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Psicologia ·

Psicanálise

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PSICANÁLISE A CLÍNICA DO REAL JORGE FORBES EDITOR CLAUDIA RIOLFI ORGANIZADORA Manole Copyright 2014 Editora Manole Ltda por meio de contrato com o editor Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 que entrou em vigor no Brasil em 2009 Editor gestor Walter Luiz Coutinho Editora Karin Gutz Inglez Produção Editorial Visão Editorial Cristiana Gonzaga S Corrêa e Juliana Morais Produção do arquivo ePub Sopros Design ISBN 9788520439593 Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por qualquer processo sem a permissão expressa dos editores É proibida a reprodução por xerox A Editora Manole é filiada à ABDR Associação Brasileira de Direitos Reprográficos Edição digital Março 2014 Editora Manole Ltda Avenida Ceci 672 Tamboré 06460120 Barueri SP Brasil Tel 11 41966000 Fax 11 41966021 wwwmanolecombr infomanolecombr JORGE FORBES ed CLAUDIA RIOLFI org PSICANÁLISE a clínica do Real Manole SOBRE O EDITOR E A ORGANIZADORA JORGE FORBES EDITOR Psicanalista e Médico Psiquiatra Mestre em Psicanálise pela Université Paris 8 Vincennes SaintDenis Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e em Ciências pela Faculdade de Medicina Neurologia da Universidade de São Paulo FMUSP Analista Membro AME da Escola Brasileira de Psicanálise EBP da qual foi o primeiro Diretorgeral e da Escola Europeia de Psicanálise EEP Membro da Associação Mundial de Psicanálise AMP Presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA e do Projeto Análise Diretor da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo CEGHUSP Dentre os livros de sua autoria Inconsciente e Responsabilidade Psicanálise do Século XXI Editora Manole recebeu o Prêmio Jabuti 2013 na categoria Psicologia e Psicanálise CLAUDIA RIOLFI ORGANIZADORA Psicanalista Graduada em Letras Mestre em Linguística Aplicada e Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp Pósdoutora pela Université Paris 8 Vincennes Saint Denis Professora Doutora RDIDP da Universidade de São Paulo USP onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise Geppep Diretorageral do Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA Coordenadora da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo CEGH USP AUTORES Psicanalista Mestre em Letras Modernas pela Université dOrléans França Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo USP Professor do Curso de Francês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas FFLCH da Universidade de São Paulo USP ANGELINA HARARI Psicóloga e Psicanalista Mestre e Doutora em Ciências Psicologia pelo Instituto de Psicologia IP da USP Analista Membro AME e Analista AE 20092012 da Escola Brasileira de Psicanálise EBP ARIEL BOGOCHVOL Psiquiatra e Psicanalista Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Psicopatologia e Psicanálise NEPPSI do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo IPqHCFMUSP Médico da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo Membro da EBP e da Associação Mundial de Psicanálise AMP DOROTHEE RÜDIGER Psicanalista Doutora em Direito pela USP Professora Titular da Disciplina Psicologia Jurídica do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Paulista Unip DURVAL MAZZEI NOGUEIRA FILHO Médico Psicanalista Especialista e Mestre em Psiquiatria pelo Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual HSPEIAMSPE Preceptor de Residentes do HSPEIAMSPE Membro da Seção São Paulo da EBP e do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae ELZA MENDONÇA DE MACEDO Psicanalista Mestre em Psicologia e Doutora em Ciências Psicologia pelo IPUSP Membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA da EBP e da AMP LIÉGE LISE Psicóloga Psicanalista Membro do IPLA LUIZ FERNANDO CARRIJO DA CUNHA Médico Psicanalista Analista Membro AME da EBP e da AMP MARIA DO CARMO DIAS BATISTA Médica Psicanalista Especialista em Psicanálise pela Biblioteca Freudiana Brasileira BFB em Saúde Pública pela USP em Psiquiatria pelo HSPEIAMSPE e em Pediatria pela Sociedade Brasileira de Pediatria SBP Analista Membro AME da EBP RÔMULO FERREIRA DA SILVA Médico Especialista em Psiquiatria pela USP Mestre em Psicologia Clínica pelo IPUSP Master 2 e Doutorando da Université Paris 8 Vincennes SaintDenis Analista Membro AME da EBP e da AMP Presidente de Conselho 20132014 Analista AE 20122015 e Ex diretorgeral da EBP Sócio Fundador do Clina Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade São Paulo SP SANDRA ARRUDA GROSTEIN Psicóloga e Psicanalista Especialista em Dependência Química pela Universidade Federal de São Paulo Unifesp Mestre em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP Doutoranda em História da Ciência da PUCSP Analista Membro AME da EBP e da AMP Membro Fundador da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise CLIPP TERESA GENESINI Psicanalista Graduada em Matemática e Mestre em Estatística pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp Diretoratesoureira do IPLA SUMÁRIO PRÓLOGO PARTE 1 A ANÁLISE E SEU COMEÇO 1 A análise lacaniana hoje ingredientes indicações e modos de usar 2 Diferenças entre a análise lacaniana e as terapias como reconhecer o analista lacaniano 3 Quando está indicado o divã a análise lacaniana tem contraindicações 4 O que aprendemos com a clínica estrutural como o analista lacaniano faz diagnóstico 5 Predições instruídas como o analista lacaniano traça o prognóstico 6 A sessão e seu preço a análise lacaniana custa sempre caro 7 Sentado deitado sempre às vezes como se escolhe o andamento das sessões 8 O analista lacaniano e o relato do que se passa em sua clínica como contar um caso PARTE 2 A ANÁLISE E SUA CONDUÇÃO 9 O analista lacaniano hoje palavras equívocas e gestos 10 Palavras nada mais do que palavras o que o analista lacaniano faz com o que lhe dizem 11 Sonhos lapsos chistes como o fundamental significante ainda interessa ao analista lacaniano 12 Cada cabeça sua sentença que diferenças o analista lacaniano considera no manejo clínico 13 Efeitos terapêuticos e analíticos qual o objetivo da análise lacaniana 14 A manutenção do trabalho analítico o que impede uma análise de progredir 15 Tempos variáveis sessões contundentes como o analista decide sua duração 16 Falem mal mas falem de mim por que o analista lacaniano causa tanto impacto PARTE 3 A ANÁLISE SUAS ESCANSÕES E SEUS IMPASSES 17 A mágica da psicanálise a práxis do impossível nos casos 18 Erros e acertos nas análises lacanianas o analista tem sempre razão 19 Maridos mulheres pais e filhos o analista lacaniano atende parentes 20 Crianças e adolescentes em análise como uma análise lacaniana pode ajudálos 21 Avaliação de risco clínico e as parcerias necessárias o analista lacaniano prescinde das medicações 22 A psicanálise fora de quatro paredes por que as instituições têm tantas crises PARTE 4 A ANÁLISE SUAS FINALIDADES E SEUS FINAIS 23 A análise e seus fins até onde vai uma análise lacaniana hoje 24 Como as análises freudianas terminavam 25 Do fantasma à verdade mentirosa o que se ultrapassa em uma psicanálise 26 O que esperar de uma análise levada a bom termo 27 A psicanálise e suas retomadas como lidar com as áreas de surdez em uma análise 28 A clínica do analista iniciante como sobreviver a uma prática sem standards 29 Da vontade de ler o nome na placa ao desejo do analista quais são as características da formação 30 Encontros desencontros e vazios como é a presença do analista lacaniano na cidade 31 A prática clínica reinventada é possível ser analista sem pôr de si na teoria PRÓLOGO O título deste livro pode ser entendido de duas maneiras Uma afirma que a psicanálise é a clínica do Real Outra que ele aborda a Clínica do Real um dos nomes da segunda clínica de Jacques Lacan a última aquela própria ao século XXI As duas leituras são boas Não analisamos hoje como Freud o fazia no início de 1900 A revolução do laço social provocada pela passagem do mundo moderno para o pósmoderno obriga a todas as disciplinas que tratam do homem por exemplo o direito a pedagogia a economia e evidentemente a psicanálise a se localizarem frente a essa revolução Uma das características que distingue a nova era em que vivemos da anterior é seu caráter de relações horizontais em rede diferente das relações anteriores verticais e hierárquicas Quando Sigmund Freud conceituou o complexo de Édipo como pilar da estruturação subjetiva e por conseguinte da clínica ele o fez coerente a um mundo que se organizava em pirâmide o pai no topo da família o chefe no da empresa a pátria no da sociedade civil Esse mundo mudou radicalmente Necessitamos de uma psicanálise pósedípica e por isso escrevemos este livro Nosso objetivo é trazer ao leitor seja ele especialista ou não um panorama claro ordenado de como entendemos a prática da psicanálise hoje Utilizamos na sua composição o método mais óbvio os tempos de um tratamento analítico Tratase de quatro tempos a entrada em análise a condução do tratamento as dificuldades de percurso e os finais da análise Primeiro ao buscar um analista ou a tropeçar em um isso acontece como se entra em análise Certamente não será por um contrato burocrático do gênero daquele que definiria pagamentos e frequência Nem será necessariamente a partir de um diagnóstico estrutural próprio à primeira clínica Será a partir da relação do sujeito com o seu gozo que o faz se embrulhar com o Real Mas o que quer dizer isso Segundo como o analista desse novo tempo dirige o tratamento De cara uma questão fundamental uma análise é para saber mais de si para errar menos ou é para levar a pessoa a descobrir que o saber é sempre incompleto e que a vida é um contrato de risco A resposta a essa pergunta implica a forma de se conduzir uma análise para o Simbólico ou para o Real Terceiro é bom dedicarmos um tempo para falar das dificuldades do caminho nem todas previsíveis seguramente o que só aumenta a nossa atenção na posição diante dos impasses dos erros e na construção do ir além Quarto para concluir o que é um final de análise Qual a finalidade e como se dá o término de um tratamento Há um padrão uma norma Poderíamos generalizar dizendo que ocorre uma mudança ética paradigmática na posição do sujeito Destrinchemos essa questão crucial Este livro é de vários autores apresentados nestas páginas Todos pertencem à rede dos Institutos do Campo Freudiano no Brasil prioritariamente ao Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA no qual durante o ano de 2012 foi realizado um curso semanal Enfim a Psicanálise no Divã As aulas desse curso deram origem aos capítulos deste livro Alguns são frutos das transcrições da transmissão oral outros a maioria foram escritos imediatamente antes das aulas e nelas debatidos Todos tentaram a ousadia responsável de vir a público dizer como estamos pensando e praticando a psicanálise no século XXI Que esse esforço coletivo encontre em você a melhor leitura é o que almejamos JORGE FORBES A ANÁLISE LACANIANA HOJE INGREDIENTES INDICAÇÕES E MODOS DE USAR JORGE FORBES INTRODUÇÃO Iniciamos aqui um livro a respeito da psicanálise no século XXI para descrever o que entendemos ser o melhor da clínica psicanalítica hoje com a clareza de um percurso progressivo e racional Se neste século a clínica ainda não mudou ela tem que mudar Caso não o faça ficará obsoleta Precisamos pensar a novidade ou restaremos amarrados a uma prática de qualidade inferior à que podemos propor e teriam razão certas revistas semanais que perguntam se Freud morreu diante das revoluções que o mundo atravessa Respondemos já nem Freud nem a psicanálise morreram Examinemos então nosso passado para reconhecer o que agora é mais efetivo leve e eficiente no trabalho clínico Cabe a nós encontrarmos a melhor maneira de lidar com os sintomas do homem na globalização Hoje acreditamos que a psicanálise possa ter um campo de ação maior do que nunca se formos capazes de questionar nossos standards Vivemos tantas mudanças que ao atuar em consultório empresa escola ou universidade é necessário que cada um se pergunte quais são os conceitos psicanalíticos de que precisa Carregamos uma grande bagagem acumulada em mais de um século de história da psicanálise Os analistas deixaram de avaliar o que ainda lhes serve ou não São como quem faz a mala todo mês para uma viagem sem se perguntar se usará o que levou ou se o peso foi desnecessário Também vestimos indiscriminadamente calças gravatas vestidos e blusas das mais diversas épocas Às vezes sequer percebemos que uma blusa já foi reinterpretada em algum ano na década de 1940 ou que aquela velha calça tinha outra bainha em 1950 Mal nos damos conta que citamos conceitos criados em tempos e contextos distintos para muitas vezes recobrir um mesmo universo semântico Perdidos em nossa pouca clareza causamos nós mesmos uma confusão Contra essa postura mostraremos aqui uma lógica que concatena os pontos mais importantes da clínica psicanalítica do seu nascimento até hoje De maneira simples dividiríamos a história da psicanálise em quatro momentos 1 o original da escuta freudiana 2 o de sentir o que não pode ser dito 3 o de uma nova escuta filtrada pela ciência e 4 o de implicação que é o tempo atual Hoje vivemos uma mudança paradigmática que exige de nós reflexão a respeito de cada um desses quatro momentos A ESCUTA FREUDIANA O HOMEM QUE OBEDECEU AO SINTOMA E SE CALOU Sempre achei fascinante a figura do médico Josef Breuer um grande clínico da Viena de 1880 Ele assinou com Freud o livro inaugural Estudos sobre a histeria 189318951974 É instigante pensar nesse médico que mandado calar a boca por uma paciente histérica fez o inesperado e calouse Faça alguém a experiência de se consultar com um clínico renomado e mandarlhe calar a boca quando ele interromper o relato de sua queixa para ver o que lhe acontece No entanto Breuer silenciou quando aquela que se chamava Bertha Pappenheim e que ficou mais conhecida nas lides analíticas como Anna O lhe pediu Me deixe falar até limpar minha chaminé Farei a cura pela palavra De fato o sintoma melhorou na medida em que ela falava soltamente Breuer ficou tão maravilhado que relatou sua experiência ao jovem médico que o acompanhava Sigmund Freud Este por sua vez poderia ter deixado de lado a história Entretanto influenciado pela soma de alguns fatores que comentaremos na sequência entre eles sua grande admiração por Breuer inventou um método de tratamento pela palavra a psicanálise O primeiro dos fatores que induziram Freud a valorizar o relato de Breuer foi sua leitura anterior do livro A arte de tornarse um escritor original em três dias de Ludwig Börne Loeb Baruch 182319641968 Essa obra preconizava o método de falar tudo aquilo que viesse à cabeça para ser um escritor Freud gostava tanto desse livro que o carregava sempre consigo O segundo fator posterior ao relato de Breuer foi seu encontro com o grande Charcot em Paris em quatro meses de estágio na clínica do Hospital da Salpêtrière Ali aprendeu como a palavra toca o corpo da histérica Em seu nascimento a psicanálise testava procedimentos para trazer à luz afetos recalcados revelando do escuro do inconsciente marcas que atrapalhassem a vida de uma pessoa Essa operação liberaria a pessoa para seguir adiante livre de traumas A descoberta revolucionária de Freud a partir da experiência de Breuer e de Charcot foi que a queixa das histéricas não deveria ser escutada com ouvidos disciplinadores do tipo comumente empregado por médicos Um médico retraduz na sua linguagem técnica o que o paciente diz dor de estômago passa a chamar gastralgia dor de cabeça cefaleia etc A proposta de Anna O respeitada por Breuer e teorizada por Freud era diversa desta Consistia em fazer com que nós ouvíssemos as pessoas na singularidade da sua expressão O TERAPEUTA QUE SENTIU A PALAVRA RECALCADA O primeiro período da psicanálise foi superado por outro no qual os analistas já não viam no inconsciente a mesma exuberância dos primeiros dias Decidiram então que a escuta do analisando até então reitora da psicanálise deveria ser substituída pelo sentimento do psicanalista A teoria que fundamentou essa escolha propunha nos momentos em que o paciente não conseguia levantar todo o recalque que o analista lhe explicasse que essa dificuldade era causada pela existência de algum registro insuportável em seu psiquismo Caberia então ao analista ajudar na digestão das fantasias agressivas duras que o analisando não pudesse acessar sozinho O auxílio para se saber o que o paciente não conseguia dizer teria que vir de alguma outra fonte Seria o próprio analista que falaria com base nos sentimentos provocados em si pelo sofrimento do paciente a chamada contratransferência Por ter sido analisado o clínico seria capaz de sentir com pureza sem interferência de suas fantasias Alguns deram o nome de maternagem a essa técnica Sua caricatura é o analista falando docemente como se imagina que uma mãe fale com um bebê Essa prática se manteve e ainda perdura É representada por frases sussurradas como nossa Da outra vez talvez a gente possa pensar juntos uma forma melhor de ultrapassar sua dificuldade Em seu ensino Lacan negou essa prática Nos dez primeiros capítulos do Seminário 1 Os escritos técnicos de Freud 19531954 LACAN 2009 opôsse à maternagem e à utilização da contratransferência como recurso clínico Sob o estandarte de um retorno a Freud ele defendeu que o sentimento do analista não é a verdade escondida do paciente Se assim fosse guardaríamos sempre a ilusão de sermos totalmente compreendidos por nossos pais Para Lacan somos todos adotados Não há linha contínua de pai mãe e filho como na vida natural Animais têm certezas homens não Somos a única espécie que tem dúvidas até sobre o que somos Não temos conhecimento da nossa essência Assim Lacan preservava um espaço na sessão analítica no qual o silêncio deveria ser escutado e não negado e recoberto de interpretações contratransferenciais Silêncio é para ser vivido sem compreensão como aliás é o caso da maioria das melhores coisas da vida A FÓRMULA DO SOFRIMENTO HUMANO Com suas teses nos anos 1950 Lacan precisou se contrapor ao establishment analítico Muitos eram adeptos do uso clínico da contratransferência Seus textos de oposição acabaram por estar entre os grandes referenciais psicanalíticos Em 1957 produziu um dos mais conhecidos A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud Lacan 1998 Esse escrito afirma que é preciso escutar a letra dos registros inconscientes o próprio significante e não apenas o significado da fala do analisando porque o significante é o condutor do significado e nele na palavra está a base das formações do inconsciente tratadas em análise Para esse estudo Lacan valeuse do pensamento do suíço Ferdinand de Saussure usando um conjunto de aulas que foram anotadas e publicadas pelos alunos dele sob o título de Curso de linguística geral SAUSSURE 19161977 Nesse livro descreviase o mecanismo de formação do signo linguístico Lacan deulhe destaque Peço desculpas por parecer estar eu mesmo soletrando o texto de Freud não o faço apenas para mostrar o que se ganha ao simplesmente não recortálo mas para poder situar em balizas primárias fundamentais e nunca renovadas o que aconteceu na psicanálise Desde a origem desconheceuse o papel constitutivo do significante no status que Freud fixou de imediato para o inconsciente e segundo as mais precisas modalidades formais LACAN 19571998 p 516 O sonho via régia do inconsciente como dizia Freud em alusão à via régia romana passou a ser interpretado pelos mecanismos da metáfora e da metonímia descritos pela linguística correlatos respectivamente à condensação e ao deslocamento na nomenclatura inicial freudiana Foi com esses termos que se criou a primeira lógica do inconsciente A partir deles Lacan reviu a conceituação freudiana formalizando a psicanálise e evitando que a corrente maternalista continuasse a ganhar corpo Assim partimos de uma psicanálise da escuta progredimos para o sentir e agora voltamos para a escuta instruídos por conceitos Nesse percurso aprendemos que cada pessoa tem uma matriz significativa um axioma significativo o fantasma que dá base às suas interpretações da vida Por isso dizemos que na primeira clínica de Lacan o intérprete é o próprio inconsciente O PRIVILÉGIO DADO AO QUE NÃO FAZ SENTIDO A história não parou aí Com a aproximação do século XXI a clínica precisou mudar novamente sua ênfase Não interessavam mais tanto as matrizes significativas quanto o ponto opaco da significação para cada pessoa Ele foi abordado por Lacan em diversos momentos do seu ensino como algo fundamental o que escapa ao espelho ao reconhecimento que o outro possa ter de você É o ponto em que mesmo você não se reconhece É paradoxalmente o ponto de maior liberdade que causa desejo que instiga para que alguma coisa a mais possa ocorrer A opacidade de significação e o silêncio que ela implica hoje tão importantes ao nosso trabalho não são novos para a psicanálise Já haviam sido notados pelos analistas em 1910 e inquietavam o próprio Freud Em seu texto derradeiro Análise terminável e interminável 19371975 há uma passagem que Lacan fez ficar muito famosa na qual Freud diz que por melhor que seja conduzida a interpretação em uma análise sempre haverá um ponto de resistência No homem será realizado como protesto masculino e na mulher como inveja do pênis como Freud nomeou à época preocupado com o que há de inexplicável na sexualidade Não importando tanto os termos ou a visão freudiana do sexo o que ele notava é que sempre haverá um ponto de vazio em uma análise tornando infinito o processo elucidativo O dito em análise jamais será suficiente e pode continuar indefinidamente porque nem tudo pode ser nomeado Se quiserem uma comparação está na criação artística Imaginemos um pintor Em que momento ele diz Este quadro acabou Por que Picasso disse chega diante da Guernica Por que Vincent Van Gogh disse é assim diante dos seus girassóis No momento em que o artista diz basta o quadro termina mas também remanesce o infinito da obra A obra é ao mesmo tempo terminada e interminada como uma psicanálise No século XX em seu nascimento a psicanálise estabeleceu uma clínica com uma estrutura tão bem concebida que as pessoas começaram a achar que ela era a verdade da espécie humana O complexo de Édipo obra da genialidade de Sigmund Freud é um software que durante 100 anos funcionou muito melhor que qualquer software criado por Bill Gates Nós fazíamos análise na clave do Édipo entendíamos os amores as brigas com nossos pais as escolhas profissionais enfim tudo no sentido edípico Como a sociedade respondia ao padrão vertical de organização era possível que fosse orientada em torno de uma única versão o pai Os padrões de comportamento eram relativamente estáveis e por esse motivo era possível valorizar a articulação simbólica do inconsciente São as características da primeira clínica de Lacan Hoje estamos em um mundo de organização horizontal e múltiplas opções Na clínica queixase muito menos do que aconteceu e muito mais do que vai acontecer As pessoas estão desbussoladas desorientadas perdidas Dizem não sei o que eu vou fazer não sei para onde vou Tentam se agarrar em respostas alheias em livros de autoajuda neorreligiões exorcismos das madrugadas ou pensadores com cara de conteúdo que anunciam desgraças A angústia predominante é pelo futuro razão pela qual não enfatizamos mais a psicanálise do passado Ele já não nos amarra tanto O futuro assusta as pessoas Percebemos assim que o software freudiano já não lê alguns aplicativos que precisamos rodar no século XXI Não lê o fracasso escolar a epidemia das drogas os assassinatos dos pais pelos filhos as ações e agressões inusitadas enfim não lê nada que emerja do curtocircuito da palavra do sem sentido É por esse motivo que a clínica psicanalítica tem que mudar A psicanálise como todas as outras disciplinas precisa se adequar ao mutante da globalização Hoje nós reexaminamos as estruturas que não funcionam mais Tudo precisa ser reinventado Para não deixar as pessoas à deriva as noções de culpa e de responsabilidade precisam ser distinguidas e precisadas O MAIS ÍNTIMO DE MIM MESMO É VOCÊ Que nome daremos à clínica do século XXI Não será mais a psicanálise do Freud explica Antes geravase conhecimento a partir do não saber Hoje diferentemente implicase a pessoa no que ela não sabe Não saber é uma expressão usada na linguagem comum para designar o inconsciente Implicar alguém aí significa afirmar que as decisões da sua vida têm de levar em conta o sem sentido A pessoa decidirá as coisas que lhe são mais importantes com base em uma aposta Para a maioria das pessoas isso é apavorante JacquesAlain Miller reconheceu que no tempo atual o Outro não existe MILLER 2003 p 12 É uma época do risco em que nos cabe a responsabilidade frente ao desconhecido à surpresa e ao encontro Há que se responder a partir da própria singularidade Essa mudança de mundo nos pede um encontro analítico em que as pessoas não precisem recuar diante do susto de terem de fazer uma opção apressada Em que possam dizer sim à estranheza do que fizerem em sua singularidade Invenção e Responsabilidade IR marcam o momento da clínica atual A pessoa inventa uma resposta para o que não sabe e em seguida responsabiliza se por isso IR é a solução necessária a um mundo pósedípico póssignificação vertical pósmoderno globalizado É a isso que chamamos de segunda clínica de Lacan ou clínica do Real aludindo ao sem sentido As coordenadas dessa clínica foram esboçadas por Lacan nos últimos anos de seu ensino mas cabe a nós explicitála avançála e testála A psicanálise atual funciona com a ética da consequência e não do princípio Na clínica de hoje é necessária uma nova posição do analista que dê ao analisando uma implicação não assustadora no não saber Publiquei um caso atendido na Clínica de Psicanálise do Genoma Humano em que foi possível testemunhar uma grande mudança no primeiro atendimento Era uma pessoa com grave distrofia de membros superiores e inferiores e história recente de toxicomania Tinha brigado com a família e veio se consultar sem tomar banho nos últimos seis dias diagnosticado como deprimido A cocaína o álcool a sujeira a briga com a mulher o não trabalho eram para ele formas duras de interpretar a sua paralisia Ele chegou ao primeiro encontro esperando que eu o tratasse como todos que antes de mim escutaram seu relato a respeito da doença degenerativa e se compadeceram FORBES 2011 A compaixão é um remédio que muitos carregam no bolso para afastar o sofrimento Como diria Nietzsche 18882006 um dos piores vícios da espécie humana é a compaixão vista por muitos como virtude Como antes lhe aconteceu tantas vezes o homem achou que eu iria ajudálo a resignarse em seu destino trágico Seria o pior que eu poderia fazer Ele perguntou com voz sofrida e embargada se eu tinha alguma ideia do que era acordar pela manhã pegar a bengala olhar a porta do banheiro entreaberta e não saber se ainda iria conseguir me levantar Aproximeime para responder delicadamente mas com firmeza Eu não tenho a menor ideia Por alguns poucos segundos imaginei que ele reagiria com agressão Pode soar maldoso alguém ter a coragem de dizer eu não tenho a menor ideia diante da miséria humana Não era maldade Era uma forma de mostrar que o analista não responde com um eu também quando você lhe conta sua história Ele não age como na vida social na qual estão sempre roubando a especificidade das experiências e tudo é levado ao comum Ao menos uma vez na vida é bom encontrar alguém que não nos responda eu também que restitua a graça da experiência única Assim a pessoa percebe que não lhe cabe o prêtàporter Que a cada ocasião é preciso inventar Sem encontrar acolhimento no analista para suas respostas prontas a pessoa deve dar uma saída inédita diversa e responsável ao seu sofrimento Não há sofrimento que justifique que uma pessoa abra mão de ser única Fora do sofrimento prêtà porter cada um inventa sua singularidade Luc Ferry 2008 é o pensador que me ajuda a perceber o contexto dessa nova ação clínica Ele diz que vivemos um tipo de organização social influenciado pela desconstrução proposta por Nietzsche Atravessamos ao longo da história formas de organização religiosa muito abrangentes que regeram a sociedade primeiro cósmicas da natureza depois baseadas no monoteísmo Em seguida descreve Ferry vieram os tempos modernos dirigidos pelas hierarquias da razão O homem racional como ideal substituiu Deus como referência para a vida Era o primeiro Humanismo da filosofia iluminista Até que Nietzsche com seu martelo minou todas as ideologias e ídolos orientadores das lógicas verticais Na trilha dele e de outros autores como Freud Marx Lacan Heidegger para citar alguns dos grandes desconstrutores chegamos ao tempo de construir um segundo Humanismo baseado em um novo amor não mais orientado pelo pai pela hierarquia como é o amor edípico mas pela necessidade de eu estar com meu par para saber de mim Não é mais tanto ame ao próximo como a ti mesmo mas sim ame ao próximo para saber de ti mesmo Esse é o contexto de nossa sociedade em rede No novo amor não me entendo pela referência a um padrão mas por meio de um parceiro O mais íntimo e estranho de mim mesmo é você que me representa naquilo que me excede A base dessa ideia foi desenvolvida por Freud 19191976 no conceito de das Unheimliche traduzido por o estranho Se cada um de nós tem algo estranho precisa de um analista para se deparar com o íntimo de si mesmo CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo a psicanálise surgiu no momento em que se escutou a histérica Depois foi o momento de sentir o que não podia ser dito pelo analisando O terceiro tempo empreendido por Jacques Lacan realizou o famoso retorno a Freud para recuperar a escuta das manifestações significantes Agora estamos no quarto momento de construção de uma nova clínica que suporta o silêncio na escuta a incompreensão radical a invenção a consequência do Real Temos hoje um novo amor sem sentido e essencial Ele trará consequências em todos os setores do laço social A política de nosso tempo irá se afastar das grandes causas Ninguém mais dará sua vida por um ideal Isso não quer dizer que os meninos de hoje sejam menos apaixonados e criativos do que foram os da geração dos seus pais ou avós Eles estão construindo um novo mundo da política do vizinho A janela quebrada de sua rua incomoda mais do que uma guerra distante Isso não significa que os valores estejam distorcidos Janelas quebradas se comunicam em epidemia A política se dá em qualquer lugar Hoje ela estará onde houver alguém que consiga emitir algo que toque o outro sem que necessariamente o outro a compreenda A política é viral A pergunta que as pessoas precisam se fazer não é mais a iluminista que confere se você me entendeu Preciso saber hoje se você se deixou tocar pelo que eu disse como na expressão dos jovens tá ligado A pergunta deles não pede nenhuma resposta compreensiva Ela apenas confirma a rede em que um encontra a sua intimidade no outro Agora diante das comunidades que se formam existem duas opções sermos singulares ou sermos genéricos Nosso tempo é o primeiro a ver essa organização social horizontal nos últimos dois mil anos de história Nela temos uma grande responsabilidade Podemos escolher a primeira opção Será um gesto de confiança na rede Do meu ponto de vista não existe discurso melhor que a psicanálise para tratar dos impasses de quem deseja fazer essa escolha Referências bibliográficas BÖRNE Ludwig 1823 Die Kunst in drei Tagen ein Originalschriftsteller zu warden In Sämtliche Schriften v 1 Düsseldorf J Melzer 196468 p 7403 BREUER Josef amp FREUD Sigmund 189395 Estudos sobre a histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v II Rio de Janeiro Imago 1974 FERRY Luc Famílias amo vocês política e vida privada na globalização Rio de Janeiro Objetiva 2008 FORBES Jorge Não tenho a menor ideia In Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Tese de doutorado São Paulo Universidade de São Paulo 2011 p 1113 FREUD Sigmund 1919 O estranho Das Unheimliche In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 1976 p 273318 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1975 p 23987 LACAN Jacques 195354 O seminário Livro 1 Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro Jorge Zahar 2009 1957 A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 496533 MILLER JacquesAlain A invenção psicótica Opção Lacaniana São Paulo no 36 p 616 maio de 2003 NIETZSCHE Friedrich 1888 Crepúsculo dos ídolos São Paulo Companhia das Letras 2006 SAUSSURE Ferdinand de 1916 Curso de linguística geral São Paulo Cultrix 1977 DIFERENÇAS ENTRE A ANÁLISE LACANIANA E AS TERAPIAS COMO RECONHECER O ANALISTA LACANIANO LIÉGE LISE INTRODUÇÃO Psicanálise e terapia são duas formas distintas de tratar o sofrimento humano A psicanálise a respeito da qual discorreremos neste capítulo é a lacaniana A psicanálise lacaniana é sustentada por uma ética a ética do desejo que implica o sujeito na sua fala e no seu inconsciente responsabilizandoo por suas escolhas e pelo seu modo de satisfação Consiste em um tratamento singular único que escapa à normatização e ao padrão A base das terapias por outro lado é um conjunto de técnicas para intervir no aspecto emocional cognitivo e comportamental da pessoa É uma moral que visa a um ideal Na prática o que isso significa Sabese que na cultura a diferença entre a psicanálise e as terapias é nebulosa Para muitos psicanálise psicologia e psiquiatria são a mesma coisa Em que pese se tratarem de áreas que trabalham com o sofrimento humano atuam de forma diferenciada Partem do princípio da existência de uma realidade psíquica mas trazem uma diferença em relação ao modo como leem e interpretam essa realidade Duas questões são fundamentais no que se refere à distinção dos modos de trabalho de cada área Do lado do paciente tratase de como reconhecer se está mesmo na presença de um analista lacaniano quando busca um tratamento Do lado do analista iniciante das pistas que lhe permitem julgar em uma clínica sem parâmetros se ele está ou não trabalhando de acordo com seus princípios éticos Assim este capítulo tem dois objetivos 1 estabelecer a diferença entre a análise lacaniana e as terapias e 2 identificar as principais características do analista lacaniano que se relacionam à radicalidade com que sustenta seu desejo Está estruturado em quatro partes A primeira explicita qual é a ética da psicanálise a segunda apresenta as principais diferenças entre a psicanálise lacaniana e as terapias no tocante à concepção clínica do tratamento realizado na perspectiva da psicanálise de orientação lacaniana a terceira parte busca compreender a radicalidade do desejo do analista lacaniano e por fim a última tematiza a especificidade da prática da psicanálise lacaniana O TRATAMENTO PSICANALÍTICO E A ÉTICA DA PSICANÁLISE A diferença entre a psicanálise lacaniana e as demais terapias está na radicalidade com que ela privilegia a ética do desejo inconsciente e o desejo do analista na experiência de uma análise Busca portanto implicar a singularidade da pessoa em relação ao seu desejo É um convite à saída da moral dos costumes e dos ideais de adaptação da realidade para a entrada em outra cena na lógica do inconsciente A psicanálise é um modo de ser e agir pautado na singularidade e não em uma moral regrada em costumes e comportamentos externos Parte do princípio de que todo ser humano tem algum malestar sente e faz coisas estranhas Por essa razão postula que o caminho para tratar dessas esquisitices é pautarse em algo específico que não se encaixa em modelos de tratamento e privilegia o que há de mais próprio àquele que demanda um tratamento o inconsciente O inconsciente é a expressão dessa esquisitice singular e a psicanálise uma forma de lidar com ela de incluíla sem transformála em sofrimento Em vários de seus artigos Sigmund Freud 1912 1915 1916 1917 1926 referese à psicanálise como um método psicoterápico e terapêutico assim definido Psicanálise é um nome de um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo um método baseado nesta investigação para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica FREUD 1923 p 287 As terapias e a psicanálise têm em comum o tratamento por meio da palavra mas a diferença fundamental entre elas se estabelece na forma como a palavra é trabalhada em cada uma dessas áreas Essa foi a descoberta de Freud que percebeu que o corpo responde às palavras é tocado por elas de modo que as palavras alteram e subvertem as leis do funcionamento fisiológico do corpo Ao ouvir os sintomas histéricos o psicanalista percebeu que o corpo em sofrimento era expressão de um conflito inconsciente entre um desejo proibido e sua realização Assim fez um uso inédito da palavra para fins de tratamento e instituiu a associação livre Como nos mostrou Freud o inconsciente é um aparelho de linguagem que se expressa nas formações tais como os sonhos o sintoma os esquecimentos os atos falhos e os ditos espirituosos os quais trazem a marca de uma estranheza É justamente essa estranheza que reflete o descompasso do sujeito dividido entre o que julga querer e o que deseja A ética da psicanálise inscrevese na radicalidade com que privilegia essas manifestações do inconsciente lendoas como marca singular do sujeito Essa estranheza é resultado da desnaturalização do humano pela linguagem e da consequente perda de uma parcela de sua satisfação porque a satisfação humana não encontra um objeto na realidade que lhe seja correspondente Assim o desejo é sem objeto e na sua estrutura insatisfeito Como afirma Forbes 1997 o conflito do homem com o mundo não é um defeito um erro mas a base da sua constituição O inconsciente é a marca desse desacerto e o desejo é seu produto Na experiência analítica a ética da psicanálise tem como objetivo que o sujeito bem diga sobre o seu desejo daí se falar sobre ética do bemdizer Dizer o que do seu sintoma tem de uma satisfação paradoxal o gozo As palavras não são suficientes para dizer desse estranho que para cada um é o encontro com a sexualidade Esse encontro traumático ganha o nome de real Portanto para a psicanálise o Real é o que sempre escapa à palavra é da ordem de um resto inassimilável Tratase de um resto com o qual o sujeito terá de lidar ao longo da sua vida Lacan 1975 afirma que os sintomas têm um sentido e que só se interpretam corretamente corretamente querendo dizer que o sujeito deixa cair um pedaço dele em função de suas primeiras experiências isto é na medida em que encontre o que hoje chamarei por não poder dizer nada mais nem nada melhor a realidade sexual LACAN 1975 p 8 No tratamento do sintoma por sua vez a terapia está em consonância com a ciência médica Orientase pelo restabelecimento da saúde e pela promoção do bemestar visa à adequação da pessoa a um ideal A terapia constituise como um método de trabalho baseado e pertencente à medicina Therapéia vem do grego sinônimo de cuidado restabelecimento da saúde promoção do bemestar Lacan afirma que a psicanálise não é uma terapêutica como as outras Tratase sim de um rigor de alguma forma ético fora do qual qualquer tratamento mesmo recheado de conhecimento psicanalítico não pode ser senão psicoterapia LACAN 1955 p 326 Na psicanálise o sintoma é uma modalidade de gozo e a cura não se aplica a essa dimensão humana Diante desse real desse resto inassimilável desse estranho a psicanálise implica o sujeito a se responsabilizar por esse encontro As diferenças entre a psicanálise lacaniana e as terapias Na concepção e no tratamento do sintoma podem ser esboçadas as principais diferenças entre a prática analítica e a da terapia Por isso no que segue privilegiamos mostrar como cada prática concebe os seguintes elementos o sintoma a queixa a direção do tratamento a transferência e a interpretação Tais itens foram escolhidos porque a nosso ver falam da essência da experiência clínica que toca as duas práticas Tabela 1 Principais diferenças entre a psicanálise e as terapias Para maior esclarecimento vamos desdobrar as partes da Tabela 1 1 O sintoma a análise e as terapias têm em comum o tratamento por meio da palavra mas partem de concepções diferentes sobre o entendimento do sintoma Na psicanálise o sintoma é uma das formações do inconsciente Na definição freudiana é uma solução de compromisso entre o desejo inconsciente proibido e recalcado e as exigências defensivas do ego Para a psicanálise lacaniana o sintoma é a expressão de uma singularidade de uma satisfação paradoxal marca própria da pessoa e que pode ser incluída e expressa na vida Um mesmo sintoma pode ter uma função diferente para cada pessoa que só pode ser construída e alterada na medida em que a pessoa diz da sua posição diante desse sofrimento e do que ele está vindo responder Já as terapias entendem o sintoma como algo inadequado por isso visam a uma melhor adaptação à realidade 2 A queixa a psicanálise implica a pessoa na sua queixa comprometea no seu sofrimento e a responsabiliza Parte de uma pergunta simples o que você tem a ver com isso de que você se queixa Foi o que perguntou Freud 1905 a Dora em um caso paradigmático para o tratamento da histeria conhecido como Caso Dora Ela apresentava sintomas de afonia dificuldades respiratórias e vivia um impasse amoroso entre seu pai a amante dele e o esposo da amante Diante das suas queixas Freud lhe pergunta Qual sua participação na desordem de que se queixa Assim também faz o analista perante a queixa faz uma intervenção que abre a possibilidade de a pessoa trazer para si subjetivar seu sofrimento construir um saber sobre ele e inventar uma saída própria A terapia na medida em que trata a doença irresponsabiliza a pessoa Se a pessoa sofre de uma doença e os traços da sua subjetividade não são privilegiados tratase do problema e buscase a sua solução 3 A direção do tratamento o psicanalista dirige o tratamento não o analisando Incide na posição que o analisando ocupa na sua fala no seu discurso A presença do analista é aquilo que possibilita que essa experiência aconteça A terapia dirige a pessoa visando a um ideal de ser e estar Ao fazer uso de testes e protocolos isenta a subjetividade do paciente e o terapeuta restringese a um aplicador e intérprete de resultados obtidos a partir de escalas alheias ao particular do tratamento 4 O manejo da transferência a transferência é condição fundamental para uma análise Diz de um vínculo afetivo que se estabelece no processo analítico De um amor à figura do analista no seu início à visada de um amor ao inconsciente A clínica psicanalítica é uma clínica sob transferência o que significa dizer que o analista faz uso de um lugar a ele atribuído de uma demanda a ele endereçada um lugar de grande importância Outro para operar a partir dessa autoridade a ele confiada Ao não responder à demanda do lugar de Outro o analista abre para produção de um saber fruto do trabalho do analisando e da relação que ele passa a estabelecer com sua palavra e seu inconsciente Lacan falava do lugar do analista como o do SSS Sujeito Suposto Saber falar para um Outro que é posto na posição de decifrar o sentido do sintoma O analista não responde desse lugar não responde à demanda mantendo aberta a via do desejo Dessa forma o analista fica na posição de causarprovocar o desejo As terapias por outro lado respondem à demanda Alimentam o sintoma com a produção de sentido e a identificação ao terapeuta que personifica o ideal 5 A interpretação a interpretação é a forma como um analista intervém visando a deslocar abalar certezas equivocar surpreender e abrir para outros sentidos Freud alicerçou a matriz de interpretação inconsciente no Complexo de Édipo padrão de significação vertical representado pela figura paterna Era o que permitia entender o descompasso entre o homem e o mundo Dessa forma a orientação vertical paterna se refletia no regramento da satisfação humana também nos outros espaços da cultura escola trabalho e sociedade A interpretação seguia a clave edípica buscando o ganho de saber e o sentido que possibilitava a eficácia na resolução dos sintomas Diante de novos sintomas que não respondem mais ao ganho de sentido a segunda clínica de Jacques Lacan ou a clínica do gozo possibilita uma melhor intervenção e eficácia A passagem do Freud explica para o Freud implica tem como visada o real o que escapa ao sentido a incompletude lógica da psicanálise O ato analítico sustentado pelo desejo do analista é o que responsabiliza por esse insuportável de cada um por esse particular por esse meio pessoal e intransferível de viver FORBES 2009 Estabelecidas as principais diferenças entre os modos de trabalho das terapias e a ética na qual se pauta a psicanálise lacaniana na sequência serão mostrados modos por meio dos quais o analista lacaniano possa ser reconhecido COMO RECONHECER O ANALISTA LACANIANO Um analista lacaniano se reconhece pela maneira singular como ele sustenta seu desejo Pela forma como dá mostras da sua relação com a ética da psicanálise e com o seu inconsciente Com a sua presença guardando o silêncio ele não responde à demanda do paciente nem se compadece ou se investe de maestria Deixa aberta a via do desejo possibilitando a quem lhe pede uma análise um encontro com o seu mais estranho íntimo a sua diferença absoluta Tratase do efeito verdadeiro que a experiência de uma análise pode provocar uma psicanálise padrão ou não é o tratamento que se espera de um psicanalista LACAN 1955 p 331 A ESPECIFICIDADE DA PRÁTICA DA PSICANÁLISE LACANIANA INVENÇÃO E RESPONSABILIDADE DIANTE DO SOFRIMENTO A psicanálise é uma prática que permite ao ser humano incluir na vida seu insuportável sem o transformar em sofrimento Mantém vivo o convite ao risco e à aposta de manter vivo o desejo É o melhor tratamento à angústia pois retira seu caráter paralisante e transformaa em motor possibilitando a invenção de respostas criativas e singulares Tratase do tratamento do estranho de cada pessoa do trato com seu inconsciente que causa o ser falante a responsabilizarse pela invenção de seu estilo singular de usufruir de seu corpo e de sua vida FORBES 2010 p 11 Do lado do psicanalista há também um compromisso em sustentar viva a causa analítica a virulência e a ética da psicanálise Por não operar no registro da moral e sim da ética a psicanálise é uma práxis e o desejo do analista seu ser está implicado o que o aproxima do ofício criativo do poeta Em suma diferente de outras práticas profissionais nas quais a identidade pode ser definida com predicados que unificam uma categoria um analista só pode ser reconhecido a partir de como ele sustenta seu desejo singular enigmático de analista Referências bibliográficas FORBES Jorge Psicanálise ou psicoterapia Biblioteca Freudiana Brasileira Campinas Papirus 1997 Curso do Corpo de formação em psicanálise do IPLA Aula inaugural São Paulo 09 de fevereiro de 2009 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrcursoseconferenciasaulainauguralcorpoformacaohtml Acesso em 1o de março de 2012 Inconsciente e responsabilidade Tese de doutorado em Psicologia Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010 FREUD Sigmund 19011905 Estudos sobre um caso de histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1976 1912 Recomendações aos médicos que exercem psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1976 19151916 Conferências introdutórias sobre psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XV Rio de Janeiro Imago 1976 19161917 Conferências introdutórias sobre psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVI Rio de Janeiro Imago 1976 19221923 Dois verbetes de enciclopédia In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVIII Rio de Janeiro Imago 1985 1926 A questão da análise leiga In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 LACAN Jacques 1955 Variantes do tratamento padrão In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1975 Conferência em Genebra sobre o sintoma Disponível em httpwwwcampopsicanaliticocombrbibliotecagenebradoc Acesso em 25 de fevereiro 2012 QUANDO ESTÁ INDICADO O DIVÃ A ANÁLISE LACANIANA TEM CONTRAINDICAÇÕES CLAUDIA RIOLFI nos casos em que a psicoterapia analítica só conseguiu muito pouco qualquer outro tratamento decerto nada teria realizado FREUD 1905 1904 p 275 INTRODUÇÃO A psicanálise é o exercício de uma presença dura inflexível Para o analisando o psicanalista assume o lugar do imprevisto sempre presente Rompendo com as expectativas de quem conta com as formas cristalizadas de encontrar socialmente nossos semelhantes ele encarna o que Jacques Lacan chamou de Real o contingente o impossível de ser simbolizado O parágrafo precedente resume a tese de uma das conferências de Jorge Forbes 2005 quando apostando na possibilidade de um laço social não mais marcado nem pela moralidade nem pela culpa apontou para a ética radical que sustenta a presença do analista a ausência da compaixão e a não aceitação da resignação Perante a ética da clínica do Real qualquer pessoa mesmo aquelas que empiricamente parecem estar em situações muito delicadas como é o caso por exemplo de uma doença fatal se vê convidada a alterar sua relação com os seus modos de satisfação que lhe geram sofrimento Não é tanto o quadro em si o que interessa mas sim a posição de cada qual diante dele Esse convite teria contraindicações Precisamos responder essa pergunta na justa medida em que a psicanálise não é inócua Por seu efeito uma pessoa pode experimentar transformações radicais É muito raro que alguém saia incólume desse encontro com o Real Por seu caráter surpreendente a trombada com o que não tem nome desarranja as histórias que as pessoas contam a si mesmas para justificar seus impasses Assim quem passa por uma análise se vê literalmente sem chão Deixa de se reconhecer e às vezes chega a sentir saudades de quem foi Costumeiramente se assusta com o desconhecido que vê surgir como fruto do trabalho analítico Será que todos os que procuram um analista têm condições de aguentar esse tranco Todos podem aguentar essa presença implacável ou em alguns casos o divã está contraindicado Uma pessoa pode piorar quando se engana em relação ao julgamento de sustentar uma análise Como o analista pode se nortear para fazer escolhas que diminuam as chances de efeitos colaterais potencialmente maiores do que o sofrimento inicial Nunca é demais lembrar que os efeitos de uma análise são diversos Dependem de todo tipo de contingências Aqueles que chamamos de neuróticos por exemplo os que se perdem quando as identificações com as figuras de seu passado são desbastadas podem se recuperar por vias substitutivas Para outros por exemplo aqueles que chamamos de psicóticos a substituição metafórica pode ser uma via impossível de ser franqueada Por esse motivo dizse que o desencadeamento do delírio é sempre um risco Vale a pena corrêlo Há mecanismos diferentes da metáfora que podem compensar essa perda O presente capítulo cujo objetivo mais amplo é discutir as condições de aplicabilidade do tratamento psicanalítico e a configuração dos princípios que podem orientar o psicanalista no momento de decidir aceitar ou não dirigir o tratamento que lhe está sendo solicitado está dividido em duas partes Na primeira de caráter histórico recuperamos quais eram as contraindicações à psicanálise postuladas por Sigmund Freud e as primeiras reações de Jacques Lacan ao tomar contato com elas Na segunda de caráter mais clínico as condições de aplicabilidade da clínica do Real serão discutidas UM INÍCIO CAUTELOSO DE FREUD À PRIMEIRA CLÍNICA DE JACQUES LACAN O pioneiro Sigmund Freud recuou diante da psicose Chegou a recomendar explicitamente que a análise se restringisse aos pacientes neuróticos FREUD 1926 Sua justificativa era de que em se tratando de um caso de psicose o psicanalista não pode cumprir com sua promessa de cura FREUD 1913 É por esse motivo que naquela ocasião recomendou aos colegas que antes de começarem o trabalho analítico propriamente dito tomassem o paciente de forma provisória a fim de se estabelecer um diagnóstico Para o pioneiro a lista de fatores impeditivos à aceitação do tratamento analítico era a princípio relativamente grande Listemos no que segue os fatores apresentados por Freud para defender sua tese de que para funcionar a técnica psicanalítica precisava ser implementada nos parâmetros adequados 1 aquilo que ele chama de degeneração neuropática 2 ter sido levado ao analista apenas pela ordem autoritária de seus familiares e não pelo incômodo gerado por seu sofrimento 3 idade próxima ou acima dos cinquenta anos e 4 necessidade de eliminar com rapidez fenômenos perigosos por exemplo a anorexia histérica FREUD 1905 1904 Nos dias de hoje essas précondições tendem a ser relembradas apenas na condição de curiosidades quiçá de excentricidades em especial por quem tende a colocar a grande circulação de sua sala de espera em primeiro plano Não é assim que nós trabalhamos Por exemplo em 2012 Jorge Forbes não deu prosseguimento ao tratamento de duas crianças trazidas por sua mãe à Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano quando no decorrer de sua primeira entrevista ficou claro que a presença da família no Centro do Genoma Humano havia sido gerada pela vontade de dar sequência a uma importante pesquisa genética Ao perceber que os meninos não tinham sofrimento psíquico nem muito menos vontade de ter a própria situação alterada limitouse às seguintes ações 1 informar às crianças que havia percebido sua má vontade 2 explicar lhes de modo claro e compreensivo o que é um tratamento psicanalítico e para que ele serve e 3 dizerlhes que se mais tarde qualquer um dos dois desejasse iniciar o tratamento poderia agendar nova entrevista Retornemos a Freud Ele estava seguro do sucesso de sua técnica quando se tratava de aplicála em pessoas em estado normal Como se lê no excerto a seguir para as demais o austríaco propunha uma modificação apropriada do método Quando se quer trabalhar em segurança devese restringir a escolha a pessoas que tenham um estado normal pois é neste que nos apoiamos no procedimento psicanalítico para nos apropriarmos do patológico As psicoses os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada tóxica eu poderia dizer por conseguinte são impróprios para a psicanálise ao menos tal como tem sido praticada até o momento Não considero nada impossível que mediante uma modificação apropriada do método possamos superar essa contraindicação e assim empreender a psicoterapia das psicoses FREUD 1905 1904 p 274 Lendo o excerto de Freud que acabamos de transcrever não é disparatado pensar que Freud estava de certo modo convocando seus pares para colaborar na modificação apropriada do método Uma das pessoas a aceitar seu convite foi Jacques Lacan Ao retornar a Freud Lacan deu sequência à sua descoberta mas não deu seguimento aos seus temores Sustentou uma longa elaboração para além do Édipo por meio da qual nos convidou a pensar uma clínica da psicose independente da neurose e de seus pressupostos Em especial sua trajetória para além da linguagem nos permite neste momento redigir um tratado para nortear uma clínica para o século XXI Um importante marco são as elaborações realizadas no seminário dedicado à elucidação do conceito de angústia LACAN 19621963 Como frisa Jorge Forbes o objetivo de Lacan nesse seminário é mostrar que a angústia é reitora do tratamento analítico Ela mostra a direção do tratamento uma vez que aponta para a certeza do sentimento para além da verdade do significante Se as palavras sempre equivocam a angústia por sua vez não engana Tornando presente uma dimensão que não pode ser encoberta pelas palavras a angústia aponta para o fato de que na relação homemmulher não há fusão O analista deve saber qual angústia valorizar aquela que interessa se relaciona com a sexualidade A introdução da angústia sexual no cálculo da clínica a muda radicalmente A partir da consideração de sua existência no curso de uma análise não se trata mais nem da relação sujeitoobjeto nem de sujeito para sujeito O analista passa a privilegiar uma relação ao inconsciente ou pela via do objeto enquanto causa do desejo da falta ou pela via do seu excesso desorientação da pulsão Quando mobilizada ela pode impor uma passagem do trágico ao cômico Como Lacan explica essa ocorrência Pela abertura trazida ao sujeito quando ele perde a esperança de satisfazer as expectativas do outro A descoberta do sujeito de que há o outro sexo o angustia porque a partir dela ele facilmente se convencerá de que pode continuar completando sua mãe e desse modo garantindo a presença dos meios para sua satisfação Assim a angústia sexual abre para o amor fundado na constatação de que algo maior do que cada um de nós nos leva ao outro por quem morreríamos se necessário fosse Como encontrar essa pessoa O analista pode ajudar a tornála certeira Não Não há qualquer construção natural que leve inequivocamente alguém a encontrar o objeto que por fim conviria à sua satisfação A pessoa melhora quando aceita a impossibilidade de encontrar alguém que lhe diga a direção de seu desejo A condição para obter a almejada melhora é portanto compreender que o traço de não enganar atribuído à angústia não se refere à verdade que se relaciona com a cabeça mas sim na analogia de Jorge Forbes aos pés Para ele é a cabeça que deve se adaptar aos pés e não viceversa Em outras palavras em vez de tentar racionalizar os motivos das decisões é mais interessante observar em que direção o sujeito se moveu para retroativamente interpretar a direção que o seu desejo já lhe impôs O divã é a cama em que se deita para se parar de sonhar Uma análise demora justamente a medida que a pessoa leva para se dar conta da impossibilidade de encontrar suas respostas no outro Enquanto não perde a esperança de encontrar o objeto de sua satisfação pronto no mundo o analisante insiste em interrogar seu passado para encontrar qual objeto ele é Sua demanda irá se renovar até que finalmente o analisando conclua o processo que Miller 1998 nomeia de operaçãoredução o esvaziamento da proliferação da fala em benefício da redução ao osso ao obstáculo que se encontra no meio do caminho do ser falante Tratase portanto de empreender um percurso que por meio da linguagem pode levar a pessoa a se deparar com o que fora dela a toca É só após o encontro dessa presença irredutível que o analisando se dá conta da necessidade de inventar um objeto que expresse sua singularidade Na clínica do Real ao contrário da clínica do simbólico ninguém está excluído dessa possibilidade apenas por se enquadrar nesta ou naquela estrutura clínica Existem riscos neste processo UM PRESENTE ARRISCADO A CLÍNICA DO REAL NÃO É PARA INCAUTOS Miller in HENRY JOLIBOIS amp MILLER 1997 afirma que hoje a manutenção da tripartição neurose psicose e perversão é fruto da preguiça de renovar os modos de pensar por parte dos psicanalistas que insistem em desconsiderar que Lacan caminhou de uma clínica descontínua e categorialista para uma clínica elástica e fundada na generalização da existência para todo e qualquer um de ser um elemento não passível de ser capturado por meio das palavras Visando a vencer essa inércia Miller propôs tomar a seguinte questão como norte da clínica como fazer para que a evolução de um sujeito seja mais contínua do que descontínua isto é evitar suas crises seu desencadeamento e suas escansões Para o autor essa questão poderia ser mais bem respondida caso em vez de insistir na clínica edípica passássemos a tomar como conceito fundamental para estruturar a clínica psicanalítica o ponto de basta LACAN 19551956 representado na Figura 1 Figura 1 O ponto de basta Sem aprofundar os detalhes cumpre esclarecer que no vetor que vai da esquerda para a direita o fluxo frasal metonímico está representado Como sempre é possível acrescentar mais um sentido enquanto esse vetor não é atravessado por uma pontuação estamos mantendo a impossibilidade de decisão No vetor que vai da direita para a esquerda a pontuação que interrompe o deslizamento dos sentidos fixando uma dada interpretação está representada Quando o primeiro vetor é cruzado pelo segundo algo se decide O falante é obrigado a ficar com um é isso que acaba amarrando sua intenção de satisfação ao pedido dirigido ao outro para que possa se prestar como suporte do objeto por meio do qual o falante se satisfaria Em suas palavras Isso que nós buscamos é o que Lacan buscou de muitas maneiras como torcer a conceituação linguística de modo a se dar conta não apenas dos efeitos significados da operação significante mas também de suas consequências para o gozo Como dar conta dos efeitos do significante sobre o gozo MILLER 1997 p 176 Para Miller partir do ponto de basta permitiria ao privilegiar a conexão significantegozo articular o conceito de descontínuo e de contínuo Para tanto o autor procurou escrever o Matema da Neblina nome utilizado para nomear os quadros nos quais nos sujeitos que não conseguem dizer não falta a intenção comunicativa que dá origem a uma dada enunciação vetor 1 mas sim acontece algo quando essa tentativa de dizer se depara com a falta de significante no lugar do Outro da Lei vetor 2 o estado de perturbação que impede o advento do significado Isso é um dos modos de dizer que todo mundo é louco Ora das duas uma ou a psicanálise passou a não poder mais ser aplicada ou necessariamente a loucura não pode mais fazer o analista lacaniano recuar Portanto se ele não recua diante da loucura o que o faz recuar Miller 1999 afirma que ao contrário do que precavia Freud a princípio não há contraindicação para o encontro com um analista Para sustentar essa afirmação o autor tira o peso dos dois aspectos classicamente mobilizados para decidir a respeito da medida da intervenção analítica a estrutura clínica do sujeito e o espaço reservado para a análise para colocálo em outros dois a condição de demanda deve estar habitada por um desejo e a condição de sintoma trazer sofrimento Em outras palavras depreendese da argumentação de Miller que para aceitar alguém em análise é preciso verificar se quem vem solicitála está simplesmente expressando um pedido explícito de ser livrado de seus sintomas por meio da ação do analista ou mesmo sem o saber pretende conseguir tolerar a presença de algo que não fecha do incompleto Nessa perspectiva a decisão só pode ser dada caso a caso não havendo possibilidades de generalização Essa perspectiva foi retificada em 2004 por Jorge Forbes Ao deslocar o fulcro da psicanálise da linguagem para o corpo o autor fez um raciocínio que para maior clareza vamos expor em itens 1 A psicanálise não é uma prática e sim uma práxis 2 A prática é uma ação instrumentada que obedece a um saber orientado e atende a algum ideal 3 Uma prática pode ser ensinada É possível a alguém dar direção prática a outra pessoa 4 Para quem quer dar uma direção prática a alguém o elemento de referência é a teoria 5 Do par teoriaprática decorre uma técnica especializada o tratamento X ao sintoma Y 6 Nos casos em que o sintoma for diferente de Y o tratamento X será contraindicado 7 A práxis é sem intermediário não gera teoria nem faz profissão 8 Uma práxis se transmite não se ensina 9 A psicanálise como práxis mantémse desespecializada não se subordinando a nenhuma teoria 10 Portanto a psicanálise não tem contraindicações Posto isso cumpre ressalvar que ninguém está liberado de estudar teorias Ainda que a psicanálise não se subordine a nenhuma delas é preciso estudar muito para poder mobilizar o saberfazer PALAVRAS FINAIS Uma análise é sempre a melhor solução ou por vezes é melhor recusar um tratamento Se em qualquer estrutura para todo e qualquer um as palavras fogem não haveria a priori contraindicação para o encontro com um analista Assim na clínica tratarseia de verificar a possibilidade de encontrar um significante que pudesse capturar o gozo fora da palavra Como já afirmado tratase de uma clínica arriscada que não serve para os incautos Então para quem ela é destinada Por que seria bom para alguém sustentar a presença dura inflexível nomeada na introdução deste capítulo Em poucas palavras para aprender a lidar com a sua condição humana a de ser sexuado e mortal LACAN 1964 Dizer a direção do desejo é impossível Não há construção natural que leve uma pessoa a isso Assim acordar é parar de querer ficar tranquilamente esperando que alguém nomeie seus bons objetos Todo mundo tem formas cristalizadas de lidar com suas mancadas Deve ser por isso que é impossível ser feliz sozinho Quem desiste dessa inércia passa ao tomar decisões a se nortear pelo cálculo coletivo em vez de buscar encontrar garantias imaginárias no outro Ele se permite usar soluções inusitadas para os seus modos de satisfação e inventa modos de passar sua singularidade no mundo Na prática podemos dizer que ao suportar a dureza da clínica do real a pessoa ganha o que segue 1 Deixa de ser personagem de uma tragédia com final previsível e encara o drama da vida com um toque de leveza 2 Ganha velocidade para perceber seus deslizes e maior inteligência para construir soluções para eles 3 Abandona o regime da culpa mortificante para abraçar o da responsabilidade vivificante 4 Desiste de se esconder atrás de verdades que justificam seus fracassos para brilhar sob a certeza que norteia sua vida Posto isso gostaríamos de concluir dando desdobramentos a dois textos de Forbes Em 2001 o autor afirmou que ao aceitarmos que a psicanálise não tem contraindicação gerase a necessidade de levar as múltiplas interferências possíveis da psicanálise no mundo às últimas consequências pensando suas múltiplas aplicações o consultório o hospital a escola a política as organizações empresariais culturais etc Hoje é necessário olhar para o cenário à luz dessa ponderação e perceber que se é verdade que muito já está feito não é menos verdade que a aventura está só começando Em outras palavras não é menos verdade que a presença dos psicanalistas no cenário mundial ainda deixa a desejar Em 2004 por sua vez o autor afirmou que a clínica do Real estava indicada para quem quer querer o que deseja dizer o que se quer e eventualmente conduzirse na direção do que disse querer Lendo essa afirmação concluímos que para nós no fundo no fundo só há uma única contraindicação para a clínica do Real Acreditamos que ela é fortemente desaconselhável para covardes Que não deve ser praticada por quem não tolera a presença do incompleto e quando se depara com suas próprias limitações prefere ficar bonito na fotografia a se arriscar a um fracasso que caso seja dolorido não será por esse motivo menos honrado Referências bibliográficas FORBES Jorge Um novo tempo a reunificação do campo psicanalítico Opção Lacaniana São Paulo nº 32 2001 2004 Leibproblem o problema do corpo Sinopse de Andréa Naccache Disponível em httpwwwjorgeforbescombrarqAEC20sinopse2012014abr4pdf Acesso em 20 de março de 2012 FREUD Sigmund 1905 1904 Sobre a psicoterapia In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1976 1913 Sobre o início do tratamento In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1976 p 13758 1926 A questão da análise leiga In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 HENRY Fabienne JOLIBOIS Michel amp MILLER JacquesAlain orgs La conversation dArcachon Cas rares Les inclassables de la clinique Paris Agalma 1997 p 149282 LACAN Jacques 19551956 O seminário Livro 3 As psicoses Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 19621963 O seminário Livro 10 A angústia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 1964 O seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 MILLER JacquesAlain La conversation In La conversation dArcachon Cas rares Les inclassables de la clinique Paris Agalma 1997 O osso de uma análise In VIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e II Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise 1998 Salvador Seminário proferido no VIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e II Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise Salvador Biblioteca Agente 1998 As contraindicações ao tratamento analítico Opção Lacaniana São Paulo nº 25 p 525 1999 O QUE APRENDEMOS COM A CLÍNICA ESTRUTURAL COMO O ANALISTA LACANIANO FAZ DIAGNÓSTICO ARIEL BOGOCHVOL INTRODUÇÃO Analista faz diagnóstico O fato de o analista lacaniano se ocupar do diagnóstico pode chocar sensibilidades Quando se fala em diagnóstico pensase no diagnóstico psiquiátrico nas classificações na lista de sintomas e nos critérios de inclusão ou exclusão pretensamente objetivos ou consensuais apresentados pelos órgãos oficiais O analista lacaniano faz diagnóstico a partir de outras perspectivas Não recusa o saber constituído mas questiona sua objetividade Não procura descrever ou agrupar os sintomas mas verificar sua relação com o sujeito que se queixa Não toma o sintoma como um fato mas como um dito um significante cuja significação é desconhecida Interessase tanto pelo modo como o sofrente sofre como pela forma com que se dirige àquele que poderá tratálo Para ele o sintoma não é índice de uma desordem do corpo mas manifestação de estruturas subjetivas No processo diagnóstico o analista realiza uma operação tríplice de avaliação clínica localização subjetiva e de introdução ao inconsciente É esse o mote do presente capítulo INÍCIO DE ANÁLISE O diagnóstico não é apenas o conhecimento da situação atual mas previsão do futuro O médico enuncia um juízo acerca da condição presente e a respeito da sua evolução sobre o que existe e seus desdobramentos no tempo Qual é a doença Qual é seu curso Quais são os tratamentos Quais são as chances de cura Suas respostas constituem o que pode ser considerado uma predição instruída noção que será alvo do próximo capítulo É a mesma coisa na psicanálise Com a psicanálise freudiana começa não só uma prática terapêutica mas algo mais profundo O que se trata de curar Diagnóstico deriva do grego διαγνϖστικóς do latim diagnosticu dia através de durante por meio de gnosticu alusivo ao conhecimento de e designa o juízo declarado sobre a característica a composição o comportamento a natureza de uma doença com base nos dados e informações obtidos por meio de exame clínico e laboratorial O que leva uma pessoa a procurar uma análise Genericamente é o sofrimento psíquico expresso de modos variados Algo não vai bem não caminha As queixas podem ser referidas à própria pessoa às pessoas que a cercam às dificuldades no amor no trabalho na família Quer seja como embaraço transbordamento esvaziamento dilaceramento divisão queda impedimento há algo estranho mais forte que o Eu sem sentido desarmônico que produz malestar A pessoa quer livrarse disso e pede um tratamento de seu mal AMP 1995 p 127 A psicanálise não é uma sabedoria como a sabedoria oriental ou como os guias de autoajuda Nas sabedorias tratase de conseguir uma harmonia uma correspondência entre o sujeito e o mundo A psicanálise se situa sobre uma tela de fundo que é a investigação sobre o malestar na cultura considerada estrutural e que radica no que Freud nomeia castração Não há nenhum plano de acesso à harmonia à felicidade à genitalidade ao outro sexo à normalidade um modo de remediar a castração A castração é o incurável da humanidade a condição e o limite freudiano dos esforços terapêuticos MILLER 2009 p 174 5 Freud advertia para os perigos do furor sanandi O desejo de curar próprio do médico não se confunde com o desejo do analista Se o analista toma em análise um paciente com o desejo de curálo não vai conseguir sustentar sua função propriamente analítica Somente se pode prometer curar alguém quando se conhece seu bem e o que não anda bem Como saber se aquilo do qual o paciente se queixa não é sua maior satisfação Qual é o seu bem Responder que o doente demanda a cura não é responder absolutamente nada afirmava J Lacan em uma conferência intitulada O lugar da psicanálise na medicina Ele põe o médico à prova de tirálo de sua condição de doente o que é totalmente diferente pois isso pode implicar que ele está totalmente preso à ideia de conservála Vem às vezes pedir para autenticálo como doente preserválo em sua doença tratálo da maneira que lhe convém ou seja aquela que lhe permitirá ser um doente bem instalado na sua doença LACAN 19662001 p 10 É uma experiência cotidiana banal existe uma falha entre a demanda e o desejo No momento em que alguém pede demanda alguma coisa isso não é absolutamente idêntico e por vezes é diametralmente oposto àquilo que ele deseja FORBES 2003 AVALIAÇÃO CLÍNICA Nas entrevistas preliminares o psicanalista escuta o pedido a queixa aquilo que não anda Realiza uma operação complexa ao final da qual deverá rejeitar ou avalizar a demanda de análise MILLER 1985 e criar as condições para que ela se efetue Da mesma forma que um cirurgião precisa constituir seu campo cirúrgico para operar Miller 1987a1997 p 232 distinguiu três níveis das entrevistas preliminares avaliação clínica localização subjetiva e introdução ao inconsciente A avaliação clínica tem importância vital uma vez que uma análise não pode ser iniciada em quaisquer condições e não transcorre da mesma forma nas diversas situações clínicas A lista de indicações e contraindicações variou ao longo do tempo e tem aspectos curiosos Freud contraindicava a análise para pessoas com mais de 50 anos para os não inteligentes para psicóticos para situações de urgência Lacan a contraindicava para os católicos verdadeiros para pessoas que nunca se sentiam culpadas para os milionários para os japoneses para os canalhas para os que não tivessem um desejo decidido Tais recomendações são porque a psicanálise não é uma prática inócua ao contrário ela tem efeitos colaterais podendo precipitar uma psicose transformar um pequeno canalha em grande canalha favorecer a passagem ao ato A avaliação clínica implica a realização de um diagnóstico Para Freud é muito difícil formar uma opinião exata de um caso antes de submetêlo a uma análise aprofundada Entretanto é antes mesmo de conhecer o caso detalhadamente que nos vemos obrigados a estabelecer um diagnóstico e determinar o tratamento FREUD 18951974 p 312 Desde o início da história da psicanálise portanto o diagnóstico se colocou de uma maneira problemática Se por um lado o diagnóstico deverá ser feito no início precocemente por outro só poderá ser confirmado no decorrer da análise Como associar o caráter operatório do diagnóstico à sua relativa imprecisão DOR 1991 p 2 O fato de o analista lacaniano se ocupar do diagnóstico pode chocar sensibilidades Para sustentar uma clínica com maior pertinência parecenos ser preciso estudar o saber clínico constituído originalmente fora da psicanálise pela psiquiatria e utilizálo na experiência Existem tipos de sintomas existe uma clínica Só que ela é anterior ao discurso analítico e se este lhe traz alguma luz isso é seguro mas não é certo LACAN 1973 p 554 Para entender o diagnóstico a noção de sintoma é básica fundamental Deriva do grego sumptôma que conserva o sum de síntese de reunião de conjunto ou seja do que se produz junto e coincide Responde à consciência natural à filosofia espontânea e à posição médica há algo que rompe com uma harmonia com o funcionamento perfeito homeostático Não existe sintoma sem uma referência a certa sinfonia perturbada por uma dissonância pela aparição de um acidente MILLER 1989 p 9 Apesar de as expressões serem múltiplas as modalidades do sofrimento psíquico não são infinitas Há formas preferenciais dos sintomas sintomas típicos que foram descritos pela psiquiatria São produtos da observação do olhar e da escuta e ocuparam os psiquiatras e psicopatologistas durante o século XIX e início do XX Eles se engajaram na tarefa de descrever os sintomas agrupálos classificálos entender suas lógicas causas e estabelecer seus valores diagnósticos diferenciais Envolveramse em discussões sem fim Por exemplo na criação do conceito de esquizofrenia Bleuler privilegiou a alteração na associação de ideias sintoma fundamental e primário diferente de Kraepelin Guiraud um grande clínico francês retomou Kraepelin e privilegiou a indiferença o desinteresse a inércia a ambivalência o sentimento de estranheza interior Sabese que um mesmo sintoma pode aparecer em diversos quadros clínicos A indiferença pode caracterizar uma histeria mas também uma hebefrenia e não tem o mesmo valor se ocorrer em um ou outro quadro A ideia de contaminação pode ocorrer na neurose obsessiva mas também pode ser tema de um delírio hipocondríaco Além da preocupação com o fenômeno em si interessavam as relações dos fenômenos entre si Uma vez que se aceitam os tipos os agrupamentos de sintomas que definem uma clínica esta se define como o conhecimento do agrupamento específico de sintomas Acreditase que eles existam no Real Freud e Lacan adotaram criticaram recusaram e criaram tipos clínicos Freud descreveu a neurose de angústia e a separou da neurastenia por exemplo Lacan propôs a paranoia de autocastigo Os tipos clínicos como a histeria a neurose obsessiva a fobia a esquizofrenia a paranoia a psicose maníacodepressiva PMD e o fetichismo são referências da psicanálise freudiana e lacaniana No entanto a noção de sintoma não é a mesma na psiquiatria e na psicanálise Para a psiquiatria o sintoma é um sinal ou índice de uma desordem do corpo epifenômeno de uma desordem biológica Para a psicanálise é uma formação complexa produto do interjogo de instâncias e forças psíquicas É um significante cuja significação se desconhece O sintoma porta um sentido e simultaneamente é uma forma de satisfação paradoxal Lacan introduziu uma exigência a mais que é a referência à estrutura Que os tipos clínicos decorrem da estrutura eis o que se pode escrever não sem certa flutuação LACAN 19732003 p 554 A noção de estrutura é capital no ensino de Lacan É uma configuração de elementos distribuídos segundo certa ordem articulados entre si Na psiquiatria o que ocupava o lugar da estrutura era a referência ao processo cerebral Lacan considera uma exigência científica conectar os tipos clínicos à estrutura É uma forma de ultrapassar o nível descritivo para atingir um nível demonstrativo Com base em Freud estabeleceramse três estruturas subjetivas neurose psicose perversão referenciadas nas formas de resolução do complexo de Édipo e do complexo de castração Cada uma das estruturas é um modo de responder a esses complexos a neurose pelo recalque a psicose pela forclusão a perversão pela recusa Cada uma condiciona a formação dos sintomas na neurose há retorno do recalcado na psicose retorno no real na perversão colocação de um objeto no lugar da falta Os sintomas preferenciais típicos trazem a marca da estrutura como mostra a Tabela 1 a seguir Se há algo que a experiência psicanalítica ensina é que existem estruturas com sintomas típicos ou preferenciais que são sólidas não se modificam não passam de uma para a outra Elas têm organização e lógicas próprias determinadas segundo Lacan pela presença ou ausência da metáfora paterna Em uma perspectiva estrutural a clínica é categorial descontinuísta não admite transições ou neurose ou psicose ou perversão É o que caracteriza a primeira clínica de Lacan diferente de sua segunda clínica Comparada à proliferação das categorias diagnósticas psiquiátricas de que são prova o acréscimo nos CIDs e DSMs1 de mais e mais categorias a clínica estrutural é bem econômica tripartindo o campo clínico LOCALIZAÇÃO SUBJETIVA Partamos de um excerto clínico recolhido em uma apresentação de pacientes no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas Unicamp JF Como vai P Um pouco melhor JF Melhor do quê P Do TOC JF O que é TOC P Transtorno obsessivocompulsivo JF O que é isso P Sinto nojo de todos Se o senhor pegar na minha mão vou ficar doente JF Talvez P Então como é que a gente faz JF Não sei cada um tem um jeito de evitar isso Qual é o seu Quanto ao saber clínico o analista adota uma posição de douta ignorância como exemplificado no fragmento da apresentação de pacientes exposto anteriormente É alguém que sabe das coisas mas que voluntariamente apaga seu saber para dar lugar ao novo que ocorrerá Para além do sintoma típico está à espera do sintoma singular daquele sujeito É necessário introduzir o malentendido presente em toda a conversa na medida em que o significante é produtor de significações O que você quer dizer com isso Essa interrogação dimensiona o não saber e mostra ao paciente que não o entendemos e que ele mesmo não se entende Diferente da relação médicopaciente que busca a compreensão a relação analítica se baseia na