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Hannah Arendt A Vida do Espirito 4a EDIÇÃO TRADUÇÃO 1 VOLUME Antônio Abranches MESTRE EM FILOSOFIA PUCRJ Cesar Augusto R de Almeida BACHAREL EM FILOSOFIA I PUCRJ 2 VOLUME Helena Martins MESTRE EM LINGUÍSTICA PUCRJ REVISÃO TÉCNICA Antônio Abranches MESTRE EM FILOSOFIA PUCRJ COPIDESQUEE PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Ângela Ramalho MESTRE EM LITERATURA UFRJ RELUME D U M A R Á Rio de Janeiro 2000 Título original The Life of the Mind Volume 1 Copyright 1971 by Hannah Arendt C Copyright 1978 1979 by Harcourt Brace Jovanovich Inc Volume 2 Copyright 1978 by Harcourt Brace Jovanovich Inc Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich Inc Copyright da edição brasileira 1991 DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA wwwrelumedumaracombr Travessa Juraci 37 Penha Circular 21020220 Rio de Janeiro RJ Tel 21 564 6869 Fax 21 590 0135 Email relumerelumedumaracombr Ia edição 1992 em coedição com a Editora UFRJ 2a edição 1993 3a edição 1995 4a edição 2000 Editoração eletrônica Carlos Alberto Herszterg Impressão e acabamento Marques Saraiva CIPBrasil Catalogação na fonte Sindicato Nacional de Editores de Livros RJ Arendt Hannah 19061975 A727v A vida do espírito o pensar o querer o julgar Hannah Arendt tradução Antônio Abranches Cesar Augusto R de Almeida Helena Martins revisão técnica Antônio Abranches copidesque e preparação de originais Angela Ramalho Rio de Janeiro Relume Dumará 2 v Tradução de The Life of the Mind Apêndice ISBN 8585427140 1 Pensamento 2 Vontade 3 Julgamento Ética 4 Filosofia modema Século XX I Título 920520 CDD 193 CDU 1430 Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação por qualquer meio seja ela total ou parcial constitui violação da lei 5988 Numquam se plus agere quam nihil cum ageret numquam minus solum esse quam cum solus esset Catão Cada um de nós é como um homem que vê as coisas em um sonho e acredita conhecêlas perfeitamente e então desperta para descobrir que não sabe nada Platão Político Sumário Prefácio à edição brasileira xi Nota de tradução xvii Nota da editora xix Volume 10 Pensar Introdução 5 Capítulo 1 Aparência 1 A natureza fenomênica do mundo 17 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos 20 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície 22 4 Corpo e alma alma e espírito 25 5 Aparência e semblância 30 6 O ego pensante e o eu Kant 32 7 A realidade e o ego pensante a dúvida cartesiana e o sensus communis 36 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado 42 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 9 Invisibilidade e retirada do mundo 55 10 A luta interna entre pensamento e senso comum 63 11 O pensar e o agir o espectador 71 12 Linguagem e metáfora 76 13 A metáfora e o inefável 85 Capítulo 30 que nos faz pensar 14 Os pressupostos préfilosóficos da filosofia grega 99 15 A resposta de Platão e seus ecos 108 16 A resposta romana 115 17 A resposta de Sócrates 125 18 O doisemum 135 Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum 149 20 A lacuna entre o passado e futuro o nunc stans 152 21 Postscriptüm 160 Notas 165 Volume 20 Querer A Vontade Introdução 189 Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 Tempo e atividades do espírito 195 2 A Vontade e a Era Moderna 201 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pósmedieval 204 4 O problema do novo 208 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito 212 6 A solução de Hegel a filosofia da História 216 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade 227 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade 233 9 Epiteto e a onipotência da Vontade 240 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade 248 Capítulo 30 Querer e o Intelecto 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto 271 12 Duns Scotus e o primado da Vontade 280 Capítulo 4 Conclusões 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos 299 14 O repúdio nietzscheano da Vontade 305 150 querernãoquerer de Heidegger 316 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum 332 Notas 349 Apêndice O Julgar Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant 369 Posfácio da editora 383 Prefácio à edição brasileira Eduardo Jardim de Moraes O leitor que acompanhou a publicação da obra de Hannah Arendt o público leitor das várias traduções brasileiras dos últimos anos mas também o leitor contemporâneo da primeira edição americana de A vida do espírito de 1978 pode sentirse surpreendido por ser agora convidado a percorrer com a autora um caminho possivelmente mais árduo freqüentado habitualmente pelos especialistas em Filosofia a quem Hannah Arendt gostava de chamar secundando Kant e com a mesma ironia de pensadores profissionais Com efeito desde a publicação na década de 50 de As origens do totalitarismo a obra de Hannah Arendt se afirmara como um empreendimento que visava responder a um desafio o de compreender a novidade radical do nosso século Há em nossa autora o que pode ser considerado como origem e esteio de sua obra uma paixão pela compreensão e a decisão de apostar nessa única possibilidade de reconciliação com a realidade que é assegurada pelo pensamento Podiam seus textos estar tratando de indicar a falência da experiência política nas sociedades totalitárias de sugerir alguma forma de esperança como na reavaliação do legado das experiências revolucionárias modernas podiam eles estar denunciando os impasses em que se encontravam a ciência e a técnica contemporâneas ou ainda manifestar perplexidade diante da situação de banalização dos conceitos de cultura e de educação no mundo atual podiam mesmo pretender a elaboração de uma fenomenologia da vida ativa como em A condição humana ao propor a diferenciação das esferas do labor do trabalho e da ação e ao traçar com firmeza o limite entre os âmbitos público e privado como aquele entre a política e a economia em cada uma destas tantas direções por que avançou a reflexão de Hannah Arendt é possível notar sempre a urgência de tudo pretender julgar e o que para o leitor de A vida do espírito deverá ser ainda mais significativo a percepção clara da instabilidade a que está necessariamente sujeita nos dias de hoje a tarefa judicante O que significava julgar para Hannah Arendt E qual a especificidade da situação atual de quem pretende exercer a atividade de julgar que faz com que seja vivida de forma tão dramaticamente problemática O propósito desta apresentação é o de tentar responder a estas questões indicando a sua articulação com o projeto de elaboração de A vida do espírito O juízo é a faculdade que possibilita que nos pronunciemos sobre coisas ou situações particulares Esta habilidade que nos permite decidir que uma coisa está correta que tal outra não está ou que determinado objeto é ou não belo é o que assegura que podemos nos orientar no mundo em que vivemos Se pudéssemos apreender cada situação particular com que nos deparamos aplicando a ela uma regra de validade geral que já possuíssemos de antemão à maneira do cientista que procede subsumindo os casos particulares a leis já prescritas anteriormente certamente não precisaríamos mencionar as dificuldades que estão em jogo no ato de julgar Mas serão juízos deste tipo os que estão envolvidos no diagnóstico proposto por Hannah Arendt da situação contemporânea Não existirão situações diante das quais nos sentimos como que desprovidos destes critérios gerais prévios a que estamos habituados a recorrer O que dizer sobre a consideração de eventos que não se dão segundo leis como as que regem os fenômenos naturais mas que se apresentam como únicos como aqueles que ocorrem no âmbito das relações que os homens estabelecem entre si Hannah Arendt tentou examinar em muitos passos de sua obra as respostas dadas a estes problemas em diversos momentos da história do pensamento Isto a levou a notar o enorme contraste entre a situação atual e a do passado e a extrair disto uma importante lição O conceito que nossa tradição de pensamento teve da questão dos critérios que estão em jogo na atividade de julgar remonta aos primórdios da Filosofia na antiga Grécia Quando Platão descreve no início do Livro VII de A República na famosa alegoria da caverna o percurso do prisioneiro que se liberta das cadeias que o prendiam ao mundo das sombras no interior da caverna ele pretende descrever o caminho do pensamento em busca da verdade Platão nos ensina que esse percurso apresenta um duplo movimento Há inicialmente um movimento ascendente do pensamento que se eleva passo a passo da precária visão das sombras dos objetos materiais até a consideração desses objetos em si mesmos passando em seguida à percepção do fogo que os ilumina ainda no interior da caverna isto é no mundo sensível Só então é possível ingressar na luz do dia fora da caverna que simboliza o mundo inteligível Ainda aqui novas etapas precisam ser conquistadas Em um primeiro momento dáse a apreensão das realidades matemáticas que são ainda como que as sombras das idéias até poderse mais adiante encarar diretamente a realidade das idéias que constituem a verdadeira realidade Então após esse longo percurso para o alto alcançase finalmente a contemplação do Sol das idéias seu princípio que é a idéia do Bem A interpretação que Hannah Arendt propõe desta passagem da alegoria da caverna explorando uma sugestão de Heidegger consiste em indicar a novidade Tratase do ensaio de Heidegger A doutrina de Platão sobre a verdade publicado em alemão pela primeira vez com o título de Platons Lehre von der Wahreit em Berna 1947 introduzida por Platão em sua conceituação do Bem aquilo que se contempla ao atingirse o ponto mais alto desse percurso de purificação Esta nova conceituação só adquire pleno significado quando considerada a segunda etapa do percurso descrito na alegoria que se faz em sentido descendente com o retomo ao mundo sensível Nesse momento aquilo que aparecia como uma descrição de um movimento feito pelo pensamento ganha uma personificação na figura do filósofo que possuindo agora um conhecimento considerado verdadeiro é representado no mundo do interior da caverna no mundo dos homens como seu governante Que novidade para Hannah Arendt estaria neste momento sendo introduzida por Platão que toma tão central o lugar de A República no pensamento ocidental Ela consiste em ter Platão atribuído então à sua conceituação do Bem um conteúdo normativo A partir de agora o caminho do pensamento ganha uma direção bem determinada ele deve possibilitar o acesso ao Bem concebido como uma verdade que é tomada como um padrão ou uma medida a partir da qual se deve avaliar o âmbito mundano O conceito platônico de verdade tal como comparece em A República traduz a confiança de que podemos apreender se mantivermos abertos os olhos do espírito os critérios com que podemos julgar e logo orientarnos no mundo A substituição de um conceito mais intimamente associado à idéia de beleza como acontecia em diálogos mais antigos de Platão por um novo com o significado de Bem na acepção de bom para ou de adequado traz consigo a tese de que há uma coesão entre pensamento e juízo de que a tarefa do pensamento consiste em possibilitar o acesso aos critérios com que podemos julgar os eventos particulares A tradição do pensamento ocidental que se iniciou com o reconhecimento pelos romanos da autoridade da Grécia e que teve sua continuidade assegurada pelo cristianismo trouxe ao mundo uma forma de estabilidade que se fundava nessa coesão do pensamento e do juízo formulada pela primeira vez na obra de Platão A figura da pirâmide utilizada por Hannah Arendt para descrever o conceito político clássico de autoridade poderia ilustrar de forma ampla a situação de toda a cultura tradicional Neste caso o ponto superior da pirâmide estaria ocupado pela verdade a que o filósofo tem acesso e que se situaria fora do mundo sensível em que vivemos O poder de coesão da verdade espalhase do alto sobre o corpo da pirâmide garantindo a sua forma compacta e resistente A verdade teórica ilumina o contexto da prática nossa moral a vida política e os critérios com que apreciamos cada um dos seres particulares do mundo Tudo isto foi radicalmente alterado quando no início da Era Moderna a nova ciência adotou como atitude básica a desconfiança de que a teoria fosse capaz de se abrir a qualquer forma de verdade A suspeita com relação à possibilidade de nos fiarmos em nossa capacidade receptiva seja através dos sentidos seja através de uma faculdade que embora puramente intelectual como é o caso da imaginada por Platão fora concebida com base no confiável modelo dos sentidos constitui o motivo central da filosofia e da ciência modernas Uma tal desconfiança fundavase no fato de que o aparato de instrumentos mobilizados pela ciência e aqui Hannah Arendt tem em mente as observações feitas por Galileu pelo telescópio no início do século XVII indica que nossa apreensão imediata do mundo pode muito bem ser por eles desmentida não sendo portanto merecedora de crédito Hannah Arendt considerou como cerne da crise da tradição ocidental a descrença no conceito clássico de verdade Este veio a ser substituído por um novo não mais concebido com base em uma perspectiva contemplativa mas na capacidade humana da fabricação Mas antes mesmo que a Era Moderna pudesse elaborar uma nova conceituação da verdade já ruíra por terra a antiga tradição O poder iluminador das idéias sobre o mundo e o universo do modo como o conceberam os filósofos desapareceu e com isto perdeuse a segurança que havia de compreender o mundo e nele se orientar É freqüente encontraremse na obra de Hannah Arendt expressões que buscam dar conta dessas situações de crise Rupturas e descontinuidades são temas recorrentes e sempre explorados em profundidade por nossa autora E aqui possivelmente pode ser localizada a força do pensamento arendtiano ela soube na caracterização dessas situações reconhecer sempre o seu significado complexo Esteve sempre atenta para surpreender no momento em que a trama se parte a possibilidade do surgimento de algo novo e inesperado Assim por um lado o quadro da crise da tradição motivou muitas vezes em Hannah Arendt páginas que expressam angústia diante do desamparo próprio da vida do homem moderno Ela procurou identificar e dar significado a essa experiência recorrendo a autores como Tocqueville que afirma Desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro a mente do homem vagueia nas trevas1 Ou ainda em Platão encontrou a expressiva indicação O início é como um deus que enquanto mora entre os homens salva todas as coisas2 Também em René Char ou em Kafka foi possível encontrar igual sensibilidade na descrição das perplexidades que acompanham a experiência de pensar quando já não existem os parâmetros norteadores da tradição Do mesmo modo ao tomarse o problema a partir de uma ótica política ao considerálo portanto no que se refere à experiência de todos vêse que a apreciação proposta das grandes tragédias do século sublinha o seu imbricamento com a falência dos critérios tradicionais No início de A vida do espírito ao apresentar as motivações que a teriam levado à feitura do livro Hannah Arendt indica em primeiro lugar a hipótese da existência de uma relação entre o mal é aos crimes de Eichmann que se está referindo e a ausência de pensamento Em seu exame do funcionamento das sociedades totalitárias um papel considerável é atribuído às ideologias consideradas como substitutos perversos do pensamento As ideologias suspendem toda abertura para o ser característica da atividade de pensar que sempre se inicia pelo espanto o tháuma dos gregos e a substituem pela afirmação de princípios explicativos totais a raça ou a luta de classes que se desdobram movidos pela força implacável do raciocínio lógico Por outro lado nós que vivemos depois que a ruptura se deu podemos experimentar nossa época como se de alguma forma estivéssemos usufruindo de um privilégio Uma vez que estamos irremediavelmente condenados a considerar as coisas sem o auxílio da tradição temos a oportunidade de ao fazêlo apreendêlas pela primeira vez com os olhos livres Aqui ecoa ainda o apelo fenomenológico de um retorno às coisas mesmas Há portanto alguma coisa de liberador nesta situação O leitor que inicia agora a travessia desta obra incompleta na verdade apenas a primeira parte sobre o pensamento pode ser considerada completa a segunda sobre a vontade apresenta em muitos pontos uma forma inacabada e da terceira sobre o juízo lamentavelmente só dispomos das indicações a respeito do que ela deveria tratar vai poder avaliar por si mesmo o impacto desse efeito liberador de que a elaboração de A vida do espírito é o mais claro resultado Pois ao menos por dois aspectos marcase nesta obra o ponto em que se iniciam duas das tarefas da reflexão em nossos dias que só puderam ser consideradas porque se constituíram como explorações feitas a partir da experiência moderna da perda das referências tradicionais A primeira diz respeito à definição do estatuto do próprio pensamento Se o pensamento não se apresenta mais como a via de acesso à verdade que se toma como padrão a partir do qual são julgados os eventos particulares uma primeira questão logo se apresenta Ela referese à possibilidade que temos de pela primeira vez compreender o modo de ser do pensamento liberado dos encargos normativos que tradicionalmente lhe eram atribuídos Aqui percebemse todas as implicações contidas na exigência feita por Kant de distinguir o conhecimento e o pensamento Ao limitarmos o domínio do conhecimento interessado no estabelecimento da verdade a respeito dos objetos particulares podemos sentir pela primeira vez o que Hannah Arendt chamou referindose à definição socrática de o vento do pensamento Na mesma direção caminha a passagem de Heidegger que serve de epígrafe à primeira parte do livro A definição do que é pensamento vislumbrase quando já não lhe atribuímos alguma função cognitiva ou instrumental ou quando já não esperamos dele uma resposta ou uma norma para a vida prática A primeira parte de A vida do espírito propõese a compor lidando com os elementos fragmentados do legado espiritual da humanidade único modo pelo qual hoje o podemos considerar a figura da mais livre das nossas atividades que é o pensamento Qual a posição do pensamento relativamente ao mundo compreendido como o âmbito das aparências O que nos faz pensar E onde estamos quando pensamos São estas as indagações que orientam neste momento a investigação de Hannah Arendt Há ainda uma outra maneira de considerar o efeito liberador contido na situação de ruptura com a tradição que mais de perto se relaciona com o propósito destas considerações de explorar as pistas que conduzem da reflexão política