sobre o que se relaciona à comunicação estabelecida entre a mãe e o bebê sobre as falhas do ambientemãe na adaptação às necessidades do bebê Como disse Winnicott 19711975 o bebê se vê no rosto da mãe porém quando isso não acontece o bebê vê o que é refletido pela mãe e consequentemente busca adaptarse ao que lhe é imposto O esquecimento dos detalhes e as falhas na memória consoante o relato de Liz possivelmente são desdobramentos do evento traumático Aos seis anos idade que se iniciaram os abusos possivelmente Liz ainda estava às voltas com as fantasias edipianas incestuosas Nesse momento do desenvolvimento psicossexual a situação de abuso pode ser sentida pela menina como tendo sido provocada por ela Fantasia e realidade se confundem emergindo daí o sentimento de culpa Uma vez identificada com o agressor a criança introjeta o sentimento de culpa do adulto e o que antes era uma brincadeira terna passa a ser um ato proibido que merece uma punição Ferenczi 19331992a Tomada pelo sentimento de culpa a criança vive a angústia ser vítima ou não ser vítima Nas consultas terapêuticas Liz fala sobre o início de sua vida do abuso vivido e principalmente de sua relação com o casal parental Ela comunica as falhas ambientais a que fora submetida fala do pouco investimento amoroso da avó e dos pais do descrédito e indiferença de sua mãe em relação ao ocorrido e do distanciamento afetivo do pai Entendese que se na situação de abuso a excitação excessiva a violência psíquica e física e a impossibilidade de reagir pelo ataque ou por uma fuga dão lugar inicialmente a um estado traumático é na relação com a mãe que o trauma encontra razões para se perpetuar no caso de Liz por meio do desmentido Como ensina Ferenczi 19311992c o mais danoso é o desmentido por parte do adulto a quem a criança está ligada e que se apresenta como modelo identificatório para ela A negação de que há um sofrimento O adulto ao negar a realidade do evento ou se mostrar indiferente ao sofrimento da criança impossibilita a atribuição de um sentido ao ocorrido O resultado disso é a vivência do desamparo abandono solidão e um estado de confusão por parte da criança Isto pode ser visto quando Liz traz sua angústia ante a decisão que solitariamente tem que tomar o convite para ir morar com o pai Supõese que ela quer isso ser protegida pelo pai que ela vê como poderoso Cabe salientar que para a Psicanálise o pai é o instaurador da lei interditor do incesto Ir morar com o pai no entanto significa abandonar a mãe e o irmão deixar o irmão aos cuidados da mãe ou deixálo ser negligenciado pela mãe como pode ela ter se sentido Durante a consulta ela comunica o seu estado de desamparo solidão e desconfiança Com isso buscase desempenhar papel ativo colocandose na posição de atender às necessidades dela de ser cuidada por um adulto e assim estabelecer com ela possíveis opções ao lhe dizer pode pensar sobre o convite do pai e responder depois que ela pode buscar esclarecimentos no que se refere à denúncia junto à Psicóloga na delegacia Ao final Liz reaproximouse do pai Acreditase que numa tentativa de ser protegida e cuidada concedendo a esperança de um reposicionamento na sua posição subjetiva Considerações Finais Concluise que além da cena de abuso sexual há uma história de vida em um contexto familiar específico denotando marcas psíquicas que antecedem a vivência do abuso já que as primeiras relações objetais e o investimento libidinal dispensado pela mãeambiente são essenciais para a criança construir sua identidade subjetiva e estabelecer relações objetais para o longo da vida Os abusos podem ser compreendidos como uma falha na função parental que não protegeu a criança dos excessos seja das tensões internas seja das situações externas como no caso da violência sexual Desse modo o atendimento clínico psicanalítico por via do processo transferencial possibilita ao sujeito uma retomada do seu desenvolvimento emocional sem a necessidade das defesas patológicas Com amparo no estudo de caso relatado entendese que a Psicanálise contribui para o entendimento dos processos mentais relativos ao funcionamento psíquico sobretudo no aprofundamento do conhecimento sobre a singularidade dos destinos psíquicos dados a vivência traumática bem como pela valorização e aposta na elaboração psíquica do trauma Verificouse nas consultas terapêuticas realizadas com a adolescente que a clínica do trauma ou do abuso sexual está situada no campo da delicadeza exigindo do terapeuta uma disponibilidade afetiva num exercício de afetação mútua e sensibilidade clínica de saber o que quando e como se deve comunicar algo e que a comunicação é mais abrangente do que o conteúdo das falas Na escuta de adolescentes abusadas sexualmente é necessário absterse de qualquer furor normativo 101 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito eou curativo para estar com a pessoa em sua singularidade Por fim distintos contextos e múltiplas repercussões são associados a cada vivência de abuso sexual que deve ser analisada em sua complexidade Ademais o atendimento psicanalítico por meio das consultas terapêuticas é um importante instrumento de intervenção para os profissionais que atendem casos de violência em todos os âmbitos institucionais Referências Abram J 2000 A linguagem de Winnicott Dicionário das palavras e expressões utilizadas por Donald W Winnicott M D G da Silva Trad Rio de Janeiro Revinter Aded N L O Dalcin B L G S Moraes T M Cavalcanti M T 2006 Abuso sexual em crianças e adolescentes Revisão de 100 anos de literatura Revista de Psiquiatria Clínica 334 204213 Amazarray M R Koller S H 1998 Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual Psicologia Reflexão e Crítica 113 559578 Boarati M C B Sei M B Arruda S L S 2009 Abuso sexual na infância A vivência em um ambulatório de psicoterapia de crianças Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano 193 426434 Brasil Ministério da Saúde 2006 Violência faz mal à saúde Série B Textos Básicos de Saúde Link Brasil Conselho Nacional de Saúde 2012 Resolução no 466 Diretrizes e normas regulamentadoras sobre pesquisa envolvendo seres humanos Link Brauner M C C Carlos P P de 2004 A violência intrafamiliar sob a perspectiva dos Direitos Humanos In G Maluschke J S N F BucherMaluschke K Hermanns Org Direitos humanos e violência Desafios da ciência e da prática Fortaleza Fundação Konrad Adenauer Conselho Federal de Psicologia 2000 Resolução no 016 Link Faleiros E T S 2000 Repensando os conceitos de violência abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes Espirito Santo CECRIA Ferenczi S 1990 Diário Clínico A Cabral trad São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 19691932 Ferenczi S 1992a Confusão de línguas entre os adultos e a criança a linguagem da ternura e da paixão In Obras completas Psicanálise IV A Cabral trad pp 97106 São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 1933 Ferenczi S 1992b Reflexões sobre o trauma In Obras completas A Cabral trad Vol 4 pp 109117 São Paulo Martins Fontes Trabalho original publicado em 193419311932 Freud S 1996a A etiologia da histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud J Strachey trad Vol 3 pp187215 Rio de Janeiro Imago Trabalho original publicado em 1896 Freud S 1996b Além do princípio do prazer In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud J Strachey trad Vol 18 pp1175 Rio de Janeiro Imago Trabalho original publicado em 1920 Fuks L B 1998 Abuso sexual de crianças na família Reflexões psicanalíticas Revista Percurso 20 120126 Fuks L B 2006 Consequências do abuso sexual infantil Revista Percurso 1836 4152Gabel M 1997 Crianças vítimas de abuso sexual S Goldfeder Trad São Paulo Summus 102 Revista Subjetividades Fortaleza 173 93103 dezembro 2017 Roberta Araujo Silva e Leônia Cavalcante Teixeira Habigzang L F Koller S H Azevedo G A Machado P X 2005 Abuso sexual infantil e dinâmica familiar Aspectos observados em processos jurídicos Psicologia Teoria e Pesquisa 213 341348 Laplanche J Pontalis JB L 2001 Vocabulário de Psicanálise 4a ed P Tamen trad São Paulo Martins Fontes Minayo M C de S 2001 Violência contra crianças e adolescentes Questão social questão de saúde Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil 12 91102 Pfeiffer L Salvagni E P 2005 Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência Jornal de Pediatria 581 197204 Santos S S DellAglio D D 2010 Quando o silêncio é rompido O processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil Psicologia Sociedade 222 328335 Uchitel M 2011 Neurose traumática Uma revisão crítica do conceito de trauma Coleção clínica psicanalítica 3a ed São Paulo Casa do Psicólogo Winnicott D W 1982 Desenvolvimento emocional primitivo In D W Winnicott Textos selecionados Da Pediatria à Psicanálise 2a ed J Russo trad pp 269286 Rio de Janeiro F Alves Obra originalmente publicada em 1945 Winnicott D W 1983a Teoria do relacionamento paternoinfantil In D W Winnicott O ambiente e os processos de maturação Estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional I C S Ortiz Trad pp 3854 Porto Alegre Artmed Obra originalmente publicada em 1960 Winnicott D W 1983b Dependência no cuidado do lactente no cuidado da criança e na situação analítica In D W Winnicott O ambiente e os processos de maturação estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional I C S Ortiz Trad pp 225233 Porto Alegre Artmed Obra originalmente publicada em 1963 Winnicott D W 1984 Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil J M X Cunha trad Série Analytica Rio de Janeiro Imago Ed Obra original publicada em 1971 Winnicott D W 1994a A importância do setting no encontro com a regressão na psicanálise In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 7781 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994b O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 102115 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994c O valor da consulta terapêutica In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 244248 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1965 Winnicott D W 1994d O jogo do rabisco In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 230243 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1968 Winnicott D W 1994e A experiência mãebebê de mutualidade In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 106202 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 1969 Winnicott D W 1994f O medo do colapso breakdown In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 7076 Porto Alegre Artes Médicas Obra original publicada em 19741963 103 Revista Subjetividades 173 93103 dezembro 2017 Adolescência e o Traumático Sobre Abuso Sexual e as Vicissitudes do Sujeito Recebido em 09012017 Revisado em 16102017 Aceito em 20122017 Endereço para correspondência Roberta Araujo Silva Email robertamadeirogmailcom Leônia Cavalcante Teixeira Email leoniactgmailcom Winnicott D W 1994g Ideias e definições In C W Winnicott R Sherpherd M Davis Orgs Explorações psicanalíticas D W Winnicott J O de S Abreu Trad pp 3637 Porto Alegre Artes Médicas Winnicott D W 1975 O brincar e a realidade Coleção Psicologia Psicanalítica J O de A Abreu V Nobre Trad Rio de Janeiro Imago editora Ltda Obra original publicada em 1971