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Psicologia ·

Psicanálise

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11 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDAPRADO Doutora em Psicologia Clínica Psicóloga do Instituto de Psicologia UERJ Membro Associado da Associação Psicanalítica do Rio de Janeiro Rio 3 e da IPA TEREZINHA FÉRESCARNEIRO Professora Titular do Departamento de Psicologia PUCRio Psicoterapeuta de Família e Casal Resumo Etimologicamente a palavra trauma vem do grego e significa ferida Na obra freudiana destacamse três momentoschave para a compreensão do trauma todos envolvendo o aspecto econômico pois na noção de trauma há sempre um excesso A teoria do trauma foi retomada por Ferenczi cujo ponto de vista envolve o reconhecimento de um evento real e de um desmentido por parte do adulto na origem do trauma Em sua interação com o adulto a criança utilizase da linguagem da ternura enquanto o adulto utilizase da linguagem da paixão Propomonos neste trabalho abordar e ampliar dois conceitos básicos a confusão de línguas e o trauma cumulativo relacionandoos à psicodinâmica da mãe à perspectiva transgeracional e a algumas dificuldades particulares dos profissionais envolvidos nesse tipo de assistência Apresentamos o conceito de trauma ativo que foi ilustrado a partir da discussão do filme Monster de Patty Jenkins Palavraschave trauma família criança abuso sexual transgeracionalidade SEXUAL ABUSE PSYCHOLOGICAL TRAUMA AND TRANSGENERATION Abstract The word trauma comes from the Greek and means a wound Freuds work underscored three key moments in the understanding of trauma all of them involving an economical aspect that characterized it as an excess Ferenczi further elaborated the theory on trauma and recognized in the origin of trauma an actual traumatic event which is often denied by the adult involved in it The child in hisher interaction with an adult makes use of a language of tenderness while the adult makes use of a language of passion In the present paper we ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 12 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 further analyzed these two basic concepts involved in the traumatic event the confusion of languages and the cumulative trauma We then relate them to the psychodynamics of the mother to the transgenerational perspective and to some particular difficulties for professionals involved in this area In addition we introduce the concept of active trauma and illustrate it with a discussion of Patty Jenkins film entitled Monster Keywords trauma family child sexual abuse transgeneration Etimologicamente a palavra trauma vem do grego e significa ferida Cada fase de elaboração da teoria psicanalítica influenciou o conceito de trauma e repercutiu na avaliação e na prática clínicas A psicanálise transpôs para o plano psíquico três significações implicadas no termo a de um choque violento a de uma refração e a de conseqüências sobre o conjunto da organização Laplanche e Pontalis 1967 Na obra freudiana destacamse três momentos chave para a compreensão do trauma todos envolvendo o ponto de vista econômico pois na noção de trauma há sempre um excesso No primeiro de 1895 a 1905 Freud apresentou os conceitos básicos para a compreensão do inconsciente a primeira tópica os processos primários e secundários os sonhos como via régia de acesso ao inconsciente os processos de formação de sintoma e a etiologia da histeria e da neurose obsessiva Nesse momento o modelo básico de ação do trauma ligavase à sedução vista como o fator principal na etiologia da neurose O trauma era concebido como decorrente de um fator ambiental que invadia o ego que saturado de energia libidinal não conseguia descarregála A sedução sexual apresentavase como paradigma da situação traumática Freud se disse decepcionado ao descobrir que as cenas de sedução jamais tinham acontecido realmente o que o levou a um outro entendimento baseado na compreensão do mecanismo de repressão e da importância da fantasia para a vida psíquica No entanto será que as cenas de sedução não ocorreram jamais mesmo Freud achou um excesso a freqüência com que tais cenas eram relatadas por suas pacientes Todavia considerando a quantidade impressionante de crianças que atualmente chegam incessantemente a MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 13 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 serviços especializados vítimas de abuso sexual podese ter dúvidas se Freud exagerou em sua afirmativa jamais Se foi este o caso como pode ter sido difícil para essas pacientes não terem encontrado no analista alguém com condições de compreender sua real experiência inclusive a psíquica Freud virá a dizer que a única realidade à qual o sujeito realmente dá crédito é sua realidade psíquica e isto vale para paciente e para analista No segundo de 1905 a 1920 Freud detalha o desenvolvimento sexual infantil e elabora a metapsicologia psicanalítica Aqui o paradigma da situação traumática passa a ser as fantasias originárias que envolvem angústias de sedução castração relativas à cena primária e ao complexo de Édipo O trauma passa a ser compreendido em relação à urgência e pressão das pulsões sexuais e à luta que o ego trava contra elas e os conflitos e as vivências traumáticas passam a ser examinados e compreendidos a partir das fantasias inconscientes e da realidade psíquica interna O terceiro de 1920 a 1939 iniciase com a apresentação de um artigo que será um marco na teoria psicanalítica Além do princípio do prazer em que Freud apresenta sua segunda teoria pulsional relacionando a pulsão de morte à compulsão à repetição vista como um princípio de funcionamento psíquico Em 1923 Freud apresenta sua segunda tópica em termos de id ego e superego O trauma adquire uma outra dimensão essencialmente intersistêmica e pulsional passando a ser visto como uma efração da paraexcitação O bebê em seu desamparo tornase paradigma da angústia que excede em muito a capacidade de seu ego para se proteger da efração quantitativa seja ela de origem interna ou externa Em 1926 Freud propõe uma nova teoria da angústia relacionando o trauma à perda de objeto Faz distinção entre as situações traumáticas e as situações de perigo relativas às quais há dois tipos de angústia uma automática outra como sinal de aproximação do trauma A essência da situação traumática é a experiência de desamparo por parte do ego diante de um excesso de excitação Freud 1937 1939 retoma suas preocupações iniciais a respeito das neuroses traumáticas