de Hannah Arendt ao seu esforço final de compreensão da vida do espírito Agora que sabemos que o pensamento já não se impõe como tarefa determinar os critérios com que devemos agir e também com que devemos julgar os eventos que se passam neste mundo e que não podemos mais esperar da teoria normas em que possamos nos fiar para orientarnos estamos em condições de reconhecer também pela primeira vez o estatuto do juízo em sua dignidade própria Então seremos conduzidos a refletir sobre a sua origem em um âmbito especificamente seu marcado pela presença de várias vozes pois que sua forma é plural e não distante do âmbito da política Os que julgam estão apenas situados a uma certa distância dos acontecimentos do mundo já que esta é a condição que permite melhor apreciar Estas são indicações que poderíam servir para descrever uma cena bem diferente possivelmente um contraponto daquela que Platão imaginou em sua alegoria Essa nova cena apresentou um interesse especial para um outro grande pensador Kant que a retratou em seu Conflito das faculdades a das ruas de Paris em que seus habitantes desinteressadamente e ao mesmo tempo com grande entusiasmo assistiam aos eventos da Revolução Esta cena sempre lembrada por Hannah Arendt quando pretendia considerar o tema do juízo é frequentada por um público que não se imaginava ter algum dia ido buscar em um outro mundo como o da teoria as normas que pudessem servir como referência para estabelecer sua opinião sobre os eventos que se desenrolavam A definição do estatuto autônomo do juízo deveria constituir o ponto de chegada da investigação de A vida do espírito Os procedimentos críticos em jogo na obra são o que deve assegurar no aprofundamento das distinções entre cada uma das atividades do espírito o pensamento a vontade e o juízo a compreensão do modo de ser de cada uma delas bem como a indicação da possibilidade de haver entre elas comunicação Uma palavra sobre a tradução que vai ser lida Seus autores contaram para a sua preparação de forma direta ou não com subsídios de um trabalho de alguns anos dedicado à interpretação do pensamento de Hannah Arendt Do ponto de vista da tradução de um texto filosófico isto não é tudo mas constitui um ponto decisivo que motiva a sua recomendação A exigência de precisão conceituai veio somarse em várias revisões o cuidado na apresentação literária do texto Esperase que o público aprecie o resultado destes esforços em concerto 1 Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva p32 2 Idem ibid Nota de tradução Traduzimos mind por espírito buscando evitar qualquer aproximação com algum positivismo mentalismo vulgar ou mesmo com a philosophy of mind vertentes tão distantes do pensamento de Hannah Arendt Mas neste como em outros casos nenhuma solução é plenamente satisfatória e a dificuldade encontrase no peso que as camadas sedimentadas de significado exercem igualmente sobre os termos espírito e mente O problema do tradutor em relação à constituição metafísica e à reação antimetafísica do vocabulário filosófico é semelhante ao da própria autora Quando a ênfase na derivação do termo latino mens foi explicitada tivemos naturalmente que traduzir por mente Já na tradução de semblance por semblância a despeito da inconveniência do neologismo inconveniência mitigada pala relativa difusão do termo e pelos correlates em francês e em espanhol a intenção foi justamente a de aproveitar o despojamento semântico do termo A importância e a positividade do conceito já esboçadas no último capítulo de A condição humana muito embora o termo ainda não apareça aí inviabilizaram a utilização de soluções tradicionais tais como ilusão ou erro perceptivo que se revelariam definitivamente inapropriadas na expressão semblância autêntica Ao traduzir out of order por fora de ordem procuramos acompanhar a dupla intenção da autora de caracterizar a condição de alheamento do ego pensante e indicar a inversão que ele opera em todas as relações ordinárias Embora ela retire o termo de Heidegger cuja tradução brasileira certamente com boas razões adotou a solução extraordinário a versão alemã da própria autora mantém a expressão escandida ausser der Ordnung Na tradução de afterthought encontramos soluções com vantagens relativas Temos por um lado as opções mais literais como pensar depois e póspensamento ou a expressão pensamento posterior que aparece por vezes na versão alemã nachtraglich Gedankef todas essas soluções explicitam a idéia de sucessão no processo do pensamento Por outro lado a solução adotada aqui repensar nachdenken que também aparece na versão alemã e que sem o hífen é o verbo de uso corrente que significa repensar reconsiderar é o termo que a nosso ver melhor traduz a idéia de um retomar de outro modo aquilo que já foi pensado dessensorializado Finalmente optamos por criar na tradução do termo nill o composto não querer O termo original traz em si uma idéia de negação que entretanto não implica anulação do querer designando sim sua própria constituição o neologismo em português mantendo intemamente a idéia de negação tem como núcleo querer permitindo a interpretação positiva e transitiva em que a autora insiste explicitamente De outra parte a dupla hifenação querernãoquerer é tão somente um acompanhamento da hifenação original na expressão willnottowill sem pretender sugerir qualquer extensão de nãoquerer nill Agradecemos a Tito Marques Palmeiro pela generosa disponibilidade e pela ciência com que atendeu às nossas múltiplas solicitações Nota da editora Mary McCarthy Na qualidade de amiga e inventariante literária de Hannah Arendt preparei para publicação A vida do espírito Em 1973 O Pensar foi apresentado sob forma resumida nas Gifford Lectures na Universidade de Aberdeen e em 1974 a parte inicial de O Querer Ambos O Pensar e O Querer novamente sob forma resumida foram expostos em cursos regulares na New School for Social Research em Nova Iorque durante os períodos de 19745 e 19750 segundo volume contém um apêndice sobre O Julgar extraído de aulas expositivas sobre a filosofia política de Kant apresentada em 1970 na New School Da parte de Hannah Arendt agradeço aos professores Archibald Wemham e Robert Cross da Universidade de Aberdeen e às senhoras Wemham e Cross pela gentileza e a hospitalidade que lhe dispensaram durante suas estadas em Aberdeen por ocasião das Gifford Lectures Estes agradecimentos são extensivos também ao Senatus Academicus da universidade responsável pelo convite Meus próprios agradecimentos como editora incluem sobretudo Jerome Kohn professor assistente da dra Arendt na New School por sua permanente solicitude na solução de difíceis problemas relativos ao texto bem como pela diligência e pelo cuidado na busca e verificação das referências Também sou grata a ele e a Larry May pela preparação do índice Agradeço de modo particular a Margo Viscusi pela santa paciência em datilografar um manuscrito bastante revisado com muitos insertos e entrelinhas em caligrafias diversas e pelas pesquisas suscitadas por questões editoriais Agradeço a seu marido Anthony Viscusi por emprestar seus livros de faculdade que facilitaram bastante a verificação de algumas citações inexatas Agradeço a meu próprio marido James West pelo oportunismo de suas anotações filosóficas pela disposição em discutir o manuscrito e pelas suas ocasionais perplexidades e agradeço a ele também por sua determinação no momento de desatar vários nós górdios do plano geral e do esboço destes volumes Sou grata a Lotte Koehler minha co inventariante por franquear aos editores o acesso aos livros relevantes da biblioteca de Hannah Arendt e por sua total solicitude e devoção Sou imensamente grata a Roberta Leighton e sua equipe da Hartcourt Brace Jovanovich pelo enorme esforço e pela inteligência com que se debruçaram sobre o manuscrito ultrapassando sensivelmente a prática editorial comum Agradeço afetuosamente a William Jovanovich pelo interesse pessoal que sempre dedicou a A vida do espírito interesse que já se evidenciava na presença em Aberdeen em três das Gifford Lectures Para ele Hannah Arendt era muito mais do que um autor e ela por sua vez valorizava não apenas a amizade dele mas os comentários e observações críticas sobre seu texto Desde a morte de Arendt ele me incentivou e fortaleceu com a leitura atenta do texto editado e com as sugestões para o tratamento do material que iria constituir O Julgar extraído das conferências sobre Kant Acima de tudo devo notar a disposição com que se prestou a dividir o peso da decisão sobre alguns pontos específicos bem como sobre outros mais gerais Devo agradecer também a meus amigos Stanley Geist e Joseph Frank pela disponibilidade com que atenderam às consultas sobre problemas linguísticos do manuscrito E também a meu amigo Wemer Stemans do Instituto Goethe de Paris pela ajuda com a língua alemã Ao The New Yorker que publicou O Pensar com pequenas alterações o nosso reconhecimento sintome grata ainda a William Shawn por sua entusiasmada resposta ao manuscrito uma reação que teria sido saudada pela autora Finalmente e acima de todos agradeço a Hannah Arendt pelo privilégio de haver trabalhado em seu livro Volume 1 O Pensar Introdução O pensamento não traz conhecimento como as ciências O pensamento não produz sabedoria prática utilizável O pensamento não resolve os enigmas do universo O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir Martin Heidegger O título que dei a esta série de palestras A vida do espírito soa pretensioso e falar sobre O Pensar pareceme tão presunçoso que sinto que devo começar não com uma apologia mas com uma justificativa E claro que o assunto propriamente dispensa qualquer justificativa E dispensa de modo especial no âmbito de excelência inerente às Gifford Lectures O que me perturba é que seja eu a tentar pois não pretendo nem ambiciono ser um filósofo ou estar incluída entre aqueles que Kant não sem ironia chamou de Denker von Gewerbe pensadores profissionais1 A questão pois é se eu não deveria ter deixado tais problemas nas mãos dos especialistas E assim sendo a resposta deverá mostrar o que me levou a abandonar o âmbito relativamente seguro da ciência e da teoria políticas para me aventurar nesses temas espantosos ao invés de deixálos em paz Minha preocupação com as atividades espirituais tem origem em duas fontes bastante distintas O impulso imediato derivou do fato de eu ter assistido ao julgamento de Eichmann em Jerusalém Em meu relato2 mencionei a banalidade do mal Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento literário teológico ou filosófico sobre o fenômeno do mal Aprendemos que o mal é algo demoníaco sua encarnação é Satã um raio caído do céu Lucas 1018 ou Lúcifer o anjo decaído O demônio também é um anjo Unamuno cujo pecado é o orgulho orgulhoso como Lúcifer isto é aquela superbia de que só os melhores são capazes eles não querem servir a Deus mas ser como Ele Dizse que os homens maus agem por inveja e ela pode ser tanto ressentimento pelo insucesso mesmo que não se tenha cometido nenhuma falta Ricardo III quanto propriamente a inveja de Caim que matou Abel porque o Senhor teve estima por Abel e por sua oferenda mas por Caim e sua oferenda ele não teve nenhuma estima Ou podem ter sido movidos pela fraqueza Macbeth Ou ainda ao contrário pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade Odeio o Mouro o que me move é o coração de lago o ódio de Claggart pela bárbara inocência de Billy Budd um ódio que Melville considerou uma depravação com relação à natureza humana ou pela cobiça a raiz de todo o mal Radix omnium malorum cupiditas Aquilo com que me defrontei entretanto era inteiramente diferente e no entanto inegavelmente factual O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tomava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos em suas raízes ou motivos em quaisquer níveis mais profundos Os atos eram monstruosos mas o agente ao menos aquele que estava agora em julgamento era bastante comum banal e não demoníaco ou monstruoso Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más e a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo não era estupidez mas irreflexão No âmbito dos procedimentos da prisão e da corte israelenses ele funcionava como havia funcionado sob o regime nazista mas quando confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina parecia indefeso e seus clichês produziam na tribuna como já haviam evidentemente produzido em sua vida funcional uma espécie de comédia macabra Clichês frases feitas adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade ou seja da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência Se respondéssemos todo o tempo a esta exigência logo estaríamos exaustos Eichmann se distinguia do comum dos homens unicamente porque ele como ficava evidente nunca havia tomado conhc cimento de tal exigência Foi essa ausência de pensamento uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar que despertou meu interesse Será o fazeromal pecados por ação e omissão possível não apenas na ausência de motivos torpes como a lei os denomina mas de quaisquer outros motivos na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição Será que a maldade como quer que se defina este estar determinado a ser vilão não é uma condição necessária para o fazeromal Será possível que o problema do bem e do mal o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado esteja conectado com nossa faculdade de pensar Por certo não no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado como se a virtude pudesse ser ensinada e aprendida somente os hábitos e costumes podem ser ensinados e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento O fato de que habitualmente se trata de assuntos ligados ao problema do bem e do mal em cursos de moral ou de ética pode indicar quão pouco sabemos sobre eles pois moral deriva de mores e ética de ethos respectivamente os termos latino e grego para designar os costumes e os hábitosestando a palavra latina associada a regras de comportamento e a grega sendo derivada de habitação como a nossa palavra hábitos A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos nem da estupidez no sentido de inabilidade para compreender nem mesmo no sentido de insanidade moral pois ela era igualmente notória nos casos que nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de consciência A questão que se impunha era seria possível que a atividade do pensamento como tal o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independentemente de resultados e conteúdo específico estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal ou mesmo que ela realmente os condicione contraele A própria palavra consciência em todo o caso aponta nesta direção uma vez que significa saber comigo e por mim mesmo um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento E não estará esta hipótese reforçada por tudo o que sabemos sobre a consciência isto é que uma boa consciência em geral só é apreciada por pessoas realmente más criminosas e tais ao passo que somente pessoas boas são capazes de ter uma má consciência Dizendo de outra maneira e utilizando uma linguagem kantiana tendo sido aturdida por um fato que queira eu ou não me pôs na posse de um conceito a banalidade do mal não me era possível deixar de levantar a quaestio juris e me perguntar com que direito eu o possuía e utilizava3 Foi portanto o julgamento de Eichmann que despertou meu interesse por esse tema Mas além disto também essas questões morais que têm origem na experiência real e se chocam com a sabedoria de todas as épocas não só com as várias respostas tradicionais que a ética um ramo da filosofia ofereceu para o problema do mal mas também com as respostas muito mais amplas que a filosofia tem prontas para a questão menos urgente O que é o pensar renovaram em mim certas dúvidas De fato tais dúvidas vinham me afligindo desde que terminei um estudo sabiamente intitulado por meu editor A condição humana mas que eu havia proposto mais modestamente como uma investigação sobre A vita activa Desde oprimeiromomento em que me interessei pelo problema da Ação a mais antiga preocupação da teoria política o que me perturbou foi que o próprio termo que adotei para minhas reflexões sobre o assunto a saber vita activa havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida Visto a partir daí o modo ativo de vida é laborioso o modo contemplativo é pura quietude o modo de vida ativo dáse em público o contemplativo no deserto o modo ativo é devotado às necessidades do próximo o modo contemplativo à visão de Deus Duae sunt vitae activa et contemplativa Activa est in labore contemplativa in requie Activa in publico contemplativa in deserto Activa in necessitate proximi contemplativa in vjsioni Dei Citei um autor medieval4 do século XII quase aleatoriamente porque a idéia pela qual a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental A atividade do pensamento segundo Platão o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo serve apenas para abrir os olhos do espírito e mesmo 0 nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade Em outras palavras o pensamento visa à contemplação e nela termina e a própria contemplação não é uma atividade mas uma passividade é o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso Segundo as tradições da Era Cristã quando a filosofia tomouse serva da teologia o pensamento passou a ser meditação e a meditação passou novamente a terminar na contemplação uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava para conhecer a verdade mas para antecipar um estado futuro recebendoo temporariamente na intuição Descartes de modo característico ainda influenciado por esta tradição chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations Com o surgimento da Era Moderna o pensamento tomouse principalmente um servo da ciência do conhecimento organizado e ainda que tenha ganho muito em atividade segundo a convicção crucial da modernidade pela qual só posso conhecer o que eu mesmo produzo foi a matemática a ciência nãoempírica por excelência em que o espírito parece lidar apenas consigo mesmo que passou a ser a ciência das ciências fornecendo a chave para as leis da natureza e do universo que se encontram ocultas pelas aparências Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento tomouse axiomático para Descartes durante a famosa noite de sua revelação que havia um acordo fundamental entre as leis da natureza que estão ocultas pelas aparências e por percepções sensoriais enganosas e as leis da matemática5 ou seja entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera semblância E ele acreditava realmente que com este tipo de pensamento que Hobbes denominava cálculo de conseqüências podería produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus da natureza da alma e de outros assuntos do gênero O que me interessava no estudo sobre a Vita activa era que a noção de completa quietude da Vita contemplativa era tão avassaladora que em comparação com ela todas as diferenças entre as diversas atividades da Vita activa desapareciam Frente a essa quietude já não era importante a diferença entre laborar e cultivar o solo trabalhar e produzir objetos de uso ou interagir com outros homens em certas empreitadas Mesmo Marx em cuja obra e em cujo pensamento a questão da ação teve um papel tão crucial utiliza a expressão praxis simplesmente no sentido daquilo que o homem faz em oposição àquilo que o homem pensa6 Eu estava todavia ciente de que era possível olhar para esse assunto de um ponto de vista completamente diferente e para deixar registrada a minha dúvida encenei esse estudo da vida ativa com uma curiosa sentença que Cícero atribuiu a Catão Este costumava dizer que nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo Numquam se plus agere quam nihil cum ageret numquam minus solum esse quam cum solus esset1 Supondo que Catão esteja certo as questões que se apresentam são óbvias o que estamos fazendo quando nada fazemos a não ser pensar Onde estamos quando sempre rodeados por outros homens não estamos com ninguém mas apenas em nossa própria companhia E evidente que levantar tais questões apresenta certas dificuldades À primeira vista elas parecem pertencer ao que se costumachamar filosofia ou metafísica dois termos e dois campos de investigação que como todos sabemos caíram em descrédito Se isto se devesse meramente aos ataques do positivismo moderno e do neopositivismo talvez não precisássemos nos preocupar A assertiva de Camap segundo a qual a metafísica deveria ser vista como poesia certamente chocase com as pretensões habituais dos metafísicos mas essas últimas assim como a própria avaliação de Camap podem estar baseadas em uma subestimação da poesia Heidegger que Camap escolheu como alvo privilegiado retorquiu afirmando que a filosofia e a poesia estavam de fato intimamente relacionadas não eram idênticas mas brotavam da mesma fonte o pensamento E Aristóteles que até agora ninguém acusou de escrever mera poesia tinha a mesma opinião poesia e filosofia de alguma forma estão relacionadas O famoso aforismo de Wittgenstein sobre o que não podemos falar devemos nos calar que argumenta pelo lado oposto deveria aplicarse se levado a sério não apenas ao que se encontra além da experiência sensorial mas ainda mais aos próprios objetos dos sentidos Nada do que vemos ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos Hegel estava certo quando indicou que o Isto dos sentidos não pode ser alcançado pela linguagem8 Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras o medium no qual pensamos e o mundo das aparências o medium no qual vivemos que conduziu pela primeira vez à filosofia e à metafísica Com a ressalva de que no começo era o pensamento na forma de logos ou de noesis que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais Parece bastante natural que o primeiro se volte contra as aparências e o último contra o pensamento Nossas dificuldades com as questões metafísicas são produzidas nem tanto por aqueles para quem essas são questões sem sentido como pela própria parte atacada Pois assim como a crise na teologia atingiu seu clímax quando os teólogos e não aquela velha multidão de incrédulos começaram a discutir a proposição Deus está morto também a crise na filosofia e na metafísica veio à luz quando os próprios filósofos começaram a declarar o fim da filosofia e da metafísica Hoje isso já é uma velha história A atração pela fenomenologia de Husserl derivou das implicações antihistóricas e antimetafísicas do slogan Zu den Sachen selbst e Heidegger que aparentemente permaneceu na trilha metafísica de fato também pretendeu superar a metafísica como ele mesmo proclamou muitas vezes desde 1930 Foi Hegel e não Nietzsche quem pela primeira vez declarou que o sentimento subjacente à religião na Era Moderna é o sentimento Deus está morto10 Sessenta anos atrás a Enciclopédia Britânica já se sentia segura para tratar a metafísica como filosofia sob seu nome mais desacreditado11 E se quisermos retraçar ainda mais esse descrédito encontraremos Kant entre os mais destacados detratores mas não o Kant da Crítica da razão pura que Moses Mendelssohn chamou de destruidor de tudo alies Zermalmer mas o Kant em seus escritos précríticos em que ele espontaneamente admite que era seu destino apaixonarse pela metafísica mas em que fala também de seu abismo sem fundo seu chão escorregadio e sua terra utópica de leite e mel Schlaraffenland onde vivem como em uma aeronave os visionários da razão de tal modo que não existe tolice que não possa servir de argumento para sabedoria sem fundamentos12 Tudo o que se precisa dizer hoje em dia sobre esse assunto foi dito admiravelmente por Richard McKeon na longa e complicada história do pensamento esta ciência espantosa nunca produziu uma convicção generalizada em relação à sua função nem de fato um consenso significativo de opinião em relação ao seu tema13 E bastante surpreendente perante esta história de difamação que o próprio termo metafísica tenha sido capaz de sobreviver Ficase tentado a suspeitar que Kant estava certo quando já muito velho e após ter desferido um golpe fatal na ciência espantosa profetizou que os homens certamente retomariam à metafísica como se retoma à mulher amada depois de uma briga wie zu einer entzweiten Geliebten14 Isso não me parece provável ou mesmo desejável Antes portanto de começarmos aespecular sobre as possíveis vantagens de nossa atual situação seriaprudente refletir sobre o que realmente queremos dizer quando observamos que a teologia a filosofia e a metafísica chegaram a um fim Certamente não é que Deus esteja morto algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus tão pequeno de fato que mesmo a palavra existência está mal empregada mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente se algo está morto só pode ser o pensamento tradicional sobre Deus E algo semelhante vale também para o fim da filosofia metafísica não que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tomado sem sentido mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o supra sensorial juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides de que o que quer que não seja dado aos sentidos Deus ou o Ser ou os Primeiros Princípios e Causas archaí ou as Idéias é mais real mais verdadeiro mais significativo do que aquilo que aparece que está não apenas além da percepção sensorial mas acima do mundo dos sentidos O que está morto não é apenas a localização de tais verdades eternas mas a própria distinção Enquanto isso os poucos defensores da metafísica em um tom cada vez mais estridente nos alertaram sobre o perigo do niilismo inerente a essa afirmação Embora disponham de um importante argumento a seu favor eles próprios raramente o invocam de fato é verdade que uma vez descartado o domínio suprasensível fica também aniquilado o seu oposto o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à morte do supra sensível Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche que com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus15 tanta confusão produziu sobre esse assunto Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos ele esclarece o que a palavra Deus significava na história anterior Era meramente um símbolo para o domínio suprasensorial tal como foi compreendido pela metafísica agora em vez de Deus utiliza a expressão mundo verdadeiro e diz Abolimos o mundo verdadeiro O que permaneceu Talvez o mundo das aparências Mas não Junto com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências16 A descoberta de Nietzsche de que a eliminação do suprasensível elimina também o meramente sensível e portanto a diferença entre eles Heidegger17 é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datála historicamente qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si Assim todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito o órgão do suprasensível e os sentidos As percepções sensoriais são ilusões diz o espírito elas mudam segundo as condições de nosso corpo doce amargo cor e assim por diante existem somentenomo por convenção entre os homens e não physei segundo a verdadeira natureza das aparências Ao que os sentidos respondem Espírito infeliz Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência pisteis tudo em que se pode confiar Nossa derrota será a tua ruína18 Em outras palavras uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido não importa se o verdadeiro mundo aboliu o mundo aparente ou se foi o contrário rompese todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a se orientar Nesses termos nada mais parece fazer muito sentido Essas mortes modernas de Deus da metafísica da filosofia e por implicação do positivismo tomaramse eventos com conseqüências históricas consideráveis já que com o início de nosso século deixaram de ser uma preocupação exclusiva das elites intelectuais para ser não tanto a preocupação mas o pressuposto comum irrefletido de quase todo mundo Não nos ocuparemos aqui do aspecto político do assunto Em nosso contexto talvez seja melhor mesmo deixar o tema que na verdade é de competência política fora de nossas considerações e insistir pelo contrário no simples fato de que por mais seriamente que nossos modos de pensar estejam envolvidos nesta crise nossa habilidade para pensar não está em questão somos o que os homens sempre foram seres pensantes Com isto quero dizer apenas que os homens têm uma inclinação talvez uma necessidade de pensar para além dos limites do conhecimento de fazer dessa habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir Falar de niilismo neste contexto talvez seja apenas relutância em abandonar conceitos e seqüências de pensamento que de fato morreram há bastante tempo embora seu passamento só muito recentemente tenha sido reconhecido em público Se ao menos pudéssemos fazer nessa situação o que a Era Moderna fez em seu estágio inicial ou seja tratar cada assunto como se ninguém o tivesse abordado antes de mim como propõe Descartes em suas observações introdutórias a Les passions de l âme Isto tomouse em parte impossível por causa da enorme expansão de nossa consciência histórica mas principalmente porque o único registro que temos sobre o que o pensamento como atividade significou para aqueles que o escolheram como modo de vida é o que hoje chamaríamos de falácias metafísicas Talvez nenhum dos sistemas nenhuma das doutrinas que nos foram transmitidas pelos grandes pensadores seja convincente ou mesmo razoável para os leitores modernos mas nenhum deles tentarei argumentar aqui é arbitrário nem pode ser simplesmente descartado como puro absurdo Ao contrário as falácias metafísicas contêm as únicas pistas que temos para descobrir o que significa o pensamento para aqueles que nele se engajam algo extremamente importante neste momento e sobre o que estranhamente existem poucos depoimentos diretos Assim a possível vantagem de nossa situação subseqüente à morte da metafísica e da filosofia apresenta duas faces Ela nos permitiría olhar o passado cõm novos olhos sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições e assim dispor de uma enorme riqueza de experiências brutas sem estarmos limitados por quaisquer prescrições sobre a maneira de lidar com estes tesouros Notre heritage nest précédé daucun testament Nossa herança não foi precedida por nenhum testamento19 A vantagem seria ainda maior não fosse ela acompanhada de modo quase inevitável por uma crescente dificuldade em nos movermos em qualquer nível no domínio do invisível ou para falar de outro modo não tivesse sido ela acompanhada pelo descrédito em que caiu tudo o que não é visível tangível palpável de tal forma que nos encontramos em perigo de perder o próprio passado junto com nossas tradições Pois embora nunca tenha havido muito consenso sobre o tema da metafísica pelo menos um ponto sempre foi tomado como certo o de que esta disciplina seja ela chamada de metafísica ou filosofia lidava com objetos que não eram dados à percepção sensorial e que sua compreensão transcendia o pensamento do senso comum que deriva da experiência sensível e que pode ser validado por meios e testes empíricos De Parmênides até o fim da filosofia todos os pensadores concordaram em que para lidar com estes assuntos o homem precisa separar seu espírito dos seus sentidos isolandoo tanto do mundo tal como é dado por esses sentidos quanto das sensações ou paixões despertadas por objetos sensíveis O filósofo à medida que é um filósofo e não o que naturalmente ele também é um homem como você e eu retirase do mundo das aparências a região em que se move tem sido descrita desde o início da filosofia como o mundo dos poucos Essa antiga distinção entre os muitos e os pensadores profissionais especializados na atividade supostamente mais elevada a que os seres humanos poderiam se dedicar o filósofo de Platão será chamado o amigo dos deuses e se alguma vez é dado ao homem tomarse imortal ninguém mais do que ele o consegue20 perdeu qualquer cabimento esta é a segunda vantagem de nossa atual situação Se como sugeri antes a habilidade de distinguir o certo do errado estiver relacionada com a habilidade de pensar então deveriamos exigir de toda pessoa sã o exercício do pensamento não importando quão erudita ou ignorante inteligente ou estúpida essa pessoa seja Kant nesse ponto praticamente sozinho entre os filósofos aborreciase com a opinião corrente de que a filosofia é apenas para uns poucos precisamente pelas implicações morais dessa idéia e uma vez observou que a estupidez é fruto de um coração perverso21 Isso não é verdade ausência de pensamento não é estupidez ela pode ser comum em pessoas muito inteligentes e a causa disso não é um coração perverso pode ser justo o oposto é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento Seja como for o assunto não pode mais ser deixado aos especialistas como se o pensamento à maneira da alta matemática fosse monopólio de uma disciplina especializada A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand razão e intelecto e não entendimento o que me parece uma tradução equivocada Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus e embora Verstand seja o substantivo de verstehen o entendimento das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen é crucial para nossa empreitada Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o escândalo da razão ou seja o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais no entanto ele mesmo não se pôde impedir de pensar Para ele esses assuntos aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa restringiamse ao que agora chamamos habitualmente de as questões últimas de Deus da liberdade e da imortalidade Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões e embora Kant ainda acreditasse que nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte22 ele também estava bastante consciente de que a necessidade urgente da razão não só é diferente mas é mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento23 Assim a distinção entre as duas faculdades razão e intelecto coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes pensar e conhecer e dois interesses inteiramente distintos o significado no primeiro caso e a cogniçao no segundo Embora houvesse insistido nessa distinção Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastarse de seu tema tradicional ou seja daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis e embora justificasse a necessidade da razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido permaneceu inconsciente com relação ao fato de que a necessidade humana de refletir acompanha quase tudo o que acontece ao homem tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer Por têla justificado unicamente em termos dessas questões últimas Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão a habilidade de pensar Afirmava defensivamente que havia achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a fé24 Mas não abriu espaço para a fé e sim para o pensamento assim como não negou o conhecimento mas separou conhecimento de pensamento Nas notas de suas lições sobre a metafísica escreveu O propósito da metafísica é estender embora apenas negativamente nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos isto é eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria grifos nossos25 O grande obstáculo que a razão Vernunft põe em seu próprio caminho originase no intelecto Verstand e nos critérios de resto inteiramente justificados que ele estabeleceu para seus propósitos ou seja para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição O motivo pelo qual nem Kant nem seus sucessores prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade e ainda menos às experiências do ego pensante é que apesar de todas as distinções eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência que são os resultados e os critérios da cognição Mas se é verdade que o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do intelecto e Kant fundou essa justificativa na afirmação de que os assuntos com que lidam embora incognoscíveis são do maior interesse existencial para o homem então o pressuposto deve ser o pensamento e a razão não se ocupam daquilo de que se ocupa o intelecto Para antecipar e resumir a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade mas pela busca do significado E verdade e significado não são a mesma coisa A falácia básica que preside a todas as falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade O último e sob certos aspectos mais chocante exemplo disto ocorre em Ser e tempo de Heidegger que começa levantando novamente a questão do significado do Ser26 O próprio Heidegger em uma interpretação posterior de sua questão inicial diz explicitamente Significado do Ser e Verdade do Ser querem dizer o mesmo27 As tentações para resolver a equação que se reduzem à recusa de aceitar e pensar por meio da distinção que Kant faz entre razão e intelecto entre a necessidade urgente de pensar e o desejo de conhecer são muito fortes e não podem de modo algum ser unicamente tributadas ao peso da tradição As descobertas de Kant tiveram um efeito liberador extraordinário sobre a filosofia alemã desencadeando a ascensão do idealismo alemão Não há dúvida de que abriram espaço para o pensamento especulativo mas esse pensamento voltou a tomarse o campo de um novo tipo de especialistas presos à noção de que o assunto próprio da filosofia é o conhecimento real do que verdadeiramente