incompreensão no malentendido Existem estruturas com lógicas próprias e sintomas típicos mas o que decorre de uma mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido LACAN 19732003 p 554 É o fato de o sujeito dizêlo e o modo como o faz que servem para o diagnóstico psicanalítico No diagnóstico psiquiátrico busca se uma objetividade baseada na presença ou ausência de determinados sinais e sintomas que podem ser listados conforme os manuais de classificação diagnóstica como o CID10 e o DSMIV Na psicanálise o que está em causa é o sujeito É possível fazer um diagnóstico baseado não na objetividade mas no sujeito ou na objetividade do sujeito MILLER 1987a1997 p 231 O sintoma freudiano só existe a partir do discurso do paciente dentro do dispositivo A base da clínica psicanalítica é a clínica psiquiátrica mas antes de tudo uma autoclínica O sintoma analítico só existe na medida em que é trazido e falado Não é apenas um fato mas um dito e interessa para um psicanalista a posição que o sujeito adota em relação ao seu sintoma ao seu dito Mas não basta passar da dimensão do fato para a do dito Um segundo passo essencial é questionar a posição daquele que fala quanto aos seus próprios ditos e a partir daí localizar seu dizer Tratase de partir dos enunciados para se chegar ao sujeito da enunciação lugar em que está aquele que enuncia diante do enunciado Diferente da lógica em que o que interessa no enunciado é se é verdadeiro ou falso na análise interessam as modalizações do dito que indicam a posição que o sujeito assume perante ele Não há frase discurso conversa que não traga a marca da posição do sujeito Localizar o sujeito consiste em fazer aparecer a caixa vazia em que se inscrevem as variações de sua posição subjetiva Na linguagem lacaniana sujeito não corresponde à pessoa ao indivíduo Ele não pertence ao registro dos dados é uma descontinuidade nos dados Não existe na objetividade mas em sua própria perda O sujeito é essa caixa vazia em que se inscrevem as modalizações e que encarna sua própria ignorância A modalidade fundamental que deve surgir através de todas as variações é a seguinte eu não sei o que digo O lugar da enunciação é o próprio lugar do inconsciente MILLER 1987b1997 p 23046 Antes de um acordo ideal entre o dito e o dizer tratase na análise de encontrar e praticar uma maneira de dizer que leve em conta a diferença entre o dito e o dizer e a possibilidade de mudar de posição O analista separando enunciado e enunciação reformulando a demanda introduzindo o mal entendido guia o sujeito para o encontro do inconsciente e o questionamento de seu desejo INTRODUÇÃO AO INCONSCIENTE E À TRANSFERÊNCIA A introdução do inconsciente é uma introdução à faltaaser o sujeito é essa faltaaser não tem substância Não existindo nesse nível é responsabilidade do analista produzilo em um lugar que lhe seja apropriado MILLER 1987b1997 p 253 Na psicanálise o sujeito é constituído no nível ético FORBES 2010 As entrevistas preliminares não são apenas uma investigação para localizar o sujeito mas servem também para uma mudança de posição A retificação subjetiva é a passagem do fato de o sujeito queixarse dos outros para se queixar de si mesmo O ato analítico consiste em implicar o sujeito em seu queixume em seu próprio motivo de queixarse posto que por sua posição o sujeito sempre é responsável É uma questão ética o que você tem a ver com a desordem de que se queixa A clínica analítica é uma clínica sob transferência CST um saber determinado de ponta a ponta por suas condições de elaboração isto é pela estrutura da experiência analítica A entrada em análise em geral é um encontro com o real e conota invariavelmente o golpe sofrido na segurança do sujeito em sua matriz de significação O semsentido que aparece para o sujeito tem como consequência chamar um saber suposto A instituição do analista como Sujeito Suposto Saber recobre de imediato a destituição subjetiva dada pelo non sense do sintoma O analista ocupa esse lugar sem se confundir com aquele que efetivamente sabe que é a posição do médico O sintoma analítico exige sua implantação na relação com o analista O sintoma é dirigido ao analista e na medida em que o complementa com o objetivo de restituirlhe o sentido ele faz parte do sintoma O matema da transferência formalizado por Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967 LACAN 19672003 estabelece que um significante do analisante se conecta a um significante qualquer do analista pondo em marcha o saber inconsciente como se vê na Figura 1 O primeiro momento da experiência analítica se traduz por uma reorganização a partir da inclusão do analista MILLER 19811997 p 121 A partir dessa localização o sujeito aceita a associação livre falar sem censura abandonar a posição de mestre de senhor de si mesmo Há histerização do discurso e o início de análise MILLER 1985 p 510 É o modo de entrada clássico Verificamse na contemporaneidade outras formas não mais pela via do saber como foi desenvolvido por Jorge Forbes 2010 a partir da segunda clínica de Lacan No tratamento buscase a realização de um sujeito que ao contrário de uma exigência de domínio do eu constituise no buraco aberto na experiência pela referência do ser falante ao Outro compreendido como vínculo da fala O tratamento não tem como objetivo preencher essa falha mas expôla para que o sujeito possa encontrar uma nova relação com o seu desejo e seu gozo Embora as estruturas típicas e suas características sejam levadas em conta seguindo a orientação de Lacan interessa mais o modo como cada paciente se refere a elas No diagnóstico o que está em causa é o sujeito Em suma para realizar o diagnóstico em psicanálise o mais importante é a posição do analista caracterizada pelos seguintes traços a douta ignorância o apagamento voluntário do saber para dar lugar à singularidade do paciente a espera do novo do singular em vez da utilização de chaves de interpretação préfabricadas e o malentendido utilizado para não deixar que o paciente se aliene a qualquer diagnóstico que seja Referências bibliográficas AMP A transformação do sintoma na análise In Como terminam as análises Textos reunidos pela Associação Mundial de Psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 p 12631 DOR Joel Estrutura e perversões Porto Alegre Artes Médicas 1991 FORBES Jorge Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 Inconsciente e responsabilidade Tese de doutorado em Psicologia Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro 2010 FREUD Sigmund 18931895 Estudos sobre a histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v II Rio de Janeiro Imago 1974 LACAN Jacques 1966 O lugar da psicanálise na medicina In Opção Lacaniana São Paulo n 32 p 814 2001 1973 Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 5506 Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 24864 MILLER JacquesAlain 1981 Psicanálise e psiquiatria In Lacan elucidado palestras no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 12137 Conferencia a los estudiantes de psicología Buenos Aires Manantial 1985 1987a Diagnóstico e localização subjetiva In Lacan elucidado palestras no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 Introdução ao inconsciente 1987b In Lacan elucidado palestras no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 248 67 Reflexões sobre a envoltura formal do sintoma el quehacer del psicoanalista Buenos Aires Manantial 1989 Freud Lacan y el psicoanálisis Conferencias porteñas Tomo 1 Buenos Aires Paidós 2009 p 17388 1 CID10 Classificação Internacional das Doenças DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders PREDIÇÕES INSTRUÍDAS COMO O ANALISTA LACANIANO TRAÇA O PROGNÓSTICO ARIEL BOGOCHVOL INTRODUÇÃO Na medicina os termos diagnóstico e prognóstico estão intimamente ligados configurando duas faces de uma mesma moeda uma virada para o presente outra para o futuro Prognóstico deriva do grego πρoγνωσtikóν em nosso alfabeto prognostikós cujo significado é saber antes presciência e designa o conhecimento ou juízo antecipado acerca do curso ou resultado de uma doença É uma predição baseada no diagnóstico nas possibilidades terapêuticas e no estado do doente Uma antecipação feita pelo médico de como uma doença deverá evoluir em um doente específico Fazendo um juízo acerca da evolução de uma doença em um doente o médico situase em um duplo registro simultaneamente universal e singular No plano universal faz uso do saber clínico acumulado e do estado atual de conhecimento de sua disciplina acerca de uma doença específica No plano singular faz uso de um saber acerca de seu paciente específico Enunciando o prognóstico conjuga os dois planos aplicando seu saber sobre a doença em um doente É o seu savoir faire como clínico um saberfazer com a doença e com o doente O saber a respeito da doença é baseado na observação de numerosos casos na experiência clínica acumulada pela medicina nos conhecimentos de anatomia patológica fisiopatologia ciências biológicas É um saber universal científico partilhado pelos médicos acerca do universal da doença daquilo que a caracteriza como tal e que permite nomeála como uma entidade nosológica singular As doençastranstornosdistúrbios têm uma história natural causas específicas um modo de aparecer de se manifestar de evoluir de permanecer ou se resolver Tomemos por exemplo a tuberculose Sabese que ela é causada por infecção pelo Mycobacterium tuberculosis que se dissemina através das secreções expelidas pelas pessoas afetadas quando tossem e espirram Pessoas de contato próximo têm alto risco de se infectar A forma pulmonar é a mais frequente Dentre seus sintomas estão tossenbspcom secreçãonbspfebre mais comumente ao entardecernbspsuores noturnos falta de apetite emagrecimento cansaço fácil e dores musculares Dificuldade na respiração eliminação de sangue e acúmulo de pus na pleura pulmonar são característicos em casos mais graves Pode alastrarse pornbspvia sanguínea a diversas partes do organismo afetando laringenbspossos articulaçõesnbsppele gânglios sistema linfático intestinos rins enbspsistema nervoso na forma chamada de tuberculose miliar Sabese que as doenças têm uma evolução típica mas não evoluem da mesma forma em todos os casos Há doenças e há doentes A tuberculose incidindo em uma pessoa desnutrida pode matála incidindo em uma pessoa nutrida pode produzir uma cicatriz sorológica Uma mesma doença pode se manifestar de formas diferentes de acordo com as condições clínicas individuais Podem existir evoluções singulares caso a caso O ideal da medicina de descrever classificar explicar prever e tratar as doenças é partilhado pela psiquiatria no tocante às doenças mentais Sua execução no entanto é muito mais problemática Além da dificuldade de definição de doença mental termo substituído nas classificações contemporâneas por distúrbio mental transtorno mental menos comprometedores faltam à psiquiatria as evidências anatomopatológicas e fisiopatológicas da medicina geral Seu terreno é mais incerto e movediço suas bases menos sólidas Isso se reflete nas classificações modificadas continuamente nos debates diagnósticos infindáveis nas diferentes leituras do fato psicopatológico nas variadas propostas de tratamento nas teorias conflitantes A noção de prognóstico alude não somente à história natural de uma doença mas às chances da intervenção médica que a modifica pois a medicina desnaturaliza o curso natural Não se trata apenas de saber como uma doença vai evoluir em si mesma mas como vai evoluir sob tratamento A pergunta a respeito do prognóstico é em última análise uma pergunta acerca da terapêutica quais são as possibilidades de tratamento Quais as chances do tratamento Vai curar Impedir complicações Mudar o estado atual PROGNÓSTICO NA PSICANÁLISE Diante de uma demanda de análise interessa ao analista estabelecer o diagnóstico assunto que foi discutido em outro capítulo Esclarecemos suas etapas referências o modo como o analista lacaniano realiza a tríplice operação de avaliação clínica localização subjetiva e introdução ao inconsciente E o prognóstico Ao fazer o diagnóstico o analista implícita ou explicitamente enuncia um juízo sobre o prognóstico Se o termo diagnóstico é utilizado amplamente na psicanálise o termo prognóstico utilizado pelo criador da psicanálise ou por seus seguidores é de uso bem mais discreto nos vocabulários e manuais atuais FORBES 1990 Evidentemente saber se a psicanálise pode ser aplicada em um caso determinado e se ela pode ter êxito no tratamento de uma determinada condição clínica é um tema que ocupou Freud e seus seguidores Tratase portanto de um assunto que interessa aos psicanalistas contemporâneos A noção de prognóstico está implícita em uma série de outras noções Quando se discutem as indicações de análise a questão do prognóstico está implícita quais as chances de a psicanálise modificar de alguma forma aquela condição clínica Quando se discutem as resistências à psicanálise a questão do prognóstico está implícita qual a possibilidade de uma análise chegar ao término ao seu fim Quando se discutem os critérios de cura a questão do prognóstico está implícita O prognóstico envolve vários níveis de predições Referese tanto à condição clínica em si mesma como evolui uma histeria Uma fobia Uma paranoia quanto à condição clínica daquele sujeito como vai evoluir sua histeria Sua fobia Sua paranoia quanto às condições de analisabilidade esse sujeito é analisável Vale a pena empreender uma análise quanto às possibilidades de cura sua condição é modificável pela psicanálise Fenichel 1966 em seu livro Teoría psicoanalítica de las neurosis afirma A dificuldade de uma análise está em razão direta em geral da profundidade da regressão patógena Portanto aplicando os conhecimentos analíticos sobre a profundidade dos pontos decisivos de fixação dos diferentes quadros estes podem ser classificados de acordo com sua acessibilidade à análise na seguinte ordem 1Histerias o prognóstico para a análise é absolutamente favorável 2 Neuroses obsessivas e neuroses de conversão prégenital em função da regressão prégenital são de resultado mais duvidoso 3Depressões neuróticas em razão do elemento oral a análise é mais difícil do que na situação anterior 4Perturbações de caráter estas são sempre de aproximação mais difícil do que as neuroses sintomáticas em função da ausência de um eu razoável que se contraponha ao não razoável da neurose Incluem perturbações de caráter de diversas gravidades e de diferentes níveis de regressão 5Perversões adições e neuroses impulsivas comparáveis a perturbações graves de caráter com o fator complicador de que o sintoma nestes casos é sentido como prazeroso 6 Psicoses casos maníacodepressivos esquizofrenia grandes dificuldades em função do fato de serem neuroses narcísicas FENICHEL 1966 p 638 39 Fenichel adverte que tal classificação é de caráter geral e certas complicações podem tornar a análise de um histérico mais difícil do que a de um esquizofrênico É necessário então ponderar outras circunstâncias ao se fazer o prognóstico a relação dinâmica geral entre as resistências e o desejo de restabelecimento os benefícios secundários o grau de flexibilidade de uma pessoa Várias listas foram baseadas em um conceito derivado da Psicologia do Ego a força do ego Para alguns analistas a força do ego era o que realmente condicionava a possibilidade da psicanálise Na falta de um ego suficientemente forte para não ser submergido pela angústia e pelas pulsões suficientemente forte para se acomodar à realidade comum a psicanálise é impossível MILLER 1999 p 52 Que o critério de entrada força do ego fosse o mesmo que da saída força do ego não parecia produzir maiores embaraços entre esses analistas Para Glover 1958 apud Miller 1999 em um artigo publicado no British Journal of Psychiatry a psicanálise seria indicada nos casos de histeria puros ou mistos quer dizer com elementos obsessivos e também nas patologias que apresentam problemas sexuais sociais ou conjugais quando eles equivalem a estados neuróticos Seria contraindicada nas psicoses puras nos tipos de caráter psicótico ou nas psicopatias severas Entre estes dois grupos situavam os casos moderadamente acessíveis ao tratamento as neuroses obsessivas mais ou menos organizadas as perversões sexuais antes dos 40 anos o alcoolismo e a toxicomania de base neurótica MILLER 1999 p 523 É uma classificação sólida baseada no escalonamento da patologia no eixo do desenvolvimento em que os estádios freudianos são dispostos cronologicamente Os sintomas são baseados em um ponto de fixação situado precisamente de uma forma cronológica Eles devem conter a marca desse ponto de fixação Existem três grupos de prognósticos concebidos para orientar o clínico Por outro lado como afirma o próprio Glover as indicações de psicanálise não deveriam ser determinadas exclusivamente pelo prognóstico A noção de prognóstico em psicanálise leva em conta o tipo clínico a estrutura a singularidade de sua apresentação em um sujeito determinado as condições de aplicação da psicanálise em casos semelhantes àquele e naquele em particular Envolve um saber do tipo universal e um saber do tipo singular e não é indiferente às concepções que o analista tem de sua prática da tarefa psicanalisante das finalidades da análise e das condições para o seu exercício DEMANDA DE ANÁLISE O enquadramento médico da psicanálise foi contestado pelos próprios psicanalistas Uma vez que a passagem pela análise se tornou uma obrigação na formação dos analistas introduziuse uma preocupação didática que transcendia a dimensão exclusivamente terapêutica Ao mesmo tempo com sua difusão a psicanálise se encontrou investida socialmente como uma prática da verdade e mesmo talvez como a mais eminente prática contemporânea do que Michel Foucault chamava de souci de soi A psicanálise viveu uma extensão que a levou muito longe do registro da indicação terapêutica Desde então o sentido do que se chamava de tratamento mudou MILLER 1999 p 523 Nos anos 1950 Lacan substituiu a palavra tratamento por experiência psicanalítica De tratamento que pode ser indicado ou contraindicado segundo a avaliação feita por um outro o sábio o médico o expert passouse à experiência vital existencial que pode ser desejada ou não pelo sujeito uma verdadeira aventura subjetiva O que aparece em primeiro plano não é a indicação e sim a demanda que um sujeito não se diz mais paciente apresenta a um psicanalista e a autenticidade a verificar do desejo que habita essa demanda O fato de o analista recusar uma psicanálise ao sujeito que a demanda não tem mais em hipótese alguma a significação de contraindicação A demanda é com efeito sustentada por um direito ao sentido que é uma das características da contemporaneidade O psicanalista é convocado por esse direito e se presta a usos muito diferentes dos originais Na atualidade tratase menos de antecipar se uma determinada condição clínica é acessível à análise do que de saber se o encontro com o analista será útil ou não fará bem ou mal O psicanalista é um objeto muito versátil multiuso multifuncional com várias utilidades Aqui ele desvela as identificações ideais cujas exigências assolam o sujeito Ali onde o Eu é fraco ele recolhe dos ditos do sujeito o que consolidar como uma organização viável Se o sentido é bloqueado ele o articula fluidifica introduz uma dialética Se o sentido escorre sem se deter em nenhuma significação substancial ele arruma pontos de parada pontos de basta que darão ao sujeito uma armadura de suporte MILLER 1999 p 54 O psicanalista sabe ser o objeto Sabe nada querer para o bem do outro Sabe colocarse na relação analítica sem preconceitos acerca do bom uso que possa ser feito dele Desse modo ele vê o registro das contraindicações reduziremse drasticamente Essa contraindicação passa a ser decidida caso a caso A dissolução do antigo quadro das indicações e contraindicações parece realizada Na atualidade podese dizer que não há contraindicações a priori para o encontro com um psicanalista É a consequência radical do direito ao sentido do direito a ser sujeito do sentido Esse encontro tem com frequência um caráter experimental Qual sentido esse sujeito pode extrair de seu sintoma Ao extraí lo surgirá algo do gozo Surgirá algo da satisfação inconsciente que encontra em seu sintoma É necessária apenas uma condição que haja sintoma analítico e que haja sofrimento no sintoma que ele se apresente como desprazer Isso basta para implicar a transferência e colocar em marcha a experiência MILLER 1999 p 55 Quanto à noção de prognóstico o analista lacaniano deve adotar a mesma posição que tem diante da noção de diagnóstico a douta ignorância Deve fazer uso para avaliar as chances de sua intervenção prescindindo dela No desenrolar de uma análise tratase de saber como uma doença vai evoluir não em si mesma mas sob as condições específicas da transferência com aquele analista específico Assim a indicação e a contraindicação da psicanálise no limite resolvemse caso a caso Referências bibliográficas FENICHEL Otto Teoría psicoanalítica de las neurosis Buenos Aires Paidós 1966 FORBES Jorge A eficácia da psicanálise Capítulos de psicanálise n 16 In Biblioteca Freudiana Brasileira coletânea São Paulo BFP 1990 GLOVER Edward Technique de la psychanalyse Paris PUF 1958 MILLER JacquesAlain As contraindicações ao tratamento psicanalítico In Opção Lacaniana São Paulo n 25 p 5255 1999 A SESSÃO E SEU PREÇO A ANÁLISE LACANIANA CUSTA SEMPRE CARO ELZA MENDONÇA DE MACEDO Introdução O objetivo deste texto é argumentar que o pagamento da sessão é intrínseco à análise e não algo a ser tratado à parte Assim sendo a seguinte interrogação direcionará este capítulo os princípios estabelecidos por Freud quanto ao pagamento da análise são os que nos norteiam hoje Desde o início Freud considerou o pagamento da sessão um ponto capital a ser tratado em uma análise Em vários de seus textos aparece o tema do dinheiro e do pagamento Constitui fato conhecido que o valor do tratamento não se realça aos olhos do paciente se forem pedidos honorários muito baixos O psicanalista deve se colocar na posição do cirurgião que é franco e caro por ter à sua disposição métodos de tratamento que podem ser úteis FREUD 1913 p 1734 Na prática o valor cobrado considera a possibilidade de cada um e a disponibilidade do analista Se for o caso ele encaminha para um colega Além do valor comumente dado aos honorários Freud observa igualmente o dinheiro como objeto pulsional e vê envolvidos nele poderosos fatores sexuais Por isso o analista deve tratar dessas questões relativas ao dinheiro e à vida sexual com franqueza e sem hipocrisia FREUD 1913 p 173 O que significa corresponder dinheiro a um objeto pulsional A pulsão é um conceito limítrofe entre o psíquico e o corpo e referese como afirmam Roudinesco e Plon 1998 citando Freud a um representante psíquico das excitações provenientes do corpo e que chegam ao psiquismo p 630 Ela é irreprimível e gera satisfação Lacan 1964 considera que não é pela maturação que se passa de uma pulsão a outra da oral à anal mas pela demanda do Outro como ele assim o designa O sujeito se constitui pelos efeitos do significante em seu corpo A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente ROUDINESCO amp PLON 1998 p 167 O objeto que Lacan chamou objeto a é contornado pela representação da cadeia significante Esse objeto não se refere a nenhum objeto concreto é representável e é da ordem de um vazio É no que algo no sic aparelho do corpo é estruturado da mesma maneira é em razão da unidade topológica das hiâncias em jogo que a pulsão tem seu papel no funcionamento do inconsciente op cit p 188 A pulsão portanto presentifica a sexualidade no inconsciente Com base na clínica considerando o circuito pulsional Freud 1917 deuse conta da equivalência simbólica fezes pênis bebê e dinheiro nos intercâmbios de uma pessoa com outra estabelecendo esta série Nos produtos do inconsciente os conceitos de fezes dinheiro dádiva bebê e pênis mal se distinguem um do outro e são facilmente intercambiáveis op cit p 160 O dinheiro é um objeto pulsional que segundo Freud faz parte do circuito anal É o caso por exemplo do avarento que retém não só o dinheiro mas as fezes e fica enfezado A mesma expressão observase no caso do obsessivo obcecado pelo controle Freud 1918 em O homem dos lobos comenta como os elementos mencionados fezes dinheiro dádiva bebê e pênis formam uma unidade um conceito inconsciente a saber o conceito de um pequeno que se separa do corpo de alguém p 107 Freud volta a esse tema afirmando que o bebê é considerado como lumf cocô algo que se separa do corpo passando pelos intestinos A criança oferece as fezes o que para ela é uma parte de seu corpo como presente a quem ela ama especialmente à mãe Daí que o interesse pelas fezes passa ao interesse pela dádiva e depois pelo dinheiro O mercador de Veneza é um exemplo de mediação simbólica entre dinheiro e corpo Bassânio falido quer ir a Belmonte onde vive Pórcia com quem quer se casar e pede um empréstimo a Antonio Como a fortuna deste está investida em navios mercantes recorre ao agiota Shylock penhorando uma libra de sua carne Fico nesse excerto da história para exemplificar que o dinheiro vale a carne É a mediação simbólica do corpo Se não tiver dinheiro paga com a carne com o sangue TRATAMENTOS GRATUITOS Freud na leitura de seu tempo recomenda que não sejam oferecidos tratamentos gratuitos pois segundo ele a gratuidade aumenta as resistências do neurótico de modo que nas moças ocorre a tentação própria da relação transferencial e nos moços a rebeldia contra o sentimento de gratidão Para ilustrar relata o sonho de uma moça que conseguira continuar o tratamento apesar da opinião contrária de sua família e dos especialistas Sonhou que seus familiares a haviam proibido de continuar a me consultar Lembrouse então de uma promessa que eu lhe fizera de que se necessário eu continuaria o tratamento sem pagamento A isso respondi Não posso fazer nenhuma concessão em assuntos de dinheiro FREUD 1900 Freud comenta que nunca lhe prometeu atendêla gratuitamente mas que o irmão da paciente pensava que ele o faria O psicanalista conclui que o objetivo desse sonho era dar razão a seu irmão E mais que essa mesma ideia de não ter que pagar pelo que queria dominou toda a vida da paciente e era o motivo de sua doença FREUD 1900 p 168 Que desserviço Freud estaria prestando caso tivesse prometido atendêla gratuitamente Interessado na tradução precisa de In Geldsachen kann ich keine Rücksicht üben Pierre Martin 1984 solicitou a Lacan que lhe indicasse a palavra exata Lacan lhe responde em carta de 18 de junho de 1974 Em questões de dinheiro não posso fazer concessões Em questões de dinheiro eu sou intratável Dans les affaires dargent je suis intraitable MARTIN 1984 p 197 É assim que Lacan acompanha a radicalidade da frase de Freud Tal posição é confirmada por Pierre Rey 1990 em seu livro Uma temporada com Lacan Até os 30 anos ele era um jogador compulsivo de cassino fóbico acostumado a morar em hotéis de luxo e frequentar festas requintadas ficou então atolado em dívidas proibido de entrar em cassinos Para ele o dinheiro tinha uma função bem peculiar Eu não aguentava a fratura entre o que eu era e o que parecia ser REY 1990 p 92 Lacan estabelece um custo alto da sessão que Rey não poderia pagar O psicanalista propõe que escreva um livro e consiga dinheiro para pagar a análise Ele escreve O grego livro que o faz ganhar muito dinheiro Em vez de submeter meus desejos a meus meios decidi pagar o preço criar os meios para meus desejos Ele conta o quanto Lacan era radical na questão do pagamento Eu era movido pelo desejo de lhe pagar Quando Pierre Rey dizia não tenho dinheiro a exaltação furiosa de Lacan era para ele um eletrochoque p 82 Com a análise pude sentir a felicidade de ser vulnerável p 124 Antes tinha um ar de belle indiférence De fato em uma análise quando o paciente aborda a questão do dinheiro o analista não deve ouvir isso como se fosse uma relação comercial e sim entendêla como algo a ser tratado semelhante a uma formação do inconsciente como ato falho esquecimento sonho e sintoma A colocação do pagamento já é o inconsciente trabalhando Penso que o princípio que muda da época de Freud para a contemporaneidade é quanto à hegemonia da dimensão simbólica naquela época para a do registro do Real na psicanálise lacaniana tal como mostra o relato de Pierre Rey DA CLÍNICA DO SIGNIFICANTE PARA A CLÍNICA DO REAL Em termos de primeira clínica de Lacan o gesto do pagamento instaura um corte de um outro ao Outro do imaginário ao simbólico Em uma análise não se trata de um caixa comercial do dia a dia mas do balcão do Outro Para Forbes 2009a o que a pessoa quer comprar nesse balcão do Outro é um maior saber sobre si mesma Ela vai para uma análise querendo se conhecer melhor Supondo que o analista tenha esse saber ela paga um valor X que corresponde ao que ela quer receber quanto a seu conhecimento Contudo não é isso que vai ocorrer numa análise Ela vai pagar um valor X e não vai receber isso o conhecerse melhor Não porque o analista não queira dar mas não vai receber isso porque esse nome não existe Essa é uma temática que Lacan coloca no decorrer de sua obra e em seu último escrito de 17 de maio de 1976 notase a sua desistência em encontrar qualquer tipo de verdade fato que o leva a falar em verdade mentirosa LACAN 1976 Assim a pessoa vai descobrir que está pagando por uma coisa que é da ordem do impossível Mas o fato de não existir não quer dizer que seja sem importância Ela quer encontrar um nome para isso e se o analista não torna possível não lhe atribui um nome a pessoa entende que é porque ela está em dívida em falta Entra aí o elemento culpa levando a uma fantasia de que se resolver a culpa pagar a dívida o Outro vai reconhecêla Ela tenta se aliviar de uma culpa que é um elemento de expectativa de que se tem um nome Por que culpa Se eu não tenho um nome eu fiz alguma coisa para perdêlo Por isso eu tenho culpa Assim se o analisante não pagar a análise o analista o está deixando no registro eterno da culpa É interessante que na língua alemã se usa a mesma palavra Schuld para dívida e para culpa Assim a palavra Schulden corresponde a dívidas e a palavra Schuld a culpa Há que se considerar que a questão do pagamento extrapola muitas vezes o dinheiro O fundamental a se pagar é o comprometimento com o preço da análise e sobretudo o responsabilizarse por ela mesma O caso de Lanzer chamado por Freud 1909 de Homem dos Ratos é paradigmático da neurose obsessiva Nele analisase o tema da dívida da culpa e do dinheiro Dois destaques do caso podem ser significativos a esse respeito No primeiro Lanzer se refere a um capitão cruel que lhe conta a história de um suplício oriental em que um rato preso nas nádegas de um prisioneiro penetra em seu ânus No segundo ele menciona que perdeu seus óculos em um exercício militar tendo encomendado outros a seu oculista que os enviaria por correio Depois de dois dias o mesmo capitão lhe entrega os óculos e lhe informa que ele deveria pagar as despesas postais a um funcionário também militar Ele tem então um comportamento delirante em relação ao pagamento dessa dívida expresso pela dificuldade de pagar misturando o rato daquela história com o referido pagamento O rato revestiuse da significação de dinheiro O paciente fez a conexão Ratten ratos com raten prestações Na análise relata Freud Lanzer costumava contar assim o dinheiro Tantos florins tantos ratos Freud também associa sentimentos de ódio de Lanzer em relação ao pai que o castigou quando criança pela prática da masturbação daí advindo sentimentos de culpa POR QUE SE PAGA UMA ANÁLISE Muitas pessoas acham que uma análise não serve para nada porque a comparam com as práticas sociais de custobenefício A pessoa tem de pagar por uma análise e é por um nada que ela está pagando Não podemos designar o que a pessoa obtém em uma análise e é por isso que aprioristicamente ela tem de ser paga Todo o objetivo é exatamente saber por que está pagando O ato de pagar por algo cujo valor não entra nas leis do mercado financeiro comum faz com que a pessoa explique pelo que está pagando Ou seja o valor vem antes valorizase o nada e depois tem de se concretizar O que antes era nada depois se torna consistente Essa passagem envolve a responsabilidade campo em que estamos na segunda clínica de Lacan ENCONTRO COM O REAL Para possibilitar a passagem ao registro da responsabilidade é importante que o analista considere que não se negocia uma análise que se ela for barateada a realidade pode se sobrepor ao real A psicanálise não pode ser amaciada amansada O analista não poupa o analisante do encontro com o real Não coloca emplastos no real O valor cobrado numa análise é uma intervenção do analista é o próprio manejo analítico é o que possibilita que o símbolo alcance o real No nível do simbólico trocase isso por aquilo enquanto no registro do Real trocase algo por nada nada na significação Assim pagase pelo Real Ou seja o sujeito é chamado para além do valor simbólico do dinheiro para um lugar inabitado Chamado para outra cena Mesmo que não haja pagamento ele está lá O analista é responsável pelo tratamento e é ele quem decide pelo ato arriscado da incisão a ser feita Não tem de ficar numa posição de generosidade de fazer o bem fazer a boa pessoa pois essas são formas de engessar a clínica e do analista se acovardar perante o Real da experiência É fácil cair nos engodos prêtàporter do sofrimento por parte do analisante e da compaixão por parte do analista Lacan 1973 em Televisão diz O analista como o santo não faz caridade Faz descaridade Vai permitir ao sujeito do inconsciente tomálo como causa de seu desejo p 518 Essa é a posição marcada do analista de não ser cúmplice nem solidário com a dor FORBES 1999 No decorrer de uma análise o pagamento não é a paz nenhuma paz O que então pagou no final de um tratamento o gesto repetitivo do pagamento MARTIN 1984 p 196 Entendo que no fragmento que se segue Lacan acentua a importância do pagamento para que haja análise Se o psicanalisante faz o psicanalista ainda assim não há nada acrescentado senão a fatura Para que ela seja devida é preciso que nos assegurem que há psicanalista LACAN 1969 p 375 Forbes faz uma analogia com a arte Um quadro só passa a ser um quadro no momento em que alguém o compra A arte só é válida quando é vendida quando outra pessoa pode encontrar satisfação naquele local onde aquele um se satisfez particularmente FORBES 1991 p 54 Forbes retomou esse tema no encerramento do encontro Sábados no IPLA em 19 de setembro de 2009 dizendo que um artista que não vende nenhum quadro não é artista O curioso é quando você faz algo que te ultrapassa o outro vê nisso alguma coisa que o ultrapassa também razão pela qual ele compra uma obra de arte Entendo nessa citação que a pessoa ao ter tal quadro se dá conta de que ela dá um valor específico a uma satisfação dela Do lado do artista às vezes interessa mais ter a exposição de seu trabalho do que o vender No processo de análise vale considerar que cada sessão é uma análise inteira já que é um encontro com o Real e nesse sentido é interessante que o pagamento se dê a cada sessão mas sempre considerando a singularidade do caso Pagar a cada sessão permite que o analisante se depare com o Real É um gesto que se repete Para Lacan 1964 p 55 nenhuma práxis mais do que a análise é orientada para aquilo que no coração da experiência é o núcleo do Real O Real não se ausenta Ele está sempre lá Ele é a falha da realidade O analista também não se ausenta sua presença põe em evidência o desejo e a singularidade da pessoa Indica que o desejo pode ser sustentado e possibilita a invenção FORBES 2005 A presença do analista é portanto uma manifestação do inconsciente daí o pagamento da sessão ser uma questão intrínseca à análise FELICIDADE Pagase numa análise por uma qualidade de vida ou por uma vida qualificada A primeira tem a ver com o bom para todos a felicidade prêtàporter é moralista Dizer vida qualificada foge à generalização de qualquer tipo é a própria pessoa que tem que definir uma qualidade para a sua vida Tratase da singularidade de uma vida qualificada evitar as soluções genéricas os sentimentos prêtàporter Na psicanálise a responsabilidade está do lado do paciente motivo de dizermos que o psicanalista implica a pessoa no seu estar bem ou mal FORBES 2011 p 21 A vida qualificada tem a ver com ética felicidade e singularidade e com o que se é É com esta o compromisso de uma análise Nas palavras de Jorge Forbes em entrevista felicidade que se dá fora da possibilidade de compreensão de representação que a civilização oferece BOGOCHVOL 2008 p 87 Recentemente a Fundação Getulio Vargas FGV de São Paulo iniciou um projeto de pesquisa a respeito do índice de Felicidade Interna Bruta FIB Partiuse do que se observa no Butão região do Himalaia que considera que o contentamento da população é mais importante que o desempenho da produção industrial A FGV já possui dados que indicam que a riqueza econômica não é o principal fator de felicidade da população SCRIVANO 2012 Quando em 1909 Freud proferiu cinco conferências na Universidade de Clark cochichou com os colegas que o acompanhavam Eles não sabem que estou trazendo a peste Há os que consideram que os americanos pasteurizaram a psicanálise que não teria tido o efeito viral previsto por Freud Mas não é o que pensa a socióloga Eva Illouz 2011 que considera que graças à influência da psicanálise vivese uma cultura que valoriza fortemente as emoções Illouz escolhe 1909 quando Freud fez as cinco conferências citadas como ano que marcou a transformação da cultura afetiva norteamericana Destaca a influência na economia e no meio empresarial em que os homens eram pensados como máquinas e as empresas como um sistema impessoal Com Freud passaram a dar mais atenção aos sentimentos dos trabalhadores considerando que a satisfação do empregado tem efeito na economia CONSIDERAÇÕES FINAIS Para concluir gostaria de finalizar este texto a respeito do pagamento na psicanálise formulando em forma de flashes o que pode ser a meu ver aprendido ao longo desta elaboração Foi discutido que O dinheiro esteja lá ou não tem um lugar Seu lugar é no Real Não se poupa o analisante da questão do dinheiro Quando se negocia com a psicanálise está se recuando diante do Real A psicanálise amansada é da ordem da terapêutica Por isso a psicanálise é sem concessão Apelase ao sujeito responsável responsável por seu sofrimento ético Trabalhamos com uma clínica não do pacto mas do impacto FORBES 1991 No momento em que oferecemos um tratamento gratuito que tenhamos claros os motivos No momento em que a demanda está do lado do analista o paciente falta É preciso manter viva a demanda por parte do analisante Uma análise leva do nome à responsabilidade Qualidade de vida é para todos Vida qualificada tem a ver com ética felicidade singularidade e desejo A felicidade se dá fora da possibilidade de compreensão Referências bibliográficas BOGOCHVOL Ariel Felicidade ciência Entrevista com Mayana Zatz e Jorge Forbes In Felicidade e sintoma Ensaios para uma psicanálise no século XXI Rio de Janeiro EBP Salvador Corrupio 2008 p 8395 FORBES Jorge O que é a psicanálise Psyché Quatro abordagens em psicoterapia São Paulo Oboré 1991 p 4572 Da palavra ao gesto do analista Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 A presença do analista 2005 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrmovimentoanaliticopresencado analistahtml Acesso em 14 de maio de 2013 Comunicação pessoal 5 de setembro de 2009a Começar realizar e encerrar uma análise In Encontro Sábados no IPLA 2009 Conferência de encerramento 19 de setembro de 2009b Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Tese de doutorado em Ciências São Paulo Faculdade de Medicina da USP Programa de Neurologia 2011 FREUD Sigmund 1900 A interpretação do sonhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IV Rio de Janeiro Imago 1972 1909 Notas sobre um caso de neurose obsessiva In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v X Rio de Janeiro Imago 1969 1913 Sobre o início do tratamento In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1969 1917 As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 1976 1918 História de uma neurose infantil In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 1976 ILLOUZ Eva O amor nos tempos do capitalismo Rio de Janeiro Jorge Zahar 2011 LACAN Jacques 1964 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise In O seminário Livro 11 Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 1969 O ato analítico In Outros escritos São Paulo Jorge Zahar 2003 p 3719 1973 Televisão In Outros escritos São Paulo Jorge Zahar 2003 p 50843 1976 Prefácio à edição inglesa do seminário 11 In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 5679 MARTIN Pierre Argent et psychanalyse Paris Navarin 1984 REY Pierre Uma temporada com Lacan Rio de Janeiro Rocco 1990 ROUDINESCO Elisabeth PLON Michel Dicionário de psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 SCRIVANO Roberta Índice vai medir felicidade do brasileiro O Estado de S Paulo Economia Negócios B1 23 de março de 2012 SENTADO DEITADO SEMPRE ÀS VEZES COMO SE ESCOLHE O ANDAMENTO DAS SESSÕES DOROTHEE RÜDIGER INTRODUÇÃO A arte de receber e colocar o paciente em análise de incluílo no chamado setting analítico é uma das questões mais intrigantes para quem inicia sua práxis psicanalítica Felizmente Freud nos presenteia com uma metáfora a do nobre jogo de xadrez FREUD 1913 p 63 Como no jogo de xadrez na psicanálise a abertura e é claro o final são fundamentais Existem regras e procedimentos a seguir no início do jogo que ao longo de seu desenvolvimento dependem da criatividade dos jogadores Assim como no jogo de xadrez o psicanalista cria um cenário Nesse cenário o paciente produz movido pela angústia e falando livremente sem censura o acesso à outra cena como Freud chama o inconsciente Enquanto Freud usa a metáfora do jogo de xadrez para apontar para as possibilidades ilimitadas de criação de cenas durante seu andamento seus discípulos a entenderam como uma exigência para que se criassem verdadeiras normas a serem seguidas no estabelecimento do setting analítico Na prática como se configuram essas regras e procedimentos É esse assunto o objeto do presente capítulo que objetiva discutir os princípios norteadores das escolhas necessárias para o andamento das sessões UM CONTRATO QUE OBEDECE À LEI CIVIL A PROPOSTA DE UM MANUAL TÉCNICO Sigmund Freud inicia seu ensaio Para a introdução do tratamento escrito para dar pistas aos que quiserem iniciarse no ofício da psicanálise usando a metáfora de um jogo elegante que requer do iniciante algum estudo Freud ensina como colocar e distribuir as peças no tabuleiro e quais são as regras do jogo FREUD 1913 Descreve como recebe o paciente os cuidados das primeiras entrevistas o pagamento das sessões como estabelece a regra da associação livre e convida o paciente para deitarse no divã a frequência das sessões a transferência a resistência enfim explica em poucas páginas o que um jovem psicanalista precisa saber para iniciar uma clínica No entanto a metáfora do jogo de xadrez e de suas regras utilizada por Freud para exemplificar as dificuldades encontradas no início do tratamento psicanalítico levou seus discípulos a criarem normas técnicas para o exercício da psicanálise Assim o manual Fundamentos da técnica psicanalítica do psicanalista argentino RH Etchegoyen 1987 entende o setting como um contrato A respeito da finalidade desse contrato o autor diz O propósito do contrato é definir concretamente as bases do trabalho que vai ser realizado de modo que ambas as partes tenham uma ideia clara dos objetivos das expectativas e também das dificuldades a que o tratamento psicanalítico os compromete para evitar que depois durante o curso da terapia possam surgir ambiguidades erros ou malentendidos ETCHEGOYEN 1987 p 40 Examinando o Código Civil brasileiro podemos apreender que o contrato é um negócio jurídico que requer no mínimo duas partes uma que realiza uma proposta e a outra que a aceita Uma vez concluído o contrato geramse para as partes direitos e obrigações Assim normalmente o contrato implica uma troca do ut des dizse em latim toma lá dá cá em bom português Esse negócio jurídico bilateral é celebrado também no início do tratamento psicanalítico Vejamos o que diz o manual de Etchegoyen 1987 p 43 Enquanto regula o aspecto real da relação entre analisando e analista o contrato tem que ser necessariamente justo e racional igualitário e equitativo O contrato analítico prevê em outras palavras uso do divã e intercâmbio de tempo e dinheiro ie frequência e duração das sessões ritmo semanal e férias E o colega conclui em última instância não se diferencia substancialmente do contrato que alguém pode estabelecer quando vai fazer compras ou encarregar com alguma tarefa um operário ou profissional ETCHEGOYEN 1987 p 41 Clareza das normas igualdade troca harmonia contratual fazem parte dos manuais de direito civil No entanto como foi visto a metáfora do jogo de xadrez pode levar a outra compreensão do setting analítico como sendo um cenário onde ocorre um espetáculo NO CONSULTÓRIO DE FREUD O DIVÃ UM ESPETÁCULO À PARTE Sigmund Freud sabia como receber seus pacientes em um ambiente que denotava bem seu estilo As estantes envidraçadas estavam repletas de livros e cobertas de objetos as paredes eram forradas de instantâneos e daguerreótipos O famoso divã constituía por si só um espetáculo amontoado de almofadas com um tapete aos pés para o uso dos pacientes caso sentissem frio e coberto por um tapete persa um Shiraz GAY 1989 p 168 Não é de se estranhar portanto que o divã se tornou ícone da psicanálise Nele o paciente está sozinho com seus devaneios para falar livremente o que lhe passa pela cabeça Para Freud o divã faz parte do cenário da psicanálise o que permite remeter a outra metáfora que Freud evoca para dar plasticidade ao seu ensino der andere Schauplatz a outra cena Quando Freud em A interpretação dos sonhos chama o inconsciente de a outra cena dá uma pista para a importância do cenário no qual recebe seus pacientes É hora de transferir o paciente no divã quando ele sai do discurso banal e muda chega à outra cena velada pelo pano que se levanta quando começa a peça que revela feito em um palco o drama o romance familiar O pacto analítico estabelecese entre personagens que contracenam Durante as primeiras entrevistas o psicanalista cria possibilidades para levar o paciente para essa outra cena na qual a análise é possível Via de regra a cena psicanalítica se desenrola no consultório do psicanalista No entanto há casos que fogem à regra em que as sessões analíticas foram feitas fora desse ambiente Vejamos a seguir dois exemplos da clínica de Freud UMA ANÁLISE EM UM CARTÃO POSTAL Freud passa as férias na região do Hohen Tauern a 2000 metros nos Alpes austríacos quando uma moça de 18 anos que Freud chama de Katharina a sobrinha da dona da pousada chega para Freud e pergunta O senhor é um Doutor Em um primeiro momento Freud não está muito entusiasmado com a ideia de interromper as férias mas aceita tratar Katharina em um passeio nas montanhas O relato de Freud BREUER amp FREUD 1895 transmite sua sensibilidade no trato da paciente Katharina fala com o dialeto da região e Freud adaptase à sua maneira de falar Senta aqui e me conta E Katharina fala Eu tenho falta de ar Nem sempre Mas às vezes algo me pega assim que penso que vou sufocar Katharina sente um aperto no peito dor de cabeça muita angústia Freud diagnostica uma neurose de angústia ou melhor uma histeria cujo conteúdo era angústia Freud só tem uma tarde para tratar a paciente e aposta A srta pensa alguma coisa sempre a mesma coisa ou vê algo quando tem os ataques Ela vê uma máscara Freud inicia sua análise Investiga a máscara e sua relação com o sufoco até que Katharina exclama Jesus Foi quando peguei o tio com minha prima Assim Katharina foi de cena em cena Aos poucos ela se lembra de que esse tio já a tinha molestado Só que na época ela não desconfiava da conotação sexual da investida do tio A jovem adoece depois de flagrar o tio e a prima quando portanto a conotação sexual das investidas do tio fica clara Nesse único encontro com Sigmund Freud Katharina curase das crises de angústia Anos mais tarde Freud revela em uma nota de rodapé ao relato do caso que Katharina na verdade foi assediada pelo próprio pai BREUER amp FREUD 1895 p 143 UMA ANÁLISE NO BALNEÁRIO DE LEIDEN GUSTAV MAHLER A habilidade de Sigmund Freud de escolher bem o cenário para uma análise era notável O compositor Gustav Mahler sofria de uma crise em seu casamento com Alma Mahler e procurou Freud no ano de 1910 para realizar um tratamento analítico Mahler encontrou razões para não se encontrar com Freud Por três vezes ele fez o que nós psicanalistas conhecemos muito bem marcou e desmarcou o encontro Eis que Freud toma a iniciativa Chama Mahler para um encontro na cidade holandesa de Leiden que em alemão significa sofrimento Tinha escolhido a dedo o cenário para tratar Gustav Mahler ainda que fosse por apenas algumas horas Gustav Mahler era casado com a filha do pintor Emil Schindler Alma A moça era bem mais nova que Mahler Depois de alguns anos de casamento o casal se desentendeu e Alma teve vários casos extraconjugais Mahler sofria não somente por causa de sua impotência mas também porque esses casos causavam fofocas ela muito bonita relacionavase com o jovem arquiteto Walter Gropius Na análise de Gustav Mahler Freud vai ao que entende ser a causa da impotência o nome da mãe de Mahler Engraçado que Alma não se chama Marie indaga Freud Então Mahler exclama Mas ela se chama Alma Maria Chamoa de Marie Claro que Mahler não queria fazer sexo com a alma da mãe Desvendada essa significação e elaboradas outras questões com Freud Mahler volta a ter uma vida sexual com a esposa até um ano depois quando ele morre JONES 1989 p 91 SIGMUND FREUD O ENCONTRO COM O ANALISTA Como os dois casos citados denotam o importante na psicanálise é o encontro com o analista Nesse encontro há solidariedade mas não há reciprocidade comunicação LACAN 19721973 p 30 e 34 Ao contrário há o enigma o equívoco a surpresa O que um diz não pode ser totalmente compreendido pelo outro Ça rate diz Lacan alguma coisa sempre escapa e tornase enigmática e surpreendente Mas quem diz que o encontro cheio de surpresas não seja feliz O encontro entre o analista e o analisando é uma boa hora uma bonne heure ou um bon heurt um bom golpe como afirma Lacan LACAN 19751976 O encontro deve ser marcante Por isso a cena ajuda Ela pode ser improvisada desde que haja esse encontro O que importa portanto é a transferência que não se cria pela assinatura de um contrato mas por algo enigmático algo relacionado ao inconsciente de quem procura um analista Freud quando trata do andamento das sessões em seu ensaio Relembrar repetir elaborar compara a transferência com um parque de diversões no qual o paciente pode durante as sessões divertirse movimentarse O paciente terá a chance de substituir sua neurose ordinária por uma neurose de transferência da qual pode ser curado pelo trabalho terapêutico A transferência cria assim um reino intermediário entre a doença e a vida pelo qual se realiza a transição entre a primeira e a última FREUD 1914 p 94 A transferência em outras palavras é a via de acesso ao inconsciente Mas quantas sessões por semana devem ser realizadas para que o trabalho analítico possa produzir bons frutos Vamos voltar à clínica de Dr Freud FREQUENTAR O DIVÃ Freud marcava uma hora por sessão seis vezes por semana Até que em 1920 nos anos de crise pósguerra recebe em análise Abram Kardiner um médico norteamericano Freud não tinha horário Sua agenda estava lotada com pacientes Nenhum deles queria ceder seu lugar no divã do grande mestre Eis que Anna Freud boa de matemática sugere ao pai atender cada um dos pacientes em cinco e não em seis sessões por semana Dito e feito Freud mexe em sua agenda e Kardiner faz sua análise com Freud análise esta que anos depois foi publicada em livro KARDINER 1977 Hoje na maioria das clínicas psicanalíticas não somente lacanianas não se realizam mais de uma ou duas sessões analíticas por semana Levamse em consideração o tempo e os recursos que os pacientes têm à disposição para que a quantidade de sessões seja calculada Na clínica lacaniana o que orienta a frequência das sessões é a singularidade de cada paciente O encontro com o analista produz os impactos necessários para que o paciente mude de atitude diante da vida Em muitos casos uma sessão por semana pode causar os efeitos almejados Em outros são necessárias duas sessões por semana para causar efeitos no paciente Às vezes o impacto causado é tão grande que é necessário realizar uma sessão fora da série A frequência do divã depende de cada caso Há interrupções há férias isso porque o tempo do inconsciente foge da medida do calendário desde que haja transferência desde que haja o encontro com o analista SENTADO OU DEITADO O USO DO DIVÃ Embora Freud tenha preferido deitar seus pacientes no divã porque não queria que as minhas caras e bocas deem ao paciente material para a interpretação FREUD 1913 p 74 o analisando não é convidado para fazêlo logo na primeira sessão As primeiras entrevistas são importantes para saber se o paciente tem ou não condições de realizar uma análise ir à outra cena Além disso em alguns casos o uso do divã é contraindicado Em outros escolhese o cara a cara com o paciente por uma questão de tática de tratamento O uso do divã na escolha da cena é contraindicado para os pacientes que apresentam sinais de psicose Freud 1913 p 64 considera a psicose intratável Para Lacan há tratamento psicanalítico para pacientes com psicose No entanto os psicóticos não podem sofrer angústia E de fato a presença invisível do analista sentado atrás do divã produz angústia Isso não significa que para todos os outros pacientes o divã seja indicado Lacan 1964 no Seminário 11 quando trata da transferência descreve o analista no lugar do objeto a objetocausa do desejo Do que se trata Para Freud há vários objetos que nos causam prazer ainda na primeira infância mas que em um dado momento são perdidos os peitos maternos as fezes a voz o olhar Sofremos literalmente o desmame somos separados da mãe e temos de obedecer às normas da civilização O analista pode representar para o paciente o resgate de um desses objetos cuja falta marca o inconsciente do paciente Tomemos como exemplo o olhar É possível o manejo analítico com o olhar quando há indícios que é este o objeto que o paciente procura Jacques Lacan percebe a importância do olhar como via de acesso ao inconsciente Talvez exista um meio de perceber esse olhar como objeto no campo da visão ao qual tão evidentemente pertence isto é em sua relação com o inconsciente e assim capaz de nos permitir pela primeira vez na história situar a relação do desejo1 Quando o analista percebe o que o olhar causa ao paciente esse olhar pode tornarse um importante elemento no manejo clínico porque o paciente tem a chance de se deparar com seu desejo A PRESENÇA DO ANALISTA UM ENIGMA Com divã ou sem divã no consultório ou fora dele o encontro entre o analista e o paciente é um rencontre manqué um encontro falho LACAN 1964 p 78 Entre o analista e o paciente há alguma coisa enigmática sem reciprocidade Não é um vazio é algo que está no ar entre as linhas Essa coisa pertence ao inconsciente O analista representa essa coisa pode ser a voz pode ser o olhar ou outra coisa Por isso é importante a presença do analista na cena Apesar de Freud entender a psicanálise como ciência conhecia muito bem o enigmático do inconsciente Was will das Weib O que quer a mulher Resta então para Freud uma pergunta sem resposta O enigma da feminilidade é para Lacan fundamental para indicar a posição do analista diante do paciente Quando o analista se mantém enigmático ele é capaz de compor essa outra cena que é o inconsciente A arte do analista é justamente escutar para captar esse momento privilegiado quando o inconsciente do analisando se abre durante uma sessão quando pulsa como diz Lacan LACAN 1964 p 184 O analista está presente na vida do paciente mesmo em sonhos Lacan inclusive chegou a cobrar dos pacientes sua presença em sonhos como se fossem sessões Como se vê não há um contrato entre o psicanalista e o paciente que implica uma troca porque a conta não bate Analista e paciente são dois sujeitos com duas posições diferentes Há algo enigmático entre os dois Como foi visto Jacques Lacan chama esse algo de objeto a ou maisdegozar LACAN 19691970 p 177 O que Marx detecta como sendo a maisvalia na economia a produção de valores não previstos no contrato de troca entre o empresário e o operário Lacan localiza fora do discurso do ego No inconsciente algo se produz que não tem equivalente Se o paciente se apropriar desse algo ele pode inventar um futuro para si A presença do analista é por assim dizer um catalisador para que o paciente deixe de sofrer suas perdas e vá adiante Ao contrário do que possa rezar o contrato do setting a presença do analista é necessária como sendo uma das personagens que compõem a outra cena Sempre enigmática nada clara tão estranha quanto o próprio inconsciente é fundamental para o acesso a essa outra cena que permite não somente resgatar o passado mas inventar o futuro E POR FALAR EM FUTURO E por falar em futuro a psicanálise se reinventa a cada instante Uma das questões que intrigam os psicanalistas hoje é se há a possibilidade de atender os pacientes a distância por exemplo por telefone ou por Skype Para instigar o debate eis um breve relato de caso Um dos meus pacientes me procura com uma demanda Queria passar alguns anos na Europa e não se autorizava Depois de alguns meses de psicanálise finalmente foi procurar seu destino Eis que um dia exatamente na hora de sua sessão recebo uma chamada no Skype Era o paciente falando como se estivesse na sessão as mesmas questões as mesmas dúvidas as mesmas histórias de sempre Só que ele estava na Europa Faço minha marcação e desligo o Skype nesse momento ou seja no corte da sessão A partir dos efeitos obtidos por meio dessa manobra o paciente muda de postura Hoje está inventando uma vida bemsucedida na Europa Essa única sessão por Skype não seria tão eficiente se não tivesse existido o trabalho analítico anterior realizado antes no consultório PARA CONCLUIR UM ÚLTIMO MOVIMENTO Sigmund Freud foi feliz quando comparou o início de uma análise com a abertura no nobre jogo de xadrez Deixou claro que há certos procedimentos estratégicos a seguir porque eles facilitam a psicanálise que no seu desenrolar irá acompanhar o movimento do inconsciente do paciente Freud lembra que o analista é um personagem FORBES 1999 p 53 que facilita o acesso à outra cena ao inconsciente Ora essa cena necessita de um cenário Embora haja situações que requerem uma atuação do analista fora do ambiente do consultório o cenário faz parte do setting analítico Como escolher o andamento das sessões sentado deitado às vezes ou sempre Um analista lacaniano não segue normas jurídicas mas sim uma ética a de ser catalisador do acesso ao inconsciente Se o paciente vai fazer a livre associação deitado no divã ou sustentando sua fala diante do olhar do analista depende da singularidade do caso Essa singularidade do paciente de sua análise da cena que produz a partir da sua narrativa vai indicar ao analista quantas sessões serão necessárias por semana ou até por dia Nesse ponto não há matemática Citando Sigmund Freud acerca da metáfora do xadrez os movimentos do inconsciente tomam seu rumo com uma pluralidade inesgotável de possibilidades de jogo FREUD 1913 p 63 Referências bibliográficas BREUER Josef FREUD Sigmund 1895 Studien über Hysterie Frankfurt am Main Fischer 2007 ETCHEGOYEN R Horacio Fundamentos da técnica psicanalítica Trad Cícero Fernandes Porto Alegre Artes Médicas 1987 FORBES Jorge Da palavra ao gesto do analista Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 FREUD Sigmund 1913 Zur Einleitung der Behandlung weitere Ratschläge zur Technik der Psychoanalyse I In Zur Dynamik der Übertragung behandlungstechnische Schriften Frankfurt am Main Fischer 2006 1914 Erinnern wiederholen durcharbeiten weitere Ratschläge zur Technik der Psychoanalyse II In Zur Dynamik der Übertragung behandlungstechnische Schriften Frankfurt am Main Fischer 2006 GAY Peter Freud uma vida para o nosso tempo Trad Denise Bottman São Paulo Companhia das Letras 1989 JONES Ernest A vida e a obra de Sigmund Freud v 2 A maturidade 19011919 Rio de Janeiro Imago 1989 KARDINER Abram 1977 My analysis with Freud reminiscences Apud GAY Peter Freud uma vida para o nosso tempo Trad Denise Bottman São Paulo Companhia das Letras 1989 p 422 nota de rodapé LACAN Jacques 1964 Le séminaire Livre XI Fondements de la psychanalyse Disponível em httpstaferlafreefrS11S11htm Acesso em 31 de janeiro de 2013 196970 Le séminaire Livre XVII Lenvers de la psychanalyse Paris Seuil 1991 197273 Le séminaire Livre XX Encore Paris Seuil 1975 197576 Le séminaire Livre XXIII Le sinthome Paris Seuil 2005 1 Peutêtre y auraitil moyen de repérer dans le champ de la vision même auquel il appartient si évidemment ce regard comme objet objet dans la fonction dont il sagit à savoir dans ce rapport à linconscient pour autant quil nous permet pour la première fois dans lhistoire de situer la relation du désir LACAN 1964 p 121 O ANALISTA LACANIANO E O RELATO DO QUE SE PASSA EM SUA CLÍNICA COMO CONTAR UM CASO CLAUDIA RIOLFI INTRODUÇÃO o conceito da exposição é idêntico ao progresso do sujeito isto é à realidade da cura LACAN 1951 p 90 Ao relatar um caso o analista lacaniano investe tempo e energia para transformar o rumor das palavras de seu paciente em uma narrativa Aposta que o ato de preparar um relato clínico já é uma interpretação analítica e como tal tem efeitos na condução da análise do paciente cujo caso é relatado no estado atual da análise do psicanalista e na própria elaboração da psicanálise Esses efeitos se devem ao fato de que o caso clínico não preexiste à sua escrita Ele é efeito do trabalho do analista que para interpretar deve exercer uma série de ações causar o laço social a partir do qual o paciente tem vontade de falar obter por meio das perguntas exatas o material necessário para construir o caso clínico escolher um ponto a partir de onde organizar a narrativa e ainda cortar as informações que excedem o fio condutor para poder produzir uma história compreensível Assim ao escrever o analista elide o que pode servir de cortina de fumaça para a depreensão do que é singular no caso que se propõe a narrar Ignora o que torna opaco o programa narrativo principal da vida de seu paciente Separando o joio do trigo constrói o caso clínico inexistente antes de sua operação de escrita Ao o fazer será que é guiado pela teoria ou prescinde dela Para Miller HENRY JOLIBOIS amp MILLER 1997 nem uma coisa nem outra Em sua avaliação circunscrever um caso demanda a adoção de uma posição dupla por parte do analista Por um lado quando o sujeito chega o analista deve à moda dos nominalistas suspender todos os preconceitos e classificações prévias para acolher o frescor inaugural do paciente Por outro à moda dos estruturalistas deve crer na existência de espécies objetiváveis Em suas palavras Na clínica há um momento nominalista é aquele no qual acolhemos o paciente na sua singularidade sem lhe comparar a ninguém como inclassificável por excelência Mas há um segundo momento o momento estruturalista no qual nós nos referimos aos tipos de sintomas e à existência da estrutura HENRY JOLIBOIS amp MILLER 1997 p 268 Como essa posição chegou a ser construída Na direção de responder essa questão o presente capítulo cujo objetivo mais amplo é discutir o papel da escrita do caso clínico na invenção da psicanálise está dividido em duas partes Na primeira mais breve fornecemos alguns elementos de ordem geral que fundamentam a apreensão da relação que Freud mantinha com o ato de escrever e seus efeitos sobre a invenção da psicanálise Na segunda por meio do exame da elevação da história banal da adolescente problemática Ida Bauer ao inesquecível Caso Dora ainda hoje paradigmático para o estudo da histeria recuperamos alguns elementos que nos permitem vislumbrar o estatuto dado por Sigmund Freud às histórias narradas por seus pacientes e às operações necessárias para a sua transmudação em caso clínico Esclarecemos preliminarmente que não se trata aqui de um estudo histórico ou exegético mas sim de aprender com o grande mestre como um analista mesmo os contemporâneos praticantes da clínica do Real deve escrever para tocar o seu leitor e colaborar para a manutenção da vida da psicanálise SIGMUND FREUD E A INVENÇÃO DA ESCRITA DA PSICANÁLISE Freud de novo pode se interrogar o leitor Por que em pleno esforço de construir a clínica do Real na qual não estamos preocupados com o que se explica valeria a pena retornar ao fundador Esclarecemos preliminarmente portanto que não buscamos explicações Se aqui retornamos a Freud essa escolha se deve ao fato de concordarmos com a avaliação de Forbes 2010 para quem além de nos explicar Freud deu dicas para um mundo menos chato mais especificamente em dois de seus trabalhos publicados em 1908 A novela familiar do neurótico Romances familiares e O poeta e o fantasiar Escritores criativos Como essas dicas nos foram dadas Se consultarmos os inúmeros textos que se dedicam ao exame do modo como Freud relatava seus casos clínicos poderemos verificar que um julgamento é praticamente consensual o de que o autor oscilando entre um modelo literário e um modelo científico inaugurou uma escrita até então inexistente Teria ela o caráter de uma transmudação dos fatos narrados pelo paciente para a escrita Não parece ser o caso Se examinarmos por exemplo a introdução feita por Freud 1905 antes da escrita de seu célebre Caso Dora veremos que o autor declara explicitamente a impossibilidade de escrever um caso sem uma participação no mínimo bastante ativa por parte do analista Ele afirma Na verdade começo o tratamento solicitando que me seja narrada toda a biografia do paciente e a história de sua doença mas ainda assim as informações que recebo nunca bastam para me orientar p 14 Prosseguindo em sua argumentação confessa inclusive que para poder concretizar a escrita de um caso o analista deve contar com a incapacidade dos doentes desfazerem uma exposição ordenada de sua biografia no que ela coincide com a história de sua doença FREUD 1905 p 145 Um pequeno excerto dedicado ao esclarecimento do estatuto dado pelo psicanalista aos fatos empíricos relatados pelos pacientes pode nos auxiliar a compreender que para o pioneiro uma psicanálise não se faz de reescrita mas sim da ressignificação dos fatos narrados que ao serem relatados são reconstruídos Leiase O fato de que o sujeito revive rememora os eventos formadores da sua existência não é tão importante O que conta é o que ele disso reconstrói O de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história FREUD 1934 p 212 Este aspecto relativo à participação do analista na reconstrução da história que por meio da análise pode ser reescrita é central no caso clínico que tomamos como exemplo neste capítulo Antes de prosseguirmos com a exposição cumpre pontuar que cerca de cinquenta anos após a formulação de Freud ele foi reconhecido por Lacan como se lê no que se segue o Caso Dora é exposto por Freud sob a forma de uma série de reviravoltas dialéticas durante as quais pouco a pouco Freud consegue revirar a lógica do que Dora dizia levandoa a perceber sua implicação nos males dos quais se queixava Não se trata aqui de um artifício de ordenamento tratase de uma escansão das estruturas onde se transmuda para o sujeito a verdade de sua própria posição enquanto sujeito LACAN 1951 p 90 Uma série de questões se coloca para o leitor A partir de que ponto o analista lê o caso Como gera suas reviravoltas dialéticas Como as registra na construção da narrativa sem as degradar para um artifício de ordenamento Como marca a posição do sujeito que é tomado em análise No que segue essas questões cruciais estão respondidas por meio de recortes do texto de Freud O QUE FREUD FAZ QUANDO CONTA UM CASO Por meio de exemplos mostraremos as principais operações realizadas por Sigmund Freud na direção de construir um caso clínico quais sejam pesquisá lo construir a narrativa respeitando seus aspectos estruturais canônicos explicitar os métodos empregados para obter a verossimilhança da narrativa e por fim argumentar de modo cientificamente válido Posto isso passemos ao detalhamento de como ele faz Freud pesquisa A posição de Sigmund Freud ao receber um caso clínico está longe de poder ser associada com a de alguém que diante de um novo caso clínico permanece em uma inércia esperançosa Ele observa inquire formula hipóteses e as testa O Quadro 1 na sequência nos traz um fragmento de cena por meio do qual se pode ver que o austríaco não estava só observando sua paciente naquele dia como costumava fazêlo Quadro 1 Observação direta do comportamento do paciente Ocorre que nesse dia ela trazia na cintura uma bolsinha portamoedas do formato que havia entrado em voga coisa que nunca fizera antes nem faria depois e enquanto falava estendida no divã pôsse a brincar com ela abriaa introduzia um dedo tornava a fechála etc Olheia por algum tempo e depois lhe expliquei o que vem a ser um ato sintomático Chamo de atos sintomáticos as funções que as pessoas executam como se costuma dizer de maneira automática e inconsciente sem reparar nelas como que brincando querendo negarlhes qualquer significação e se inquiridas explicandoas como indiferentes e casuais A observação mais cuidadosa porém mostra que tais ações das quais a consciência nada sabe ou nada quer saber expressam pensamentos e impulsos inconscientes sendo portanto valiosas e instrutivas enquanto manifestações permitidas do inconsciente FREUD 1905 1901 p 73 Vêse portanto que se é verdade que ordinariamente Freud se subtraia do olhar do paciente não é menos verdade que ele não se privava de utilizar o próprio olhar para por meio da observação direta dos detalhes introduzidos na sessão pelo paciente pudesse utilizálos seja para elaborar hipóteses seja para confirmar as hipóteses já formuladas O Quadro 2 por sua vez mostra que ao prosseguir o curso da sessão Freud costuma ter em vista o estado atual de sua pesquisa antes de formular as questões por meio das quais pode avançar em sua formulação Sem entrar nos detalhes clínicos que podem ser facilmente esclarecidos pelo leitor que se disponha a ler o caso na íntegra cumpre esclarecer que Freud não faz perguntas aleatoriamente ao contrário Quando ele por exemplo interroga Dora a respeito da data de seu sonho essa questão se deve ao seu julgamento prévio de que havia necessidade clínica de estabelecer a relação entre os acontecimentos empíricos e o material presente no sonho Desse modo vêse que as perguntas de Freud são sempre consequentes Freud narra Se tomarmos qualquer livro no qual se encontrem questões ligadas ao ensino da escrita p ex RIOLFI 2008 veremos que ao narrar Freud segue passo a passo o modelo da narrativa escolar do tipo mais clássico ensinado para crianças nas fases intermediárias de sua escolarização Em primeiro lugar como se lê no Quadro 3 o autor constrói a relevância do fato a ser narrado introduzindo a narrativa por meio de uma operação argumentativa que visa a persuadir o leitor que o investimento de tempo necessário para seguir a narrativa vale a pena Quadro 3 Explicitação dos motivos que levaram o narrador a contar a história O presente fragmento da história do tratamento de uma jovem histérica destinase a mostrar de que forma a interpretação dos sonhos se insere no trabalho de análise Ao mesmo tempo darmeá uma primeira oportunidade de trazer a público com extensão suficiente para evitar outros malentendidos parte de minhas concepções sobre os processos psíquicos e condições orgânicas da histeria FREUD 1905 1901 p13 Ao ler o fragmento transcrito no Quadro 3 o leitor não só se orienta com relação ao grande tema da narrativa a histeria e conhece o recorte escolhido processos psíquicos e condições orgânicas como também descobre antecipadamente qual será o ponto de fuga da narrativa a inserção da interpretação de sonhos no curso de uma análise De posse desses elementos pode optar por prosseguir ou não com a leitura Posto isso prossigamos pelo exame dos aspectos estruturais das narrativas escolares Lendose os casos escritos por Freud vêse que as marcações textuais que permitem a construção de personagens espaço e tempo se encontram claramente delimitadas Desse modo o psicanalista constrói um texto claro cuja progressão textual é acessível a todos os leitores inclusive aos não especialistas Iniciemos a exemplificação pelo cuidado com o qual a descrição do protagonista da narrativa o paciente é construída como se lê no Quadro 4 a seguir Se para preservar a identidade da paciente não são oferecidos detalhes que permitissem sua identificação p ex se era loira ou morena as substituições feitas por Freud bastam para que o leitor retenha o essencial a respeito do julgamento do escritor a protagonista era bonita e inteligente Os mesmos cuidados são tomados com relação aos personagens secundários como se lê no Quadro 5 na sequência O círculo familiar de nossa paciente de dezoito anos incluía além dela própria seus pais e um irmão um ano e meio mais velho que ela O pai era a pessoa dominante desse círculo tanto por sua inteligência e seus traços de caráter como pelas circunstâncias de sua vida que forneceram o suporte sobre o qual se erguiu a história infantil e patológica da paciente Na época em que aceitou a jovem em tratamento seu pai já beirava os cinquenta anos e era um homem de atividade e talento bastante incomuns um grande industrial com situação econômica muito cómoda FREUD 1905 1901 Protagonista e personagens secundários são ainda cuidadosamente remetidos ao espaço físico no qual os eventos ocorrem permitindo que como se lê no Quadro 6 o leitor possa localizar o cenário no qual o drama da neurose é construído Por fim como se lê no Quadro 7 Sigmund Freud é cuidadoso o suficiente na inclusão de marcas temporais explícitas ao longo da narrativa de forma que a partir de seu exame um estudioso p ex seu editor inglês James Strachey consiga reconstruir o caso cronologicamente O cuidado com o fornecimento de todos os elementos estruturais necessários por parte de Freud permite ao leitor acompanhar a construção do enredo no caso utilizandonos aqui de uma passagem marcada por Jorge Forbes caracterizado por ser uma tragédia que Freud tenta elevar para um drama clínico FORBES 1989 Assim Freud inicia a exposição da história de Dora por uma espécie de exposição que permite contrastar o curso normal dos acontecimentos com a situação conflitiva que leva o protagonista a procurar auxílio junto a terceiros Nessa direção é importante notar o cuidado de Freud com o leitor ao precisar inclusive o momento da quebra nele gerado por meio do encontro do protagonista com um evento inusitado que para ele à moda das narrativas épicas por exemplo introduziu um conflito em sua vida Isso está exemplificado no Quadro 9 a seguir Dora comunicoume uma experiência anterior com o Sr K mais bem talhada ainda para operar como um trauma sexual Estava então com quatorze anos O Sr K combinara com ela e com sua mulher para que à tarde elas fossem encontrálo em sua loja comercial na praça principal de B para dali assistirem a um festival religioso Mas ele induziu sua mulher a ficar em casa despachou os empregados e estava sozinho quando a moça entrou na loja Ao se aproximar a hora da prosição pediu à moça que o aguardasse na porta que dava para a escada que levava ao andar superior enquanto ele abaixava as portas corridas externas Em seguida voltou e em vez de sair pela porta aberta estreitou subitamente a moça contra si e depois lhe um beijo nos lábios Era justamente a situação que numa mocinha virgem de quatorze anos despertaria uma nítida sensação de excitação sexual Mas Dora sentiu naquele momento uma violenta repugnância livrouse do homem e passou correndo por ele em direção à escada daí alcançando a porta da rua FREUD 1905 1901 p 256 O caráter pitoresco do evento narrado no Quadro 9 permitenos neste momento voltar nossa atenção para o cuidado de Freud com a construção da verossimilhança da narrativa O que permite ao psicanalista julgar a sinceridade das palavras que lhe são dirigidas E ainda o que garante que ele mesmo seja um narrador confiável Estamos então prontos para discutir como Freud constrói as condições de verossimilhança de sua narrativa Freud explicita as condições para a obtenção da verossimilhança Freud é muito cuidadoso na construção da imagem de si próprio como um interlocutor digno de confiança No Quadro 10 a seguir podemos ver que longe de tentar convencer o leitor de que o psicanalista é uma espécie de super homem o austríaco ao colocar o estado atual de sua análise em jogo levanos a avaliar que estamos em face de uma pessoa criteriosa e conhecedora dos próprios impasses e limitações Esqueci a precaução de estar atento disse Freud legandonos um conselho clínico para levar para a vida toda Tal conselho inclusive incide sobre a própria posição do analista diante do material escutado ao longo de uma análise O Quadro 11 na sequência mostra seu cuidado de não se limitar ao conteúdo do que é escutado Quando ficava com o ânimo mais exasperado impunhase a ela a concepção de ter sido entregue ao Sr K como prêmio pela tolerância dele para com as relações entre sua mulher e o pai de Dora e por trás da ternura desta pelo pai podiase pressentir sua fúria por ser usada dessa maneira Tinha razão em achar que seu pai não queria esclarecer o comportamento do Sr K em relação a ela para não ser molestado em seu próprio relacionamento com a Sra K Mas Dora fizera precisamente a mesma coisa Tornarase cúmplice desse relacionamento e repudiara todos os sinais que pudessem mostrar sua verdadeira natureza FREUD 1905 1901 p 32 Freud é muito claro para além do que alguém sabe que diz devese escutar a posição de onde o conteúdo é dito uma coisa é a narrativa de Dora outra as identificações por meio das quais sustenta sua posição sexuada Freud argumenta de modo cientificamente válido Freud não se limita a narrar Entremeando a narrativa ele realiza operações argumentativas para validar seu texto junto à comunidade interpretativa Destacaremos duas delas O Quadro 12 a seguir mostra sua preocupação em explicitar a tese geral que fundamenta o texto funcionando como um ponto de fuga para a narrativa Preocupado com seu leitor ele orienta a direção da leitura A sexualidade é a chave ele explicita Não se limita a este cuidado O Quadro 13 que fecha nossa exploração mostra o cuidado de formalizar uma regra geral passível de generalização Ela por sua vez funciona como um conselho clínico de caráter mais amplo prevenindo os erros por parte dos seus colegas Do caso clínico como uma fofoca banal Freud caminha portanto para a formulação da própria psicanálise CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma pergunta serviu de mote à redação deste capítulo como escrever de modo a sem perda de sentido dar a ver a esquisitice de um modo singular de obter satisfação Em sua resposta partimos da premissa de que o estilo do analista corresponde ao seu lugar de enunciação ou em outras palavras de que em psicanálise não se trata exatamente só de escrever mas de inventar um lugar singular que possa ser expresso a posteriori por meio da escrita Desse modo os variados textos redigidos por uma mesma pessoa poderão ser diversos criativos na medida em que o analista encontrou um lugar fixo imutável a partir de onde escrever Essa amarração singular não importa apenas para quem a conquista mas também para a existência da psicanálise que se vê construída por meio da escrita dos casos clínicos Quando o analista escreve a psicanálise ganha sua própria reinvenção gerada pela constante colocação à prova que a construção do caso clínico gera Para o analista escrever o caso vai muito além de um mero exercício de retórica aristotélica O exame da narrativa produzida por Freud permitiu concluir que além de cumprir plenamente com o quesito da persuasão transformando o leitor ele próprio se vê transformado O ato de escrever um