dizendo que quando estímulos externos e ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 14 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 internos ultrapassam a barreira de escudo protetor do ego eles causam um efeito surpresa e provocam uma excessiva angústia difusa cujo efeito é devastador inclusive para o processo de simbolização Traumatismo traumático e trauma Apoiandose sobre esta evolução em três tempos do conceito de trauma na obra freudiana Bokanowski 2003 propõe a distinção dos três termos traumatismo traumático e trauma atribuindolhes valências diferentes da perspectiva da organização psíquica e dos parâmetros aos quais estes nos fazem confrontar sobretudo na visão do tratamento psicanalítico Para o autor traumatismo designa a concepção genérica do trauma mais especificamente o que aparece no tratamento psicanalítico como os aspectos representáveis figuráveis e simbolizáveis do efeito traumático da organização fantasiosa do sujeito basicamente as fantasias originárias bem como o peso do sexual sobre essa organização é o que classicamente transparece na organização dos tipos de funcionamento psíquico próprios das ditas neuroses de transferência O traumático designa mais especificamente o aspecto econômico do traumatismo por falta de paraexcitação isto é de recursos para desviar a excitação Este princípio econômico acarreta um tipo de funcionamento a respeito do qual poderseia falar de funcionamento marcado pelo trauma mesmo que seus efeitos sejam parcialmente representáveis figuráveis e simbolizáveis eles nunca o são totalmente E nós nos perguntamos será que efeitos traumáticos sobretudo os que dizem respeito a situações de abuso sexual na infância são simbolizáveis e superados totalmente Dolto 1982 assinala que as mulheres vítimas de abuso sexual na infância correspondem aos casos mais difíceis de serem tratados psicanaliticamente sobretudo quando é imposto à criança o silêncio pelo adulto abusador culpabilizado tirandolhe desta forma toda via de simbolização e possibilidade de elaboração Ferenczi 1933 também considerava que a culpa sentida pelo adulto infrator por sua postura é transmitida à criança através da identificação MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 15 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 Dolto e Ferenczi falam sobre o adulto abusador mas a criança vítima de abuso sexual se vê às voltas com adultos abusadores quando não encontra em seu meio familiar suporte de outro adulto em quem possa confiar particularmente da mãe que lhe dê crédito e lhe proteja Em uma sociedade essencialmente adultocêntrica os adultos se mostram pouco disponíveis a escutar a criança e a acreditar nela sobretudo quando suas vidas possam se ver de alguma forma afetadas pela revelação e pelo reconhecimento dos fatos implicando em possíveis providências a serem tomadas e que podem afetar a vida desses adultos como a manutenção da relação conjugal o envolvimento de conveniências financeiras o medo de ficar só ou simplesmente a intenção de manter a família Cremos também que o silêncio imposto à criança pelo abusador e pela mãe ou pelo meio circundante não se deva particularmente à culpa mas sim à perseguição Tratarseia de uma culpa persecutória perseguição que não permite uma atitude verdadeiramente reparatória mas ao contrário faz com que a situação abusiva tenda a perdurar particularmente em se tratando de mães não protetoras isto é aquelas que desmentem a criança e se mantêm em conluio com o abusador muitas vezes responsabilizando ainda a criança por disfunções e insatisfações conjugais ou mesmo pelo fracasso do casamento A culpa persecutória ou perseguição impossibilita a vivência da culpa por favorecer a mobilização de defesas maníacas que implicam na desqualificação do objeto no triunfo sobre ele e na onipotência de pensamento associados a outros mecanismos próprios da posição esquizoparanóide como a cisão a negação e a identificação projetiva massiva Desta forma evitamse as vivências depressivas que quando toleradas possibilitam a experiência da culpa e de sentimentos de responsabilidade pelo objeto havendo então genuinamente possibilidade de reparação É exatamente o que não costuma acontecer nas situações de abuso sexual na infância prevalecendo os sentimentos persecutórios e seu cortejo de mecanismos defensivos Entendemos que o que se transmite à criança é de fato culpa persecutória e ao contrário de Ferenczi achamos que isto ocorre menos ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 16 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 por identificação mais por incorporação e com isso queremos acentuar os entraves na possibilidade de simbolização da experiência Voltando a Bokanowski vemos que o trauma designa a ação positiva mas sobretudo negativa do traumatismo sobre a organização psíquica como sugere Freud ele pode acarretar ataques precoces ao ego sob a forma de feridas de ordem narcísica Esses traumas que dizem respeito às marcas do objeto ou à ação do meio e que podem se dar antes do estabelecimento da linguagem vêm perturbar e reforçar os primeiros mecanismos defensivos como a negação a cisão a identificação projetiva a idealização a onipotência etc e podem organizar zonas psíquicas mortas criptas Abraham e Torok 1978 por causa da ausência de representação de figuração e de simbolização que eles acarretam Segundo Bokanowski o que se designa por trauma interessa às categorias do primário e do originário Aulagnier 1975 em articulação com as categorias edípicas clássicas o que situa o conceito no centro das preocupações de toda análise contemporânea Cremos que aqui delineiase a importância da transmissão psíquica entre gerações pois nada se passa em família que seja totalmente desconhecido para seus membros Pincus e Dare 1978 e as vias de transmissão psíquica entre gerações configuramse com a própria formação da identidade do sujeito São três as vias comumente referidas a identificação o superego e o negativo às quais acrescentamos uma quarta os mitos familiares Sobre os mitos familiares como transmissores geracionais gostaríamos de esclarecer que conforme detalhamos em trabalho anterior Almeida Prado 1999 é próprio do mito nada dizer sobre uma situação em particular mas contar uma história que se desenrola em diversos planos tratandose de uma criação inconsciente próxima da criação estética em que os diversos problemas fazem eco uns aos outros Os mitos compõemse sempre de feixes de relações Neles as contradições tendem a se ajustar umas às outras e a não serem mais