é28 Libertados por Kant da velha escola dogmáticae de seus exercícios estéreis os especialistas construíram não apenas novos sistemas mas uma nova ciência o título original da maior dentre as suas obras a Fenomenologia do espírito de Hegel era Ciência da Experiência da Consciência29 empalidecendo precipitadamente a distinção que Kant fez entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do intelecto pelo conhecimento Buscando o ideal cartesiano de certeza como se Kant não houvesse existido eles acreditaram com toda honestidade que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos Deus sempre nos julga pelas aparências Suspeito que sim W H Auden Capítulo 1 Aparência 1 A natureza fenomênica do mundo Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas naturais e artificiais vivas e mortas transitórias e sempiternas E o que há de comum entre elas é que aparecem e portanto são próprias para serem vistas ouvidas tocadas provadas e cheiradas para serem percebidas por criaturas sensíveis dotadas de órgãos sensoriais apropriados Nada poderia aparecer a palavra aparência não faria sentido se não existissem receptores de aparências criaturas vivas capazes de conhecer reconhecer e reagir em imaginação ou desejo aprovação ou reprovação culpa ou prazer não apenas ao que está aí mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum e do qual desaparecemos em lugar nenhum Sere Aparecer coincidem A matéria morta natural e artificial mutável e imutável depende em seu ser isto é em sua qualidade de aparecer da presença de criaturas vivas Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador Em outras palavras nada do que é à medida que aparece existe no singular tudo que é é próprio para ser percebido por alguém Não o Elomem mas os homens é que habitam este planeta A pluralidade é a lei da Terra Já que os seres sensíveis homens e animais para quem as coisas aparecem e que como receptores garantem sua realidade são eles mesmos também aparências próprias para e capazes tanto de ver como de serem vistas ouvir e serem ouvidas tocar e serem tocadas eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal não são menos objetivos do que uma pedra ou uma ponte A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade objetiva O que usualmente chamamos consciência o fato de que estou cônscio de mim mesmo e que portanto em algum sentido posso aparecer para mim mesmo jamais seria o bastante para assegurar a realidade o Cogito me cogitare ergo sum de Descartes é um non sequitur pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores Vista da perspectiva do mundo cada criatura que nasce chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem são criaturas adequadas à existência mundana Os seres vivos homens e animais não estão apenas no mundo eles são do mundo E isso precisamente porque são sujeitos e objetos percebendo e sendo percebidos ao mesmo tempo Talvez nada surpreenda mais neste nosso mundo no entanto do que a infinita diversidade de suas aparências o simples valor de entretenimento de suas visões seus sons e seus odores algo que quase nunca é mencionado por pensadores e filósofos Somente Aristóteles pelo menos incidentalmente incluía a vida de fruição passiva dos prazeres que nossos órgãos corporais proporcionam entre os três modos de vida a serem escolhidos por aqueles que não estando sujeitos à necessidade podem devotarse ao kalon ao que é belo em contraposição ao que é necessário e útil1 Essa diversidade é correspondida por uma igualmente estarrecedora diversidade de órgãos sensoriais entre as espécies animais de tal modo que o que realmente aparece às criaturas vivas assume uma enorme variedade de forma e figura cada espécie animal vive em um mundo próprio Ainda assim todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal Em primeiro lugar um mundo que lhes aparece em segundo lugar e talvez ainda mais importante o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e que sempre haverá um mundo depois de sua partida Estar vivo significa viver em um mundo que precede à própria chegada e que sobreviverá à partida Nesse nível do estar meramente vivo o aparecer e o desaparecer à medida que um segue o outro são os eventos primordiais que como tais demarcam o tempo o intervalo temporal entre o nascimento e a morte O finito intervalo vital de cada criatura determina não só sua expectativa de vida mas também sua experiência do tempo ele fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais não importa quanto essas mensurações transcendam o intervalo em direção ao passado ou ao futuro Assim a experiência vivida da duração de um ano muda radicalmente ao longo de nossa vida Um ano que consiste em um quinto da existência para uma criança de cinco anos deve parecer muito maior do que quando chegar a constituir um vigésimo ou um trigésimo do tempo dessa criatura na Terra Todos sabemos como os anos passam cada vez mais rapidamente àproporção que envelhecemos até que com a proximidade da velhice a velocidade volta a diminuir porque começamos a medilos com referência à data psicológica e somaticamente antecipada de nossa partida Contra esse relógio inerente a seres vivos que nascem e morrem está o tempo objetivo segundo o qual a duração de um ano não muda nunca Esse é o tempo do mundo e seu pressuposto subjacente independente de quaisquer crenças científicas ou religiosas é que o mundo não tem princípio nem fim um pressuposto que só parece natural a seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que a eles sobreviverá Em contraste com o estaraí inorgânico da matéria morta os seres vivos são meras aparências Estar vivo significa ser possuído por um impulso de auto exposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas O palco é comum a todos os que estão vivos mas parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie Parecer o pareceme dokei moi é o modo talvez o único possível pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido Aparecer significa sempre parecer para outros e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores Em outras palavras tudo o que aparece adquire em virtude de sua fenomenalidade uma espécie de disfarce que pode de fato embora não necessariamente ocultar ou desfigurar Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência independentemente de sua identidade é percebida por uma pluralidade de espectadores O impulso de autoexposição responder apresentandose ao efeito esmagador de ser apresentado parece ser comum a homens e animais E assim como o ator depende do palco dos outros atores e dos espectadores para fazer sua entrada em cena cada coisa viva depende de um mundo que solidamente aparece como a locação de sua própria aparição da aparição de outras criaturas com as quais contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua existência Vista da perspectiva dos espectadores para quem ela aparece e de cuja presença ela finalmente desaparece cada vida individual seu crescimento e declínio é um processo de desenvolvimento no qual uma entidade desdobrase em um movimento ascendente até que todas as suas propriedades estejam plenamente expostas essa fase é seguida por um período de permanência florescência ou epifania por assim dizer que por sua vez é sucedido pelo movimento descendente de desintegração que termina com o completo desaparecimento São muitas as perspectivas segundo as quais esse processo pode ser visto examinado e compreendido mas o critério pelo qual uma coisa viva essencialmente é permanece o mesmo na vida cotidiana assim como na pesquisa científica ela é determinada pelo intervalo de tempo relativamente curto de sua plena aparição de sua epifania A escolha guiada pelo critério único da completude e da perfeição na aparição seria inteiramente arbitrária se a realidade não fosse antes de tudo de uma natureza fenomênica A primazia da aparência para todas as criaturas vivas frente às quais o mundo aparece sob a forma de um pareceme é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidaras atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais Pois embora haja grandes diferenças entre essas atividades todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece e um movimento para trás em direção ao eu Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele dele tirar proveito e com ele nos entreter mas tendo ainda alguma outra região como hábitat natural Contudo somos do mundo e não apenas estamos nele também somos aparências pela circunstância de que chegamos e partimos aparecemos e desaparecemos e embora vindos de lugar nenhum chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais quando fechamos os olhos do corpo usando a metáfora platônica para poder abrir os olhos do espírito A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais Como certa vez MerleauPonty formulou só posso escapar do ser para o ser2 e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência Mas o problema não está resolvido pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer ou se de fato eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos Podemos encontrar uma primeira pista relacionada com esse assunto recorrendo à velha dicotomia metafísica entre o verdadeiro Ser e a mera Aparência pois ela também na verdade se fundamenta na primazia ou pelo menos na prioridade da aparência Para descobrir o que realmente é o filósofo deve deixar o mundo das aparências entre as quais ele natural e originalmente se encontra em casa como fez Parmênides quando foi transportado além dos umbrais da noite e do dia para a estrada divina muito distante dos usuais caminhos humanos3 e como também fez Platão na parábola da Caverna4 O mundo das aparências é anterior a qualquer região que o filósofo possa escolher como sua verdadeira morada mas que no entanto não é o local em que ele cresceu O que sugeriu ao filósofo ou seja ao espírito humano a noção de que deve haver algo que não seja mera aparência sempre foi a qualidade que o mundo tem de aparecer Nas palavras de Kant Nehmen wir die Welt ais Erscheinung so beweiset sie gerade zu das Dasein von Etwas das nicht Erscheinung ist Se olharmos para o mundo como aparência ele demonstra a existência de algo que não é aparência5 Em outras palavras quando o filósofo se retira do mundo dado aos nossos sentidos e faz meiavolta a periagoge de Platão em direção à vida do espírito ele se orienta pelo primeiro em busca de algo que lhe seria revelado e que explicaria sua verdade subjacente Essa verdade aletheia o que é revelado Heidegger pode ser concebida unicamente como outra aparência outro fenômeno originalmente oculto mas de ordem supostamente mais elevada o que indica a predominância última da aparência Embora nosso aparato espiritual possa retirarse das aparências presentes ele permanece atrelado à Aparência Em sua busca o Anstrengung des Begriffs o esforço do conceito de Hegel o espírito não menos do que os sentidos espera que algo lhe apareça Coisa bastante semelhante parece ser verdade para a ciência especialmente para a ciência moderna que de acordo com uma antiga observação de Marx está de tal modo fundada na cisão entre Ser e Aparência que não é mais necessário o esforço individual e particular do filósofo para chegar a alguma verdade por sob as aparências O cientista também está sujeito às aparências já que para descobrir o que está por trás da superfície ele deve abrir o corpo visível e espreitar o seu interior ou surpreender objetos ocultos com a ajuda de todo tipo de equipamento sofisticado que os possa desnudar das propriedades exteriores pelas quais eles se apresentam aos nossos sentidos naturais A noção que orienta esses esforços científicos e filosóficos é sempre a mesma as Aparências como disse Kant devem ter um fundamento que não seja ele próprio uma aparência6 Esta seria realmente uma generalização óbvia da maneira pela qual as coisas naturais crescem e aparecem à luz do dia vindas de um fundo de escuridão caso agora não se estivesse pressupondo que esse fundo tem um grau mais alto de realidade do que aquilo que simplesmente aparece e logo depois volta a desaparecer E assim como os esforços conceituais dos filósofos para encontrar algo além das aparências sempre terminaram com violentas invectivas contra as meras aparências também as notáveis conquistas práticas dos cientistas para pôr a nu o que as aparências por si mesmas jamais revelam sem que haja alguma interferência foram realizadas às custas das aparências A primazia da aparência é um fato da vida cotidiana do qual nem o cientista nem o filósofo podem escapar ao qual têm sempre que voltar em seus laboratórios e em seus estudos e cuja força fica demonstrada pelo fato de nunca ter sido minimamente alterada ou desviada por qualquer coisa que eles tenham descoberto quando dela se afastaram Assim as estranhas noções da nova física surpreendem o senso comum sem mudar nada em suas categorias7 Contra essa inabalável convicção do senso comum há a antiga supremacia teorética do Ser e da Verdade sobre a mera aparência ou seja a supremacia do fundamento que não aparece sob a superfície que aparece Esse fundamento supostamente responde à mais antiga questão tanto da filosofia quanto da ciência como pode alguma coisa ou alguém inclusive eu mesmo simplesmente aparecer e o que faz com que apareça desta e não de outra forma A pergunta referese mais a uma causa do que a uma base ou a um fundamento mas a questão é que a nossa tradição filosófica transformou a base de onde algo surge na causa que a produz e em seguida concedeu a este agente eficaz um grau mais elevado de realidade do que aquele atribuído ao que meramente se apresenta a nossos olhos A crença de que a causa deve ocupar um lugar mais elevado do que o efeito de tal modo que o efeito pode ser facilmente diminuído quando se remonta à sua causa encontrase entre as mais antigas e obstinadas falácias metafísicas Também aqui não lidamos com um erro simplesmente arbitrário a verdade é que não só as aparências nunca revelam espontaneamente o que se encontra por trás delas mas também que genericamente falando elas não revelam apenas elas também ocultam nenhuma coisa nenhum lado de uma coisa mostrase sem que ativamente oculte os demais8 As aparências expõem e também protegem da exposição e exatamente porque se trata do que está por trás delas a proteção pode ser sua mais importante função Em todo caso isso é verdade para as criaturas vivas cuja superfície protege e oculta os órgãos internos que são sua fonte de vida A falácia lógica elementar de todas essas teorias que se apoiam em uma dicotomia entre o Ser e a Aparência é óbvia e foi logo descoberta e resumida pelo sofista Górgias em um fragmento que se conservou de seu desaparecido tratado Sobre o NãoSer ou Sobre a Natureza provavelmente uma refutação da filosofia eleática O Ser não é manifesto já que não aparece para nós dokein o aparecer para nós é fraco já que não consegue ser9 A incessante busca empreendida pela ciência moderna da base subjacente às meras aparências deu força nova ao velho argumento Ela obrigou o fundamento das aparências a se mostrar de tal modo que o homem uma criatura adequada às aparências e delas dependente possa se apoderar desse fundamento Mas ao contrário os resultados foram surpreendentes Ficou evidente que nenhum homem pode viver entre causas ou traduzir de modo integral e em linguagem humana ordinária um Ser cuja verdade pode ser cientificamente demonstrada em laboratório e testada praticamente no mundo real pela tecnologia E como se o Ser uma vez manifesto sujeitasse as aparências mas ninguém até hoje conseguiu viver em um mundo que não se manifeste espontaneamente 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície O mundo cotidiano do senso comum do qual não se podem furtar nem o filósofo nem o cientista conhece tanto o erro quanto a ilusão E no entanto nem a eliminação de erros nem a dissipação de ilusões pode levar a uma região que esteja além da aparência Pois quando se dissipa uma ilusão quando se rompe subitamente uma aparência é sempre em proveito de uma nova aparência que retoma por sua própria conta a função ontológica da primeira A desilusão é a perda de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência não há Schein sem uma Erscheinung toda Schein tem por contrapartida uma Erscheinung10 Para dizer o mínimo é altamente duvidoso que a ciência moderna em sua incansável busca de uma verdade por trás das meras aparências venha a ser capaz de resolver esse impasse quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao mundo das aparências embora sua perspectiva com relação a esse mundo possa diferir da perspectiva do sensocomum Historicamente falando parece que há desde os primórdios da ciência moderna uma dúvida irremovível inerente a todo o processo A primeira noção inteiramente nova trazida pela Era Moderna a idéia seiscentista de um progresso ilimitado que depois de alguns séculos transformouse no mais precioso dogma de todos os homens que vivem em um mundo cientificamente orientado destinase aparentemente a lidar com o impasse embora se espere um progresso cada vez maior ninguém parece ter acreditado que se pudesse atingir um estágio final e absoluto de verdade É óbvio que a consciência desse impasse deveria ser muito mais aguda nas ciências que lidam diretamente com os homens e a resposta reduzida ao mínimo denominador comum dos vários ramos da biologia da sociologia e da psicologia foi no sentido de interpretar todas as aparências como funções no processo vital A grande vantagem do funcionalismo é que ele nos apresenta novamente uma visão unitária do mundo e mantém intacta embora de modo diferente a velha dicotomia metafísica entre o verdadeiro Ser e a mera Aparência junto com o velho preconceito da supremacia do Ser sobre a aparência O argumento deslocouse as aparências não são mais depreciadas como qualidades secundárias mas compreendidas como condições necessárias dos processos essenciais internos ao organismo vivo Essa hierarquia foi recentemente desafiada de um modo que me parece altamente significativo Em vez das aparências serem funções do processo vital não seria o processo vital função das aparências Já que vivemos em um mundo que aparece não é muito mais plausível que o relevante e o significativo nesse nosso mundo estejam localizados precisamente na superfície Em uma série de publicações sobre as várias formas e figuras da vida animal o zoólogo e biólogo suíço Adolf Portmann mostrou que os fatos falam uma linguagem bastante diferente da simplista hipótese funcional segundo a qual as aparências em seres vivos servem puramente ao duplo propósito da autopreservação e da conservação da espécie De um ponto de vista diferente e por assim dizer mais inocente parece que ao contrário os