caso clínico portanto tem efeito análogo ao da interpretação analítica O analista se vê interpretado por suas próprias palavras que uma vez depositadas no papel funcionam como alteridade Como ele pode ser capaz de fazer isso Tratase de por assim dizer ora se fazer de carta ora de envelope ora de carteiro muitas vezes de poeta Relatar um caso não é expor intimidades do paciente É se fazer cúmplice do analisando que busca depurar as marcas de sua vida para sobre seus sulcos inventar sua singularidade e fazêla passar ao mundo É o corpo a corpo é o feliz encontro é manter no mundo a ridícula e estúpida beleza das cartas de amor Para concluir vamos nos permitir fazer uma pequena brincadeira apresentar Uma dúzia de mandamentos para o analista que conta um caso Assim se você que acaba de ler este capítulo vai se dedicar à redação de um caso clínico tenha certeza de seguir não seguindo os seguintes passos 1 Após escolher um caso estude a composição dos casos clássicos semelhantes Pega mal tentar inventar a roda outra vez 2 Ao narrar esteja mais preocupado em fazer a psicanálise ressoar do que com a fidelidade a qualquer teoria prêtàporter Você quer partilhar com os pares o que descobriu em sua clínica não continuar mandando cartas de amor aos seus autores prediletos 3 Separe o que é fundo do que é saliente Um diamante pode ter o mesmo peso mas não tem o mesmo valor de um pedregulho 4 Desfolhe os modos cristalizados da vida genérica Se é para dizer algo que é verdade para todo e qualquer um para que dizer Todo mundo já sabe 5 Selecione o detalhe clínico que merece ser narrado Você quer dar a ver algo relevante da singularidade do gozo do paciente não enlouquecer o seu leitor com preciosidades enciclopédicas 6 Localize o que para além das capturas imaginárias e simbólicas fez marca no corpo Se a clínica do Real se funda na possibilidade que este tem de juntar o simbólico com o corpo por que mesmo você deixaria isso de fora 7 Tome notas do que é relevante para construir um caso Caso você anote tudo se arrisca a ter uma tendinite Caso não anote nada vai fritar na cama de tão angustiado 8 Opere sobre os significantes anotados esvaziandoos de sentido A ideia é que o seu leitor tome conhecimento do gozo do paciente não das fantasias e sintomas de seu analista 9 Dêse ao luxo de construir um ponto de vista Como o mundo é velho e a psicanálise tem mais de cem anos provavelmente alguém já falou algo a respeito do que você tem a dizer mas se este alguém não foi você é isso que o leitor precisa conhecer 10 Colha elementos para emoldurar o que você quer mostrar Sem um contraste o olho humano se perde no indiferenciado Sem um fluxo do que é o normal da vida da pessoa fica difícil mensurar sua crise 11 Ressignifique inventivamente o que foi escutado Se o inconsciente existe é verdade que não há pessoa alguma capaz de saber de antemão por que disse tudo o que disse Construa a sessão Faça sua parte 12 Redija o caso de modo a dar a ver um aspecto inusitado Não há porque gastar tempo e matar uma árvore se for para redigir o que todo mundo já sabia menos você Seja curioso Normalmente até o mais chato dos seres humanos tem um charme secreto que merece ser digno de atenção caso seja investigado Referências bibliográficas FORBES Jorge 1989 A dimensão trágica da experiência analítica In II Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 59 jul 1989 São Paulo Transcrição da conferência proferida no II Encontro Brasileiro do Campo Freudiano Disponível em httpwwwjorgeforbescombrartigosdimensaotragicaexperienciaanaliticahtml Acesso em 1o de março de 2012 O chato e o poeta Psique Ciência e Vida São Paulo n 58 outubro de 2010 FREUD Sigmund 1905 1901 Obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1972 p 13116 1908a Romances familiares In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IX Rio de Janeiro Imago 1969 1908b Escritores criativos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IX Rio de Janeiro Imago 1969 1934 Construções em análise In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1980 p 212 HENRY Fabienne JOLIBOIS Michel MILLER JacquesAlain orgs La conversation dArcachon Cas rares Les inclassables de la clinique Paris Agalma 1997 LACAN Jacques 1951 Intervenção sobre a transferência In Escritos Rio de Janeiro Perspectiva 1989 p 8799 RIOLFI Claudia Rosa et al Ensino de língua portuguesa São Paulo Thomson Learning 2008 STRACHEY James Nota do editor inglês Apud FREUD Sigmund Fragmento da análise de um caso de histeria In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1972 p 1718 O ANALISTA LACANIANO HOJE PALAVRAS EQUÍVOCAS E GESTOS MARCANTES JORGE FORBES INTRODUÇÃO Qual a finalidade de uma análise E como a conduzirá o psicanalista Neste capítulo trabalharei essas duas questões à vista de alguns momentos da história da psicanálise À primeira pergunta respondo imediatamente uma análise é conduzida para que a pessoa esteja pronta a todas as circunstâncias Atitude que exige dela suportar um não saber Posto isso passemos aos esclarecimentos No texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder Lacan 19581998 perguntavase o analista dirige ou não uma análise À época muitos clínicos estavam preocupados com a interferência que o trabalho analítico poderia ocasionar na vida de seus pacientes Criteriosamente Lacan traçou a diferença entre conduzir o tratamento e conduzir a pessoa Conduzir uma pessoa é deixa entender tarefa do padre Os gurus espirituais como Lacan costumava brincar trabalham no sentido do guia moral LACAN 19581998 p 592 e pretendem conduzir as almas para algum lugar Um médico também conduz pessoas Ele diz o que se deve fazer o remédio a tomar O paciente precisa se adequar à prescrição Já em uma análise conduzse o tratamento sem conduzir o analisando É mais trabalhoso Nada na clínica será posto no piloto automático O analista deve garantir incessantemente as condições do trabalho mas as angústias de um analisando não serão aplacadas por alguma técnica Serão trabalhadas por ele mesmo sob a pergunta que o poeta Carlos Drummond de Andrade 19421992 soube propor como a melhor fórmula clínica E agora José Enquanto se indaga ao analisando o e agora que ele precisará responder sem prescrição resta ao analista o problema da condução da clínica também na forma de um verso de Drummond para onde PRONTO A QUALQUER CIRCUNSTÂNCIA Ainda que a orientação lacaniana seja estandarte de uma luta pela crítica e pela qualidade da condução do tratamento no Brasil há mais de 30 anos e mesmo que Lacan já esteja na boca do povo os princípios operacionais da clínica não estão tão claros assim Há por exemplo faculdades de psicologia que explicam uma análise afirmando que ela serve para a pessoa saber mais a seu próprio respeito Isso em nada nos aproxima da prontidão para todas as circunstâncias Estar preparado para as circunstâncias não é ser erudito nem ter um saber universal a ponto de não ser surpreendido por mais nada Ao contrário é poder surpreenderse por tudo e não ficar paralisado diante da angústia da surpresa Em uma análise tratase então de mudar o referencial da pessoa Com ela a pessoa abre mão de carregar uma identidade sabida e explicar a própria vida a partir de uma determinada cena para estar independente de todas as identidades possíveis As identidades vêm do Outro Uma pessoa analisada percebe que não existe o Outro Consegue sair da mira da angústia sem esperar ser bem reconhecida sem precisar se desculpar por descumprir as expectativas que lhe pesavam em sua história A culpa afirmou Freud 18941987 é irmã do superego Não há qualquer ganho em permanecer preso às exigências de seu superego que produz um circuito mortal jamais resolvido pela negociação Toda vez que negociamos ele pede mais É preciso escapar ao eu me explico para ser aceito Em uma carta ao Presidente da República Lula FORBES 2003 fiz uma tradução livre do conselho do Ministro Disraeli à Rainha Vitória never explain never complain Nessa versão eu disse não se explique não se justifique p 38 Será possível levar a vida sem dar explicação nem justificativa e claro sem ser perverso A diferença está no ponto de apoio Quem vive sem o Outro sem dever a ele explicações ou justificativas precisa contar com um elemento singular que a pessoa encontra em si mesma que ganha corpo e sentido dependendo das circunstâncias Na perversão a saída é outra não há singularidade nem despojamento da identidade Ao contrário o perverso é sabido de si e de sua satisfação Para se resolver com o mundo ele cria um Outro próprio que jamais o culpa Na saída de uma análise a pessoa destituída do Outro que lhe ditava a direção a culpa e a desculpa agora precisará usar suas circunstâncias para se dar um sentido É impossível viver na ausência pura de sentido É necessário portanto que a pessoa encontre um elemento singular que a norteie para que sua vida tenha múltiplas significações Ela passa a escolher o sentido da sua vida mas já não poderá argumentar em defesa de sua escolha Essa discussão tem uma base em Friedrich Nietzsche 18882006 p 43 quando ele diz O que precisa ser demonstrado não tem grande valor Visão semelhante à de Giorgio Agamben que comentei no livro Inconsciente e responsabilidade FORBES 2012 p 90 É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos AGAMBEN 2007 p 24 Dois pensadores de épocas diferentes dizem algo do mesmo teor Tentam captar algo que está no ar Nesse sentido recordo Lacan 197519762007 dizer que uma análise se encaminha para o desabonamento do inconsciente o inconsciente a partir de então não servirá mais de desculpa para as quebras de expectativas Nenhum sentido virá do Outro A pessoa analisada abandona o jornal diário que lhe contava sua existência e passa a escrever um novo Em outro trabalho FORBES 2009 já afirmei que os quadros psicopatológicos são mentiras perante o Real são formas de escondêlo Na psicopatologia o que há de singular e inominável das pessoas fica encoberto por trás das frases comuns sou obsessivo sou histérica sou isso sou aquilo Enfim se o analista conduz uma análise ao despojamento das identidades será certamente também desfeita a identidade de doente do analisando e só assim então ele ficará livre dos sentidos e explicações comuns e pronto para encontrar seu sentido singular em suas circunstâncias HISTÓRIA COMO SE INICIAVA UMA ANÁLISE É interessante examinar como se fazia o pacto analítico antes da segunda clínica de Lacan Em livros de técnica de tratamento é possível encontrar descrições de um contrato na forma jurídica mais convencional Infelizmente há faculdades de psicologia que seguem explicando aos seus alunos como submeter o número de consultas o pagamento o regime de férias e o tempo da sessão às formas burocráticas Tudo isso a meu ver é incoerente O contrato analítico não é igual ao jurídico no qual uma pessoa sabe seus deveres e direitos Em uma análise o analisando não tem previsão do que irá lhe acontecer Ele pode até supor que ao menos o analista saiba o que vai acontecer em sua vida a partir da análise Contudo cuidado não é direito do analista achar que saiba Nesse viés um contrato analítico também não tem uma instância a se recorrer caso não seja cumprido Não há como o analisando cobrar seus direitos eu não recebi o número de interpretações contratadas nos cinquenta minutos de sessão você ficou muito em silêncio ou só fez uma interpretação Se você caro leitor está sorrindo neste momento saiba que há quem gostaria sim de gravar e examinar cada sessão Portanto o analista que fixa burocraticamente os termos da sua clínica permite que pensem que a análise seja um contrato qualquer Quem faz um pacto como outro qualquer e o chama de analítico submete a relação clínica a uma discussão de custobenefício Vende uma interpretação e coloca mais saber sobre a ignorância neurótica de uma pessoa efeito contrário ao que desejaríamos obter Por isso esse tipo de contrato foi abandonado pelos psicanalistas lacanianos há muitos anos Entendemos o contrato de outra forma Na década de 1950 passouse a usar a expressão retificação subjetiva formulada por Lacan 19581998 p 607 para indicar se alguém contratou ou não uma análise o que para um lacaniano implicava ter iniciado efetivo trabalho analítico Na fenomenologia clínica isso era visto quando a pessoa abandonava a conversa miúda em sessão deixava de lado o diálogo direto com o analista e encontrava uma outra cena na qual suas questões éticas de vida teriam critérios maiores de discussão e para as quais a opinião pessoal do analista já nem seria mais decisiva Para propor essa expressão Lacan baseouse na ideia de Freud 19001976 de que o inconsciente se abre em outra cena da clínica e que vêm dele os critérios maiores que se descobre A essa altura não é raro que o encontro com o analista gere um sonho no paciente A análise passa a ficar registrada na cena inconsciente do analisando À época estudavase muito por exemplo o diagnóstico diferencial entre neurose psicose e perversão Fazêlo era uma das atribuições do analista nas entrevistas preliminares de qualquer análise Tinhase muito cuidado para não agir diante da psicose como se fosse neurose para não arriscar desencadear uma crise psicótica e evitavase colocar um perverso em análise Não é meu objetivo abordar esses temas neste capítulo mas posso afirmar que são de uma clínica recente e que o diagnóstico ainda é uma técnica bastante aplicada na psicanálise embora secundária no paradigma que apresentarei adiante A CLÍNICA DO REAL E CONDUÇÃO DE UMA ANÁLISE HOJE A clínica do Real diverge da anterior Se antigamente se fazia uma análise em progressão a clínica do Real faz uma análise na repetição Atenção não me refiro à reprodução de um mesmo conteúdo mas sim à repetição da impossibilidade da significação Exemplifico com algo novo que encontramos na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo um analista recebe um paciente desencadeia uma análise e outro analista dá continuidade ao tratamento Depois de alguns encontros o paciente retorna ao primeiro entrevistador Esse modo de trabalho é esquisito e provavelmente muitos dirão que não poderia ser feito porque não haveria possibilidade de a transferência estabelecida com o primeiro analista ser continuada com outro e depois devolvida ao anterior Esperase que a pessoa fique fixada naquele par do primeiro encontro No entanto o que verificamos na Clínica de Psicanálise do Genoma Humano da USP é diferente Lá faço uma primeira entrevista com o paciente em presença da Dra Mayana Zatz Na conversa busco algo muito preciso tento incidir clinicamente sobre o que foi encontrado e encerro a reunião Na sequência encontro meus colegas que assistiam em circuito fechado ao atendimento clínico Discuto com eles e em 99 dos casos coincidimos na visão sobre o ponto a ser atingido pela ação clínica e se ele já foi alcançado ali ou não Então um colega me substitui na condução do tratamento analítico e revejo esse paciente a cada três meses Todos os procedimentos desse projeto estão descritos em uma das minhas teses de doutorado a tese em Ciências FORBES 2011 Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Nela discuto por que esse modo de trabalho funciona A meu ver ele só funciona se o mesmo ponto que serviu como bisturi na primeira sessão for repetidamente usado nos encontros sucessivos Isso porque 1 a segunda clínica de Lacan é a clínica do Real 2 ela privilegia o Real sobre o simbólico e o imaginário 3 o Real é como dizem Milton e Chico Buarque 1976 o que não tem nome e nem nunca terá Logo o trabalho analítico não precisa ficar identificado ao nome de um analista Um clínico pode encontrar os pontos de incidência do Real e outro continuar o trabalho Variamos o operador sem perda do efeito Se não estivéssemos trabalhando e estudando nessa orientação desde 2006 com uma casuística estabelecida e uma tese defendida eu não teria a tranquilidade de enunciar esse tipo de tratamento totalmente novo na psicanálise Mas o que será esse Real trabalhado na primeira entrevista que precisa continuar incisivo nas sessões posteriores Ele aparece quando a pessoa é retirada de sua referência habitual de um saber estabelecido simbólico e imaginário Aparece quando uma pessoa tem suas bases de vida balançadas e sentese tocada Nesse ponto por já encontrar uma maneira de navegar sem seus antigos mapas ela pode se perceber pronta a todas as circunstâncias Isso significa que caminhamos para fazer uma análise inteira logo em uma única sessão Depois a segunda é a tentativa de sustentar de novo uma análise inteira A terceira também e assim sucessivamente O analisando é sempre separado de seu saber estabelecido Só que ele entre uma sessão e outra cicatriza a separação que precisará ser refeita Não existe portanto progresso em direção a um melhor entendimento que ajude o analisando a se posicionar A clínica faz simplesmente a repetição do Real Para ilustrar vamos a três exemplos O primeiro é o caso de uma senhora com paralisia de cinturas escapular e pélvica Ela entra acompanhada pelo marido que a descreve como depressiva Pergunto à paciente se ela preferiria conversar sem a presença dele Inibida ela não parece saber o que dizer Respondo em seu lugar Ela quer sim Quando ele sai indago Então como está a senhora Ela diz Com um traste desses do meu lado como o senhor pode esperar que eu esteja Seria bom senso imaginar ali uma queixa relacionada à paralisia Ela entretanto surpreendeu em ter sofrimento maior diante da atitude de seu marido e ainda acrescentou O senhor não sabe como era o anterior a esse Estávamos em face de uma mulher que tinha o homem que quis ter e que agora sofria por considerálo um traste Pude dizer a ela que era a Rainha da Sucata porque colecionava trastes na vida e que deveria ser tratada da escolha repetitiva do amor nos trastes Nesse primeiro encontro distante das questões da paralisia investi atenção sobre suas escolhas amorosas O segundo exemplo é o de uma paciente com aproximadamente 60 anos de idade também com alteração genética neuromuscular Na primeira entrevista ela só chorou Eu não falei nada Ela acabou com os lenços de papel que havia trazido Ainda sem falar nada deilhe toalhas de papel daquelas de enxugar as mãos Quanto mais ela chorava mais eu lhe dava toalhas sempre em silêncio Finalmente ela disse Acho que tenho abordado a mim mesma de uma forma meio ruinzinha Falei É uma ideia Notem que não precisei falar nada para que a senhora mudasse de posição Nada foi dito por mim O que fiz foi agir de modo que literalmente sua queixa fosse soterrada pelas toalhas de papel O terceiro exemplo é o de um homem que foi anunciado a mim como um caso péssimo Já me referi a ele em trabalho precedente FORBES 2011 Com um avançado quadro de distrofia das cinturas ele era cocainômano alcoólatra não tomava banho há uma semana brigou com a família Morava sozinho em um apartamento no centro da cidade A mulher o tinha deixado três dias antes Eu me perguntava o que posso fazer com a psicanálise nesse caso de grave e geral sofrimento Havia uma dor mais incidente que qualquer sintoma sobre o qual pudéssemos falar Confesso que diante desse homem não tive coragem de fazer a típica pergunta de início de conversa como é que você vai Ele chegou com uma bengala e aparência coerente com a descrição que eu havia recebido Perguntou Doutor o senhor tem ideia do que seja morar sozinho e toda manhã pegar minha bengala olhar a porta entreaberta e não saber se ainda posso dar os passos da cama até o banheiro Eu me aproximei e respondi Não tenho a menor ideia A resposta serviu de incisão e revolveu de outra forma a vida dessa pessoa Depois de anos de tratamentos de tantos profissionais que tiveram várias ideias sobre sua vida oferecendo compaixão e ajuda ele pôde enfim encontrar alguém que não tinha a menor ideia porque reconheceu nele uma singularidade A primeira reação do analisando foi quase agressiva Passados alguns segundos ele emendou é verdade que o senhor não pode ter a menor ideia Então começou a contar o que só ele poderia Foi incrível sua mudança em seguida quando viu depositada em si a expectativa de um relato mais pessoal CONSIDERAÇÕES FINAIS A singularidade das pessoas o valor do gesto e a surpresa presentes nesses exemplos mostram que a clínica do Real possui um ponto de apoio indefinível porém bastante palpável É sobre ele que o analisando poderá sustentar uma posição subjetiva nova dispensando todas as identidades que já teve em sua vida Repito todas Nenhuma identidade préfabricada é boa o suficiente para ser imutável Todas são postas em questão Assim escapamos de fazer da vida uma tragédia clássica que tem final marcado Livramonos de um futuro condicionado pela identidade presente e passamos a conduzir uma existência sem o conhecimento da morte Assumimos que ela é sempre surpreendente e que não adianta passar a vida em uma trincheira Para caminhar a essa nova posição na clínica do Real desde as entrevistas preliminares nós nos pautamos em alguns princípios 1 não estabelecemos uma relação de custobenefício 2 os diagnósticos da psicopatologia são usados a serviço de uma clínica lacaniana e 3 é preciso detectar o ponto de clivagem real e mantêlo nas sessões seguintes até que o analisando desista de retomar seus velhos métodos e possa suportar ser uma metamorfose ambulante SEIXAS 19731993 Para que o analista consiga essa operação delicada é necessária uma curiosidade que só sua própria análise lhe dá sempre olhar o analisando apostando que ele tem algo muito importante a dizer algo único para além dos cômodos e habituais enganos das neuroses das perversões e das psicoses Na clínica é preciso que um analista atualize assim um interesse absoluto e que o analisando seja tocado por isso para preferir encontrar sempre novas respostas à vida criativas e responsáveis como valores da psicanálise Referências bibliográficas AGAMBEN Giorgio Profanações São Paulo Boitempo 2007 ANDRADE Carlos Drummond 1942 JoséIn Obra poética Rio de Janeiro Nova Aguilar 1992 FORBES Jorge Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 Não tenho a menor ideia In VIII Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise EBP O analista e os semblantes Florianópolis 3 e 4 de abril de 2009 Conferência disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosnaotenhoamenor ideiahtml Acesso em 20 de janeiro de 2014 Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Tese de doutorado em Ciências São Paulo Faculdade de Medicina da USP Programa de Neurologia 2011 Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXIBarueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1894 As neuropsicoses de defesa In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v III 2 ed Rio de Janeiro Imago 1987 p 5365 1900 A interpretação dos sonhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IV Rio de Janeiro Imago 1976 HOLLANDA Chico Buarque de Holanda NASCIMENTO Milton O que será A flor da Terra In Meus caros amigos Rio de Janeiro Phonogram p1976 1 disco sonoro Lado A faixa 1 LACAN Jacques 1958 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 591 652 197576 O seminário Livro 23 O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 NIETZSCHE Friedrich 1888 Crepúsculo dos ídolos São Paulo Companhia das Letras 2006 SEIXAS Raul 1973 Metamorfose ambulante In O baú do Raul Universal Music p1993 1 CD Faixa 6 PALAVRAS NADA MAIS DO QUE PALAVRAS O QUE O ANALISTA LACANIANO FAZ COM O QUE LHE DIZEM CLAUDIA RIOLFI INTRODUÇÃO Neste capítulo vamos ponderar a respeito das estratégias adotadas pelo analista lacaniano na condução de uma análise Para tanto partimos do pressuposto de que a clínica do significante pautada pela descrição e classificação estrutural dos sujeitos não funciona bem na contemporaneidade invadida por um lado pelo tsunami do politicamente correto e por outro pelas tentativas reacionárias de lidar com tudo que parece desviante da antiga norma Comecemos pelos últimos São aqueles que angustiados com as grandes mudanças sociais confundem o fim de um mundo aquele pautado na razão e na possibilidade de achar sentido para tudo com o fim do mundo Eles pensam que sem os efeitos normatizadores do Édipo as pessoas necessariamente não vão encontrar modos construtivos de satisfazer suas pulsões e se transformarão em Calígulas contemporâneos poderosos o suficiente para transformar o mundo globalizado em uma grande orgia Por esse motivo se agarram em conceitos empoeirados e em regras engessadas como se fossem as tábuas de salvação contra o primado da pulsão de morte FREUD 1920 Menos numerosa porém não menos nefasta está a turma do salvese quem puder ou seja quem parece viver pautado pela famosa lei da selva a partir da qual o primum vivere acaba dando o tom Surfando na onda do politicamente correto apressamse para alcunhar de anormais todos que dizem acho que isso não é normal Por esse motivo não encontram parâmetros para delimitar o que é patológico e acabam sem saber onde se apoiar para dirigir as análises Encalhados nas paradisíacas areias de uma compreensão bastante tendenciosa do significado da expressão prescindir o pai aqueles dentre nós que se recusam a recair em um moralismo arcaizante tendem a descambar para um cinismo apático Parecem concordar com tudo indiferenciadamente Por isso liberado das amarras de seu superego quem frequenta esses divãs costuma se tornar um pesadelo para os outros na convivência social Em nossa avaliação a clínica do Real é a única saída para construir uma terceira via Tratase de um poderoso recurso apto a fornecer aos colegas corajosos e comprometidos os instrumentos para encontrar formas de trabalho que levem uma pessoa a inventar sua singularidade sem ter de prescindir da gentileza para com os homens de sua geração e muito menos da responsabilidade com aqueles das gerações vindouras Quais são os principais instrumentos da clínica do Real Na direção de construir uma compreensão a esse respeito o presente capítulo está dividido em três partes Na primeira por meio da utilização de um fragmento de um conto de fadas mostramos o que costuma acontecer com quem com ou sem motivo concreto se vê afogado no sofrimento psíquico e por esse motivo procura uma análise A segunda de caráter um pouco mais teórico está construída em torno da noção de modo de gozo Na última por sua vez exemplificamos alguns manejos clínicos que podem ser utilizados para gerar uma alteração da relação de um sujeito com os modos de gozo que lhe geram mais sofrimento do que prazer O ENCONTRO COM O REAL LACANIANO E A QUEBRA DA UNIDADE DO IMAGINÁRIO CORPORAL Quando uma pessoa procura uma análise uma coisa é certa algum evento de sua vida teve valor de Real e como tal mandou a unidade do seu imaginário corporal para o espaço Normalmente esse encontro é descrito com frases do tipo eu não consigo mais ser quem eu era antes ou no mínimo eu não me reconheço mais Para dar um exemplo vamos recuperar um fragmento de um conto de fadas originário da tradição oral alemã cuja compilação dos Irmãos Grimm foi publicada entre os anos de 1812 e 1822 Branca de Neve Se por acaso algum leitor julgar essa escolha exótica lembremos que Sigmund Freud era um exímio conhecedor de narrativas variadas não hesitando quando queria se tornar mais próximo de seus interlocutores em lançar mão delas FREUD 1926 Para nós a cena que registra o conflito deflagrador dessa narrativa mostra um importante aspecto da experiência humana as reações desesperadas e costumeiramente desesperadoras que se seguem a um encontro com o Real que não pode ser metabolizado pelo psiquismo Referimonos aqui ao dramático instante em que a rainha madrasta de Branca de Neve desencontrase de sua imagem ideal Lembremos que a rainha era uma mulher angustiada Incapaz de encontrar um ponto de amarração para além do espelho sempre lhe atormentava perguntando quem era a mais bela do mundo e só sossegava quando ele respondia Senhora Rainha vós sois a mais bela Ao obter sempre a mesma resposta a rainha se reconhecia e se iludia ela pensava possuir algo que nenhum ser humano tem um corpo próprio passível de ser apreendido por meio das palavras Como todos sabem esse estado de coisas durou até que os efeitos da passagem do tempo começaram a se fazer notar Quando Branca de Neve fez dezessete anos o espelho lhe deu uma resposta diversa da esperada afirmando Você é bela rainha isso é verdade mas Branca de Neve possui mais beleza Que paulada na moleira da rainha Apartada do imaginário da unidade corporal foi ela quem se despedaçou Assim sendo em vez de tentar se reinventar e conquistar outro título sucumbiu a uma funesta decisão negar o elemento que impedia o espelho de perpetuar uma identidade congelada Tentando nas palavras de Jorge Forbes soldar as partes que se fragmentaram a rainha tendeu a reagir com sentimentos às contingências da vida FORBES 2011 p 5 Agarrouse ao sofrimento psíquico para tentar recompor a unidade corporal e por esse motivo acabou gerando a própria perda Assim costumam ser independentemente de sua estrutura clínica os pacientes que hoje procuram uma análise UM PASSO ALÉM DA CLÍNICA ESTRUTURAL O PRIVILÉGIO AOS MODOS DE GOZO Só se consegue ir além da velha divisão entre neurose psicose e perversão quando se tem ouvidos para escutar fenômenos muito sutis quase imperceptíveis para quem ainda não conhece bem a diferença entre a fofoca analítica ou seja a reprodução irrefletida do que o paciente disse e a construção de um caso isto é o fruto de um trabalho elaborado para dar a ver algum aspecto relativo à singularidade do gozo de alguém Além do bem e do mal do normal e do patológico a clínica do Real é caracterizada por um raciocínio monista e pelo privilégio dado aos modos de gozo do sujeito Ao receber um paciente novo o principal interesse do analista é pinçar o seu modo de gozo para fazer face ao sofrimento psíquico MILLER et al 2003 A clínica do século XXI portanto deixa de se organizar em torno da presença ou da ausência da metáfora paterna e passa a se organizar em torno da noção operativa de enganchamento ou seja da ponderação a respeito do ponto em que alguém ao se ancorar em algum ponto que faz função de seu Outro encontra uma orientação para a sua vida A partir da noção operativa de enganchamento os passos necessários para configurar a direção de uma análise seriam os que se seguem 1 localizar o que se desengancha em um determinado momento da relação de um sujeito com o Outro 2 a partir dessa descoberta clarear o elemento que se prestava como gancho para este sujeito 3 dirigir a análise na direção de um eventual reenganchamento privilegiando a exposição da singularidade do modo de gozo de cada sujeito Esse é o percurso que nós participantes da Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da Universidade de São Paulo testemunhamos todos os dias Lá primeiramente trabalhamos para quebrar a tentativa de reconquista do imaginário da unidade corporal que é forjada por meio da insistência na utilização do sofrimento como cola e em seguida encontramos modos de substituir essa cola por mecanismos mais produtivos Jorge Forbes que dirige essa clínica costuma afirmar que o sofrimento utilizado como cola dissolve quando o paciente encontra um limite à compreensão Como consequência dessa dissolução ele dá um estatuto ético ao corpo Na próxima seção mostraremos como esse duplo movimento ocorre na prática O QUE O ANALISTA LACANIANO FAZ A PARTIR DAS PALAVRAS QUE LHE SÃO DIRIGIDAS A orientação clínica em direção de um reenganchamento do sujeito independente da restauração do imaginário da unidade corporal demanda um uso diferenciado da palavra Ela não se assemelha em quase nada com a antiga interpretação voltada à restauração de uma pretensa verdade do desejo inconsciente Funcionando em curtocircuito a palavra usada pelo analista libera o sujeito de um modo de gozo mortífero aumentando a disponibilidade para a vida qualificada O analista pode até reproduzir o mesmo enunciado mas em hipótese alguma ele coincidirá com sua posição enunciativa Na boca do analista da clínica do Real cada palavra é única Posto isso cumpre perguntar quais são seus objetivos quando usa a palavra Na próxima seção por meio de exemplos colhidos na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano passamos a construir uma resposta para essa indagação A QUE O ANALISTA LACANIANO VISA QUANDO USA A PALAVRA NA CLÍNICA DO REAL Sem nenhuma pretensão de exaustividade no que segue destacamos seis metas almejadas pelo analista na direção de fazer o trabalho analítico vigorar Para responder assistimos às 138 horas de gravação em vídeo que compõem parte da pesquisa de doutoramento de Forbes 2011 De modo proposital recortamos fragmentos relativos às análises de sujeitos dos dois gêneros e com diferentes idades profissões e classes sociais Passemos a eles Expor ao paciente o significante que nomeia o modo de gozo inicial No Quadro 1 mostramos uma manobra destinada a fragilizar a cola por meio da qual um determinado sujeito tentou durante mais de dez anos recompor o imaginário de sua unidade corporal Ao iniciar sua análise Diana era a encarnação de uma pessoa que não queria o que desejava Assim na impossibilidade de fazer seu desejo ganhar alguma forma de expressão no mundo ela encarava todas as contingências complicadoras como se fossem suas Brancas de Neve Ah Quanta coisa ela poderia fazer caso a princesa não existisse Tendo perdido a saúde física ela encontrou no tá difícil uma cola consistente para tentar colar o espelho mágico fragmentado Quem não se comoveria com as descrições bem feitas de suas dificuldades concretas O analista lacaniano ora pois Utilizandose da nomeação do modo de gozo inicial como sua pinça cirúrgica ele isolou um fragmento a ser cortado com o desenrolar da análise liberando Diana dessa forma mortífera e paralisante de gozar Destacar o traço que marca o excesso do paciente encorajandoo a sustentálo no mundo No Quadro 2 mostramos uma manobra destinada a digamos auxiliar a Branca de Neve caso ela se assustasse ao perceber que com o veredito do espelho forçosamente teria de enfrentar a fúria da rainha Fazer a moça suportar seu excesso aponta para a posição de gozo que precisava ser alterada sendo objeto de olhar não tinha a posse do seu corpo Em seu manejo clínico Forbes agiu de modo compatível com vários de seus textos e conferências nos quais afirmou que 1 uma vida pode ficar encalhada por causa de uma qualidade excepcional 2 o que uma pessoa não suporta são suas qualidades não seus defeitos e 3 o grande desafio de uma psicanálise é fazer um sujeito suportar os seus talentos Assim podemos concluir que a clínica do Real auxilia uma pessoa a suportar seu excesso ao levála a estruturar a sua identidade no seu desejo e não mais no olhar do outro Essa manobra por sua vez pode levar alguém a suportar o sucesso e construir alternativas para a crise de identidade gerada por seu advento Dar consequência ao dizer em vez de negálo e tentar interpretar a verdade inconsciente No Quadro 3 mostramos uma manobra destinada a dar lugar a um jovem em uma dinâmica familiar na qual não havia espaço para ele em uma dupla de histéricas empenhadas em disputar o título de A mais bela sofredora Quadro 3 Fragmento de análise de menino com 13 anos de idade JF E você está preocupado assim como elas Kelvin Não Elas estão preocupadas muito mais do que eu JF E o que você acha que elas devem fazer com essa preocupação toda Kelvin Elas que tomem antidepressivo que passem no psicólogo Psicólogo para as duas JF Está bem Eu vou seguir o seu conselho Eu vou fazer com elas a Kelvinterapia Coerente com a própria proposta segundo a qual se na primeira clínica o analista empresta sentido ao que diz o analisando na segunda o que ele faz é emprestar consequência ao que é dito FORBES 2003 p 195 Forbes não insistiu em convencer Kelvin a fazer uma análise A entrevista inicial mostrou que em vez de estarmos na presença do impacto de algo que fragmentava a unidade do menino estávamos ao contrário na presença de um jovem inteligente o suficiente para perceber a falta de lugar para ele no desejo de sua mãe mais empenhada em manter a modalidade histérica de relação com outra mulher no caso sua irmã a complementariedade imaginária Assim o analista legitimou a opinião de Kelvin e ao mesmo tempo o implicou na realização do tratamento Não seria uma terapia qualquer mas uma com seu nome Assim o resultado obtido foi uma mãe que consegue dar algum lugar para seu filho Introduzir o equívoco como solvente do sofrimento No Quadro 4 mostramos uma manobra destinada a separar a paciente da posição alienada ao sofrimento genérico na qual se encontrava No Seminário 23 2007 ministrado entre 1975 e 1976 Lacan enfatiza a palavra ressoar Ele o faz opondo sintoma com sinthoma Se o primeiro é uma escrita pode ser decifrado O segundo por sua vez indica um modo singular da relação entre o sujeito e seu modo singular de satisfação e por isso permanece opaco não passível de apreensão pela via do simbólico Dizendo de outro modo esvaziada da carga semântica a palavra ressoa Como ela só ressoa um a um Forbes ao perceber que esta senhora era poeta obteve um excelente impacto com a utilização de um jogo de linguagem que ao funcionar em registro diverso da linguagem comum a separou do discurso corrente atrás do qual se escondia Apresentar opções para a modalidade de gozo do sujeito No Quadro 5 mostramos uma manobra destinada a levar a pessoa a perceber os potenciais benefícios de estruturar sua vida para além da consistência das identidades fixas Quadro 5 Fragmento de análise de homem com 40 anos de idade Leonardo Ela tem uma personalidade muito forte Não dá muito certo JF É quase certeza que teria outro jeito de você lidar com ela Se você faz este movimento de fugir dela faz o que em psicanálise se chama dar consistência ao outro Experimenta fazer uma vez diferente tira a consistência Quando você dá consistência ao outro é por alguma fragilidade sua Neste momento vemos que o analista está trabalhando a partir de uma hipótese de trabalho segundo a qual perceber a inconsistência do Outro libera a pessoa do sofrimento gerado pela autoimposição de atender suas expectativas No caso específico o paciente por estar colabado ao Outro no caso projetado em sua namorada não consegue pensar em alternativas para lidar nem com suas expectativas nem com o seu desejo Projetando seus altos ideais em seus semelhantes o paciente sofria de culpa transmudandoa em uma suposta rejeição alheia No caso a direção da análise aponta para a possibilidade de lidar com sua satisfação amorosa de outros modos Provocar o confronto com o outro sexo No Quadro 6 mostramos uma manobra destinada a tirar os anteparos por meio dos quais a pessoa se protegia do confronto com o feminino JF Antes de sua mulher ter mioma tentou ter filho Barbeiro Quando queria ter Surgiu um mioma deste tamanho gesto com as mãos Após a cirurgia levei o mioma pra casa Mostrei pra ela e depois mandei o meu sogro enterrar Queria mostrar pra minha sogra mas ela não quis ver JF Você imaginou que ela ia querer Barbeiro Sim mas ela passou uns três dias negando JF Você me dá a impressão que achava que sua mulher ia se acalmar ao ver o mioma Você pensa que acalmar é deixar bem claro Seria interessante que você pudesse responder de modo diferente ao desejo de uma mulher Sua vida mudaria se em vez de você colocar um mioma como anteparo ao desejo dela você pudesse responder consigo mesmo No caso vemos que Forbes conduz a entrevista de modo a convidar seu entrevistado a sustentar dignamente a sexualidade na trajetória da vida Levando em conta que homens e mulheres se destratam na intolerância do encontro quando são neuróticos perversos e psicóticos Forbes afastou a explicação para devolver a capacidade da surpresa e proporcionar o encontro CONSIDERAÇÕES FINAIS O que o analista faz com as palavras que lhe são dirigidas Ele dirige a análise para mostrar que em hipótese alguma as palavras são capazes de capturar a realidade das coisas Utilizando manobras variadas ele mostra que uma palavra nomeia mas não recobre os modos de uma pessoa viver Neste texto mostramos que a mudança da relação da pessoa com a palavra diminui a dependência do imaginário da unidade corporal mostra a necessidade de encontrar alternativas para o reconhecimento simbólico e por esse motivo proporciona a abertura para a surpresa do encontro Ao mostrar que a via da singularidade não é compatível com a crença de que os nomes que foram dirigidos a alguém são justos ele leva a pessoa a se confrontar com a impossibilidade de escapar da parte de si próprio que para sempre permanecerá desconhecida Em outras palavras ele tenta evitar que seu paciente se esconda dos desafios de inventar uma vida qualificada para si mesmo aceitando que sua realidade subjetiva seja expressa por palavras Referências bibliográficas FORBES Jorge Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Tese de doutorado em Ciências São Paulo Faculdade de Medicina da USP Programa de Neurologia 2011 FREUD Sigmund 1920 Além do princípio do prazer In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVIII Rio de Janeiro Imago 1976 1926 A questão da análise leiga conversações com uma pessoa imparcial In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 IRMÃOS GRIMM Branca de Neve Versão Disponível em httpptwikipediaorgwikiBrancadeNeve Acesso em 20 de abril de 2012 LACAN Jacques 19751976 O seminário Livro 23 O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 MILLER JacquesAlain et al La psicosis ordinaria La convención de Antibes Buenos Aires Paidós 2003 SONHOS LAPSOS CHISTES COMO O FUNDAMENTAL SIGNIFICANTE AINDA INTERESSA AO ANALISTA LACANIANO 1 LUIZ FERNANDO CARRIJO DA CUNHA A PSICANÁLISE SERIA ELA UM SINTOMA ESQUECIDO Será introduzido o tema com a colocação de outra questão que longe de recobrir a primeira entendemos ser uma extensão Colocar a psicanálise no divã implica fazer dela um sintoma e tomar o psicanalista como responsável pela sua manutenção enquanto tal O psicanalista do nosso tempo quer se curar da psicanálise A princípio essa é uma questão que não nos parece ser de fácil apreensão é necessário interrogar a psicanálise em seu papel no mundo de hoje quando a oferta de tratamentos é grande e a proliferação de sentido compõe o domínio da cena proliferação de sentido da qual ela mesma se tornou contribuinte de uma boa fatia A chave do mito edipiano funcionou como um sistema de interpretação conhecendo um sucesso inigualável Assistimos a seu declínio assim como nos dedicamos hoje em formular um caminho que possamos seguir para continuar dando existência à psicanálise Sustentamos que a psicanálise seja um sintoma desde o modo de seu aparecimento ela é o signo do desejo de Freud que não hesitou em proclamar sua categoria de peste Um novo discurso nascia como resposta ao estar no mundo vigente no final do século XIX Em pleno século XXI será que essa modalidade de discurso ainda pode ser eficaz para responder ao que nos cerca hoje Assim entendemos a extensão da pergunta que nos colocou a trabalho A nosso ver Lacan principalmente em seu último ensino ao se deparar com o declínio da interpretação não seguiu a via de recobrir a morte de um mito por outro Ao contrário esforçouse para que o Real fosse o ponto nodal a partir de onde a psicanálise poderia subsistir justamente por não se sustentar em nenhum mito Logo se o psicanalista não quer se curar da psicanálise resta tomar o que há de fundamental nisso incluindo o significante a partir de outra perspectiva Se o mito edipiano funcionou como um semblante estável durante décadas foi porque a contingência o favoreceu ou melhor favoreceu a estabilidade dos semblantes Não podemos afirmar isso nos nossos dias A contingência que ora vivemos não favorece a estabilidade de nenhum semblante Digamos mesmo à guisa de redução que o mundo contemporâneo se caracteriza por isto não há estabilidade de semblante que possa sustentar uma ordenação universal para o mundo Lacan nos adverte que o devir da psicanálise depende da insistência do Real dado que o sintoma vem daí Enquanto psicanalistas Lacan nos convida a deixar cair os mitos para sustentar a psicanálise a partir da contingência que abre a via do Real Grosso modo estaria a psicanálise adotando uma posição de corte para ela mesma A LÍNGUA RENOVADA O TROPICALISMO COMO PARADIGMA DO USO PRÓPRIO DO SIGNIFICANTE NA SEGUNDA CLÍNICA DE JACQUES LACAN Mas afinal por que evocamos aqui o tropicalismo Certamente não para fazermos apologia ao movimento mas para tentar aproximar do que chamaremos um uso próprio do significante na segunda clínica de Jacques Lacan Cada língua falada se renova transmutase edifica outra língua Ela se mistura admite novos usos inclui novas palavras Quer dizer movimentase e transformase recriase O século XXI traz consigo o signo desse movimento a ponto de nos fazer pensar que estamos diante de um mundo inusitado e estamos E por que não O conhecido movimento tropicalista orquestrado por alguns de nossos preciosos músicos trouxe o prenúncio dessa nova posição do homem Alegria Alegria de Caetano Veloso não anuncia nenhum desastre e nenhuma redenção Ela celebra uma mente atônita diante de um turbilhão de novos coloridos acontecimentos colocados em palavras cuja sonoridade vai levando o ouvinte a se prender mais na metonímia da música do que no sentido que a letra alude não é uma obra de protesto à moda de Chico nem inebriante como a bossa nova Além disso temos a presença da guitarra elétrica introduzida em um ineditismo dentro da música popular brasileira A nosso ver essa canção de Caetano Veloso funciona como um paradigma de algo novo que surge de uma bricolagem de elementos presentes na ordem do mundo sem a pretensão de fazer passar qualquer mensagem moralizante eou reguladora Sem aspirar ao retorno do passado ou restabelecer uma ordem perdida a palavra usada na canção ressoou Ela pegou como se dizia no jargão da época Pegou os corpos para nos aproximar de Lacan O tropicalismo não é mais e nem poderia ser ainda que tenha marcado de modo pungente a história da nossa cultura Foi fulgurante como um relâmpago mas ocupa um lugar sem precedentes Ele marca um antes e um depois A música popular brasileira jamais foi a mesma de modo que o tropicalismo ainda provoca paixões e incita as mentes a buscar suas razões e sentido Vemos nisso o valor de um acontecimento cuja tentativa de qualificação nos escapa Há algo mais em torno da ironia presente nesse acontecimento Vale lembrar que surgiu na contramão do espírito revolucionário da época cooptando de maneira inusitada os sons e as palavras em torno de um ritmo que se aparentava ao rock and roll Isso transformou uma época transcendeu no tempo é tudo o que podemos dizer O INCONSCIENTE NÃO SÃO SUAS FORMAÇÕES Partindo do preceito freudiano o que sempre interessou ao analista é o inconsciente Tratase de um conceito de difícil apreensão que na teoria freudiana constitui o motor da vida psíquica Assim Freud levará a cabo um projeto balizado em suas questões com o estar do homem no mundo cujo objetivo foi o de desvelar o que em cada um se revela como inaudito desconhecido e ao mesmo tempo operando no mais íntimo A psicanálise se constituiria então como um processo de elaboração de saber elevado à dignidade da verdade Longe de qualquer teoria sobre o autoconhecimento muito cedo Freud descobre por meio da decifração dos sonhos o que ele denominará desejo inconsciente Em suma os sonhos interessaram a Freud por supor conter nesses um conteúdo não revelado e que no entanto produz efeitos na vida de alguém Sua exploração nesse terreno levouo a construir todo um arcabouço do processo onírico diferenciando o conteúdo manifesto do conteúdo latente assim como a isolar os processos aí envolvidos como o deslocamento e a condensação A finalidade desses processos está em manter velada a verdade que ali repousa No coração do sonho está o que ele chamou de nó dos desejos sexuais infantis recalcados ou umbigo dos sonhos o sonho sendo uma realização de um desejo opera no sentido de burlar a censura produzida pela barreira do recalque e assim fazer passar de forma deslocada e condensada uma verdade em latência Quer dizer o método freudiano consistiu em operar uma desmontagem do sonho partindo do conteúdo manifesto para chegar a um núcleo de verdade conteúdo latente Freud nos lembra de que o papel do sonho é proteger o sonhador do que lhe é inaudito O sonho está em função de um não quero saber de nada disso que a análise trataria de revelar pelo processo de decifração Nesse sentido o sonho não é o inconsciente mas a via possível para atingilo A interpretação em Freud é correlata ao modo como concebe a estrutura do sonho O sintoma induz a uma decifração do mesmo tipo De modo similar os chistes e os lapsos operam com a mesma estrutura que de saída supõe a existência do recalque como produtor do que retorna de forma deslocada quer sejam ideias eou afetos Freud irá subdividir o recalque em primário ou recalque propriamente dito e secundário para nos dizer acerca do que se manifesta na vida de alguém e que tem relação com sua forma de estar no mundo O recalque primário só pode vir à luz estando ligado a uma representação O título deste capítulo evoca três dos inúmeros textos deixados por Freud A interpretação dos sonhos 1900 Os chistes e sua relação com o inconsciente 1905 e Psicopatologia da vida cotidiana 1901 Lacan se serve deles principalmente no início de seu ensino para introduzir uma noção de inconsciente atrelada à estrutura de linguagem O famoso aforisma o inconsciente é estruturado como uma linguagem se sustenta a partir de uma leitura das formações do inconsciente trabalhadas por Freud nesses três textos e entendidas como manifestações do inconsciente Lacan então se dedicará a esclarecer essa estrutura em que o significante ganha o proscênio Nesse primeiro tempo de seu ensino o registro simbólico passa a ter a primazia O Seminário da carta roubada LACAN 1956 demonstra a partir de formulações lógicas o movimento e o caminho ordenado no e pelo significante Sabemos contudo que Lacan opera uma transmutação em seu ensino levandoo a interrogar sobre essa primazia a partir de outra perspectiva A estrutura de linguagem que sustentaria uma verdade a ser desvelada já não lhe é suficiente para transmitir o que está em jogo no inconsciente ou seja há um ponto resistente ao saber fugidio inapreensível Nem tudo no inconsciente é saber O simbólico falha e a verdade se desvanece É então necessário deixar cair a primazia do simbólico e fazer de cada um dos registros com os quais ele delineou a psicanálise um elemento isolado e heterogêneo em relação ao outro Se o simbólico deixa de ter o domínio sobre os outros dois nem por isso ele perde sua função Logo cabe a nós psicanalistas modular a clínica para ter um alcance que nos permita fazer outro uso do significante uma vez que o campo da fala permanece como o instrumento operativo da psicanálise O INSTANTE DE UM LAPSO Quem jamais produziu um lapso Certamente esse é um fenômeno próprio da natureza humana A intenção segue sua linha motivadora e de repente surge o inesperado algo na contracorrente do sentido pretendido O efeito de surpresa é quase sempre constatado Para Freud o lapso resulta de outra linha de pensamento que interpela a primeira logo um enigma se estabelece e o desejo é colocado no horizonte do pensamento em latência Guardadas as especificidades o lapso na via freudiana tem a mesma estrutura do sonho articulada como uma formação do inconsciente como uma manifestação deste Sendo assim obedece à estrutura do recalque O enigma estabelecido pode interrogar aquele que produz o lapso e uma corrente de sentido prospera para encontrar a linha de pensamento que resguarda o desejo em questão Em Lacan no primeiro tempo de seu ensino vemos no instante do lapso uma espera no sentido a produzir ou seja a aparição de um significante que chama um seguinte e outro estabelecendo uma cadeia cujo efeito será o próprio sujeito que surge como significação de sua faltaaser Podemos identificar a partir desse funcionamento a emergência de outro sentido que fala naquele que fala O deslizamento contínuo da cadeia só é detido por um ponto de basta servindo de âncora onde o efeito de verdade encontra seu lugar Todavia em uma segunda perspectiva Lacan vai nos introduzir em outra dimensão do lapso em que tempo e espaço entrarão na mais íntima correlação isto é Lacan proporá uma topologia na qual o efeito está radicalmente separado da causa o que lhe permitirá dizer que os significantes não copulam entre si são todos únicos e sem nenhuma conexão um com outro Nessa perspectiva o que irrompe no lapso ganha valor na própria irrupção todo pensamento que daí decorre não é correlato do elemento disruptivo e Lacan fará da verdade uma verdade mentirosa LACAN 19762003 já que ali onde topologicamente aparece o significante prevalece um indizível Tudo o que se diz não se liga ao instante do lapso e o sentido permanece por fora Em última instância essa nova qualidade do significante inspira um novo uso e interroga a psicanálise em seu devir Por esse mesmo prisma pelo qual vislumbramos essa outra face da estrutura podemos efetuar com Lacan uma releitura da clínica colocando no centro aquilo que vem fazer irrupção na vida de alguém a contingência que desvela algo do Real No Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 Lacan escreve Quando o esp de um laps ou seja o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação só então temos certeza de estar no inconsciente O que se sabe consigo Mas basta prestar atenção para que se saia disso Não há amizade que esse inconsciente suporte Restaria o fato de eu dizer uma verdade Não é o caso eu erro Não há verdade que ao passar pela atenção não minta O que não impede que se corra atrás dela LACAN 19762003 p 571 JacquesAlain Miller dedicou um ano de seu Curso da orientação lacaniana comentando esse trecho do Outros escritos O inconsciente Real como foi chamado esse curso colocou em destaque um inconsciente não constituído pelo saber e não tendo a verdade como seu sustento Com isso surgem então duas categorias do inconsciente o inconsciente Real e o inconsciente transferencial que diz respeito à conexão significante e que permite advir uma ordem do saber Vamos nos deter um pouco na frase que diz Quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido LACAN 1976 p 571 para destacar os advérbios quando e já que indicam a dimensão do tempo necessário para que não haja impacto de sentido denotando que o sentido está sempre à espreita Mas qual seria esse tempo Haveria um tempo próprio e natural ao esgotamento do sentido Parecenos a princípio que se sua tendência é seguir uma infinitização o corte lacaniano viria interpelar o tempo e a proliferação do sentido Assim uma análise deve durar o tempo necessário para que haja o consentimento de que nenhum sentido irá colmatar esse furo O FURO E O TRAUMA De 1953 a 1975 o que se modifica na obra de Lacan é o estatuto do significante e por conseguinte o modo de operar com ele no tratamento De todo modo não saímos do registro da língua mas sim mudamos o modo de compreender o corte Em vez de prolongar sessões por exemplo nós o mobilizamos para que ele opere uma espécie de redução no apetite do simbólico afinal o Real come sentido LACAN 19751976 Lacan retoma suas indicações do Relatório de Roma de 1953 e opera uma inversão no uso do significante Se o significante é por sua estrutura sozinho essa inversão supõe que é na falha do saber que podemos isolálo Se o sujeito do inconsciente na dimensão transferencial é escravo do sentido fazendo disso a razão de sua existência ele poderá encontrar não um sentido a mais mas o equívoco que está na base de tudo Nessa segunda perspectiva o trauma entendido como a fissura produzida pela língua e portanto necessário para a instauração de um sujeito e seu mundo constituise como o ponto pivô para se conceber a incidência do significante É no Real do corpo que o significante recai e a repetição estará ligada à contingência que abre a via para a reinscrição do trauma Em Lituraterra 1971 e em Radiofonia 1970 Lacan utilizará uma metáfora que bem diz dessa incidência do significante sobre o corpo é como a chuva que produz a erosão no solo o furo tem sua borda modulada pelo significante contudo sem nenhum impacto de sentido Será portanto em seu valor de letra ilegível que Lacan estatuirá o inconsciente no registro do Real Não estamos fora do significante ainda que vislumbremos desse modo o seu anverso Esse modo de conceber o inconsciente nos permitiria dizer da existência de um saber no Real Miller trabalhou essa questão no Curso da orientação lacaniana já citado dizendo que se há um saber no Real este deve ser de um outro estatuto no entanto recentemente em sua alocução no VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise AMP afirma não haver saber no Real Ora nossa pergunta que desejamos compartilhar diz respeito a este ponto se não há saber no Real onde se ancora a certeza do parlêtre que o permite afirmar ter chegado a essa zona de não impacto de sentido que sustenta o final de um tratamento Ainda que não seja nosso propósito neste capítulo gostaríamos de tocar nesse ponto por achálo fundamental Se a certeza e a satisfação encontradas não se ancoram na elaboração de um saber a nosso ver a única via possível seria a da invenção ou a da criação e não a da substituição de um mito por outro Mas quais as condições para isso e de que modo essa invenção pode sustentar o parlêtre em sua vida O SONHO SEU RESÍDUO O SONHADOR E O DESPERTAR Um sonho relatado sob transferência pode ser tomado sob dois ângulos distintos o primeiro diz respeito ao rebusque ele constitui com a consequente suposição de que isso pode se articular como um saber e revelar uma verdade é a vertente da proliferação do sentido O segundo referese ao que dessa mesma proliferação de sentido resiste à decifração que conduz invariavelmente ao silêncio do sonhador A posição do analista aí é fundamental pois decidirá quanto ao destino a ser dado para o que se apresenta como mensagem endereçada Acusar recebimento da mensagem não quer dizer necessariamente que a mensagem seja traduzida O analista lacaniano não é um tradutor de mensagens Caso ele se coloque como elemento do texto é à guisa de semblante cuja política é suscitar o que há de silencioso e que não cessa de não se escrever Isso vale para qualquer que sirva de pretexto prétexto ao que se diz em uma análise seja um sonho ou as impressões produzidas ao longo da vida de alguém e mesmo toda a significação que uma pessoa dá ao seu sofrimento O que é fundamental é não ratificar o sentido sempre disponível pois em última instância todo discurso redunda em defesa contra o Real segundo a tese de JacquesAlain Miller Então o saber sempre gerado a partir da associação livre fica relegado à categoria de defesa Nesse sentido o Real do sonho se podemos chamar assim resta sempre por dizer é inalcançável Ao que temos acesso é sempre da ordem do discurso Desse modo relatar um sonho constituise em um modo de se manter adormecido na defesa Lacan nos ensina que é quando o Real desponta no sonho que o sonhador desperta o que pode ser facilmente demonstrado nos sonhos de angústia No entanto ele desperta para continuar dormindo e de novo instalado na defesa Somente em uma análise podemos vislumbrar algo desse despertar fora do ciclo da defesa Em outros termos o que resta de um sonho fica reduzido a um ponto sem sentido e o papel da análise é fazer prevalecer esse ponto em detrimento de toda a geração de saber que dali pode decorrer Ora esse elemento reduzido e irredutível não é do estatuto nem do saber nem da verdade Por que não o tomar como fonte para uma invenção CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo o fundamental significante ainda interessa ao analista lacaniano na medida em que ele souber trabalhar como os tropicalistas fizeram O uso que podemos fazer do significante não pode estar do lado de uma promessa que seja de reparação ou de redenção A psicanálise não tem mais qualquer reparação para oferecer à sociedade Não se trata mais de construir uma sessão cujo texto tenha uma progressão lógica mas sim de fazer a palavra pegar ressoar no corpo de modo a evitar uma errância nefasta do gozo Assim o que podemos fazer com o fundamental significante é transformálo em poesia Referências bibliográficas FREUD Sigmund 1900 A interpretação dos sonhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IV Rio de Janeiro Imago 1976 1901 Psicopatologia da vida cotidiana In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VI Rio de Janeiro Imago 1976 1905 Os chistes e sua relação com o inconsciente In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VIII Rio de Janeiro Imago 1977 LACAN Jacques 1956 O Seminário sobre A carta roubada In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 1366 1970 Radiofonia In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 40047 1971 Lituraterra In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 1525 19751976 O Seminário Livro 23 O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 1976 Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 5679 1 Nota dos editores Caso algum leitor estranhe a palavra ainda presente neste título esclarecemos que ao longo da construção de sua obra Jacques Lacan alterou sua relação com o significante Conhecido como o analista do significante viveu pelo menos dois grandes períodos bastante distintos em sua relação com este O primeiro desdobramento da psicanálise freudiana é o encaminhamento da escuta do paciente para a associação livre É uma forma de lidar com o significante remetendoo a um sentido a mais O trabalho analítico convida aquele que fala a dar atenção a um significante X e a se lançar mais sobre aquela cena O segundo modo utilizado por Lacan é o oposto Tratase de pegar um significante e retirálo do fluxo frasal Em vez de convidar o paciente para interpretálo agregando a ele mais sentidos o analista o faz ressoar busca gerar um curtocircuito para que ele toque diretamente o corpo sem passar pela compreensão racional CADA CABEÇA SUA SENTENÇA QUE DIFERENÇAS O ANALISTA LACANIANO CONSIDERA NO MANEJO CLÍNICO DOROTHEE RÜDIGER CADA CABEÇA SUA SENTENÇA OU A SINGULARIDADE DO SINTOMA O tratamento psicanalítico se orienta na singularidade de cada paciente Sabemos desde as descobertas de Sigmund Freud que aos pacientes se aplica a máxima Cada cabeça sua sentença Assim a singularidade de cada um chamada por Freud de einziger Zug traço singular tornase fundamental na clínica lacaniana Tratase do que Jacques Lacan chama de sinthoma Neste capítulo buscamos mostrar a partir de casos clínicos como a psicanálise saiu do tratamento do sintoma no corpo realizado por Sigmund Freud e chegou ao tratamento do sinthoma na segunda clínica de Jacques Lacan Peter é um menino de dez anos de idade Descendente de alemães tem traços germânicos bem marcantes Alto loiro e de olhos azuis tem um nome de alemão dado por seu pai filho de um imigrante alemão fugitivo da Segunda Guerra Mundial Peter está triste Seus pais se separaram quando ele tinha dois anos de idade De lá para cá seu pai cujo nome em português significa passo de lobo o visita de vez em quando para depois desaparecer Na escola as professoras se queixam do aluno Inteligente e estudioso é ao mesmo tempo agressivo com os colegas Em casa Peter só chora Trazido para a análise pela mãe Peter pergunta Você sabe mesmo ouvir crianças Eu quero falar E Peter conta da sua tristeza e do pai que aparece e some É claro digo logo de cara é um lobo ambulante Estou diante de um menino que feito Pedro no conto musical de Sergei Prokofjew quer capturar o lobo não para matálo mas para preserválo Ser filho do lobo ambulanteintriga o jovem paciente É um problema seu sintoma Feita essa introdução vamos voltar para a clínica do médico neurologista Sigmund Freud para quem o sintoma é um sinal do malestar no corpo e na alma O SINTOMA UMA DAS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE Para o neurologista Sigmund Freud o sintoma está em primeiro lugar no corpo Muitas das dores das quais principalmente as pacientes histéricas se queixam são para Freud um sinal de que algo está acontecendo no inconsciente Ao lado do sonho do chiste e do ato falho o sintoma é por assim dizer uma das janelas de acesso ao inconsciente O sintoma é um sinal de uma ação doentia é um sinal e um substitutivo para a satisfação duma pulsão que não foi realizada é o resultado de uma ação de recalque FREUD 19262006 p 38 Pela conversão de uma satisfação em insatisfação a pessoa afetada pode satisfazer uma pulsão O sintoma é para Freud uma tentativa de fuga das pulsões Sua energia é transformada ao invés de causar satisfação pelo prazer causa satisfação pelo contrário pela dor FREUD 19262006 p 39 Dores no corpo fazem parte da sintomatologia da histeria Incapaz de realizar seus desejos sexuais a histérica sente satisfação na dor Em um dos casos narrados no Estudos sobre histeria o de Fräulein Elisabeth v R Freud descreve com clareza de que maneira a dor pode causar satisfação ELISABETH V R E A VERDADE INCONSCIENTE DO SINTOMA Elisabeth V R é uma paciente que Sigmund Freud trata a partir de 1892 A moça sente fortes dores nas pernas Freud examina as pernas da paciente e percebe durante o exame clínico no rosto da paciente uma expressão de satisfação e de dor Essa expressão mista entre prazer e dor denuncia a Freud uma verdade de ordem sexual no inconsciente Na psicanálise a dor faz a paciente lembrar outras cenas ligadas à morte do pai e da irmã Elisabeth se sente culpada Está apaixonada pelo cunhado Quando sua irmã morre do coração ela fica doente O sintoma aparece aqui como uma transformação inconsciente do amor em dor Como Elisabeth pode admitir que ela inconscientemente desejou a morte da irmã para ficar com o cunhado Jamais Mas quando procura a verdade do sintoma no recalque dos desejos sexuais infantis incestuosos de Elisabeth Freud vai além em sua análise Era ela quem cuidava do pai doente antes de ele morrer do coração Suas dores apresentamse na parte da perna em que ela apoiava a perna do pai para trocar seu curativo Para se defender de seu desejo secreto seu corpo realizou uma conversão histérica O pai morreu a irmã morreu e Elisabeth não pode realizar seu desejo Ficou doente BREUER FREUD 18952007 p 165 Em análise com Sigmund Freud Elisabeth confrontase com seu desejo inconsciente Na medida em que traz à luz esse desejo tão inadmissível perde a dor nas pernas que era a marca de seu sofrimento Sigmund Freud percebe que o sintoma se apresenta como algo que é uma espécie de marca registrada de uma pessoa Essa marca é perceptível nos seus relatos de casos que ressaltam a singularidade do sintoma de cada um dos pacientes O HOMEM DOS LOBOS No caso Homem dos Lobos o sintoma enquanto marca aparece no desenho de um sonho do paciente descrito em várias ocasiões por Sigmund Freud em seu relato de caso O jovem Homem dos Lobos está gravemente doente dependente e incapaz quando inicia seu tratamento com Freud Nos primeiros anos de tratamento não há progressos O paciente está entrincheirado em suas defesas até que Freud lhe coloca um ultimato ou o jovem fala ou ele interrompe o tratamento no prazo de uma semana Responsabilizado dessa maneira o jovem começa a falar A angústia diante da figura do lobo é uma constante na vida do paciente A chave de compreensão do caso é para Sigmund Freud a lembrança de um sonho infantil o sonho dos lobos sentados nos galhos de uma árvore que o paciente chega a desenhar para Freud O sonho o leva a lembrarse de seu pavor diante de uma imagem que ilustra o conto O lobo e os sete cabritinhos dos Irmãos Grimm Nessa imagem o lobo aparece em pé para devorar os cabritinhos FREUD 19182008 p 141 A investigação do inconsciente do paciente leva a duas cenas primárias uma relação sexual entre pai e mãe presenciada pelo paciente quando era muito pequeno e dormia no quarto dos pais e outra cena na qual o pai brinca com o menino e ameaça sou um lobo vou te comer FREUD 19182008 p 157 Tal qual o sintoma no corpo de Elisabeth o sonho dos lobos revela para Freud a verdade do inconsciente seu conteúdo sexual latente no caso do jovem a ambivalência dos sentimentos de amor e ódio pelo pai Há mais um dado do caso digno de ser analisado por Sigmund Freud o da preferência do paciente quando adulto pela posição nas suas relações sexuais vulgarmente chamada de cachorrinho Podemos aprender com Sigmund Freud que cada paciente é único que cada análise é única Além do diagnóstico do paciente a partir de sua classificação em neurose psicose ou perversão o que importa na análise é a singularidade do caso sua marca registrada Há de se ressaltar a conotação sexual do sintoma descoberta por Freud já na ocasião dos estudos sobre histeria No caso do Homem dos Lobos Freud diz que na análise de seu paciente não basta alegar que a posição more ferarum à maneira dos animais seja preferida entre os neuróticos obsessivos Para Freud a preferência dessa posição no jogo do amor é uma Liebesbedingung uma condição do amor inconsciente do próprio Homem dos Lobos sua forma única e mais íntima de obter satisfação Essa afirmação de Sigmund Freud nos leva a um excurso ao íntimo assustador abordado por Freud no texto O estranho O ÍNTIMO ASSUSTADOR Nossa marca nosso estranho íntimo nos angustia porque está intimamente ligado com a sexualidade Sigmund Freud aborda nossa estranheza diante da sexualidade no texto Das Unheimliche O estranho quando analisa o conto de ETA Hoffmann O homem da areia Diz o conto que quando crianças não querem dormir vem o homem da areia para arrancarlhes os olhos O homem da areia aparece na história de Hoffmann em várias versões ameaçadoras Suscita e lembra o medo infantil do pai castrador origem do medo da sexualidade FREUD 19192008 p 168 DO SINTOMA PARA O SINTHOMA O pai como lobo mau que acaba por assombrar a sexualidade faz sentido na sociedade em cujo contexto se insere a psicanálise de Sigmund Freud a sociedade construída a partir da família patriarcal O complexo de Édipo e o complexo de castração eram a chave de sua compreensão pois o pai era titular absoluto não só do pátrio poder No contexto da sociedade que se formou depois da Segunda Guerra Mundial Jacques Lacan ressalta a qualidade de marca do sintoma que agora pode passar a ser fonte de criação O sintoma é algo que se repete Enrolamonos em nosso gozo repetimos nossa imbecilidade Muitas vezes entregamonos ao piloto automático da vida ao automaton do destino na tentativa de reencontrar aquilo que perdemos na infância e que nos faz falta um estranho objeto causa do desejo Mas para Lacan temos escolha Se aceitamos a tiquê o real como encontro como encontro que pode ser rateado que esse encontro pode ser essencialmente presença a que nossos encontros com a vida são da ordem do acaso se soubermos o que fazer com ele LACAN 1964 p 78 podemos mudar nosso destino sustentar nossa marca registrada construída a partir da linguagem Essa construção será cada vez mais importante na psicanálise Em torno de maio de 1968 Lacan recebe em sua clínica casos de pacientes em cuja situação o complexo de Édipo era insuficiente para dar conta da verdade do sintoma Lacan resolve mudar sua clínica Era o início da globalização e de uma sociedade cada vez menos orientada no pai Tratase de uma sociedade resultante de uma série de fatores principalmente da emancipação feminina depois da Segunda Guerra Mundial novos sintomas proliferam e deixam novas marcas no mundo não mais orientadas no pai No lugar do brasão surge a invenção magnificamente tratada por Jacques Lacan em seu Seminário XXIII 19751976 dedicado ao escritor irlandês James Joyce JOYCE O SINTHOMA No Seminário XXIII Lacan 197519762005 despedese da ideia freudiana do sintoma como verdade e articula o sinthoma como sendo uma maneira singular que cada um inventa para dar um sentido a sua vida São os acasos que nos empurram para a direita e para a esquerda Disso fazemos nosso destino porque somos nós que o traçamos como tal Fazemos disso nosso destino porque falamos acreditamos que dizemos o que queremos mas é aquilo que os outros quiseram particularmente é nossa família que nos fala Somos falados e por causa disso fazemos a partir dos acasos que nos empurram algo tramado LACAN 197519762005 p 162 Sendo seres humanos somos parlêtres seres da fala Construímos nosso mundo pela fala embora sejamos limitados pelo fato de que nossas palavras não dizem tudo que gostaríamos de dizer Isso se manifesta nas nossas relações amorosas das quais Lacan 19721973 p 62 diz que não há relação sexual A relação sexual não existe porque como falamos não conseguimos dar conta de nos entender Por isso somos fadados a inventar algo um estilo de vida que dê conta da angústia que sentimos porque não há palavras para tudo O estilo com o qual cada um de nós se coloca no mundo nos faz seres únicos Unimonos uns aos outros com esse estilo único que a psicanálise procura ressaltar Na clínica do Real trabalhamos com o sinthoma com o traço único para que ele deixe de ser fonte de sofrimento e passe a ser fonte de criação não mais para resgatar o que foi perdido mas para almejar algo que está no futuro a invenção DE VOLTA AO CASO DE PETER O menino é acometido pela angústia de não saber onde está seu pai O caso está ambientado no contexto da família contemporânea que se compõe e recompõe depois do divórcio Estamos diante de uma situação pósedípica Peter tal qual o herói no conto musical de Prokofjew não tem medo do lobo Quer proteger o lobo Quem é meu pai Com quem vou me identificar e Quem me educa são questões sem resposta que demandam a invenção do menino desbussolado FORBES 2012 p 25 Sua angústia se expressa no acting out da agressão e do choro Há de se levar a sério a pergunta Você sabe mesmo ouvir crianças Eu quero falar Peter está no ar Precisa inventar algo como se fossem rodinhas para seu skate que o deixam em contato com o chão E Peter inventa sua maneira lobinho de lidar com a falta que o pai lhe faz O lobo é para ele um bicho em extinção um loboguará escondido em algum lugar Em uma das sessões Peter uiva e se esconde atrás da poltrona Você é um lobinho pergunto E também se esconde como o seu pai o lobo ambulante Saia da toca lobinho chamo Peter de volta à cena Ser lobinho implica a responsabilidade de sair do esconderijo e inventar uma maneira de conviver com o pai eventual FORBES 2012 p XI Sem responsabilidade sem invenção Peter se resigna A questão é como Peter vai encontrar o pai o lobo que anda por aí com o qual o menino se identifica Numa das sessões seguintes Peter inventa escrever uma carta de amor para seu pai Não sabe se o pai vai receber essa carta No entanto a deposita na casa da avó paterna Um dia ele vai saber o quanto o amo diz De fato a iniciativa de Peter do lobinho que resolveu sair da toca levou ao reencontro entre pai e filho Houve um final feliz Cada cabeça sua sentença Peter resolveu então feito lobinhoguará esconderse do pai Novas sessões de análise para as quais agora o pai o lobo ambulante acabou trazendo o filho revelaram aos dois que o amor não existe por si só Exige invenção Dá trabalho Referências bibliográficas BREUER Joseph FREUD Sigmund 1895 Studien über Hysterie Frankfurt am Main Fischer 2007 FORBES Jorge Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1918 Aus der Geschichte einer infantilen Neurose Der Wolfsmann In Zwei Krankengeschichten 3 ed Frankfurt am Main Fischer 2008 1919 Das Unheimliche In Der Moses des Michelangelo Schriften über Kunst und Künstler 4 ed Frankfurt am Main Fischer 2008 1926 Hemmung Symptom und Angst Frankfurt am Main Fischer 2006 LACAN Jacques 1964 Le séminaire Livre XI Fondements de la psychanalyse Disponível em wwwecolelacaniennenetseminaireXIphp Acesso em 17 de dezembro de 2013 1972 Le séminaire Livre XX Encore Paris Seuil 1975 19751976 Le séminaire Livre XXIII Le sinthome Paris Seuil 2005 EFEITOS TERAPÊUTICOS E ANALÍTICOS QUAL O OBJETIVO DA ANÁLISE LACANIANA RÔMULO FERREIRA DA SILVA INTRODUÇÃO O foco deste capítulo é a diferença entre os efeitos terapêuticos e analíticos a partir dos objetivos da psicanálise Não trataremos aqui dos passos dados por Freud e Lacan A partir de três vinhetas clínicas buscamos apontar essa diferença de forma atualizada Objetivamos mostrar como mesmo em situações de emergência a abordagem psicanalítica pode gerar efeitos terapêuticos Ao dar lugar para o sujeito ela não oblitera o que de terapêutico pode advir mesmo em condições extremas Desde muito cedo em suas formulações Freud marcou uma diferença entre a psicanálise e a medicina Não deixou de fazer suas contribuições à neurologia em sua trajetória A partir do ponto no qual sua teoria se tornou algo independente da medicina passou a falar de terapia psicanalítica Médico de formação não deixou de elaborar sua ciência como desejava a fim de aplicála como terapia Há várias passagens nas quais ele insiste em localizar a psicanálise como uma prática que independe da medicina por exemplo a propósito da análise leiga e do ensino da psicanálise na universidade A história do movimento psicanalítico nos mostra o percurso de Freud insistindo em manter a diferença entre a psicanálise e a psicoterapia No final de sua vida buscou fazer essa diferença quando abordou o fim da análise Lacan em seu retorno a Freud não apenas quis diferenciar os dois campos como também fez críticas acirradas aos desvios que a Associação Internacional de Psicanálise IPA cometeu por não seguir os ensinamentos de Freud no que ele tinha de cortante Muitos seguidores preferiram ficar ao lado da medicina eou das psicoterapias tornando a psicanálise algo mais pedagógico do que propriamente analítico Como o Real é sem lei e não há saber no Real LACAN 19751976 o século XXI exige de nós analistas um posicionamento novo Os princípios permanecem e sem nos submetermos a sua exigência não podemos demonstrar a eficácia da psicanálise O objetivo da análise lacaniana não se confunde com aqueles de outras práticas No entanto não deixa de incluir uma vertente terapêutica Há um objetivo na análise lacaniana Por consequência efeitos analíticos E por fim por acréscimo efeitos terapêuticos Abordaremos de forma invertida essa proposição com o intuito de sermos didáticos EFEITOS TERAPÊUTICOS Quando falamos em efeitos terapêuticos abordamos a clínica de maneira ampla A terapia que se instala a partir de uma demanda pode ou não resultar em efeitos ela pode ser inócua Ou seja quando se aplica um determinado tratamento esperase um resultado Mas qual Do ponto de vista da medicina está claro que o que se procura é a cura do sintoma que produziu a busca de tratamento Mesmo quando não há cura efetiva como podemos observar em várias doenças obtemos atenuação dos sintomas falamos de efeitos terapêuticos Os benefícios dos tratamentos propostos para o câncer em geral são exemplos evidentes O tratamento pela fala não é diferente Sempre que uma pessoa busca uma abordagem de seu sintoma por essa via aquele que se dispõe a escutar já se instala automaticamente no lugar do Outro Como se estivesse diante de um oráculo a pessoa fala a quem supõe que poderá ajudála de alguma maneira Sendo o tratamento proposto pela via da fala é a palavra do Outro que retornará como remédio Mesmo que aquele que escuta não queira se colocar no lugar do Outro seu lugar já está posto Tudo que ele disser poderá ter efeito de interpretação para quem o procurou A própria estrutura da linguagem que funciona ao articular os significantes em uma sintaxe cujas regras são relativamente fixas impõe essa lógica A instalação deste lugar o lugar do Outro que escuta já produz efeitos terapêuticos de saída Ele apazigua dá lugar para a fala e conecta a pessoa em relação ao Outro promovendo certo laço social É comum observarmos pessoas que se dirigem a um psi em situação informal e mesmo não obtendo resposta àquilo que dizem concluem que bom achei que estava ficando louco Apenas por ser escutado e uma ambulância não ter sido solicitada já é suficiente para o apaziguamento É terapêutico Certamente toda psicanálise é psicanálise aplicada Psicanálise aplicada à terapêutica Não parece ser absurdo dizer que ninguém quer fazer análise todos queremos terapia queremos que o Outro nos cure de nosso sofrimento e que de preferência não nos diga do que se trata no sentido analítico A psicanálise diferentemente da psicoterapia não se propõe à cura do sintoma Contudo podemse observar no curso de uma análise inúmeros efeitos terapêuticos ou seja atenuação ou desaparecimento dos sintomas