percebidas como tais desta forma os mitos podem dispensar a procura de outras soluções para aqueles problemas particularmente em se tratando de mitos canônicos aqueles que não toleram variantes MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 17 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 A criação do mito é inconsciente e ele organizase conforme a lógica inconsciente semelhante à demonstrada por Freud 1900 em seu estudo sobre os sonhos Os mitos estão para o aparelho psíquico familiar Ruffiot 1981 assim como a fantasia está para o aparelho psíquico individual As famílias não vivem sem seus mitos e os mitos familiares e as fantasias individuais influenciamse constante e mutuamente seja em um sentido sadio ou patogênico Bokanowski 2003 propõe a diferenciação entre os termos traumatismo traumático e trauma como uma possibilidade de assinalar um meio de diferenciação entre uma maior ou uma menor capacidade de simbolização implicada a partir da experiência traumática O termo trauma estaria enfatizando o estrago produzido na capacidade de simbolizar e de transformar e o favorecimento de zonas psíquicas mortas de criptas cujos fantasmas assombram gerações futuras afetando suas escolhas amorosas e a possibilidade de fruição da sexualidade Barrois 1995 é muito enfático ao afirmar que o termo traumatismo deve referirse não a um acontecimento mas a um acidente em sentido pesado Entende que uma situação traumática é essencialmente inesperada imprevisível súbita e evidentemente ameaçadora à vida do sujeito eou a de um alter ego Acrescentamos a esses aspectos o fato de envolver o sujeito em um estado de despreparo e desamparo Diz o autor que o traumatismo psíquico apresentase como a resposta a tudo isso no interior do sujeito É uma espécie de traumatismo em ato e em potência A quebra da confiança e da segurança a partir da relação com adultos abusivos não protetores tem conseqüências caracteriais pois favorece rupturas e distorções da autonomia do ego Favorece a criança a desacreditar na confiabilidade e segurança das pessoas em geral o que também se refletirá em suas relações futuras A partir da adolescência algumas dessas pessoas na tentativa desesperada de obtenção de contato e afeto tornamse promíscuas outras ao contrário muito pouco disponíveis para relacionamentos tendendo ao isolamento e à depressão que aliás está presente também no primeiro caso porém expressa por sua face maníaca ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 18 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 O trauma cumulativo uma visão da realidade do trauma Khan 1963 1964 ao propor seu conceito de trauma cumulativo apresenta uma divisão da área das pesquisas psicanalíticas em cinco estádios assinalando que um não anula o outro mas que eles correm paralelamente reforçandose e corrigindose mutuamente ampliando a complexidade da metapsicologia psicanalítica Sua divisão é bastante similar a aqui apresentada com a diferença que o autor subdivide o que abordamos como terceiro momento em duas partes com ênfase nos textos de 1920 e 1926 em que Freud trata especificamente da pulsão de morte e da angústia respectivamente Khan considera que com as modificações ocorridas no conceito de angústia e situações traumáticas o papel do meio ambiente sobretudo da mãe e a necessidade de auxílio externo nas situações de desamparo situamse bem no centro do conceito de trauma A seu ver é desta forma que as fontes intrapsíquicas inter sistêmicas e ambientais do trauma integramse em um referencial unitário Khan refere a atenção dada por Freud ao ego em termos das modificações sofridas no processo de defesa 19401938 bem como através de suas características congênitas e distúrbios de sua função de síntese e considera que essas novas formulações têm amplas implicações para avaliar origem e função do trauma A quinta fase que propõe estendese de 1939 a 196364 quando apresentou seus artigos nos quais valoriza os progressos alcançados pela psicologia do ego e a ênfase dada ao relacionamento mãefilho o que permite a seu ver uma alteração do referencial para a discussão da natureza e do papel do trauma É interessante notarse que nessa sumária revisão sobre a evolução metapsicológica dos conceitos psicanalíticos e suas conseqüências para a compreensão do trauma Khan não faça referência a Ferenczi 1933 que enfatiza a existência de um fator exógeno e modificador do psiquismo na situação traumática e assim reconhece na origem do trauma a presença de um evento real e de um desmentido por parte de um adulto ao qual a criança estava ligada e que se apresentava para ela como modelo identificatório Aqui novamente a situação parecenos mais complexa porque a criança tem além do abusador em si outros adultos como modelos identificatórios particularmente a mãe que MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 19 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 também podem não responder a seus apelos Em sua condição de pessoa dependente a solidão o desamparo e a confusão da criança são imensos Khan não se ocupou de situações envolvendo abuso sexual na infância mas seu conceito de trauma cumulativo se ampliado parece nos muito útil para pensarmos essas situações O autor dá ênfase ao fracasso da mãe em dosar e regular os estímulos externos e internos no início da infância de seu filho Nomeia de trauma cumulativo a tensão e as invasões decorrentes do fracasso do papel da mãe como escudo protetor o que tem conseqüências mais específicas nas vicissitudes do desenvolvimento do ego corporal do bebê e da criança Cita Winnicott 1958 para quem essas invasões maternas dilaceram a verdadeira integração do ego e provocam uma organização defensiva e um funcionamento prematuros Procura examinar a natureza e a função do trauma cumulativo que se inicia no período de desenvolvimento em que o bebê precisa e usa a mãe como escudo protetor Os fracassos maternos temporários nessa função são inevitáveis mas corrigíveis e sanados pelo desdobramento da complexidade e ritmo dos processos de maturação Quando os fracassos maternos em seu papel de escudo protetor são significativamente freqüentes dãose invasões no psicosoma da criança que ela não tem como eliminar formase assim um núcleo de reação patogênica As invasões decorrentes do tratamento dado pela mãe passam a agregarse e formam a estrutura e a função do trauma cumulativo Essas invasões fomentam um interjogo com a mãe bem distinto de sua adaptação às necessidades da criança e acarretam diferentes efeitos entre os quais um desenvolvimento