órgãos internos que não aparecem existem unicamente para produzir sustentar as aparências Antes de todas as funções destinadas à preservação do indivíduo e da espécie está o simples fato de aparecer como uma autoexposição que torna estas funções significativas grifos nossos11 Além do mais Portmann demonstra com enorme variedade de exemplos fascinantes o que deveria ser óbvio a olho nu que a enorme variedade da vida animal e vegetal a própria riqueza de exposição em sua pura superfluidade funcional não testemunham a favor das habituais teorias que compreendem a vida em termos de funcionalidade Assim a plumagem dos pássaros em um primeiro momento considerada pela função de proteção e aquecimento é além disso formada de modo a que suas partes visíveis e apenas estas constituam uma roupagem colorida cujo valor intrínseco reside unicamente em sua aparência visível12 De um modo geral a pura e simples forma funcional tão louvada por alguns como adequada aos fins da natureza é um caso raro e especial13 E um erro portanto levar em conta unicamente o processo funcional que se passa no interior do organismo vivo e olhar tudo o que está do lado de fora e se oferece aos sentidos como uma conseqüência mais ou menos subordinada dos processos reais e centrais estes muito mais essenciais14 De acordo com o equívoco corrente a figura exterior dos animais serve para conservar o essencial o aparato interno através do movimento e da ingestão de alimentos do afastamento dos inimigos e da procura de parceiros sexuais15 Contra essa abordagem Portmann propõe sua morfologia uma ciência nova que invertería as prioridades O problema da pesquisa não é o que uma coisa é mas como ela aparece grifos nossos16 Isto significa que a própria forma de um animal deve scr vista como um órgão especial de referência em relação ao olho que a observa O olho e o que é para ser visto formam uma unidade funcional e adequamse reciprocamente segundo regras tão rígidas quanto as que determinam as relações entre os alimentos e os órgãos digestivos17 E de acordo com essa inversão Portmann distingue aparências autênticas que surgem espontaneamente e aparências inautênticas tais como as raízes de uma planta ou os órgãos internos de um animal que passam a ser visíveis unicamente através da interferência e da violação da aparência autêntica Dois fatos da mesma importância dão maior razoabilidade à essa inversão Em primeiro lugar a impressionante diferença fenomênica entre aparências autênticas e inautênticas entre formas externas e aparatos internos As formas externas são infinitamente diversas e altamente diferenciadas entre os animais mais desenvolvidos podemos em geral distinguir um indivíduo do outro Além do mais as características exteriores das coisas vivas são organizadas de acordo com uma lei de simetria de tal modo que aparecem numa ordem sempre definida e agradável Os órgãos internos ao contrário nunca constituem visão agradável uma vez forçados a aparecer dão a impressão de ter sido construídos por partes e a não ser quando deformados por um doença ou anormalidade particular parecem indiferenciados nem mesmo as várias espécies animais quanto mais os indivíduos são facilmente distinguidos pela simples inspeção das vísceras Quando Portmann define a vida como a aparição externa de um interior18 ele parece estar sendo vítima das opiniões que critica pois o fundamento de suas descobertas é que o que parece extemamente é tão inevitavelmente diferente do interior que dificilmente se pode dizer que o interior de fato apareça O interior o aparato funcional do processo vital é recoberto por um exterior que porque diz respeito àquele processo tem uma única função a saber ocultálo e protegêlo impedir sua exposição à luz de um mundo fenomênico Se esse interior tivesse que aparecer todos nós pareceriamos iguais Há em segundo lugar a evidência igualmente impressionante da existência de um impulso inato não menos coercitivo do que o mero instinto funcional da preservação a que Portmann chama impulso de auto exposição Selbstdarstellung Tal instinto é inteiramente gratuito em termos de preservação da vida ele supera de muito tudo o que se possa julgar necessário para efeito de atração sexual Tais descobertas sugerem que a predominância da aparência externa implica além da pura receptividade de nossos sentidos uma atividade espontânea tudo que pode ver quer ser visto tudo que pode ouvir pede para ser ouvido tudo que pode tocar se apresenta para ser tocado De fato é como se tudo o que está vivo para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros possuísse um impulso para aparecer para adequarse a um mundo de aparências apresentando e exibindo não seu eu interno mas a si próprio como indivíduo O termo autoexposição como o alemão Selbstdarstellung é equívoco pode significar que eu ativamente faço minha presença sentida vista e ouvida ou que apresento meu eu sef alguma coisa dentro de mim que de outra forma jamais aparecería ou seja na terminologia de Portmann uma aparência inautêntica Daqui em diante usaremos o termo na primeira acepção É precisamente esta autoexposição tão realçada já nas formas superiores da vida animal que atinge seu clímax na espécie humana A inversão morfológica que Portmann faz das antigasprioridades habituais tem conseqüências de amplo alcance que ele contudo talvez por boas razões não elaborou Ela aponta para o que chamamos valor da superfície ou seja para o fato de que a aparência revela um poder máximo de expressão comparado com o que é interno cujas funções são de uma ordem mais primitiva19 O uso da palavra expressão mostra claramente as dificuldades terminológicas que uma abordagem com tais conseqüências está destinada a enfrentar Pois uma expressão só pode expressar algo e a inevitável questão o que expressa a expressão ou seja o que a pressiona encontrará sempre a resposta algo interior uma idéia um pensamento uma emoção A expressividade de uma aparência entretanto é de uma ordem distinta ela não expressa nada a não ser a si mesma ou sej a ela exibe ou apresenta Das descobertas de Portmann podemos concluir que nossos padrões comuns de julgamento tão firmemente enraizados em pressupostos e preconceitos metafísicos segundo os quais o essencial encontrase sob a superfície e a superfície é o superficial estão errados e a nossa convicção corrente de que o que está dentro de nós nossa vida interior é mais relevante para o que nós somos do que o que aparece exteriormente não passa de uma ilusão mas quando tentamos consertar essas falácias verificamos que nossa linguagem ou ao menos nossa terminologia é falha 4 Corpo e alma alma e espírito As dificuldades são contudo muito mais do que meramente terminológicas Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e alma De fato inclinamonos a concordar que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente por si mesma mas se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores referimonos à vida da alma a relação interiorexterior verdadeira para nossos corpos não é verdadeira para nossas almas mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização interna a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais Além do mais o mesmo emprego de metáforas caracteriza nossa linguagem conceituai própria para tomar manifesta a vida do espírito As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos de cuja experiência elas são então como registrou Locke transferidas metapherein transportadas para significações mais abstrusas passando a representar idéias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos Só por meio de tal transferência poderíam os homens conceber aquelas operações que experimentaram em si mesmos e que não aparecem extemamente aos sentidos20 Locke apóiase aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõemse ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza Se olharmos mais de perto entretanto verificamos que o que é verdadeiro para o espírito a saber que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de aparecer extemamente para os sentidos mesmo essa atividade muda que não aparece já constitui uma espécie de discurso o diálogo silencioso de mim comigo mesmo não é verdadeiro para a vida da alma O discurso metafórico conceituai é de fato adequado para a atividade do pensamento para as operações do nosso espírito mas a vida da alma em sua enorme intensidade é muito melhor expressa em um olhar em um som em um gesto do que em um discurso O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria experiência mas o que pensamos dela quando sobre ela refletimos Diversamente dos pensamentos e das idéias os sentimentos as paixões e as emoções têm a mesma dificuldade dos nossos órgãos interiores para se tomar parte essencial do mundo das aparências O que aparece no mundo externo além dos sinais físicos é apenas o que deles fazemos por meio do pensamento Toda demonstração de raiva distinta da raiva que sinto já contém uma reflexão que dá à emoção a forma altamente individualizada significativa para todos os fenômenos de superfície Demonstrar raiva é uma forma de autorepresentação eu decido o que deve aparecer Em outras palavras as emoções que sinto não são mais apropriadas para serem exibidas em seu estado não adulterado do que os órgãos interiores pelos quais vivemos E verdade que eu jamais poderei transformar as emoções em aparências se elas não me impelissem a isto e se eu não as sentisse como sinto outras sensações que me mantêm cônscio do processo vital interior Mas o modo como elas se manifestam sem a intervenção da reflexão e a transferência para a linguagem pelo olhar pelo gesto pelo som inarticuladonão é diferente da maneira pela qual as espécies animais superiores comunicam emoções similares entre si ou para nós Nossas atividades espirituais ao contrário são concebidas em palavras antes mesmo de serem comunicadas mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para serem compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar assim como uma criatura dotada do sentido da visão é própria para ver e ser vista E inconcebível pensamento sem discurso pensamento e discurso antecipam um ao outro Continuamente um toma o lugar do outro21 realmente contam um com o outro E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções amor e ódio vergonha e inveja seu locus não é um órgão e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida É verdade que todas as atividades espirituais retiramse do mundo das aparências mas essa retirada não se dá em direção a um interior seja ele do eu ou da alma O pensamento e a linguagem conceituai que o acompanha necessitaà medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio onde tais apreensões imediatas de evidência não podem existir Mas as nossas experiências psíquicas são de tal modo corporalmente limitadas que falar de uma vida interna da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores E óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal ela está completamente à mercê de seu processo vital interno de seus humores e emoções cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais Toda emoção é uma experiência somática meu coração dói quando estou magoado aquece quando sinto simpatia abrese nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam e sensações físicas similares apoderamse de mim junto com a raiva o ódio a inveja e outros afetos A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento não é metafórica ela não se afasta dos sentidos nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas MerleauPonty que eu saiba o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana mas que tentou firmemente dar início a uma filosofia da carne confundiuse ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu o espírito como o outro lado do corpo já que há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles22 Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais e o próprio MerleauPonty em outro contexto reconheceu essa ausência com bastante clareza O pensamento escreve ele é fundamental porque não está fundado em nada mas nãofundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer Por princípio o pensamento fundamental não tem fundo Ele é se se quiser um abismo23 Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma e viceversa A alma embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser não é desprovida de fundo ela realmente transborda do corpo ultrapassa seus limites escondese nelee ao mesmo tempo precisa dele termina nele está ancorada nele24 A propósito essas idéias sobre o sempre difícil problema das relações corpoalma são muito antigas O De Anima de Aristóteles está repleto de tantalizadoras referências a fenômenos psíquicos e às suas estritas interconexões com o corpo em contraste com a relação ou melhor a não relação entre corpo e espírito Discutindo tais temas de um modo tentativo e peculiar Aristóteles declara parece que não há caso em que a alma possa atuar ou ser atuada sem o corpo verifiquemse os exemplos de cólera coragem apetite e sensação em geral Estar ativo sem envolver o corpo parece ser antes uma propriedade do espírito noein Mas se o espírito noein é também uma espécie de imaginação phantasia ou não é possível sem a imaginação ele noein também não poderá ser sem o corpo25 E mais adiante resumindo Nada é evidente sobre o espírito nows e a faculdade teórica mas ele parece ser um tipo diferente de alma e só esse tipo pode ser separado do corpo como o eterno é separável do perecível26 E em um dos tratados biológicos sugere que a alma sua parte vegetativa bem como suas partes nutritiva e sensitiva veio a ser no embrião não existindo previamente fora dele mas o nous entrou na alma vindo de fora garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do corpo27 Em outras palavras não há sensações que correspondam às atividades espirituais e as sensações da psique da alma são realmente sentimentos que experimentamos como nossos órgãos corporais Além do impulso de autoexposição pelo qual as coisas vivas se acomodam a um mundo de aparências os homens também apresentamse por feitos e palavras e assim indicam como querem aparecer o que em sua opinião deve ser e não deve ser visto Esse elemento de escolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultar parece ser especificamente humano Até certo ponto podemos escolher como aparecer para os outros e essa aparência não é de forma alguma a manifestação exterior de uma disposição interna se fosse todos nós provavelmente agiriamos e falaríamos do mesmo modo Também aqui devemos a Aristóteles as distinções cruciais O que é proferido diz ele são símbolos de afecções da alma e o que é escrito são símbolos de palavras faladas Como a escrita também a fala não é a mesma para todos Entretanto aquilo de que estas a escrita e a fala são símbolos as afecções pathemata da alma são as mesmas para todos Essas afecções são naturalmente expressas por sons inarticulados que também revelam algo como por exemplo o que é produzido pelos animais Distinção e individuação ocorrem no discurso no uso de verbos e substantivos e esses não são produtos ou símbolos da alma mas do espírito Os substantivos e os verbos assemelhamse eoiken aos pensamentos noemasin grifos nossos28 Se o fundamento psíquico interno de nossa aparência individual não fosse sempre o mesmo não poderia haver ciência psicológica que enquanto ciência se apoiasse em um por dentro todos nos parecemos29 de ordem psíquica assim como a fisiologia e a medicina apóiamse na mesmidade de nossos órgãos internos A psicologia a psicologia profunda ou a psicanálise revelam apenas os humores cambiantes os altos e baixos de nossa vida psíquica e seus resultados e descobertas não são particularmente interessantes nem significativos em si mesmos A psicologia individual por outro lado uma prerrogativa da ficção do romance e do drama jamais tomase uma ciência como ciência ela é uma contradição Quando a ciência moderna finalmente começou a iluminar a bíblica escuridão do coração humano sobre a qual disse Santo Agostinho Latet corbonum latet cor malum abyssus est in corde bono et in corde maio Oculto está o bom coração oculto está o mau coração há um abismo no bom coração e no mau coração30 ela revelouse um doloroso depósito multicolorido e tesouro de perversidades como já suspeitara Demócrito31 Ou para expressálo de uma forma mais positiva Das Gefühl ist herrlich wenn es im Grunde bleibt nicht aber wenn es an den Tag tritt sich zum Wesen machen und herrschen will As emoções são gloriosas quando permanecem nas profundezas mas não quando vêm à luz e pretendem tomarse essência e governar32 A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do corpo humano As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao corpo mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizálos Sem o impulso sexual que se origina em nossos órgãos reprodutivos o amor não seria possível mas enquanto o impulso é sempre o mesmo como é grande a variedade das aparências reais do amor Decerto é possível compreender o amor como a sublimação do sexo mas isso apenas quando se pensa que não há nada a ser compreendido como sexo sem amor e que nem mesmo a seleção de um parceiro sexual seria possível sem a intervenção do espírito ou seja sem uma escolha deliberada entre o que apraz e o que não apraz De forma similar o medo é uma emoção indispensável à sobrevivência ele indica perigo e sem esse sentido de advertência nenhuma coisa viva poderia durar muito tempo O homem corajoso não é aquele cuja alma carece dessa emoção ou que a pode superar de uma vez por todas mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar A coragem pode tomarse então uma segunda natureza ou um hábito mas não no sentido do destemor substituir o medo como se também ela pudesse tomarse uma emoção Tais escolhas são determinadas por vários fatores muitas delas são determinadas pela cultura em que nascemos são feitas porque queremos agradar aos outros Mas há também escolhas que não estão inspiradas em nosso ambiente podemos fazêlas porque queremos agradar a nós mesmos ou porque queremos estabelecer um exemplo isto é persuadir os demais a ter prazer com o que nos dá prazer Quaisquer que sejam os motivos o sucesso e o fracasso da iniciativa de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem assim apresentada ao mundo Já que as aparências sempre apresentaramse na forma do parecer a fraude presumida ou premeditada da parte do ator o erro e a ilusão encontramse inevitavelmente entre as potencialidades inerentes da parte do espectador A autoapresentação distinguese da autoexposição pela escolha ativa e consciente da imagem exibida a autoexposição só pode exibir as características que um ser vivo já tem A autoapresentação não