Desangustiar o sujeito nas primeiras sessões é algo comum na prática analítica Como dito anteriormente basta acolher em silêncio a fala do sujeito para que ele se sinta apaziguado Podemos observar esses fenômenos em rápidas vinhetas clínicas Vinheta 1 Uma paciente chega ao consultório com queixa de perda total de memória não sabe seu nome não reconhece seu marido e há uma semana é submetida a exames neurológicos com suspeita de acidente vascular cerebral Irritase na sala de espera pelo atraso da consulta denunciando o analista Depois de apontada sua orientação temporal ou seja sabia o horário da consulta e quanto tempo havia se passado abrese uma conversa a respeito da perda seletiva da memória da localização do início do sintoma a descoberta da traição do marido e por fim um pedido de ajuda Eis uma histeria clássica à qual não estamos mais acostumados Vinheta 2 Um jovem trazido pelos pais com suspeita de uso de droga Ele nega e se põe a denunciar os pais por maustratos Depois de longas sessões de reclamações de que os pais não confiam nele levantase e deixa cair do bolso um papelote de cocaína O analista corre para pegar como se fosse obter a prova do crime e o devolve calmamente sem dizer uma palavra O paciente solicita não ser mais acompanhado às consultas e passa a falar do uso da droga que não se configurava em uma toxicomania Vinheta 3 Paciente psicótico chega ao prontosocorro algemado e dizendo ser Jesus Cristo Havia destruído uma viatura da polícia e está extremamente violento É solicitado que sejam retiradas as algemas Ele é convidado a entrar na sala de atendimento sem os policiais para poder esclarecer sua identidade pois pareceu bastante convincente O paciente fica intrigado com as contradições que apresenta na entrevista tais como sua idade que não condiz com a de Jesus seu RG que permanece com nome de nascimento etc Propõe explicar no outro dia como tudo isso funciona Essas três vinhetas mostram como a abordagem psicanalítica mesmo ocorrida em situações de emergência pode levar a efeitos terapêuticos Não dar lugar para o sujeito como costumam fazer a medicina e a psicoterapia oblitera o que de terapêutico pode advir nessas condições Podemos notar que o objetivo nessas três abordagens não é a princípio fazer retomar a memória constatar o uso da droga ou confirmar um delírio Tratase de fazer o sujeito se implicar em seu sofrimento mesmo que esse sofrimento não esteja claro para ele Poderíamos lançar mão de muitos relatos de passe dispositivo inventado por Lacan para tornar públicos os efeitos terapêuticos ocorridos a partir de análises concluídas Entretanto esse seria um capítulo à parte pela riqueza de conteúdo que a psicanálise de orientação lacaniana coleciona Vamos portanto nos limitar aqui às muitas pessoas que interrompem o tratamento assim que obtêm efeitos terapêuticos Nesse caso dizemos que a análise se interrompe e não que termina Essa é uma diferença fundamental se temos um analista e não um terapeuta O psicanalista mesmo que insistentemente colocado no lugar do terapeuta saberá conduzir o tratamento a partir de seu desejo o desejo do analista não permitindo que sua presença se torne uma forma de amarração sintomática a serviço da neurose Essa posição deve ser sustentada desde o início pois do contrário o tratamento poderá jamais ser recuperado EFEITOS ANALÍTICOS Poderíamos dizer que os efeitos analíticos são os que se obtêm a partir de uma análise ao longo de seu percurso e que uma psicanálise é o tratamento que um psicanalista conduz Por fim perguntaríamos o que é um psicanalista ressalvando que não existe resposta definitiva para essa questão Mesmo assim tornase importante que respostas sejam elaboradas Para que possamos falar de efeitos analíticos é preciso abordar o que se entende como o fim de uma análise O fim tomado em suas duas vertentes a finalidade e seu término Lacan no texto Televisão 1973 diz que uma análise termina quando o sujeito está feliz Para cada um sua felicidade aponta para o particular dessa decisão de pôr fim a uma análise Não se trata de um tratamento no qual é o terapeuta quem decide se o sujeito está curado ou não Não se trata de uma extirpação do sintoma mas de um saber fazer com o sintoma que inclui nesse pragmatismo o Real do qual trata a psicanálise O sintoma com o qual o sujeito chega à análise se desdobra na vertente fantasmática Do sintoma o sujeito se queixa e do fantasma ele goza Em 1967 quando Lacan propôs o dispositivo do passe a verificação do atravessamento da fantasia era condição suficiente para que uma análise fosse considerada terminada Assim como Freud perguntou a Dora qual era o seu lugar na confusão da qual se queixava cabe ao analista fazer ver ao paciente sua participação na constituição de seu sintoma Esse percurso não se dá sem que sua fantasia o evento traumático no qual o sujeito fixou sua forma de abordar o mundo venha à tona Essa forma o satisfaz ou seja há gozo nessa fixação O trauma é sempre sexual e o desdobramento entre sintoma e fantasma revela a separação que há entre o significante e o objeto O sujeito se depara com a condição de dizer o que ele não pensa e pensar onde ele não é Quando o sujeito se depara com o fato de que é atravessado pela palavra que ela não dá conta de dizer o que ele é e que mesmo assim só lhe resta essa via para se conectar ao outro podemos dizer que temos aí um efeito analítico Tratase da divisão subjetiva obtida logo no início de uma análise Esse efeito é correlato à instalação de uma barra no analista Aquele que tinha sido colocado no lugar de quem pode dar as respostas ao sofrimento do sujeito tornase algo apagado O sujeito se dá conta que ele não fala à pessoa do analista mas a um Outro que está encarnado no analista de modo que suas respostas não advirão do analista mas de sua própria interpretação Com a experiência do passe pudemos observar que a travessia da fantasia é um efeito analítico ou seja o sujeito pode ver o mundo de outra perspectiva que não apenas aquela fixada em sua fantasia fundamental Outro passo a ser dado em uma análise é a constituição de um sintoma que Lacan utilizandose de uma grafia antiga do termo sintoma em francês propôs como o sinthoma LACAN 19751976 que por sua vez engloba o sintoma e o fantasma Esse sinthoma inclui o resto sintomático do sujeito que diz respeito ao gozo Há o gozo Há o gozo como forma de satisfação que resta sem possibilidade de interpretação Por mais que se recorra à abordagem desse gozo pela via do sentido há algo que permanece Ao final o sujeito quer se livrar de seu gozo Ele se dá conta de que o gozo o parasita Essa pode ser considerada a última tentativa terapêutica que encontramos em uma análise Contudo disso o sujeito não se cura Por mais que ele se livre de sua história de seus significantes mestres e de seu apego ao gozo fálico há uma satisfação que permanece Ceder a esse impossível é também um efeito analítico A experiência analítica leva o sujeito a reconhecer o seu gozo não negociável porém o libera de sua submissão a esse gozo Daí o que Lacan nos ensinou sobre a diferença entre saber fazer savoir faire e saber se virar com o sinthoma savoir y faire avec le sinthome O savoir y faire inclui o sinthoma inclui o gozo inclui o Real Enfim é do Real que se trata CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo de uma análise lacaniana é fazer chegar ao ponto de o sujeito poder tocar o Real vislumbrar do que se trata esse Real sem lei Possibilitar que o sujeito se depare com sua insondável decisão diante do que é inapreensível e da contingência que o levou a tal decisão Ao se deparar com esse impossível é poder contingencialmente saber se virar no mundo levando em conta sua satisfação Se o sujeito é capaz ao final de se virar com o Real ele poderá agir no mundo a partir de outra perspectiva Essa pode ser a incidência fundamental do analista na civilização É preciso considerar que Freud assim como Lacan pretendia que a psicanálise pudesse modificar o mundo no mínimo para que ele se tornasse mais vivível Nessa perspectiva o terapêutico como efeito do analítico se aplica também ao social O mundo pode se tornar melhor desde que não queira eliminar o Real em jogo Aliás é isso que o torna mais divertido Efeitos terapêuticos não significam necessariamente efeitos analíticos Tampouco o contrário um efeito analítico pode colocar o sujeito em situação de angústia e mesmo assim leválo a seguir em sua análise ainda que à custa de sofrimento O que está em jogo nessa situação é a decisão do sujeito em querer se desembaraçar do Real livrandose das tramas simbólicas e imaginárias em que ele se meteu Sem pretender eliminar o Real poder inventar soluções É de fato uma aposta Referências bibliográficas LACAN Jacques 1967 Ato de fundação In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 1973 Televisão In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 19751976 O seminário Livro XXIII O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 A MANUTENÇÃO DO TRABALHO ANALÍTICO O QUE IMPEDE UMA ANÁLISE DE PROGREDIR ARIEL BOGOCHVOL INTRODUÇÃO Este capítulo aborda a manutenção e a sustentação de uma análise e os seus desenlaces Se nos mantivermos no registro da fenomenologia básica da experiência psicanalítica este processo se inicia mais ou menos do seguinte modo há um sujeito que sofre e que demanda análise dirigindose a um sujeito que supostamente sabe o significado de seu sofrimento e o que fazer com ele A demanda está inicialmente do lado do analisando Ele pede análise em função de seu sofrimento e seu sofrimento enquanto não resolvido demanda mais análise Por que em alguns casos o trabalho não progride Revisitando alguns trabalhos clássicos vamos tentar construir uma resposta a essa questão O analista a partir de seu desejo de analista ocupa uma posição de Outro Sujeito Suposto Saber capaz de interpretar o sentido inconsciente do sintoma e do desejo que o habita e de sustentar via transferência a análise até seu desenlace Nessa perspectiva a conclusão do tratamento implica em uma modificação do sofrimento uma decifração do desejo inconsciente e uma abolição da demanda Livre do seu sintoma ou sabendo virarse com ele o analisando não pede mais nada ao analista nem espera mais nada da análise MILLER 1997 As posições do analista e do analisando quanto à demanda e ao desejo não são simétricas O analisando demanda cabe a ele fazêlo O desejo está tanto do lado do analisando enquanto desejo enigmático associado ao sintoma como do analista enquanto desejo do analista função operatória que é a condição necessária para que uma análise se efetue O desejo do analista intervém no desejo inconsciente do analisando modificando a demanda até o ponto de aboli la É o final ideal de uma análise Referimonos a uma situação em que a demanda do analisando não é tenaz o suficiente para dar continuidade à análise para ir até o final Seu desejo vacila o desejo de saber de se curar de prosseguir o trabalho analítico O que um analista lacaniano deve fazer para sustentar a análise quando ela está na iminência de se interromper não tendo chegado ao seu final ideal Como conduzir uma análise até o final O que impede uma análise de ir até seu final Se ela não vai até seu final até onde deve ir São questões práticas e teóricas e relacionamse diretamente com a direção do tratamento suas finalidades seus finais e com os obstáculos que encontra para se efetuar Cada caso é um caso cada analista é um analista cada momento da análise é um momento da análise A trivialidade dessas frases feitas não deve ocultar sua radicalidade não há nenhuma fórmula para se sustentar uma análise ela se sustenta caso a caso um a um momento a momento Pode ser uma interjeição um chiste uma frase de efeito um equívoco uma interpretação uma citação uma construção O único fator que é fixo e que permeia todos os acontecimentos da análise sua progressão regressão interrupção é o desejo do analista O desejo vacilante do analisando deve ser respondido pelo desejo do analista decidido a levar a análise até seu término Mas o desejo do analista também pode vacilar nem sempre ele está à altura de sua tarefa Desdobremos O COMEÇO O MEIO O FIM Supomos que uma análise tenha um começo um meio e um fim Na teoria psicanalítica sabemos mais a respeito do início do que a respeito do final Lacan 1967 formalizou a entrada em análise na proposição de 1967 sobre o analista da escola Também dedicou alguns trabalhos à condução da análise como Variantes da cura tipo e A direção do tratamento e os princípios do seu poder A respeito dos finais de análise há menos escritos apenas relatos de pacientes como Uma temporada com Lacan de P Rey 1990 e os relatos de passe com os critérios de conclusão variando conforme o momento da teoria Há mais gente entrando do que concluindo uma análise É uma constatação empírica O que acontece com essas pessoas Há várias maneiras de se sair de uma análise Podese sair por cansaço por asco por desespero por falta de êxito terapêutico ou em função do êxito terapêutico Podese sair no começo no meio no fim e depois do fim As saídas verdadeiras as que chamamos conclusão do tratamento não são numerosas Uma análise pode ser conduzida ao seu fim autêntico ao seu termo lógico situação que está além da ordem terapêutica Na avaliação de Miller MILLER 1995 tratase de uma mutação que transforma o sujeito no que ele tem de mais profundo Ela está relacionada com o gozo Não é a situação mais comum Como em outras áreas da clínica há um descompasso entre os que iniciam um tratamento e os que o concluem verdadeiramente Na medicina estudase a resposta ao tratamento a vinculação do paciente sua persistência e verificase a partir de critérios objetivos o índice de cura de sucessos e fracassos Os estudos duplocegos na área da farmacologia procuram quantificar a eficácia de uma dada medicação Em relação aos antidepressivos por exemplo é da ordem de 55 a 65 dos placebos de 20 a 30 Pesquisase também o índice de desistência de abandono do tratamento que entre as especialidades médicas afeta mais fortemente a psiquiatria e calculase que 30 dos pacientes parem seu tratamento em alguma etapa RIBEIRO 2008 O problema do fim da análise foi objeto da reflexão de Freud muito antes de seu grande texto intitulado Análise terminável e interminável de 1937 em que o autor adota sua posição definitiva Pouco inclinado a se satisfazer apenas com os critérios de cura obtidos pela psicoterapia Freud fez questão de determinar a especificidade do término do tratamento psicanalítico propriamente dito Durante os primeiros anos de minha prática analítica eu tinha extrema dificuldade em persuadir os doentes a prosseguirem em sua análise Esta dificuldade deixou de existir há muito tempo e agora esforçome ansiosamente por obrigálos a parar o tratamento FREUD 1937 p 15 A confidência de 1937 é reveladora não apenas de uma preocupação com as saídas precipitadas constatadas no início de sua prática como com as não saídas as análises intermináveis constatadas posteriormente Há um hiato entre o critério do término e a saída efetiva do paciente Saindo demasiadamente cedo ou demasiadamente tarde do dispositivo o paciente evidenciava uma defasagem entre de um lado sua própria avaliação subjetiva seu tempo de compreender e concluir e de outro o ideal de fim de análise conforme a própria lógica do tratamento Há uma contradição entre a psicanálise ideal e a psicanálise real um descompasso entre suas propostas e suas realizações Longe de recuar diante de tal descompasso Freud o tomou como objeto da investigação questionando os resultados da psicanálise a partir do que se convencionou denominar término de uma análise O que se quer dizer pela expressão ambígua término de uma análise De um ponto de vista prático é fácil responder Uma análise termina quando analista e paciente deixam de encontrarse para a sessão analítica Isso acontece quando duas condições foram aproximadamente preenchidas em primeiro lugar que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas ansiedades e inibições em segundo que o analista julgue que foi tornado consciente tanto material reprimido que foi explicada tanta coisa ininteligível que foram vencidas tantas resistências internas que não há necessidade de temer uma repetição do processo patológico Todo analista já terá tratado de alguns casos que apresentaram esse gratificante desfecho FREUD 1937 p 2501 Nem todo caso entretanto apresentava esses desfechos Freud questiona então a possibilidade de cura e de uma cura permanente Investiga os fatores que podem dificultar tanto a progressão quanto a finalização da análise o fator constitucional e acidental a alteração do ego a precocidade das fixações o fator quantitativo Questiona a compatibilidade entre a psicanálise seu dispositivo e seus fins E pergunta o que é afinal um homem analisado É uma reflexão coerente quase desiludida vis a vis com o instrumento que inventou constatando uma defasagem entre a cura suposta e sua efetiva realização De alguma forma a análise simultaneamente propiciava a cura e criava os obstáculos para sua efetivação Em vez de se indagar como se dá uma cura deveria se perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal cura FREUD 1937 p 252 RESISTÊNCIAS Existe um equilíbrio neurótico o modo como o sujeito se arranjou com seus sintomas suas pulsões o qual implica certo custo de gozo É isso que permite que se possa buscar em uma análise outro arranjo menos custoso O que se moveu no arranjo do sujeito para ele procurar uma análise Há uma conjuntura de emergência que transtorna o equilíbrio prévio e leva o sujeito a demandála Mas depois de um tempo de abertura produzse um fechamento Há por parte do analisando um desejo de curarse e um desejo de não se curar de permanecer no equilíbrio neurótico na solução imperfeita A demanda de análise implica um rechaço da análise peçote a análise que rechaço Foi esse obstáculo subjetivo à cura que em cada etapa do pensamento freudiano fezse objeto de uma nova investigação enquanto se esfumaçava a ideia de um resultado terapêutico fixado de antemão AMP 1995 Quer se tratasse do recalcamento ou da amnésia infantil da indolência do paciente ou da inércia do sintoma da fixação na fantasia ou do compromisso entre o eu e o isso a reflexão acerca das dificuldades das análises conduziu à edificação do muro da resistência em psicanálise Os conceitos de transferência negativa reação terapêutica negativa pulsão de morte e masoquismo primordial completavam o cenário dos obstáculos à análise FREUD 1937 p 251 Chamase resistência a tudo o que nos atos e nas palavras do analisando durante o tratamento analítico se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente LAPLANCHE amp PONTALIS 1982 O conceito foi introduzido cedo por Freud e teve um imenso papel em sua teoria principalmente a partir dos anos 1920 Foi como obstáculo à elucidação do sintoma e à progressão do tratamento que a resistência foi descoberta e articulada teoricamente A ideia de obstáculo se apresenta desde Estudos sobre a histeria É somente com a técnica da pressão que Lucy R pôde abandonar o seu não sei e comunicar a significação patógena A primeira aproximação ao sintoma o confronta com a resistência Há uma resistência inaugural do sujeito que se desdobra sob diversos disfarces A cura analítica não se parecia com a boa nova relativa às formações do inconsciente Freud havia mostrado que essas formações sonho lapsos chiste se decifravam tinham um sentido portavam a presença trêmula de um querer dizer Mas estas demonstrações sublimes de Freud que precipitaram os jovens analistas à prática se fizeram fora da cura analítica propriamente dita Partiam da psicopatologia da vida cotidiana e não da psicopatologia da cura analítica É claro que Freud a estendeu ao sintoma e se dedicou em seus casos a destacar a leitura do inconsciente Mas o que se passou quando isso deu lugar a uma clínica que começou a tomar certa consistência Evidenciaramse de imediato as dificuldades dessa leitura do inconsciente O acesso ao simbólico não era livre MILLER 2011 p 105 Contrariamente aos triunfos iniciais os analistas verificavam na clínica fracassos terapêuticos Não encontravam a docilidade das primeiras pacientes tratadas com rapidez mas sim obstáculos às vezes intransponíveis à condução da cura O uso do termo resistência é um índice que aponta o real da experiência Esse real exigia modificações no modo de atuar novas maneiras de arranjarse com ele o que levou a propostas como a Análise Ativa de Ferenczi ou a Análise do Caráter de W Reich Em Inibição sintoma e angústia FREUD 1926 Freud distingue cinco formas de resistência Três estão ligadas ao ego o recalque a resistência de transferência e o benefício secundário da doença que se baseia na integração do sintoma ao ego Há ainda a resistência do inconsciente ou do id sob a forma de compulsão à repetição e a resistência do superego derivada da culpabilidade inconsciente e da necessidade de punição FREUD 1926 p 460 Os fatos clínicos podem ser listados obstáculos à associação livre à rememoração à decifração à resolução do sintoma à liquidação da transferência à superação do sentimento de culpa à cura Testemunham uma dificuldade do funcionamento simbólico e confrontam o analista com uma inércia difícil de romper A clínica freudiana pode ser representada como uma clínica do obstáculo e não é à toa que Freud incluía a análise das resistências entre seus pressupostos Entre a intenção de se analisar sua aplicação e a conclusão da análise há obstáculos variados Esses obstáculos foram enumerados e podem ser representados na Figura 1 e na Tabela 1 Tabela 1 Resistências ao tratamento analítico Resistência do ego Resistência do id Resistência do superego Recalque Compulsão à repetição Culpabilidade inconsciente Resistência de transferência Necessidade de punição Benefício secundário da doença RETORNO AO RETORNO A FREUD O momento inaugural do lacanismo foi definir de uma nova forma a noção de obstáculo Trabalhando com as noções de narcisismo e fase do espelho Lacan 1949 definiu inicialmente o obstáculo em jogo como imaginário Essa definição predominou nos primeiros anos e lhe deu seu ponto de referência essencial Teve como efeito que o imaginário acobertasse o real Somente por um movimento subsequente Lacan vai dissociar o real do registro imaginário LACAN 19751976 Nesse primeiro ensino atribui à inércia no tratamento o que não mudava tudo o que dizia não à intenção terapêutica ao obstáculo imaginário constituído no nível do narcisismo É o que mostra o esquema L representado na Figura 2 no qual registro imaginário está em oposição ao simbólico Figura 2 O esquema L LACAN 1956 p 58 É sua forma inicial de apresentar o obstáculo Por um lado a intenção simbólica desejo de dizer desejo puro desejo de nada desejo de reconhecimento de outro a resistência do imaginário Lacan nos ensinou a conceber o imaginário o eu como proteção contra o simbólico quer dizer situou a libido a pulsão o gozo do lado do obstáculo imaginário MILLER 2011 p 82 Mas não permaneceu aí O sentido do retorno a Freud era uma desvalorização da experiência do Real que de maneira selvagem brutal assolava os pósfreudianos Mas além de suas dificuldades Lacan com seu otimismo conquistador pensava restabelecer o primado da intenção simbólica em psicanálise e o renovava com a função da palavra e o campo de linguagem Dessa desvalorização do Real provém o conceito de sujeito barrado univocamente determinado pelo significante capturado pelo simbólico que repele tudo que corresponde ao Real e ao gozo É o problema recorrente de Lacan a articulação da ordem significante com a ordem do Real em particular com o Real do gozo A relação desse sujeito com o Real se tornou problemática porque o apoio estritamente no simbólico o levou a conceber um sujeito vazio desertificado de gozo MILLER 2011 p 85 Lacan não cessou de inventar termos que permitiam juntar o simbólico e o Real falo como significante do gozo fantasma como articulador entre o sujeito vazio e seu mais de gozar o sinthoma como uma condensação uma conjunção do significante e do gozo O sentido de seu último ensino na medida em que privilegia o Real inverte toda a perspectiva Os fatos da clínica apontam algo que é de outra ordem que o magnífico descobrimento freudiano em todo seu esplendor Evidenciam o Real enquanto antinômico ao desejo do analista A partir da nova perspectiva percebese que se trata de circunscrever o gozo como princípio real da resistência MILLER 2011 p 109 Da mesma forma que em Freud podemos fazer uma lista lacaniana das resistências variando conforme o momento de seu ensino Tabela 2 Tabela 2 Resistências ao tratamento analítico Freud os pósfreudianos Lacan e os lacanianos confrontaramse com um Real que não era dócil ao simbólico que se contrapunha ao dizer ao decifrar ao sentido opaco nonsense que resistia à análise Eram imperativas as mudanças no método psicanalítico O analista lacaniano não trabalha na segunda clínica da mesma forma que na primeira Orientado pelo Real não visa puramente a decifrar o sintoma mas chegar ao seu núcleo indecifrável um núcleo de gozo modificando a relação do sujeito com seu gozo Não é uma clínica ancorada puramente no significante mas nos modos de gozo A intervenção do analista mais do que a interpretação procura perturbar a defesa FORBES 2012 OS EMPACAMENTOS ANALÍTICOS E A PRESENÇA DO ANALISTA COMO O ANALISTA LACANIANO GERA TRABALHO Em nosso subtítulo o substantivo plural empacamentos está entre aspas porque mesmo se tratando de uma palavra bastante usada no dia a dia não é um termo que se encontra como tal nos dicionários da língua portuguesa O que pode ser localizado é o verbo empacar derivado do espanhol que significa 1 Emperrar parar o cavalo ou o burro firmando teimosamente as patas sem que haja condições do cavaleiro obrigálo a manter a marcha 2 Estacar ficar parado não dar prosseguimento 3 Falar com dificuldade gaguejar embuchar tartamudear HOUAISS 2009 Na psicanálise para explicar esses fenômenos existem concepções freudianas abrahamanianas ferenczianas reichianas kleinianas anafreudianas bionianas winnicottianas e lacanianas só para citar algumas Mas independentemente da concepção adaptada sabese pois é um fato clínico que entre o início da marcha e a chegada ao seu destino há paradas estancamentos Empacamento não é um termo psicanalítico evidentemente Aqui ele descreve uma situação comum na clínica o impedimento o estancamento a imobilidade a teimosia o embaraço a parada da marcha Há várias formas de empacamento analítico Deliberadamente a formulação do título é ambígua assinalando apenas sua existência Não designa o sujeito ou objeto do empacamento nem muito menos suas razões Quem empaca O que empaca Por que empaca Algo na análise não anda não caminha não marcha Não sendo designado expressamente o empacamento pode referirse à posição do sujeito ao seu sintoma às suas identificações à sua relação com o analista com a regra fundamental com o mundo Daí sua colocação no plural O conceito de resistência é utilizado frequentemente por Freud para englobar o conjunto dos empacamentos analíticos e teve grande difusão entre seus seguidores Tudo o que destrói suspende altera a continuidade do trabalho analítico é uma resistência LACAN 19531954 p 45 Definição bem ampla na medida em que inclui tanto a quebra como o breque na transformação da análise Neste texto inaugural o acento recai sobre o trabalho analítico que é o trabalho da associação livre Em outros vai designar tudo o que se opõe ao acesso ao inconsciente à elucidação e à resolução do sintoma e à progressão do tratamento LAPLANCHE amp PONTALIS 2001 com o acento recaindo sobre a direção do tratamento e seus finais Muitos termos consagrados na psicanálise são sinônimos de empacamento reação terapêutica negativa inibição masoquismo primordial transferência negativa compulsão à repetição inércia do sintoma e resistência e podese discutir a conveniência de se introduzir mais um A pósmodernidade teria produzido novas formas de empacamento do mesmo modo que produziu novos sintomas FORBES 2012 Os empacamentos são os mesmos que se encontravam à época de Freud e de Lacan Conviria substituir seus termos Em um primeiro momento freudiano o empacamento é uma resistência à aplicação da regra fundamental a única regra que deve reger a ação do analisante Falar livremente em associação livre é seu único trabalho tem o dever de zelar por ele de exercêlo e exercitálo É seu tributo por se engajar em uma experiência de fala sui generis Falar livremente tudo o que vier à sua cabeça não é uma experiência comum Na vida cotidiana não se costuma falar livremente já que isso poderia ferir sensibilidades gerar consequências para aquele que disse o que não deveria ter sido dito Os poderes laicos e religiosos por seu turno não pararam de regular a fala livre até o limite da imposição do silêncio A liberdade de pensamento e de expressão foi adotada como um dos direitos humanos fundamentais somente na pósmodernidade e os homens lutam por implantála e conservála As palavras têm poderes e impotências Analisantes e analistas podem testemunhar a importância da fala livre e a dificuldade em sustentála Exercendose a fala livre percebese o quanto ela não é livre o quanto ela é sobredeterminada É um fenômeno que surge sob transferência na medida em que a palavra é endereçada ao analista e mobilizada na procura da verdade A própria transferência pode constituir um obstáculo ao trabalho analítico Estudemos um complexo patógeno desde sua manifestação no consciente até suas raízes no inconsciente chegamos logo a uma região em que a resistência se faz sentir tão nitidamente que a associação que surge leva a sua marca e nos aparece como um compromisso entre as exigências dessa resistência e a do trabalho de investigação A experiência mostra que é aqui que surge a transferência A transferência se manifesta sob a forma de resistência de uma parada das associações FREUD apud LACAN 1954 p 51 Ao longo da obra freudiana há uma ampliação do conceito de resistência pontual de início passase à resistência generalizada ao final A generalização coincide com a constatação clínica ocorrida nos anos 1920 de que havia várias formas de empacamento analítico e encontrou seu apogeu na análise das resistências em voga nos anos 1950 A resistência emana do processo mesmo do discurso LACAN 19531954 p 52 É no movimento por meio do qual o sujeito se revela que aparece um fenômeno que é resistência e quando essa resistência se intensifica surge a transferência op cit p 53 É um fenômeno que se estabelece em conexão com a manifestação concreta da resistência que intervém no próprio tecido de nossa experiência em função da transferência O próprio sujeito sente uma brusca virada que o faz passar de uma vertente a outra do discurso de um acento a outro da função da palavra LACAN 19531954 p 52 Lacan começa seu Seminário I 19531954 com uma seção intitulada O momento da resistência na qual discute a questão e critica o estatuto que tinha atingido na psicanálise de seu tempo Vai reformular o conceito a partir de suas categorias imaginário simbólico e real com o acento da resistência variando em cada período A noção de resistência não se dissocia de uma referência implícita a um caminho aquele que deveria ser percorrido caso não se empacasse É o caminho que poderia levar ao final do caminho ao final da análise O estatuto do empacamento depende evidentemente da forma como se concebe o caminho e seu final Um problema recorrente em Lacan é a articulação da ordem significante com o Real do gozo A relação do sujeito dividido pela entrada na linguagem com o Real se tornou problemática porque o apoio estritamente no simbólico o levou a conceber um sujeito vazio desertificado de gozo O sentido de seu último ensino na medida em que privilegia o Real inverte toda a perspectiva Os fatos da clínica apontavam algo que era de outra ordem que o magnífico descobrimento freudiano Evidenciavam o Real enquanto antinômico ao desejo do analista A partir da nova perspectiva percebese que se tratava de circunscrever o gozo como princípio Real da resistência Lacan não cessou de inventar termos que tentavam conectar o simbólico e o Real a imagem narcísica falo como identificação e como significante do gozo fantasma como articulador entre o sujeito e seu mais de gozar o sinthoma como uma conjunção do significante e do gozo São pontos de fixação da libido os ossos de uma análise as pedras Representam as resistências que uma análise terá de superar para chegar ao seu término Há um xis que se apresenta como um imaginário a ultrapassar sob a forma de identificação que deve cair sob a forma de fantasia que deve ser atravessada sob a forma do sintoma com o que se identificar Podemos fazer uma lista das resistências ou empacamentos lacanianos variando conforme o momento de seu ensino Cada um desses obstáculos uma vez ultrapassado deverá ser desinvestido É o que se verifica no final da análise A Tabela 3 a seguir mostra como o analista lacaniano pode ultrapassar os empacamentos e voltar a gerar trabalho Lendo o quadro podemos concluir que o empacamento não é indiferente à presença do analista ao contrário No momento de parada das associações o sujeito pode de repente darse conta da presença do analista e a partir dela pôr se a trabalhar mais uma vez Saber fazerse presente é portanto uma arte CONSIDERAÇÕES FINAIS No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra Andrade 1930 O poema de Drummond que em dez versos repete sete vezes a palavra tinha e pedra e seis vezes as palavras meio e caminho pode ilustrar o percurso de uma análise As repetições são sensíveis ao obstáculo que a pedra representa A insistência repetitiva manifesta a própria presença da pedra em seu caráter real no meio do caminho Há várias pedras no caminho de uma análise No início no meio no fim Cada momento é marcado por uma pedra particular É somente pelo fato de que há um caminho a percorrer que as pedras aparecem Não há caminhos sem pedras nem pedras sem caminho As pedras são produtos do caminhar São os obstáculos encontrados uma vez que se está no dispositivo psicanalítico Para Freud a pedra mais importante era um rochedo o rochedo da castração Quando uma pessoa busca uma análise isso significa que ela tropeçou em uma pedra no meio de seu caminho Nós o convidamos a falar e o que nos orienta em nossa escuta é que há no caminho de sua fala uma pedra Só é possível progredir no trabalho à condição de que a fala do paciente gire em torno dessa pedra em espiral circunscrevendoa cada vez mais perto Não adianta tentar varrer as pedras para debaixo dos tapetes das conveniências O analisando pode empurrálas contornálas furálas prostrarse diante delas esculpilas Vai encontrar ao fim do caminho uma pedra preciosa Novamente isso se decide caso a caso A aposta da psicanálise de orientação lacaniana é que possa fazer de sua pedra um poema uma invenção Quando o analista não consegue conduzir a análise entre as pedras o trabalho analítico não progride Referências bibliográficas Associação Mundial de Psicanálise AMP Como terminam as análises Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 ANDRADE Carlos Drummond de 1930 No meio do caminho In Alguma poesia O livro em seu tempo São Paulo Editora Instituto Moreira Sales 2010 FORBES Jorge Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1926 Inibição sintoma e angústia In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 p 95201 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1969 p 23987 HOUAISS Antonio Dicionário de língua portuguesa Rio de Janeiro Objetiva 2009 LACAN Jacques 1949 O estádio do espelho como formador da função do eu In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 96 103 195354 O seminário Livro I Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro Jorge Zahar 2009 1956 O seminário sobre A carta roubada In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 1366 1967 Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 19751976 O seminário Livro XXIII O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 LAPLANCHE Jean amp PONTALIS JeanBertrand 1982 Vocabulário da psicanálise São Paulo Martins Fontes 2001 MILLER JacquesAlain Prefácio In Como terminam as análises Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 Demanda e desejo In Lacan elucidado palestras no Brasil Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 A experiência do real Buenos Aires Paidós 2011 REY Pierre Uma temporada com Lacan Rio de Janeiro Rocco 1990 RIBEIRO Mário Sérgio et al Fatores associados ao abandono de tratamento em saúde mental Jornal Brasileiro de Psiquiatria Rio de Janeiro n57 v1 2008 p 1622 TEMPOS VARIÁVEIS SESSÕES CONTUNDENTES COMO O ANALISTA DECIDE SUA DURAÇÃO CLAUDIA RIOLFI INTRODUÇÃO Quando uma flor desabrocha cinco folhas começam a crescer Isto é tempo real naturalmente Grande Mestre Bodidarma in ZENJI 12441986 Quanto tempo dura uma vida É mesmo possível cronometrálo Estaria ele circunscrito ao espaço temshyporal que decorre desde o primeiro vagido do neonato até o último estertor do moribundo Eis um dos grandes enigmas do ser humano para o qual as seitas as religiões os sistemas filosóficos e a psicanálise tentaram construir respostas Permitamonos seguir a via dessa charada por algum tempo Se tomarmos duas pessoas hipotéticas que nasceram e morreram na mesma hora do mesmo dia seria lícito dizer que o tempo de sua existência teve a mesma duração Vejamos duas possibilidades de resposta Quem pensa que o tempo da experiência humana é análogo ao tempo da natureza respondeu a última pergunta afirmativamente Flores e frutas possuem o seu mundo de tempo próprio ou seja constituído por um ciclo natural que independe da decisão do vivente Seu começo meio e fim pode ser objetivado e inclusive não considerado não faz diferença A duração da vida de uma rosa independe de sua tomada de consciência da própria existência e da passagem do tempo Não era assim que em 1243 pensava o iniciador da transmissão do zen Bodidarma cuja reflexão marca o início deste capítulo Para ele mais importante do que as rosas as margaridas e as flores de lótus azuis que submergem no rio durante a noite e emergem e florescem novamente durante o dia é a flor do vazio que dura enquanto um vivente crê que ela está no céu Assim quando Bodidarma afirma que o tempo da flor é o tempo das cinco folhas vincula a existência de um efeito intangível à possibilidade de alguém sustentálo para além da objetividade temporal e mesmo das evidências empíricas A flor do vazio portanto é aquela cujas cinco folhas não seguem uma ordem natural mas sim duram o tempo de sua visão Dando continuidade a essa metáfora o presente capítulo tem como principal objetivo comparar a duração de uma sessão de análise e mesmo a duração de uma análise inteira com aquela da flor do vazio Assim nossa tese é aquela segundo a qual uma psicanálise em cada uma de suas sessões deve durar o tempo necessário para ser contundente o suficiente nem mais nem menos Tratase portanto de uma modulação temporal que apoiandose na articulação significante permite a cada qual inventar no céu de sua existência a flor que brota dos efeitos vivificantes do significante sobre seu corpo e ainda tolerar a permanência desse objeto insólito e disparatado junto de si tempo suficiente para que seja possível colher seus frutos Assim quem pensa que o ser humano difere dos animais por poder sonhar com a flor de lótus azul que brota no vazio julga que mesmo no caso de duas pessoas que nasceram e morreram no mesmo instante não se pode dizer que o tempo de sua vida teve a mesma duração Nesse caso o que faz a diferença é justamente a palavra vida a ser diferenciada da mera sobrevivência Enquanto partilhamos a última instância com os animais a primeira depende exclusivamente da capacidade de vislumbrar a maravilha do encontro onde outros só veem os efeitos do destino A ANGÚSTIA E A INTRODUÇÃO DO INTERVALO QUE DELIMITA A SUCESSÃO TEMPORAL Na introdução deste capítulo vimos que a expressão tempo da flor recobre a extensão da duração de sua existência em nada se relacionando com o fato de a flor não ter meios para perceber marcar analisar ou temer os efeitos da passagem do tempo Essa questão já era cara para Aristóteles Uma longa exploração a respeito do tempo pode ser lida na segunda parte de sua obra Filosofia natural mais especificamente na física Em se tratando do ser humano postula o grego a principal característica do tempo é poder ser fracionado e dividido Ligava portanto a percepção temporal aos aspectos da língua que marcam passado presente e futuro em especial verbos e advérbios Ao ver o tempo como um ser em potência cuja totalidade e duração exata ilimitada nos fogem Aristóteles afirmava que o que já foi não o é e o que será ainda não o foi Ele ligava a percepção do tempo com o acontecimento do movimento definindoo portanto como a quantidade de movimento segundo um antes e um depois ARISTÓTELES 1941 219 b12 Por que fazer essa recuperação da teoria de Aristóteles pode estar se perguntando o leitor Por dois motivos que em tudo estão relacionados com a duração de uma sessão e de uma análise Para o filósofo 1 o tempo que interessa é o agora um período delimitado que nos permite estudálo O tempo não é porque ele será ou já foi ARISTÓTELES 1941 IV 10217 b35 marca ele e 2 o tempo não é a soma de vários agoras pois esse termo agora não tem extensão é uma qualidade do tempo e não uma quantidade Em suma na dimensão temporal o anteriorposterior fundamento do tempo só pode ser concebido segundo a distância em relação ao agora definido como o anteriorposterior enquanto numerável ARISTÓTELES 1941 219 b25 Limite que conecta os dois termos da sucessão temporal o agora permite a ordenação do tempo em uma ordenação numérica no movimento O que acontece com os pacientes para quem essa ordenação constituída pelo intervalo de tempo que delimita o anteriorposterior não se instala O caso de Steves paciente de Teresa Genesini cujo caso foi discutido na Clínicaescola do Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA é um bom exemplo disso Encaminhado para tratamento por uma médica neurologista que avaliou que ele estava muito deprimido com risco de suicídio Steves permanecia do mesmo modo desde a morte de sua mãe ocorrida seis meses antes do contato com a neurologista muito magro malvestido com a barba e os cabelos malcuidados acabrunhado e desanimado tinha chegado a ficar vinte dias sem tomar banho Sem trabalhar Steves permanecia sentado sobre o túmulo de sua mãe a maior parte de seus dias O fragmento de um diário reproduzido no Quadro 1 mostra como para esse paciente antes de ter se submetido à psicanálise seu tempo era por assim dizer o tempo da flor uma espécie de reiteração de um mesmo agora Quadro 1 Retrato da relação de um paciente com o tempo antes do tratamento psicanalítico O que teria acontecido se Teresa Genesini na condução da análise deste paciente se pautasse no tempo do relógio para decidir quando começar e quando terminar suas sessões O mais provável é que até hoje Steves estivesse sendo levado pela vida em um agora perpétuo sem intervalo para delimitar o anterior e o posterior Sem passado já que não é possível ressuscitar a mãe de ninguém e sem futuro já que suas ações o levavam fatalmente para a indigência ou mesmo para um suicídio decorrente da inanição Steves tampouco tinha um presente Assim mesmo que sobrevivesse o mesmo número de anos que uma pessoa cuja vitalidade fosse superior não poderíamos nos iludir pensando estarmos em face ao mesmo tempo de duração de uma vida De acordo com o pensamento de Sören Aabye Kierkegaard 18131855 Steves estava pouco humanizado pois para ele quanto maior a angústia maior a humanização Ligada à vertigem de liberdade o imenso sentimento de angústia nasce com a possibilidade e com o livrearbítrio de fazer algo Assim para Kierkegaard a angústia compreendida como o estado de transição que demarca os limites entre uma escolha que se evidencia pelo elemento qualitativo presente na possibilidade e a sua negação surge quando a vida sempre nos coloca diante de escolhas Nessa vertente da reflexão podemos afirmar que Steves estava vivo Se dia após dia cuidava de se pautar pela satisfação de suas necessidades permanecendo aquém da simbolização da morte da mãe ele não se colocava a possibilidade de escolher narrava sempre a mesma história Caso a analista burocraticamente não tivesse escolhido variar o tempo de duração das sessões como levar o desvitalizado paciente a ser informado pela sua angústia a respeito de suas possibilidades de escolha Tendo vindo a compreender que se a morte é inevitável o sentido e a interpretação de uma existência são múltiplos o moço passou a entender que como afirmava Kierkegaard o existir supõe compromisso e risco Como a variação da duração da sessão pôde ajudar a obtenção desse resultado Provavelmente a intervenção da analista sob a forma do corte da sessão em momentos estratégicos incidiu sobre os intervalos do significante apontando para o semsentido para um elemento fora do significante em torno do qual giravam todas as representações que Steves tinha de sua mãe de cujo cadáver não podia se separar Marca de algo diferente daquilo que sempre determinou sua vida até aquele momento a angústia fez vacilar essa significação congelada abrindo caminho para a dúvida subjetiva é este mesmo o melhor modo de viver minha vida A FIXÃO E A INTRODUÇÃO DE UM PONTO DE AMARRAÇÃO NO REAL QUE PERMITE A MODULAÇÃO DA HISTÓRIA DE UMA VIDA Lacan esteve sempre atento tanto à necessidade de favorecer a expressão da dúvida quanto da introdução da pressa que caracteriza um fenômeno de tomada de decisão não apoiado na cristalização do signo linguístico Desde 1945 nomeou esse processo como asserção da certeza antecipada Compreendendo que o corte da sessão já é em si uma forma de interpretação o psicanalista esclareceu que ele visava à ressubjetivação e à reestruturação dos eventos da história do sujeito O tempo lógico é articulado ao tempo das sessões por meio do ato do analista que suspende o sentido por meio do qual o sujeito conta sua história sempre do mesmo modo Seu corte visa a apressar o tempo para precipitar a asserção subjetiva Impedindo a hesitação da pessoa o analista dá lugar à pressa precipitando os momentos de concluir em um ato que como na tradição zen não se assenta na racionalidade Para obter esse efeito Lacan costumava botar o sujeito porta afora antes que ele tivesse chance de concluir algo a respeito do conteúdo tratado em análise Assim ao impedir a produção de mais uma sequência por meio da qual alguém poderia tentar se livrar da própria angústia afirmava produzir intensos efeitos no paciente Em suas palavras Não diríamos tanto se não estivéssemos convencidos de que ao experimentar em um momento vindo à sua conclusão de nossa experiência o que se chamou de nossas sessões curtas pudemos fazer nascer em tal sujeito macho fantasias de gravidez anal com o sonho de sua resolução por cesariana num prazo em que de outra maneira teríamos ainda chegado até a escutar suas especulações sobre a arte de Dostoiévski LACAN 1953 p 17980 No texto que acabamos de transcrever vêse que à época Lacan buscava por meio da explicitação separar o sujeito da versão inconsciente da história de sua vida Nesse momento ainda não deixa claro entretanto o que acontece com a pessoa que ao abrir mão de uma versão que de um modo ou outro organiza sua existência pode cair na deriva Em um texto escrito em 1990 Jorge Forbes respondeu a esse enigma Afirmou que para explicar a plasticidade da identificação do humano é necessária uma teoria do significante Não ligado ao significado o significante tem de se ancorar no ponto de fixão no Real levando o sujeito a uma escolha forçada entre desejo sustentado pela articulação significante e gozo ligado à possibilidade de uma identidade Diferentemente do que se poderia pensar a fixão não impede o movimento ao contrário Na imagem de Forbes a fixão é um ponto fixo que como na dança ou na alavanca gera o movimento ou seja as ficções por meio das quais uma pessoa pode variar a sua história Em suas palavras A fixão do Real é o modulador das ficções Antes de atingila as ficções são repetições do mesmo do romance familiar Depois valendonos de que a fixão do Real origina a repetição da diferença dãose as ficções criativas Isso é fundamental a repetição da diferença por ser sempre outra coisa repetidamente diversa diverte e cria Deve ser a justa articulação de desejo e gozo FORBES 1990 O Quadro 2 ilustra a repetição da diferença Nele lêse a modulação do modo por meio do qual um paciente de quarenta anos narrou a própria história ao longo de um período de quinze semanas Agindo por longo tempo como se não houvesse intervalo entre dois agoras o jovem senhor se abriu para um modo diferente de viver Acompanhando a variação nas declarações feitas pelo paciente podemos perceber uma grande passagem ele deixou de se descrever como sendo incapaz de fazer algo não previamente programado e passou a incluir sem medo a possibilidade de viajar sem rumo apenas pelo prazer de viver Vêse portanto que o manejo do tempo da sessão foi um dos principais instrumentos para 1 impedir a cristalização da articulação significante e permitir que o sujeito se deparasse com a esquisitice de sua própria existência que em suas palavras continha uma fera 2 proporcionar uma quebra que permitiu a irrupção do objeto singular que a partir de uma análise passou a ser o único a responder por sua satisfação no caso a completa alteração do trabalho feito pela equipe de cinquenta pessoas que ele liderava CONSIDERAÇÕES FINAIS Perguntamos como o analista decide o tempo de duração da sessão Por meio de dois exemplos buscamos mostrar que bem mais importante do que a duração em si é o manejo do corte ou do prolongamento das sessões para levar ao desmoronamento da ficção que cristaliza o sofrimento em prol da instauração de uma fixão que permite variação Em cada uma de suas sessões portanto uma psicanálise deve durar o tempo suficiente nem mais nem menos Por parte do analista tratase de estar atento para ao se deparar com a metáfora por meio da qual alguém organiza seu gozo mortífero desmanchála e ao impedir sua reconstrução por meio da interrupção da sessão inaugurar uma modulação temporal inédita uma nova organização da vida do analisando Fruto dos efeitos vivificantes do significante sobre o corpo a nova organização temporal alarga cada instante de uma existência pois para voltar à metáfora por meio da qual abrimos o capítulo deixa sempre em aberto a possibilidade do encontro com uma flor de lótus azul flutuando no vazio do signo linguístico que desmanchou Sua presença instaura um corte radical no fluxo temporal cujos efeitos são 1 a introdução de uma pressão irredutível que impede tanto a acomodação ao tempo da natureza quanto a insistência da manutenção da mesma modulação significante e 2 a instauração de um entusiasmo contagiante que preserva a pessoa do envelhecimento psíquico Para quem consegue tolerar a permanência desse objeto insólito e disparatado junto de si a ponto de se apropriar dele o tempo de uma vida se expande Não é mais o tempo das cinco folhas mas sim da fruição de cada uma das folhas que são oferecidas para quem se abre aos encontros Referências bibliográficas ARISTÓTELES Physics Trad HARDIE R P and GAYE R K In The basics works of Aristotle New York Random House 1941 FORBES Jorge Fixões In Agenda de psicanálise O corpo na psicanálise Rio de Janeiro Relume Dumará 1990 p 6973 KIERKEGAARD Sören O conceito de angústia Lisboa Hemus 1968 LACAN Jacques 1945 O tempo lógico e a certeza antecipada Um novo sofisma In Escritos São Paulo Perspectiva 1978 p 69 86 1953 Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise In Escritos São Paulo Perspectiva 1978 p 101 87 ZENJI Dogen 1244 Shobogenzo Olho e tesouro da verdadeira lei Trad Kosen Nishiyama e John Stevens Tokyo Nakayama Shobo 1986 FALEM MAL MAS FALEM DE MIM POR QUE O ANALISTA LACANIANO CAUSA TANTO IMPACTO SANDRA ARRUDA GROSTEIN INTRODUÇÃO A psicanálise nasce escandalosa pelo menos aos olhos de Freud quando compara os efeitos desconcertantes provocados pelas primeiras exposições psicanalíticas aos de duas outras proposições uma do século XVII a cosmologia de Galileu e outra do século XIX a biologia de Darwin Nesses três casos o homem perdeu três grandes ilusões a ilusão da coincidência com o centro do mundo a da filiação de uma genealogia singular e a de acessar a total consciência de si LACAN 19661998b Isto é os efeitos escandalosos não necessariamente anunciam uma ruptura mas uma resistência a renunciar à ideia de que a cada verdade corresponda um saber A TOTAL CONSCIÊNCIA DE SI Tanto Freud quanto Lacan preocupavamse em identificar a psicanálise a um campo do saber e no século XX o importante era reservar seu lugar junto à ciência Para tanto a psicanálise teria de se submeter à metodologia da época contentandose em pertencer às ciências humanas Isso no entanto desagradava bastante Lacan que atribuía à denominação ciências humanas a própria voz da servidão considerando o termo falso exceto para a psicologia que descobriu meios de se perpetuar nos préstimos que oferece à tecnocracia LACAN 1998a p 874 Já nessas considerações podemos identificar uma posição firme de Lacan questionando o lugar da psicologia As críticas dirigidas a essa disciplina são sustentadas nas elaborações conceituais de Georges Canguilhem no texto O que é psicologia 2002 p 365 no qual sugere que a unidade da psicologia devese mais a acordos entre profissionais do que a uma essência lógica obtida pela revelação de uma constância numa variedade de casos CANGUILHEM 2002 p 365 Canguilhem propõe então as seguintes subdivisões psicologia como ciência natural como ciência da subjetividade a física do sentido externo a do sentido interno e a do sentido íntimo e a psicologia como ciência das reações e do comportamento Discute também os aspectos relativos ao método e ao objeto da psicologia apesar das aparências é pelo objeto mais do que pelo método que uma psicologia é chamada clínica psicanalítica social etnológica Todos estes adjetivos são indicativos de um só objeto o homem CANGUILHEM 2002 p 367 Lacan critica a psicologia principalmente por discordar de seu privilégio em relação às ciências humanas questionando essa especificidade ao dizer que não há a ciência do homem porque o homem da ciência não existe mas apenas seu sujeito LACAN 19661998a p 873 Afinal de que sujeito se trata Utilizase em sua hipótese de uma modalidade muito especial de sujeito aquele para o qual só encontramos o índice topológico LACAN 19661998a p 873 A psicologia ao tratar da subjetividade diz por exemplo que por subjetividade entendese a constituição de um plano de interioridade reflexiva em que cada vivência se encontra centrada e ancorada em uma experiência de primeira pessoa de um eu FERREIRA 2005 p 16 Psicanálise e psicologia se diferenciam pois na psicanálise não se confundem os conceitos de eu e de sujeito de interioridade e de exterioridade o sujeito está por exemplo numa exclusão interna a seu objeto LACAN 19661998a p 869 Para Canguilhem é a partir do fim da psicologia como parafísica como ciência natural tal qual desenvolvida na física aristotélica no século XVII que há o nascimento da psicologia como ciência da subjetividade advinda dos físicos mecanicistas Ele propõe que a psicologia se faz física do sentido externo para dar conta dos contrassentidos de que a física mecanicista acusa o exercício dos sentidos na função de conhecimento CANGUILHEM 2002 p 369 O desenvolvimento do conceito de sujeito e de subjetividade se orienta em uma história que pode ser contada como um capítulo dentro do domínio que Foucault 1984 chamou de história das técnicas de si procurando pois desvendar as formas como os indivíduos estabeleciam relações de trato e cuidado consigo desde a Antiguidade pagã FERREIRA 2005 p 15 Para Canguilhem o estudo da subjetividade também pode ser entendido como ciência da consciência de si ou ciência do sentido interno e o início dessas preocupações acontece com Descartes para quem o interior é o conhecimento direto que a alma tem dela mesma CANGUILHEM 2002 p 371 Nesse sentido estabelecese na psicologia uma relação de contiguidade entre a subjetividade e a interioridade em que podemos identificar não haver concordância entre diferentes autores pois para Leal Ferreira 2005 p 16 a invenção da interioridade individualizada e da hermenêutica como instrumento de verdade só será processada a partir de uma ética cristã gestada a partir do século II dC Há mudanças entre a interioridade na ética cristã e o cuidado de si moderno pois não se busca mais uma purificação da alma para atingir Deus mas uma pura afirmação de si FERREIRA 2005 p 16 Podemos dizer no entanto sem muitos riscos de errar que dois nomes são consensuais quando se trata do estudo da subjetividade e da interioridade Descartes e Kant Para o filósofo moderno René Descartes 15961650 o recurso à própria subjetividade é a base para o estabelecimento das novas certezas e o palco para que se possa distinguir a verdade do erro SUJEITO VERDADE E SABER Para Lacan 19661998a p 870 o sujeito é um correlato essencial da ciência inaugurado por Descartes através de seu chamado cogito a partir do qual se promove a divisão entre o saber e a verdade A busca da concepção de verdade que corresponda ao saber promovido pela psicanálise como prática e a consequente inclusão desta no campo da ciência leva Lacan a abdicar da verdade como causa A intuição imediata do próprio eu pensante impõe um novo ponto de partida para o pensamento ocidental não mais a busca das essências dos seres como no pensamento antigo ou o fundamento divino da existência como no pensamento medieval mas o Espírito e o Sujeito enquanto sedes da verdade É neste ponto que o pensamento ocidental se torna predominantemente voltado para o conhecimento para saber da verdade dos objetos conhecidos passa a ser necessário saber antes da verdade do sujeito FERREIRA 2005 p 19 Esse sujeito próprio do inconsciente difere radicalmente do objeto da psicologia já que a psicologia nasce no ponto em que a prática do homem encontra sua própria contradição segundo Foucault a psicologia do desenvolvimento nasceu como reflexão sobre as interrupções do desenvolvimento a psicologia da adaptação como uma análise dos fenômenos de inadaptação a da memória da consciência do sentimento surgiu como uma psicologia das perturbações afetivas Podese dizer que a psicologia em sua origem é uma análise do anormal do patológico do conflituoso uma reflexão sobre as contradições do homem consigo mesmo FOUCAULT 1999 p 124 As grandes linhas de divergência entre esta perspectiva da psicologia a de identificar o sujeito como sede da verdade ou uma análise do anormal a partir da reflexão sobre as contradições consigo mesmo e a psicanálise permitem uma distinção entre o sujeito psicológico e o sujeito da psicanálise Lacan imbuído de seu dever de explicitar essa distinção atribui à psicologia uma função de técnica de adaptação à ordem pública Analogamente Canguilhem também bastante crítico enuncia que em muitos trabalhos de psicologia temse a impressão de que se confundem uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle CANGUILHEM 2002 p 366 Mas não é suficiente se diferenciar de outras técnicas para que o psicanalista saiba o que acontece com sua práxis ou simplesmente saiba que a dirige em conformidade com o que lhe é acessível Não basta que a divisão do sujeito seja para o psicanalista um fato empírico É preciso certa redução às vezes demorada para se efetuar mas sempre decisiva no nascimento de uma ciência redução que constitui propriamente seu objeto LACAN 19661998a p 869 DEBATE COM OS PARES PSICANALISTAS O que o psicanalista deve saber ignorar o que ele sabe LACAN 19551998b p 351 Um dos pontos de debate de Lacan com os seus pares é condicionar a psicanálise a mais uma técnica dentro do campo da psicologia pois para ele um desvio da psicanálise seria fazer equivaler a criança ao primitivo Justifica o equívoco da teoria em curso ao encarnar o sujeito no homem fazendoo voltar à criança tratando assim o processo primário como primitivo e mascarando a originalidade do que se passa durante a infância Além disso deixa explícita sua divergência com a tendência dentro da psicanálise que ficou conhecida como selfpsychology O sujeito é diferente de um si mesmo daquilo que é chamado por uma palavra elegante em inglês o self O fato de dizêlo em inglês isolao e permite distinguir bem o que isso significa ou seja o que há de irredutível na presença do indivíduo no mundo Esse self transformase em sujeito propriamente dito e sujeito barrado no sentido como o simbolizamos na medida em que é marcado pela condição que o subordina não somente ao Outro como lugar da fala mas ao Outro como ele mesmo Não é o sujeito da relação com o mundo da relação do olho com o mundo da relação sujeitoobjeto que é a do conhecimento É o sujeito que nasce no momento da emergência do indivíduo humano nas condições da fala e como marcado portanto pelo Outro por sua vez condicionado e marcado pelas condições da fala LACAN 1999 p 488 9 O caminho traçado por Lacan do retorno a Freud já anunciava ou denunciava o desvio que a psicanálise teria sofrido após a morte de Freud o que lhe custou o afastamento compulsório da Associação Internacional de Psicanálise IPA em 1964 Lacan insiste que a psicanálise é uma prática subordinada em sua destinação ao que há de mais particular no sujeito e que a ciência analítica deve ser recolocada em questão na análise de cada caso LACAN 19551998b p 325 O analista com efeito só pode enveredar por ela ao reconhecer em seu saber o sintoma de sua ignorância e isso no sentido propriamente analítico de que o sintoma é o retorno do recalcado e de que o recalcado aqui como alhures é a censura da verdade A ignorância de fato não deve ser entendida aqui como uma ausência de saber mas tal como o amor e o ódio como uma paixão do ser porque ela pode ser à semelhança deles uma via em que o ser se forma Nas palavras de Lacan O fruto positivo da revelação da ignorância é o não saber que não é uma negação do saber porém sua forma mais elaborada A formação do analista não pode concluirse sem a ação do mestre ou de mestres que o formam nesse não saber sem o que ele nunca será nada além de um robô de analista LACAN 19551998b p 325 TEMPO LÓGICO E A SESSÃO CURTA Outra faceta fundamental da fama do psicanalista lacaniano como aquele que em sua particularidade gera alguma suspeição é o famigerado tempo lógico Esse tempo em contrapartida ao tempo cronológico produziu como efeito principal as sessões curtas Lembremos entretanto que essa unidade de tempo é aleatória Ela respeita muito mais a um hábito do que propriamente a uma fundamentação teóricoclínica A principal consequência da introdução de uma nova modalidade de término de cada sessão ou seja não mais o relógio e sim a lógica é exatamente poder identificar no momento da fala algo que opere enquanto uma função de corte Lacan é bastante preciso quando diferencia o corte da interrupção ou mesmo da suspensão Muitos aspirantes a analistas lacanianos se atrapalham profundamente com essas três modalidades Interpretar como corte não tem nada a ver com exclusivamente diminuir o tempo da sessão de quarenta e cinco para dez ou quinze minutos nem tampouco instituir um cacoete de terminar a sessão em momentos candentes Para ensinar a função do corte na sessão analítica Lacan precisou utilizarse de figuras topológicas isto é nem o discurso muito menos a intuição é suficiente para efetivar essa transmissão A experiência como analisando então se torna de absoluta necessidade O analista não fala com o sujeito e no entanto está atento à fala para incluir aí a interpretação como corte O que é preciso recortar no discurso do analisando na articulação do saber com a verdade é da ordem do sexual Além do escândalo provocado pelo descentramento do sujeito com a proposta do inconsciente há sem dúvida o aspecto sexual como responsável constante do malentendido em relação à psicanálise Ao se fazer de receptáculo dos aspectos menos nobres da personalidade de seus pacientes fatalmente ele pode se tornar um alvo interessante para as acusações daqueles que não conseguem se conciliar com as próprias imperfeições Se Freud se mostra aberrante perante a comunidade científica de sua época com a proposição de uma sexualidade infantil Lacan por sua vez causa impacto com não há relação sexual e a mulher não existe LACAN 19721973 Tanto uma formulação quanto outra nos remete ao conhecido aspecto de que a sexualidade humana se difere radicalmente daquela dos animais já que somos seres de fala e portanto a inclusão da linguagem na sexualidade produz efeitos A psicanálise se ocupa desses efeitos isto é o sujeito do inconsciente depende da linguagem para se estabelecer como evanescente e ao se incluir na linguagem perde o que o representa como ser sexuado Então no campo da sexualidade não há um significante que determine o sujeito como homem ou mulher e o que a psicanálise sugere é que para o exercício da sexualidade há um significante próprio a cada um que não está ligado à linguagem cuja função é fazer um corpo gozar sexualmente MUDANÇA INSTITUCIONAL A manutenção de certos princípios orientadores do ato analítico e uma fidelidade aos conceitos freudianos como apresentados anteriormente fazem Lacan fundar a Escola Freudiana de Paris cuja estrutura é bastante diferente daquela proposta por Freud em 1910 Ele apresenta dispositivos institucionais inovadores que buscavam incluir no interior de sua Escola além dos psicanalistas em formação seus alunos não analistas que viriam descompletar o conjunto sendo coerente com uma visão na qual o clínico o teórico e o institucional se articulam Define seus objetivos da seguinte maneira Vamos tratar de estruturas asseguradas na psicanálise e de garantir sua efetivação no psicanalista Isso se oferece à nossa Escola após uma duração suficiente de órgãos esboçados com base em princípios limitativos Não instituímos o novo senão no funcionamento É verdade que daí surge a solução para o problema da Sociedade Psicanalítica A qual se encontra na distinção entre a hierarquia e o Gradus LACAN 2003 p 248 Lacan para definir o Gradus escolheu dois títulos os AME analistas membros da Escola e os AE analistas da Escola Foram também criados consequentemente dois dispositivos diferentes para definir tais nomeações a comissão de garantia e o passe A Escola de Lacan foi instituída como uma comunidade capaz de se interpretar de se responsabilizar pela formação dos analistas sendo o procedimento do passe um instrumento que deveria permitir à Escola pensar a sua prática ZBRUN 2007 O título de AE é dado por três anos àqueles suscetíveis de testemunhar a respeito dos problemas cruciais da psicanálise segundo os estatutos das Escolas da Associação Mundial de Psicanálise Dessa forma o que se privilegia nessa titulação é tanto o testemunho quanto a localização dos problemas que possam obstaculizar o avanço da psicanálise Para Lacan no entanto não se ensina a ser psicanalista a transmissão da psicanálise se confunde com a própria psicanálise o que faz dela uma disciplina muito particular em que aparentemente o saber e o fazer não estão dissociados GROSTEIN 2011 p 163 HERDEIROS DE LACAN A nova clínica psicanalítica é uma teoria sobre o incurável MILLER 2011 p 11 A reputação do psicanalista lacaniano muitas vezes associado a alguém hostil que cobra caro pelas sessões curtas e habilidoso na arte da interpretação como corte atualiza com frequência os aspectos escandalosos próprios à psicanálise seja a perda da total consciência de si seja a importância da sexualidade na vida dos humanos Nessa herança da caricatura de que o analista lacaniano promove rupturas há sem dúvida um desconhecimento a respeito da necessidade em psicanálise da manutenção do dispositivo de fala por meio da qual se visa a manter aberta uma fenda Tanto na obra de Freud como no ensino de Lacan podemos encontrar as referências para exercer uma prática que ao mesmo tempo se distancia da terapêutica e do tratamento no sentido da cura dos sintomas como encaminha para um saber fazer com o sintoma que comporta algo do incurável Para concluir gostaríamos de responder à pergunta que intitula este capítulo afirmando que o impacto causado pelo analista lacaniano pouco se relaciona com sua pessoa Ele se funda principalmente na natureza de seu trabalho caracterizado pela necessidade de presentificar um elemento surpreendente inesperado Ao equivocar e ao colocar em cena algo que não se explica ele comove faz ressoar Que falem dele neste contexto é mera consequência Referências bibliográficas CANGUILHEM Georges Questce que la psychologie Études dHistoire et de Philosophie des Sciences concernant les vivants et la vie Paris Librairie Philosophique J Vrin 2002 FERREIRA Arthur Leal et al orgs História da psicologia rumos e percursos Coleção Ensino da Psicologia Rio de Janeiro Nau 2005 FOUCAULT Michel Problematização do sujeito psicologia psiquiatria e psicanálise Coleção Ditos amp Escritos v 1 Org Manoel B da Motta Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Forense Universitária 1999 GROSTEIN Sandra A transmissão da psicanálise entre a refundação lacaniana e a invenção própria de cada um In Opção lacaniana n 62 dez 2011 p 1113 LACAN Jacques A ciência e a verdade In Escritos Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 19661998a Variantes do tratamentopadrão In Escritos Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 19551998b O seminário Livro V As formações do inconsciente Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros escritos Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 19721973 O seminário Livro XX Mais Ainda São Paulo Jorge Zahar 2005 MILLER JacquesAlain Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan entre desejo e gozo Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 2011 ZBRUN Mirta A escola de Lacan e a formação do psicanalista In aSephallus Revista Eletrônica do Núcleo Sephora vol 2 nº 4 2007 Disponível em httpwwwisepolcomasephallusnumero04pdfartigo07pdf Acesso em 14 de maio de 2013 PARTE 3 A ANÁLISE SUAS ESCANSÕES E SEUS IMPASSES A MÁGICA DA PSICANÁLISE A PRÁXIS DO IMPOSSÍVEL NOS CASOS DIFÍCEIS JORGE FORBES INTRODUÇÃO Na primeira parte deste livro discutimos o que ocorre quando um psicanalista decide aceitar alguém em análise Deixamos claro que a aceitação não garante o sucesso do tratamento Na segunda estudamos como levar uma pessoa a abandonar a linguagem comum em favor do trabalho próprio da análise Nesta terceira parte veremos as escansões e os manejos feitos para superar os impasses da clínica Em busca de dinamismo solicitei a Claudia Riolfi que investigasse quais são as questões que um iniciante gostaria de ver respondidas mas não tem coragem de perguntar Ela preparou dez perguntas para este capítulo o que nos permite trabalhar com um batebola BATEBOLA PSICANALÍTICO 1 Claudia Riolfi Qual foi o caso mais difícil que você já atendeu Você pode dizer o que o tornou mais complicado que os outros Jorge Forbes Um caso difícil é aquele em que o analista não consegue pôr o paciente em análise e se vê angustiado Parto de uma tese o analista funciona com a surpresa Tem que ser inesperado Seu trabalho enfatiza o presente e não cultiva esperança Por isso o caso difícil para o analista não é necessariamente um caso grave Só a moral define o que é mais ou menos grave A psicanálise tem outros critérios Freud 19371975 considerava que um analista só consegue conduzir uma análise até o ponto em que aprofundou a sua Lacan 19581998 dizia que o tratamento encontra obstáculos quando o analista responde com angústia à demanda de um paciente Para nós os casos difíceis são aqueles em que o analista não consegue sair da posição na qual o analisando o fixou e perde a capacidade de conduzir a análise pelo equívoco e pela surpresa Darei exemplos O psicanalista italiano Antonio Di Ciaccia possui um relato interessante de como recuperou sua mobilidade após um tempo de entrave com uma análise Ocorreu mais ou menos assim uma histérica o procurou para tratamento O início foi típico Em geral na primeira entrevista acontece um contato que só adquire significação no retorno Até aí tudo tende a correr bem Na terceira sessão começa a se estabelecer uma série e as dificuldades aparecem Este caso não fugiu à regra Já nessas entrevistas preliminares a paciente dizia coisas como eu o procurei é que pelo menos sabe pelo menos o senhor é um homem Depois mostrouse o obstáculo homem não entende de mulher Como posso fazer análise com o senhor Nesse momento o analista a interpelou o que faz a senhora pensar que eu seja um homem É admirável como ele conseguiu se deslocar da posição fixa em que ela o colocou Com esse gesto tirou a dificuldade do caso Na minha clínica há um exemplo que guarda certa semelhança com o precedente Tratase do caso de uma senhora com câncer de mama que assistia à televisão o dia inteiro Especificamente buscava programas que falassem a respeito de câncer de mama Não trabalhava não cuidava dos filhos e da casa não lia nada não via filmes Só discutia o tema Sem dúvida procurou análise para poder falar mais a respeito Pouco a pouco descobri que para ela era impossível se desapegar da doença porque a entendia como um castigo divino Em sua interpretação era uma penitência por ter traído o marido Eu quis entender por que em sua fantasia Deus a puniria daquela maneira Ela respondeu que sendo católico de formação eu não poderia compreender a lei terrível do judaísmo O caso permaneceu difícil durante o tempo em que aceitei o diagnóstico que ela me atribuía Decidido a alterar o estado de coisas recorri à Bíblia Quando um dia ela novamente mencionou o Deus terrível eu disse olha a senhora está enganada porque Deus não está minimamente ligado em sua mama Sou católico mas o Velho Testamento é igual para nós dois O que difere é o Novo Testamento Então lhe digo nosso Deus não está nem um pouco interessado em mama de mulher Ele está interessado em pênis de homem porque afinal de contas o que ele pede é circuncisão O curioso é que esta afirmação absurda foi convincente Ela não insistiu mais na hipótese do câncer como castigo divino Enfim um terceiro exemplo Um senhor me procurou para se queixar do frequente aumento do valor da sessão que eu fazia para alguém de sua família Eram aqueles anos de inflação veloz no Brasil Ele alegava que meus aumentos estavam acima da taxa governamental Trouxe muitas provas dados econômicos e financeiros todos aceitos por mim Mas não mudei a conduta Quis sinalizar que existia algo além das provas contabilizadas Um ano mais tarde então ele me procurou novamente Dessa vez para pedir análise Para ele eu nunca aumentava o preço da sessão Como a inflação prosseguia o valor logo ficou ridículo em relação aos praticados à época No terceiro ou quarto mês começou a nascer um incômodo No quinto mês ele tinha uma série de perguntas importantes por que eu pago menos que todo mundo Por que diferente Por que tão pouco Muitas pessoas querem pagar para justificar a atenção que recebem Ele insistia por que você me dá atenção se eu não te dou nada Os três exemplos têm algo em comum ensinam que para um caso não se tornar difícil o analista precisa escapar das posições fixas que lhe atribuem os analisandos no primeiro caso de homem no segundo de católico e no terceiro de parceiro interessado em dinheiro do paciente que calculava a inflação Um detalhe clínico crucial é importante que o deslocamento seja feito sem contradizer o que a pessoa diz apenas pelo equívoco 2 Claudia Riolfi Certa vez ouvi seu relato sobre a angústia de sua secretária diante de uma paciente conhecida por ser suicida A secretária teria ficado tão apavorada que queria passar a suicida na frente dos demais pacientes que lhe aguardavam Você narrou que deliberadamente a deixou na sala de espera Chamou alguns antes da moça Quando ela entrou estava furiosa Questionou de imediato você não sabe que eu sou suicida Ao ouvir essa história eu concluí mesmo com os antecedentes você não achou que se tratava de uma urgência Posto isso minha pergunta como diferenciar quem vai se matar mesmo de quem pode aguardar na sala de espera Jorge Forbes É evidente que houve risco em minha decisão mas a psicanálise é uma clínica arriscada Para quem começa sua prática agora recomendo que não leve a conduta a um limiar extremo Há uma linha de risco que só com a experiência um clínico saberá sentir Neste caso as informações começaram a me orientar já no momento em que a médica ligou para esclarecer o encaminhamento Ela é dermatologista e disse pelo amor de Deus você tem que atender já senão ela vai se matar aqui no meu consultório É de se estranhar uma pessoa suicida que vai a um consultório especializado em cosmética Havia mais dois dados clinicamente relevantes a paciente estava acompanhada e a médica ligou para mim em vez de chamar um prontosocorro e fazer ela mesma uma intervenção Perguntei mas você está encaminhando uma pessoa para se suicidar aqui Ela disse é mais comum uma pessoa se suicidar no consultório de um psiquiatra do que no de um dermatologista O pior é que ela falou sério A paciente fazia um espalhafato que convenceu sua acompanhante angustiou a dermatologista e por fim também minha secretária Eu não precisava ser o próximo apavorado A última coisa que eu poderia ter feito era o que Lacan 196819692008 chamava dar consistência ao Outro Se eu me angustiasse se fosse mais um a acreditar nela arriscaria deixála presa à posição de suicida Quando finalmente a chamei à minha sala ela disse Você não sabe que eu sou a suicida encaminhada pela doutora Maria Como pôde mandar outras pessoas entrarem na minha frente O senhor não sabe que já tentei me matar duas vezes Nesse momento intervim Minha senhora do que vamos tratar do suicídio ou da sua incompetência Ela então se sentou e falou já haviam me dito que o senhor era meio diferente A partir desse choque inicial a conversa se tornou possível Era uma pessoa que estava muito angustiada mas não tinha intenção de morte apenas achava que essa fosse a única saída O que apresentava era uma enorme demanda de atenção dirigida ao outro Leveia a compreender que as tentativas de suicídio fazem barulho mas não ajudam no encontro amoroso 3 Claudia Riolfi Nossos alunos do curso online enviaramnos muitas perguntas algumas recorrentes O termo psicose por exemplo é o que aparece mais vezes Lendo as dúvidas vejo que as pessoas morrem de medo de atender psicóticos O que você diria a elas Jorge Forbes Que não atendam porque haverá sustos ninguém vem ao mundo com letreiro na testa escrito sou psicótico Nós não temos nenhuma maneira de prever uma crise A qualquer momento ela pode ser desencadeada O fazer analítico é arriscado Para quem se tortura pensando no que fará diante de uma crise eu friso não atenda Porque não existe clínica sem solavanco Também precisamos urgentemente acabar com a crença de que só crise psicótica é complicada Uma crise histérica só não é complicada para quem nunca a viu 4 Claudia Riolfi Será mais fácil atender um psicótico do que tomar em análise uma histérica daquelas que em um de seus trabalhos anteriores você chama de Medeia FORBES 2003 Jorge Forbes Crises histéricas são gravíssimas Escolhi a nomeação epidemia de Medeias em homenagem à personagem que vendose desamada por Jasão não teve outra ideia a não ser matar os próprios filhos para atacar o amado Esse tipo de comportamento disparatado e excessivo tem se reafirmado na globalização com a perda de referência paterna Antes existiam padrões diante dos quais a histérica se orientava suas crises eram dirigidas Agora virou algo terrível quase generalizado e implacável Passase da proximidade com o outro ao seu apagamento em uma fração de segundos 5 Claudia Riolfi Na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo com Mayana Zatz você desenvolve uma clínica pioneira desde agosto de 2006 Juntos vocês fazem a primeira entrevista com o paciente Em seguida discutem o caso que será acompanhado por um psicanalista de sua equipe Três meses depois o paciente retorna a você para nova entrevista Assim ao menos é o que foi disposto No entanto após mais de 70 casos atendidos já presenciei muitas variações Pode acontecer que a primeira entrevista se multiplique em até quatro ou cinco Pode acontecer de no início da primeira entrevista você dar o