prematuro e seletivo do ego uma conformidade especial ao temperamento materno dificuldades no processo de separação e individuação cristalização de uma atitude de preocupação excessiva com a mãe e de um desejo exagerado de se tornar objeto de sua preocupação catexização precoce da realidade externa e interna com a nociva exclusão da conscientização subjetiva do ego e sua experiência de si próprio como entidade coerente Uma vez iniciado esse interjogo entre a mãe e a criança ele traz para sua esfera de ação todas as novas experiências de desenvolvimento e de relações objetais ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 20 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 Khan lembra que embora o ego possa sobreviver e superar essas tensões e aproveitálas para finalidades válidas deixando em suspenso o trauma cumulativo pode também acontecer que no futuro ele entre em colapso como efeito de forte tensão e crise Um aspecto traiçoeiro do trauma cumulativo é que ele age e se fixa por toda a infância até a adolescência 1963 p 73 O mal sutil ou não que se esteja infligindo à criança terá suas conseqüências manifestandose em data futura Em nenhum de seus artigos Khan aborda os motivos que podem levar a mãe a falhar em seu papel de escudo protetor Refere a atitudes maternas inconvenientemente invasivas e suas conseqüências nocivas sobretudo quando elas se dão de forma repetitiva Mas e a mãe O que a levaria a isso Traumas cumulativos por falhas maternas O que não se resolve repetese por ação da pulsão de morte intrapsiquicamente e por gerações sucessivas A realidade interna da mãe é responsável por sua ação real junto à criança pela maneira como irá concebêla e tratála A realidade da criança envolve sua vida de fantasia a realidade interna de sua mãe e o que dela decorre no tratamento que recebe Partindo da análise clínica e de dados obtidos pela análise quantitativa e qualitativa de testes Amendola 2004 conclui que mães de crianças vítimas de abuso sexual referindose especificamente àquelas que têm para com o filho uma atitude protetora após o conhecimento da situação de abuso apresentam transtorno de personalidade dependente caracterizado por uma atitude permissiva para que outros tomem decisões importantes em sua vida subordinandose às necessidades e desejos dos outros demonstrando relutância em fazer exigências às pessoas das quais depende medo de abandono de solidão do desamparo e da própria incompetência bem como dificuldade de tomar decisões São pessoas que se mostram especialmente vulneráveis a angústia e a sintomas psicossomáticos Amendola destaca dois momentos distintos na vida dessas mulheres um anterior à constatação do abuso sexual outro posterior quando experienciam estresse de grande magnitude estresse póstraumático com intensas vivências de angústia São mulheres que se mostram imaturas e basicamente dependentes MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 21 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 Muita coisa se passou desde 19631964 ou paralelamente aos estudos desenvolvidos por Khan com ênfase especial à transmissão psíquica entre gerações de situações que envolvem lutos impossíveis de ser elaborados e superados vergonha humilhação violência Abraham e Torok 1978 Tisseron 19921995 Kaës et al 1993 Eiguer et al 1997 Faimberg 2001 Almeida Prado 2004 A esses aspectos que vêm sendo bastante retomados discutidos e aprofundados frisamos o sexual por constituir a raiz de nossa identidade estar tão relacionado à etiologia dos quadros psicopatológicos ao complexo de Édipo como organizador psíquico e metaorganizador grupal às vicissitudes traumáticas e ainda ser fonte de tanto sofrimento para as pessoas O trauma ativo uma ilustração a partir do filme Monster Monster que em português recebeu o subtítulo desnecessário a nosso ver Desejo assassino é uma coprodução americanoalemã de 2003 dirigida por Patty Jenkins que aborda a história real de Aileen Wournos prostituta condenada à morte como a primeira mulher serial killer depois de matar sete homens A personagem composta por Charlize Theron apresenta uma relação muito desconfortável com seu próprio corpo cuja movimentação é sem jeito e expressa o malestar que ela parece ter em ocupálo A violência está sempre palpitante em sua postura e sua fala e sua incontinência afetiva é esperada a qualquer momento em rompantes impulsivos e explosivos Sua depressão também é patente e contínua presente mesmo em sua postura fanfarrona e maniforme Seu abandono é total Apresenta se como pessoa extremamente solitária buscando através de seu corpo ganhar alguns dólares que lhe permitam uma precaríssima subsistência e o consumo de álcool e cigarros O filme iniciase com comentários da própria personagem sobre seus sonhos de menina em total contraste com o que ela veio a se tornar em adulta Sonhava com fama com reconhecimento com amor Pouco se aborda sobre sua infância mas há uma cena rápida em que aparece uma menina pequena que vira a cabeça e olha assustada para trás Em seguida vêemse apenas os olhos de um homem maduro ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 22 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 cuja expressão é impactante e causa tensão Será mais tarde que a personagem já às voltas com seus assassinatos fará referência à situação de abuso sexual sofrido na infância cometido por amigo de seu pai que não acreditou nela e a espancou situações estas que foram se repetindo ela apanhava do pai por ser abusada pelo amigo dele conforme ela mesma declara Nenhuma referência em momento algum é feita à mãe apenas aos irmãos que ao saberem de sua promiscuidade já adolescente espancamna o que a faz fugir e não mais retornar dando a entender que também ninguém de sua família a procurou ou quis saber o que poderia ter lhe acontecido Tornase prostituta aos 13 anos Aileen mente procurando apresentarse com recursos ou qualidades que não tem mas que supostamente a deixariam mais valorizada sob o olhar do outro É o que acontece quando se encontra pela primeira vez com Selby representada por Christina Ricci jovem afastada de sua família e de seu estado de origem Ohio por suas tendências homossexuais após ter beijado uma mulher Aileen entra em um bar molhada inquieta dando a entender que chegava de um de seus encontros em que poderia ter sido largada em qualquer lugar sob a chuva sem nenhuma consideração Selby tenta se aproximar dela e Aileen a repele com violência dizendo não ser homossexual Selby com certa delicadeza insiste e busca manter o contato o