seria possível sem um certo grau de autoconsciência uma capacidade inerente ao caráter reflexivo das atividades espirituais e que transcende visivelmente a simples consciência que provavelmente compartilhamos com os animais superiores Propriamente falando somente a autoapresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento e a única forma de diferenciar fingimento e simulação de realidade e verdade é a incapacidade que os primeiros desses elementos têm para perdurar guardando consistência Já foi dito que a hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude mas isso não é bem verdade Toda virtude começa com um elogio feito a ela pelo qual expresso minha satisfação com relação a ela O elogio implica uma promessa feita ao mundo feita àqueles para os quais agradeço uma promessa de agir de acordo com minha satisfação a quebra dessa promessa implícita é que caracteriza o hipócrita Em outras palavras o hipócrita não é um vilão que se satisfaz com o vício e esconde daqueles que o rodeiam a satisfação O teste que se aplica ao hipócrita é de fato a velha máxima socrática Seja como quer aparecer o que significa apareça sempre como quer aparecer para os outros mesmo quando você estiver sozinho e aparecer apenas para si mesmo Quando tomo uma decisão desse tipo não estou apenas reagindo a quaisquer qualidades que me possam ter sido dadas estou realizando um ato de escolha deliberada entre as várias potencialidades de conduta com as quais o mundo se apresentou a mim De tais atos surge finalmente o que chamamos caráter ou personalidade o conglomerado de um número de qualidades identificáveis reunidas em um identificável todo compreensível e confiável e que estão por assim dizer impressas em um substrato imutável de talentos e defeitos peculiares à nossa estrutura psíquica e corporal Por causa da relevância inegável dessas características escolhidas para nossa aparência e para nosso papel no mundo a filosofia moderna a começar por Hegel sucumbiu à estranha ilusão de que o homem ao contrário das outras coisas criouse a si mesmo Obviamente a auto apresentação e o simples estaraí da existência não são o mesmo 5 Aparência e semblância Uma vez que a escolha como fator decisivo da autoapresentação tem a ver com as aparências e uma vez que as aparências têm a dupla função de ocultar algum interior e revelar alguma superfície por exemplo ocultar o medo e revelar coragem ou seja esconder o medo mostrando coragem há sempre a possibilidade de que o que aparece possa desaparecendo resultar em mera semblância Em função da lacuna entre interno e externo entre base da aparência e aparência ou para pôr as coisas de outro modo por mais diferenciados e individualizados que nós apareçamos e por mais deliberadamente que tenhamos escolhido essa individualidade o que permanece sempre verdadeiro é que por dentro somos todos semelhantes imutáveis anão ser quanto ao funcionamento de nossos órgãos internos psíquicos e corporais ou inversamente quanto a uma intervenção feita com o propósito de remover alguma disfunção Assim há sempre um elemento de semblância em toda aparência a própria base não aparece Daí não resulta que todas as aparências sejam meras semblâncias As semblâncias só são possíveis em meio às aparências elas pressupõem as aparências como o erro pressupõe a verdade O erro é o preço que pagamos pela verdade e a semblância é o preço que pagamos pelo prodígio das aparências Erro e semblância são fenômenos intimamente relacionados correspondemse mutuamente A semblância é inerente em um mundo governado pela dupla lei do aparecer para uma pluralidade de criaturas sensíveis cada uma delas dotada das faculdades de percepção Nada do que aparece manifestase para um único observador capaz de percebêlo sob todos os seus aspectos intrínsecos O mundo aparece no modo do pareceme dependendo de perspectivas particulares determinadas tanto pela posição no mundo quanto pelos órgãos específicos da percepção Esse modo não só produz erro que posso corrigir por uma mudança de posição aproximandome do que aparece ou aguçando meus órgãos perceptivos com o auxílio de instrumentos e implementos ou ainda usando minha imaginação para levar em conta outras perspectivas mas também dá origem a semblâncias verdadeiras ou seja à aparência ilusória que não posso corrigir como corrijo um erro já que é causada por minha permanente posição na Terra e que continua inseparavelmente ligada à minha própria existência como uma das aparências terrenas A semblância dokos de dokei moi disse Xenófanes está inscrita em todas as coisas de tal modo que não há nem haverá nenhum homem que conheça claramente os deuses e tudo sobre o que falo pois mesmo que alguém tentasse dizer o que aparece em sua realidade total ele próprio não conseguiría33 De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas poderseia falar de semblâncias autênticas e inautênticas Estas últimas miragens como a de alguma fada Morgana dissolvemse espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa as primeiras como o movimento do Sol levantandose pela manhã para pôrse ao entardecer ao contrário não cederão a qualquer volume de informação científica porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia Aqui estamos lidando com aquelas ilusões naturais e inevitáveis de nosso aparelho sensorial a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de natural e inevitável porque era inseparável da razão humana e mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto não deixará de lográla e de atraíla continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções34 O argumento mais plausível senão o mais forte contra o positivismo estreito que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringese aos fatos observáveis à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar Todas as criaturas vivas capazes de perceber aparências através de seus órgãos sensoriais e de exibirse como aparências estão sujeitas a ilusões autênticas que não são as mesmas para todas as espécies mas encontramse vinculadas à forma e à modalidade de seu processo vital específico Os animais também são capazes de produzir semblâncias um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir Pôr a descoberto a verdadeira identidade de um animal por trás de sua cor adaptativa temporária não é muito diferente de desmascarar o hipócrita Mas o que aparece então sob a superfície ilusória não é um eu interno uma aparência autêntica imutável e confiável em seu estaraí Pôr a descoberto destrói uma ilusão mas não revela nada que apareça autenticamente Um eu interno se é que ele chega a existir nunca aparece nem para o sentido externo nem para o interno pois nenhum dos dados internos dispõe de características estáveis relativamente permanentes que sendo reconhecíveis e identificáveis particularizam a aparência individual Nenhum eu fixo e durável pode apresentarse nesse fluxo de aparências interiores observou Kant repetidas vezes5 Na verdade é enganoso até mesmo falar de aparências interiores tudo o que conhecemos são sensações cuja inexorável sucessão impede que qualquer uma delas assuma uma forma duradoura e identificável Pois onde quando e como houve alguma vez uma visão do interior O psiquismo é opaco para si mesmo36 Emoções e sensações internas são antimundanas pois carecem da principal característica mundana ficar imóvel e permanecer ao menos o tempo suficiente para ser claramente percebidas e não meramente detectadas intuídas identificadas e reconhecidas mais uma vez de acordo com Kant o tempo a única forma de intuição interna não tem nada de permanente37 Em outras palavras quando Kant fala do tempo como a forma da intuição interna ele fala embora sem o saber metaforicamente e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores E precisamente a ausência de forma e portanto de qualquer possibilidade de intuição que caracteriza nossa experiência das sensações internas Na experiência interna a única coisa a que podemos nos prender para distinguir algo que se assemelhe à realidade dos humores incessantemente cambiantes de nossa psique é a repetição persistente Em casos extremos a repetição pode tomarse tão persistente que resulta na permanência indestrutível de um único humor uma única sensação mas indica invariavelmente uma grave desordem psíquica a euforia do maníaco ou a depressão do melancólico 6 O ego pensante e o eu Kant O conceito de aparência e portanto o de semblância de Erscheinung e de Schein nunca desempenhou um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant A noção kantiana de uma coisaem si algo que é mas que não aparece embora produza aparências pode ser explicada como de fato o foi nos termos de uma tradição teológica Deus c algo Ele não c igual a nada Deus pode ser pensado mas somente como o que não aparece o que não é dado à nossa experiência e portanto como o que é em si mesmo e como Ele não aparece não épara nós Essa interpretação tem suas dificuldades Para Kant Deus é uma idéia de razão e como tal para nós Pensar Deus e especular sobre um além é segundo Kant inerente ao pensamento humano uma vez que a razão a capacidade especulativa do homem transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto somente o que aparece e no modo do pareceme é dado à experiência pode ser conhecido mas os pensamentos também são e algumas coisaspensamento a que Kant chama idéias embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis tais como Deus a liberdade e a imortalidade são para nós no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensálas e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito Talvez seja pois aconselhável examinar em que medida a noção de uma coisaemsi que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um mundo de aparências independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito Há em primeiro lugar a circunstância ordinária ao contrário da conclusão de Kant mencionada anteriormente de que toda coisa viva já que aparece possui uma base que não é aparência mas que pode ser forçada a aparecer e tomarse o que Portmann chama de aparência inautêntica De fato segundo a compreensão de Kant as coisas que não aparecem espontaneamente mas cuja existência pode ser demonstrada órgãos internos raízes de árvores e plantas etc também são aparências Assim sua conclusão de que as próprias aparências devem ter uma base que não é ela mesma uma aparência e portanto devem apoiarse em um objeto transcendente38 que as determina como meras representações39 ou seja devem apoiarse em algo que em princípio é de uma ordem ontológica totalmente distinta essa conclusão parece claramente ter sido retirada de uma analogia com os fenômenos deste mundo um mundo que contém tanto as aparências autênticas quanto as inautênticas e no qual as aparências inautênticas à medida que contêm o próprio aparelho do processo vital parecem causar as aparências autênticas O preconceito teológico no caso de Kant a necessidade de fazer com que os argumentos favoreçam a existência de um mundo inteligível comparece aqui na expressão meras representações como se Kant houvesse esquecido sua própria tese central Afirmamos que as condições de possibilidade da experiência em geral são também condições da possibilidade dos objetos da experiência e que por esta razão elas têm validade objetiva em um juízo sintético a priori A razoabilidade do argumento de Kant o que leva alguma coisa a aparecer deve ser de uma ordem distinta da própria aparência apóiase em nossa experiência desses fenômenos vitais mas a ordem hierárquica entre o objeto transcendente a coisaemsi e as meras representações não e é esta ordem de prioridades que a tese de Portmann inverte Kant perdeuse por causa do seu grande desejo de sustentar cada um e todos os argumentos que mesmo incapazes de chegar a uma prova definitiva pudessem ao menos tornar irresistivelmente plausível a tese de que há indubitavelmente algo distinto do mundo que contém o fundamento da ordem do mundo41 e que por conseguinte esse algo é ele mesmo de uma ordem superior Se confiarmos unicamente em nossas experiências com as coisas que aparecem e que não aparecem e começarmos a especular na mesma direção podemos da mesma maneira e com razoabilidade muito maior concluir que talvez haja de fato uma base fundamental por trás do mundo das aparências mas que o significado principal e talvez o único dessa base está nos seus efeitos ou seja no que eia faz aparecer mais do que em sua pura criatividade Se o que causa as aparências sem chegar mesmo a aparecer é divino então os órgãos internos do homem poderíam tomarse verdadeiramente divindades Em outras palavras a comum compreensão filosófica do Ser como o fundamento da Aparência é verdadeira para o fenômeno da Vida mas o mesmo não pode ser dito sobre a comparação valorati va entre Ser e Aparência que está no fundo de todas as teorias dos dois mundos Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências mas ao contrário da experiência nãoordinária do ego pensante Como veremos mais adiante a experiência transcende não só a Aparência mas o próprio Ser Kant identifica explicitamente o fenômeno que forneceu a base real para sua crença numa coisaemsi por sob as meras aparências o fato de que na consciência que tenho de mim na pura atividade do pensar beim blossen Denken sou a própria coisa das Wesen selbst ou seja das Ding an sich sem que por isso nada de mim seja dado ao pensamento42 Se reflito sobre a relação que estabeleço de mim para comigo na atividade de pensar pode parecer que meus pensamentos seriam meras representações ou manifestações de um ego que se mantém ele próprio para sempre oculto pois naturalmente os pensamentos nunca se parecem com propriedades atribuíveis a um eu ou a uma pessoa O ego pensante é pois a coisaemsi de Kant ele não aparece para os demais e diferentemente do eu da autoconsciência ele não aparece para si mesmo Ainda assim ele não é igual a nada O ego pensante é pura atividade c portanto não tem idade sexo ou qualidades e não tem uma história de vida Quando sugeriram que escrevesse sua autobiografia Etienne Gilson respondeu Um homem de setenta e cinco anos deveria ter muitas coisas a dizer sobre seu passado mas se ele viveu apenas como filósofo percebe imediatamente que não tem nenhum passado43 Pois o ego pensante não é o eu Há uma observação incidental em São Tomás de Aquino uma das que tanto dependemos em nossa pesquisa que soa de forma misteriosa a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o ego pensante e o eu Minha alma em São Tomás o órgão do pensamento não sou eu e se apenas as almas forem salvas nem eu nem homem algum estará salvo44 O sentido interno que nos poderia propiciar a apreensão da atividade de pensar em alguma forma de intuição interior não tem em que se prender segundo Kant porque suas manifestações são inteiramente diferentes das manifestações com que se confronta o sentido externo que encontra algo imóvel e permanente ao passo que o tempo a única forma de intuição interna nada tem de permanente45 Assim tenho consciência de mim não de como apareço para mim não de como sou em mim mesmo mas apenas de que sou Essa representação é um pensamento não uma intuição E acrescenta em nota de rodapé O eu penso expressa o ato de determinação de minha existência A existência portanto já está dada mas não está dado o modo como eu sou46 Kant chama repetidas vezes a atenção para esse ponto na Crítica da razão pura nada permanente é dado na intuição interna quando penso em mim mesmo47 Mas faríamos melhor se nos voltássemos para os escritos précríticos de maneira a encontrar uma descrição real das puras experiências do ego pensante No Trãume eines Geistersehers erlautert durch Trüume derMetaphysik 1766 Kant sublinha a imaterialidade do mundus intelligibilis o mundo em que se move o ego pensante em contraste com a inércia e a constância da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências Nesse contexto ele distingue a noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito Geísí por meio de uma intuição imaterial e a consciência através da qual ela se apresenta como homem utilizandose de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais E sempre portanto o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível mas não a mesma pessoa já que o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e ao contrário meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito E em uma estranha nota de rodapé Kant fala de uma certa dupla personalidade que é própria da alma mesmo nesta vida ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo quando os sentidos externos encontramse em total repouso Ele suspeita de que as idéias durante o sono podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as idéias em estado de vigília precisamente porque o homem em tais ocasiões não é sensível ao seu corpo E não recordamos nada dessas idéias quando despertamos Os sonhos são algo ainda diferente eles não são daqui Pois nesse caso o homem não adormece completamente e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores48 Tais idéias de Kant quando compreendidas como constituintes de uma teoria dos sonhos são evidentemente absurdas Mas são interessantes como tentativa um tanto desajeitada de dar conta das experiências espirituais de retirada do mundo real Pois é preciso que se dê alguma explicação sobre uma atividade que ao contrário de qualquer outra atividade ou ação nunca encontra resistência por parte da matéria Ela não é sequer obstaculizada ou retardada quando se manifesta em palavras formadas por órgãos sensoriais A experiência da atividade do pensamento é provavelmente a fonte original de nossa própria noção de espiritualidade independentemente das formas que ela tenha assumido Em termos psicológicos uma das mais notáveis características do pensamento é sua incomparável rapidez rápido como o pensamento disse Homero e Kant em seus primeiros escritos mencionou inúmeras vezes a Hurtigkeit des Gedankens49 Naturalmente o pensamento é veloz porque é imaterial e isso por sua vez acaba por explicar a hostilidade que tantos dos grandes metafísicos tinham em relação a seus próprios corpos Do ponto de vista do ego pensante o corpo é apenas um obstáculo Concluir a partir dessa experiência que existem coisasemsi as quais em sua própria esfera inteligível são como nós somos no mundo das aparências é uma das falácias metafísicas ou ainda uma das semblâncias da razão cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir esclarecer e dirimir Parece muito apropriado que esta falácia como a maioria das outras que afligiram a tradição filosófica tenha tido origem nas experiências do ego pensante Em todo caso ela apresenta uma semelhança óbvia com outra falácia muito mais simples e mais