seu telefone celular ao paciente Já vi você ser muito convincente ao afirmar eu vou te encaminhar a um profissional mas em qualquer momento que precise você pode ligar para mim Em aproximadamente 10 dos casos mesmo com o encaminhamento você se coloca diretamente em jogo na análise que se inicia Então indago como você decide entre se envolver ou tranquilamente deixar o paciente ser atendido por outro psicanalista Jorge Forbes Entendo que o analista deva estar disponível ao seu analisando Cabe a ele cuidar das pessoas ao dirigir o tratamento analítico Não pode nem se importar com o fato de que provavelmente algumas ficarão bravas com ele durante o trajeto Nesse sentido o cuidar está mais próximo ao do cirurgião que ao do clínico geral A operação muitas vezes independe da reação do paciente Darei exemplos considerando a postura do analista Existe uma corrente clínica bastante difundida diferente da lacaniana em que os clínicos não dão o seu telefone de casa ou celular ao paciente Muitos sequer lhe estendem a mão Dizem que o analista deve ser uma tela em branco para receber as projeções do analisando Creem que qualquer elemento de sua vida particular contamina o setting psicanalítico Já Lacan não acreditava que fosse possível para alguém comportarse como uma tela em branco Se você coloca em análise um alcoólatra estabilizado há uma possibilidade grande de ele entrar em novas crises Nesses casos como não atender uma crise de angústia às quatro horas da manhã Na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano atendi um senhor que fazia um importante uso de drogas até recentemente Na entrevista inicial ele disse que estava limpo Como era alguém que se põe em questão o encontro foi muito intenso Em pouco tempo foi possível localizar pontos bem importantes Então expliqueilhe que durante três meses seria atendido por um colega Ele quis saber a continuidade não é com o senhor Respondi Não mas estarei o acompanhando Aqui está meu celular Estou disponível a qualquer momento Às vezes analistas temem que a pessoa vá abusar mas isso só acontece em certos quadros clínicos Em minha carreira aconteceu poucas vezes Um rapaz bastante culto e muito complicado estava em análise Começou a me contar que os finais de semana dele eram terríveis porque ficava muito angustiado Ligava para sua noiva sempre no meio da noite às três quatro horas da manhã Quando ela não atendia chamava seu pai Eu disse você tem que ligar para o seu analista Ele estranhou mas como vou ligar para o senhor assim no meio da noite Eu reiterei que ligasse a qualquer momento não acho certo você entrar em análise e ficar incomodando sua noiva e seu pai você tem que ligar para mim Nossa conversa foi em uma quartafeira e eu tinha uma previsão do que iria acontecer Era sábado para domingo três e meia da manhã quando tocou o telefone Atendi e ele logo perguntou Tudo bem mesmo eu ter ligado doutor Claro que não respondi Desconcertado ele replicou Mas o senhor disse que eu podia ligar Continuei Sim mas para eu te dizer que isso é um absurdo Fiz isso porque afinal de contas até para dizer que é um absurdo tem hora certa Marcamos outra ligação para o dia seguinte Clinicamente se você diz algo antes tem um efeito no momento certo tem outro Às vezes é absolutamente necessário deixar que um ato se realize para falar dele em tempo real Como dizia Freud 19121969 p 143 não existe análise em ausência ou em efígie Aconteceu a Lacan cobrar quando um paciente sonhou com ele ALLOUCH 1999 p 92 Uma análise não para não ocorre somente na sessão analítica Quem se dedica a ela terá de estar disponível o tempo inteiro 6 Claudia Riolfi Em minha prática clínica já ocorreu tomar alguma decisão e pensar segundos depois eu não devia ter feito uma coisa dessas Quando alguém chega à mesma conclusão qual é a melhor conduta Jorge Forbes Não há conduta É óbvio que existem erros O principal deles é não escutar o seu analisando pela angústia promovida em você Ocorre com todos nós Um clínico se destaca quando suporta ter feito uma besteira reconhece e consegue retomar o andamento mais rapidamente que os outros Ao o fazer reposiciona a análise na direção da qual não deveria ter desviado 7 Claudia Riolfi Já presenciei você dar lições de casa para pacientes conhecer um livro um espetáculo um filme a escrita de um diário Algumas pessoas a meu ver equivocadamente pensam que esse procedimento não atende ao ideal de pureza da clínica do Real que ficaria contaminado pelo imaginário e pelo simbólico É uma preocupação Jorge Forbes Não é o analista que apresenta o Real ao analisando O silêncio do Real fica mais claro nas presenças maiores da vida Por esse motivo o analista incita o analisando a buscar seu desejo de completude É diante do objeto desejado que uma pessoa se depara com o Real desconcertante Muitas vezes o analista faz alusão a algum tipo de conteúdo cultural para interessar o analisando quando há demanda Se o material for sensível para a pessoa se lhe parecer revelador pode produzir um equívoco sobre sua verdade íntima e evidenciar o silêncio efeito do Real Muitos clínicos estão presos a regras que banalizam suas condutas Acham por exemplo que não devem ceder se um paciente pedir para mudar uma sessão porque Lacan 19581998 afirmou que nunca se deve responder à demanda De um ponto de vista analítico muitas vezes somente quando uma pessoa tem o que pede é que ela percebe que não sabe o que pedir que não sabe o nome do amor Pode concluir então que precisará aprender a chamálo 8 Claudia Riolfi Um analista tem de ser puro ou pode ter opinião Precisa se sentir culpado quando após uma sessão de análise pensa que cara chato Estou certa em pensar que isso não faz a menor diferença com a condição de que esse pensamento seja seguido de uma curiosidade a respeito dos contornos singulares da chatice do paciente Qual sua perspectiva Jorge Forbes É uma pergunta clássica sobre a legitimidade dos sentimentos do analista Há os que se interrogam se deveriam levar sua análise ao ponto de não sentirem mais nada Aprenderam que quando acham alguém chato é porque transferencialmente a pessoa os tocou em algum ponto Então consideramse obrigados a ir ao analista e perguntar Por que sinto que o meu analisando é chato Se o analista fosse lacaniano responderia você sente que seu analisando é chato porque ele é chato O analista julgar alguém chato bonito feio inteligente ou ignorante não impede a análise mas sim a falta de curiosidade em saber da singularidade daquela vida Às vezes é formidável descobrir como a pessoa consegue ser tão chata Há pessoas interessantíssimas que não conseguem ser interessantíssimas Constroem uma chatice protetora para não arriscarem atrair alguém Essa preocupação no domínio da psicanálise foi justamente uma das razões para eu ter procurado Lacan Por volta de 1974 em meus estudos iniciais ensinavam que se um paciente parecesse chato para mim seria porque eu não estava suficientemente analisado Eu me interrogava Seria a análise algo que a gente faz para sentir que todos são iguais Se fosse assim eu jamais poderia ser psicanalista Em vez de desistir fui estudar Jacques Lacan e assistilo em seu seminário Foi um alívio quando encontrei os dois primeiros textos em que ele critica o uso da contratransferência como instrumento clínico o Seminário 1 LACAN 195319541983 e o texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder LACAN 19581998 Recomendo a leitura a todos É importante diferenciar uma sensação de uma ação profissional Por outro lado recomendo também desistir de tratar uma pessoa que não desperta curiosidade alguma Não estou absolvendo todos os chatos 9 Claudia Riolfi Você já falou que não acreditava em análise linear com começo meio e fim Em aula discutiu uma hipótese muito interessante uma análise inteira se desenrola em uma sessão A pessoa só volta na próxima porque não aguenta o Real Então propôs buscarmos maneiras de abreviar o tratamento e evitar a tendência de alguns pacientes a ficar enrolando por anos no divã Como precipitar o trabalho analítico Jorge Forbes Infelizmente temos um baú de explicações para lidar com a angústia de novas situações Freud 1915 19141969 percebeu como novas questões tendiam a evocar nas pessoas velhos hábitos que eram reações inadequadas Ele chamou as respostas antigas para fatos novos de resistências Elas alongam uma análise impedem o tratamento encobrem o Real que buscamos realçar na clínica Nós só temos uma história de vida mas ela não exige repetição É melhor poder contála de diferentes formas É uma questão da nossa era Com a globalização e o declínio do iluminismo anunciado principalmente por Friedrich Nietzsche 18882006 somos levados a tomar decisões fundamentais sem o saber necessário A complexidade tornouse grande demais para acreditarmos conhecer todas as variáveis de uma situação Na clínica não há esperança que uma pessoa possa saber melhor de si para depois agir de acordo As análises precisam ser ágeis Isso permitiu que Lacan 19451998 adequasse a sessão analítica à extração de uma certeza precipitada usando a compressão do tempo Ele encontrou pontos do discurso em que pudesse interromper as sessões e elas passaram a ter duração variável O analisando sai com a impressão de que não teve o tempo necessário de desenvolver todos os seus argumentos Com isso passa a suportar uma certeza precipitada Podemos sim pensar que uma sessão analítica seja uma análise inteira Então por que a pessoa não sustenta o efeito obtido Ela fica presa à ideia de que sempre faltou dizer algo Retorna inúmeras vezes para falar do mesmo ponto com argumentos diferentes Teoricamente poderia ter feito apenas uma sessão mas como lidar com a angústia Só com o tempo a pessoa consegue incorporar a certeza precipitada em sua vida 10 Claudia Riolfi Lacan 197219731985 faz um elogio à besteira afirmando que o significante é besta Como um analista pode diferenciar a besteira da conversinha miúda da abobrinha ao longo de uma sessão Jorge ForbesA pessoa que fala abobrinha costuma pensar que disse algo importantíssimo É o ouvinte quem considera aquilo uma abobrinha Já quem fala as besteiras como Lacan elogiou sabe que a palavra é insuficiente Ao longo de sua análise ou mesmo de sua vida a pessoa já se deu conta da impossibilidade de dizer toda a verdade Se ela insiste em dizer algo significa que resolveu jogar como diria Lacan 1972 19731985 sem a menor esperança de ser compreendido totalmente Aceita que não existe outra maneira de se expressar Diante do engano não recua mais Nossas melhores palavras estão fadadas ao malentendido Um analisando descobre que a besteira compõe a relação entre as pessoas no ressoar da vida Ela é tudo o que temos Referências bibliográficas ALLOUCH Jean Alô Lacan É claro que não Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 FORBES Jorge Epidemia de Medeias In Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 p 15060 FREUD Sigmund 1912 A dinâmica da transferência In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1969 p 13043 1915 1914 Observações sobre o amor transferencial Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1969 p 207 22 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1975 p 23987 LACAN Jacques 1945 Tempo lógico e a asserção de certeza antecipada In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 197213 1958 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 591 652 O seminário Livro XVI De um Outro ao outro 19681969 Rio de Janeiro Jorge Zahar 2008 Le séminaire Livre XX Encore 19721973 Paris Seuil 1985 O seminário Livro I Os escritos técnicos de Freud 19531954 Rio de Janeiro Jorge Zahar 1983 NIETZSCHE Friedrich 1888 Crepúsculo dos ídolos São Paulo Companhia das Letras 2006 ERROS E ACERTOS NAS ANÁLISES LACANIANAS O ANALISTA TEM SEMPRE RAZÃO DURVAL MAZZEI NOGUEIRA FILHO INTRODUÇÃO Neste capítulo para discutir a medida na qual um analista erra ou acerta ao longo de seu trabalho optamos por recuperar um texto clássico de Freud Nos Estudos sobre a histeria 18951973a o autor escreve a passagem que se segue Nessas etapas finais do trabalho analítico convém que possamos adivinhar a conexão buscada e comunicála ao enfermo antes que o descubramos Se acertarmos o curso da análise acelerarseá e se a nossa hipótese estiver errada nos ajuda a prosseguir obrigando o enfermo a tomar partido induzindoo a negativas enérgicas que delatarão seu indubitável conhecimento Deste modo observamos com admiração que não nos é dado impor nada ao enfermo com respeito às coisas que aparentemente ignora nem influenciar os resultados da análise orientando suas expectativas Não comprovamos jamais que nossa antecipação modificasse ou falseasse a reprodução das recordações ou a conexão dos acontecimentos pois se o fizesse inevitavelmente teria sido traído por alguma contradição FREUD 1895 p 162 Seria muito simples se como Freud indica o acerto surgisse até quando o analista erra Uma situação desse tipo se entendida sem nenhum senão corresponderia a uma fina e mortal adaga no coração da responsabilidade do analista e na possibilidade de fundamentar por onde anda o princípio do poder da cura Faça o que quiser meu querido analista sempre estará com a razão Não é bem assim que correm os acontecimentos entre analista e analisando no desenrolar de uma psicanálise Entretanto nesse trecho escolhido da pena freudiana encontrase o elemento que define a psicanálise como uma terapêutica distinta das outras como Lacan assinala em Variantes do tratamentopadrão 1998a Essa diferença sustenta se na aposta que Freud faz na materialidade na existência ou na exsistência como Lacan escreve no seminário sobre a carta roubada 1998b de algum saber de alguma verdade inscrita não obstante não reconhecida pelo falante e que pode ser sacada ouvida pelo analista na circunstância própria de um ato analítico Há portanto uma construção teórica muito particular em torno da topologia do saber quando o ato analítico é exercido Essa construção indica que o saber não está exclusivamente ao lado do diretor da cura como é usual em qualquer prestação de serviços terapêuticos Um autor como Bion está muito próximo dessa posição Ele escreve como método para alcançar esta cegueira artificial indiquei a importância de evitar memória e desejo Continuando e ampliando o processo incluo a compreensão e a percepção sensorial BION 1973 p 49 Na comparação com o ato médico o mesmo autor distingue o ato analítico pelo fato de o analista intuir como correspondente a ver tocar cheirar e ouvir BION 1973 p 8 Clama por atenção e o próprio Bion reconhece a proximidade da negação da realidade que essa leitura instaura assim como clama por esclarecimento que raio de imaterialidade sustenta a consistência do que o analista visa na cura por mais que tal saber difira do normalmente conhecido como realidade como o britânico se expressa nesse mesmo escrito A teorização desse expoente da psicanálise britânica reconhece claramente a função a ser exercida pelo psicanalista que deve ignorar o que sabe Mas Bion conclui elogiando um toque de irrealidade um quê de imaterialidade difícil de acompanhar Bion vai procurar cingir que posição deve ser exigida do analista para que essa materialidade essa exsistência possa tornarse o princípio do poder terapêutico da psicanálise OUTRA VEZ FREUD Em 1912 Freud escreveu Conselhos ao médico no tratamento psicanalítico 1973 É a exposição mais interessante mais detalhada a demonstrar o quanto é peculiar a posição do analista na direção do tratamento pois os conselhos que oferece todos advertem o psicanalista sobre como deve manejar o saber que inegavelmente possui ao receber um analisando Aqui está o ponto fundamental é o manejo deste saber que encerra não somente a via da cura psicanalítica mas também especifica a condição do analista e permite o enquadramento transferencial Freud aponta qual é a primeira tarefa que é imposta ao analista a retenção da enorme quantidade de dados que recolhe Eles incluem desde ditos pontuais datas nomes locais até associações e recordações que o analisando produz durante o tratamento E sem confundir os relatos de um analisando com os relatos de outro E sem usar meios auxiliares que consistiriam na fixação mnêmica extracorpórea no tempo de Freud o recurso seria a anotação em folhas de papel No tempo em que vivemos esses recursos estão multiplicados por mil Mas na simplicidade ou na cibernética isso não está recomendado Com essas recomendações Freud mostra que quer que o analista lance mão do que denomina atenção flutuante Esta obedece à instrução de não reter nada em especial e não acolher nada em especial Não é uma recomendação que coloque em cena uma mística do não saber MILLER 2011 p 11 mas é recomendação para salientar que a clínica psicanalítica deve voltarse à experiência do novo e não simplesmente colher a multidão de lembranças ocorrências histórias e repetições na esperança da revelação automática que por fim ponha termo a todo tropeço a todo sintoma Essa recomendação não significa que a colheita de dados os relatos históricos as páginas esquecidas isto é o trabalho da anamnese não tenha função mas salienta que ela não configura um meio em si mesmo É o caminho para o novo novidade que surge mais privilegiadamente quando o falar escorrega e não em exaustiva luta entre o verdadeiro e o falso Dessa forma notadamente no início do tratamento analítico o analista deve cuidar da atenção Deixála livre Em complemento à regra única regra pedida ao analisando fale o que lhe ocorrer Que corresponde ao associar livremente Tal estado de coisas permite descrever o método psicanalítico como uma ação muito singela falar durante semanas e meses à razão de várias sessões semanais e de falar de certo modo particularmente desprendido em condições que precisamente abstraemse de toda a perspectiva relativa a essa referência à norma ao útil talvez precisamente para voltar a ela mas a princípio para liberarse de forma tal que o circuito antes de retornar a isso seja o mais amplo possível LACAN 19671968 p 42 Como se vê é nos dois polos que ocorre uma operação que pede a ausência das intenções para que o significante faça o jogo e o analisando experencie o efeito da palavra e abrase à possibilidade de reconhecer que este desde sempre o constituiu para aquém de qualquer que seja a consistência na qual o ser procura resumirse Lacan diz qual vai ser o estatuto de um sujeito que se define por esse discurso instituído pela regra especialmente pelo fato de que se solicita ao sujeito que aí abdique que esta é a meta da regra e que no limite dedicandose à deriva da linguagem por uma forma de experiência imediata de seu puro efeito tente alcançar os efeitos já estabelecidos LACAN 19671968 p 134 O analista portanto deve estar em posição de acompanhar ou de garantir a tarefa do analisando Assim deixar a atenção livre é uma maneira de trabalhar em prol do bom andamento do ato analítico É por esse motivo inclusive que Lacan afirma que o psicanalista dirige o tratamento e não deve de modo algum dirigir o paciente LACAN 1998c p 592 Em outras palavras suas intenções devem se manter focadas na manutenção da tenacidade do trabalho e não serem pautadas em um ideal preestabelecido A próxima recomendação freudiana é a de que não há que tomar apontamentos ou construir protocolos pois ao anotar ou taquigrafar realizamos forçosamente uma seleção prejudicial FREUD 19121973c p 1655 A importância desse conselho aponta para a relatividade da coleção sem fim de dados relatos e informações Sem dúvida há valor nessa colheita mas somente no que aponta a marca particular de cada sujeito que se estabelece como repetição A terceira e a quarta recomendações tocam em outra peculiaridade da psicanálise as relações desta com a ciência Não há dúvida de que a psicanálise é uma disciplina iluminista Não existiria sem a confluência entre Bacon Descartes e Kant fundadores da modernidade e enunciadores arcanos da substituição do saber religioso pelas construções efetivadas a partir da observação e da experimentação levadas a cabo por homens falíveis No entanto há uma versão da ciência a empíricoverificacionista que se contenta exclusivamente com a expressão de dados que sejam verificáveis por outros investigadores que também pesquisam emoldurados por uma metodologia que cuidadosamente exclui o pesquisador É essa versão que é posta em xeque por essas recomendações Freud sustenta a diferença em duas razões protocolos detalhados e exaustivos são de pouca utilidade e o êxito terapêutico sofre se os casos são utilizados desde o início do tratamento para um fim científico Um parênteses não é muito difícil correlacionar esse senão à demonstração obrigatória de efetividade e eficiência aos processos psicoterapêuticos ação mais evidente da influência do economicismo nas terapêuticas Por outro lado e plenamente no espírito científico Freud aponta que a psicanálise introduz nova modalidade de investigação que dispensa os protocolos e suspende a finalidade científica ou não Diz isso ao considerar um dos traços mais apreciados do trabalho analítico a coincidência entre a terapêutica e a investigação Esse modo de organizar o labor científico confronta a metodologia usual ao incluir o investigador na cena investigada e ao prescindir da constituição da cena onde especificamente é feita a pesquisa Lugar artificial apenas suposto no qual as influências ao processo em pesquisa são devidamente isoladas A quinta recomendação é clássica Freud lança mão do cirurgião como modelo Recomenda impor silêncio aos afetos incluindo a compaixão à qual sem hiato adiciona a simpatia e a admiração pelo analisando E se o modelo é o cirurgião estão em cena igualmente o corte e a suspensão concomitante da maldade e do sadismo moral Em nome de colocar em cena as condições favoráveis à cura Lacan está neste lugar quando afirma que o psicanalista sabe ou deve saber ser definido pelo eu não penso LACAN 19671968 p 97 A este não penso justapõemse não sou não julgo não sinto empaticamente e toda a série de conselhos que permitam a fala do analisando com mínima interferência dirigente do psicanalista É interessante comentar a sexta recomendação a partir da conclusão de Freud Ele diz aqueles que pretendem dedicarse à análise desprezando submeterse antes ao processo analítico não somente verseão castigados pela incapacidade de ouvir os pacientes mais além de certa profundidade mas também exporseão a um grave perigo pessoal bem como um perigo para outros Inclinarseão facilmente a projetar sobre a teoria geral da ciência psicanalítica aquilo que uma obscura autopercepção descobre sobre as peculiaridades de sua própria pessoa e deste modo atrairão o descrédito sobre o método psicanalítico e induzirão a erro os indivíduos pouco experimentados FREUD 19121973c p 1658 Há muito a comentar a respeito da recomendação tornese analista analise se pois é esse o mote do sexto conselho e a fundamentação do ato analítico como procedimento também científico não obstante não repetir o caminho assinalado pela epistemologia empírica e verificacionista Esse conselho tem como corolário que a continuidade da psicanálise implica que a análise pessoal de um sujeito deve sem necessariamente existir qualquer intenção prévia produzir novo psicanalista É sim uma crítica àqueles que apostam em uma análise especial chamada de didática que garantiria a produção adequada de um analista Neste texto é considerada a produção não obrigatoriamente de um analista praticante dedicado a receber analisandos mas um sujeito apto a sacar que há uma insistência no dizer no agir no pensar no sentir cuja fonte é outra cena A cena inconsciente Estar em posição de poder trabalhar a cena inconsciente não é portanto algo que seja alcançado de forma natural e espontânea Há trabalho para que um sujeito exerça os efeitos de cura e ao oferecerse para dirigir o tratamento deve assumir a contrapartida da regra analítica fundamental imposta ao analisando FREUD 19121973c p 1657 Isto é não julgue não selecione não pense e não seja Aptidão a assumir a contrapartida da regra fundamental é dessa forma a ambição mais delicada do ato analítico Lacan se expressa como segue o fim da psicanálise supõe uma certa realização da operação verdade a saber que com efeito se ele deve constituir esse tipo de percurso que do sujeito instalado em seu falsoser lhe faz realizar algo de um pensamento que comporta o eu não sou isso não se dá sem reencontrar seu lugar sob a forma do lá onde isso estava permitindo que essa falta que subsiste no sujeito natural no sujeito do conhecimento no falsoser do sujeito essa falta que desde sempre se define como essência do homem e que se chama o desejo faça o jogo LACAN 19671968 p 87 Essa recomendação não se resume então a mero protocolo Não se pode resumir a obrigação definida por qualquer que seja a instituição É na verdade o operador lógico que define o modo de transmissão da ciência psicanalítica Apesar de afirmação apropriada à polêmica não é despropósito reconhecer que o comentário freudiano sobre a inutilidade da obscura autopercepção reunido ao comentário lacaniano a respeito do sujeito instalado em seu falsoser corresponda à versão psicanalítica da negação do sujeito da ciência que a metodologia empíricoverificacionista considera a garantia da superioridade desse método sob as outras maneiras de recortar o real Isto é supõe que apesar de a investigação desenvolvida durante o ato analítico incluir o investigador ele não investiga dominado por suas crenças seus propósitos suas intenções e seu saber Assim como também não está ausente à maneira de uma ascese mística Ocupar esse lugar não é tarefa para qualquer um em qualquer momento É tarefa para quem realizou certa realização da operação verdade É tarefa para quem passou ou passa pela análise pessoal A sétima recomendação de Freud toca em um ponto bastante delicado a identificação Especificamente a identificação ao analista Freud é bastante enfático pois mesmo que se reconheça a reduzida personalidade FREUD 19121973c p 1658 do analisando e o analista considere de bom augúrio infundirlhe coragem estímulo e vigor para superar as dificuldades relatando os próprios defeitos e conflitos demonstrando portanto a impossibilidade da perfeição e a onipresença da falta a psicanálise aproximarseia do tratamento por sugestão afastandose da via autêntica Além do mais Freud adverte que tal atitude provoca no analisando curiosidade insaciável que o inclina a inverter os termos da situação e considerar a análise do médico mais interessante que a sua própria análise FREUD 19121973c p 1658 É preciso salientar que por mais que a psicanálise implique na assimetria entre analista e analisando pois antes de qualquer consideração o analista já experimentou o efeito da palavra no desmonte da certeza do ser tal assimetria não é medida pela régua do modo normal senão ideal de ser Apenas o acreditar que há o ideal à mão justifica as atitudes que Freud veta É melhor formular que a assimetria necessária e suficiente para o desenrolar analítico é apenas lógica e posicional há um agente que toma a palavra em direção ao saber e há outro agente que se oferece como causa como Lacan escreveu na linha superior do discurso analítico E tal jogo está além de qual seja o traço cintilante ou defeituoso que a personalidade do analista exiba como se escreve em seguida A oitava recomendação é o avesso da precedente mas não menos nefasta se negligenciada O avesso em um senso muito particular relacionado à posição do analista Na recomendação anterior há o reconhecimento de que não há o ideal o analista dáse conta de que não é o ser fascinante como surge no dito do analisando E corre a desmentilo a mostrar a realidade Põemse em cena os próprios defeitos e conflitos O oitavo conselho revela por outro lado a preocupação de Freud no que concerne ao analista que liberto de sua neurose assume que o saber está pronto e que deve ser comunicado ao analisando em inapropriado atalho ao trabalho do inconsciente Corresponde à ambição pedagógica do analista O analista está dessa maneira coberto pela crença de que é um bom modelo de identificação ao analisando Se anteriormente Freud comenta o equívoco que há na declaração de que o sofrimento é para todos e não somente daquela alma atormentada nesta recomendação o equívoco é considerar que a necessária assimetria entre analista e analisando é medida pela libertação neurótica ou pela aposta que o saber derivado do trabalho analítico é passível de generalização A reunião desses conselhos favorece a dedução quer seja pela negatividade todos sofremos quer seja pela positividade eu sei como é basta seguirme A preocupação de Freud é que o analista ofereçase à identificação Miller 2009 p 19 comenta nesse mesmo diapasão freudiano e afirma que a identificação é o que a psicanáshylise repudia É ao que o psicanalista se interdita Operar por meio da identificação é decair e que o trabalho do analisando e do psicanalista deve manterse disjunto de tal forma que o analista deve representar o elemento neutro e escreve a singela fórmula S α S onde S é significante e α analista MILLER 2011 p 20 Lêse significante mais analista é igual a significante Em outras palavras o psicanalista não se situa como aquele que demonstra ser construído do mesmo barro que o analisando Do mesmo modo também não se situa como o grande homem que distribui benesses ao outro A última recomendação freudiana é reafirmação da regra fundamental a associação livre Indica que não é útil sugerir ao paciente ler a bibliografia psicanalítica e que não há prudência em sugerir que os familiares leiam como trabalha o psicanalista Freud descrê em qualquer ação do analisando que vise à objetivação das questões tais como a reunião de recordações a reflexão sobre certo período da existência E é exatamente nessa não função da objetivação que não é recomendada a leitura da teoria Escreve para chegar à solução dos enigmas da neurose não serve de nada a reflexão nem o esforço da atenção ou da vontade mas unicamente a paciente observância das regras psicanalíticas FREUD 19121973c p 1659 Lacan segue a mesma referência ao afirmar que uma análise é um ato Diz é afinal algo que merece o nome de ato de decidirse com tudo que isto comporta decidirse a fazer o que chamamos uma psicanálise Esta decisão comporta um certo engajamento no trabalho com o falar LACAN 1967 68 p 4 Tratase de engajarse nesse trabalho que implica profundamente o sujeito Este que dá o ar de sua graça quando menos é esperado e desobediente a qualquer protocolo ou a qualquer vereda que seja traçada previamente à colocação em jogo do significante DE VOLTA À INTRODUÇÃO Como se deduz deste capítulo até aqui a proposição freudiana afirmativa até quando erramos acertamos pode ser encarada com qualquer espírito Menos o confortável Depois dessa série de recomendações a conclusão lógica dessa frase é que Freud se refere ao peculiar manejo do saber durante o ato analítico Manejar o saber é equivalente ao manejo da transferência se esta não é pensada como a presença no correr da psicanálise de um grupo de sentimentos pensamentos e expectativas relativas ao psicanalista Manejar o saber é equivalente a manejar a transferência como Freud a reconheceu em A Interpretação dos sonhos haveremos de pensar que na elaboração onírica exteriorizase um poder psíquico que despoja a intensidade dos elementos de elevado valor psíquico e cria ademais por sobredeterminação de outros elementos menos valiosos novos valores que passam então ao conteúdo manifesto Quando assim sucede haverão ter tido efeito na formação do sonho uma transferência e um deslocamento das intensidades psíquicas dos diversos elementos FREUD 19011973b p 534 Ler esse trecho é sacar que transferência é a própria característica do registro simbólico Transferir o valor psíquico de uma representação quer dizer que um termo X pode valer por Y E o laço lógico que faz de X Y é não obrigatório e implica alguma marca singular e arbitrária de quem fala Portanto acertamos até quando erramos apenas atesta o valor dos conselhos ao psicanalista pois de um jeito ou outro tais conselhos se dirigem manifestamente à não antecipação à não cristalização do conhecimento à não referência identificatória do psicanalista Fora dessa posição que visa a garantir o trabalho do analisando o erro é inevitável A complicação é que diferentemente do ato falho que pode ser produtivo o erro é estéril Nesse sentido não há acontecimento fora da transferência no devir do ato analítico Não obstante a existência no campo analítico de referências que visaram a definir um espaço onde tal lógica não faria o jogo ambos analista e analisando estão imersos de tal forma na lógica linguageira na relação do homem com a fala que não há como se safar desse mergulho É assim que pode ser lida a posição de Sandler e colaboradores quando fazem uma distinção entre transferência propriamente dita e um outro aspecto da relação do paciente para com o médico o qual tem sido referido ultimamente como aliança terapêutica aliança de trabalho ou aliança do tratamento Corresponde ao relacionamento não neurótico racional sensato que o paciente tem com seu analista e que lhe possibilita trabalhar com afinco na situação psicanalítica SANDLER et al 1986 p 24 Essa posição coadunase como os próprios autores citados reconhecem com a noção de funções e atributos do ego que são relativamente independentes das pulsões HARTMANN 1968 e como corolário independentes da imersão na lógica da fala já que não há pulsão sem o lugartenente linguageiro que a represente Curiosamente são analistas que foram capazes de formular a possibilidade de transcorrer o tratamento sem referência à transferência De um modo similar é possível discutir a participação da contratransferência como instrumento favorável ao ato analítico como a série de analistas britânicos quer fazer crer O que os ingleses fizeram foi pensar o laço entre analista e analisando como uma relação entre duas pessoas e que a sensibilidade às emoções livres e despertas para poder seguir os movimentos emocionais e as fantasias inconscientes de seu paciente está de acordo com nossa hipótese de base que o inconsciente do analista entende o inconsciente de seu paciente É esta relação em nível profundo que aparece na superfície sob a forma de sentimentos como resposta HEIMANN 1950 p 82 Então basta pensar que em vez de encontrar no campo a relação entre pessoas emocionadas o que pode assemelhar ambos é a relação com a linguagem Analista e analisando são sujeitos falantes e nada mais Isso para que não se negligencie o fundamento da fala no veículo analítico porque não reconhecendo o fundamento buscase o veículo médium em outro lugar ou seja em sabese lá que afeto imediato LACAN 2003 p 173 Assim erramos e estamos sem razão E muito O erro está evidente ao acreditar que há possibilidade de reeducar emocionalmente o paciente e dirigilo no lugar de dirigir o tratamento Tratase de um posicionamento inteiramente em desacordo com a regra analítica e em desacordo com a topologia do saber em psicanálise Há erro na crença de que a cura acontece menos pelo que o psicanalista diz e faz do que por aquilo que ele é LACAN 1998c p 593 Esta frase está literalmente escrita por Nacht ele é o próprio instrumento de sua técnica Por isso o que ele é importa talvez mais do que o que ele diz ou faz Quero dizer com isto que é a sua atitude profunda que dá à técnica o verdadeiro sentido NACHT 1979 p 24 E para gerar pasmo Rosenfeld discute o equívoco de Nacht produzindo outro equívoco da mesma envergadura eu diria que são as interpretações do analista ou o que ele diz que refletem claramente o que ele é ROSENFELD 1973 p 361 Isto é não obstante o prestígio desses autores eles não se dão conta de que ao destacar o ser do analista estão dedicadamente preparando o campo para a identificação do analisando à consistência do analista Talvez sustentem a identificação ao consistente ego do analista No entanto é melhor reconhecer dadas as recomendações freudianas que o analista erra ao considerar que o próprio ser é o princípio e o fim da boa identificação Laurent escreve o princípio da falha do ato analítico reside em última instância na identificação com o analista Ele se dá sob duas formas distintas Por um lado existe a identificação com o analista como aderência ao psicanalista que foi o instrumento da operação analítica E a identificação com o analista leva também à marca da aderência a um ideal ou a uma norma do que seria o analista LAURENT 2011 p 91 Quando se crê em um eu forte capaz de adestrar o eu fraco do analisando se está fora do ato analítico Continua fora quando dá aos sentimentos lugar distinto do morto Da mesma forma está fora ao arvorarse juiz da realidade seja da realidade íntima do analisando ou ainda pior juiz da realidade como verdade como saber objetivo CONSIDERAÇÕES FINAIS O analista erra ao confiar no sentido unívoco que o expediente da compreensão constitui e não leva em conta que compreender é uma ação que apenas é possível como secundária ao estabelecimento da ordem simbólica Esse conjunto de elementos sustentase pelo desconhecimento de que pedir é intrínseco ao falar e atribui ao pedido o conhecimento do objeto isto é o analista que assim se orienta confunde demanda e desejo pois aposta que há um objeto que responderia à falta Entretanto nem mesmo as demandas transitivas que parecem claras e inequívocas têm um objeto adequado Forbes 1999 p 13 escreveu a respeito dessa inadequação a psicanálise leva a pessoa à certeza de que existe um inominável e que a ambição de reaver por completo um significado que recuperasse o anterior ideal da clínica ortopédica FORBES 1999 p 27 é ambição inteiramente baseada em um laço social aquele que aposta no saber no lugar de agente e que não corresponde ao laço social instituído pelo discurso analítico Uma dica às vezes errar deliberadamente tem aplicação clínica Jorge Forbes explica que uma pessoa não responde quando você pergunta mas corrige quando você erra Assim errar é um modo de você ficar sabendo o que de outro modo seria impossível O analista funciona mais pelo que não é do que pelo que é Em suma o analista sempre tem razão quando a razão não é dele Após esse percurso restaria ainda a tarefa de nos interrogarmos a respeito do que em pleno século XXI ainda deve ser acatado pelos psicanalistas Legamos essa missão aos leitores Por ora concluímos afirmando que o analista sempre tem razão quando o ser que o representa não oblitera a cena analítica Referências bibliográficas BION Wilfred R Atenção e interpretação Uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos Rio de Janeiro Imago 1973 FORBES Jorge Da palavra ao gesto do analista Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 FREUD Sigmund 1895 Estudios sobre la histeria In Obras completas Tomo I Madrid Biblioteca Nueva 1973a 1901 La interpretación de los sueños In Obras completas Tomo I Madrid Biblioteca Nueva 1973b 1912 Consejos al médico em el tratamiento psicoanalítico In Obras completas Tomo II Madrid Biblioteca Nueva 1973c HARTMANN Heinz Psicologia do Ego e o problema da adaptação Rio de Janeiro Biblioteca Universitária Popular 1968 HEIMANN Paula On countertransference International Journal of Psychoanalysis Malden 31 p 814 1950 LACAN Jacques 1956 Seminário sobre A carta roubada In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998a 196768 Seminário XV O ato psicanalítico Edição não comerciável A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998b Variantes do tratamentopadrão In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998c A psicanálise verdadeira e a falsa In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 LAURENT Éric A ordem simbólica no século XXI consequências para o tratamento Opção Lacaniana São Paulo n 62 p 8192 2011 MILLER JacquesAlain Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI Opção Lacaniana São Paulo n 55 p 1522 2009 Lógicas do não saber em psicanálise Opção Lacaniana São Paulo n 61 p 924 2011 NACHT Sacha Freud e a psicanálise Lisboa Moraes Editores 1979 ROSENFELD Herbert Uma apreciação crítica do trabalho de James Strachey sobre a natureza da ação terapêutica da psicanálise Revista Brasileira de Psicanálise São Paulo n 7 p 35568 1973 SANDLER Joseph DARE Christopher amp HOLDER Alex O paciente e o analista In Fundamentos do processo analítico Rio de Janeiro Imago 1986 MARIDOS MULHERES PAIS E FILHOS O ANALISTA LACANIANO ATENDE PARENTES DOROTHEE RÜDIGER A FAMÍLIA EM ANÁLISE A possibilidade de um psicanalista atender pacientes de uma mesma família gera polêmica No início da clínica psicanalítica Sigmund Freud tratava pais e filhos maridos e mulheres O tratamento de familiares até então não lhe apresentava maiores problemas teóricos e era comum o encontro social entre Freud e seus pacientes em festas e reuniões No entanto e na medida em que os estudos sobre a transferência e a contratransferência avançavam isto é as discussões acerca da reação do analista aos anseios do paciente o tratamento de pessoas da mesma família deixou de ser praticada por boa parte dos psicanalistas Assim a questão que este capítulo coloca é se e por quais motivos um analista lacaniano pode se autorizar a tratar parentes Em caso afirmativo em que circunstâncias esse atendimento é feito Last but not least será importante sustentar teoricamente essa possibilidade aberta por Jacques Lacan Mas antes de prosseguirmos vamos primeiro visitar o consultório de Sigmund Freud onde ele tratava a família vienense a respeito da qual escreveu Segundo o testemunho da psicanálise quase toda relação de sentimentos íntimos mais estável entre duas pessoas casamento amizade parentesco e filiação contém um fundo de sentimentos de rejeição e de inimizade que somente escapa da percepção em razão do recalque FREUD 19211927 p 63 NO DIVÃ DE SIGMUND FREUD A FAMÍLIA VIENENSE Encontramos no consultório de Dr Freud por exemplo Ida Bauer a quem Freud deu o codinome Dora a jovem que deu a Sigmund Freud muito trabalho no sentido literal da palavra O pai de Dora Philipp Bauer era paciente de Freud quando apresentou sua filha de quatorze anos ao médico vienense Dois anos depois aos dezesseis anos de idade Dora começa sua psicanálise FREUD 1905 O tratamento de Dora revela um verdadeiro romance familiar uma confusão de amor e traição que Freud descreve anos depois minuciosamente fazendo autocríticas revendo suas intervenções analíticas Em outra página do álbum de família da psicanálise encontramos Max Graf o pai do Pequeno Hans Ele era musicólogo e paciente de Freud bem como sua esposa a bela mãe de Herbert Graf o Pequeno Hans Além de paciente de Freud Max Graf era membro do grupo de quartafeira GAY 1989 DEPOIS DE FREUD A CONTRATRANSFERÊNCIA Se Freud tratava familiares os seus seguidores os freudianos estabeleciam normas para o setting analítico dentre as quais existia a regra da abstinência que não permitia ao psicanalista atender seus próprios parentes porque não poderia se beneficiar com a transferência do analisando ETCHEGOYEN 2004 p 160 Essa regra foi estendida à regra de não tratar membros de uma mesma família O que vem a ser a contratransferência A existência de identificações e reações sentimentais do analista em relação a seus pacientes foi nomeada em 1908 por Sandor Ferenczi A confissão feita por Ferenczi a Sigmund Freud levouo a apontar os riscos que a análise corre quando o analista cede a seus sentimentos inconscientes É por essa razão que Freud insiste no tratamento psicanalítico do próprio psicanalista como cerne de sua formação e de sua práxis clínica ROUDINESCO amp PLON 2004 p 328 Em suas Considerações sobre a transferência ele debate as possibilidades de o analista fazer da transferência o motor da análise desde que seja capaz de sustentar a angústia que a contratransferência lhe possa causar No entanto Freud não estabelece nenhuma regra a partir de suas observações e não retoma o assunto mais adiante Os seus discípulos no entanto retomaram a questão Para Ferenczi a contratransferência uma vez admitida pode contribuir para dosar a angústia que a transferência provoca A partir dessa ideia psicanalistas como Donald Woods Winnicott Masud Khan e Michael Balint aprofundaram em suas obras o conceito e as possibilidades de uso clínico da contratransferência As psicanalistas Paula Heimann e Margaret Little ambas da escola de Melanie Klein desenvolveram o entendimento da contratransferência como meio de compreensão do inconsciente do paciente Segundo esse entendimento o analista deve esvaziar seus sentimentos e absorver o que se passa no inconsciente do paciente para depois lhe devolver suas sensações Esse entendimento implica de fato a impossibilidade de tratar membros de uma mesma família LACAN E O DESEJO DO ANALISTA Jacques Lacan critica a contratransferência por mascarar uma impropriedade conceitual Em nome da psicanálise diz se faz uma reeducação moral do paciente LACAN 1998 p 591 Ao contrário O psicanalista dirige a análise não o paciente op cit p 592 Na análise não é só o paciente quem paga o preço o analista também Deve sustentar uma análise com seu desejo Suas palavras são interpretadas pelo paciente O analista suporta o fenômeno da transferência enfim paga com o que há de essencial em seu juízo mais íntimo para intervir numa ação que vai ao cerne do ser Kern des Wesens LACAN 1998 p 593 O sentimento do analista é como o morto no baralho Com ele o jogo prossegue Enigmático escondido que pode ser ressuscitado descoberto colocado no jogo Para se prestar de morto no baralho o analista precisa mobilizar seu desejo de analista justamente de emprestarse nesse jogo não cedendo à tentação de querer dirigir o paciente LACAN 1998 p 595 Vamos procurar na primeira e na segunda clínica lacaniana outros elementos teóricos que permitem ao analista lacaniano entender que é possível o tratamento de parentes Existe uma postura uma ética na psicanálise lacaniana que possibilita ao analista o tratamento de pessoas ligadas por laços de parentesco amizade ou amorosos A FAMÍLIA ÉDIPO E A PRIMEIRA CLÍNICA A chamada primeira clínica de Lacan tem como foco o triângulo amoroso que se produz na primeira infância entre pai mãe e filho ou filha Significar o desejo sexual infantil recalcado é a tarefa da psicanálise Há possibilidade de tratamento de marido e mulher pais e filhos nessa clínica O triângulo amoroso entre pai mãe e filho é bem conhecido como complexo de Édipo O ser humano nasce prematuro Por isso tem uma convivência simbiótica com a mãe No ensaio Os complexos familiares na formação do indivíduo escrito para a Encyclopedie Française Jacques Lacan aponta para esse fato que o ser humano nasce prematuro e só paulatinamente é separado da mãe Ela é seu primeiro objeto de amor Já o desmame é percebido como castração Quando a mãe se afasta da criança esta percebe que o desejo daquela se volta para outros por exemplo um irmão ou o pai Esses outros se tornam rivais A criança responsabiliza o pai pela castração LACAN 2003 p 54 Jacques Lacan vai além do complexo de Édipo quando fala sobre o desejo materno de manter a criança perto de si O pai ou quem exerça sua função desempenha o papel de separar o filho ou a filha da mãe Sua mãe é minha mulher Essa separação precisa ser simbolizada Ela é entendida como uma lei a lei da proibição do incesto matriz de todas as leis Essa lei gera um malestar Sigmund Freud tratou desse Malestar na civilização do Unbehagen in der Kultur Freud dizia que ordem social era a via de acesso humana à satisfação e que essa ordem no entanto não permitia a plena satisfação Há portanto uma cesura entre o homem e o mundo entre o sujeito e o objeto de sua satisfação FORBES 2012 p 38 Pela leitura lacaniana do complexo de Édipo a lei paterna cria a civilização a cultura pela linguagem e a possibilidade do ser humano que ele pode dizer do seu desejo FORBES 2012 p 39 A função paterna de dar ao filho acesso ao mundo é exercida não unicamente pelo pai mas pela própria cultura que exige por exemplo que a mãe volte ao trabalho depois da licençamaternidade O que acontece quando os pais não se entendem Quando o pai não diz essa mulher é minha quando vacila em seu desejo Como será discutido no próximo capítulo deste livro há duas hipóteses o sofrimento do filho como sintoma de um casal que não se entende ou o sofrimento do filho causado por ele ser objeto de satisfação da mãe Em ambos os casos há a necessidade de tratamento dos pais Se esse tratamento pode ser realizado pelo mesmo analista depende caso a caso da avaliação de seu desejo de analista de sua ética de sua própria postura em relação aos pacientes de querer dirigir sua análise e não dar a elas sua receita de felicidade A CRISE DA METÁFORA PATERNA E A SEGUNDA CLÍNICA Ainda durante os anos 1960 Jacques Lacan percebeu em sua clínica a crise da metáfora paterna Tirou suas conclusões e mudou sua clínica e sua teoria Foi além do complexo de Édipo constatando que a crise de autoridade das figuras paternas padre patrão pátria era um indício de um fato óbvio de que o próprio pai é castrado O complexo de Édipo é um mito que Freud criou Um mito que serviu durante muito tempo para explicar o inconsciente mas que diante da crise da metáfora paterna merecia ser revisto LACAN 1991 p 99 O que Lacan retém do complexo de Édipo e do malestar na civilização de Freud é que somos limitados pela cultura que nos obriga a falar e não agir instintivamente Lembra no Seminário XX que as nossas normas sociais e jurídicas atravessam a nossa sexualidade estão presentes na cama durante a relação sexual FORBES 2012 p 38 O direito permite ou não nossas satisfações Como seres da fala somos limitados em nossas satisfações naquilo que podemos expressar pela fala Mas nossas palavras têm limites sobretudo quando tentamos inutilmente falar do nosso desejo Não há relação sexual diz Lacan porque não conseguimos dizer em palavras o quanto desejamos o outro Bem que tentamos discutir a relação sem êxito Bem que tentamos no sexo com os nossos corpos com nossas fantasias superar esse não dizer mas não conseguimos isso por completo Resta algo que resiste à simbolização algo que Lacan chama de Real Nesse Real Lacan baseia sua segunda clínica pois pode se expressar em um novo malestar violento e absurdo ou permitir a criação MARIDO MULHER PAIS E FILHOS A INVENÇÃO DE UM NOVO AMOR Passamos do romance familiar à singularidade do sintoma Podemos tratar de parentes Sim e não A decisão depende da demanda de análise do paciente e da singularidade do caso O que a análise trata não é o romance familiar mas sim o que cada um tem de mais singular Para Jorge Forbes 1988 a psicanálise tem uma dupla acepção uma geral na qual cabe a reconstrução do romance familiar em cujo contexto o analisando se situa e uma singular no particular da clínica Freud quando implica Dora na confusão do seu romance familiar ressalta a singularidade de sua responsabilidade diante de seus desejos sua posição diante daquilo que lhe acontece Em outras palavras podemos dizer que o romance familiar e suas confusões são uma cortina de fumaça para algo mais fundo que incomoda o paciente isto é a própria sexualidade Nesse contexto Freud chama a sexualidade de Das Unheimliche estranhamente familiar no sentido literal da palavra por ser marcada a castração que tem seu lugar na família e causar angústia FREUD 1919 p 140 Cada um se vira como pode com a família que tem e o que lhe é estranho com sua sexualidade com sua impossibilidade de dizer o amor com o Real com o fato de que não há relação sexual LACAN 19721973 Um a um inventam o que Sigmund Freud chama de Liebesbedingung uma condição do amor a maneira muito singular de inventar algo para dar conta desse vazio que é a não relação sexual Criam seu jeito singular de ser seu sinthoma capaz de dar um sentido para sua vida O tratamento de maridos mulheres pais e filhos é possível porque a psicanálise foca nessa condição do amor nesse sinthoma que é singular de cada um Como foi visto Freud já sabia do sinthoma quando diz no malestar na cultura da sublimação A castração nos obriga a criar cultura ir de uma falta para a construção de algo positivo FREUD 1930 p 40 Para Jacques Lacan o sinthoma é a maneira como cada um busca satisfação e se coloca no mundo base de invenção que atua sobre o Real o inédito o não dito LACAN 1975 1976 p 162 No fundo o tratamento de maridos e mulheres pais e filhos permite que cada um invente um novo amor amor este que os artistas não cansam de cantar O ANALISTA LACANIANO NEM SEMPRE ATENDE PARENTES Para sustentar a possibilidade de tratar parentes não basta dizer que Sigmund Freud tratava maridos e mulheres pais e filhos em sua clínica A questão passa pela ética ou seja por saber qual postura o analista deve adotar diante da transferência de seus pacientes Freud já questionava como o analista deve se comportar para não fracassar nessa situação quando decide que a cura deve continuar apesar do amor de transferência FREUD 1915 p 103 Parte dos psicanalistas responde à problemática desse tipo de atendimento estabelecendo normas para possibilitar o tratamento Jacques Lacan ensina que a psicanálise não exige normas mas sim uma postura de respeito diante do inconsciente do paciente diante do seu íntimo singular A postura tomada pelo analista de dirigir a análise e não o paciente abre a possibilidade de tratar membros da mesma família No entanto há de se deixar bem claro que se trata de uma possibilidade e não de uma regra geral segundo a qual em todos os casos isso seja possível Nesse caso vale o velho ditado cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém Referências bibliográficas ETCHEGOYEN R Horácio Fundamentos da técnica psicanalítica Trad Francisco Frank Settineri Porto Alegre Artes Médicas 2004 FORBES Jorge Os caminhos lógicos da psicanálise o Nome próprio 1988 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrassetsfilesOsCaminhoslogicosdapsicanalise3pdf Acesso em 09 de setembro 2012 Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1905 Bruchstücke einer HysterieAnalyse 2 ed Frankfurt am Main Fischer 2007 1915 Bemerkungen über die Übertragungsliebe In Zur Dynamik der Übertragung behandlungstechnische Schriften Frankfurt am Main Fischer 2006 1919 Das Unheimliche In Der Moses des Michelangelo Schriften über Kunst und Künstler 4 ed Frankfurt am Main Fischer 2008 192127 Massenpsychologie und IchAnalyse In Die Zukunft einer Ilusion Frankfurt am Main Fischer 2007 1930 Das Unbehagen in der Kultur und andere kulturtheoretische Schriften Frankfurt am Main Fischer 2004 GAY Peter Freud uma vida para o nosso tempo Trad Denise Bottman São Paulo Companhia da Letras 1989 LACAN Jacques 196970 Le séminaire Vol XVII Lenvers de la psychanalyse Paris Seuil 1991 197273 Le séminaire Vol XX Encore Paris Seuil 1975 197576 Le séminaire Vol XXIII Le sinthome Paris Seuil 2005 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 591 Os complexos familiares na formação do indivíduo In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 29 ROUDINESCO Elisabeth amp PLON Michel Gegenübertragung In Wörterbuch der Psychoanalyse Trad Christoph Eissing Christoffersen ea Wien Springer 2004 CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM ANÁLISE COMO UMA ANÁLISE LACANIANA PODE AJUDÁLOS LIÉGE LISE Aí reside o mistério O homem está no menino só que o menino não sabe O menino está no homem só que o homem se esqueceu O bom de ser menino o bom de ser criança É poder ser este susto ZIRALDO 2003 p 12 INTRODUÇÃO Este capítulo tem como objetivo mostrar que a condução clínica com crianças visa ao deslocamento do sujeito à sua desalienação com relação aos seus cuidadores Essa separação por sua vez permite que a criança possa ter um sintoma próprio É uma passagem da criançasintoma para a criança que tem um sintoma Nossa hipótese de trabalho é que a partir deste último ela vai poder estabelecer sua condição de satisfação de modo singular A análise permite à criança legitimar algo do seu gozo expressálo de forma menos conflituosa no seu sintoma Visa a possibilitar o percurso que vai do sem palavras para uma nomeação e suporte que privilegie outra relação com a satisfação o gozo sem alienarse nas palavras acostumadas do mundo que a rodeia A direção da análise da criança é levála a poder ser infantil Há uma diferença nos termos infantil e criança O infantil está relacionado ao que não tem fala Quem é infants não tem palavras logo não está sofrendo dos efeitos de nenhuma delas Pode inventar uma língua própria assim como faz o poeta e pode escolher a que melhor lhe convém A criança do latim creare crescer é um pequeno ser humano que passou pelo processo de aquisição da linguagem Diferente do infants é aquela que foi marcada pela palavra no corpo A perguntamote deste trabalho por que os pais se sentem desconfortáveis com o analista será desenvolvida a partir de duas vertentes a família como espaço privilegiado para o encontro do pequeno humano com o não sentido de nossas paixões e afetos e os reflexos dessa trombada na formação do sintoma da criança que não consegue dar uma resposta criativa a essa colisão Por que os pais se sentem desconfortáveis com o analista Tal desconforto toca a todos os pais Não De modo geral quem assim se sente são aqueles pais que usam os filhos como cortina de fumaça dos seus sintomas No decorrer do tratamento via de regra ocorre o seguinte script 1 a criança adoece faz sintoma por concordar e alienarse com o que é falado sobre ela 2 para se tratar ela vai ter de se deslocar 3 vai ter de passar de ser falado para ser falante 4 quando falar a correspondência deixará de existir e 5 isso causa desconforto nos pais A dependência biológica e simbólica da criança faz com que ela necessite de adultos que se disponham não só a cuidar dela como também a exibir seus próprios limites enquanto um ser que não se norteia apenas pela sobrevivência No jargão lacaniano costumase dizer que antes de falar a criança é falada o que a leva a se tornar dependente do que pensa serem as expectativas das pessoas que são importantes para ela Muitas vezes o custo desse engodo é o sofrimento psíquico Como ele se instaura Em outubro de 1969 Jacques Lacan entregou um manuscrito à Sra Jenny Aubry intitulado Nota sobre a criança em que afirma que a constituição subjetiva implica um desejo que não seja anônimo a julgar a função da mãe na medida que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado nem que seja por intermédio de suas próprias faltas LACAN 1969 p 369 Por que isso é importante Porque vincula o bebê humano aos seus genitores Na fantasia materna a criança vem restituir o que falta à mãe Sigmund Freud no texto A dissolução do complexo de Édipo 1924 já se reportava a essa tendência Afirmava que a menina realiza uma espécie de equação simbólica em um deslizamento do falo para um filho Os dois desejos possuir um pênis e um filho permanecem fortemente catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior FREUD 1924 p 2234 O desejo do Outro materno em relação à criança vem nessa insígnia de investimento Por seu turno a criança quer responder desse lugar ocupando imaginariamente o papel de representante do falo materno É o famoso engodo imaginário A célula narcísica mãe criançafalo marcará esse primeiro momento de júbilo e completude imaginária Na sequência de Nota sobre a criança a referência que Lacan faz ao pai enquanto função é na medida que seu nome é o vetor de uma encarnação da lei do desejo LACAN 1969 p 369 É o pai enquanto agente da castração que na constelação familiar tem a função de operador lógico no ordenamento do gozo Orienta ambos dividindo o desejo materno fazendo da mãe uma mulher ela é não toda e operando junto ao filho no cumprimento da sua função princeps unir o desejo à lei Esse manuscrito pequeno na sua extensão porém gigantesco na sua localização clínica e precisão teórica faz uma diferenciação fundamental no entendimento do sintoma da criança Quais são seus principais postulados O sintoma da criança achase em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar O sintoma este é o dado fundamental da experiência analítica se define nesse contexto como representante da verdade do sujeito O sintoma pode representar a verdade do casal familiar Esse é o caso mais complexo mas também o mais acessível a nossas intervenções uma vez que remete à constituição do sujeito como desejante em sua estruturação neurótica A articulação se reduz muito quando o sintoma que vem a prevalecer decorre da subjetividade da mãe Aqui é diretamente como correlata a uma fantasia que a criança é implicada LACAN 1969 p 369 De acordo com a Tabela 1 podese perceber que Lacan descreve duas principais posições possíveis para uma criança que adoece Comecemos pela primeira A qual verdade o sintoma da criança viria representar no que há de sintomático na relação do casal A verdade do par parental suas dificuldades e descompassos em função de que não há relação sexual LACAN 19721973 p 62 A verdade que a criança vem representar é uma resposta à impossibilidade de complementaridade de uma justa proporcionalidade entre o homem e a mulher Tabela 1 O sintoma da criança e do adolescente na clínica psicanalítica Posto isso prossigamos para a segunda No caso de a criança responder à subjetividade da mãe ela está na posição de objeto na fantasia materna Por não haver a mediação paterna a criança está capturada no lugar de objeto que viria responder à falta da mãe a partir do lugar de objeto que a completa Estando nessa posição está impedida de se constituir enquanto sujeito desejante uma vez que não se depara com a castração materna A castração feminina é o operador lógico da divisão materna separa a mãe e a mulher central nesse posicionamento da criança Nesse contexto a castração feminina divide a mulher entre o filho e seu parceiro amoroso É o elementochave que permite à criança se posicionar entre a mãe e a mulher O encontro com a falta no Outro no caso a castração da mãe possibilita à criança a vivência da sua própria falta e a abertura para o desejo O feminino porta um enigma em relação ao desejo expresso na pergunta freudiana o que quer uma mulher Ela é mais insatisfeita e mais desejante Sabe que não existe um objeto para a satisfação e por esse motivo está mais livre para inventar moda É o que no Seminário Mais ainda Lacan 1972 1973 nomeou como o gozo Outro diferenciando do gozo fálico masculino Dessa maneira a divisão do desejo em desejo da mãe e desejo da mulher se dá pela modalidade de gozo feminino é o enigma representado no espaço de intersecção entre os pares homem e mulher e mãe e criança A FAMÍLIA ESPAÇO DE HUMANIZAÇÃO Em 1908 Sigmund Freud escreveu um artigo intitulado Romances familiares Esse texto é importante porque nos permite compreender a diferença entre a vida empiricamente vivida por uma criança e a vida fantasiada em sua realidade psíquica Nele destaca o mito narrativa simbólica fantasística que vem em resposta aos impasses amorosos e sexuais inerentes aos laços de parentesco o romance familiar do neurótico sendo raramente lembrado conscientemente mas podendo quase sempre ser revelado pela psicanálise já que uma atividade imaginativa estranhamente acentuada é uma das características essenciais dos neuróticos e também de todas as pessoas relativamente bem dotadas Essa atividade emerge inicialmente no brincar das crianças e depois mais ou menos a partir do período anterior à puberdade passa a ocuparse das relações familiares O exemplo característico dessa atividade imaginativa está nos devaneios que se prolongam até muito depois da puberdade Se examinarmos com cuidado esses devaneios descobriremos que constituem uma realização de desejos e uma retificação da vida real Têm dois objetivos principais um erótico e um ambicioso FREUD 1908 p 220 Na tentativa de responder ao não sentido das paixões e afetos vividos no contexto da família a criança por meio do recurso da fantasia conta uma história à qual atribui peso de verdade para justificar o lugar que ocupa no desejo do outro e a razão do seu sofrimento ou daquilo que a impede de ser feliz expresso em suas queixas A família nas suas mais diversas configurações constituise como uma construção humana não natural que tem por função a transmissão da cultura Participa decisivamente na constituição do psiquismo na experiência viva dos afetos da linguagem e da organização das relações entre seus pares na constituição da subjetividade por meio das funções exercidas por seus membros Nas palavras de Jorge Forbes Família é daquilo que todo mundo se queixa boa definição e se o fazemos é porque ela não oferece o que dela especialmente dela gostaríamos de receber o nome do desejo Isso fica mais evidente em um mundo despadronizado Insisto seja ela como for constituída por cama ou proveta hetero ou homossexual parceira ou monoparental família é a instituição humana que tem a capacidade de fazer com que nos confrontemos ao real da nossa condição a falta de uma palavra já pronta prêtàporter que nomeie o desejo de cada um Nesse movimento a família ganha novo status Em vez de ser o lugar onde se ganha coisas semanadas carros presentes os mais diversos o que se ganha mesmo a maior herança é a castração um dos nomes do Real FORBES 2009 Somos seres de linguagem apartados da natureza a palavra nos priva da possibilidade de uma completa satisfação É o que possibilita além da necessidade a abertura para o desejo Na medida em que marca a ausência a falta radical de um objeto para a satisfação humana levanos a desejar inventar algum que nos satisfaça Desejar lembrava Lacan é sempre desejar outra coisa a ponto de podermos agradecer a quem não nos dá o que foi pedido FORBES 2003 p 7 O desejo é o desejo de desejar motor da criação expressase na forma como uma pessoa o sustenta é esquisito escapa às justificativas e ao bom senso Em suma o ser humano não se funda sozinho uma mãe autoriza a invenção desde nossos primeiros balbucios um pai legitima a sua existência ou seja o por fora de si É o que está na raiz da palavra existir composta de ex fora com sito local exsistir quer dizer colocar fora mãe e pai são funções por vezes coincidentes com as pessoas biológicas mas não necessariamente para a sorte de todos nós senão os órfãos estariam fortemente prejudicados FORBES 2011 A família se constitui nos dias de hoje como um espaço de humanização e vivência de um amor radical novo princípio norteador das nossas vidas O sentido de sagrado se estende para aqueles que me são mais íntimos e pelos quais justificaria o sacrifício da minha existência Sacralização para Ferry não é sacralizar uma representação de família um ideal mas é a possibilidade de extrair dessa dimensão do íntimo do campo da família pontos de decisão não porque me foram impostos mas porque é da ordem do mais forte que eu que se impõe a mim mesmo e que se impõe por si mesmo MACEDO 2009 O SINTOMA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA A partir do até aqui exposto recoloquemos a questãochave deste capítulo ilustrandoa partir de quatro recortes clínicos A criança e o adolescente quando são trazidos para a análise chegam por intermédio dos pais avós pediatra nutricionista escola enfim portavozes ruidosos que refletem uma inadequação da criança e do adolescente ao contexto social e às expectativas narcísicas deles esperadas Nas queixas são apresentados como um problema e a demanda ao analista é que ele resolva o que escapa ao controle dos pais e perturba a pretensa ordem familiar Caso 1 Demanda dos pais para análise do filho Diz o padrasto de M 15 anos de idade Olha doutora isso de ele querer saber quem é o pai dele viajar para BH é uma bobagem O pai já o abandonou não tá nem aí pra ele Ele vai se decepcionar mais ainda O que a gente quer é que a senhora dê uma enquadrada no M Que ele pare de mentir pra gente Que ele tenha responsabilidade com a escola tome juízo deixe de passar a maior parte do tempo com os colegas brincando de skate jogando videogame e dormindo no sofá Neste caso fica evidente que não há demanda de análise para o filho Tratase de um pedido para que o analista responda à expectativa dos pais de ajuste de comportamento do filho Não consideravam a curiosidade e os impasses vividos pelo menino ante a curiosidade em conhecer seu pai biológico Um dos primeiros manejos do analista é diferenciar a demanda de quem solicita análise para a criança e o adolescente da demanda que esses constroem no momento do encontro com o analista Na falta de clareza se a demanda de análise é dos pais ou da criança e do adolescente um critério fundamental de orientação para o analista é identificar se a criança e o adolescente estão em sofrimento e a partir das suas queixas poder referendar uma implicação para o início do trabalho clínico Construir a demanda da criança independentemente da demanda daqueles que requerem o seu tratamento é um passo fundamental para a direção do tratamento Em muitas situações o analista autoriza a demanda do analisando o que entra em choque com a demanda que motivou os pais na busca por um tratamento Em outras é função do analista deixar claro que não existe demanda por parte da criança e que a pertinência do tratamento é indicada aos pais Delicadeza clínica e escuta a vários é uma característica requerida ao analista nesses momentos Caso 3 A mãe que inicialmente demandava análise para a filha ao se escutar percebe que era sua a necessidade de iniciar uma análise C 32 anos de idade busca análise para a filha de dois anos A queixa é que a criança não quer desmamar chora muito à noite e dorme intranquila Ela passou a dormir no quarto com a menina razão das brigas com o marido Na segunda entrevista ela diz Sabe Acho que o problema não é a M sou eu que não consigo me separar dela Cada vez que ela chora eu dou o peito A ideia de que ela não precisa mais de mim e de esse tempo não vai mais voltar faz eu não querer me distanciar dela Conta que teve um sonho Estava em uma estação à espera de um trem O trem chegava as pessoas dentro dos vagões estavam em festa o maquinista a chamava e ela ficava parada sem sair do lugar A sequência do tratamento se deu com a mãe A escuta oferecida a essa mãe sua sensibilidade e abertura possibilitaram o início de tratamento O mote para a entrada em análise foram os seguintes aspectos não se esconder atrás da filha fixandoa no lugar do que era o problema e tocando nas questões acerca da separação no momento do desmame bem como as questões da palidez erótica que sentia em relação ao seu parceiro amoroso É sob transferência que a criança irá endereçar ao analista um desejo de saber sobre seu sofrimento No tratamenshyto com crianças e adolescentes essa transferência toca a muitos Um dos maiores desafios do analista nesse trabalho clínico é o manejo dessa característica da transferência É condição para a consecução e eficácia do tratamento que a transferência esteja investida por parte dos pais ou responsáveis Há casos em que a criança é retirada do tratamento contrariamente à sua vontade porque o pai decide pela interrupção São os pais que fazem inicialmente uma suposição de saber no analista antes da criança É por isso que eu digo que o desejo é o eixo o pivô o cabo o martelo graças ao qual se aplica o elementoforça que há por trás do que se formula primeiro no discurso do paciente como demanda isto é a transferência LACAN 1964 p 222 A transferência a vários na forma como se apresenta na análise da criança e do adolescente foi ilustrada em 1909 por Sigmund Freud na publicação intitulada O pequeno Hans caso paradigmático para a análise de crianças Nesse caso ficam demonstradas as teses da constituição do sujeito psíquico na infância a importância da sexualidade na etiologia do sintoma e o complexo de Édipo como central na estruturação do desejo Hans foi atendido por seu pai que levava a Freud as observações e seguia suas orientações Nesse caso fica visível o papel do desejo dos pais na consecução de um tratamento Na introdução ao caso Freud afirma ninguém mais poderia em minha opinião ter persuadido a criança a fazer quaisquer declarações como as dela o conhecimento especial pelo qual ele foi capaz de interpretar as observações feitas por seu filho de cinco anos era indispensável sem ele as dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se unia numa só pessoa e porque nela se combinava o carinho afetivo com o interesse científico é que se pôde neste único exemplo aplicar o método em uma utilização para a qual ele próprio não se teria prestado fossem as coisas diferentes FREUD 1909b p15 Com o intuito de ilustrar o até aqui exposto a função da família o sintoma da criança a demanda a transferência e a interface dos pais no tratamento analítico com crianças e adolescentes apresento um caso clínico que visa a demonstrar os aspectos mencionados Caso 4 A criançasintoma resposta ao sintomático da estrutura familiar A mãe de Paulo liga para agendar um horário Ao telefone pede que a ouça por alguns minutinhos quer saber se poderia de antemão ajudar Paulo seu filho de 12 anos Tive dificuldade de interrompêla e lhe propor um horário para que a ouvisse a respeito antes de receber seu filho Na entrevista ela diz que Paulo é um menino bom bonzinho até demais e o que está motivando a busca por um tratamento é o fato de o filho ser um chorão Ele chora por tudo Chora porque a irmã caçula o provoca e mexe nos seus brinquedos Chora na escola porque os colegas o xingam de rolha de poço e o excluem das brincadeiras Chora quando é contrariado em casa pelos pais Chora ao longo da entrevista diz reconhecer que há algo de errado no que ela e o marido estão fazendo é Paulo quem dorme com o pai e ela está dormindo no quarto do filho Comento Então a sexualidade vai que é uma beleza A mãe faz um giro de 180 na poltrona mostrase atônita e diz com a mão em gesto de pare Nem me fale Nem me fale Não sou eu que tenho que falar digo Ao final da sua entrevista foi muito difícil para ela dispor de um horário para o agendamento do primeiro encontro com Paulo Sua agenda estava sempre comprometida não tinha horário Quando recebo o menino ao perguntar o que está acontecendo ele diz Não sei se acreditou no que dizem que sou o culpado de tudo o que acontece de errado no mundo ou se de verdade eu sou o culpado Tudo que dá errado a culpa é minha Lá em casa tudo sou eu Pegar a cerveja na geladeira preparar o lanchinho da noite até banho na irmã sou eu quem dá e olha que ela já tem 7 anos continue A criançasintoma resposta ao sintomático da estrutura familiar continuação E por que você dá perguntou Minha mãe pede ela não sabe se lavar direito Depois de recorrentes explicações ainda assim insisto na mesma pergunta E você dá Eu posso então dizer que não sou babá pergunta Paulo Com essa pergunta encerrou nosso primeiro encontro Na segunda sessão Paulo conta que toda noite assiste a filmes com o pai só filmes de sacanagem e de ação Acaba dormindo e por isso não vai para a sua cama Você gosta de dormir com seu pai perguntou Mudando o entusiasmo com que falava dos filmes diz que naquela semana ele estava pensando em dormir com o pai era pecado afinal ele estava atrapalhando os outros eles não estavam mais namorando Ao me dirigir a ele a resposta achava que era pecado respondi Pecado Não sei está mais parecendo um castigo Paulo dá uma gargalhada e faz um sinal de positivo Quando estava agendada a terceira sessão a mãe me liga dizendo que não poderá leválo pois teria uma importante consulta médica Na sessão seguinte Paulo começa dizendo que será o nosso último encontro Sua mãe terá de passar por uma cirurgia e não poderá mais trazêlo às sessões Pergunto então se não haveria outro meio para ele comparecer aos nossos encontros Diz que acha difícil sua mãe irá precisar muito da sua ajuda O que por ele é confirmado quando ao final da sessão de Paulo convidoa para entrar na sala e pergunto sobre a sua saúde A mãe conta que terá de fazer uma cirurgia no joelho Terei de ficar mais de quarenta dias sem dirigir Teremos de dar um tempo aqui Paulo e eu combinamos que ele me daria notícias por email Na última correspondência contoume que na festa junina da escola a menina de quem ele gosta aceitou ser sua parceira na quadrilha e não foi por sorteio eu convidei e ela aceitou Esse recorte clínico ilustra o sintoma de Paulo como resposta ao lugar que ele ocupa no arranjo parental Exemplo do uso da criança como anteparo do sintoma do casal no arranjo da sua parceria sexual e amorosa O filho vem como tamponamento da verdade do casal que abdica da vida erótica e se imiscui do real sentido das suas funções parentais As intervenções da analista foram no sentido de deslocálo de uma posição passiva A culpa por ele sentida pode ser entendida na máxima de Lacan segundo a qual a única coisa da qual o sujeito deve se sentir culpa é a de recuar diante do seu desejo LACAN 19591960 p 382 A análise opera no campo da linguagem e deve primar por ouvir o inconsciente Na análise com crianças o corpo e o brincar diferentemente da análise com adultos entram na cena analítica de forma mais expressiva e junto à palavra são o campo em que o analista opera Do contrário há um risco de o analista perderse em fabulações imaginárias Pela palavra que já é uma presença feita de ausência a ausência mesma vem a se nomear em um momento original cuja perpétua recriação o talento de Freud captou na brincadeira da criança LACAN 1953 p 277 A escuta do analista guiase pela escuta do inconsciente da criança e seus modos de gozo Privilegia a via do desejo do analisando que se representa por um sintoma Um importante orientador é possibilitar que a criança e o adolescente falem em nome próprio e se desloquem de um discurso impregnado de expectativas e idealizações em relação a si mesmo para um savoir faire com seu sintoma CONCLUSÃO A análise da criança e do adolescente assim como a análise com os adultos convoca o analista na radicalidade do seu desejo de analista O analista tem de estar constantemente atento para não se deixar seduzir pelo caminho das condutas socioeducativas e do furor sanandi às demandas de respostas adaptativas de restituição do bemestar abalado em consequência dos sintomas apresentados O orientador clínico nesse trabalho é o Real lógica à qual crianças e adolescentes respondem com maior intimidade e apropriação que os adultos Respondem à surpresa ao equívoco e ao chiste com mais abertura não se deixando cristalizar na rigidez das defesas e certezas narcísicas Elaboram conflitos com mais desenvoltura na medida em que a análise se oferece como um espaço de nomeação elaboração e legitimação de um gozo singular Daí que quanto mais breve for o tratamento mais bem indicado será pela rapidez com que concluem e incluem isso nas suas expressões de vida Maud Mannoni afirmou que a psicanálise de crianças é a psicanálise MANNONI 2003 p 9 Acredito que tal máxima se sustente pela abertura afetiva e menos defensiva com que a criança confirma a autenticidade da psicanálise acerca do infantil do inconsciente e da sexualidade Quanto ao desconforto por vezes sentido por parte de alguns pais com o analista esse pode ser causado pelo fato de que por terem seus filhos em análise veemse remetidos aos seus impasses no tocante às paixões e afetos que pedem por parte deles uma resposta também criativa e inventiva uma vez que o filho não mais responderá do lugar de sintoma e tapume do malestar familiar Posto isso retomemos a perguntamote deste capítulo como uma análise lacaniana pode ajudar crianças e adolescentes O analista oferece uma escuta e um espaço em que a criança e o adolescente podem dizer o que lhes inquieta angustia fascina e satisfaz Dessa forma abrese a possibilidade de que se coloquem na experiência de melhor dizer de si do singular do seu sintoma e das dificuldades de incursionarem com ela a singularidade no mundo É um convite à expressão criativa e responsável de se estar na vida Referências bibliográficas FORBES Jorge Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 2009 Família e responsabilidade In VII Congresso Brasileiro de Direito de Família Belo Horizonte 28 out 2009 Conferência de abertura Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosfamilaeresponsabilidadehtml 2011 O admirável novo pai Revista Lola São Paulo p 152153 08 set 2011 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosoadmirávelnovopaihtml Acesso em 22 de janeiro de 2014 FREUD Sigmund 1908 Romances familiares In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IX Rio de Janeiro Imago 1969 1909b Duas histórias clínicas O Pequeno Hans e O Homem dos Ratos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1976 1924 A dissolução do complexo de