que acaba precipitando que durmam juntas e uma relação de suposta cumplicidade comece a se estabelecer É interessante a paixão que Aileen desenvolve por Selby que se mostra como pessoa basicamente narcísica sem a mínima capacidade de empatia com a condição de Aileen com sua intenção de deixar a prostituição sobretudo pelo que podia representar de privação para si mesma Queria se divertir e ter prazer pelo sexo pelo álcool pelo cigarro Parecia não ver nada de mais em Aileen prostituirse mesmo após o conhecimento de seu primeiro assassinato em legítima defesa em meio a brutal situação de estupro praticado com extrema crueldade e possível intenção de matála Essa situação suscita em Aileen um ódio intenso dos homens e um desconcerto com a postura de Selby que parece não ter a dimensão do que poderia estar representando MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 23 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 para ela continuar se prostituindo e expondose a homens que poderiam maltratála com crueldade e mesmo matála Visando abandonar a prostituição e encontrar uma outra forma de vida Aileen faz tentativas frustradas de procurar emprego pleiteados sem que leve em consideração sua habilitação e formação que eram absolutamente nulas reagindo com violência ao embaraço que causava com sua evidente perda de sentido de realidade Viase incapaz de poder pensar a situação de modo mais realístico e assim promover mudanças em seu próprio benefício Seu precário narcisismo não resistia à realidade dos fatos que a remetiam à precaríssima realidade interna e Aileen reagia violentamente indignada Até mesmo como cidadã viase sem direitos pois quando na volta de uma dessas tentativas infrutíferas de buscar emprego um policial em um carro a interpela ela se vê premida pela lei a entrar no carro para mais uma vez ser vítima de uma situação abusiva com o policial sujeitandoa a um boquete para liberála alegando têla ajudado a escapar de uma situação policial anterior Aileen nem se lembrava dele dando a entender que mal devia se lembrar também dos outros homens Predominava a relação de coisa ela era uma coisa os homens eram outras coisas A condição de sujeito assim se via apagada De volta a seu mundo referese a suas buscas depreciativamente com triunfo e fanfarronice buscando reverter maniacamente suas vivências de desqualificação e rejeição Retorna à prostituição com todo o horror e repulsa que os homens lhe causam e passa a matálos para ficar com seus carros e dinheiro e desta forma manterse com Selby que tem com ela uma relação de dominação Aliás é a dominação que caracteriza os relacionamentos de Aileen aos quais ela corresponde de forma complementar e recíproca deixandose parasitar pelo psiquismo do outro Aileen acaba por matar um possível expolicial e se dá conta que não poderá utilizar seu carro que ela está em uma grande enrascada e é preciso fugir Retorna à hospedaria em que Selby a espera e propõe lhe que partam de ônibus mas a outra voluntariosamente recusase e insiste em ter um carro ciente da forma que ela os obtinha Totalmente dominada Aileen sai em busca de um carro enquanto Selby fica a sua ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 24 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 espera vendo televisão Desta vez o homem que lhe dá carona é bom bem intencionado e não tem intenção de manter com ela relações sexuais deseja sinceramente ajudála mas acaba sendo morto Aileen reluta diz não poder fazer aquilo dandolhe a entender que não conseguiria matálo o que o leva a uma momentânea e ilusória expectativa de misericórdia para em seguida esclarecer que não poderia poupálo matandoo em seguida Neste ínterim são veiculados pela TV a notícia dos assassinatos e os retratos falados das possíveis envolvidas obtidos a partir de um acidente de carro conduzido por Selby que acabou por expor as duas Quando Aileen chega com o carro elas tratam de se separar e Selby embarca em um ônibus Aileen acaba presa vai a julgamento e é condenada tendo sido traída por Selby em telefonema gravado pela polícia e depois no próprio tribunal Esses fatos se passaram nos Estados Unidos no final dos anos 80 Aileen foi condenada em 1990 ficou 12 anos no corredor da morte e foi executada em 2002 na Flórida Uma breve discussão Impacta a figura abandonada de Aileen e a forma como ela se tratava expressa sua rebaixada autoestima e seus profundos sentimentos de depressão e menosvalia O que tinha para dar em troca até mesmo em circunstâncias amistosas era o intercâmbio sexual Quando Tom sujeito mais velho que demonstrava ter por ela carinho e preocupação genuínos oferecelhe um sanduíche ao vêla chegar famélica e sem nada ela o aceita com certa relutância começa a devorálo ele lhe passa também a lata de cerveja que ela aceita já com um olhar de gratidão e com a boca ainda cheia perguntalhe se ele quer um boquete ele demonstra certa surpresa e desconcerto com sua oferta e responde que não seria necessário Na verdade era só o que ela tinha para oferecer em retribuição como expressão de sua gratidão As vivências de abandono e de abuso sexual repetitivo desde os 8 anos de idade serão assoladoras no psiquismo de Aileen Há indícios MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 25 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 que ela não encontrou em seu meio mesmo fora do núcleo familiar alguém em quem ela pudesse confiar e que tivesse para com ela medidas protetoras e reparatórias O filme não faz referência à mãe mas o pai não a protegeu e a espancou quando ela lhe contou sobre o abuso sofrido por parte do amigo dele Perpetuamse assim as situações de abuso sexual e espancamento Podemos supor tratarse de um pai extremamente perverso com problemas sérios no que diz respeito à sexualidade a sua relação com o feminino e à lei do incesto transgredida de forma vicariante através do amigo A criança não apenas se via às voltas com a realidade dos fatos mas também com a realidade psíquica dos adultos a sua volta particularmente a de seu pai cheia de ódio e incompreensão e talvez exatamente isso fosse para ela ainda mais confuso desconcertante e brutal Às voltas com um fato real este era não apenas desmentido mas também motivo de espancamento O contato realístico com a realidade era evitado prevalecendo a identificação projetiva maciça sobre a criança invertendo se a situação de vítima ela passa a ré recaindo sobre si todas as acusações dos malfeitos Ela se vê às voltas com adultos que percebe como não querendo compreendêla Toda possibilidade