comum mencionada por PF Strawson em um ensaio sobre Kant Uma antiga crença é a de que a razão é algo essencialmente fora do tempo e mesmo assim em nós Sem dúvida ela tem seu fundamento no fato de que podemos apreender verdades lógicas e matemáticas Mas uma pessoa que apreende verdades intemporais não precisa ela mesma ser intemporal50E típico da escola crítica de Oxford compreender essas falácias como non sequiturs lógicos como se os filósofos ao longo dos séculos e por razões desconhecidas tivessem sido estúpidos demais para perceber as falhas elementares de seus argumentos A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia o que para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como sem sentido parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências Assim em nosso contexto a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou inautênticas se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que embora parte do mundo das aparências tem uma faculdade a habilidade de pensar que permite ao espírito retirarse do mundo sem jamais poder deixálo ou transcendêlo 7 Realidade e ego pensante dúvida cartesiana e sensus communis A realidade em um mundo de aparências é antes de mais nada caracterizada por ficar imóvel e permanecer a mesma o tempo suficiente para tomarse um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito A descoberta básica e mais importante de Elusserl trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos de consciência ou seja do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto Embora a árvore vista possa ser uma ilusão para o ato de ver ela é um objeto Da mesma forma embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador ela é objeto de seu sonho A objetividade é construída na própria subjetividade da consciência em virtude da intencionalidade Ao contrário e com a mesma justeza podese falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida Exatamente porque todos os objetos implicam um sujeito e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional Nas palavras de Portmann toda aparência é uma emissão para receptores uma Sendungfür Empfangsapparate O que quer que apareça visa a alguém que o perceba um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e por isso sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais tem conseqüências de longo alcance para o que nós seres que aparecem em um mundo de aparências entendemos por realidade tanto a nossa quanto a do mundo Em ambos os casos nossa fé perceptiva51 como designou MerleauPonty nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo pelo qual aparecemos para nós mesmos Eis porque as teorias solipsistas seja quando proclamam radicalmente que só o eu existe seja quando mais moderadamente asseveram que o eu e sua consciência de si são objetos primários do conhecimento verificável estão em desarmonia com os dados mais elementares de nossa existência e de nossa experiência O solipsismo aberto ou velado com ou sem qualificativos foi a mais persistente e talvez a mais perniciosa falácia filosófica mesmo antes de adquirir com Descartes um alto nível de consistência teórica e existencial Quando o filósofo fala do homem ele não tem em mente nem o ser da espécie o Gattungswesen como cavalo ou leão que segundo Marx constitui a existência fundamental do homem nem o mero paradigma do que de seu ponto de vista todos os homens deveríam se esforçar para atingir Para o filósofo falando a partir da experiência do ego pensante o homem é muito naturalmente não apenas verbo mas pensamento feito carne a encarnação sempre misteriosa nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento E o problema desse ser fictício é que ele nem é o produto de um cérebro doentio nem um desses erros do passado facilmente solucionáveis mas a semblância inteiramente autêntica da própria atividade de pensar Pois quando um homem se entrega ao puro pensamento por qualquer razão que seja e independentemente do assunto ele vive completamente no singular ou seja está completamente só como se o Homem e não os homens habitasse o planeta O próprio Descartes explicou e justificou seu subjetivismo radical pela decisiva perda de certezas legada pelas grandes descobertas científicas da Era Moderna em outro contexto procurei acompanhar o pensamento de Descartes52 Entretanto quando assediado no início pelas dúvidas inspiradas pela ciência moderna decidiu à rejeter la terre mouvante et le sable pour trouver le roc ou 1argile rejeitar a areia movediça e o lodo para encontrar a pedra e o barro ele certamente redescobriu um terreno bastante familiar retirandose para um lugar onde podería viver aussi solitaire et retiré que dans les déserts les plus écartés tão só e afastado como nos mais remotos desertos53 Retirarse da bestialidade da multidão para ficar na companhia dos muito poucos54 e também no estarsó absoluto do Um tem sido a principal característica da vida do filósofo desde o1 armênides e Platão descobriram que para aqueles muito poucos o soph a vida do pensamento que não conhece nem dor nem alegria é a mais divin e que o nous o próprio pensamento é o rei da terra e do céu55 Descartes fiel ao subjetivismo radical primeira reação dos filósofos às novas glórias da ciência já não atribuía as satisfações dessa forma de vida aos objetos do pensamento a eternidade do kosmos que nem passa a ser nem deixa de ser e que desse modo confere uma parcela de imortalidade àqueles poucos que decidiram passar a vida contemplandoa A bem moderna suspeita cartesiana com relação ao aparelho sensorial e cognitivo do homem fez com que ele definissecom maior clareza do que qualquer outro filósofo anterior como propriedades da res cogitans certas características que não sendo desconhecidas dos antigos assumiram agora talvez pela primeira vez uma importância suprema Entre essas características destacavamse a autosuficiência ou seja o fato de que esse ego não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de qualquer coisa material e também a nãomundanidade isto é que na autoinspecção examinant avec attention ce que jetais seria possível facilmente feindre q1 e je n avais aucun corps et qu il n y avait aucun monde ni aucun lieu ou je fusse fingir que não tinha corpo e que não havia nenhum mundo nem lugar algum onde eu fosse56 De fato nenhuma destas descobertas ou melhor redescobertas foi em si mesma de grande relevância para Descartes Seu interesse principal era encontrar algo o ego pensante ou em suas próprias palavras la chose pensante que ele identificava à alma cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita para além das ilusões da percepção sensorial Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma consciência que abandonou toda a experiência sensível Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão o sonhador quando concorda em não exigir realidade do sonho deve ser real Assim Je pense done je suis Penso logo existo Por um lado era tão forte a experiência da própria atividade de pensar e por outro tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu la terre mouvante a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual pomos de pé que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitado e nenhum cogito me cogitare nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais poderia convencêlo de sua própria realidade de que ele teria realmente nascido em um deserto sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas materiais e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas A res cogitans cartesiana essa criatura fictícia sem corpo sem sentidos e abandonada sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal entre o mundo comum da vida consciente e o nãomundo privado de nossos sonhos O que MerleauPonty tinha a dizer contra Descartes disseo de modo brilhante e correto Reduzir a percepção ao pensamento de perceber é fazer um seguro contra a dúvida cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar pois é passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o há do mundo57 Além do mais é precisamente a atividade do pensamento as experiências do ego pensante que gera dúvida sobre a realidade do mundo e de mim mesmo O pensamento pode apoderarse de tudo que é real evento objeto seus próprios pensamentos a realidade disso tudo é a única propriedade que permanece persistentemente além de seu alcance O cogito ergo sum é uma falácia não apenas no sentido observado por Nietzsche de que do cogito só se pode inferir a existência de cogitationes o cogito está sujeito à mesma dúvida que o sum O euexisto está pressuposto no eupenso O pensamento pode agarrarse a esta pressuposição mas não pode demonstrar se ela é falsa ou verdadeira O argumento de Kant contra Descartes também estava inteiramente correto o pensamento eu não sou não pode existir pois se eu não sou conseqüentemente não posso saber que não sou58 A realidade não pode ser derivada O pensamento ou a reflexão podem aceitála ou rejeitála e a dúvida cartesiana partindo da noção de um Dieu trompeur é apenas uma forma velada e sofisticada de rejeição59 Restou a Wittgenstein que planejou investigar quanta verdade há no solipsismo e assim tomouse seu mais destacado representante contemporâneo formular a ilusão existencial subjacente a todas as teorias solipsistas Com a morte o mundo não se altera apenas chega a um fim A morte não é um evento na vida nós não vivemos nossa morte60 Essa é a premissa básica de todo pensamento solipsista Embora tudo o que apareça seja percebido na modalidade do pareceme e assim seja passível de erro e ilusão a aparência como tal traz consigo uma indicação prévia de realidade Todas as experiências sensoriais são normalmente acompanhadas ainda que de forma silenciosa pela sensação adicional de realidade e isto a despeito do fato de que nenhum de nossos sentidos tomados de modo isolado e nenhum objeto sensível retirado de seu contexto possa produzir aquela sensação Portanto a arte que transforma objetos sensíveis em coisaspensamento retiraos antes de mais nada de seu contexto com o propósito de desrealizálos e assim prepará los para sua nova e diferente função Por um lado a realidade do que percebo é garantida por seu contexto mundano que inclui outros seres que percebem como eu por outro lado ela é percebida pelo trabalho conjunto de meus cinco sentidos O que desde São Tomás de Aquino chamamos de sensocomum sensuscommunis é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo toco provo cheiro e ouço é a mesma faculdade que se estende a todos os objetos dos cinco sentidos61 Esse mesmo sentido um sexto sentido misterioso62 porque não pode ser localizado como um órgão corporal adequa as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados tão privados que as sensações em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais são incomunicáveis a um mundo comum compartilhado pelos outros A subjetividade do pareceme é remediada pelo fato de que o mesmo objeto também aparece para os outros ainda que o seu modo de aparecer possa ser diferente É a intersubjeti vidade do mundo muito mais do que a similaridade da aparência física que convence os homens de que eles pertencem à mesma espécie Ainda que cada objeto singular apareça numa perspectiva diferente para cada indivíduo o contexto no qual aparece é o mesmo para toda a espécie Nesse sentido cada espécie animal vive em um mundo que lhe é próprio e cada indivíduo animal não precisa comparar suas próprias características físicas com as de seus semelhantes para conhecêlos como tais Em um mundo de aparências cheio de erros e semblâncias a realidade é garantida por esta tríplice comunhão os cinco sentidos inteiramente distintos uns dos outros têm em comum o mesmo objeto membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico e todos os outros seres sensorialmente dotados embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas estão de acordo acerca de sua identidade É dessa tríplice comunhão que surge a sensação de realidade A cada um de nossos cinco sentidos corresponde uma propriedade do mundo específica e sensorialmente perceptível Nosso mundo é visível porque dispomos de visão audível por que dispomos de audição palpável e repleto de gostos e odores porque dispomos de tato paladar e olfato A propriedade mundana que corresponde ao sexto sentido é a realidade realness a dificuldade que ela apresenta é que não pode ser percebida como as demais propriedades sensoriais O sentido de realidade realness não é estritamente falando uma sensação a realidade está lá mesmo que nunca tenhamos certeza de conhecêla Peirce63 pois a sensação de realidade do mero estaraí relacionase ao contexto no qual objetos singulares aparecem assim como ao contexto no qual nós como aparências existimos em meio a outras criaturas que aparecem O contexto como tal nunca aparece completamente ele é evasivo quase como o Ser que como Ser nunca aparece em um mundo repleto de seres de entes singulares Mas o Ser que é desde Parmênides o mais elevado conceito da filosofia ocidental é uma coisapensamento que nós não esperamos que seja percebida pelos sentidos ou que produza uma sensação ao passo que a realidade realness é parente da sensação um sentimento de realidade realness ou irrealidade acompanha de fato todas as sensações de meus sentidos que sem ele não fariam sentido Eis porque São Tomás definia o senso comum seu sensus communis como um sentido interno sensus interior que funcionava como a raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores Sensus interior non dicitur communis sicut genus sed sicut communis radix et principium exteriorum sensuum64 E tentador equiparar esse sentido interno que não pode ser fisicamente localizado com a faculdade do pensar porque entre as principais características do pensamento que se dá em um mundo de aparências e é realizado por um ser que aparece está a de que ele próprio é invisível Partindo do fato de que essa invisibilidade é compartilhada pela faculdade de pensar e pelo senso comum Peirce conclui que a realidade tem uma relação com o pensamento humano ignorando que o pensamento não só é ele próprio invisível mas também lida com invisíveis com coisas que não estão presentes aos sentidos embora possam ser e freqüentemente são também objetos sensíveis relembrados e reunidos no depósito da memória e assim preparados para reflexão posterior Thomas Landon Thorson elabora a sugestão de Peirce e chega à conclusão de que a realidade mantém uma relação com o processo do pensamento da mesma forma que o ambiente se relaciona com a evolução biológica65 Essas observações e sugestões estão baseadas no pressuposto tácito de que os processos do pensamento não são sob qualquer aspecto distintos do raciocínio do senso comum o resultado é a velha ilusão cartesiana sob disfarce moderno O que quer que o pensamento possa atingir e conquistar é precisamente a realidade tal como é dada ao senso comum em seu mero estaraí que permanece para sempre além de seu alcance indissolúvel em séries de pensamentos o obstáculo que os alerta e diante do qual eles cedem em afirmação ou negação Os processos do pensamento diferentemente dos processos do senso comum podem ser fisicamente localizados no cérebro e não obstante transcendem quaisquer dados biológicos sejam eles funcionais ou morfológicos no sentido de Portmann O senso comum e o sentido de realidade ao contrário fazem parte de nosso aparelho biológico e o raciocínio do senso comum que a escola filosófica de Oxford confunde com o pensamento poderia certamente manter com a realidade a mesma relação que há entre evolução biológica e ambiente Thorson está certo com referência ao raciocínio do senso comum Podemos estar falando em mais do que uma analogia podemos estar descrevendo dois aspectos do mesmo processo66 E se a linguagem além de seu tesouro de palavras destinadas às coisas dadas aos sentidos não nos oferecesse essas palavraspensamento tecnicamente chamadas conceitos como justiça verdade coragem divindade e assim por diante palavras indispensáveis mesmo na linguagem comum nós certamente perderiamos toda evidência tangível da atividade de pensar e poderiamos encontrar justificativa para concordar com o jovem Wittgenstein Die Sprache ist ein Teil unseres Organismus A linguagem é uma parte de nosso organismo67 O pensamento que submete à dúvida tudo de se que apossa não possui entretanto nenhuma relação desse tipo natural ou prosaica com a realidade Foi o pensamento a reflexão de Descartes acerca do significado de certas descobertas científicas que destruiu sua confiança de senso comum na realidade seu erro foi esperar que pudesse superar a dúvida insistindo em retirarse completamente do mundo eliminando cada realidade múndana de seus pensamentos e concentrandose exclusivamente na própria atividade do pensar Cogito cogitationes ou cogito me cogitare ergo sum é a forma correta da famosa fórmula Mas o pensamento não pode provar nem destruir o sentimento de realidade realness que deriva do sexto sentido e que foi denominada pelos franceses talvez por essa mesma razão de le bon sens o bom senso quando o pensamento se retira do mundo das aparências ele se retira do sensorialmente dado e assim também do sentimento de realidade realness dado pelo senso comum Husserl argumentava que a suspensão epoche deste sentimento era o fundamento metodológico de sua ciência fenomenológica Para o ego pensante essa suspensão é natural não é de modo algum um método especial a ser ensinado e aprendido nós o conhecemos sob o fenômeno muito comum do alheamento que se observa nas pessoas absorvidas por qualquer tipo de pensamento Em outras palavras a perda do senso comum não é nem o direito nem a virtude dos pensadores profissionais de Kant ocorre a todo aquele que pensa em algo ocorre apenas com mais freqüência entre os pensadores profissionais A estes chamamos filósofos e seu modo de vida será sempre o da vida de um estrangeiro bios xenikos como denominou Aristóteles em sua Política1 Essa estranheza e esse alheamento não são mais perigosos de tal forma que todos os pensadores sejam profissionais ou leigos sobrevivem com facilidade à perda do sentido de realidade realness porque o ego pensante afirma se apenas temporariamente Qualquer pensador não importa quão importante seja permanece um homem como você e eu Platão uma aparência entre aparências dotada de senso comum e dispondo de um raciocínio de senso comum suficiente para sobreviver 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado À primeira vista algo muito semelhante parece valer para o cientista moderno que constantemente destrói semblâncias autênticas sem contudo destruir sua própria sensação de realidade Esta lhe diz como nos diz a todos que o Sol nasce pela manhã e se põe à tarde Foi o