Édipo In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud v XIX Rio de Janeiro Imago 1976 LACAN Jacques 1953 Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 19591960 Seminário VII A ética da psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1988 1964 Seminário XI Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1969 Notas sobre a criança In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 19721973 O seminário Livro XX Mais ainda São Paulo Jorge Zahar 2003 MACEDO Elza Do medo prêtàporter à singularidade 2009 Disponível em httpwwwpsicanaliselacanianacommuralresenhasdocumentsiplaLucFerryElzaMacedopdf In httpwwwjorgeforbescombrprintphpid904 Acesso em 22 de janeiro de 2014 MANNONI Maud A criança sua doença e os outros Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 ZIRALDO Alves Pinto O ABZ do Ziraldo São Paulo Melhoramentos 2003 AVALIAÇÃO DO RISCO CLÍNICO E AS PARCERIAS NECESSÁRIAS O ANALISTA LACANIANO PRESCINDE DAS MEDICAÇÕES MARIA DO CARMO DIAS BATISTA INTRODUÇÃO O tema deste capítulo será desenvolvido tomando como eixo as parcerias necessárias à psicanálise Assim primeiro discutiremos as interfaces com a medicina e com a psiquiatria Em seguida abordaremos algumas especificidades do analista lacaniano como a maneira de fazer diagnósticos a importância das entrevistas preliminares e o manejo da transferência uma vez que o subtítulo ao perguntar se ele prescinde das medicações o convoca Adiantamos de todo modo que em nossa opinião o analista lacaniano não prescinde das medicações embora sejam necessários vários cuidados Parecenos também necessário circunscrever delimitar o que aqui consideraremos risco clínico pois a abrangência do conceito é muito ampla mesmo quando nos restringimos ao âmbito da psicanálise envolvendo desde riscos relacionados à clínica médica até aqueles relacionados mais diretamente à doença mental aqui incluídos os riscos da medicação ou da não medicação Diríamos a título de exemplo que o risco clínico pode ser compreendido em um leque que vai da pneumonia ao suicídio Pequenas vinhetas clínicas serão relatadas para ilustrálo São inúmeras as parcerias possíveis à psicanálise a filosofia a matemática a biologia o direito a linguística a física a antropologia a literatura o cinema a música as artes e a cultura como bem nos demonstrou Lacan ao longo de sua trajetória Basta ler um de seus seminários para descobrir as citações conexões e referências Aqui em nosso capítulo por se tratar de risco clínico vamos nos deter nas parcerias que chamamos de necessárias à psicanálise Assim o capítulo seguirá seu curso em quatro tópicos 1 psicanálise e medicina 2 psicanálise e psiquiatria 3 o analista lacaniano prescinde das medicações e 4 o risco clínico em psicanálise PSICANÁLISE E MEDICINA O lugar da psicanálise para a medicina é marginal A psicanálise só é admitida pela medicina como uma espécie de ajuda externa em momentos em que a doença é considerada decorrente de estresse ou psicossomática ou mesmo quando nada se conclui sobre o diagnóstico nada se sabe e o médico aventa a possibilidade de a doença ser psíquica ou de origem neurótica Ou ainda no caso de as queixas do paciente tornaremse múltiplas repetitivas e insuportáveis para o médico como os designados prolixos poliqueixosos ou hipocondríacos frequentadores assíduos de prontossocorros com suas sacolas repletas de exames laboratoriais e de imagem Cada vez mais o vácuo no saber médico e o esgotamento diante dos casos insuportáveis têm sido usados para justificar encaminhamentos a profissionais do mundo psi não fazendo aqui qualquer diferença se são psicoterapeutas terapeutas cognitivocomportamentais ou psicanalistas Lacan em 1966 proferiu no Collège de Medicine na La Salpetrière em Paris para uma plateia de médicos a conferência Psicanálise e medicina LACAN 19662001 na qual afirma que a marginalidade está dos dois lados Se a medicina considera a psicanálise marginal extraterritorial também os próprios psicanalistas teriam suas razões para querer conservar essa marginalidade Esse texto foi estudado pela primeira vez na Biblioteca Freudiana Brasileira em 1989 sob a orientação de Jorge Forbes Lacan então adverte o auditório das duas balizas que devem guiar o médico a demanda do doente e o gozo do corpo enfatizando que ambas convergem para a dimensão ética Vejamos com mais detalhes A respeito da demanda do doente diz ele Quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda não digam que ele espera pura e simplesmente a cura Ele põe o médico à prova para tirálo dessa condição de doente o que é totalmente diferente pois isso pode implicar que ele esteja totalmente preso à ideia de conservar a doença Ele vem às vezes nos pedir para autenticálo como doente Em muitos outros casos ele vem pedir do modo mais manifesto que vocês o preservem em sua doença que o tratem da maneira que lhe convém ou seja aquela que lhe permitirá ser um doente bem instalado em sua doença LACAN 19662001 p 10 Portanto a demanda é paradoxal Há uma profunda diferença entre o que o sujeito pede ou demanda e o que ele quer ou deseja O título do livro de Jorge Forbes Você quer o que deseja condensa o paradoxo da demanda Podemos até dizer que a demanda é o oposto do desejo que demandar inibe o desejar Aqui é necessário lembrar que a função do desejo não se situa no consciente mas além dele no inconsciente a maior invenção freudiana que se expressa por meio da linguagem FORBES 2003 p 10 Diante dos empecilhos de toda ordem muitas vezes colocados pelo doente aos atos que efetivariam sua cura diante da fala queixosa repetitiva e circular o médico deve estar suficientemente alertado para tomar certa distância para deixar cair no vazio contínuas respostas à demanda pois insistir na cura do sintoma pode inclusive agraválo Sigamos agora com Lacan em direção à segunda baliza que deve guiar o médico o gozo do corpo Quando Freud introduz o princípio do prazer postulando dois princípios do funcionamento mental conceitua o prazer como uma excitação mínima aquilo que faz desaparecer a tensão temperandoa ao máximo em um ponto de distanciamento respeitoso do gozo Portanto prazer não é gozo Entretanto Freud 1909 p 163 em O Homem dos Ratos ao o observar tentando relatar a tortura chinesa que havia escutado no campo de batalha andando em círculos no consultório pôde observar um estranho sorriso quando o Homem fala do horror do vaso acoplado às nádegas do prisioneiro um vaso com vários ratos que sem ar procuram abrir passagem A partir da análise desse estranho sorriso e da surpresa que lhe causou Freud fala de um prazer paradoxal um prazer na dor que talvez possa ser compreendido como uma primeira abordagem do gozo Lacan afirma Vamos nos perguntar sobretudo em que isto concerne àquilo que existe ou seja nossos corpos Vozes olhares que passeiam tratase verdadeiramente de algo que sai dos corpos curiosos prolongamentos que têm pouca relação com a dimensão do gozo Porque aquilo que chamo de gozo no sentido em que o corpo se experimenta é sempre da ordem da tensão do forçamento do gasto até mesmo da proeza Há incontestavelmente gozo no nível em que começa a aparecer a dor e nós sabemos que é somente nesse nível da dor que pode se experimentar toda uma dimensão do organismo que de outra forma fica velada LACAN 19662001 p 102 O corpo então tem existência existe Lacan parece afirmar que nossos corpos têm uma existência única diferenciada dentre as demais existências e faz referência a partes do corpo como olhar e voz que têm muita relação com o desejo O gozo do corpo ao contrário não é poético como o desejo É pura tensão força gasto exercício dor e às vezes sofrimento Nada inocente Podemos dizer com Lacan nesta conferência e nesse ponto de seu ensino que o corpo que sofre goza É aqui que a demanda do doente e o gozo do corpo se juntam na dimensão ética pois se o médico toma conhecimento de que o corpo sofredor de seu paciente ao mesmo tempo goza deve fazêlo dentro da ética da psicanálise prosseguindo e mantendo em sua vida a descoberta de Freud LACAN 19662001 p 14 Essa seria uma parceria necessária PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA A interface entre a psicanálise e a psiquiatria tem sido bastante trabalhada em vários artigos de autores contemporâneos e com diferentes enfoques como a saúde mental as formas de se fazer diagnósticos os manuais de classificação das doenças mentais como o DSMIV e o CID10 o uso da medicação etc Lendo os artigos percebese o cuidado dos autores em mostrar a rígida separação entre os dois campos o campo da psiquiatria trabalha com a ciência e seu discurso o campo da psicanálise é um campo magnético imantado pela transferência como dizia Lacan onde se há alguma ciência é a ciência da conjectura Freud em 1917 na Conferência XVI Psicanálise e psiquiatria da série Conferências introdutórias sobre psicanálise talvez tenha inaugurado essa forma de tratar os dois temas Falando a um público leigo destaca exatamente a cisão entre as duas disciplinas o ideal de Freud seria transformar a psicanálise em uma ciência citando um caso clínico de delírios de ciúme em uma mulher e destrinchandoo primeiro como faria o psiquiatra valendose da hereditariedade e em seguida como faria o psicanalista por meio da interpretação do conteúdo inconsciente Se não se pode eliminar o delírio através da referência à realidade então sem dúvida ele não se originou na realidade De onde mais terseia originado Existem delírios dos mais variados conteúdos por que neste nosso caso se trata justamente de delírio de ciúme Gostaríamos de ouvir o que o psiquiatra tem a dizer a esse respeito mas neste ponto ele nos deixa em apuros Investigará a história familiar da mulher e talvez nos dará a resposta Os delírios aparecem em pessoas em cujas famílias tenham ocorrido repetidamente distúrbios psíquicos semelhantes FREUD 1917 p 289 Aqui em nosso capítulo acentuar as divergências nos retiraria do caminho que tem maior importância para o tema ou seja estabelecer quais parcerias podem se fazer entre a psicanálise e a psiquiatria e sobretudo escolher as que sejam da ordem da necessidade aquelas sem as quais em nossa época ambas teriam dificuldades em prosseguir Uma primeira parceria desse tipo sem dúvida dáse na prescrição ou não de psicofármacos A psicanálise principalmente na França tem feito grande esforço para denunciar o uso excessivo e inadequado de psicofármacos principalmente em crianças e adolescentes mostrando inclusive algumas correlações entre os ditames dos grandes laboratórios farmacêuticos big pharma e as novidades do DSMV que está prestes a ser publicado Tem apontado também a constante cooptação dos médicos psiquiatras e generalistas pelas indústrias farmacêuticas que agora se ocupam da formação contínua dos médicos por meio da divulgação de panfletos com seus produtos e de trabalhos científicos ensaios clínicos encomendados Aliás Lacan já apontava aos médicos essa manipulação da ciência na Conferência de 1966 que acabamos de discutir no item anterior O médico é requerido em sua função de cientista fisiologista mas ele está ainda submetido a outros chamados O mundo científico deposita em suas mãos o número infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos químicos ou biológicos Ele o coloca à disposição do público e pede ao médico assim como se pede a um agente distribuidor que os coloque à prova Onde está o limite em que o médico deve agir e a que deve ele responder A algo que se chama demanda LACAN 19662001 p 10 Entretanto a psicanálise não deveria deterse aí na denúncia É preciso reconhecer que um número cada vez maior de pessoas vem utilizando psicofármacos e que essas pessoas muitas vezes procuram o psicanalista Além disso o psicanalista se depara com frequência com quadros graves que necessitam de encaminhamento à psiquiatria Daí a importância da parceria uma parceria que se constitua com demoradas conversas discussões caso a caso e principalmente com profissionais psiquiatras afeitos à psicanálise Uma parceria que se baseie na confiança Assim esclarecimentos a respeito do que levou o paciente a ser medicado com mono ou politerapia quais tipos de fármacos doses os efeitos colaterais indesejados os efeitos terapêuticos interações medicamentosas entre outros podem resultar dessa parceria além da importante contribuição da psicanálise na discussão diagnóstica e pouco a pouco com o decorrer da experiência analítica o provável desaparecimento de alguns sintomas com consequente redução da medicação Voltaremos a essa discussão Uma segunda parceria necessária é a presença do analista lacaniano no hospital Comecemos por explicitar que os hospitais que recebem a psicanálise devem ter serviços de psiquiatria com orientação decidida para trabalhar com os pacientes na interface entre psicanálise e psiquiatria ou seja que os psiquiatras tenham em sua prática a necessidade e a vontade de levar em conta no paciente o sujeito do inconsciente como definido pela psicanálise Com esse a priori atendido tornase possível o ensino da psicanálise de orientação lacaniana no hospital estágios práticos de psicanalistas em formação atendimentos psicanalíticos a pacientes psicóticos ou não que de outra forma não procurariam a psicanálise seja pelo nível sociocultural que não permite que conheçam a oferta psicanalítica seja por sua condição financeira estudantes baixos salários moradores de rua e sobretudo tornase possível a apresentação de pacientes A apresentação de pacientes é um legado de Lacan Se a medicina utiliza a prática da discussão e apresentação de casos clínicos desde sua origem Lacan a diferenciou transformandoa em uma primeira entrevista psicanalítica a pacientes da enfermaria psiquiátrica do Hospital SainteAnne serviço do Dr Daumézon Ofereceu sua escuta a sujeitos hospitalizados em hospitais públicos durante toda sua vida jamais abandonou a apresentação de pacientes A modificação de Lacan mudou principalmente a relação do psicanalista com sujeitos psicóticos Sua apresentação visava a transmitir aos que a assistiam uma certa disciplina da entrevista psicanalítica cujos efeitos subjetivos se fazem notar tanto do lado do paciente quanto do lado das pessoas que assistem à entrevista Estas últimas podem logo após a saída do entrevistado falar a respeito do que pensaram Abrese uma discussão profícua O dispositivo analítico oferece uma alternativa ao paciente hospitalizado e viceversa pois como afirma Éric Laurent 1995 p 97 desde a segunda metade do século XX se não existisse a psicose não existiria o analista à diferença do tempo de Freud em que a neurose possibilitou a invenção da psicanálise O psicanalista de nossa época entretanto não pode esquecer o que deve ao psicótico que agora funciona como seu mestre do mesmo modo que analogamente o neurótico funcionou O ANALISTA LACANIANO PRESCINDE DAS MEDICAÇÕES Como havíamos anunciado na introdução do capítulo pensamos que o analista lacaniano em casos específicos não pode nem deve em nossa época prescindir das medicações Alguns analistas lacanianos exercem também a psiquiatria principalmente por trabalharem em instituições de saúde Nesse caso prescrevem psicofármacos de acordo com o trabalho diário que têm com a melancolia o risco suicida a esquizofrenia a paranoia Lidam também com as prescrições de outros colegas pois à instituição chegam pacientes que já estão em tratamento Analistas lacanianos que não exercem a psiquiatria quando diante de casos graves como os citados no parágrafo anterior encaminham estabelecem parcerias conversam procuram profissionais próximos da psicanálise como já dissemos anteriormente Tudo com muita cautela entretanto É necessária a atenção para a questão do diagnóstico pois assistimos a uma ampliação enorme de indicações de medicamentos durante estas últimas décadas a ponto de não podermos dizer que haja indicação no sentido estrito de um diagnóstico específico É a psicanálise que pode intervir nesse quadro Vejamos uma citação do texto Sobre os efeitos secundários e a prescrição de psicotrópicos Há uma extensão ilimitada de efeitos secundários dos medicamentos A sociedade está dopada como disse Alain Ehrenberg e é isso que faz a explosão dos efeitos colaterais Não é apenas uma questão de número de usuários é uma questão de qualidade porque os sujeitos que apresentam mais efeitos colaterais são talvez aqueles que não tinham necessidade do princípio ativo sujeitos que não estão doentes mas que querem enfrentar as exigências de nossa sociedade querem ser mais eficientes mais competitivos etc Daí a importância do diagnóstico para distinguir entre o que é ou não observado no tratamento Minha tese é que não se pode praticar a psiquiatria e a prescrição de psicofármacos adequadamente sem o apoio teórico da psicanálise e do que ela permite no campo do diagnóstico DEWANBRECHIESLA SAGNA 2012 Gostaríamos de enfatizar a última frase não se pode prescrever psicofármacos sem o apoio teórico da psicanálise e do que ela permite no campo do diagnóstico A psicanálise lacaniana dispõe de meios eficazes para o diagnóstico tanto por meio dos quatro discursos propostos por Lacan Discurso do Mestre Discurso Universitário Discurso da Histérica e Discurso do Analista e de seu diagnóstico estrutural neurose psicose e perversão baseados na relação do sujeito com a mãe sua castração sua falta e o que a preenche como também no último ensino de Lacan o diagnóstico através da clínica borromeana ou clínica universal do delírio como a designa JacquesAlain Miller 1993 p 7 A generalização do delírio isto é saber que todo mundo delira que todos os nossos discursos são delirantes funcionando como defesas contra o Real propiciou um refinamento no diagnóstico da psicose e como consequência a possibilidade de detecção de psicoses comuns ou ordinárias bastante frequentes nos sintomas contemporâneos como toxicofilia alcoolismo em jovens anorexia bulimia escarificações na pele etc e uma maior precisão no diagnóstico da neurose pois o psicótico sabe melhor do que o psicanalista que ele é conduzido pelo Outro e o automatismo mental o faz saber que ele é falado comandado pela demanda de um terceiro coisa que o neurótico ignora ou demora muito para descobrir em análise isto é a relação entre a demanda e o desejo do Outro que é opaco indefinível mantendo em suspenso a pergunta o que o Outro quer de mim até quase o final da análise Esta é a grande responsabilidade ética do analista lacaniano perante as medicações Senão ele paga com sua própria carne a libra de carne como diz Lacan no Seminário 10 citando Shakespeare em O mercador de Veneza 1989 pois a lei da dívida e do dom não ganha peso por nenhum elemento que possamos considerar um terceiro externo mas o que está em jogo no pacto só pode ser e só é a libra de carne a ser retirada como diz o texto do Mercador bem junto do coração LACAN 196219632005 p 242 O RISCO CLÍNICO EM PSICANÁLISE O quarto tópico sobre o risco clínico em psicanálise é justamente o coração deste capítulo Vamos discutilo a partir de pequenos extratos da clínica coisas com as quais um analista lacaniano pode se deparar nas instituições de saúde ou no consultório 1 Homem no final da sexta década da vida entra ofegante deita no divã com dificuldade Podese escutar o ruído de sua falta de ar e as palavras entrecortadas Muito docemente lhe é solicitado que se levante do divã e se dirija à poltrona As abas do nariz se abrem a cada inspiração o tórax se contrai a forquilha entre as clavículas afunda É encaminhado de táxi imediatamente a um prontosocorro A família é avisada Foi internado com pneumonia bilateral e derrame pleural Procura a analista depois de vinte anos de tratamentos psiquiátricos para depressão e de psicoterapias sem resultados É quase sua última cartada Está medicado com antidepressivos Na primeira entrevista notase um discreto tique do lado direito do corpo principalmente na mão e no antebraço Há algo de pastoso lento em sua fala Na segunda entrevista o tique persiste não para nunca Solicitase uma tomografia computadorizada de crânio sem contraste e um eletroencefalograma Ligam do laboratório para perguntar se poderiam injetar contraste durante a tomografia Tinham visto algo Era um meningeoma tumor benigno do cérebro que ocupava todo o hemisfério esquerdo Fez cirurgia foram retirados os antidepressivos Ficou muito bem seis meses depois deixou a análise 2 Chega no horário usual de sua sessão semanal carregada por dois porteiros do prédio e acompanhada pela irmã apavorada Estava catatônica catatonia estado de imobilidade motora acompanhada de estupor movia somente as pálpebras Foi encaminhada a um psiquiatra parceiro e que por sorte atendia nas proximidades onde foi medicada e acompanhada cuidadosamente Continua em análise e em tratamento psiquiátrico 3 Ideação suicida grave já na primeira entrevista Vem acompanhada dos dois filhos Estava fortemente medicada por um psiquiatra que a havia visto no dia anterior No final da entrevista lhe foi indicada internação imediata Ela se opôs os filhos se opuseram Fezse um pacto no qual ela parecia implicada Os filhos não a deixariam sozinha nem por um instante Voltaria ao consultório no dia seguinte Na manhã do outro dia estava bem um filho deixou sua casa dez minutos antes de o outro chegar Nesse curtíssimo intervalo ela saiu e se atirou do viaduto Passagem ao ato suicida Esse foi um pacto que a analista pagou com a própria carne a libra de carne 4 Havia desaparecido da análise há mais de 1 ano Pede horário urgente para o mesmo dia Ansiedade tonturas tremores perda do equilíbrio roçava as paredes quando andava emagrecida pálida Depois de longa sessão na qual fala da piora de sua vida de sofrer de angústia todos os dias e de ter interrompido a análise por ter ficado sem dinheiro confessa ter pedido a sessão urgente por medo dessa estranha tontura que sentia há quatro dias Seria psicológico e estresse em sua opinião Uma pequena indagação induziu a uma possibilidade diagnóstica Ingeria há muitos anos cinco a seis latinhas de cerveja e uma dose de uísque ou conhaque todas as noites em casa depois do trabalho Havia parado de beber completamente há cinco dias Saiu da sessão com um encaminhamento para o prontosocorro mais próximo Depois de receber soro injetável com glicose e complexo B telefonou dizendo estar bem Era uma pequena síndrome de abstinência alcoólica Actingout Voltou para a análise 5 Cinco pessoas de sua família a acompanhavam na sala de espera Agitada falava com todo mundo sobre sexo fazia dos desconhecidos seus confidentes boca pintada cabelos em desalinho roupas extravagantes havia gasto todo o seu dinheiro feito dívidas comprado absurdos desde a última sessão na semana anterior Era um primeiro episódio de mania As vinhetas clínicas querem ilustrar o que pode representar o psicanalista lacaniano para o sujeito e mesmo para a sua família um porto seguro Ele que se prepare É o efeito da transferência conceituada por Lacan em seu primeiro ensino como suposição de saber Uma transferência jamais explicitada ou trabalhada pelo analista como fazem por exemplo alguns analistas de orientação kleiniana e portanto mais eficaz tanto em sua força quanto como em sua função de referência na condução da experiência analítica O desejo do analista é o que dá sustentação à transferência do lado do analista Desejo de levar uma análise até o seu final obtendo a diferença absoluta do sujeito sua singularidade que poderá ser inscrita no mundo e desejo baseado em um amor sem limites conforme Lacan no Seminário 11 1964 p 260 A maioria dos casos relatados poderia ter procurado um médico generalista ou um pronto socorro diretamente Mas afinal o que seria avaliar o risco clínico em psicanálise Seria dar todo o valor possível às entrevistas preliminares Nelas o analista lacaniano utiliza todos os seus recursos para fazer o diagnóstico e o cálculo da clínica com aquela pessoa uma a uma A chamada clínica do olhar tem nas entrevistas preliminares o seu lugar de importância porém é a escuta de como o sujeito fala de como relata suas queixas seu sofrimento os motivos que o levaram à análise de como se posiciona no discurso e na vida diante do Outro e as primeiras manifestações da transferência que podem definir o diagnóstico e se haverá ou não continuidade da análise Portanto os três tópicos ou subitens deste capítulo discutidos anteriormente e as vinhetas clínicas nos serviram para embasar a afirmação do título seguinte A AVALIAÇÃO DO RISCO CLÍNICO É INERENTE À PRÓPRIA CLÍNICA Começa nas entrevistas preliminares com o diagnóstico pois cada diagnóstico contém um risco pensemos no risco maior de passagens ao ato na psicose e de actingout na neurose embora possa perfeitamente ocorrer o contrário e permanece essa avaliação do risco clínico durante toda a análise do sujeito em cada uma de suas sessões Não há clínica sem risco Referências bibliográficas DEWANBRECHIESLA SAGNA Carole Efeitos secundários e a prescrição de psicotrópicos Lacan Quotidien n 222 jun 2012 Disponível em httpwwwwapolorgptglobalLacanQuotidienLQ222BATpdf Acesso em 10 de setembro de 2012 FORBES Jorge Você quer o que deseja Rio de Janeiro Best Seller 2003 2009 Comentário do texto de Lacan o lugar da psicanálise na medicina 17072009 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrmovimentoanaliticocomentariotextojacqueslacanhtml Acesso em 10 de setembro de 2012 FREUD Sigmund 1909 Notas sobre um caso de neurose obsessiva In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud v X Rio de Janeiro Imago 1969 19161917 Teoria geral das neuroses Conferências introdutórias sobre psicanálise Psicanálise e psiquiatria Conferência XVI In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud v XVI Rio de Janeiro Imago 1969 p 289303 LACAN Jacques 196263 O seminário Livro 10 A angústia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 1964 O seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 2 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 1966 O lugar da psicanálise na medicina Opção lacaniana São Paulo n 32 dez 2001 LAURENT Éric amp GOROG Françoise Un service dorientation décidée Mental Revue Internationale de Santé Mentale et Psychanalyse Appliquée ParisBruxelles École Européenne de Psychanalyse n 1 1995 MILLER JacquesAlain Clinique ironique La Cause Freudienne Revue de Psychanalyse Paris ECF n 23 1993 SHAKESPEARE William O mercador de Veneza v II Rio de Janeiro Nova Aguilar 1989 DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders CID Classificação Internacional de Doenças A PSICANÁLISE FORA DE QUATRO PAREDES POR QUE AS INSTITUIÇÕES TÊM TANTAS CRISES ANGELINA HARARI INTRODUÇÃO Pretendemos abordar o tema da psicanálise fora de quatro paredes traçando uma retrospectiva a respeito da noção de analista cidadão LAURENT 2007 p 142 noção que vem de encontro a um ideal de marginalização social do psicanalista Essa escolha se deve ao fato de considerarmos essa noção essencial quando se trata dos fundamentos da prática lacaniana na contemporaneidade prática que hoje já não se limita àquela dos consultórios Uma prática comum aos psicanalistas no final da década de 1970 e que durou até a década de 1990 foi a de colocarse na posição do intelectual crítico principalmente no seio dos movimentos de esquerda intelectual E é exatamente isso que Laurent visa a destruir ao cunhar essa expressão retirando o psicanalista de sua posição de crítico da posição de exílio de si mesmo Levao a ser mais participativo no plano social Esse alicerce será importante para falarmos do segundo aspecto do tema o das crises nas instituições por onde o analista cidadão circula A tese do analista cidadão é correlata ao último ensino de Lacan quando a psicanálise é chamada a responder ao caráter autista do sintoma que não é o da disfunção mas da opção de gozo ou seja segundo Lacan uma vez que a maneira como cada um sofre em sua relação com o gozo porquanto só se insere nela pela função do maisde gozar eis o sintoma LACAN 19682006 p 41 Quando a psicanálise foi chamada a responder ao sintoma que não quer se comunicar a resposta do lado da prática lacaniana foi radical na sua resistência à padronização retirando o psicanalista do consultório de onde podia exercer a função de crítico e levandoo a um contato direto com a esfera social A figura do psicanalista reservado crítico de certo modo marginal teve um papel histórico importante mas não corresponde mais ao que a psicanálise requer para dar conta do sintoma que não quer se comunicar com o outro que não quer dizer nada A própria figura do intelectual vívida no século XX a partir do Caso Dreyfus quando surge o termo intelectual vê sua vocação crítica ser questionada se não acrescentar ao papel de crítico um papel orgânico a desempenhar o de operários dessa difícil democracia regime de liberdade limitada de igualdade aproximativa e de fraternidade intermitente WINOCK 2000 p 800 É também o que Bouretz assinala no prefácio à obra de Hannah Arendt que ela procura atualizar a figura do intelectual ao unir as categorias romanas vita contemplativa e vita activa em torno da ação Entrar no mundo da ação é como entende um engajamento deliberado escapando ao universo protetor das ideias ARENDT 2002 p 14 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE ANALISTA CIDADÃO NA CONTEMPORANEIDADE Tanto a noção de analista cidadão quanto o princípio da ação lacaniana fundamentam a prática lacaniana na contemporaneidade Se o significante mestresenhor é o que se chamou na filosofia política valor o que se chama democracia é a intolerância ao significante mestresenhor absoluto o convite a suportar que haja outros valores Assuntos que eram creditados à sociologia passam em função dessa nova perspectiva a ser incluídos na própria extensão da noção de sintoma na psicanálise Para a psicanálise lacaniana a sociedade do risco de Beck 1986 se torna a sociedade do sintoma A história da família e a função paterna se remodelam tratamos de instaurar normas particulares em cada oportunidade a partir de um modo de gozo Tudo isso fez com que Lacan reconstituísse o pai a partir do casamento e os modos pelos quais o homem chega a fazer da mulher a causa do desejo que por sua vez se ocupa de seus objetos a LAURENT 2007 p 69 Nessa medida interessounos enveredar pelo estudo da categoria risco no qual nos deparamos com a relação entre a característica da física social de Quételet e de seu consecutivo abandono de toda perspectiva individual ou psicológica EWALD 1986 p 162 e a prática de alojar o ideal terapêutico na norma mais exatamente no ideal de fazer parte da norma confrontandoos com a prática lacaniana de atingir na experiência o modo de gozo singular que o sintoma sinthoma comporta para haverse com ele no fim da experiência Para Lacan o nível do uso é um nível essencial que se impõe precisamente a partir do fato de o Outro não existir Há uma passagem necessária do parceiro analista para o parceiroobjeto a que conduz ao parceirosintoma e consequentemente ao uso que se faz do sintoma sinthoma Na teoria do parceirosintoma encontramos a fantasia constituindo o casal fundamental para o sujeito O parceiro essencial revelado através da estrutura da fantasia é o objeto a que surge de objeto extraído do corpo do sujeito MILLER 2000 p 168 e determina assim o lugar do analista balizado no termo objeto a Do parceiroobjeto ao parceirosintoma tratase sempre do parceirogozo do sujeito Ewald 1986 em sua abordagem da filosofia política do princípio de precaução Vorsorgeprinzip que surge em 1970 na Alemanha alertanos para o fato desconhecido até o meio da década de 1990 de que esse princípio se tornou uma expressão popular e até passível de vulgarização A precaução se distingue da proteção contra o perigo e a diferença reside na identificação do risco Toda a questão é saber até onde os poderes públicos pois é disso que se trata nesse princípio de política do meio ambiente podem agir contra os riscos ainda não identificados Nesse sentido para Laurent 2000 p 101 toda sociedade define o corpo do sujeito pelos aparatos que lhe fornece sejam jurídicos técnicos ou eróticos Pelo viés do corpo e de sua definição que na prática lacaniana acontece pelo gozo que se extrai dele e das1 relações entre os sistemas de parentesco e a distribuição dos nomes do pai mãe e filho a psicanálise se vê levada a tomar partido nos debates que animam a sociedade civil LAURENT 2000 p 101 DA AUSÊNCIA À PRESENÇA DO ANALISTA Do lado do psicanalista é necessário assumir riscos é assim que entendemos a frase de Lacan Por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis à qual acrescenta logo após a posição do psicanalista não deixa escapatória já que exclui a ternura da bela alma LACAN 196519661998 p 873 Por outro lado a ação lacaniana como intervenção possível do psicanalista na esfera pública foi introduzida por Miller 2003a para questionar a posição de extraterritorialidade da psicanálise no que diz respeito ao âmbito social Quando Lacan em 1966 aborda o tema do lugar da psicanálise na medicina situaa como marginal como já escrevi em várias ocasiões extraterritorial Ele é extraterritorial por conta dos psicanalistas que provavelmente têm suas razões para querer conservar esta extraterritorialidade Não são minhas estas razões LACAN 19662001 p 8 No entanto segundo Miller 2003a Lacan mesmo fomenta a extraterritorialidade nos anos 1970 que foram os de contestação do mestre pela juventude estudantil quando pôde fazer da psicanálise o avesso do discurso do mestre invalidando tanto o discurso do mestre quanto as reivindicações contra este Nesse sentido ele recusa os termos do debate e inscreve a psicanálise e o psicanalista alhures Nasce assim na psicanálise uma contrassociedade a sociedade dos analistas é concebida como uma contrassociedade estabelecida sobre a recusa do significante mestre e questionando a sociedade como tal pelo viés do que ela produz o maisdegozar como resíduo MILLER 2003a Há toda uma reflexão que faz Miller 2003a a respeito da exterioridade do discurso analítico em sua condição de laço social específico mas que supõe uma forma de organização social e que portanto não é sustentável em qualquer regime social Segundo ele Lacan sustentava a subtração da psicanálise na sociedade estabelecendo uma contrassociedade enfatizada no fato de que entrar no funcionamento social nem que seja a título de protestálo conforme o diz em Televisão LACAN 1973 p 517 indica que não pode fazêlo a sério porque ao denunciálo ele o reforça reforça a exploração do maisdegozar Postula isso para interrogar qual sentido é preciso dar à subtração da psicanálise na sociedade pois é a democracia que autoriza a pluralidade do laço social o que o leva a propor ao lado do ato analítico tal como Lacan o definiu a instalação de uma ação lacaniana que daria a esse ato psicanalítico na sociedade as consequências que ele pode ter uma vez que para além da forma de organização social que o discurso analítico supõe este só pode se dar em regime de democracia Lacan 19732003 apesar disso considera inaceitável que alguns critiquem essa sua posição como sendo uma reprovação da política pelo fato de ele afirmar que os trabalhadores da saúde mental entram no discurso que condiciona a miséria do mundo mesmo que seja a título de protesto Para Miller 2003a o que Lacan trouxe nos anos 1970 seu matema dos quatro discursos fundado sobre o laço social faz esfacelar a unidade o Um da sociedade pluralizandoa A inspiração de Lacan oriunda do texto de Freud veio da comparação da ação de governar com a de educar e a de psicanalisar ao que acrescentou a histeria como contestação ao mestre A psicanálise parte desse ponto do impossível O laço social não é equivalente à sociedade falar de laço é admitir que há vários tipos de laços sociais Seguindo nessa reflexão a respeito da exterioridade do discurso analítico em seu estatuto de laço social específico Miller 2003a encontra no estádio do espelho de Lacan 19491998 fundamentos para uma definição do social como não sendo igualitário Considera o estádio do espelho como um enunciado de filosofia política o enunciado do que comporta um laço igualitário a relação de semelhante a semelhante Lembranos o que Lacan repete do que Hobbes diz a respeito é a guerra A epistemologia de Lacan é também uma filosofia política no nível do imaginário é a guerra Portanto a sociedade se torna o simbólico e a constituição do laço social como a superação da relação dual E para concluir sua reflexão Miller retoma a tese de medicina de Lacan a psicose paranoica em suas relações com a personalidade 19321975 para reafirmar o caráter representativo social sempre que se tratar da dimensão subjetiva Na tese Lacan define os fenômenos da personalidade a partir de três aspectos um desenvolvimento biográfico uma concepção de si mesmo e uma forma de tensão das relações sociais Esse terceiro ponto por sua vez marca o valor representativo no qual o sujeito se sente afetado cara a cara com os outros LACAN 1932 p 42 É exatamente o valor representativo de cada um segundo Miller 2003b o que Lacan chama de significante mestresenhor já que é o Outro quem dá seu valor representativo O laço social é significante a introdução do significante mestresenhor S1 no seminário O avesso da psicanálise tem o poder de conferir legibilidade O que é que sempre nos permite lendo qualquer texto perguntarnos o que o distingue como legível Devemos procurar a articulação pelo lado do que constitui o significante mestresenhor LACAN 19691992 p 180 Por um lado o significante mestresenhor faz a junção com o sujeito e por outro com o conjunto de significantes mediador entre o sujeito e o conjunto de significantes Por um lado é o mestresenhor do sujeito pelo qual ele se representa como tendo um valor no discurso universal por outro é o que ordena o conjunto dos significantes Isso funcionou da Antiguidade até 1950 depois Lacan indicou outro discurso que ele denominava discurso capitalista e diferentemente do discurso do mestresenhor no qual o sujeito está representado por um significante mestresenhor um significante do Outro o sujeito não tem significante do Outro Sem o significante mestresenhor o sujeito está livre para inventar seu significante não é mais sobre o discurso do Outro que os sujeitos designam a si mesmos O significante mestresenhor é o que permite dizer eu sou isto aos olhos do Outro MILLER 2003b É nessa medida que Miller 2007 postula o avesso de Lacan não se tratando de mudança de tópico como em Freud mas de um recomeço que não cessa jamais No avesso de Lacan o Outro é destituído e o sujeito é pensado a partir das categorias clínicas real simbólico e imaginário Mas a rigor não é mais do sujeito que se trata aí não é mais do sujeito do significante e sim do ser humano qualificado como falasser No lugar do Outro emerge conforme o ensino de Lacan outro princípio de identidade Na primazia do Outro encontramos o pivô da identidade do sujeito Tratase da categoria freudiana da identificação declinada em três modos conforme descrito em Psicologia das massas e análise do eu 19211969 a identificação com o pai a identificação histérica e a identificação com o traço unário No lugar do Outro o corpo MILLER 2007 É assim que Miller propõe um novo princípio de identidade o Umcorpo do qual Lacan fornece pequenos apanhados Não mais o corpo do Outro e sim o corpo próprio a função originária da relação com o corpo próprio que comporta a ideia de si mesmo Por essa razão Lacan retoma a antiga palavra freudiana eu O eu se estabelece pela relação com Umcorpo nada mais tendo a ver com a definição do sujeito que passa pela representação significante O pivô da identidade do sujeito deixa de ser a identificação o amor ao pai por exemplo tornandose o amor próprio no sentido do amor a Umcorpo Esta fórmula é proposta por Lacan no Seminário 23 O falasser ama seu corpo porque crê que o tem 19752007 p 64 Nada a ver com o eu que Lacan criticava em Anna Freud no Seminário 1 Há parágrafos no livro de Anna Freud O Eu e os mecanismos de defesa em que se tem o sentimento se passarmos sobre a linguagem às vezes desconcertante pelo seu caráter coisista de que ela fala do eu no estilo de compreensão que tentamos manter aqui E temse ao mesmo tempo o sentimento de que ela fala do homenzinho que está dentro do homem que teria uma vida autônoma dentro do sujeito e estaria ali a defendêlo Pai mantenhase à direita Pai mantenhase à esquerda contra o que pode assaltálo de fora como de dentro Se considerarmos o seu livro como uma descrição moralista então ela fala incontestavelmente do eu como da sede de certo número de paixões em um estilo que não é digno do que La Rochefoucauld pôde assinalar acerca das manhas incansáveis do amorpróprio A função dinâmica do eu no diálogo analítico permanece pois até o presente profundamente contraditória por não ter sido rigorosamente situada e isso aparece cada vez que abordamos os princípios da técnica LACAN 19541986 p 78 A CRISE NAS INSTITUIÇÕES A PRÁTICA INSTITUCIONAL DE LACAN Tomaremos essa crise nas instituições pelo viés da prática institucional de Lacan Contrapondose a Freud que buscou uma instituição refúgio para a psicanálise Lacan pensava sua Escola como feita para viver no malestar São ideias distintas quanto ao ser social do grupo analítico Mas o malestar crescente levou à dissolução da própria escola Não se tratava para Lacan de vida em grupo em sua Escola mas simplesmente de recusar a vida de grupo para proteger sua Escola Sabemos dos efeitos nocivos do grupo a partir do texto princeps de Freud a respeito da psicologia do grupo ou das massas De acordo com JacquesAlain Miller a posição coerente com a teoria de Lacan é recusar a vida de grupo aceitando o desconforto nele existente Derivase ainda da teoria lacaniana o cultivo do desconforto no interior dos grupos e até mesmo uma posição segundo a qual cada um deve se virar sozinho Miller atribui os atuais impasses da psicanálise a essa posição mesma MILLER 2001 Embora seja bem conhecida a frase de Lacan segundo a qual sua Escola seria uma base de operações contra o malestar da cultura lidar com o malestar da cultura não poderia ser feito a partir de uma seita de iniciados forma como Lacan passou a ver as Sociedades Analíticas a IPA após sua excomunhão em 1964 Uma sociedade constituída por psicanalistas que reconheciam uns aos outros toma como adquirida a definição do analista Ao passo que na teoria de Lacan a definição do analista não é dada a priori então a Escola tem como propósito trabalhar sobre o que é um analista pergunta para a qual Lacan inventa um dispositivo a Escola que delega a uma espécie de banca examinadora a tarefa de verificar uma experiência de análise ou seja a verificação de um ato Esse dispositivo ele intitulou passe CONSIDERAÇÕES FINAIS Para nós as crises nas instituições psicanalíticas estão diretamente vinculadas ao importante no conceito da Escola de Lacan Para Jorge Forbes em comunicação pessoal o analista não precisa nem deve ser o principal agente de transformação e de superação de crises que sempre existirão Em sua avaliação cabe ao analista ser quem com a escuta diferenciada desnuda o sintoma de determinada instituição e ao o fazer abre uma nova perspectiva de laço social pautada na sua consequência O analista do século XXI deve agir nas instituições tendo em mente que o laço social que une a sociedade hoje em dia é o amor chefes viraram amigos relações no trabalho se tornaram mais íntimas a hierarquização está cada vez mais imperceptível os papéis dentro das instituições outrora predefinidos e sem zonas cinza agora se confundem Nas instituições públicas a situação tornase ainda mais delicada pelo fato de que as leis e regras impostas travam sua atuação porém não a impossibilitam Nas instituições psicanalíticas isso não é diferente Como ela se pauta por ser uma prática institucional que não impede as crises levar em conta o malestar da cultura faz parte de sua própria constituição Implicar a cultura na prática institucional recusar a vida de grupo e não ter como adquirido o conceito de analista remete ao analista cidadão que é mais participativo no plano social Referências bibliográficas ARENDT Hanna Les origines du totalitarisme Eichmann à Jérusalem Paris Quarto Gallimard 2002 BECK Ülrich 1986 La societé du risque sur la voie dune autre modernité Paris Flammarion 2001 EWALD François LÉtat providence Paris Grasset 1986 FREUD Sigmund 1921 Psicologia de grupo e análise do ego In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud v XVIII Rio de Janeiro Imago 1969 LACAN Jacques 1932 De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité Paris Seuil 1975 1949 O estádio do espelho In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1954 Seminário Livro 1 Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro Jorge Zahar 1986 196566 A ciência e a verdade In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1966 O lugar da psicanálise na medicina Opção lacaniana São Paulo n 32 dez 2001 1968 Le séminaire Livre XVI Dun autre à lautre Paris Seuil 2006 1969 Seminário Livro 17 O avesso da psicanálise Rio de Janeiro Zahar 1992 1973 Televisão In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 197576 O Seminário Livro XXIII O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 LAURENT ÉRIC Estado sociedade psicoanálisis In Psicoanálisis y salud mental Buenos Aires Tres Haches 2000 O analistacidadão In Sociedade do sintoma Coleção Opção Lacaniana Livro 6 Rio de Janeiro Contra Capa 2007 MILLER JacquesAlain A teoria do parceiro In Os circuitos do desejo na vida e na análise Rio de Janeiro Contra Capa 2000 Politique lacanienne 19971998 Paris Collection Rue Huysmans 2001 A invenção psicótica Opção lacaniana São Paulo n 36 2003a Curso de orientação lacaniana Um esforço de poesia 20022003 Paris Université de Paris VIII 2003b Curso de orientação lacaniana 20062007 Aulas de 151106 140307 280307 e 260507 Paris Université de Paris VIII 2007 WINOCK Michel O século dos intelectuais Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 1 Parte extraída de nossa tese de doutorado Fundamentos da prática lacaniana risco e corpo apresentada no IPUSP março2008 PARTE 4 A ANÁLISE SUAS FINALIDADES E SEUS FINAIS A ANÁLISE E SEUS FINS ATÉ ONDE VAI UMA ANÁLISE LACANIANA HOJE JORGE FORBES INTRODUÇÃO Na psicanálise vivese um impasse que se enfrenta a cada encontro clínico e na teoria Não há resolução Diante dele só se pode buscar uma mudança de atitude A quem se ressente e sofre a impotência podemos propor outra resposta saber se virar com o impossível Quando não existe mais estrada há uma oportunidade maravilhosa que a pessoa a invente Ainda assim não é aceitável conduzir uma análise do gênero fale livremente e nós veremos juntos o que acontece Quando as dificuldades do impasse psicanalítico se mostraram aos seguidores de Freud e surgiu entre eles essa proposta do vamos vendo juntos Lacan a corrigiu duramente Defendeu que a análise deve ter uma orientação Se o analista não dirige o paciente ele certamente dirige o tratamento LACAN 19581998 Cabe aqui de novo a pergunta de Drummond 19421992 para onde O tema do final de uma análise é delicado e foi bem destacado por Freud 19371969 porém restou inconcluso Quem começa hoje na psicanálise e vem das faculdades de medicina e psicologia dentro do domínio da medicina baseada em evidências costuma apoiar suas práticas profissionais em fórmulas e protocolos Ao encontrar esta clínica que lida com o impasse e com o impossível sem procedimentos padrão a pessoa se assusta Pensando que podemos ter leitores nessas condições decidi expor de forma básica nosso tema de conclusão da análise Com efeito não se pode receber alguém em análise sem uma ideia clara do caminho adiante Não se pode pilotar a clínica sem saber qual é a bússola e o norte do tratamento oferecido Houve uma época em que em uma análise pretendiase fazer o analisando saber mais sobre si e em decorrência melhor agir Era o tempo de Freud e da livre associação FREUD 19121969 Hoje nós passamos a outra era de uma análise para saber menos FORBES 2012 induzindo a uma ação não garantida a uma aposta A Tabela 1 a seguir torna essa distinção mais clara Imaginemos didaticamente que tivéssemos dois botões para regular a clínica Este capítulo tem como objetivo trabalhar a diferença entre esses dois botões para responder à pergunta faremos análise com a carga no botão da esquerda ou no da direita A escolha envolve o mais essencial do tratamento e da ética da psicanálise O BOTÃO DO PAI A ÉTICA DO AGIR GARANTIDO Como já comentamos se pesquisarmos hoje em uma faculdade de psicologia para que você vai fazer uma análise A resposta será para me conhecer melhor e com isso agir mais acertadamente A lógica implícita será primeiro eu sei e depois eu ajo O objetivo é saber mais O privilégio é do registro simbólico Já a psicanálise que fazemos é a de um menos saber que admite o agir arriscado sem garantias Nela consideramos que as razões ditas inconscientes jamais bastarão para explicar minhas ações Trabalhase no registro do Real Assim tornamos legítima uma ação criativa e incompleta desistimos de achar que a vida se dirige por uma verdade garantida Em uma análise a verdade máxima que a pessoa alcança é sempre posta sobre questões às quais caberia o silêncio portanto ela será no melhor dos casos uma verdade mentirosa LACAN 19762003 Para discutir o que é uma análise levada a bom termo partirei do modelo freudiano de interpretação analítica FREUD 19371969 seguirei com Lacan na primeira clínica e em seguida passarei à segunda clínica de Lacan Assim veremos 1 a resolução do sintoma em Freud 2 a travessia do fantasma em Lacan e 3 a identificação ao sintoma em Lacan uma das expressões do final de análise na atualidade Mudanças só valem quando não deturpam os pilares os princípios da práxis psicanalítica Para sustentálos volto ao mais elementar o texto A interpretação dos sonhos FREUD 19001976 Vemos nele como Freud se expressa quanto à direção de uma análise Ele ensina escolha uma frase do analisando e a partir dela peçalhe para falar o que vier à cabeça Você notará que cada parte desse enunciado abrirseá no mínimo em mais duas delas virão mais duas e de cada uma das demais mais duas Assim progressivamente até que veremos a abertura convergir para um ponto único que justifica a significação de toda a cadeia No texto Sobre os sonhos FREUD 19011972 Freud sintetiza o que apresentou em A interpretação dos sonhos 19001976 um ano antes Ele interage com o leitor Poderia aproximar mais os fios do material revelado pela análise e demonstrar então que eles convergem para um único ponto central mas considerações de natureza pessoal não científica impedemme de assim proceder em público Seria obrigado a revelar muitas coisas que é melhor que permaneçam como meu segredo porque a caminho de descobrir a solução do sonho foi revelado todo tipo de coisas que não achava disposto a admitir mesmo a mim próprio Por que então perguntarseá não escolhi algum outro sonho cuja análise fosse mais própria a ser comunicada de maneira que pudesse produzir mais provas convincentes do significado e conexão do material descoberto pela análise A resposta é que qualquer sonho de que quisesse tentar tratar conduziria igualmente a coisas difíceis de comunicar e impormeia uma discrição igual FREUD 19011972 p 678 Independentemente do sonho relatado ou do conjunto dos sonhos somos sempre levados na interpretação ao mesmo ponto chamado por ele de nó dos desejos sexuais infantis recalcados que contém o fundamento da significação para cada pessoa Sendo esse nó singular em cada um não cabe ao analista interpretar com base em seu sentimento quando o paciente cala Não vale dizer sinto que você está em silêncio porque queria dizer isto O sentimento de um clínico referese ao nó de desejos sexuais infantis recalcados dele mesmo é a janela para o seu mundo não para o do seu paciente O analisando tem sua própria janela o que exige do analista que simplesmente escute como enfatizou Lacan ou que seja capaz como disse Olavo Bilac 18881997 de ouvir e entender estrelas Com essa direção Freud deduziu que o final da análise levaria a pessoa a entender sua impotência na vida como efeito de um recalque que lhe amputava a significação Munido desse novo conhecimento o analisando poderia remover seu sintoma Vamos a um exemplo que já pude explorar antes FORBES 1999 Irwing de Almeida não conseguia lidar bem com dinheiro Diante de cada aumento de salário era demitido Um caso de arruinado pelo êxito Um dia pergunto porque ele se chamava Irwing de Almeida mistura de nome estrangeiro com sobrenome brasileiro O paciente conta que foi escolha de uma freira americana amiga de seus pais hóspede em sua casa na ocasião do seu nascimento Mais tarde nas sessões ele retorna de viagem com o seguinte relato ao sair da boca de um metrô nova iorquino viu escrito sobre uma marquise Irwing Bank e percebeu que havia algo de significativo em seu nome associado ao nome de algum banqueiro Por acaso eu o analista sabendo como se chamava o banco Irwing Trust Bank constatei o lapso dizendolhe simplesmente Trust ao que ele acrescentou na sequência In God we In God we trust como vem escrito nas notas de dólar O paciente interpreta Olha o que fizeram comigo santificaram o dinheiro e eu por isso só me ferro Ele descobre um desígnio religioso que impedia seu crescimento na profissão O exemplo é notável O sintoma de sacralizar o dinheiro é comum no quadro obsessivo mas só um único Irwing o expressa dessa maneira Agora como recomendava Lacan 19571998 cuidado o fascínio das formações inconscientes imaginárias pode impedir os analistas de perceberem a importância da estrutura que as sustenta A interpretação é bonita mas não é suficiente Irwing liberase do sintoma na medida em que tem a revelação insight do que houve em seu nascimento a tensão entre o dinheiro e a religião e o pecado Para removermos um sintoma a estrutura freudiana basta Ela tem aplicação ainda hoje Contudo a sociedade não vive mais no padrão do símbolo unitário hierárquico e vertical mas no registro do Real base do laço social horizontal Atento à mudança Lacan 19661967 a partir de Freud dá um passo a mais na elaboração Substitui o nó do desejo sexual infantil recalcado por fantasma que também é um termo freudiano para se referir a uma fantasia fundamental que funciona como axioma no discurso de cada pessoa Lacan entende que o fantasma deve ser alcançado em análise não tanto para remover sintomas mas para uma transformação clínica mais importante A cura dos sintomas acontece por acréscimo no trajeto é um ganho a mais importante sim mas apenas decorrente da finalidade principal O que ele se dispôs a buscar como conclusão de uma análise é a suspeita de todas as soluções a suspensão de todas as interpretações Nesse questionamento das ideologias Lacan aproximouse de Nietzsche O BOTÃO DA RESPONSABILIDADE A ÉTICA DO NOVO AMOR Para discutir o botão da responsabilidade na condução de uma análise hoje lembremos a definição de axioma tal qual entendido na matemática um fundamento de verdade Um axioma é uma sentença original que vale como verdade sem possibilidade de prova Para descobrir se qualquer outra frase é verdadeira o critério é ver se ela deriva com lógica de um axioma Em uma psicanálise ao longo das sessões essa estrutura dedutiva se mostra na interpretação do que diz o analisando como mostra a Figura 1 a seguir Para Irwing essa estrutura revelouse com clareza quando ele pôde deduzir que seu insucesso profissional derivava de um preconceito carregado desde a infância O axioma era que à religiosidade de sua criação o dinheiro não é boa companhia Muitos fatos em sua história de vida repercutiam essa verdade A teoria matemática que desenha esse raciocínio foi defendida por Russell Whitehead 19101962 nos primeiros dez anos do século passado1 e perdurou até a chegada de Kurt Gödel2 que viveu de 1906 a 1978 NAGEL NEWMAN 2001 Gödel transtornou a verdade garantida não mentirosa da matemática Ele afirmou que todo axioma deixa de fora sentenças impossíveis de serem por ele demonstradas Em outras palavras o espelho disse à bruxa existe a Branca de Neve A bruxa pode ser linda mas isso não impede que exista outra mulher bonita fora de sua ordem Gödel dá o belíssimo nome a essa sentença não provada pela demonstração axiomática de sentença indecidível A sentença indecidível pode ser verdadeira independentemente dos critérios antes apurados o que nos indica que a verdade depende sempre da escolha do axioma Então não conseguimos excluir a subjetividade do julgamento como mostram Ernest Nagel e James R Newman no livro A prova de Gödel 2001 Sob essa lógica podemos pensar no que acontece nas sessões analíticas progressivas No caso de Irwing ele entendeu bem que não conseguia alcançar os cargos na empresa por um impedimento em seu nome Contudo continuava a ter problemas Precisou alargar a análise de seu contexto A tendência era que ele gerasse então um novo axioma uma explicação mais ampla para sua situação como na Figura 2 Axioma dedutivo sentença indecidível pelo axioma 1 e formação lógica em um novo axioma Com a descoberta de Gödel podemos entender que sempre que seguirmos investigando a vida há de aparecer um dado que excederá a verdade precedente Com cada nova sentença indecidível um novo processo interpretativo pode ser iniciado É como se Branca de Neve sempre aparecesse e fizesse surgir a próxima bruxa o novo axioma Esse ciclo não termina Assim acontece também na medicina baseada em evidências Ela é infindável pois renova incessantemente para os pacientes a esperança do próximo exame A cada mês as revistas anunciam novos exames e tratamentos É um mercado que nunca entendeu psicanálise nem Gödel Em face dessa condição para não continuarmos iludidos pela promessa de uma próxima boa interpretação restanos dizer aquilo que eu não conheço é igual àquilo que eu não conheço Se não consigo nomear certas coisas devo preservar um não saber sem fingir que o indecidível será esclarecido Ele permanece Assim podemos entender quando Lacan diz que o Real retorna sempre ao mesmo lugar 195519561985 Portanto a história que o analisando conta pode variar mas o Real não ele é sempre igual Sigmund Freud em seu empenho de liberar as pessoas de seus sintomas foi brilhante em identificar antes até de Russell Whitehead que haveria uma estrutura lógica do discurso perceptível na análise do inconsciente e que um axioma poderia representar a significação fundamental de cada pessoa na raiz dos sintomas Lacan 19661967 dizia que ao chegar ao axioma o analisando teria de atravessálo e desistir de ter a garantia de uma verdade que seria seu fantasma Começou a falar em um final de análise que exigia não só a remoção do sintoma mas a travessia do fantasma Ao relermos A interpretação dos sonhosFREUD 19001976 a partir do teorema de Gödel podemos entender que Jacques Lacan depois de dar força à lógica do discurso inconsciente estudando a cadeia significante e a determinação fantasmática começa a se preocupar com aquilo que resta indecidível que nunca tem nome nem nunca terá Ele compreende que não bastava à pessoa se decepcionar com a garantia axiomática É preciso que ela também se responsabilize por aquilo que não sabe até em si mesma eu sou a sentença indecidível A pessoa passa a reconhecer em si o sintoma indecifrável Essa é uma terceira posição em que a supremacia passa do simbólico ao Real Não é uma postura natural religiosa ou iluminista mas humana que se mostra pela invenção de um novo amor Para ilustrar a passagem do simbólico ao Real recorro a um fragmento de minha análise pessoal Para mim foi um momento muito importante embora o que posso reportar seja apenas a cena de um acontecimento banal Estava em Paris em uma ponte da qual gosto muito Olhava a cidade de novo pensando no comentário mais comum Paris é um cartãopostal De repente pude me dar conta que Paris não era a imagem que eu admirava era uma cidade que abriga muitas vidas Estranha era a pessoa que estava na ponte olhando o cartãopostal Houve uma inversão terrível Aprendi que não é sobre o outro que eu não sei O que não sei é o que sou Houve uma legitimação do não saber de mim CONSIDERAÇÕES FINAIS Se antigamente havia a ideia de uma análise progressiva no saber de si a clínica de hoje mudou é reiterativa A cada sessão a pessoa se depara novamente com o fato de que não saberá mais de si Nesse ponto é importante relembrar o famoso exemplo da cebola dado por Freud ainda em A interpretação dos sonhos A análise avança de camada a camada Quanto mais me aproximo do núcleo mais difícil será a interpretação No primeiro capítulo de Inconsciente e responsabilidade 2012 fiz a referência Freud em 1900 já sabia dos limites da compreensão psicanalítica No entanto às condições de sua época ele não pôde formalizar sua descoberta com o uso da lógica como fazemos hoje Agora a análise não é linear ela escapa à axiomática Reitera um não saber até que a pessoa suporte uma mudança radical da sua ação que deixa de ser garantida no Outro para ser arriscada no Real Não conhecemos pessoas que façam essa passagem ética em apenas uma sessão embora fosse possível como discutido Tem sido necessário um trabalho de moenda mais lento em direção à legitimidade do indecidível A metáfora foi utilizada por Lacan 19761977 para dizer que uma análise mói toda a identificação interpretada e leva o analisando a roer o osso da sua existência até que desista dos significados comuns da interpretação e faça com que as palavras que tecem sua vida tenham um outro sentido que não o da queixa repetida No trajeto é o botão da responsabilidade que conduz a essa poesia com a história de vida A pessoa supera a paralisia do impasse porque se torna capaz de levar ao mundo uma invenção singular e responsável Identificada ao não saber ela fica desabonada do inconsciente LACAN 197519762007 já que ele não serve mais de justificativa para a ação Cada pessoa encontra um ponto opaco em si que só tem significado quando falado com os outros em uma ligação horizontal criativa poética em um novo tipo de amor No final da análise o novo amor não é uma escolha é uma necessidade Referências bibliográficas ANDRADE Carlos Drummond 1942 José In Obra poética Rio de Janeiro Nova Aguilar 1992 BILAC Olavo 1888 Ouvir estrelas In BUENO Alexei org Obra reunida Rio de Janeiro Nova Aguilar 1997 FORBES Jorge Da palavra ao gesto do analista Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1999 Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1900 A interpretação dos sonhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v IV e V Rio de Janeiro Imago 1976 1901 Sobre os sonhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v V Rio de Janeiro Imago 1972 p 671725 1912 Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1969 p 14559 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1969 p 23987 LACAN Jacques O seminário Livro 3 As psicoses 19551956 Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 1957 A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 496533 1958 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 591 652 19661967 O seminário Livro 14 Lógica do fantasma Mimeografado O seminário Livro 23 O Sinthoma 19751976 Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2007 1976 Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 5679 19761977 O seminário Livro 24 Linsu que sait de lune bévue saile à mourre Mimeografado NAGEL Ernest amp NEWMAN James R A prova de Gödel Tradução de Gita K Guinsburg São Paulo Perspectiva 2001 WHITEHEAD Alfred North amp RUSSELL Bertrand 1910 Principia Mathematica Cambridge Cambridge University Press 1962 1 Para maiores informações confira httpwwwunicampbrjmarquespesqAxiomadaredutibilidadepdf 2 Para maiores informações confira httpwwwciululptferferrGodelMatpdf COMO AS ANÁLISES FREUDIANAS TERMINAVAM DOROTHEE RÜDIGER SIGMUND FREUD E UM BALANÇO DE SUA CLÍNICA Ao final de sua vida no ano de 1937 Sigmund Freud realizou um balanço de sua clínica quando publicou o ensaio Die endliche und die unendliche Analyse A análise terminável e a interminável O foco de suas reflexões são as várias possibilidades de êxito do tratamento analítico Apoiado em sua rica experiência clínica Freud se pergunta se uma análise pode ser levada ao bom termo Segundo Freud uma análise chegou a seu fim quando a o paciente deixa de sofrer de seus sintomas b o psicanalista julga que o material trazido na análise está esgotado e que os acontecimentos patológicos não se repitam ou c a análise levou à normalidade psíquica O paciente resolve os recalques fecha os lapsos de memória e mantémse psiquicamente estável pelo resto da vida No entanto Freud sabe a partir de sua práxis que os finais de análise não são pacíficos assim ao ponto de levar à normalidade Então diz um tratamento analítico não protege ninguém da neurose FREUD 19372006 p 138 Em seguida debruçase sobre a questão de por quais motivos a cura analítica não constitui uma espécie de vacina para resolver conflitos pulsionais Encontra um verdadeiro rosário de argumentos para a tese de que a análise não cura o paciente uma vez por todas Vejamos algumas das razões elencadas por Freud As pulsões não são domesticáveis Não dormem no inconsciente e nos atormentam ao longo da vida com novos conflitos Uma análise tem apenas efeitos parciais na vida dos pacientes porque não consegue tocar em um resto impossível de ser tocado pelo trabalho analítico Há muitos conflitos que o paciente não consegue fazer caber na transferência FREUD 19372006 p 148 Às vezes nem o analista consegue a partir da transferência evocar todos os conflitos inconscientes do paciente O ego sadio não existe Se o ego já é uma ficção que dirá a normalidade Tanto o ego quanto o id esperneiam contra a análise O inconsciente é um verdadeiro bandido para evitar desprazer promove a censura falsifica torce e omite os fatos Diante dessas razões o sucesso ou o fracasso de uma análise dependem do paciente e do analista cuja normalidade obviamente também é uma ficção Haja divã para o paciente e para o próprio analista Sigmund Freud não diz que uma análise não possa chegar ao fim mas voltase contra a ideia da normalidade esquemática que elimina todas as singularidades humanas FREUD 19372006 p 165 Essa singularidade manifestase na maneira como cada um lida com sua sexualidade se for mulher diz Freud não vai perder a inveja do pênis se for homem deverá conviver com sua revolta masculina Tanto as mulheres quanto os homens chegam no fim da análise ao que chama de o rochedo da castração der gewachsene Fels ou seja a um resto inanalisável Vamos agora retomar casos de alguns pacientes da clínica de Freud já mencionados ao longo do volume São mulheres homens e uma criança cujas análises terminaram bem ou não tão bem A PRIMAVERA DE PSICANÁLISE KATHARINA AURELIA KRONICH Nos Estudos sobre a histeria Sigmund Freud relata um dos casos clássicos de histeria de angústia tratado por ele durante suas férias nas montanhas do Hohentauern Katharina sobrinha da dona da pousada sente falta de ar aperto no peito dor de cabeça e principalmente muita angústia Freud aposta A srta pensa alguma coisa sempre a mesma coisa ou vê algo quando tem os ataques BREUER amp FREUD 18952007 p 143 Ela vê a máscara do tio que como Freud relata mais tarde era na verdade seu pai Assim inicia uma análise em uma única sessão na qual Katharina conta a Freud que presenciou por acaso uma relação sexual entre o tio e sua prima Aos poucos ela se lembra de ter sido molestada por esse tio Só que ela não desconfiava da conotação sexual da investida Ela adoece depois de flagrar o tio e a prima quando a conotação sexual das investidas do tio fica clara Sua breve análise chega ao fim porque Katharina deixa de sofrer dos sintomas que a acometem Sigmund Freud narra Ela acaba de contar essas duas séries de relatos e ela para de falar Está transformada O rosto com sua expressão malhumorada e sofrida tornouse vivo O olhar é de frescor Ela está aliviada e de bom humor BREUER amp FREUD 18952007 p 149 Katharina teve a oportunidade de falar de seus conflitos inconscientes ligar os fatos e compreendêlos E assim curouse Casouse dez anos mais tarde e teve seis filhos Passou a vida nas montanhas e morreu aos 54 anos ROUDINESCO amp PLON 2004 p 746 UM ROMANCE FAMILIAR QUE TERMINA NUMA VALSA FRÄULEIN ELIZABETH V R ILONA WEISS Elizabeth é húngara e procura Sigmund Freud aos 24 anos de idade com dores nas pernas Freud quando aperta a perna da jovem logo percebe que esta apresenta uma satisfação erótica Então a doença só poderia tratarse de uma conversão histérica Amor trocado pela dor a doença das histéricas Em livre associação Elizabeth revela a Freud uma paixão secreta pelo cunhado e seu desejo inconsciente de morte contra a irmã Mais tarde uma conversa entre Freud e a mãe da paciente confirma a teoria de Freud A irmã de Elizabeth de fato morre No entanto ela não é capaz de aproximarse do cunhado agora viúvo tamanha a culpa recalcada Mas Freud julga que a paciente já esgotou as possibilidades de trazer mais material para sua análise A paciente elaborou as causas de suas dores nas pernas e reconheceu seu desejo secreto Portanto a considerei curada diz Freud BREUER amp FREUD 18952007 p 179 Analista e paciente se despedem Freud deve ter desconfiado que Elisabeth v R não estava tão interessada no cunhado Dois anos mais tarde Sigmund Freud soube que Elizabeth foi convidada para um baile O médico fez questão de ir e comenta nos Estudos sobre a histeria não poderia perder a oportunidade de ver minha doente de antigamente a voar velozmente na dança BREUER amp FREUD 18952007 p 180 Ilona Weiss casouse mais tarde com um homem estranho a Freud UM CASO DE ADOLESCENTE E A FUGA DE SÃO SILVESTRE DORA IDA BAUER Quando Sigmund Freud recebe no ano de 1900 a adolescente de dezoito anos chamada Dora para tratar de uma tosse nervosa ele não fazia ideia de que este seria seu caso mais famoso Tal repercussão não se deve ao sucesso de tratamento mas justamente pela autocrítica que anos mais tarde ele empreende para entender por que Dora abandonou o tratamento FREUD 19052007 p 104 O romance familiar de Dora de tão intrincado é digno de ser reproduzido na literatura e no cinema Os pais de Dora não se entendem O pai adoece e envolvese com uma enfermeira casada a Sra K e mantém contando com o apoio de Dora um caso amoroso com ela O marido traído o Sr K apaixonase por Dora e roubalhe um beijo Mas Dora não quer saber das investidas desse homem Afinal Dora é amiga de sua esposa a Sra K Foi ela quem introduziu Dora nos segredos da sexualidade feminina No entanto a amizade dura pouco Dora resolve então revelar as investidas do Sr K para sua mãe O marido da enfermeira nega tudo Para manter as aparências das relações amorosas proibidas o pai encaminha Dora para o tratamento com Freud Na análise Dora revela seus desejos por dois sonhos Entretanto ela não pode admitir que realmente esteja apaixonada pelo marido da amante do pai sob pena de deixar cair por terra a fachada da moral da família de bem Por esse motivo pensa Freud inicialmente ela foge da análise Dora cujo nome verdadeiro era Ida Bauer aproveitou as festas de final de ano para abandonar a análise Não voltou mais ao divã de Freud Ela tinha dito que ia fazer isso Tinha dado sinais de que a análise tocava em questões amorosas dificilmente admissíveis para uma moça de fino trato Assim ela não tratou sua relação amorosa com a enfermeira Sra K a amiga que a esclareceu a respeito dos segredos da sexualidade Dora mantinha uma relação ambígua com essa senhora que a seus olhos a tinha traído Dora não conseguiu terminar sua análise talvez porque as palavras de Freud não a permitiam fazer caber seus conflitos na transferência FREUD 19372006 p 148 Jacques Lacan comenta o caso em 1951 em sua Intervenção sobre a transferência dizendo Foi por haver se colocado um pouco demais no lugar do Sr K que Freud dessa vez não conseguiu comover o Aqueronte LACAN 19511998 p 223 A afirmação de Freud de que analistas são pessoas que apreenderam a exercer uma determinada arte e fora isso têm o direito de ser homens como os outros FREUD 19372006 p 162 soa quase como pedido de desculpa De acordo com seus biógrafos Ida Bauer era uma histérica insuportável Casouse em 1903 e teve um filho em 1905 Muitos anos depois em 1923 procurou o psicanalista Felix Deutsch queixandose de vertigens zumbidos falta de sono e enxaqueca Quando ela revelou a Deutsch que era Dora e narrou sua experiência no divã de Freud ela sarou desses sintomas Em 1945 Ida Bauer morreu nos Estados Unidos UM BRAVO SOLDADO E A MORTE NA GUERRA O HOMEM DOS RATOS ERNST LANZER O paciente que Freud recebeu em 1907 um soldado do exército austrohúngaro sofria de uma neurose obsessiva grave Ele não se autoriza a casar com a mulher que ama Obcecado pela incapacidade de conseguir pagar uma pequena dívida ao seu superior procura Freud Na análise revela que ficou impressionado pelo relato de uma tortura com ratos que se praticava nos prisioneiros de guerra cena que o assombra desde então Freud faz o paciente falar não somente do tormento psíquico que o relato da cena lhe causa como também de sua relação com o pai e com as cenas de repressão sexual que sofreu quando era criança e de sua reação a mordida feito rato A análise permite ao paciente estabelecer ligações entre Ratte e Rate Schuld e Schulden FREUD 19092008 p 102 Sigmund Freud considerou seu paciente curado pela psicanálise Tinha conseguido elaborar seu conflito inconsciente com o pai e resolver a ideia compulsiva de ser torturado por ratos interpretando seu conteúdo e deslocando seu sentido Ernst Lanzer o Homem dos Ratos livrouse na análise com Freud de sua culpa Casouse três anos mais tarde com sua amada e tornouse advogado Mas a felicidade do moço durou pouco Em 1914 foi chamado para lutar na Primeira Guerra Mundial Foi preso na Rússia e morreu prisioneiro de guerra Freud lamentou anos mais tarde que Ernst Lanzer não pôde desfrutar de sua saúde mental que recuperou com a psicanálise FREUD 19092008 p 130 UM MÚSICO EM CRISE E O REENCONTRO COM SUA ALMA GUSTAV MAHLER Gustav Mahler sofria de uma crise em seu casamento com Alma Mahler Ele procurou Freud que o tratou em um encontro na cidade de Leiden na Holanda O músico é casado com a filha do pintor Emil Schindler Alma é bem mais nova que Mahler A partir da morte da mãe de Mahler ele fica impotente e Alma passa a ter vários casos extraconjugais Mahler sofre não somente por causa de sua impotência mas também porque esses casos causam dissemedisse Em sua análise Freud vai ao cerne da questão que atrapalha o relacionamento entre o compositor e sua esposa o nome da mãe de Mahler Engraçado que Alma não se chama Marie teria dito Freud No que Mahler teria exclamado Mas ela se chama Alma Maria Chamoa de Marie JONES 1989 p 91 Obviamente Mahler não queria fazer sexo com a alma da mãe O caso de Gustav Mahler pode ser considerado outro caso famoso de sucesso da psicanálise Desvendada a significação edípica do nome da esposa Mahler deixou de sofrer de seu sintoma a impotência Voltou a ter uma vida sexual satisfatória com a esposa No entanto não conseguiu desfrutar a vida conjugal refeita por muito tempo Adoeceu e morreu um ano depois do tratamento analítico O HOMEM DOS LOBOS E DE MUITAS ANÁLISES SERGEJ KONSTANTINOVITCH PANKEJEV O Homem dos Lobos é o caso de um jovem russo que Freud começa a tratar em 1910 quando o paciente tinha dezoito anos Está sofrendo sequelas de uma gonorreia escondido atrás de uma postura de passividade FREUD 1918 19142008 p 136 Teme uma existência independente Resiste ao tratamento até que Freud estabelece um prazo Ou fala ou vai embora O paciente resolve falar e relata cenas e cenas relacionadas com seu pavor infantil diante da figura do lobo Odiava um desenho do conto O lobo e os sete cabritinhos dos Irmãos Grimm Assustase ao ouvir um conto russo no qual um alfaiate arranca o rabo de um lobo Lembrase do medo que sentia durante a brincadeira do pai que o perseguia gritando vou te morder Já na escola o paciente tinha aversão contra um professor de latim que se chamava Lupus Finalmente seu sonho com lobos que o paciente reconstrói durante a análise com Freud tornase a chave de acesso à cena primária Segundo a interpretação dada por Freud o paciente muito criança teria presenciado uma relação sexual dos pais no qual o pai lhe parecia como se fosse um lobo em pé um coito a tergo a causa inconsciente de sua angústia FREUD 1918 19142008 p 161 A análise de Sergej Konstantinovitch Pankejev foi interrompida no dia do assassinato do Príncipe Franz Ferdinand em 1914 início da Primeira Guerra Mundial Sergej voltou para o divã de Sigmund Freud em 1918 Tinha perdido todos os seus bens na Revolução Russa e novamente apresentava os sintomas que já o tinham levado a procurar Freud pela primeira vez Freud o recebeu para um retorno e os sintomas cessaram Em 1926 voltou a procurar Freud que o encaminhou para a psicanalista Ruth Mack Brunswick Esta mudou o diagnóstico de Sergej Em sua opinião o paciente sofria de uma paranoia Sigmund Freud cita o caso do Homem dos Lobos expressamente em seu ensaio sobre Análises termináveis e intermináveis FREUD 19372006 p 132 Para o psicanalista sua história é um caso de uma análise interminável Algo ficou inamovível no inconsciente um resto Esse resto no fundo está ligado à sua sexualidade ao seu jeito muito singular de lidar com a castração Para muitos psicanalistas o Homem dos Lobos era um caso de fracasso de Freud No entanto Pankejev pela perspectiva lacaniana não era um caso perdido Incentivado por seus analistas posteriores a Freud Pankejev encontrou um caminho para transformar seu sintoma a depressão em sinthoma como diria Jacques Lacan Fazendo jus à sua marca pôsse a escrever a autobiografia do Homem dos Lobos O TRATAMENTO DE UMA CRIANÇA O pequeno Hans Herbert Graf tornouse um grande músico Em sua análise conseguiu falar e se confrontar com seus desejos conflituosos o amor pela mãe a rivalidade com o pai o medo de castração a transformação da excitação sexual em fobia Para Sigmund Freud as únicas consequências da análise são que Hans se curou que não tem mais medo dos cavalos e que tem com seu pai como me diz dando risada uma relação de amizade Mas o que o pai perdeu em autoridade ganha de volta como confiança FREUD 19092000 p 160 A análise realizada por meio da supervisão do pai de Hans chegou ao bom termo Herbert Graf cresceu e foi visitar Freud aos 19 anos de idade Como Freud relata não tinha mais a mínima memória do ocorrido FREUD 19092000 p 163 Graf tornouse maestro dirigiu óperas e chegou a viver em Nova York Salzburgo Zurique e Genebra ROUDINESCO amp PLON 2004 p 355 O QUE PODEMOS APREENDER COM O ÊXITO DAS ANÁLISES FREUDIANAS Sigmund Freud fez questão de nos transmitir que a clínica psicanalítica não vive só de sucessos Ao contrário segundo seu próprio relato há pacientes que abandonam a análise há os que vivem uma vida feliz depois da cura Kur e há ainda aqueles cuja análise nunca termina Para o psicanalista muitas análises chegam ao fim quando os sintomas do paciente cessam e quando este supera suas inibições e suas angústias Como observamos foi o caso de Katharina de Elizabeth V R de Gustav Mahler do Homem dos Ratos e do Pequeno Hans que adulto sequer se lembrou de que fez um tratamento analítico Todos eles conseguiram se livrar dos seus sintomas Outros casos não tiveram tanto sucesso Dora abandonou a análise Nesse caso Freud não conseguiu mover o Aqueronte porque tinha dificuldades em lidar com seus próprios sentimentos em relação aos personagens que compunham o romance familiar de Dora Mas fez do relato do caso um dos mais belos de seus textos não por último porque Freud tem a humildade e a ousadia de confessar um fracasso clínico Finalmente Sigmund Freud fez do caso do Homem dos Lobos cheio de percalços não somente um grande relato como também o ponto de partida de um dos ensaios fundamentais da psicanálise no qual questiona se na psicanálise há cura possível ou se nós todos homens e mulheres não somos irremediavelmente doentes em razão dos sacrifícios que a civilização nos impõe e que deixam em nosso inconsciente como resto o inamovível rochedo da castração Referências bibliográficas BREUER Josef amp FREUD Sigmund 1895 Studien über Hysterie Frankfurt am Main Fischer 2007 FERRY Luc Famílias amo vocês política e vida privada na globalização Trad Jorge Bastos Rio de Janeiro Objetiva 2008 FREUD Sigmund 1905 Bruchstücke einer HysterieAnalyse 2 ed Frankfurt am Main Fischer 2007 1909 Analyse der Phobie eines fünfjährigen Jungen 2 ed Frankfurt am Main Fischer 2000 1909 1914 1918 Zwei Krankengeschichten 