de simbolização lhe é retirada e silenciosamente o trauma tornase ativo em ato e potência dentro de seu psiquismo Os efeitos dessas vivências serão devastadores para Aileen A violência incorporada será reproduzir intersubjetivamente e ela parece uma bomba ou melhor uma mina terrestre pronta para explodir a qualquer esbarrão Na adolescência apresentase promíscua já se utilizando do sexo como via de troca e para obtenção de favores Quando seus irmãos descobrem sua reputação junto aos amigos espancamna repetindose a situação já vivenciada com o pai Aos 13 anos vai embora para não mais voltar tornandose prostituta Ninguém procura saber sobre seu paradeiro Seu abandono é total familiar e social Pela vida afora irão se reproduzir as relações utensilitárias os maus tratos e a desproteção inclusive em sua escolha amorosa Aileen vê em Selby uma possibilidade de resgate e reparação achando ter encontrado uma aliada o que na verdade ela nunca será já que visará exclusivamente suas conveniências utilizandose dela conforme seus interesses Mantém ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 26 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 um relacionamento prevalentemente narcísico não demonstrando empatia por Aileen mesmo quando esta deseja deixar a prostituição após o brutal estupro e assassinato Mudar de vida era para Aileen uma busca de reparação mas para Selby a prostituição de Aileen era o meio para ela continuar a ter coisas e a usufruir de situações Selby apresenta se como uma perfeita parasita e apesar de sua aparente passividade é voluntariosa prepotente e dominadora Por suas imensas carências e esperança de reparação Aileen aceita tudo ainda que percebendo certas coisas Quando vão a um parque de diversões é ela quem paga as entradas para as duas mas Selby se vai com quatro lésbicas deixando Aileen de lado sendo evidente sua intenção de seguir com essas mulheres só retornando quando elas a descartam Aileen desconcerta se mas não consegue reagir Selby parece não ver nada demais na forma que Aileen passa a adquirir carros e dinheiro com total desprezo pela vida dos outros inclusive da própria Aileen Infantilizada parece ser regida pelo princípio do prazer A violência do estupro à qual Aileen é submetida remete à situação pela qual passou na infância com o adulto abusador e com o pai espancador Matar os homens que a enojam e horrorizam é reverter a situação em uma cultura de pulsão de morte sem possibilidade de transformação Traída pelo pai e pelos irmãos Aileen será também traída por Selby em troca de imunidade e mais uma vez pela sociedade que a condena à morte A edição da revista Veja datada de 16 de junho de 2004 em matéria assinada por Isabela Boscov acrescenta algumas informações sobre a história de Aileen ela foi deixada pela mãe aos seis anos e a partir dos oito consta que passou a sofrer abusos sexuais sistemáticos possivelmente inclusive por parte de seu avô Sua infância foi miserável e solitária Aos treze anos teve um filho que deu para adoção passando a viver nas ruas e a se prostituir Quando foi presa vivia da prostituição praticada em beira de estrada Imediatamente surgemnos algumas perguntas o que teria levado a mãe de Aileen a abandonála aos seis anos Teria a ver com a relação com MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 27 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 seu marido O avô referido como abusador seria o avô materno Neste caso teria ele também abusado sexualmente da filha Em se tratando do avô paterno qual teria sido a relação do pai de Aileen com seu próprio pai e particularmente na infância Não temos como saber Apenas podemos hipotetizar ter se tratado de vínculos familiares permeados por violência descaso e abandono em todos os sentidos inclusive o social Considerações finais A perversão caracterizase por relações parciais de objeto em que a expressão da sexualidade se dá com crueldade e destrutividade que são muito idealizadas O outro é visto como coisa como utensílio de modo desumanizado e sem consideração Há prazer em estragar e o dano à sexualidade se dá com triunfo A etiologia das perversões fundamentase na constituição individual e nas experiências tidas com o meio com prevalência dos aspectos destrutivos da personalidade e dos comportamentos perversos dos pais A perversão e as dificuldades na identidade de gênero formamse a partir da junção da erotização com as fantasias hostis da criança O contato físico as manipulações e carícias excessivos e contínuos por parte da mãe eou do pai reforçamos podem excitar a criança sexualmente e de forma inconveniente devido a sua imaturidade e à falta de recursos para exercer sua sexualidade genital Almeida e Lerner 1996 1999 Favorecer a permanência tardia no quarto dos pais a exposição da criança à vida sexual do casal a sua nudez e a excessiva intimidade física estimulada entre pais e filhos denotam perturbações devidas às fantasias dos pais com relação à sexualidade que assinalam sua imaturidade afetivosexual e a precariedade na integração de seu psiquismo Nessas circunstâncias a criança acaba sendo tratada como coisa e como tal é desrespeitada envergonhada e muitas vezes humilhada A violência sobretudo quando extrema promove dificuldades na identificação e na formação da identidade de gênero e por isto mesmo acarreta dificuldades em lidar com o outro e com o gênero do outro Concordamos com Khan 1963 para quem as mudanças que se deram na compreensão do funcionamento psíquico a partir da ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 28 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 psicanálise e que foram alterando o entendimento da ação do trauma no psiquismo não são excludentes Ao abandonar a concepção do trauma como decorrente de um fator ambiental sedução sexual considerando que as cenas de sedução jamais teriam existido realmente Freud passou a entendêlo a partir das fantasias inconscientes e da realidade interna Posteriormente a partir da segunda teoria pulsional e da segunda tópica o trauma adquiriu uma dimensão intersistêmica e pulsional e por fim Freud retomou suas preocupações com as situações traumáticas com o impacto da surpresa e a excessiva angústia que causam e as restrições na simbolização que promovem A evolução dos conceitos freudianos a partir do abandono da cena de sedução na etiologia do trauma não faz com que eles sejam excludentes mas se integrem permitindo um aprofundamento da compreensão do funcionamento psíquico Consideramos importante ressaltar o radicalismo com que muitos analistas