3 ed Frankfurt am Main Fischer 2008 1937 Die endliche und die unendliche Analyse In Zur Dynamik der Übertragung behandlungstechnische Schriften Frankfurt am Main Fischer 2006 JONES Ernest A vida e a obra de Sigmund Freud v 2 A maturidade 19011919 Trad Júlio Catañon Guimarães Rio de Janeiro Imago 1989 LACAN Jacques 1951 Intervenção sobre a transferência In Escritos Trad Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 197576 O seminário Livro XXIII O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 ROUDINESCO Elisabeth amp PLON Michel Wörterbuch der Psychoanalyse Trad Christoph EissingChristoffersen ea Wien Springer 2004 DO FANTASMA À VERDADE MENTIROSA O QUE SE ULTRAPASSA EM UMA PSICANÁLISE ARIEL BOGOCHVOL INTRODUÇÃO Cada um dos termos da primeira parte de nosso título foi introduzido em momentos distintos do percurso de Lacan O primeiro fantasma está relacionado a um modo de conceber o final de análise ligado à possibilidade de formalização de um modo de gozar O segundo verdade mentirosa relaciona se por sua vez à perspectiva do sinthoma na qual se por um lado temos o conceito de modo de gozar invariante por outro temos algo melhor novidade satisfação A justaposição do termo fantasma para verdade mentirosa assinala em primeiro lugar uma passagem do tempo Dez anos separamse tempo em que ocorreu uma reviravolta da orientação lacaniana Os estudiosos costumam designála de formas variadas passagem do primeiro para o segundo Lacan da primeira para a segunda clínica da clínica estrutural para a clínica borromeana da clínica orientada pelo simbólico à clínica orientada pelo Real Independentemente da nomeação assinalam uma torção e uma inflexão no percurso de Lacan que incide aprés coup sobre o conjunto do seu ensino especialmente sobre os fundamentos da prática analítica a questão do final de análise e as formas de verificálo Travessia do fantasma é a forma como é designado em 1967 o ideal do final da análise na doutrina clássica Verdade mentirosa é a expressão que Lacan utiliza em 1976 para caracterizar o testemunho dos passantes aqueles que supostamente terminaram suas análises e que se dispunham a relatar essa experiência para a comunidade analítica O título do fantasma à verdade mentirosa pode ser lido então como a representação da passagem de uma concepção à outra do final de análise Por que Lacan mudou drasticamente de paradigma É esse o objeto do presente capítulo O FANTASMA E SUA TRAVESSIA O termo fantasma aparece no Seminário 14 de 19661967 que formula A lógica do fantasma ou da fantasia Os antecedentes dos dois termos podem ser encontrados em numerosos textos uma vez que nem a discussão a respeito da fantasia nem a discussão sobre a verdade e a mentira eram novas Um leitor versado em Freud reconhece nessa palavra uma das traduções do termo alemão Phantasie traduzido por fantasy ou phantasy em inglês e por fantasme em francês consagrado apesar de mais restrito que seu homólogo alemão A Phantasie freudiana é um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos a realização de um desejo inconsciente LAPLANCHE amp PONTALIS 1982 p 228 O Seminário 14 é contemporâneo à invenção do passe anunciado à Escola Freudiana de Paris na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista de Escola O passe era uma escansão essencial precedido pela lógica da fantasia e seguido pelo ato analítico respondia a uma urgência experimentada por Lacan de formular uma doutrina do final de análise Reivindicavamlhe esta doutrina e ele a prometera Nos Seminários tinha anunciado seu plano de ir além das conclusões de Freud em seu texto Análise terminável e interminável Com sua proposição acreditava ter formulado o final de análise nos termos passíveis de uma verificação se não científica pelo menos lógica o suficiente para poder reunir o sufrágio de uma comunidade Estabeleceu uma doutrina do final de análise indissociável do dispositivo por ele inventado que se tornou clássica O Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 1976 a despeito do seu título não aborda o Seminário 11 nem direta nem indiretamente Considerado em seu conjunto seu último escrito é um retorno à questão do final de análise e do passe Comparadas a todo o aparelho utilizado na formulação clássica dois seminários a proposição os escritos produzidos logo após uma viagem à Itália que formam um conjunto considerável as três pequenas páginas deste texto parecem bem franzinas No entanto podem ser mensuradas em relação ao enorme maciço da doutrina clássica do final de análise e do passe Segundo a definição freudiana a fantasia é um roteiro imaginário que inclui o sujeito e na qual se representa a realização de um desejo inconsciente Nessa definição tal representação é a produção de um objeto próprio ao desejo O fantasma faz o prazer próprio ao desejo É uma construção que indica a maneira singular por meio da qual cada um procura determinar um caminho em direção ao prazer Permite que o sujeito forneça uma realidade a um desejo que até então era pura determinação negativa na medida em que é desprovido de todo procedimento natural de objetificação é desejo de nada que possa ser nomeado SAFATLE 2004 O fantasma é o único procedimento disponível ao sujeito para a objetificação do seu desejo é a possibilidade de sustentação do desejo lugar de referência através do qual o desejo aprenderá a situarse LACAN 19581959 Sua verdadeira função consiste em ser uma barreira de defesa contra a angústia produzida pelo inominável do desejo Depreender o papel da fantasia na análise levou a concentrar o questionamento na fantasia propriamente inconsciente passandose desse modo da consideração das fantasias para a consideração da fantasia BAUDRY 1996 No exemplo princeps de Freud Batese numa criança a fantasia inconsciente inacessível a menos que reconstruída na análise é sou espancado pelo meu pai Tratase mais de uma frase do que de um roteiro o que confere à fantasia inconsciente seu caráter fechado Na obra de Lacan o fantasma não pode ser entendido sem a referência aos registros Real Simbólico e Imaginário R S I O fantasma é imaginário como demonstra sua natureza de imagem que inclui a imagem do corpo do outro a simbólico na medida em que assume a forma de uma frase construída com sujeito verbo e objeto e Real uma vez que se refere à satisfação Lacan utiliza o termo fantasma fundamental desde 1952 no Seminário 1 conceito que parece ter emprestado de Melanie Klein O conceito se torna relevante quando formaliza o matema a fórmula da fantasia que se lê sujeito barrado punção de objetoa pela primeira vez no Seminário 5 1957 1958 e é amplamente desenvolvido em seminários subsequentes Podemos encontrar os primeiros debates escritos a respeito do assunto em A direção da cura e os princípios do seu poder 1958 FINK 2005 Implícita à noção de um fantasma fundamental é a ideia de que apesar da multiplicidade de fantasias que um indivíduo pode ter sonhos diurnos fantasias masturbatórias e outros tipos de cenários que são acionados e que podem ser caracterizados como pensamentos intrusivos vinhetas esboços diálogos cenas frases que ocorrem ou se desenvolvem em um tempo muito curto todas têm sua origem em uma estrutura única e exclusiva um fantasma fundamental A miríade de fantasias em suas várias modalidades é vista essencialmente como permutações do fantasma fundamental geralmente apresentando uma faceta deste É reduzida a um fantasma fundamental original FINK 2005 Isso se encaixa na tese de Lacan no Seminário 14 de que o fantasma fundamental é um axioma A natureza axiomática do fantasma fundamental é uma das poucas conclusões acerca desse tema que Lacan extrai desse seminário no qual Lacan só chega ao assunto do título nas últimas páginas De acordo com Lacan um fantasma como batese em uma criança embora tenha certos sentidos analisáveis funciona como um axioma para o analisando em sua maneira de ver o mundo É uma significação absoluta ele vê o mundo através da lente desse fantasma fundamental O sujeito por exemplo vêse repetidamente como vítima de certas figuras masculinas mais velhas que o rodeiam sempre com problemas vis a vis estas figuras como tendo feito algo errado pelo qual está prestes a ser punido mesmo que não saiba dizer o quê Isso tende a colorir seu mundo em geral COELHO 2009 A fórmula do fantasma a articula as duas vertentes do inconsciente a estrutural e a pulsional O sujeito na linguagem é um sujeito dividido isto é identificado aos significantes do Outro Nesses termos o fantasma é o desejo do Outro e marca a posição do sujeito em relação ao Outro Quando o apreendemos no nível do gozo do corpo ele não é nem mesmo ainda um sujeito pois se reduz a um objeto parcial a para o desejo do Outro O fantasma permite abordar essas duas vertentes do inconsciente em jogo na experiência analítica a do desejo a ser decifrado e a do gozo a ser extraído do corpo afetado passivamente pelo significante O gozo informe do corpo ao ser extraído pela fala localizase em um objeto parcial o olhar a voz o peito o falo imaginário as fezes o fluxo de urina o fonema o nada Com a fórmula do fantasma Lacan propõe que o fantasma fundamental apresenta o sujeito relacionado de alguma forma com o objeto que causa seu desejo Assim o fantasma formaliza a conjunção e a disjunção entre o desejo e o gozo O problema da travessia do fantasma e do final de análise é de como transformar a relação do sujeito com essa axiomática mudando sua relação com o desejo e o gozo Requer uma mudança das premissas que sustentam a maneira como alguém se vê atua ou deixa de atuar no mundo Ao o atravessar o sujeito verifica sua dependência do significante mestre que ele extraiu do campo do Outro mas também se revela sua fixação a um encontro contingente com um objeto no campo do autoerotismo Separar e a modifica sua posição em relação ao desejo do Outro e possibilita o advento de um desejo inédito A travessia do fantasma é uma mudança de axiomas A DOUTRINA CLÁSSICA Na doutrina clássica o desejo do analista aparece como pivô de uma análise e de seu final Por desejo do analista entendiase uma função simbólica que deveria encarnarse no analista sem por isso mobilizar seu inconsciente MILLER 2010 Durante muitos Seminários a função do desejo do analista foi introduzida como uma encruzilhada essencial Era sua resposta à contratransferência em voga na Associação Internacional de Psicanálise IPA Era um modo de dizer que o analista não podia desfalcarse da relação que estava diretamente implicado na operação analítica No entanto de uma maneira diferente do analista da IPA O desejo do analista deve permanecer velado É o que isso quer dizer levado à incandescência É o enigma intrínseco a toda articulação significante um significante remete a outro O desejo do analista apreendido como tal é um x no lugar da significação última O final da análise seria a solução deste x Na sua Proposição de 9 de outubro 1967 Lacan apresenta duas soluções uma negativa alusão à castração afirmar que só há nada naquele lugar e outra positiva a subjetivação da castração o isolamento da função chamada pequeno a o maisdegozar O que se pode enfatizar à luz da última elaboração de Lacan é o lugar subordinado que ele dá ao gozo já que ele depende da solução dada ao desejo do analista Para Lacan de 1967 chegar a esse momento de solução passa por uma transformação do sujeito suposto saber SSS Função subordinada à cadeia significante Lacan chama de SSS certo efeito de significação que obtura a solução do desejo do analista É a suposição do inconsciente a noção segundo a qual o que se diz em análise quer dizer outra coisa Essa suposição mostrase necessária para recolher o que aparece como palavras expressões significantes que determinam o sujeito de tal forma que o saber que no início é apenas suposto efetuase progressivamente ao longo da análise Os significantes articulados acumulamse constituindo um saber e o sujeito se torna este saber O saber que no início era suposto tornase por meio da experiência analítica um saber efetivo MILLER 2010 Ao término da análise o sujeito é situado como sabedor um sábio de seu desejo ele sabe o que causa seu desejo sabe a falta na qual se enraíza e sabe o maisdegozar que vem obturar essa falta É nesse contexto que o passe toma seu valor o sujeito tem de dizer o que ele sabe isto é de que maneira preencheu o lugar vazio do SSS de que maneira esse saber se efetuou para ele como passou da suposição à extração de um significantechave depois outro sem serem forçosamente compatíveis Tratase de uma articulação fazendose continuamente a posteriori O final da análise marcaria o fechamento da experiência o acesso a um a posteriori definitivo Depois de inúmeros vaivéns hesitações oscilações obteríamos um sujeito novo Desapareceria o sujeito que ignora a causa do seu desejo e emergiria o sujeito sabedor É esse saber que o passe tenta extrair do sujeito Tenta obrigálo com seu consentimento a partilhálo com uma comunidade reunida em uma Escola e também com o público A VERDADE MENTIROSA Donde eu haver designado por passe esta verificação da historisterização da análise abstendome de impor esse passe a todos porque não há todos no caso mas esparsos disparatados Deixeio à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa LACAN 1976 p 569 A expressão verdade mentirosa é utilizada no Prefácio à edição inglesa do Seminário XI último texto de Outros escritos de 1976 É uma perspectiva completamente diferente da que acabamos de descrever O próprio conceito de saber é posto em questão a ponto de a palavra não figurar no texto Quando construía seu conceito de SSS Lacan explicava que se tratava de uma formação que se inscrevia no lugar da verdade e entendíamos que o saber tomava consistência No final de seu ensino ele não mais acredita nisso Não mais designa o saber como uma formação consistente não mais fala só de verdade No final ele trata o saber como uma elucubração MILLER 2010 Expressão surgida neste último escrito verdade mentirosa designa o estatuto do saber como elucubração Não se trata do SSS inscrevendose no lugar da verdade tratase da verdade com as cores da mentira O saber cai a esse nível O passante da doutrina clássica do passe é suposto dar testemunho de um saber ao passo que o passante do final do ensino de Lacan no momento em que ele elucubrava seu conceito de sinthoma isto é o momento de se defrontar sem mediação com o estatuto do gozo só pode dar testemunho de uma verdade mentirosa O passe é um acontecimento e um procedimento É um acontecimento suposto intervir no decorrer da análise e em seguida um procedimento oferecido àquele que pensa ter sido sujeito desse acontecimento a fim de que ele possa comunicar alguma coisa disso à comunidade Neste último texto não há referências ao acontecimentopasse apenas ao procedimentopasse Nele o passe aparece essencialmente como um procedimento a fim de pôr à prova o dizer do final de análise MILLER 2010 No momento em que o inventa Lacan dedica o essencial ao acontecimentopasse Neste último texto ao contrário há apenas esta indicação bem sucinta a satisfação que marca o final de análise LACAN 1976 p 569 Diante de toda a prodigiosa construção que sustenta a teoria do final de análise clássica há agora apenas a indicação de que o final de análise é experimentar satisfação e dizêla É uma extraordinária deflação Satisfação é visivelmente a palavrachave para Lacan pois parece que para ele a análise é uma questão de satisfação O que chama de satisfação vetoriza e orienta todo o curso de uma análise Ela se desdobra essencialmente no malestar no desassossego no desconforto Podemos isolar e creditar o que surge de novo como testemunho de satisfação Em outras palavras o principal efeito a ser obtido na segunda clínica é a alteração da relação do sujeito com o seu gozo Para Lacan não há verdade que ao passar pela atenção não minta O que não impede que se corra atrás dela LACAN 1976 p 567 Corremos atrás da verdade mas desde que prestamos atenção a ela saímos dela escorregamos na mentira Isso implica colocar em questão o sentido da própria operação psicanalítica porquanto ela consiste precisamente em prestar atenção nas emergências da verdade que despontam nas formações do inconsciente A operação consiste em engatar essas emergências em uma articulação e fazer dela um discurso por meio da associação livre Desdobramos a associação livre a partir de um sonho de um lapso de uma palavra ou pensamento que prende nossa atenção Damoslhe valor de verdade e é por isso que se engata a associação livre que se mostra totalmente capaz de ordenarse em um discurso Por meio da associação livre transformamos emergências da verdade em discurso articulado No começo de seu ensino Lacan dizia esse discurso é o próprio inconsciente é o discurso do Outro No final de seu ensino coloca em xeque esta afirmação Quando o esp de um laps o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido ou interpretação só então temos certeza de estar no inconsciente LACAN 1976 p 567 Como reconhecemos as formações do inconsciente Precisamente por elas ludibriarem a atenção por irromperem de surpresa sem sentido A operação analítica trabalha contra o inconsciente tentando restituir o sentido onde ele se perdeu O inconsciente é real ele só se torna simbólico outro a partir da operação analítica Ela faz o inconsciente passar do Real ao simbólico Primeiro há o inconsciente Real e nesse sentido a associação livre viria em um segundo momento e já seria o romance da verdade No ponto em que estamos do final da análise na perspectiva do sinthoma a psicanálise não é definida pelo psicanalista Este só aparece como meio de fazer passar o inconsciente do Real ao simbólico O sujeito conta para o analista tecelhe uma histoeria Tratase de uma elucubração que é do registro da verdade porquanto esta tem estrutura de ficção MILLER 2010 São proposições capazes de fazer vacilar os semblantes da psicanálise Tudo o que Lacan louvava no começo de seu ensino sofre uma báscula no registro da verdade mentirosa É o saber como elucubração a ficção cuja estrutura é a da verdade São as aspas ou parênteses trazidos às construções analíticas Elas estão embutidas nos parênteses da verdade mentirosa Assim a questão é saber se essa verdade se equilibra As construções só podem ser consideradas se comparadas à satisfação propiciada pelo equilíbrio da verdade e da mentira Não se trata apenas de algo bem contado No que concerne ao Real o critério deste bem dizer deve ser saber o que com ele se satisfaz MILLER 2010 CONSIDERAÇÕES FINAIS A psicanálise é uma experiência que consiste em construir uma ficção e uma experiência que consiste em desfazer essa ficção A ficção é colocada à prova em resolver a opacidade do Real Então quem seria o analista Seria alguém cuja análise permitiu demonstrar a impossibilidade da histoerização e que por isso poderia testemunhar sobre a verdade mentirosa estreitando a distância entre a verdade e o Real Não se trata mais do passe do sujeito do saber mas do passe do parlêtre E o passe do parlêtre não é o testemunho de um sucesso mas o testemunho de certo modo de ratear MILLER 2010 O que é exatamente a perspectiva do sinthoma que marca o final de análise na atualidade É uma perspectiva que desvela o fato de que o que chamávamos de travessia do fantasma era sempre uma travessia pelo modo imaginário Havia uma redução do imaginário e no lugar dos personagens encarnados na vida do sujeito surgiam funções que poderíamos considerar abstratas de tal sorte que delas se destacava um modo de gozar que é um modo constante Descobrimos como coloca Miller 2010 que a travessia do fantasma era uma formalização do modo de gozar Na perspectiva do sinthoma temos de um lado o conceito de modo de gozar invariante todavia há algo melhor novidade satisfação No final da análise o acesso a certa satisfação permitiu concluir que se podia prescindir de um analista A questão é então saber como o melhor se inscreve no invariante Tratase de uma mudança de regime De intensidades difíceis de exprimir De deslocamentos que engendram conjunções e disjunções inéditas MILLER 2010 É o que se procura verificar nos passes contemporâneos Referências bibliográficas BAUDRY F Fantasma In KAUFMANN Pierre ed Dicionário enciclopédico de psicanálise O legado de Freud a Lacan Rio de Janeiro Jorge Zahar 1996 FINK Bruce Fantasías y el fantasma fundamental una introducción Virtualia Revista Digital de La Escuela de Orientación Lacaniana Ano IV n 13 JunJul 2005 Disponível em httpvirtualiaeolorgar013pdffinkenpdf Acesso em 17 de dezembro de 2013 LACAN Jacques 19581959 O desejo e sua interpretação seminário Publicação não comercial 19571958 O seminário Livro 5 Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 196667 O seminário Livro 14 A lógica do fantasma Versão não comercializável 1967 Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 24864 1976 Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 5679 LAPLANCHE Jean amp PONTALIS JeanBertrand 1982 Vocabulário da psicanálise São Paulo Martins Fontes 2001 MIILLER JacquesAlain O passe do falasser Opção Lacaniana São Paulo nº 58 2010 SANTOS Coelho dos Sobre a clínica da psicanálise de orientação lacaniana dos impasses da sexuação à invenção do parceiro sinthoma In Ágora Rio de Janeiro v12 no1 JanJun 2009 SAFATLE Vladimir Gênese e estrutura do objeto do fantasma em Jacques Lacan Psicologia Clínica Rio de Janeiro PUCRIO v 16 n 2 p15570 2004 O QUE ESPERAR DE UMA ANÁLISE LEVADA A BOM TERMO CLAUDIA RIOLFI Mas quanto mais angústia mais sensualidade Kierkegaard 1844 INTRODUÇÃO Por que ao escutarmos quem procura uma análise normalmente encontramos uma pessoa que fugiu da festa da vida Por que essa mesma pessoa em vez de buscar nesse grande carnaval da existência uma fantasia que sustente um semblante atrás do qual ela se satisfaça ou ofereça satisfação ao outro se retira de cena Por que ela se esconde atrás das palavras que lhe foram dirigidas como se fossem refúgios ou pior não quer saber de nada disso Tomando essas perguntas como pulgas atrás de nossas orelhas este capítulo parte do pressuposto de que essas pessoas estão ativamente implicadas em seu próprio sofrimento Por esse motivo ao receber a notícia de um reiterado fracasso em vez de irem chorar na cama que é lugar quente preferem fazer uma comunidade de sofredores que dá consistência e contorno ao seu sofrimento Seu alarido tão ruidoso quanto estéril se ouve ao longe Como as fazer se darem conta de que nada as obriga a ser o que disseram que ela é O que no melhor dos casos esperar dessas pessoas Caso não se encontrem com a psicanálise ou mais especificamente com a clínica do Real provavelmente tenderão a passar muito tempo teimando em querer brincar do fúnebre jogo das expectativas Descrevo suas regras O jogador 1 tenta adivinhar o que os outros jogadores querem dele A primeira complicação é que nem sempre as pessoas sabem que foram incluídas no jogo do primeiro jogador e por sua vez seguem praticando outras brincadeiras É como se em uma mesma sala João jogasse damas José xadrez e Luís pôquer cada um supondo que os outros dois estavam participando do mesmo sistema de regras Como não estão o jogador 1 fica cada vez mais confuso Como tenta se tornar um objeto amável aos olhos dos outros dois faz hipóteses de como deve prosseguir suas jogadas Evidentemente elas são cada vez mais disparatadas e a confusão só aumenta Por fim ninguém seria capaz de dizer nem o que ele mesmo quer quanto mais o que quer do outro Por que nós humanos fazemos isso Porque enquanto ainda não encontramos um ponto onde ancorar nossa singularidade tememos o desejo do outro Então apressamonos em tentar adivinhar suas expectativas para que não se enganem quanto ao objeto de seu desejo e acabem nos devorando O exemplo clínico mais típico é o dos homens que tendo dificuldade de fazer face ao desejo sexual de uma mulher substituem a expressão de sua sexualidade por presentes Pensam que caso consigam agradálas por meio desse expediente vão evitar o pior a possibilidade de se deparar com o ridículo de seu amor O curioso é que de tão distraídos em sua jogada nem percebem que também eles poderiam ter o tal desejo que está além da dimensão da apreensão imediata das coisas Agem como se não tivessem sido inseridos na cadeia das gerações Como se nunca quisessem fazer escolhas mas tão somente encontrar modos de satisfazer supostas expectativas alheias Acreditam que desse modo podem tampar deles mesmos a própria angústia É como se em pleno século XXI condenassem moralmente as manifestações pouco canônicas de sua sexualidade Viram a cara para a vida e morrem de fome e de sede mesmo estando em um banquete Que chatice Precisa mesmo ser assim Não afirmava Jacques Lacan Para ele que afirmava ter cinco anos a vida pode ser divertida sim A condição para tanto é não se limitar a tentar adivinhar as expectativas alheias Já pensou passar o tempo todo pensando O que devo fazer para ser amado A vida pode ser divertida para quem se vira como pode Para quem não se limita a se lamentar a respeito da impotência de seu corpo Para quem não vem ao planeta Terra só para servir de paradigma de quem não serve para nada Quão diferente é o melhor dos casos Estamos aqui usando essa expressão para aludir a pessoa que sustentando suas qualidades consegue se fazer atraente para trazer para perto de si o que lhe interessa Cordial alegre e decidido o melhor dos casos toma do chamado mundo empírico seus objetos para se divertir ainda mais digerindoos Como se permite grande parcela de diversão não esconde sua intencionalidade de seus parceiros No campo do sexo quer e vai servirse deles Lembremos que na origem diverso e divertido têm a mesma raiz o latim divertere voltarse em outra direção Lembrar o leitor disso cumpre aqui a função de postular que só se diverte quem mesmo ao se voltar na busca do próprio caminho tem ao lado um parceiro para se mais não for perceber a diferença A pessoa permanece ligada ao corpo próprio do qual respeita os contornos idiossincrasias e limites mas por assim dizer oferecese o desfrute Essa perspectiva já estava anunciada pelo próprio Sigmund Freud quando fez da libido a força pela qual o desejo sexual está representado no cérebro o elemento central da própria psicanálise Freud inclusive atribuía a saúde mental de alguém à quantidade de sua libido e à possibilidade de saciála e de descarregála por meio da satisfação Seria possível com a clínica do Real clarear este estado de coisas É possível Para tanto no próximo bloco recorreremos ao conceito de Real que inicialmente foi abordado por Freud com o nome de pulsão Acordos e desacordos entre corpo e linguagem O modo como Freud 1915 encara a sexualidade humana como vivida por meio de pulsões parciais pode ser retratado por exemplo na figura do convidado que vai a um banquete Os acepipes estão no lugar de objeto a coisa por meio da qual uma pulsão se satisfaz a boca no de fonte a parte do corpo onde a pulsão se satisfaz a degustação no de alvo o modo por meio do qual uma pulsão se satisfaz Normalmente inclusive a pressão que a pulsão exerce é razoável Ou seja sua força não é nem fraca a ponto de passar despercebida nem excessiva a ponto de fazer a pessoa perder a cabeça Sua urgência não permite que os convivas prescindam nem da gentileza nem da cortesia Por que quem desistiu da festa da vida não vê isso Porque como criança pequena a pessoa ainda não formou as proteções por meio das quais nos defendemos quando a pressão da pulsão é muito forte Ora se despedaça ora se defende por meio de uma pretensão que não encontra eco entre os pares Estão amarradas por seus egos fora do banquete como tão bem já descreveu Freud em 1923 Preferem morrer de fome a ousar se sentar à mesa Juram que se admitirem sua fome não saberão mais o que estão a devorar Nesse ponto um pouco de lógica lhes faria bem Situações podem ser descritas não nomeadas aponta Wittgenstein 2010 p 151 insistindo em mostrar a diferença entre o que é essencial digno de um nome e o circunstancial o contingente o que não tem nome mas nos convoca à ação Posto isso passemos a uma tentativa de aplicação de nossa metáfora à clínica Levando em conta a situação específica de pessoas que afirmam querer obter uma satisfação x qualquer mas não conseguem levar seu propósito a bom termo formulemos a seguinte hipótese quando a pressão da pulsão é experimentada pela pessoa como sendo forte demais ela tende a não ter coragem de se mover na direção de satisfazêla pois teme que mediante sua fome intolerável acabe devorando a si própria junto ao objeto A consequência desse temor são as múltiplas facetas que a saída da festa da vida pode tomar Antes ser imbecil do que acabar morto pensam nossos zumbis que não se divertem nem um pouco ao viver Precisam ser ajudados Como Por meio do encontro com uma alteridade radical Quando cada um de nós se abre ao embate com um parceiro que não cai tão fácil nas armadilhas da identificação como ao menos idealmente é o caso dos psicanalistas ganha a oportunidade de encontrar outros pontos de amarração para além das ancoragens simbólicas não tão seguras na sociedade contemporânea Esse foi o cerne da pesquisa de Jacques Lacan que a partir da década de 1970 mostrou que as pulsões cada vez menos estavam sendo subordinadas à organização edípica Em outras palavras Lacan mostrou que na sociedade atual aconteceram mudanças importantes no regime da significação gerando dificuldades de simbolização a famosa falta de palavras É por isso que para nossos pobres zumbis as palavras estão sempre erradas Em vez de entender logo de uma vez que não há problema algum na existência de uma dimensão da experiência humana que escapa às palavras insistem em encontrar um nome para o que não tem Ou seja não é que se sintam burros é que agem como tal Pudera a vida não lhes convide para a festa PARA ALÉM DO BANCO DE RESERVAS Caminhemos com Freud No caso olhemos para dois fragmentos de escrita tendo na manga suas elaborações de 1917 para entender a reação dos zumbis na presença do inominável sua covardia intolerável Essa covardia está condizente com a descrição de Freud que há longo tempo notou que quando a pressão da libido é grande a pessoa pode entender que ela constitui um perigo que ameaça a sua autopreservação ou a sua autoestima Por esse motivo nosso sofredor em vez de se satisfazer quer sair bem na foto Para tanto varre a libido para baixo do tapete do ego Freud chamava essa condição de narcisismo Em sua lógica torpe um bom jeito de não ter vontade de comer os acecipes é não ver que eles estão lá Banquete Que banquete Ela está amarrada por sua decisão de não ver o óbvio e por esse motivo sua vida não se escreve passa em branco A esse respeito cabe lembrar o que já foi dito por nós em outra parte Quando alguém pôde legar uma obra que fez diferença viveu uma vida que por ter alcançado um estatuto singular por assim dizer foi escrita Não totalmente O ser humano está para além do que pode ser capturado por meio das palavras Há sempre algo que escapa a toda tentativa de dizer da essência daquele que busca a escrita como mediação de alguns de seus encontros com outros seres humanos Quem consegue de algum modo dar a ver algum traço sobre o qual a sua singularidade se sustenta fura a identidade na qual se reconhecia enfraquece os contornos consistentes que os condenam a tentar permanecer no mesmo lugar de enunciação tal qual Prometeu acorrentado RIOLFI 2011 p 13 Podemos mesmo apontar nosso dedo acusador para quem desistiu da festa da vida e irmos embora para casa e dormirmos tranquilos Não se trata disso Como ninguém está livre de ter um ego todos estamos convidados a lidar com a parte doente do psiquismo de cada um de nós A cada vez que em vez de trabalhar nós nos declaramos burros e declaramos isso é muito para mim nosso ego tentou esconder o que nos parecia ser nossa fome inominável Ele nos fez acreditar de novo que a curiosidade matou o gato e fechou nossos olhos e ouvidos Não há como nos livrarmos de nosso ego mas caso desejemos parar de bancar os burros precisamos encontrar outra instância para ancorar nossa vida nosso traço distintivo nosso si que nos permitiria a diferenciação Para tanto é necessário 1 Deixar que nosso corpo tenha fome em paz tratase de assumir o entusiasmo e a fúria no curso de uma vida De deixar de querer sufocar nosso entusiasmo infantil quando alguma questão nos toma apaixonadamente De nos libertar da tirania do olhar social onde sempre encontraremos alguém pronto a nos qualificar de ridículos quando presenciam nossa sexualidade Por acaso trarão nosso peixe se nos adequarmos às suas expectativas 2 Tirar a consistência de nossa história pregressa ao considerar a mobilidade do estado de coisas tratase de incluir a contingência e o acaso em nossa vida O cenário de hoje não pode ser em hipótese alguma o mesmo de há dez anos Por que as mesmas soluções apontadas pelo primeiro seriam válidas em outro contexto Uma pessoa faminta por novas soluções precisa levar em conta a necessidade de empenhar sua pele em sua construção 3 Nos ancorar em um ponto de amarração singular que permita um norte flexível tratase de encontrar um ponto de honra um limite que escolhido de livre vontade não pode ser ultrapassado sob a pena de perder o sentido da vida De que vale ficar sorrindo para as guloseimas em vez de as comer Não seria melhor acabar logo de uma vez com sua estúpida comédia e fazer uma escolha que possa ser sustentada 4 Entender que não existem palavras certas pois nenhuma delas se acopla perfeitamente ao objeto tratase aí de dar consequência ao conselho de Wittgenstein com relação à necessidade de se calar a respeito do que é impossível de falar Quando as palavras faltam é chegada a hora da ação consequente Quando faltam as palavras para nomear o objeto de nossa satisfação não é problema das palavras É que para a satisfação humana não existe objeto preexistente CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de fomes inomináveis o pior caminho que se pode escolher é o das covardias intoleráveis Mais vale 1 inventar um modo de satisfazêlas mesmo que ridículo 2 nomeálo por meio de um neologismo 3 encontrar os pares para fazêlo passar no mundo O melhor dos casos portanto é ir além da posição narcísica Isso não significa dizer tudo Certamente sim Cada um de nós tem nas palavras de Wittgenstein 1921 p 281 um sobre aquilo de que não se pode falar Tem inclusive caso não queira sofrer desnecessariamente um convite para dever calarse a respeito do que não tem nome Não por censura evidentemente mas por impossibilidade É o caso da libido freudiana força vital que não pode ser recoberta por meio das palavras Isso significa que esta zona matériaprima para a invenção para a criação de um estilo precisa ficar surda e invisível Não necessariamente É aí que se abre o convite para a invenção Caso cada um de nós encontre um parceiro corajoso o suficiente para esburacar as ficções por meio das quais nós tamponamos nossa libido esse parceiro poderá por meio de suas reações informarnos a respeito da presença dessa fome inominável Em nossa avaliação é essa a missão do analista que se propõe a sustentar a clínica do Real Referências bibliográficas FREUD Sigmund 1915 Os instintos e suas vicissitudes In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XIV Rio de Janeiro Imago 1974 1917 Uma dificuldade no caminho da psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 1974 1923 O ego e o id In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XIX Rio de Janeiro Imago 1974 KIRKEGAARD Sören 1844 O conceito de angústia Petrópolis Vozes 2010 RIOLFI Claudia Rosa Lições da coragem o inferno da escrita In RIOLFI Claudia Rosa amp BARZOTTO Valdir orgs O inferno da escrita produção escrita e psicanálise Campinas Mercado de Letras 2011 p 1131 WITTGENSTEIN Ludowik 1921 Tratactus Logicus Filosoficus São Paulo EDUSP 2010 A PSICANÁLISE E SUAS RETOMADAS COMO LIDAR COM AS ÁREAS DE SURDEZ EM UMA ANÁLISE ELZA MENDONÇA DE MACEDO INTRODUÇÃO Este capítulo tem dois objetivos O primeiro deles é analisar os tipos de surdez na análise A partir de uma elaboração de Jorge Forbes as áreas de surdez serão associadas aos três registros propostos por Jacques Lacan surdez imaginária surdez simbólica e surdez do Real O segundo objetivo é tratar dos tempos de uma análise contínua interrompida e com retomadas TIPOS ANALÍTICOS DE SURDEZ 1 Surdez imaginária esta surdez ocorre por exemplo na identificação imaginária Tratase dos momentos em que o analista utiliza seu sentimento para preencher os vazios na fala do paciente no eu também ou sinto que você É a propagada contratransferência criticada por Jacques Lacan 195319541983 no Seminário 1 Nesse livro ele não diz que não acredita na contratransferência mas sim que ela não é um operador psicanalítico 2 Surdez simbólica esta surdez corresponde à valorização doutoral da cadeia significante É o simbólico que confere sentido Isso é o esperado A surdez se dá quando o sentido evanescente se congela em uma verdade revelada Aí ela tapa o silêncio do Real 3 Surdez do Real contrariamente aos dois outros tipos de surdez que entendemos como problemáticos a surdez do Real é relativa ao silêncio das pulsões e é aí que o analista incide Tratase do silêncio das pulsões porque se localiza no corpo no ínterim da fala em seu mais além O termo surdez do Real é utilizado porque na instância do Real só há a inexistência Jorge Forbes trabalha em seu livro Você quer o que deseja 2003 o tema do silêncio Por meio da análise dos efeitos da música eletrônica o psicanalista reverte a situação de não há nada para ser escutado para eu escuto o silêncio EXEMPLOS CLÍNICOS DE SURDEZ Para exemplificar os três tipos de surdez mencionados serão apresentados três casos clínicos Surdez imaginária caso clínico Trastite Retomo o extrato do caso de uma moça que por estar deprimida foi encaminhada para a Clínica de Psicanálise do Genoma Humano na Universidade de São Paulo USP dirigida por Jorge Forbes e Mayana Zatz de cuja equipe faço parte Lídia 38 anos de idade tem distrofia do tipo cinturas caracterizada por enfraquecimento das cinturas pélvica e escapular Nesse tipo de distrofia os músculos faciais e a inteligência não sofrem alteração Ela já havia sido atendida antes por outros profissionais que atribuíram a depressão ao fato de a paciente ter distrofia e estar presa a uma cadeira de rodas além de não ter sido feliz com o primeiro marido nem com segundo Para a entrevista inicial com Forbes e Zatz Lídia entra com o marido Ela nada fala por mais que o analista provoque O marido pergunta se ela quer que ele saia Diante do silêncio dela Forbes responde sim ela quer Ele sai e ela diz dá pra ficar com um traste desse Lídia rejeitava tanto o primeiro marido quanto o segundo chamandoos de trastes Forbes você gosta de estar com quem você não gosta Sofre de trastite A paciente foi encaminhada para continuar o tratamento com um psicanalista da equipe e a direção do tratamento foi tratar com ela a questão por que você escolhe traste como companheiro Ela não se queixa da paralisia neuromuscular mas da paralisia amorosa O mais além não pode ser obliterado pela presença de algo mais chocante nem mesmo quando se trata de uma doença degenerativa Este caso ilustra uma possível surdez imaginária dos que acreditaram que a depressão de Lídia se devia à distrofia Estariam identificados com a paciente utilizando seus sentimentos para dizer eu também ficaria muito mal preso a uma cadeira de rodas Foi surpreendente o que ocorreu na entrevista psicanalítica já que o problema da distrofia se transformou no porquê de ela só gostar de homens trastes Surdez simbólica caso clínico O homem dos miolos frescos Um homem comenta em sua sessão de análise com Ernst Kris LACAN 1953 1954 p 397401 um dos fundadores da Ego Psychology que se sentia bloqueado em sua profissão intelectual que não conseguia publicar suas pesquisas e por isso não era promovido Para Kris o que bloqueava seu paciente era sua compulsão em pegar as ideias dos outros Obsessão com o plágio e o plagiar Tendo publicado um texto o homem certo dia chega à sessão e relata ter encontrado em uma biblioteca um texto com todas as ideias do seu Daí conclui sou mesmo um plagiador Kris interpreta que para ele só as ideias dos outros é que são interessantes são as únicas boas de pegar p 399 O interessante do caso é que como verificado por Kris se deu justamente o contrário Ao ler o artigo conclui que nada havia nele de original quanto às teses propostas por seu paciente observando também outras ocorrências de plágio Diante disso o analista faz uma interpretação de que o pai do paciente nunca conseguiu publicar nada por ser dominado pelo avô Assim foi fabricado um sintoma obsessivo nessa análise aqui ilustrado pelo comportamento do analista Ao receber a interpretação o paciente fica em silêncio e na sessão seguinte diz outro dia saindo fui a determinada rua e procurei um lugar onde pudesse encontrar a refeição de que gosto particularmente miolos frescos Aqui Lacan 195319541986 comenta sobre a diferença de nível entre o simbólico e a sua cristalização no discurso p 76 Essa cristalização congelamento é o que caracterizamos como surdez simbólica Vou comêlos os miolos ao sair para na próxima sessão lhe contar Lacan vê essa atitude como um actingout que tem valor transferencial a que muitos analistas conferem a introjeção do eu do analista Foi significativo para o analista que este não percebeu que a interpretação não era por aí Atuou lá fora o que o analista não soube escutar Quando se está em análise o actingout dirige se ao analista Lacan afirma se agem é com o endereço do seu analista Para Roudinesco e Plon 1998 actingout referese à substituição da verbalização pelo agir fora da sessão Tratase de uma demanda de simbolização que se dirige a um outro É um disparate usado com o fim de evitar a angústia No tratamento o actingout é o sinal de que a análise se encontra em um impasse em que se revela a incapacidade do psicanalista ibidem p 6 Surdez do Real caso clínico Não tenho a menor ideia de Jorge Forbes Retomo o caso de um rapaz com ataxia espinocerebelar Deprimido quase não tomava banho desempregado ele foi entrevistado por Jorge Forbes e Mayana Zatz na Clínica de Psicanálise do Genoma Humano da USP O relato é intitulado Não tenho a menor ideia FORBES 2011 Este rapaz entra para a entrevista caminhando apoiado em uma bengala com muita dificuldade mostrando pernas e braços já claramente lesionados e com uma expressão facial entre a tristeza e a indiferença Bomdia E então Ele contesta doutor será que o senhor tem alguma ideia doutor do que é a cada manhã ao acordar entrever aflito a porta do banheiro do meu quarto E aí doutor pegar a bengala que dorme a meu lado palpar com dificuldade o seu punho e ainda ali deitado ficar me perguntando se ainda serei capaz naquele novo dia de dar os passos necessários entre a minha cama e o banheiro Doutor o senhor tem uma ideia do que seja isso Aproximamos nossas cadeiras Ficamos cara a cara e nessa posição lhe dissemos com firme clareza não tenho a menor ideia Passado um longo tempo de silêncio ele nos disse de fato doutor o senhor não pode ter a menor ideia Foi um alívio diria para todos Para nós ver que ele suportava uma posição que não fosse a tão esperada compaixão Para ele o alívio da pesada carga dos semblantes dos papéis sociais que uma pessoa nessa condição carrega em uma paradoxal demonstração de morte ambulante para poder sobreviver Acrescentamos então mas o senhor pode me contar A interpretação surpreende o paciente e não menos muitas vezes o analista há que se dizer em sua expectativa de acolhimento de sua dor Se assim tivéssemos feito acreditamos que a continuação seria bem diferente teríamos sido mais um na série que já estava estabelecida de pessoas que tinham sim uma ideia de como ele sofria e de como ele dificilmente sairia do sofrimento FORBES 2011 p 1113 Tratase neste caso de uma operação analítica na surdez do Real Diante de uma pessoa que se apresenta sem perspectiva derrotada esperando o fim em um gozo simbólico mortífero o analista surpreende e toca no mais além da palavra do paciente o que precipita uma mudança de discurso Explico em seguida Dos extratos de casos apresentados vimos o primeiro Trastite em que a surdez foi atribuída aos profissionais que pela força do imaginário social interpretaram o problema da paciente como uma depressão causada pela doença degenerativa Na entrevista psicanalítica Forbes localiza o ponto que marca a forma de gozo da paciente destacando o significante trastite que dá outra direção ao tratamento O segundo O homem dos miolos frescos mostra um actingout do paciente como consequência de uma surdez simbólica do analista Por último o terceiro Não tenho a menor ideia mostra como a surdez do Real ao tirar o paciente do gozo mortífero possibilitalhe inventar uma nova história no decorrer do tratamento OS TEMPOS DA ANÁLISE Uma análise nem sempre ocorre sem turbulências o que muitas vezes leva a interrupções com retomadas e às vezes a interrupções definitivas O caminho de uma análise é permitir que alguém diante dos impasses desloquese da impotência para o impossível A impotência leva à busca da potência O impossível leva à busca da criatividade Buscase tirar as identificações limpando os discursos que tamponam para que se possa enfrentar o Real Saindo de uma situação de impotência que leva alguém a tamponar o Real e diante da surdez do Real a pessoa pode se confrontar com o impossível Daí as diversas modalidades do percurso de uma análise Análise contínua Durante muito tempo se pensou que a análise fosse sobretudo contínua indo de um começo a um fim sem interrupções Mas o próprio Freud se refere à análise retomada Análises interrompidas ou retomadas são até mesmo mais comuns do que uma análise contínua Podemos pensar uma ação pela determinação por princípio Outra forma de ação se dá pela consequência A primeira considera muitas vezes aspectos burocráticos envolvendo exigências de não haver interrupções determinação do tempo das sessões frequência das sessões e outros Já para Lacan o percurso podia ser contínuo interrompido fatiado en tranches com o tempo variável bem como a frequência Ele saiu de uma determinação por princípio para uma ética da consequência como é hoje Análise interrompida Esta modalidade pode ocorrer por contingências que impossibilitam o prosseguimento da análise tal como mudança de cidade ou país ou por ocorrências da própria análise O analisando anuncia que não vem mais e muitas vezes não há chance de trabalhar a questão que leva à interrupção O Caso Dora ilustra esse tipo de análise Seu tratamento durou onze semanas A queixa era de distúrbios nervosos enxaqueca tosse afonia depressão e tendências suicidas O caso é relatado principalmente por meio de dois sonhos FREUD 19051972 No primeiro houve a revelação de que Dora praticava a masturbação e que estava enamorada do Sr K No segundo sonho Dora sabia como era a vida sexual dos adultos Ela interrompe o tratamento por não ter suportado a revelação de seu desejo pelo Sr K a quem havia esbofeteado Em uma nota à página 116 Freud confessa não ter compreendido a ligação homossexual que unia Dora à Sra K Seus sintomas se aplacaram mas não seu horror aos homens embora tenha se casado Em 1923 surgem novos distúrbios que ao serem relatados a outro analista desaparecem Dora não encontrou em Freud a sedução que esperava dele Ele não soube trabalhar uma relação transferencial positiva na opinião de Roudinesco e Plon 1998 Vejamos o que diz Freud a propósito do Caso Dora Não me foi possível dominar a transferência a tempo Quando surgiu o primeiro sonho no qual ela mesma se aconselhava a abandonar o tratamento como antes abandonara a casa de Herr K eu é que deveria terme prevenido contra o aviso e dito você fez a transferência de Herr K para mim Você notou alguma coisa que a faça suspeitar de más intenções semelhantes às de Herr K de minha parte Ou algo em mim que a impressionou ou a encantou como aconteceu anteriormente com Herr K A transferência apanhoume desprevenido FREUD 19371969 p 115 A paciente interrompe o tratamento atitude que foi entendida por Freud como uma resposta ao fato de ele não ter percebido que ele próprio estava no sonho Nesse sonho havia uma casa em chamas Dora relata que após despertar do sonho sentira cheiro de fumaça Só depois Freud que era fumante entende que esse cheiro remete à fumaça do seu charuto e que o sonho tinha a ver com a transferência Dora despediuse de mim calorosamente desejandome sinceramente um feliz ano novo e nunca mais voltou FREUD 19051972 p 1056 Mas segundo o que afirma Lacan 196219632005 em seu seminário A angústia se Dora não foi analisada até o fim Freud enxergou com clareza até o fim p 127 Análise retomada Esta modalidade do percurso de uma análise se refere a uma análise que terminou ou foi interrompida e posteriormente retomada Cito aqui o Caso do Homem dos Lobos FREUD 1918 19141976 jovem russo que em 1910 aos 23 anos procura Freud em um estado de desamparo dependência e desinteresse pela vida depois de uma gonorreia infecciosa aos dezoito anos O paciente relata um sonho com lobos aos quatro anos sonho de angústia e o medo de ser comido pelo lobo Esse medo foi interpretado por Freud como medo da castração o qual teria sido reativado pela afecção dos genitais Freud associa esse animal à figura do pai o animal temido era o lobo ele também tinha o significado de um substituto do pai Quando menino o paciente em questão um russo que eu só analisei quando ele contava vinte e tantos anos tivera um sonho cujo significado foi revelado na análise e logo após isto criara o temor de ser devorado por um lobo FREUD 1926 19251976 p 126 Em uma nota de rodapé acrescentada em 1923 assim Freud se refere à cronologia do caso à página 150 1 ano e meio de idade observação da cópula dos pais Cena primária 3 anos e 1 quarto sedução pela irmã Depois a ameaça de castração pela babá 4 anos sonho dos lobos Origem da fobia O sonho atualiza a cena primária de 1 ano e meio 4 anos e meio sintomas obsessivos Antes de 5 anos alucinação da perda do dedo 17 anos colapso precipitado pela gonorreia 23 anos início do tratamento Durante os quatro anos do tratamento o Homem dos Lobos vai recobrando suas capacidades mas para de progredir Ele se achava em uma situação confortável na análise e não desejava se aproximar mais do fim do tratamento Então Freud fixa um limite de tempo para o término da análise dizendo que o ano que se iniciava seria o último de seu tratamento independentemente da sua evolução Sergej Pankejev o Homem dos Lobos responde bem a esse expediente e o tratamento segue até algumas semanas antes do início da Primeira Guerra em 1914 quando ele tem de voltar para sua terra Freud acreditou que sua cura teria sido definitiva Mas no final da guerra refugiado o paciente volta a procurálo Conta que logo após o término do tratamento foi tomado por uma ansiedade em se livrar da influência de Freud Durante três meses de retomada da análise Freud o ajuda a dominar uma parte da transferência que restava não resolvida Ele se sente normal apesar de a guerra ter lhe tirado não só os bens materiais mas também os familiares Continua a viver em Viena Alguns resquícios de caráter paranoico da doença voltam eventualmente a aparecer fato que Freud atribuiu a partes residuais de transferência Nessas pequenas crises o Homem dos Lobos é tratado por uma aluna de Freud Dra Mack Brunswick de 1926 a 1927 quando surgem fragmentos da história infantil e ele se restabelece Mas volta e meia passa por algum terapeuta sempre com a questão do lobo e com vários diagnósticos Em 1945 a Dra Brunswick faz um relato da história posterior do Homem dos Lobos O Homem dos Lobos morreu sem ser curado mas não se furtou à responsabilidade e à invenção Sergej dá consequência à sua análise escrevendo sua autobiografia publicada por Muriel Gardiner em que afirma que Freud tinha toda razão sou um neurótico obsessivo Um exemplo de retomada de análise em Lacan narrado por Allouch 1999 p 126 Há algum tempo parou sua supervisão com Lacan Mas eis que no fim de um seminário publicamente Lacan em voz alta lhe diz Então recebeu minha carta do Japão Não foi preciso mais para que algum tempo depois ela retomasse suas sessões Análise em fatias ou analyse en tranches Nesses casos a análise se dá por períodos mas não há necessariamente interrupção do processo de análise Geralmente ocorre quando 1 analisando e analista residem em local muito distante um do outro 2 o analisando para e volta repetidamente 3 o paciente consegue um efeito terapêutico e acha que basta ou 4 a pessoa vem para decidir algo que a divide que está difícil Decide no divã e vai embora Volta quando tem outra questão O caso da princesa Marie Bonaparte é um exemplo de análise em fatias Em 1925 aos 43 anos deprimida à beira do suicídio ela procurou Freud Ia de Paris para Viena e lá ficava por vários períodos para se analisar com Freud Era sua princesa querida Marie era obcecada pelo problema de sua frigidez Ela acreditava que uma cirurgia que aproximasse o clitóris da vagina resolveria o problema da frigidez Submeteuse a tal intervenção sem nenhum sucesso O tratamento da princesa com Freud deuse em etapas de cinco a seis meses de 1925 a 1938 Freud procurou barrar suas cirurgias mas não conseguiu impedir a passagem ao ato Marie foi das primeiras pessoas a submeteremse a essa operação aliás foram três em 1927 1930 e 1931 apesar de ter visto na análise que sua frigidez se devia a causas emocionais Roudinesco e Plon 1998 se referem ao caso como uma situação contratransferencial difícil e se perguntam como poderia Freud interpretar o gozo de Marie submetendose ao bisturi se ele próprio estava passando por cirurgias da mandíbula em decorrência do câncer p 82 Isso não quer dizer que sua análise não tenha tido valor Ao contrário Marie levou seu sintoma às últimas consequências e suas contribuições teóricas centraramse na feminilidade e na sexualidade feminina Ela foi membro fundador da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP em 1926 Dedicouse à tradução da obra de Freud salvou seus manuscritos e o ajudou a ir para Londres Marie devotou sua vida à psicanálise ROUSSEAU 2006 As retomadas da análise Quanto à retomada da análise há diversos pontos que colocam sua necessidade e trazem a pergunta do motivo de uma análise ser interrompida e retomada Freud 1933 19321976 comenta que após muitos anos de terminada uma análise podemse desenvolver reações patológicas a novas causas precipitantes e o paciente pode voltar ao tratamento Há também os casos de pessoas gravemente doentes que durante toda a vida de tempos em tempos retornam às sessões de análise Essas pessoas não fosse dessa maneira seriam porém totalmente incapazes de viver e devemonos contentar com o fato de poderem manterse sobrevivendo às suas próprias custas por meio desse tratamento parcelado e recorrente FREUD 1933 19321976 p 190 Freud 19371969 recomenda aos analistas que retomem suas análises periodicamente para evitar os perigos próprios à sua posição Assim para lidar com áreas de surdez é preciso fazer análise retornar à análise e à supervisão tornandose apto em dar consequência à queixa e implicar o analisando na sua fala e atos Geralmente é utilizado o termo reanálise para o caso de um paciente que fez com êxito uma primeira análise e a retoma com o mesmo analista ou com outro Nesses casos a pessoa verifica que há restos transferenciais interferindo em sua vida Quando a retomada é com outro analista esses restos situamse por meio de um luto centrado na perda do primeiro analista AMP 1995 As retomadas da análise trazem a ideia de ciclos DidierWeill e Safouan comentam sobre a escuta de Lacan e sua opinião sobre a retomada da análise Seria possível um analista apagar em si todo supereu a ponto de não haver nele mais nenhum ponto de surdez Se assim fosse se o analista pudesse escutar tudo pergunteilhe um dia por que ele achava ser preciso em geral na opinião dele um segundo segmento tranche de análise Ele me respondeu Posso escutar tudo o que você diz se houver o não tudo no que escuto Isso significava que seria possível não ser surdo a um dizer que furasse indefinidamente todos os enunciados do dito DIDIERWEILL e SAFOUAN 2009 p33 DidierWeill também destaca algo da práxis de Lacan que criava passarelas entre o íntimo do consultório e o que ocorria fora o que produzia um êxtimo Um exemplo Didier havia perdido o sobrenome Weill em razão do temor por ser judeu de uma perseguição antissemita Queria recuperálo Lacan lhe diz concluindo a sessão de análise Tratase de dizêlo E num colóquio Lacan preside a mesa e chama à tribuna DidierWeill a palavra é sua p 345 A análise fatiada en tranches é própria ao mundo contemporâneo multifacetado sem padrão em que a psicanálise não pode exigir um tempo tão longo dos analisandos a menos que estejam em formação analítica Mas não se trata de terapia breve Menciono a conversação clínica Efeitos terapêuticos rápidos ocorrida em Barcelona em 2005 Uma terapia breve promove a remoção do sintoma ao passo que um efeito terapêutico rápido reduz o gozo implicado no sintoma e relança um novo ciclo na direção do tratamento ANGELO 2005 p 37 O efeito terapêutico rápido pode ser a perda de alguma identificação Por exemplo uma moça recebe uma ordem da mãe de que deve constituir família Darse conta disso lhe traz alívio Outra possibilidade poder trabalhar um enigma sobre o pai A pessoa resolve algo que a incomoda e dá por encerrado o tratamento Quando novo ponto surge um sonho por exemplo que desperta algo a pessoa retoma o trabalho analítico Vai e volta quando necessário Mesmo que seja um ciclo e posteriormente se façam outros ciclos cada ciclo pode ser completo A análise é tão terminável que ela termina várias vezes disse Miller 2005 p 94 Mas para que esses efeitos sejam atingidos é preciso que o analista tenha um longo percurso em sua própria análise As retomadas trazem o tema da possibilidade do final de análise No texto Análise terminável e interminável Freud 1937 menciona alguns pontos que o paciente tenha superado suas angústias inibições e não sofra com seus sintomas que tanto material recalcado tenha se tornado consciente que tenha vencido tantas resistências que o processo patológico não se mostre em vias de repetição que não se possa esperar mais nenhuma mudança se a análise continuar que as lacunas de sua lembrança tenham sido preenchidas Em carta a Fliess de 16 de abril de 1900 Freud comenta a respeito de um paciente que terminou o tratamento de modo que o enigma que tinha foi resolvido e ele estava muito bem Contudo permaneceram alguns sintomas residuais Isso que permanece segundo Freud são as manifestações residuais da transferência Não se trata de um resto indesejável mas de um resto fecundo AMP 1995 Freud 1937 p 284 coloca que uma preocupação constante com todo o material recalcado que luta por liberdade pode despertar também no analista as exigências pulsionais que em outra situação ele é capaz de manter suprimidas São perigos da análise e precisam ser enfrentados Como isso pode ser feito Todo analista deveria periodicamente com intervalos de aproximadamente cinco anos submeterse à análise sem se sentir envergonhado por tomar essa medida Talvez este fosse o tempo em que após uma análise o sujeito se mantivesse sujeito ao inconsciente sem se acomodar em novas formações sintomáticas Não seria apenas a análise dos pacientes mas sua própria análise que se transformaria de tarefa terminável em interminável Não estou afirmando que a análise seja um assunto sem fim FREUD 19371969 p 284 Já para Lacan 19751976 a análise leva do sintoma decifrável do início da análise para no final da análise a identificação ao sinthoma Ele utiliza dois modos de escrita para diferenciar sinthoma uma forma antiga da escrita de sintoma e symptôme em francês O sinthoma é indecifrável É um resto e por isso a análise é finita O final de uma análise é um savoiryfaire com seu sinthoma Saber se virar com seu sinthoma No final do tratamento o sinthoma será a invenção particular do sujeito Chegar a essa invenção requer um saber fazer com savoir faire avec aquilo do que não podemos nos desembaraçar o que há de mais real em cada sujeito BELAGA 2009 p 345 Assim para Lacan a análise é terminável Embora haja instituições acomodativas e por isso recomendam retomar periodicamente a análise para acordar a Escola de Lacan é incomodativa e prolonga os efeitos da experiência mantendo os sujeitos despertos ao inconsciente FORBES 1994 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os tipos de surdez e suas diferentes configurações constituem formas que criam modos diferentes de relação no plano do espaço de uma análise A análise e suas retomadas por suas ações e consequências se relacionam ao seu tempo enquanto duração ou sucessão contínua interrompida retomada finita ou infinita Quanto ao primeiro aspecto os tipos de surdez valorizouse aqui a surdez do Real porque nela não se trata de compreender Lacan em seu Seminário 1 19531954 p 323 considera que o silêncio toma todo o seu valor de silêncio não é negativo mas vale como mais além da palavra Certos momentos de silêncio na transferência representam a apreensão mais aguda da presença do outro como tal Quanto ao segundo aspecto o relativo aos tempos da análise Freud defendia que o tempo dela pode ser finito ou infinito Infinito porque sempre fica algo intratável um resto Uma análise não é linear tem percalços interrupções e retomadas A pedra no caminho É finita porque para ele há a esperança de que após uma análise as respostas que uma pessoa dá em sua vida sejam diferentes das iniciais Assim nesse sentido para Freud a análise é terminável e interminável Para Lacan a análise é finita Vai do sintoma decifrável do início da análise para o sinthoma indecifrável do final para um savoiryfaire com seu sinthoma Contudo o próprio Lacan sempre se colocou na posição de analisante em seus seminários e palestras podendose daí concluir que também para ele a análise é interminável Sempre que ensinava estava também fazendo análise pois falava a partir do lugar do analisando Em seus seminários ele referiase a essa posição que ocupava As perspectivas de Freud e Lacan não são opostas nem contraditórias Eles destacam aspectos diferentes do mesmo problema Fica a pergunta e o que dizer da análise hoje Forbes entrevistou três analistas que terminaram suas análises fizeram o passe deram testemunho da análise e de seu fim e disseram têlas retomado por diferentes motivos Assim a análise é terminável desde que se possa recomeçar Podese dizer que ele Forbes igualmente está o tempo todo em análise Isso se expressa por exemplo em suas participações na mídia nos congressos como a possibilidade de sustentar o Real da análise As pessoas ouvem e o analista enquanto fala seja em um seminário palestra aula pode estar no lugar de analisando Portanto perde sentido a recomendação de retomar a análise a cada cinco anos O Real é sempre o novo o impacto Daí seguimos a ideia de Forbes de que o final de análise é uma responsabilidade Responsabilidade de suportar a contingência do Real E nesse sentido a análise é interminável Referências bibliográficas ALLOUCH Jean Alô Lacan É claro que não Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 ANGELO Lucía D Terapias breves versus efectos terapéuticos rápidos In Efectos terapéuticos rápidos Barcelona Paidós 2005 p 3441 ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE AMP Textos reunidos A reanálise uma abordagem crítica In Como terminam as análises Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 p 8994 BELAGA Guillermo Sintoma e sinthoma In Scilicet Semblantes e sinthoma São Paulo Escola Brasileira de Psicanálise 2009 p 3435 DIDIERWEILL Alain amp SAFOUAN Moustapha Trabalhando com Lacan na análise na supervisão nos seminários Rio de Janeiro Jorge Zahar 2009 FORBES Jorge Tempo de análise e de reanálise In Jornadas de Outono da Escola da Causa Freudiana e Escola Europeia de Psicanálise Les temps fait symptôme Paris setembro de 1993 Opção lacaniana São Paulo n 9 1994 Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003 Não tenho a menor ideia In Desautorizando o sofrimento socialmente padronizado em pacientes afetados por doenças neuromusculares Tese de doutorado em Ciências São Paulo Faculdade de Medicina da USP Programa de Neurologia 2011 p 1113 FREUD Sigmund 1905 1901 Fragmento da análise de um caso de histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v VII Rio de Janeiro Imago 1972 p 1119 1918 1914 História de uma neurose infantil In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 1976 p 13151 1926 1925 Inibições sintomas e ansiedade In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 p 93201 1933 1932 Conferência XXXIV Explicações aplicações e orientações In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXII Rio de Janeiro Imago 1976 p 16791 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1969 p 23987 LACAN Jacques 195354 O seminário Livro 1 Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro Jorge Zahar 1983 196263 O seminário Livro 10 A angústia Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 19751976 O seminário Livro 23 O sinthoma Rio de Janeiro Jorge Zahar 2007 MILLER JacquesAlain Efectos terapéuticos rápidos Barcelona Paidós 2005 ROUDINESCO Elisabeth amp PLON Michel Dicionário de psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 ROUSSEAU FrançoisOlivier Freud e a princesa Bonaparte um romance sobre o famoso caso do pai da psicanálise e da fuga que o salvou da ocupação nazista Rio de Janeiro Relume Dumará 2006 A CLÍNICA DO ANALISTA INICIANTE COMO SOBREVIVER A UMA PRÁTICA SEM STANDARDS ALAIN MOUZAT INTRODUÇÃO A psicanálise foi instaurada por seu fundador sob o signo do impossível pois diz Freud 1937 p 282 seu resultado a exemplo do que se pode esperar do governar e do educar será sempre julgado insuficiente Os diferentes desenvolvimentos da teoria psicanalítica repetem o veredicto Lacan nos diz JacquesAlain Miller 2014 colocaa no domínio do não todo e Jorge Forbes FORBES 1999 p 110 fala do psicanalista como profissional do incompleto Insistir nessa dimensão é sem dúvida indispensável para significar que a psicanálise não visa ao universal mas ao singular que não existem modelos ou padrões nem em seus fins nem em suas práticas Isso contudo não seria suficiente para evitar que nos coloquemos a questão de saber a respeito de em quais orientações repousa a análise questão que se põe ao psicanalista debutante ou não e que se não colocada diz Lacan em A direção do tratamento e os princípios de seu poder a impotência em sustentar autenticamente uma práxis se transformará como na história dos homens comuns no exercício de um poder LACAN 19581998 p 592 Se o analista certamente não dirige o paciente ele dirige o tratamento Com base em que recursos o analista iniciante poderia fundar sua práxis psicanalítica na ausência de toda regra formal Tratase para nós de lembrar que se o analista só se autoriza por si mesmo nem por isso ele deixa de ser o fruto de uma formação que lhe permite discernir certos princípios diretores que orientarão sua prática Como relembra Éric Laurent 2006 em um documento intitulado Les principes directeurs de lacte psychanalytique 1 a formação analítica desde que foi estabelecida como discurso repousa no seguinte tripé seminários de formação teórica para universitários o prosseguimento pelo candidato a psicanalista de uma psicanálise até seu derradeiro ponto com os consequentes efeitos de formação e a transmissão pragmática da prática em supervisões conversas entre pares sobre a prática Propomonos então a partir do exame da formação tal como a praticamos no Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA a discernir essas orientações clínicas A ORIENTAÇÃO PELO REAL Os cursos do corpo de formação do IPLA colocamse entre os seminários de formação teórica e estudam a teoria psicanalítica com a orientação particular de Jorge Forbes que desenvolvendo o que JacquesAlain Miller designou como o ultimíssimo Lacan reivindica a orientação pelo Real Se os textos de Freud de Lacan e de seus diversos comentadores são estudados não é na perspectiva da acumulação de um saber fechado mas no confronto dos textos com a clínica e em particular com os sintomas tal como eles se caracterizam no mundo contemporâneo Em outras palavras o estudo dos textos não se resume à simples história das ideias da psicanálise mas parte antes de tudo das necessidades clínicas engendradas pelos sintomas tais como se manifestam hoje bem diferentes dos das histéricas de Freud na era vitoriana Passar de um mundo regido pela lei do pai no qual o malestar do ser humano se explica pela estrutura edípica e os sintomas pelo recalque exigindo que desejos recalcados sejam trazidos à consciência a um mundo em que o pai não tem mais função dominante requer que sejam simultaneamente repensadas tanto as construções teóricas quanto as práticas clínicas De fato hoje o malestar do ser humano se explica não pelo recalque mas exatamente pela ausência de inscrição da pulsão no circuito simbólico No mundo contemporâneo os grandes sistemas discursivos que orientavam a sociedade sobre um ideal fosse ele religioso político ou moral perderam sua credibilidade e não fornecem mais um ponto de transcendência organizador A família submetida à autoridade do pai a exacerbação nacionalista e os extremismos religiosos continuam a existir mas são sentidos bem mais como uma reação de desamparo diante da angústia causada pela multiplicidade dos possíveis que como uma escolha ativa Os sintomas não estão mais articulados com o sistema simbólico o ato que é considerado socialmente patológico doença como a toxicomania a delinquência gratuita não é mais vivido como transgressão não responde mais às explicações de revolta contra o pai o sistema a lei a moral Não há mais sentido escondido a buscar nele É o que Jorge Forbes vai chamar de doenças do curtocircuito da palavra A globalização a queda dos ideais e da ordem masculina abriu a possibilidade ao curtocircuito da palavra Notamos o aumento das doenças que chamaria de doenças do curtocircuito da palavra os tóxicos a delinquência despropositada o fracasso escolar as afecções psicossomáticas Forbes 2003a Se o mundo contemporâneo se caracteriza pela ausência de garantia do discurso do Outro e se as doenças se manifestam em curtocircuito da palavra isso requer uma transformação da orientação clínica O que se pode esperar da psicanálise do século XXI não é o desvendamento de uma verdade recalcada mas a confrontação com um mais forte que eu que insiste e para o qual não se encontram explicações A linguagem não dá conta da totalidade do sintoma há um resto sintomático O sintoma freudiano suscetível de ser interpretado encontra seu impasse no rochedo da castração há algo que resiste e que não pode encontrar nas palavras sua resolução já que Freud pôde enunciar não se sabe por que vias que há uma Unverdrängungen um recalque que nunca é anulado É da própria natureza do simbólico comportar um furo LACAN 197519762005 p 41 Dois pontos devem ser salientados Em primeiro lugar a dimensão de satisfação do sintoma Ele é o modo singular de cada um gozar de seu inconsciente e nessa dimensão ele é positivado A análise não visa assim a se livrar do sintoma mas sim a chegar a seu osso O segundo ponto é que esse osso do sintoma é fora do sentido e que assim sendo ele não é capturável pela interpretação que fornece sentido mas por um desmame de sentido para retomar a expressão de JacquesAlain Miller 2011 A interpretação clássica que visa a emprestar sentido às palavras do analisando se encontra assim relegada à ilusão da possibilidade de um saber da verdade enquanto é promovida uma intervenção seria ainda o caso de chamá la de interpretação do analista que visa a bloquear o encadeamento significante recusando a obviedade do sentido levando o analisando a se confrontar não com o significado do que diz o enunciado mas com o fato de dizêlo sua enunciação com sua posição de gozo revelada no seu dizer Trata se de renovar por outras vias pelo equívoco e pela surpresa a pergunta que Freud fazia a Dora sobre a posição dela em relação à desordem que denunciava A intervenção do analista incide sobre a posição de gozo do analisando e empresta consequência à sua fala FORBES 2003b p 1948 Essa é a operação realizada por algumas intervenções de Lacan elencadas por Jean Allouch no seu livro Alô Lacan e retomadas por Jorge Forbes ALLOUCH 1999 apud FORBES 2003b Paciente Oh como eu sou burro Lacan Não é porque o senhor o diz que não seja verdade Ou ainda O senhor deve se dar conta de que se pensa que os outros pensam que o senhor pensa mal isso talvez se deva simplesmente ao fato de o senhor pensar mal Outro caso O senhor talvez imagine que não sou tão inteligente quanto o senhor fala o paciente Quem lhe diz o contrário Podese ver nesses exemplos o que rege essas intervenções princípio que Lacan enunciava falando da necessidade de fazer esquecer ao paciente que se trata apenas de palavras LACAN 19581998 p 592 e que Forbes radicaliza como condição mesma do ato analítico visando a implicar o paciente na sua fala Se interpretar fornecendo um sentido a mais para o analisando pode ter efeitos de explicação e eventualmente servir de desculpa ao inconsciente a nova interpretação via equívoco não explica mas implica responsabiliza o paciente por sua posição de gozo FORBES 2003b Implicar responsabilizar visando a deslocar a posição de gozo que se manifesta na enunciação é a primeira orientação que se pode retirar do primeiro pilar teórico do tripé da formação do analista A bússola não é mais um saber da verdade do sintoma eu faço isso porque verdade que poderia ser alcançada pela via do simbólico Tratase ao contrário de levar o analisando a se confrontar com o osso duro do seu sintoma o fora do sentido no registro do Real como seu modo singular de se virar com a desarmonia fundamental entre o homem e o mundo o que Lacan formula no aforismo não há relação sexual LACAN 19721973 p 62 A EXPERIÊNCIA ANALÍTICA COMO FORMAÇÃO DO ANALISTA Freud em A questão da análise leiga reconhece em um diálogo com um interlocutor imaginário a dificuldade para expor sua teoria Sei mas não posso convencêlo Isto está fora de qualquer possibilidade e por esse motivo além da minha finalidade Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise podemos ver quão pouca impressão lhes estamos causando para começar Eles absorvem as doutrinas psicanalíticas tão friamente quanto outras abstrações com as quais são alimentados Poucos deles talvez desejem ficar convencidos mas não há qualquer vestígio que assim estejam Mas também exigimos que todo aquele que quiser praticar a análise em outras pessoas se submeta ele próprio a uma análise É somente no curso dessa autoanálise como é confusamente denominada em que a sua própria pessoa é afetada ou antes sua própria mente pelos processos afirmados pela psicanálise que adquirem as convicções pelas quais são ulteriormente orientados como analistas FREUD 192519261976 p 226 A experiência analítica é reconhecida assim como elemento imprescindível da prática analítica entender a teoria não adianta A psicanálise não é uma teoria uma abstração ela precisa ser experimentada para que o convencimento se produza Mais radicalmente ainda não há possibilidade na psicanálise de convencimento permanecendose fora da experiência analítica Assim como Freud abre mão do propósito de convencer seu interlocutor Lacan em Mais ainda dirá que não se deve convencer O próprio da psicanálise não é de vencer LACAN 19721973 p 50 A experiência analítica não é movida pelo convencimento este caso haja não tardaria a fraquejar diante das inesperadas vias do inconsciente Mas em que a experiência analítica pode participar da orientação da práxis Ao longo de sua análise o analisando foi despojado de todas as identificações de tudo o que ele acreditava ser daquilo que ele queria ser em desacordo com sua satisfação para descobrir que não existe tratamento para o objeto a causa de seu desejo Posição que poderia ser assimilada a uma posição depressiva se não fosse a certeza experimentada de que seu sofrimento não é um destino a descoberta de que com um dizer podese levar alguém à decisão de se responsabilizar por seu gozo e inventar sua vida Nesse ponto da análise pessoal o sujeito vê afundar a segurança que ele tomava desse fantasma onde se constitui para cada um sua janela sobre o Real o que se enxerga é a tomada do desejo que não é nada além que a de um deser LACAN 2001 p 254 Lacan chama a essa condição de destituição subjetiva a decisão de ser psicanalista não se alimenta de nenhum fantasma terapêutico redentor ou antipsiquiátrico para retomar os exemplos de C Demoulin 2000 Da mesma forma Freud alertava contra o sentimento mais perigoso para um psicanalista a ambição terapêutica de alcançar algo que produza efeito convincente sobre outras pessoas e em seguida ilustrava o conselho com o adágio do cirurgião francês do século XIV Ambroise Paré eu o tratei Deus o curou Longe dos ideais que alimentam as decisões de exercer uma profissão tornarse médico para curar as pessoas professor para trazer a educação ao povo o desejo do psicanalista se sustenta na própria experiência analítica e o que a move não é nenhuma revelação de uma verdade escondida mas a insistência de um gozo que lhe permanece opaco irredutível É essa experiência que vai lhe permitir se fazer dócil à radical estranheza do sujeito que lhe fala e acompanhálo até os limites onde este poderá dizer então sou isso Nesse ponto a verdadeira formação do psicanalista é sua análise levada até seu término atestado GUEGUEN et al Desse modo Lacan vai dizer que não há formação do analista há unicamente formações do inconsciente LACAN apud BIAGICHAI 2009 A ELABORAÇÃO CLÍNICA A TRANSFERÊNCIA Afinal dizia Lacan na sua conferência de 19 de junho de 1968 não é o teórico que encontra a via ele a explica Evidentemente a explicação é útil para encontrar a continuação do caminho A necessária troca entre a experiência analítica singular e a conceitualização teórica acontece na elaboração clínica do caso As reuniões clínicas sejam elas da Clínica do IPLA sejam elas da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano CEGH da Universidade de São Paulo USP têm para a formação um papel fundamental Para ilustrar partimos de uma observação realizada na Clínica de Psicanálise do CEGH da USP Contrariando a encenação tradicional do setting analítico entrevista preliminar no têteàtête pacienteanalista a primeira entrevista é realizada na presença de duas pessoas conduzida por Jorge Forbes psicanalista assistido de Mayana Zatz diretora do CEGH e bióloga A entrevista é retransmitida ao vivo para um público de 22 analistas que discutem em seguida o caso e decidem sobre a orientação do tratamento O paciente é então encaminhado a um analista da equipe Da experiência da Clínica de Psicanálise do CEGH podem se depreender várias orientações da práxis em particular no que diz respeito ao que Lacan em A direção do tratamento e os princípios do seu poder vai colocar no registro da estratégia a transferência Fenômeno reconhecido muito cedo desde os Estudos sobre a histeria FREUD 18951974 p 360 na forma de um enamoramento deslocado para a pessoa do analista ele vai ganhar cada vez mais importância aos olhos de Freud que lhe dedicará vários artigos e lhe dará uma função fundamental até o Esboço de psicanálise de 1938 fazendo dele o motor do tratamento Para Freud a figura do terapeuta recebe os investimentos afetivos recalcados destinados a outro o pai a mãe permitindo assim o aparecimento da outra cena do inconsciente O conceito de transferência será retomado por Lacan 1951 e interpretado como a instalação de um Sujeito Suposto Saber É a suposição de um saber possibilidade de elaborar um saber do inconsciente que aparece como objeto de desejo que permite a instalação da análise Se a transferência em Freud visa à máscara do analista sua figura fantasmada em uma relação imaginária em Lacan a suposição de saber coloca a relação transferencial no registro do simbólico Duas características chamaram nossa atenção na Clínica de Psicanálise do CEGH o fato de a transferência poder se estabelecer rapidamente ela é geralmente obtida desde a primeira sessão e não sofrer alterações quando o paciente passa para o analista que vai atendêlo Podese reconhecer a importância da figura do analista como Sujeito Suposto Saber o papel relevante