passaram a ouvir os relatos de seus analisandos adultos sobre situações de abuso sexual sofridas na infância como se todos eles fossem fruto da vida de fantasia como se não tivessem ocorrido e mais uma vez um evento real pode estar sendo desmentido o que está na própria origem do trauma repetido se iatrogenicamente na situação psicanalítica com seu cortejo de solidão desamparo confusão e ódio Tratar de abuso sexual na infância gera angústia e a nosso ver a teoria acabou por favorecer uma determinada escuta que se mostrava mais confortável salvo para o analisando é claro Ferenczi 1933 corajosamente irá contraporse a tudo isso mas por muito tempo poucas referências serão feitas a seu artigo Zaslavsky 2004 aborda o trauma real a partir da obra de Freud e faz referências às conseqüências de perdas traumáticas precoces na vida psíquica e no desenvolvimento Referese ao impacto que a depressão e privação maternas têm sobre a criança favorecendo a vivência de um abandono psíquico Green 1980 ou perdas por morte real ou abandono que quando vividas traumaticamente pela mãe sem que ela tenha capacidade para fazerlhes face leva o filho a um luto mágico gerador de confusão da identidade sexual e de embotamento intelectual e criativo McDougall 1989 Diz que as circunstâncias MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 29 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 traumáticas associamse a fantasias e podem ficar encapsuladas ou sob a forma de um corpo estranho promovendo um incremento de feridas narcísicas à personalidade Além disso essas circunstâncias têm reflexos sobre o sujeito em sua relação com a realidade em como ele percebe e se situa no mundo e como se relaciona com as pessoas Pois bem de acordo com a perspectiva kleiniana a vida de fantasia está presente desde o início e nada se passa com o sujeito sem que haja uma representação psíquica no nível da fantasia Há também desde o início um aparelho psíquico organizado com um ego ainda que arcaico capaz de sentir angústia e de mobilizar mecanismos de defesa para lidar com ela Para Klein o complexo de Édipo conforme apresentado por Freud é o apogeu de um processo iniciado muito antes a partir da posição depressiva Com o desenvolvimento as questões edípicas intensificamse e a criança se verá lançada em disputas apaixonadas visando suas pretendidas conquistas A superação do complexo de Édipo favorece a integração de seu psiquismo de forma organizada e o posterior acesso à sexualidade genital No entanto como Ferenczi 1933 tão bem entendeu a linguagem da ternura da criança e a linguagem da paixão do adulto podem ser confundidas A situação edípica não diz respeito apenas à criança mas se dá em mão dupla envolvendo forçosamente os pais que se vêem mobilizados em suas próprias questões particularmente aquelas que não foram superadas vivenciadas com seus próprios pais Faimberg 2001 chama de configuração edípica a identificação da criança com a solução narcísica dada por seus pais a suas próprias vivências edípicas Diz que não é sempre um conteúdo o que se transmite mas sim um modo narcisista de solução de conflitos É transmitido aos filhos pelos pais um funcionamento narcisista ao qual eles recorreram na tentativa de resolver seus próprios conflitos intrapsíquicos inclusive os edípicos Vemos portanto como continuamente a questão da transmissibilidade entre gerações está em ação Os adultos com predisposições psicopatológicas que decorrem de sua constituição pessoal balanço pulsional associada a fatores ambientais inconvenientes sobretudo em sua primeira infância conforme vistos ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 30 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 acima confundem as brincadeiras das crianças com seus desejos de pessoa que já atingiu a maturidade sexual e se deixam levar ao ato sexual Ferenczi diz que sem pensar nas conseqüências Concordamos com Almeida e Lerner 1996 para quem a perversão resulta de impulsos destrutivos para estragar lesar causar danos à sexualidade especialmente à dos pais e à cena originária O estrago à sexualidade da criança tem como conseqüência prazer e triunfo e isto é visado Vemos que muitas das vítimas de hoje mas não todas podem se tornar os algozes de amanhã Cremos que o mais chocante para a criança seja sua compreensão ainda que confusamente da hostilidade atuante no psiquismo do outro particularmente da mãe quando esta não a protege Amendola 2004 propôs uma hipótese diagnóstica para as mães que choram parecenos que ela é apropriada para as companheiras de abusadores sexuais de crianças em geral a diferença estando nas mães que apresentam uma atitude protetora póstrauma isto é após a exposição da criança à situação de abuso são as mães que choram e as que não apresentam Em ambos os casos essas mães demonstram dificuldade de entender ou utilizaremse dos sinalizadores prévios ao abuso os quais a nosso ver estão sempre presentes mas são negados ou desconsiderados Existem várias razões para uma mãe não proteger seu filho como ter ela própria sido vítima de abuso sexual na infância ou de estupro particularmente quando muito jovem ter tido iniciação sexual demasiadamente precoce entre outras Mas quaisquer que sejam elas ela entra em conluio com o abusador e passa sua própria perversão por procuração Propomos chamar de trauma ativo o que permanece no psiquismo do sujeito ativa e repetidamente em ato e potência sobretudo em se tratando de abuso sexual na infância expressandose em termos de violência que pode ter as mais diversas manifestações como depressões atuações promiscuidade adições quadros psicopáticos quadros psicossomáticos etc e que sempre expressam a ação da pulsão de morte A situação traumática reproduzse nas relações estabelecidas ainda que isto possa se dar de maneira mais sutil como isolamento e indisponibilidade para relacionamentos sobretudo amorosos e entre as gerações em uma MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 31 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 cadeia de violências intrasubjetivas intersubjetivas e transubjetivas Da mesma forma que o trauma cumulativo ele é traiçoeiro só que em vez de agir e se fixar por toda a infância e adolescência ele o faz por toda a vida e além dela já que se reedita através das gerações Os efeitos do trauma dependerão da constituição do sujeito de sua história da forma como as pessoas de seu meio reagiram e sobretudo da possibilidade de simbolização da experiência traumática A ausência de representação de possibilidade de simbolização acarreta zonas psíquicas mortas Bokanowski 2003 Os psicanalistas têm aí um papel muito importante No entanto parecenos que precisam sempre ter em mente que não estão tratando de uma situação apenas neurótica ou fantasiosa mas de uma situação perversa porque o analisando se viu exposto em um estado de despreparo e dependência a duas realidades a fatual e a interna dos adultos envolvidos pessoas que eram de sua confiança que o desmentiram e demonstraram se comprazer em estragar e em tratálo como objeto utensilitário Questões técnicas muito específicas estão em causa no tratamento de adultos que foram vítimas de abuso sexual na infância mas este assunto pretendemos tratar em outra oportunidade Atualmente há mobilizações de recursos legais e assistenciais para a proteção de crianças vítimas de violência física psicológica e sexual As dificuldades no trabalho multidisciplinar são grandes pelo impacto que as situações a serem tratadas causam no psiquismo dos profissionais envolvidos e também por outras confusões de línguas derivadas das diferentes formações e sobretudo das diferentes situações psicológicas de cada um do nível de integração psíquica que tenha alcançado ainda mais no plano da sexualidade e da identidade de gênero De qualquer forma não importa qual seja a formação profissional sua história estará sempre presente em sua possibilidade de escuta que pode ser ampliada por meio do tratamento psicanalítico O trauma fere e feridas precisam de tratamento por melhor tratadas que sejam as muito grandes deixam sempre cicatrizes ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 32 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 Referências Bibliográficas ABRAHAM N TOROK M 19781995 A casca e o núcleo São Paulo Escuta ALMEIDA PRADO MCC 1999 Destino e mito familiar uma questão na família psicótica São Paulo Vetor ALMEIDA PRADO MCC 2004 O mosaico da violência A perversão na vida cotidiana In ALMEIDA PRADO MCC org O mosaico da violência a perversão na vida cotidiana São Paulo Vetor ALMEIDA RH LERNER RCB 1996 Sexualidade e perversões um estudo sistemático e investigação Trabalho apresentado no 2º International Psychoanalytical Association Research Training Programme London University College não publicado ALMEIDA RH LERNER RCB 1999 Identidade de gênero sua importância na prática analítica uma visão teórica Revista Brasileira de Psicanálise 33 485494 AMENDOLA MF 2004 Mães que choram avaliação psicodiagnóstica de mães de crianças vítimas de abuso sexual In ALMEIDA PRADO MCC org O mosaico da violência a perversão na vida cotidiana São Paulo Vetor AULAGNER P 19751979 A violência da interpretação Do pictograma ao enunciado Rio de Janeiro Imago BARROIS C 19952000 Traumatisme et inceste In GABEL M LEBOVICI S MAZET P Le traumatisme d linceste Paris PUF BOKANOWSKI T 2003 Traumatisme traumatique trauma Le conflit Freud Ferenczi httpwwwsppassofrLibraryScriptsprintaspfilenameMain ConferencesEnLigneIt Disponível em 090903 BOSCOV I 16062004 Feiúra é fundamental Veja 120121 DEBRAY Q 1981 O psicopata Rio de Janeiro Zahar DOLTO F 1982 A sexualidade feminina São Paulo Martins Fontes EIGUER A et al 1997 A transmissão do psiquismo entre gerações São Paulo Unimarco FAIMBERG H 2001 Gerações malentendido e verdades históricas Porto Alegre Criação Humana FERENCZI S 19331992 Confusão de línguas entre os adultos e a criança In FERENCZI S Obras completas Psicanálise IV São Paulo Martins Fontes MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO TEREZINHA FÉRESCARNEIRO 33 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 FREUD S 18951997 Estudos sobre a histeria In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 2 FREUD S 19001997 A interpretação dos sonhos In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vols 4 e 5 FREUD S 19051997 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 7 FREUD S 19201997 Além do princípio de prazer In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 18 FREUD S 19231997 O ego e o id In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 19 FREUD S 19261997 Inibições sintomas e ansiedade In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 20 FREUD S 19371997 Análise terminável e interminável In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 23 FREUD S 19391997 Moisés e o monoteísmo três ensaios In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 23 FREUD S 19401938 1997 Esboço de psicanálise In FREUD S Obras completas Rio de Janeiro Imago vol 23 GREEN A 19801988 A mãe morta In GREEN A org Narcisismo de vida narcisismo de morte São Paulo Escuta KAËS R 1989 Le pacte dénégatif dans les ensembles transsubjectifs In MISSENARD A org Le négatif figures et modalités Paris Dunod KAËS R et al 19932001 Transmissão da vida psíquica entre gerações São Paulo Casa do Psicólogo KHAN M 197419631977 O conceito de trauma cumulativo In KHAN M org Psicanálise teoria técnica e casos clínicos Rio de Janeiro Francisco Alves KHAN M 197419641977 Distorção do ego trauma cumulativo e o papel da reconstrução na situação analítica In KHAN M org Psicanálise teoria técnica e casos clínicos Rio de Janeiro Francisco Alves KLEIN M Obras completas Rio de Janeiro Imago ABUSO SEXUAL E TRAUMATISMO PSÍQUICO 34 INTERAÇÕES VOL X no 20 p 1134 JULDEZ 2005 LAPLANCHE J PONTALIS JB 19671970 Vocabulário de psicanálise Lisboa Moraes McDOUGALL J 1989 El padre muerto en torno al trauma temprano y a los trastornos de la identidad sexual y de la creatividad Libro Anual de Psicoanálisis Lima Imago PINCUS L DARE C 19781981 Psicodinâmica da família Porto Alegre Artes Médicas RUFFIOT A 1981 Le groupefamille en analyse Lappareil psychique familial In RUFFIOT A et al La thérapie familial psychanalytique Paris Dunod TISSERON S 1992 Tintin et les secrets de famille Paris Aubier TISSERON S 1995 La psychanalyse à lépreuve des générations In TISSERON S org Le psychisme à lépreuve des générations Clinique du fantôme Paris Dunod WINNICOTT DW 19581978 Da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves ZASLAVSKY J 2004 Fantasia e trauma real o impacto da identificação intrusiva no processo analítico Revista Brasileira de Psicanálise 381 113128 MARIA DO CARMO CINTRA DE ALMEIDA PRADO Av Rainha Elizabeth da Bélgica 650 702 22081030 Rio de JaneiroRJ tel 21 22477810 email cintradealmeidapradoyahoocombr TEREZINHA FÉRESCARNEIRO Rua General Góes Monteiro 8 Bl D 2403 22290080 Rio de JaneiroRJ Tel 21 22852546 email tefercapsipucriobr recebido em 240904 versão revisada recebida em 070405 aprovado em 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