do quadro institucional IPLA e CEGH da USP que colaboram com a possibilidade de instalação da transferência mas eles são insuficientes para explicar a rapidez de sua instalação e sua permanência na mudança de analista O caso Não tenho a menor ideia FORBES 2009a que aparece no capítulo 27 deste livro ilustra uma intervenção cujo efeito pôde ser notado por todos os analistas que assistiam a essa entrevista Depois dela o paciente não era o mesmo a derrubada do senso comum do princípio de colaboração que rege a comunicação derrubou a cena enunciativa que lhe impunha seu papel foi um convite ao deslocamento para uma fala responsável que não se satisfaz com o recobrimento da angústia pelo discurso do Outro A precisão da intervenção o efeito disruptivo que teve só pode ser assemelhada ao gesto cirúrgico Essa é aliás uma das imagens favoritas de Jorge Forbes que nisso também retoma a tradição freudiana de comparar o ato analítico ao gesto do cirurgião e os instrumentos das intervenções às ferramentas cirúrgicas FREUD 19171976 p 5389 Aqui se pôde ver em ato o estabelecimento de uma transferência não com a pessoa do analista não com o Sujeito Suposto Saber mas com a própria psicanálise motivada pela posição do analista que o remeteu ao que dele podia se manifestar nesse discurso no registro do Real Forbes nos seus comentários clínicos costuma chamar esse efeito de inoculação do vírus da psicanálise ou de encontro com o analista após o qual o sujeito não é o mesmo A transferência assim aparece mais como consequência do ato analítico do que sua condição A MONSTRAÇÃO NA CLÍNICA ORIENTADA PELO REAL Esse exemplo pode ser visto também da perspectiva do efeito de formação que pôde ter para quem assistiu à clínica em ato mesmo com o relato que sabe tocar há algo da singularidade do caso que sempre vai permanecer apenas evocado como descrever o tom da voz a tensão do silêncio que o deixa cheio de falas abortadas o assombro do gesto E particularmente como descrever o deslocamento da posição enunciativa do paciente e do pinçamento do gozo singular que ela mostra O termo monstração é utilizado por Lacan para opondose à demonstração falar da impossibilidade de dar conta pela linguagem da transmissão integral da experiência analítica Lacan descarta logo a possibilidade de metalinguagem a língua não pode dizer nada de si mesma O sentido de uma palavra no dicionário remete sempre a outra palavra em uma circulação infinita do significante remetendo a outro significante Lacan em um primeiro momento tenta recorrer à linguística estruturalista que visa a despojando a representação de sua vestimenta linguageira de toda metáfora isolar funções puras São essas funções que Lacan vai simbolizar com letrinhas distribuídas em relações estruturais são os matemas Mas os próprios matemas para funcionar como transmissão devem ser lidos e reencontram então a dimensão da linguagem Mesmo que seja num registro que não visa mais à univocidade os matemas continuam tributários da ordem do discurso e como tal são incapazes de capturar o Real que se manifesta exatamente na insistência do gozo sintomático o que não cessa de não se escrever o Real Assim Lacan vai visar a uma transmissão pela topologia dos nós que não são mais representações de ordem simbólica mas formas concretas de articulação de três registros heterogêneos O recurso à topologia vai de par com as mudanças na clínica lacaniana o que se visa não é mais a verdade recalcada do sintoma mas a extração do que insiste como gozo no sintoma e que não encontra inscrição simbólica o gozo fora de sentido que se inscreve como Real do corpo Em suma se podia se esperar em uma primeira clínica domar o excesso que manifesta o sintoma para encontrar para ele vias simbólicas pela decifração em uma segunda clínica ao contrário tratase de pinçar a dimensão singular de gozo no sintoma Lacan encontra aqui um apoio no que ele vai chamar de antifilosofia a de Nietzsche e também de Wittgenstein 19211993 A antifilosofia se caracteriza pela denúncia radical do projeto filosófico Não que as proposições de uma filosofia ou outra estejam erradas a filosofia só pode produzir proposições inessenciais porque estas não saem da dimensão da linguagem e esquecem que a filosofia deve levar ao ato Assim Nieztsche vai denunciar os niilismos que tentam recobrir as forças vitais evitar a violência do real pelo discurso Wittgenstein as reduz a pretensões filosóficas a blábláblá assim a proposta 4003 do Tractatus 19211993 A maioria das proposições e das questões que foram formuladas em matérias filosóficas não estão erradas mas absurdas Mas se a solução do Tractacus de Wittgenstein 19212003 p 281 formulada na sua última proposição o que não se pode dizer tem que ser calado é a renúncia a articular o que está fora da linguagem para a psicanálise particularmente como ela é elaborada por Lacan a partir do Seminário XX tornase objetivo central extrair esse ponto onde a palavra toca o corpo Jorge Forbes retoma essa mesma problemática em termos clínicos no texto Geração mutante 2003a perguntando como capturar o Real do corpo pela palavra A monstração pode assim ser entendida como o modo de produção de um objeto singular pelo curtocircuito do sentido para que emerja pela palavra um objeto fora do sentido que fura o simbólico A palavra monstração se justifica duplamente primeiro na sua oposição à demonstração e segundo porque o que é produzido na monstração o que é mostrado é um monstro o que escapa a qualquer normalidade o singular na sua estranheza Nesse modo de produção não discursivo podese incluir tanto modos de transmissão a topologia dos nós a retransmissão ao vivo a própria experiência da análise pessoal quanto modos de intervenção clínica o equívoco a surpresa o gesto a nomeação do gozo A monstração é o modo de produção do mais irredutível em cada um que insiste seu mais forte do que eu despido das vestes dos discursos Pela monstração a Clínica de Psicanálise do CEGH tornase assim um lugar de verificação e de elaboração de instrumentos clínicos afiados instrumentos que Jorge Forbes para continuar a comparação freudiana entre o cirurgião e o psicanalista reagrupou sob o nome de bisturis da clínica do Real CONSIDERAÇÕES FINAIS Contrariamente a outras profissões o psicanalista não se orienta na representação ideal do objeto final que poderia ser obtido pela repetição do mesmo gesto apurado A psicanálise visa ao singular Não há portanto prescrições mapa certeiro da rota standards O que não quer dizer porém que ele fica à deriva pois pode contar com uma bússola que não falta desde que não fique surdo às suas manifestações o Real Para se orientar pelo Real o psicanalista tem de aprender a reconhecer na palavra do analisando o que nela insiste e fazer se manifestar sua posição posição de onde ele tira satisfação Para tanto o psicanalista conta com a própria experiência vivida na sua análise e com o estudo dos textos teóricos que lhe permitem construir um referencial que se alimenta permanentemente na clínica Os instrumentos clínicos adequados a essa operação podem ser forjados nas discussões clínicas Podese verificar a eficácia do ato do analista na apresentação de pacientes e nas sessões de supervisão Por fim cabe uma outra citação de Jorge Forbes ao afirmar que a cada sessão o desejo de analista é fazer você singular que você seja capaz de discernir aquilo que faz a sua diferença Achar a sua singularidade e responsabilizarse por ela Isso só se obtém por uma redução das identificações por uma precipitação destacando aquilo que sempre se repete Aquilo que não tem nome nem nunca terá sempre se repete no mesmo lugar Fato que faz com que Jacques Lacan diga que o real é aquilo que volta sempre ao mesmo lugar FORBES 2009b Referências bibliográficas BiagiChai Francesca Editorial Journées de lÉcole de la Cause freudienne Paris n 59 jun 2009 Disponível em httpampblog2006blogspotcombr200905ecfmessagerlalettreenlignen59html Acesso em 1o de fevereiro 2013 DEMOULIN Christian Le psychanalyste appliqué 2000 Disponível em httpwwwfclbbespipphparticle132 Acesso em 1o de fevereiro 2013 FORBES Jorge Da palavra ao gesto do analista Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 Geração mutante In Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003a p 248 Você quer o que deseja São Paulo Best Seller 2003b 2009a Não tenho a menor ideia In VIII Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise EBP O analista e os semblantes Florianópolis 3 e 4 de abril de 2009 Conferência Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosnaotenhoa menorideiahtml Acesso em 6 de novembro de 2012 2009b Provocações psicanalíticas II In Corpo de Formação em Psicoanálise Lacaniana IPLA São Paulo 9 de fevereiro de 2009 Aula inaugural Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosprovocacoespsicanaliticas2html Acesso em 17 de dezembro de 2013 FREUD Sigmund 18931895 Estudos sobre a histeria In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v II Rio de Janeiro Imago 1974 1917 Terapia analítica Conferência XXVIII In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVI Rio de Janeiro Imago 1976 19251926 A questão da análise leiga In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 1976 p 175248 1937 Análise terminável e interminável In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XXIII Rio de Janeiro Imago 1969 p 23987 GUEGUEN PierreGilles et al Questce quun psychanaliste 2 Disponível em httpwwwcausefreudiennenetetudieressentialquestcequunpsychanalyste2html Acesso em 1o de fevereiro de 2013 LACAN Jacques 1951 Intervention sur le transfert In Ecrits Collection Champ Freudien Paris Seuil 1966 1958 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Zahar 1998 p 591 1968 Lacte psychanalytique In Autres écrits Collection Champ Freudien Paris Seuil 2001 19721973 Le séminaire Livre XX Encore Paris Seuil 1975 19751976 Le séminaire Livre XXIII Le sinthome Paris Seuil 2005 LAURENT Éric Les principes directeurs de lacte psychanalitique 2006 Disponível em httpwwwcausefreudiennenetecoletextesfondateursprincipesdirecteursdelactepsychanalytique Acesso em 08112012 MILLER JacquesAlain Journal des journées n 55 Disponível em httpampblog2006blogspotcombr200911ecfmessager journaldesjourneesn55html Acesso em 11022014 Letre et PUn 14o cours 25 mai 2011 Disponível em httpdisparatesorglun20110514coursdejacques alainmiller25mai2 Acesso em 11022014 WITTGENSTEIN Ludwig 1921 Tractatus logicophilosophicus Trad Gilles Gaston Granger Coleção Tel Paris Gallimard 1993 1 Documento apresentado por Éric Laurent em 16 de julho de 2006 na Assembleia Geral da AMP por ocasião de seu V Congresso em Roma DA VONTADE DE LER O NOME NA PLACA AO DESEJO DO ANALISTA QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DA FORMAÇÃO TERESA GENESINI INTRODUÇÃO Iniciemos por uma metáfora o psicanalista é aquele sem nome na placa Como os filhos o amor o orgasmo um pôr do sol ele é um supérfluo Funciona em outro registro e consequentemente é formado de outro modo O analista não é deste mundo tal como a mulher A mulher e o analista estão fora da civilização na medida em que a intenção dos seus conceitos é vazia Não se pode dizer os analistas assim como não se diz as mulheres Um analista existe no um a um Sua formação primordial se dá no divã na relação com seu inconsciente e em como ele empresta consequência ao seu desejo de analista Não há uma qualidade universal que identifique um ou outro daí dizermos que só é possível verificar a mulher uma a uma e o analista um a um É essa falta de qualidade universal do analista que explica a enigmática frase de Lacan em A direção do tratamento e os princípios de seu poder O analista faria melhor situandose em sua faltaaser do que em seu ser LACAN 19581998 p 596 atingir e suportar essa falta de ser é consequência de uma análise FORBES 1996 A faltaaser essa falta da qualidade universal do analista foi segundo Forbes uma das grandes contribuições de Lacan a de situar o analista não como um modelo seja do que for mas como um elemento causador como uma provocação que faz falar uma causa e não um ideal FORBES 1996 Por esse motivo ao contrário de várias outras profissões a formação do analista visa à radical diferença Ela vai na direção oposta da padronização Segue na contramão das garantias simbólicas que respondem a uma sociedade marcada por um discurso universal e totalitário que define como tudo é e como deve ser O diploma o certificado o carimbo e o nome na placa são manifestações dessa padronização Então como formar o sem nome Na análise pessoal antes de tudo Depois estudo e supervisão A tríade da formação COMO ERA ESSA TRÍADE EM FREUD No texto A história do movimento psicanalítico 1914 Freud apresenta os dizeres do brasão da cidade de Paris Fluctuat nec mergitur O brasão representa um navio cujo emblema é flutua mas não afunda Freud citou esse lema outras vezes em sua correspondência com Fliess para falar de seu estado de espírito O que fazia com que ele não desistisse era o seu desejo de analista Freud acreditava na importância da psicanálise para toda formação médica e acadêmica em geral achava que uma das funções da psicanálise era proporcionar uma base para a psiquiatria Além disso propunha que todos os estudantes de medicina tivessem acesso a um curso elementar de psicanálise e no caso dos psiquiatras deveriam receber um curso de psicanálise especializado Defendeu essas ideias em seu artigo de 1919 Sobre o ensino da psicanálise nas universidades Para Freud os leigos isto é os não médicos deveriam poder praticar a psicanálise tanto quanto os médicos Ele se debruçou a respeito dessa questão e escreveu um trabalho acerca do tema A questão da análise leiga publicado em 1926 em defesa de Theodor Reik que foi acusado de charlatanismo por praticar a psicanálise sem ser médico Desde o início Freud defendia o pensamento de que a psicanálise não deveria ser uma prática apenas da profissão médica Considerava que a formação recebida por um médico na escola de medicina era mais ou menos o oposto da formação necessária a um psicanalista Segundo ele para se praticar a psicanálise pouco se necessita da medicina muito se deve saber da psicologia do inconsciente um pouco de biologia e de ciência sexual O analista precisaria atingir certo grau de autodisciplina e conhecimento à sua disposição para conseguir com suas interpretações atingir o alvo Uma espécie de agudeza em ouvir o que está inconsciente e reprimido que não está na posse igualmente de todos tem seu papel a desempenhar E aqui antes de tudo somos levados à obrigação de o analista tornarse capaz por uma profunda análise dele próprio da recepção sem preconceitos do material analítico Algo é verdade ainda permanece de fora alguma coisa comparável à equação pessoal nas observações astronômicas Esse fator individual sempre desempenhará um papel mais significativo na psicanálise do que alhures FREUD 1926 p 212 Que o analista não prescinde de fazer sua própria análise isso era básico desde o início da psicanálise Uma formação mínima de dois anos era esperada a partir da qual o candidato a psicanalista era considerado um principiante Essa formação era feita por meio da prática e da troca de ideias com os mais experientes nas reuniões das sociedades psicanalíticas Freud acreditava que a literatura especializada os encontros científicos e o contato com analistas experientes eram imprescindíveis para a formação do analista A formação do analista exige um trabalho árduo de grande responsabilidade Mas qualquer um que tenha sido analisado que tenha dominado o que pode ser ensinado em nossos dias sobre a psicologia do inconsciente que esteja familiarizado com a ciência da vida sexual que tenha aprendido a delicada técnica da psicanálise a arte da interpretação de combater resistências e de lidar com a transferência qualquer um que tenha realizado tudo isso não é mais um leigo em psicanálise FREUD 1926 p 220 A formação em psicanálise poderia ser feita em três locais na época na Sociedade Psicanalítica de Berlim fundada pelo Dr Max Eitingon membro da Sociedade local no instituto mantido pela Sociedade Psicanalítica de Viena que se mantinha com muita dificuldade financeira e no instituto de formação da Sociedade Psicanalítica em Londres dirigido por Ernest Jones um dos seguidores de Freud Os candidatos a analistas que frequentavam esses institutos faziam ali sua análise pessoal e supervisão com os psicanalistas mais experientes ao atenderem os casos considerados brandos A tríade análise pessoal estudo e supervisão já fazia parte da formação do psicanalista desde o início da psicanálise A diferença é que esses analistas em formação faziam uma análise dita didática que segundo o Vocabulário da psicanálise LAPLANCHE PONTALIS 1982 é a psicanálise a que se submete aquele que se destina ao exercício da profissão de psicanalista e que constitui a viga mestra da formação Quem quisesse praticar a psicanálise deveria se submeter antes ele mesmo à análise com um analista qualificado como didata UM PASSEIO PELA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE A formação do psicanalista hoje tem alguns ensinamentos a extrair da própria história da psicanálise Por isso proponho um passeio por essa história Freud formouse médico em 1881 na Universidade de Viena e não começou a clinicar imediatamente Trabalhou em laboratórios foi pesquisador e foi admitido como professor de neuropatologia na universidade Conheceu o Dr Joseph Breuer um médico famoso em Viena na década de 1870 e se tornaram amigos Em 1882 Breuer lhe encaminhou uma paciente Anna O seu primeiro caso de histeria e começaram a trabalhar juntos Três anos depois Freud vai à Paris estudar com Charcot Na volta a Viena pouco antes de seu casamento instalase num apartamento no n 7 da Rathausstrasse no melhor ponto para atividades profissionais na cidade atrás do prédio da prefeitura sua casa e consultório Colocou uma placa de identificação profissional no portão da rua e outra na parte interna Fez um anúncio da sua clínica privada nos jornais locais e nas publicações médicas periódicas Dr Sigmund Freud Docente de Neuropatologia da Universidade de Viena chegado de um estágio de seis meses em Paris e no momento residente no n 7 da Rathausstrasse JONES 1961 p 166 Freud foi um solitário intelectual durante os primeiros dez anos da criação da psicanálise e a partir de 1906 começou seu reconhecimento internacional Conta Ernest Jones discípulo e biógrafo de Freud que em 1907 Max Eitingon que se tornou um psicanalista grande colaborador e amigo de Freud à época estudante de medicina em Zurique foi a Viena por quinze dias onde se conheceram Passou três ou quatro noites com Freud que foram gastas em trabalho analítico pessoal durante longas caminhadas pela cidade Assim iniciouse a primeira análise didática JONES 1961 p 389 No início da psicanálise Freud era o único psicanalista que fazia a formação de futuros analistas Em uma noite de quartafeira de 1902 Freud convidou quatro médicos vienenses para uma reunião em uma sala de seu consultório Kahane Reitler Stekel e Adler com os quais deu início ao que ficou conhecido como Sociedade Psicológica das QuartasFeiras Em 1908 já com número maior de participantes o trabalho do grupo passou a chamarse Sociedade Psicanalítica de Viena como é chamada até hoje Em 1907 um grupo restrito chamado Grupo de Freud formouse em Zurique denominandose depois Sociedade Freud seguida de Sociedade Psicanalítica de Berlim Em 1908 houve o primeiro Congresso privado de psicanálise em Salzburgo com a presença de quarenta e duas pessoas cuja metade já era psicanalista ou estava fazendo formação em psicanálise Nesse congresso Freud apresentou o trabalho que ficou conhecido como O Homem dos Ratos O movimento trouxe novos adeptos e diante desse crescimento Freud julgou necessário criar um órgão que determinasse um escopo para o campo e a prática da psicanálise Assim dois anos depois no Congresso de Nuremberg foi criada a Internacional de Psicanálise IPA Freud diria mais tarde ao escrever A história do movimento psicanalítico Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular Deveria haver alguma sede cuja função seja declarar Todas essas tolices nada têm a ver com a análise isto não é psicanálise Nas sessões de grupos locais que reunidos constituíram a associação internacional seria ensinada a prática da psicanálise e seriam preparados médicos cujas atividades recebiam assim uma espécie de garantia FREUD 1914 p 52 Depois em 1913 dois outros grupos foram fundados e aceitos como organizações filiadas à IPA a Sociedade de Budapeste e a de Londres Todas as associações tinham jornaisrevistas de psicanálise com publicações regulares sob a orientação científica de Freud Ocorreu então a formação de institutos de psicanálise filiados à IPA em vários lugares e as regras da formação eram ditadas por essa Associação Foi em 1922 no Congresso da IPA dois anos após a fundação do Instituto de Psicanálise de Berlim que se apresentou a exigência da análise didática para todo e qualquer candidato a analista LAPLANCHE PONTALIS 1982 p 24 No Congresso de BadHomburg em 1925 a análise didática juntamente à supervisão tornouse obrigatória para todas as sociedades psicanalíticas Foi o início da burocratização da IPA COMO LACAN PENSOU A FORMAÇÃO Freud atendia amigos famílias no seu consultório caminhando com seus pacientes pela cidade ou pelo campo atitude esta que mais tarde foi esquecida pelos pósfreudianos que burocratizaram o processo Os protocolos da análise didática tornaramse cada vez mais rígidos Lacan não aceitava essa mudança Por que os discípulos de Freud transformaram o rigor que lhe era tão caro em rigidez Para responder a essa pergunta devemos retroceder ao verão de 1923 quando a descoberta de um câncer em Freud causou pânico em seus discípulos O medo de que o professor os deixasse sem que legitimasse um protocolo de formação permitiu que engessassem as regras da formação cada vez mais O medo de não saber lidar com o singular com o caso a caso colocouos em uma posição defensiva e dogmática O encontro com o Real em vez de produzir uma invenção produziu uma retração Freud se espantava que os psicanalistas não notavam a elasticidade das convenções e preferiam submeterse a elas como a regulamentos tabus DIDIERWEILL et al 2001 p 14 É interessante notar que Freud viveu mais quinze anos bastante produtivos mas as normas criadas por seus discípulos na eminência de sua morte continuam vigorando até hoje A grande cisão de Lacan com a IPA aconteceu em 1963 quando a Sociedade Francesa de Psicanálise SFP à qual pertencia Lacan pediu sua filiação à IPA A IPA impôs à SFP 13 condições para sua admissão A 13ª condição era riscar os nomes de Jacques Lacan e Françoise Dolto de sua lista de analistas didatas A maioria dos membros da SFP votou a favor dessas condições e muitos deles eram analisandos de Lacan Foi assim que Jacques Lacan rompeu com eles e foi expulso da IPA Dá para ver aqui que a função de analista didata era usada como embate de poder Numa palavra para Lacan formar um analista era acima de tudo dar todas as oportunidades para que algo da ordem do analista se realizasse Ou para dizer de outra forma para que algo se atenuasse não tanto de seu narcisismo como dizem repetidamente mas das certezas que o eu tira da sua fantasia fundamental DIDIERWEILL SAFOUAN 2009 p 88 Já na década de 1950 no artigo Situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956 Lacan tinha deixado claro que não aceitava os protocolos de formação do analista que vigoravam na IPA Não há uma justa medida não há garantias Lacan se preocupava com o rigor mas isso não condizia com um saber padronizado formatado há um real em jogo na própria formação do psicanalista afirmava ele ao anunciar em 1967 um princípio o analista só se autoriza de si mesmo LACAN 1967 Lacan reencontra Freud ao dar peso à formação do analista através de sua análise pessoal da sua formação cultural e da relação transferencial tirando da instituição o poder de autorizar um analista Mas o que significa essa frase de Lacan de que o analista só se autoriza de si mesmo Segundo JacquesAlain Miller essa frase é uma proposição multifacetada sob uma faceta pode querer dizer que o analista se existisse seria um sujeito não sugestionável numa segunda faceta sugere que o analista não existe que ele deve ser considerado no um a um e que em psicanálise não existe padrão uma terceira possibilidade é que se trata de um slogan subversivo e irônico perfeitamente afinado com o espírito da época em que foi formulado outubro de 1967 Era dizerlhes senhores vocês tentaram inutilmente vocês serão ultrapassados não conseguirão fazer com que os futuros psicanalistas venham lhes pedir permissão para se instalarem MILLER 2005 p 204 Fora da dimensão provocativa há uma rigorosa organização que Lacan mostra antes ainda em 1964 após sua excomunhão da IPA ele usa o termo excomunhão numa alusão de que a comunidade psicanalítica era uma Igreja no ato de fundação da sua Escola Lacan criou o significante Escola em lugar de Associação ou Sociedade e tinha razões para isso Os membros de uma Sociedade se juntam por uma identificação comum entre si Os membros de uma Escola são ligados pela relação com o saber com o que se pode saber e transmitir da psicanálise diz Jorge Forbes 1992 Uma transmissão feita pela transferência sem garantias sem transformar o saber da psicanálise em saber do mestre 1 A formação assim no ato de fundação da Escola Freudiana de Paris em 21 de junho de 1964 Lacan descrevia um quadro preciso da formação dividido em três seções Seção de psicanálise pura Seção de psicanálise aplicada e Seção de recenseamento do campo freudiano LACAN 1964b A Seção de psicanálise pura era composta de três subseções Doutrina da psicanálise pura o ensino da teoria Crítica interna de sua práxis como formação uma crítica da própria Escola e Supervisão dos psicanalistas em formação Essa seção não se restringia aos médicos e dava as bases para a formação do analista Podemos dizer que esse é o tripé que continuou valendo até hoje A Seção de psicanálise aplicada era direcionada aos médicos psicanalisados ou não e se compunha de três subseções Doutrina do tratamento e de suas variações Casuística e Informação psiquiátrica e prospecção médica A Seção de recenseamento do campo freudiano deveria manter um comentário contínuo do movimento psicanalítico fazer a articulação com as ciências afins e preservar a ética da psicanálise que é a práxis de sua teoria Essa divisão por mais canônica que possa parecer não tem mais sentido hoje na perspectiva de uma clínica do Real não mais pautada pelas estruturas Evolui para fundir aplicada e pura em uma única seção Em nota anexa ao ato de fundação Lacan elaborou um guia do usuário com sete pontos que são propostas elementares e rigorosas não baseadas em uma hierarquia institucional mas em práticas efetivas da psicanálise 2 O passe como instrumento de avaliação voltando ao princípio de que o analista se autoriza de si mesmo retomo o que dizia JacquesAlain Miller a última faceta desse princípio tem a ver com a inauguração de uma legitimidade nova a da Escola de Lacan sem standards mas não sem princípios nem sem rigor A formação lacaniana por não ser standardizada é muito exigente MILLER 2005 p 205 Lacan criou um dispositivo de verificação o passe que depois ele mesmo chamou de um fracasso quando da dissolução da Escola Freudiana de Paris em 1980 O analista pode querer se tornar psicanalista da própria experiência e para isso Lacan cria duas categorias a primeira o AME analista membro da Escola constituído simplesmente pelo fato de a Escola reconhecêlo como psicanalista que comprovou sua capacidade sendo assim um título recebido e a segunda categoria o AE analista da Escola é quem demanda formalmente esse reconhecimento dando testemunho de sua análise é um título solicitado Portanto AME é um título que depende de uma competência e essa competência é reconhecida pelos seus pares enquanto o AE é um título que depende de uma performance DIDIERWEILL SAFOUAN 2009 p 42 O analista da Escola deveria analisar a experiência da Escola e enriquecer a elaboração coletiva da Escola Um AE definese pelo passe o candidato chamado passante relata sua experiência analítica a dois passadores analisandos que ainda não chegaram ao final da análise O passe não garante a qualidade do analista nem é um modelo de comparação com um ideal Não é necessário passar por esse dispositivo é uma escolha Com a Proposição de 67 Lacan quis ir no sentido contrário à IPA que dizia que um psicanalista só poderia ser nomeado se aprovado por uma instituição a ela filiada é um ato inovador pois sai do registro da garantia e entra no registro da consequência O passe é uma perspectiva de Escolas e não garantia de análise pessoal É preciso ir além sair do mutualismo e analisar a Escola se a escolha for fazer o passe para ganhar essa denominação Para concluirmos a respeito do que significa a frase o analista só se autoriza a si mesmo podemos trazer aqui as palavras de Jorge Forbes É uma frasearmadilha O si mesmo é diferente do eu mesmo Se a pessoa acha que sustentar uma clínica é a partir do eu mesmo então ela não pode sustentar clínica nenhuma porque a clínica psicanalítica não é uma clínica egoica O si mesmo é exatamente o que a pessoa não sabe o que é Forbes 2009 Não só na base da instituição do passe se fazia sentir o rigor Assim como Freud tinha seu grupo Lacan tinha seus alunos que seguiam seus seminários que o acompanhavam na Escola e ser aluno de Lacan não era sem consequências Era esperado que o aluno tivesse uma sólida formação para fazer parte desse grupo formado por pessoas dos mais variados campos do conhecimento juristas matemáticos filósofos etnólogos e professores além de médicos Eram pessoas que tinham um bom domínio de línguas de literatura de filosofia e história O próprio Lacan tinha uma formação invejável conhecedor de Hegel Spinoza Kojève e Koyré só para citar alguns era um grande orador com um estilo próprio e como Freud instaurou uma transmissão carismática aos seus alunos LACAN E O ENSINO DA PSICANÁLISE EM VINCENNES A formação do analista da transmissão da psicanálise continuou sendo da maior importância para Lacan No final de 1974 ele é convidado como Diretor Científico a fazer uma proposta para o Departamento de Psicanálise do Centro Universitário Experimental de Vincennes universidade que havia sido fundada em outubro de 1968 Peutêtre à Vincennes LACAN 1974 neste curso de psicanálise Lacan lança as bases dos ensinamentos de Freud por meio das quais um sujeito pode teorizar sua própria análise a ideia era que os ensinamentos ajudariam o analista a se defrontar com os ganhos da sua própria análise a saber não tanto para o que ela serviu mas do que ela se serviu Assim não se tratava do ensino de Lacan propriamente dos seus seminários mas de ajudar o analista com as ciências de mostrar que essas ciências se renovam no encontro com a psicanálise As ciências conexas aos ensinamentos psicanalíticos eram antifilosofia linguística lógica e topologia Lacan pensou em uma teoria que pudesse subsidiar o analista em formação a pensar a psicanálise a pensar sua própria análise 1 Antifilosofia a ideia da antifilosofia é a de uma ciência que advenha do discurso universitário como educativa Não é a história das ideias mas chegar ao cerne da filosofia à sua raiz indiscutível Em Aprender a viver filosofia para os novos tempos Ferry 2010 reduz aí as várias filosofias que segundo ele são os diversos modos de enfrentamento da morte ou em termos lacanianos como dar conta da não existência da relação sexual Essa ideia das várias filosofias de encontrar uma saída universal uma regra na qual você pode pautar sua vida para escapar da morte não funciona é um sonho do qual só é possível despertar no um a um no particular 2 Linguística não interessava estudar a linguística em si mas ver como ela se transforma com a psicanálise A linguagem o simbólico faz a ligação entre o imaginário e o Real Os estudos da linguagem encontram a psicanálise em dois pontos de convergência diz Lacan 1 na gramática enquanto essa faz serra do sentido isto é recorta a dimensão diretamente apreensível do sentido permite denunciar a ilusão da evidência de um significado colado ao significante e 2 no equívoco isto é exatamente nesse espaço de vacilação do sentido Essas duas dimensões interessam ao psicanalista porque é na falha do sentido que ele trabalha 3 Lógica a lógica matemática é uma ciência do Real que através de pressupostos e de uma racionalidade que escapa às palavras permite o acesso ao impossível 4 Topologia uma área da matemática que captura algo do Real O nó a trama a fibra as conexões a compacidade todas as formas em que há falha ou superposição as formas topológicas fornecem ao analista um apoio que não seja pela metáfora pelo simbólico mas sim pelo Real Uma proposta própria à clínica pósedípica a clínica do Real A FORMAÇÃO DO ANALISTA NO SÉCULO XXI Fazemos uso de metáforas para tentar por meio da linguagem dizer o que acontece em uma análise Mas a linguagem nem sempre dá conta há um indizível falta alguma coisa Como descrever o gesto de um analista Como dizer aquilo que toca o corpo Se Lacan convoca a antifilosofia a linguística a lógica e a topologia não é pelo saber constituído que elas representam mas enquanto ferramenta para a psicanálise construir seu próprio campo teórico Com a topologia Lacan estava se aproximando da monstração o gesto do analista que escapa às palavras ao sentido Na experiência de nossa Clínica de Psicanálise no Centro de Estudos do Genoma Humano CEGH da Universidade de São Paulo USP assistimos à entrevista de pacientes com Jorge Forbes e Mayana Zatz Como descrever o gesto do analista pinçando o gozo do paciente Como dizer da angústia do paciente ao ser tocado É um exercício de monstração um dos pilares responsáveis pela formação dos analistas no Instituto de Psicanálise Lacaniano IPLA É por meio da monstração que lançamos o quarto pilar da formação do analista para a psicanálise do século XXI que tem sua base mais forte na análise pessoal Um instituto de formação em psicanálise não pode se colocar como concessionária ou autorizadaLacan foi contra tudo isso que Lacan lutou em relação à IPA à padronização Um instituto de formação tem de formar o psicanalista do século XXI formação própria à clínica do Real do sentido a menos do ressoar da monstração Em uma psicanálise que não visa mais a atingir uma verdade escondida através da interpretação mas tocar o corpo do sujeito por meio do ato analítico a palavra é insuficiente para dar conta do ato Por isso o gesto do analista é um exercício de monstração Então o que diferencia a formação do analista do tempo de Freud e de hoje A base da formação lacaniana continua sendo o tripé análise pessoal estudo e supervisão Acrescentaríamos a esse tripé a monstração própria à clínica do Real Da mesma forma o analista interpreta e interfere na cultura Daí o psicanalista cidadão que além de escutar também se coloca nas questões do dia a dia posicionase no mundo e legitima o futuro O IPLA implicado na formação do analista cidadão lançou em 19 de outubro de 2012 a newsletter O mundo visto pela psicanálise com textos de quatro editorias Acontece Educação Saúde e Sociedade escritos por psicanalistas É uma forma de manter a virulência da psicanálise sua difusão no mundo na cultura É a responsabilidade que temos de honrar a herança que recebemos de Freud por isso o rigor a entrega a implicação Volto então ao exposto no início deste capítulo na diferença radical entre a formação de um analista e de um outro profissional qualquer a formação do analista é singular porque passa essencialmente pelo divã pela relação com seu inconsciente e com seu desejo para depois trabalhar o desejo do outro e sustentar sua posição O que sustenta a posição do analista além da sua análise pessoal é o desejo o desejo de analista que é diferente do desejo de ser analista O desejo do analista não é da ordem do fazer do curar não é um desejo de cura O desejo do analista é o de transformar o particular em singular fazer o analisando descobrir aquilo que o faz diferente e responsabilizarse por essa diferença Chegase à singularidade à sua diferença absoluta quebrando a expectativa do todo da completude O desejo do analista não é um desejo puro É um desejo de obter a diferença absoluta aquela que intervém quando confrontado com o significante primordial o sujeito vem pela primeira vez à posição de se assujeitar a ele Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite porque é fora dos limites da lei somente onde ele pode viver LACAN 1964a p 260 O analista põe de si põe o seu corpo e seu desejo na relação analítica Ele se interessa por seus analisandos com uma curiosidade inesgotável e infantil Como diz JacquesAlain Miller Um analista continua a aprender com seu inconsciente Ser analista não o exonera desse testemunho Ser analista não é analisar os outros é a princípio continuar a se analisar continuar a ser analisando é uma lição de humildade MILLER 2008 p 28 Um analista conduz uma análise do começo ao fim E sua formação nunca termina Para finalizar um decálogo de Jorge Forbes 1990 Ser Analista 1 É valer mais quando não se é que quando se é 2 É emprestar palavra corpo e ser para ser feito do que se quiser 3 É amar incondicionalmente sem qualquer reciprocidade na paixão da ignorância 4 É chegar sem ser avisado no lugar da surpresa ou da assombração 5 É passar por esquisito maleducado chato sem poder justificar 6 É trabalhando o bem vir a ter horror do seu ato 7 É poder ser paciente no lugar do Outro 8 É não governar nem educar 9 É saber o que faz quando não sabe o que diz 10 É ter saudade sem reivindicar quando se chega ao fim Referências bibliográficas DIDIERWEILL Alain WEISS Emil GRAVAS Florence 2001 Quartier Lacan Rio de Janeiro José Nazar Companhia de Freud 2007 DIDIERWEILL Alain SAFOUAN Moustapha 2007 Trabalhando com Lacan Rio de Janeiro Jorge Zahar 2009 FERRY Luc 2006 Aprender a viver filosofia para os novos tempos Rio de Janeiro Objetiva 2010 FORBES Jorge Ser analista In Colóquio Psicanálise Identidade e Diferenças do Instituto de Estudos Avançados da USP São Paulo 1990 Excerto do trabalho apresentado no Colóquio Psicanálise Identidade e Diferenças do Instituto de Estudos Avançados da USP Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbravessodoavessoseranalista2html Acesso em 17 de dezembro de 2013 A escola de Lacan Do conceito à prática e as condições de suaefetuação In A escola de Lacan a formação do psicanalista e a transmissão da psicanálise Coleção Biblioteca Freudiana Campinas Papirus 1992 A mulher e o analista fora da civilização 27 de abril de 1996 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrassetsfilesAmulhereoanalistaforadacivilizacaopdf Acesso dem 17 de dezembro de 2013 Para lembrar n 1 n 2 e n 3 Sinopse de Teresa Genesini In ClínicaEscola com Jorge Forbes São Paulo abr 2009 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrcursoseconferenciasparalembrar1clinicaescolacomjorgeforbeshtml Acesso em 17 de dezembro de 2013 FREUD Sigmund 1914 A história do movimento psicanalítico In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XIV Rio de Janeiro Imago 2006 p 1573 1919 Sobre o ensino da psicanálise nas universidades In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XVII Rio de Janeiro Imago 2006 p 1859 1926 A questão da análise leiga In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XX Rio de Janeiro Imago 2006 p 175248 JONES Ernest 1961 Vida e obra de Sigmund Freud Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975 LACAN Jacques 1956 Situação da psicanálise e a formação do psicanalista em 1956 In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 p 46195 1958 A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1964a O seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 1964b Ato de fundação In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 23547 1967 Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola In Outros escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 p 24864 1974 Peutêtre à Vincennes Disponível em httpespacefreudpagesperso orangefrtopospsychapsysemvincennehtm Acesso em 17 de dezembro de 2013 LAPLANCHE Jean PONTALIS JeanBertrand 1982 Vocabulário da psicanálise São Paulo Martins Fontes 2001 MILLER JacquesAlain 1996 O sobrinho de Lacan Rio de Janeiro Forense Universitária 2005 2008 Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan entre desejo e gozo Rio de Janeiro Jorge Zahar 2011 ENCONTROS DESENCONTROS E VAZIOS COMO É A PRESENÇA DO ANALISTA LACANIANO NA CIDADE LIÉGE LISE INTRODUÇÃO Este texto visa a demonstrar que o analista lacaniano tem por missão interpretar os impasses do nosso tempo incidindo no laço social Convida para um olhar além das evidências e aponta para a responsabilidade singular diante daquilo que dos atos humanos não se explica Parte da premissa de que para a psicanálise o ser humano é cultural Ninguém nasce homem ou mulher mas se constrói nos laços que estabelece com a família com os amigos com o trabalho Defende a seguinte tese perante os caminhos e descaminhos dos fenômenos sociais resultantes do novo laço social e dos novos sintomas o analista lacaniano não guarda a famosa neutralidade analítica Ele se mostra se expõe inventa modos de fazer sua voz e a psicanálise passarem na cultura O analista cidadão conceito que expressa esse modo do analista se presentificar na cultura além da práxis clínica é o que o texto irá analisar Para ilustrálo mostraremos formas de intervenção do analista nos mais diversos contextos sociais Para tanto vou me servir de exemplos paradigmáticos que mostram como um analista empresta seu corpo sua escuta e sua voz para inscrever a psicanálise na cidade É pela via do desejo que o ser humano se inscreve na cultura Para que construa laços e ingresse na civilização é necessária uma dolorosa renúncia na sua satisfação e narcisismo A cultura é invenção humana Nas suas manifestações o ser humano expressa seu potencial criativo seu maior patrimônio A cultura é esforço humano para lançar pontes sobre o abismo É preciso criar a partir da falta É preciso pelo trabalho e pela linguagem organizar o mundo humano e a natureza PELLEGRINO 1988 p 97 O ANALISTA CIDADÃO E O LAÇO SOCIAL EM QUE EXERCE SUA CLÍNICA Sigmund Freud quando da invenção da psicanálise inaugurou um novo estatuto do sintoma expressão de um desejo proibido recalcado que era gerador de inibição e sofrimento Freud inventava a psicanálise para tratar pessoas que viviam em uma sociedade onde a expressão da vida íntima e a satisfação pessoal o gozo eram proibidos escondidos e silenciados A diferença entre o público e o privado era evidente A organização social era piramidal estratificada e visava a um ideal Para atingilo era indispensável afastar obstáculos entre outros o peso do passado os traumas A psicanálise era vista e designada como a cura do passado a cura da memória FORBES 2003 A estruturação do sujeito psíquico estava calcada no complexo de Édipo e na culpa como fundamento moral e organizador da vida em sociedade A culpa como resultante do desejo incestuoso era o elemento ordenador da satisfação A figura do pai encarnava o operador dessa função outro nome da castração para unir desejo a lei Na figura do pai estampavase o modelo de orientação das identificações e escolhas Há várias passagens nas obras de Freud em que o pai se referenda como figura central na constituição do psiquismo e ordenador do pacto necessário para a vida em grupo Destaco três referências que trazem em comum esse destaque ao pai Totem e tabu 1913 texto que se tornou uma referência antropológica ensaio freudiano da passagem do homem do estado natural à cultura A dissolução do complexo de Édipo1924 inspirado na tragédia grega referência presente ao longo da sua obra articula a figura paterna ao complexo de castração e Moisés e o monoteísmo 1939 desenvolve a função do pai na psicanálise a partir das raízes judaicas O referencial edípico possibilitou um entendimento do descompasso do homem no mundo dos impasses com o desejo e sua expressão em uma sociedade repressora e disciplinar No entanto esse modelo social sofre uma mudança radical com o advento da globalização A modernidade se consagrou pela valorização da razão da objetividade e do progresso científico que se refletia também na forma como se dava a organização das relações sociais de trabalho e familiares Ferry 2008 diz que o movimento de maio de 1968 e sua crítica à alienação visando à quebra de normas e padrões contribuíram para o advento da globalização na medida em que ao se defender a contracultura e a revelia aos modelos paradoxalmente se abriu a perspectiva de o indivíduo realizar todas as suas aspirações na lógica da diversão do hiperconsumo e do mercado Desde o final do século XX e início do século XXI vivemos o fenômeno da globalização Um processo de integração econômica social política e cultural de impactos também na subjetividade um tempo de mudança no laço social de um novo encontro do ser humano com a linguagem FORBES 2004a Vivemos em uma sociedade global policêntrica em que independentemente das fronteiras as pessoas se relacionam e se organizam sob uma nova ordem política Os impasses dessa transformação ocorrem nos mais diversos campos na ciência nas instituições sociais no meio ambiente e na construção da intimidade É um novo laço social que não tem mais um ordenador modelar e vertical aos moldes paternos O sujeito vive uma desorientação nos seus modos de satisfação Essa quebra de orientação é sentida nos mais diversos espaços sociais família escola empresa e grupamentos culturais A informação e a tecnologia estão na dianteira dessa mudança Nas palavras de Jorge Forbes com a expressão homem desbussolado refirome ao habitante de uma nova era globalização pósmodernidade ainda nenhum termo é suficientemente bom para nomeála sempre causando polêmicas aqui uma nova era dizia diferente da anterior por não ser prioritariamente paiorientada FORBES 2004a Os novos sintomas depressão violência inusitada fracasso escolar toxicofilias transtornos alimentares e doenças psicossomáticas são novas formas de expressão do sofrimento subjetivo em decorrência da desorientação pulsional A eficácia clínica diante desses novos sintomas pede uma mudança na intervenção e condução do tratamento por parte do analista São sintomas que têm como característica o curtocircuito do gozo ou seja uma não resposta à intervenção da palavra como decifradora de um saber e portadora de sentido Hoje estamos no momento do gozo ilógico e desregrado podemos destacar a impotência da palavra dialogada para alterar o mau estado da pessoa FORBES 2004a O segundo ensino de Lacan também nomeado como a clínica do Real oferece as ferramentas para a construção de saídas diante da desorientação pulsional fruto do novo laço social A lógica do Real vem ao encontro do sujeito pósmoderno não mais orientado pelo Outro Ao apontar para o não sentido para o limite no saber coloca o acento na ação na responsabilidade singular diante das escolhas Diante dos novos sintomas cabe ao psicanalista intervir de maneira a operar na modificação da relação do sujeito com seu gozo Nas palavras de Jorge Forbes esse Real fora do sentido é mais presente nos tempos atuais da globalização que antes na época da industrialização Foi preciso para Lacan um avanço uma segunda clínica que não fosse linear mas borromeana onde o gozo entendase aqueles sentimentos desacomodados das satisfações prazerosas prêtàporter da civilização desde o primeiro momento desde o primeiro contato com o analisante pudesse ser tratado FORBES 2006 O Quadro 1 ajuda a resumir o que foi colocado até aqui Esses tempos de gozo explícito acabaram com a honra transformando a vida em pura sobrevivência insossa As consequências não tardaram violência despropositada toxicomanias fracasso escolar euforia depressiva pânico Se uma análise for capaz de atingir o ponto de vergonha íntima do analisando em consequência acordará a honra que o explica e o luxo que o recobre FORBES 2003 O inconsciente é a política afirmou Lacan em 1967 Essa afirmação reforça a transindividualidade do inconsciente e sua ligação com as transformações sociais e históricas reiterando a pertinência da presença do analista na sociedade O inconsciente é a política é o contrário de uma redução tratase de uma amplificação do transporte do inconsciente para fora da esfera solipsista para colocálo na cidade MILLER 2011 Em uma sociedade que era mais organizada nos moldes da sociedade moderna a presença do analista no espaço público não era tão relevante contrariamente ele representava um refúgio à civilização e ao sofrimento decorrente de uma sociedade repressora Uma equação inversamente proporcional se revela na medida em que em uma sociedade menos organizada há uma maior necessidade de presença do analista no espaço público O analista cidadão na definição de Jorge Forbes diz da exigência de um tempo em que a doutrina psicanalítica é quem está mais bem preparada às necessárias leituras de uma época além da orientação paterna na qual o homem duvida e teme sua própria liberdade Legitimar o futuro se faz necessário para evitarmos os movimentos reacionários passadistas que se apresentam Aos analistas tomarem a palavra não só a escuta FORBES 2012 Confrontar o arcabouço teóricometodológico da psicanálise com a nova realidade é o grande desafio do analista que tem o compromisso de transmitir a lógica da incompletude no mundo O corpo do analista não precisa de proteção à civilização FORBES 2004b Tal afirmação implica que o analista se coloque nos espaços públicos intervindo de modo a evitar que se cristalizem interpretações reacionárias no entendimento dos fenômenos sociais como a violência inusitada Recorrer a protocolos psiquiátricos morais e religiosos vai na contramão da responsabilidade Da parte do analista a transmissão também muda de visada Calcado na monstração o analista sustentase no mundo com sua presença e seu corpo além da palavra no risco e na aposta Na sequência serão mostrados quatro exemplos paradigmáticos que buscam ilustrar o que foi discutido até aqui O psicanalista Jorge Forbes desde 2004 é curador e conferencista do Café Filosófico da CPFL Cultura Sua participação nesse projeto traz convidados nacionais e internacionais das mais diversas áreas pensadores políticos cientistas médicos artistas ministros de Estado escritores juristas psicanalistas jornalistas e arquitetos para debater sobre os impasses da subjetividade na contemporaneidade Em abril de 2009 o psicanalista Jorge Forbes junto com a geneticista Dra Mayana Zatz teve uma participação decisiva na audiência pública a primeira na história do Supremo Tribunal Federal para discutir a ADIN contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança que permitia a pesquisa com célulastronco embrionárias Defender a continuidade das pesquisas era trabalhar em prol da vida Sem fugir da difícil pergunta quando começa a vida humana norteou o debate defendendo a posição segundo a qual a continuidade das pesquisas era uma questão ética A pesquisa o desejo e o compromisso pela vida O Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA conquistou um prêmio científico internacional no 16º Congresso Internacional da World Muscle Society em outubro de 2011 em Algarve Portugal Efeitos da psicanálise nas desordens neuromusculares foi um trabalho de pesquisa apresentado pelas psicanalistas Teresa Genesini e Elza Mendonça de Macedo É fruto do trabalho empreendido pela equipe de analistas do instituto sob direção de Jorge Forbes e Mayana Zatz na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano CEGH da Universidade de São Paulo USP Esse trabalho mostra a parceria inusitada entre a genética e a psicanálise e sela o sucesso de mais de sete anos de um projeto pioneiro no mundo A psicanalisanda e paciente do CEGH Edione de Castro Souza lançou em outubro de 2012 o livro autobiográfico Serelepe A autora portadora de distrofia muscular do tipo cinturas conta sua história após o encontro que teve com a psicanálise em especial com a psicanalista Dra Claudia Riolfi a partir do qual teve sua vida transformada e se autorizou a escrever a forma singular e criativa de lidar com a doença genética CONSIDERAÇÕES FINAIS A presença do analista lacaniano na cidade no espaço público além do consultório se faz necessária em decorrência dos impasses provocados pela mudança no laço social que levou a novas formas da constituição da subjetividade humana dos modos de satisfação e dos sintomas Novos desafios se colocam ao psicanalista nos dias de hoje pois ele fiel ao legado freudiano tem por princípio ético manter a virulência e a lógica da psicanálise não recuando diante do convite singular e intransferível de sustentar uma prática clínica e uma intervenção na cultura compatível com os impasses do sujeito no século XXI Referências bibliográficas FERRY Luc Famílias amo vocês política e vida privada na globalização Rio de Janeiro Objetiva 2008 FORBES Jorge Vergonha honra luxo 2003 In Seminário Vergonha Honra Luxo São Paulo 9 abr25 jun 2003 Apresentação Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrjorgeforbesseminariosvergonhahonraluxo2003html Acesso em 14 de maio de 2013 Psicanálise do homem desbussolado As reações ao futuro e o seu tratamento In IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise Comandatuba 4 ago 2004a Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigospsicanalisedo homemdesbussoladohtml Acesso em 14 de maio de 2013 O analista como ensinante 22 abr 2004b Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigosanalista comoensinantehtml Acesso em 17 de dezembro de 2013 O homem que tudo explicava 20 abr 2006 Disponível em httpwwwjorgeforbescombrbrartigoshomem tudoexplicavahtml Acesso em 17 de dezembro de 2013 Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1913 1912 Totem e tabu In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud vXIII Rio de Janeiro Imago 1996 1924 A dissolução do complexo de Édipo In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud v XIX Rio de Janeiro Imago 1976 p215217 1939 Moisés e o monoteísmo Esboço de psicanálise e outros trabalhos In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago v XXIII 1974 Instituto da Psicanálise Lacaniana IPLA Efeitos da psicanálise nas desordens neuromusculares In 16º Congresso Internacional da World Muscle Society Algarve Portugal out 2011 LACAN Jacques 1966 A ciência e a verdade In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998 19661967 O seminário Livro XIV La lógica del fantasma Inédito Versão EFBA em CDROM MILLER JacquesAlain Intuições milanesas Opção lacaniana Online São Paulo n 5 jul 2011 PELLEGRINO Hélio A burrice do diabo Rio de Janeiro Rocco 1988 SOUZA Edione de Castro Serelepe Jundiaí In House 2012 A PRÁTICA CLÍNICA REINVENTADA É POSSÍVEL SER ANALISTA SEM PÔR DE SI NA TEORIA CLAUDIA RIOLFI INTRODUÇÃO Dême um texto assinado por um psicanalista e quase invariavelmente eu lhe darei um leitor se queixando de sua falta de clareza e de inteligibilidade Ora não se encontra o sujeito da frase ora nos confundimos porque um traço animado foi atribuído a um objeto ora a oração não terminou e por aí vai É mesmo necessário que as coisas sejam sempre assim Quando isso acontece tratase realmente de uma dificuldade inerente da psicanálise ou de um fenômeno que precisa ser examinado com maior cuidado Apostamos na segunda opção Nossa hipótese de trabalho é a que se segue por não conseguirem fundar para si um lugar enunciativo único entre o universal e o singular as novas gerações de psicanalistas vacilam na execução dos procedimentos necessários para reinventar a prática clínica e reescrever a psicanálise A nosso ver os alunos dos fundadores da psicanálise em especial os da terceira e quarta gerações fascinados com o heroísmo das gerações precedentes tendem a repetir os gestos e as palavras de seus mestres de maneira irrefletida e atemporal Para além do efeito cômico esse mimetismo faz com que eles fiquem no limbo Não conseguem oscilar do lugar de semblante de objeto tão propalado na clínica para o autoral necessário para escrever Consequentemente os textos escritos por eles se localizam em um não lugar Essa dificuldade tem afastado a sociedade civil da psicanálise e colaborado para aumentar a suspeita de falta de rigor e de misticismo que sempre pesou sobre nossa práxis Por esse motivo este volume foi pensado para barrar esses efeitos nefastos Para tanto comecemos refletindo a respeito de sua instalação Aparentemente na formação dos novos estamos encontrando grandes dificuldades em concretizar aquilo que Lacan nomeava como ensino verdadeiro aquele que consegue despertar uma insistência naqueles que escutam LACAN1954 19551985 p 260 Posto isso cumpre refletir a respeito das causas da dificuldade de despertar uma insistência Em nossa avaliação estamos claudicando na instauração de um processo de dupla incidência por um lado garantir o contato com a produção acumulada em nosso tempo produção que fornecerá os instrumentos para o exercício qualificado de nossa clínica Por outro gerar uma consequência tal que nos obrigue a inventar uma solução singular para o desejo Em outras palavras a formação precisa deve proporcionar a quem dela se beneficia uma convocação para realizar uma ação próxima daquela que ao redigir a abertura de sua coletânea intitulada Escritos Jacques Lacan 1966 qualificou nos seguintes termos colocar algo de si p 11 PONDO DE SI NA TEORIA NECESSIDADES E CAMINHOS Mesmo não sendo o caso de neste capítulo estendermonos a respeito das características dos textos bemsucedidos poderemos dizer brevemente que para além de expressar aquilo que precariamente chamamos de elegância de raciocínio o texto precisa estar escrito no vernáculo para que possa inclusive se for o caso ser refutado pelos leitores Esconderse por detrás de palavras ambíguas no caso da redação de textos que têm como objetivo transmitir a psicanálise não é análogo ao ato de equivocar na clínica É mais passível de comparação com o ato de se esconder embaixo da cama de mamãe Assim caso deseje escrever um analista precisa necessariamente realizar as operações necessárias para diferenciar um amontoado de palavras de algo que merece o nome de texto Para tanto minimamente é necessário que a pessoa que escreve 1 se aproprie do legado cultural de forma pertinente e rigorosa 2 consiga fazer um recorte nesse legado para a partir do que ressignifique inventar soluções singulares para o seu desejo e 3 consiga publicálas isto é faça com que o fruto de seu trabalho seja legitimado por seus pares A Tabela 1 mostra algumas das condições para que essas operações sejam obtidas Propostas para a formação das novas gerações de analistas que escrevem Do que queremos nos afastar Para onde queremos caminhar Pesquisa Utilizar procedimentos supostamente objetivos para dar valor de verdade às afirmações a respeito da realidade empírica Assumir a responsabilidade ética de decidir como interpretar os dados colhidos na chamada realidade empírica Formação para o ato de investigar Dominar uma dada técnica que supostamente garante ao investigador a posição de um executor neutro 1 Sustentar o esforço necessário para ler a letra 2 Reconhecerse enquanto autor que precisa dar apresentação ao seu recorte singular 3 Aprender a ter o rigor necessário para sustentar um recorte qualquer Presença do desejo inconsciente no texto Tende a ser ignorada escamoteada recalçada ou foracida Tende a receber um tratamento que lhe dê um destino pois há uma preocupação com o estilo singular e seus efeitos de ressonância Linguagem Compreendida como mero instrumento de comunicação a ser manejada no registro da monossemia Compreendido como a matériaprima do pensamento O ato de relatar as pesquisas clínicas não está longe da retórica e por este motivo o trabalho com a língua é parte constitutiva da formação do analista Manejo do discurso escrito Tende a ser feito no nível instrumental submetido a regras universais e anônimas Tende a ser feito no nível constitutivo do próprio ato de pensar Considerar a escrita como suporte do pensamento é central Processo de formação para a escrita Realizado nos moldes industriais anônimo em grandes laboratórios Realizado nos moldes artesanais por meio de um processo dialógico com alguém que se dispõe a pelo menos durante um tempo sustentar a transferência Analista que escreve textos É aquele que consegue estabelecer relações causais em torno do fenômeno estudado ou ainda aquele que repete palavras de ordem dos textos lidos É aquele que ao ser interpretado por seus escritos mantém ao escrever a infinidade de sua análise e consequentemente a renovação com a psicanálise Posto isso tornase imperativo refletir a respeito do tipo de formação que poderia levar uma pessoa a sustentar os processos descritos na Tabela 1 Lendo a percebese que uma intensa parceria entre formador e formado está pressuposta Apostamos portanto em uma nova distribuição de papéis Ao novato caberia encontrar um modo de mobilizar suas questões singulares para inventar expressões culturais que possam honrálas À instituição na qual ele escolheu realizar seu percurso caberia construir um espaço cujos contornos permitam aos novos inventar um lugar enunciativo entre o universal e o singular Um analista em formação que se responsabiliza pessoalmente pelo imperativo de que haja psicanálise não só investe na própria formação como incide sobre a dos seus pares Ao escrever no embate com o leitor parceiro imaginário o autor se constitui ao renovar seu compromisso com o Real que insiste a cada vez que ele tenta se apropriar do legado cultural simbólico e partilhar suas elaborações com seus pares por meio da escrita Ao que tudo indica infelizmente o sucesso nessa empreitada é para poucos Se isso é verdade resta nos perguntar os motivos da existência de tantos problemas de escrita e mesmo de textos tão nulos O ACOVARDAMENTO DIANTE DA DERROCADA DA SOCIEDADE HIERARQUIZADA É mais ou menos de senso comum a constatação de que educar alguém era mais fácil quando nossa sociedade hierarquizada permitia a instalação praticamente imediata de um fenômeno conhecido como transferência compreendido como um mecanismo de caráter ininterrupto e constante cuja única variação é o objeto sobre quem é depositado FREUD 1912 Tratase de um tempo no qual os alunos costumavam demonstrar um amor idealizado pelos professores a quem tomavam como modelos Interrogando as origens desse sentimento de respeito e de admiração Freud 1914 p 287 afirmou que ele se devia à transferência do respeito e das expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância Assim na sociedade hierarquizada era mais comum estender aos professores o amor idealizado que um dia sentimos por nossos pais Essa configuração social tinha o seu ônus e seu bônus Por um lado gerava alunos que por serem mais facilmente referidos aos ideais sociais acatavam com facilidade noções como a de trabalho árduo esforço insistência renúncia dos prazeres imediatos em nome de um futuro no qual finalmente poderiam se aproximar do modelo fornecido pelo mestre Por outro justamente na medida dessa submissão gerava alunos que tinham dificuldade para ir além do pai que permaneciam na margem de segurança do velho conhecido Ao longo do livro insistimos para deixar claro que o psicanalista francês Jacques Lacan construiu uma psicanálise além do pai ou seja que pudesse levar alguém a sem cair na loucura ou no cinismo ser ousado e criativo Comentamos que essa sua missão pode ser dividida em dois grandes tempos que ficaram conhecidos respectivamente como a primeira e a segunda clínica de Jacques Lacan De 1953 a 1970 valendose inicialmente de seus estudos da linguística e da antropologia efetuou uma leitura da obra freudiana Durante esse tempo conhecido como sua primeira clínica construiu uma psicanálise do ser falante pertinente ao século XX tempo no qual a hierarquização social era mais sensível favorecendo a idealização das figuras que ocupavam os cargos de maior poder Inspirandose nos trabalhos do linguista Roman Jakobson 1999 Lacan interessouse pelos efeitos da linguagem sobre o ser falante Tomavaa como um sistema simbólico que funciona por dois dispositivos básicos a metonímia eixo sintagmático e a metáfora eixo paradigmático Considerando que a submissão do homem a esse aparelho é o que o torna um sujeito desejante construiu uma concepção de sujeito como efeito de linguagem dividido LACAN 1960 Mobilizando a distância entre o enunciado a frase efetivamente dita e a enunciação lugar simbólico desde onde a frase é dita separou duas instâncias o eu e o sujeito do desejo inconsciente Na instância do eu darseia uma apreensão alienante da realidade fundada na identificação do homem ao seu semelhante e na do sujeito do desejo inconsciente responsável pelas quebras de um fluxo frasal na figura do ato falho por exemplo seria encontrada a verdade do desejo Tratavase de uma clínica referida ao cenário edípico que permanecia como uma matriz de sentido a partir de onde o sujeito interpretava o mundo Referido a uma lei paterna o homem voltavase às conquistas culturais como um meio de dar vazão às suas necessidades pulsionais que uma vez normatizadas pelo complexo de Édipo não encontravam outro meio de expressão Como a educação era vista nesse contexto Era vista como um dos dispositivos por meio dos quais o processo de simbolização poderia se dar Educar consistia portanto em paulatinamente levar o filhote do homem a se deixar atravessar pelas palavras fazendose um ser de linguagem Como interpretávamos o amor à leitura à escrita e à literatura Como expressões de uma bemsucedida submissão do desejo do homem às leis da linguagem As instituições em especial a família e a escola eram estruturadas a partir da primazia do poder paterno favorecendo a ocorrência de um processo chamado de assujeitamento a ser compreendido como efeito da função ordenadora da linguagem Em uma sociedade cuja organização favorecia a instalação de uma estruturação edípica o principal desafio da educação era garantir o acesso à instituição escolar posto que uma vez obtida a inserção do sujeito na sala de aula a educação funcionava homogeneizando os sujeitos que passavam a se identificar com os mesmos ideais Durante mais ou menos cinquenta anos quando não havia problemas concretos que impedissem o acesso do jovem à cultura letrada a falta de meios materiais por exemplo esse estado de coisas funcionou bem Ainda vivíamos em uma sociedade cuja organização edípica era relativamente estável e assim a boa vontade para estudar a língua pátria era mercadoria de fácil alcance na praça da cultura Faz já algum tempo que essa bonança foi substituída por uma ruidosa turbulência Onde quer que se encontrem pessoas dedicadas ao ensino da leitura e da escrita reunidas haverá no ar uma queixa de que as pessoas não conseguem mais escrever de maneira considerada satisfatória pelos leitores Entretanto essa conversa não costuma ir mais longe As explicações que costumamos dar para esse fenômeno são tão nulas quanto as produções analisadas Também elas não passaram pelo filtro da globalização Tendem a ser construídas a partir de um raciocínio condizente com um mundo ainda organizado pela função paterna Não nos iludamos mais Na contemporaneidade se ganhamos em criatividade ao nos vermos livres de ter de seguir o modelo único do pai perdemos ao não termos encontrados modos alternativos de lidar com nossas dificuldades de reconhecer as leis e acatálas que advêm com a introjeção do pai que segundo Freud 1924 caracteriza o declínio do complexo de Édipo Estamos demorando a construir alternativas pedagógicas pois ainda estamos convencidos de que com um pequeno acréscimo de conteúdo ou ajuste de registro podemos sanar os problemas que na verdade demandam uma radical transformação de paradigma Retomemos o que já foi explicitado ao longo do livro agora na direção de avançar conclusivamente Por estar atento a essas mudanças sociais antes mesmo que elas fossem cantadas aos quatro ventos Jacques Lacan alterou os pilares de sua própria obra de 1970 a 1981 quando construiu a teorização que ficou conhecida como a segunda clínica de Jacques Lacan Para tanto revisou prioritariamente a primazia do simbólico que ele dava ao tratar dos registros de apreensão da realidade humana a imaginário instância das identificações e das relações duais b simbólico instância da nomeação que introduz distância na relação dual e c Real instância do que é impossível de ser simbolizado do inominável A principal mudança introduzida por ele foi a partir da constatação de que nossa sociedade foi se tornando horizontalizada abrir mão da primazia do simbólico a favor de uma tentativa de cortar atalho pelo Real De modo apressado e incompleto posto que já se encontrava em idade avançada Lacan mostrou que na sociedade atual aconteceram mudanças importantes na organização social mudanças que dificultaram ou impediram a normatização edípica O homem foi deixando paulatinamente de se referir aos mesmos grandes ideais que antigamente permitiam congregar um grande número de pessoas em torno de um bem comum Deixou de tomar os seus professores como ideais não questionados e passou a investir em facilitações do tipo técnico Assim o pão nosso de cada dia é a apatia o desinteresse a superficialidade a fragmentação a inconsistência Ao invés de reagirmos a esse estado de coisas encontrando modos de educar que prescindam da normatização em série mas não abram mão do rigor necessário para aprender a escrever recaímos para a lamentação estéril Por medo do desconhecido tornamonos incapazes de dar respostas ousadas para as mudanças do mundo retrocedemos e ao o fazer voltamos para um ponto pior que aquele onde estávamos anteriormente em que ao menos certa normatização dos textos estava garantida O resultado dessa escolha equivocada é justamente a entrada do não lugar entre o universal e o singular mencionada na introdução deste texto Como evitar essa tragédia É aí que entra a responsabilidade A RESPONSABILIDADE PELA FUNDAÇÃO DE UM LUGAR ENUNCIATIVO PRÓPRIO Para tratar da função da responsabilidade na fundação de um lugar enunciativo próprio mencionamos primeiramente as elaborações feitas por Jorge Forbes em 2007 em uma palestra de gravação do Café Filosófico da CPFL Cultura elaborações que precederam a escrita de um de seus livros no qual as ideias aqui esboçadas foram desenvolvidas mais longamente FORBES 2012 Naquela ocasião o psicanalista exortou a sua plateia a ousar um destino mais fecundo do que viver pautado por tabelas Sua argumentação foi construída de modo a levar o público a se convencer a favor da necessidade de fazer a passagem do medo ao desejo Mostrou que longe de apenas tornar as coisas mais práticas as tabelas pasteurizam os modos de viver e ser feliz impedindo que o sujeito que delas se utiliza possa inventar expressões singulares Forbes explicou que consistindo em uma reação pouco apropriada ao inesperado o medo é o afeto que nos leva a recorrer às tabelas de controle de uma suposta normalidade Em sua avaliação toda vez que acontece alguma coisa para a qual o homem não tem respostas prontas em vez de inventar uma saída singular para a situação tende a retroceder para uma saída reacionária tentar domar seu desejo por um princípio padronizado Fazendo uma retrospectiva histórica Forbes mostrou que esse princípio padronizado utilizado socialmente para dar a métrica na qual se julga uma suposta normalidade sofreu mutações ao longo do tempo Assim o autor mostrou que grosso modo podemos localizar três grandes princípios organizadores da vida social 1 Princípio divino tratase do princípio ligado à antiguidade clássica e ao cristianismo segundo o qual os humanos deveriam fazer o que era certo de acordo com desígnios divinos que não lhes cabia nem compreender nem questionar 2 Princípio racional tratase do princípio ligado à irrupção do iluminismo por volta de 1600 segundo o qual os humanos deveriam fazer o que era racionalmente certo a se pautar por critérios lógicos e passíveis de serem explicados e compartilhados 3 Princípio Responsabilidade tratase do princípio ligado à revolução tecnológica ocorrida no século XX segundo o qual os humanos devem se responsabilizar pela existência de um futuro para as gerações vindouras Formulado pelo filósofo alemão Hans Jonas esse é o princípio que na avaliação de Forbes pode substituir com grande vantagem os princípios anteriormente mencionados Por concordar com sua avaliação no que segue trazemos mais elementos a respeito do princípio responsabilidade a partir de agora referindonos diretamente à sua fonte Esclareço preliminarmente que os dois primeiros princípios correspondem a uma organização social edípica e foram utilizados para reger a produção de conhecimento por longos séculos Os modos por meio dos quais o terceiro por sua vez pode vir a regêla ainda estão para ser inventados Hans Jonas 19031993 era um filósofo do seu tempo Escrevendo seu livro em 1979 estava atento às transformações impostas às sociedades humanas pelo que chama de possibilidades apocalípticas contidas na tecnologia moderna JONAS 1979 p 97 Tendo em vista o que ele chamava de novo agir o agir muito pouco limitado pela precariedade dos meios técnicos ele acreditava que na contemporaneidade existiria uma necessidade de formular uma ética para o futuro p 95 para resolver os conflitos morais O autor estava preocupado com o aumento do poder do homem sobre o destino da espécie e suas possíveis consequências que exigem uma nova postura ética Por esse motivo ao fazer uma reflexão ética a respeito da civilização tecnológica postulou a necessidade de rever as recomendações feitas por Kant 1980 que no momento de sua elaboração ficaram conhecidas como a filosofia do dever A revisão empreendida por Jonas deviase à sua constatação de que a obra de Kant filósofo para quem as leis morais devem valer para todos os seres racionais e livres havia sido escrita em um momento no qual os progressos técnicos ainda não permitiam ao homem intervir sobre a sua própria natureza Lembremos que a ética de Kant que acreditava no poder da razão e na eficácia da reforma das instituições foi considerada durante muito tempo como expoente da ética iluminista O filósofo alemão postulava que as leis de nossa razão devem se apresentar à vontade em forma de imperativo Tendo desenvolvido a filosofia moral em três obras Fundamentação da metafísica dos costumes 1785 Crítica da razão prática 1788 e Crítica da faculdade do juízo 1790 chamava a lei moral fundamental segundo a qual nossa ação deve ser pautada por uma máxima que possa valer como lei universal determinante absoluta de nossa vontade de imperativo categórico Age de tal forma que a máxima de tua ação possa valer como lei universal da natureza Para o filósofo o imperativo categórico deve respeitar os princípios da racionalidade da autonomia e da personalidade tomar os outros como fins e não como meios de nossa felicidade sem contradição Portanto para agirmos moralmente temos de poder querer que nossa máxima de ação se transforme em máxima universal sem implicar contradições Aqui entra a necessidade de reformulação do princípio racional postulada por Jonas Ao levar em conta as transformações sociais para ler Kant Jonas deuse conta de que a moldura antiga que nos preservava das contradições não consegue mais enquadrar as ações humanas de uma ordem inédita de grandeza com novos objetos e novas consequências JONAS 1979 p 39 que nos convocam a elaborar novas dimensões da responsabilidade nunca antes pensadas por serem desnecessárias Por esse motivo propôs adequar o imperativo categórico kantiano a um novo tipo de ação humana e a um novo tipo de sujeito de modo a permitir que o dever do homem seja em primeiro lugar um dever para com o futuro Seu interesse não incidiu sobre as responsabilidades individuais mas sim sobre uma dimensão coletiva de agir na qual a manutenção da própria existência da coletividade deveria funcionar como um imperativo Escreveu portanto uma nova ética formulada para além do brutal antropocentrismo que caracteriza a ética tradicional JONAS 1979 p 97 Nessa nova ética o primeiro e único imperativo incondicional é o da existência que haja humanidade Jonas formula do seguinte modo o imperativo condizente como o novo tipo de agir humano que seria mais adequado à contingência atual inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer p 48 Seguindo esse imperativo cada qual tem a liberdade caso assim o deseje de arriscar a própria vida mas não a da humanidade Deve levar em conta não só a condição global atual de vida sobre a Terra como também a das futuras gerações Trazendo essa discussão mais ampla para o contexto específico da formação das novas gerações podemos dizer que o imperativo categórico aplicado ao nosso fazer é um dever para com o futuro da própria psicanálise Assim nosso imperativo incondicional é o de que ela exista imperativo cuja realização evidentemente depende do fato de que os psicanalistas possam ser formados à sua altura CONSIDERAÇÕES FINAIS Por nossa posição de sujeito sempre somos responsáveis afirmou Jacques Lacan quando tendo desistido de insistir na configuração edípica que nos levava ao assujeitamento resolveu construir um trabalho no qual o universal não serve como um parâmetro a ser utilizado por todos como se pudesse fornecer uma instância onde cada qual possa se ver livre de seu desejo LACAN 1966 p 873 Concluímos afirmando que essa posição originariamente postulada no campo da clínica nos dá importantes pistas no campo da formação dos novos analistas Duas posições são igualmente estéreis A primeira posição improdutiva é a saudosista que insiste em se lamentar pelo fato de que hoje os novatos não são devidamente assujeitados Voltado obsessivamente ao passado o saudosista confunde trabalho com lamento e se deixa irritar por detalhes pouco relevantes Fica por exemplo furioso se um jovem se expressa utilizando palavrões e não percebe que por meio desse vocabulário pouco convencional ele estava mostrando seu interesse pelo conhecimento universal A segunda posição improdutiva é a divergente que insiste em se utilizar de argumentos do tipo ideológico para se opor ao assujeitamento ao universal Voltado histérica ou obsessivamente para o confronto com todas as figuras paternas o pretensamente revolucionário confunde a singularidade com a anomia e também não chega a inventar qualquer expressão singular para o seu desejo O que a pessoa quer é ser do contra não construir algo que ofereça soluções A essas duas oposições opomos à do artista que dialogando com o universal se apropria das suas conquistas para inventar um recorte inédito um olhar único um convite à produção de quem vê a obra É portanto da posição do artista que aproximamos a do psicanalista para quem este volume foi dirigido Referências bibliográficas FORBES Jorge O princípio responsabilidade do medo ao desejo In RAOLFI Claudia Separatas Palestra no Café Filosófico da CPFL TV Cultura 13 abr 2007 São Paulo Instituto da Psicanálise Lacaniana 2008 Inconsciente e responsabilidade psicanálise do século XXI Barueri Manole 2012 FREUD Sigmund 1912 A dinâmica da transferência In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XII Rio de Janeiro Imago 1996 p 10719 1914 Algumas reflexões sobre a psicologia escolar In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XIII Rio de Janeiro Imago 1996 p 24350 1924 A dissolução do complexo de Édipo In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud v XIX Rio de Janeiro Imago 1972 JAKOBSON Roman Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia In Linguística e comunicação São Paulo Cultrix 1999 p 3462 JONAS Hans 1979 O princípio responsabilidade Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica Rio de Janeiro ContrapontoEd PUCRio 2006 KANT Immanuel 1785 Fundamentação da metafísica dos costumes Trad Paulo Quintela Lisboa Edições 70 1986 1788 Crítica da razão prática São Paulo Martins Fontes 2002 1790 Crítica da faculdade do juízo São Paulo Forense Universitária 2005 Textos selecionados São Paulo Abril Cultural 1980 LACAN Jacques 19541955 O seminário Livro 2 O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985 1960 Subversão do sujeito e dialética do desejo freudiano In Escritos 4 ed São Paulo Perspectiva 1996 p 275311 1966 Abertura da coletânea In Escritos Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998