pensamento que permitiu ao homem penetrar nas aparências e desmascarálas como semblâncias ainda que autênticas o raciocínio do senso comum jamais teria ousado contestar de modo tão radical todas as plausibilidades de nosso aparelho sensorial A famosa querela entre os antigos e os modernos suscita realmente a questão de qual seja o propósito do conhecimento trata se de salvar os fenômenos como acreditavam os antigos ou de descobrir o aparelho funcional oculto que os faz aparecer A dúvida do pensamento a respeito da confiabi lidade da experiência sensorial sua suspeita de que as coisas possam ser distintas da maneira pela qual aparecem aos sentidos humanos não era de modo algum inusitada na Antigüidade Os átomos de Demócrito eram não só indivisíveis mas invisíveis movendose em um vazio infinitos em número e por meio de várias configurações e combinações produziam impressões em nossos sentidos Aristarco no terceiro século antes de Cristo formulou pela primeira vez a hipótese heliocêntrica É interessante notar que as conseqüências de tais ousadias foram bastante desagradáveis Demócrito ficou sob suspeita de insanidade e Aristarco foi ameaçado com uma acusação de impiedade Mas naturalmente o ponto mais relevante é que nenhuma tentativa foi feita para provar essas hipóteses e delas não surgiu ciência alguma O pensamento tem sem dúvida um papel muito grande em toda busca científica mas o papel de um meio em relação a um fim o fim é determinado por uma decisão a respeito do que vale a pena conhecer e essa decisão não pode ser científica Além do mais o fim é o conhecimento ou a cognição que uma vez obtidos pertencem claramente ao mundo das aparências uma vez estabelecidos como verdadeiros tomamse parte integrante do mundo A cognição e a sede de conhecimento nunca abandonam completamente o mundo das aparências se o cientista se retira dele para pensar é apenas com o intuito de encontrar abordagens do mundo melhores e mais promissoras que se chamam métodos Nesse sentido a ciência é apenas um prolongamento muito refinado do raciocínio do senso comum no qual as ilusões dos sentidos são constantemente dissipadas como são corrigidos os erros na ciência O critério em ambos os casos é a evidência que como tal é inerente a um mundo de aparências E já que é da própria natureza das aparências revelar e ocultar cada correção e cada Jesilusão nas palavras de MerleauPonty é a perda de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência69 Ainda que consideremos a compreensão que a ciência tem de seu próprio empreendimento nada garante que a nova evidência seja mais confiável do que a evidência descartada O próprio conceito de um progresso ilimitado que acompanhou o despertar da ciência moderna e permaneceu como seu princípio inspirador dominante é o melhor testemunho de que toda a ciência ainda se move no âmbito da experiência do senso comum sujeita ao erro e à ilusão corrigíveis A generalização da experiência da correção permanente na pesquisa científica conduz ao curioso cada vez melhor cada vez mais verdadeiro ou seja ao progresso ilimitado e à aceitação a ele inerente de que o bom e o verdadeiro são inatingíveis Caso eles pudessem ser alcançados a sede de conhecimento estaria satisfeita e a busca cognitiva chegaria ao fim E evidente que é muito pouco provável que isso aconteça tendo em vista a enorme extensão do que ainda permanece desconhecido mas é bastante provável que as ciências particulares alcancem limites bem definidos para o que é por nós cognoscível A questão entretanto é que a moderna idéia de progresso nega implicitamente tais limites A noção de progresso inquestionavelmente nasceu como produto de enormes avanços do conhecimento científico uma verdadeira avalanche de descobertas ao longo dos séculos XVI e XVII e acho bem provável que depois de invadir as ciências a inexorabilidade inerente ao próprio pensamento cuja necessidade nunca pode ser mitigada tenha levado os cientistas a descobertas renovadas cada qual delas por sua vez dando lugar a uma nova teoria de tal forma que os que foram pegos nesse movimento ficaram sujeitos à ilusão de um processo sem fim o processo do progresso Não devemos nos esquecer aqui que a posterior noção de um aperfeiçoamento infinito da espécie humana tão destacado no Iluminismo oitocentista estava ausente nos séculos XVI e XVII séculos mais pessimistas nas avaliações sobre a natureza humana Pareceme entretanto óbvia e de considerável importância uma das conseqüências desse desenvolvimento A própria noção de verdade que de alguma forma sobreviveu a tantos momentos cruciais de nossa história intelectual sofreu uma mudança decisiva ela foi transformada ou melhor partida em uma enorme corrente de veracidades cada uma das quais a seu tempo reivinvicando validade geral ainda que a própria continuidade da pesquisa implicasse algo meramente provisório Esse é um estranho estado de coisas Pode até sugerir que se uma dada ciência acidentalmente atingisse seu objetivo isso absolutamente não interrompería o trabalho dos pesquisadores naquele campo eles seriam lançados para além de seu objetivo pelo simples momentum da ilusão do progresso infinito uma espécie de semblância derivada de sua própria atividade A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um mundo de aparências O pensamento retirase radicalmente e por sua própria conta deste mundo e de sua natureza evidenciai ao passo que a ciência se beneficia de uma possível retirada em função de resultados específicos Em outras palavras nas teorias científicas é o raciocínio do senso comum que em última análise se aventura no âmbito da pura especulação e a principal fraqueza do senso comum nessa esfera sempre foi não possuir as salvaguardas inerentes ao mero pensamento a saber sua capacidade crítica que como veremos guarda em si uma forte tendência autodestrutiva Mas voltando ao pressuposto do progresso ilimitado a falácia básica foi muito cedo descoberta Sabese bem que não foi o progresso per se mas a idéia de sua nãolimitação que teria tornado a ciência moderna inaceitável para os antigos Mas é menos conhecido o fato de que os gregos tinham uma razão para seu preconceito contra o infinito Platão descobriu que tudo o que admite um comparativo é por sua natureza ilimitado e a ausência de limite era para ele como para os demais gregos a causa de todos os males71 Daí sua grande confiança nos números e nas medidas eles põem limite naquilo que por si o prazer por exemplo não contém e nunca conterá e do qual não deriva e nunca derivará nem começo arche nem meio nem fim reos71 O fato da ciência moderna sempre em busca de manifestações do invisível átomos moléculas partículas células genes ter acrescentado ao mundo uma quantidade espetaculare inédita de novos objetos perceptíveis é apenas um aparente paradoxo Para provar ou refutar suas hipóteses seus paradigmas Thomas Kuhn e descobrir o que faz as coisas funcionarem a ciência começou a imitar os processos operativos da natureza Com esse fim produziu os mais incontáveis e complexos instrumentos com que força o que não aparece a aparecer pelo menos como leitura de instrumentos de laboratório pois esse era o único meio de que o cientista dispunha para persuadirse da realidade daquelas coisas A moderna tecnologia nasceu no laboratório mas não porque os cientistas quisessem produzir resultados práticos ou mudar o mundo Não importa quanto suas teorias se distanciem da experiência e do raciocínio do senso comum elas devem no final retomar a eles de alguma forma ou perder todo sentido de realidade do objeto de sua investigação E esse retorno só é possível através do mundo artificial do laboratório um mundo feito pelo homem onde o que não aparece espontaneamente é forçado a aparecer e a desvelarse A tecnologia o trabalho de encanador um tanto desprezado pelo cientista que vê a aplicabilidade prática como um mero subproduto de seus próprios esforços introduz descobertas científicas feitas em um insulamento das exigências da vida laica e cotidiana sem paralelo72 no mundo cotidiano das aparências e tomaas acessíveis à experiência do senso comum Mas isto só é possível porque os próprios cientistas dependem em última instância dessa experiência Visto da perspectiva do mundo real o laboratório é a antecipação de um ambiente alterado e os processos cognitivos que usam as habilidades humanas de pensar e fabricar como meios para seus fins são os modos mais refinados do raciocínio do senso comum A atividade de conhecer não está menos relacionada ao nosso sentido de realidade e é tanto uma atividade de construção do mundo quanto a edificação de casas Entretanto a faculdade de pensar que Kant como vimos chamou Vernunft razão para distinguir de Verstand intelecto a faculdade de cognição é de uma natureza inteiramente diversa A distinção em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant encontrase no fato de que os conceitos da razão nos servem para conceber begreifen compreender assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções Vernunftbegriffe dienen zum Begreifen wie Verstandesbegriffe zum Verstehen der WahrnehmungenV Em outras palavras o intelecto Verstand deseja apreender o que é dado aos sentidos mas a razão Vernunft quer compreender seu significado A cognição cujo critério mais elevado é a verdade deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais cujo testemunho é autoevidente ou seja inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência Como tradução alemã da palavra latinaperceptio o termo Wahrnehmung usado por Kant o que me é dado na percepção e deve ser verdadeiro Wahr indica claramente que a verdade está situada na evidência dos sentidos Mas esse não é o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe sua existência é sempre tomada como certa mas o que significa para ela ser Essa distinção entre verdade c significado pareceme não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano mas parece ser também a conseqüência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e intelecto Devese admitir que Kant jamais desenvolveu essa implicação particular de seu próprio pensamento uma linha clara de demarcação entre essas duas modalidades inteiramente distintas não pode ser encontrada na história da filosofia As exceções observações ocasionais sobre a interpretação não têm importância para a filosofia posterior a Aristóteles Naquele primeiro tratado sobre a linguagem ele escreve Todo logos proposição no contexto é um som significativo phone semantike ele dá um sinal aponta para alguma coisa Mas nem todo logos é revelador apophantikos somente aqueles nos quais tem vigência o discurso verdadeiro ou o discurso falso aletheuein ou pseudesthai Nem sempre é esse o caso Por exemplo uma oração é um logos é significativa mas não é verdadeira nem falsa74 As questões levantadas por nossa sede de conhecimento derivam de nossa curiosidade sobre o mundo nosso desejo de investigar qualquer coisa que seja dada ao nosso aparelho sensorial A primeira e famosa afirmação da Metafísica de Aristóteles Pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei15 Todos os homens por sua natureza desejam conhecer traduzida literalmente diz o seguinte Todos os homens desejam ver e ter visto ou seja conhecer Ao que Aristóteles imediatamente acrescenta Um indício é nosso amor pelos sentidos pois eles são amados por si mesmos independentemente de seu uso As questões despertadas pelo desejo de conhecer podem todas em princípio ser respondidas pela experiência e pelo raciocínio do senso comum estão expostas ao erro e à ilusão corrigíveis da mesma forma que percepções e experiências sensoriais Mesmo a inexorabilidade do Progresso da ciência moderna que constantemente se corrige a si própria descartando respostas e reformulando questões não contradiz o objetivo básico da ciência ver e conhecer o mundo tal como ele é dado aos sentidos e seu conceito de verdade é derivado da experiência que o senso comum faz da evidência irrefutável que dissipa o erro e a ilusão Mas as questões levantadas pelo pensamento porque é da própria natureza da razão formulálas questões de significado são todas elas irrespondíveis pelo senso comum e por sua sofisticada extensão a que chamamos ciência A busca de significado não tem significado para o senso comum e para o raciocínio do senso comum pois é função do sexto sentido adequarnos ao mundo das aparências e deixarnos em casa no mundo dado por nossos cinco sentidos Aí estamos e não fazemos perguntas O que a ciência e a busca de conhecimento procuram é a verdade irrefutável ou seja proposições que os seres humanos não estão livres para refutar são coercitivas Como sabemos desde Leibniz elas podem ser de dois tipos verdades da razão e verdades de fato A principal distinção entre elas está no grau de sua força de coerção as verdades da razão são necessárias e seu contrário é impossível ao passo que as de fato são contingentes e seu contrário é possível76 A distinção é importante embora talvez não no sentido em que o próprio Leibniz a compreende As verdades de fato a despeito de sua contingência são tão coercitivas para quem as testemunha com os próprios olhos quanto a proposição de que dois mais dois são quatro para qualquer pessoa em sã consciência Apenas a questão é que um fato um evento nunca pode ser testemunhado por todos os que estão eventualmente nele interessados ao passo que a verdade racional ou matemática apresentase como autoevidente para qualquer um dotado do mesmo poder cerebral sua natureza coercitiva é universal enquanto a força coercitiva da verdade factual é limitada ela não alcança aqueles que não tendo sido testemunhas têm que confiar no testemunho de outros em quem se pode ou não acreditar O verdadeiro contrário da verdade factual em oposição à racional não é o erro ou a ilusão mas a mentira deliberada A distinção que Leibniz faz entre verdades de fato e verdades da razão cuja forma mais elevada é o raciocínio matemático que lida apenas com coisaspensamento e não precisa nem de testemunhas nem do dado sensível baseiase na antiga distinção entre necessidade e contingência Segundo essa distinção tudo que é necessário e cujo contrário é impossível tem uma dignidade ontológica mais alta do que aquilo que é mas podería também não ser Essa convicção de que o raciocínio matemático deveria servir como paradigma para todo pensamento é provavelmente tão antiga quanto Pitágoras Em todo caso nós a encontramos na recusa platônica de admitir na filosofia alguém que não tenha previamente se exercitado em matemática Está ainda na raiz do dictamen rationis medieval o ditame da razão A verdade compele com a força da necessidade anagke que é muito mais forte que a força da violência bia eis um velho topos da filosofia grega e que ela possa compelir os homens com a irresistível força da Necessidade sempre foi um atributo compreendido como algo que a recomenda hyp autes aletheias anagkasthentes nas palavras de Aristóteles77 Como uma vez observou Mercier de La Rivière Euclide est um veritable despote et les vérités qu il nous a transmises sont des lois véritablement despotiques A mesma idéia levou Grotius à convicção de que nem mesmo Deus pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro uma afirmação muito questionável tanto porque poria Deus sob o ditame da necessidade quanto porque se verdadeira seria igualmente válida para a evidência da percepção sensorial e foi nestes termos que Duns Scotus a questionou A fonte da verdade matemática é o cérebro humano e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto A melhor prova disso pode estar no fato bastante misterioso de que o raciocínio matemático a mais pura atividade de nosso cérebro e à primeira vista em função da abstração que faz de todas as qualidades dadas aos nossos sentidos a mais distanciada do mero raciocínio do senso comum possa assumir um papel tão desmesuradamente liberador na exploração científica do universo O intelecto o órgão do conhecimento e da cognição ainda pertence a esse mundo nas palavras de Duns Scotus ele está sob o domínio da natureza caditsub natura e carrega consigo todas as necessidades a que está sujeito um ser vivo dotado de órgãos sensoriais e poder cerebral O oposto de necessidade não é contingência ou acidente mas liberdade Tudo que aparece aos olhos humanos tudo que ocorre ao espírito humano tudo que acontece de pior ou de melhor aos mortais é contingente inclusive sua própria existência Todos sabemos que Unpredictably decades ago You arrived among that unending cascade of creatures spewed from Natures maw A random event says Science O que não nos impede de responder com o poeta Random my bottom A true miracle say I for who is not certain that he was meant to be79 Mas esse estar destinado a ser não é uma verdade é uma proposição altamente significativa Em outras palavras não há verdades além e acima das verdades factuais todas as verdades científicas são verdades factuais inclusive as engendradas pelo puro poder cerebral e expressas numa linguagem simbólica especialmente feita para esse fim e somente afirmações factuais podem ser verificadas cientificamente Assim a afirmação Um triângulo ri não é falsa mas sem sentido ao passo que a antiga demonstração ontológica da existência de Deus como a de Santo Anselmo de Canterbury não é válida e nesse sentido é falsa mas plena de significado O conhecimento sempre busca a verdade mesmo se essa verdade como nas ciências nunca é permanente mas uma veracidade provisória que esperamos trocar por outras mai s acuradas à medida que o conhecimento progri de Esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar com o impulso de conhecer O pensamento pode e deve ser empregado na busca de conhecimento mas no exercício desta função ele nunca é ele mesmo ele é apenas servo de um empreendimento inteiramente diverso Hegel parece ter sido o primeiro a protestar contra a tendência moderna que busca recolocar a filosofia em uma posição semelhante à que ocupava na Idade Média Esperavase naquela época que a filosofia fosse a serva da teologia aceitando humildemente suas conquistas e a ela se pedia que ordenasse de forma límpida e lógica essas conquistas e as apresentasse em um contexto plausível e conceitualmente demonstrável Agora esperase que a filosofia seja a serva das outras ciências Sua tarefa é demonstrar os métodos das ciências algo que Hegel denuncia como agarrar a sombra das sombras80 A verdade é aquilo que somos compelidos a admitir pela natureza dos nossos sentidos ou do nosso cérebro A proposição de que todos que são estavam destinados a ser pode ser facilmente refutada mas a certeza do eu estava destinado a ser sobreviverá intacta à refutação porque é inerente a toda reflexão em que o pensamento se ocupa do eusou Quando distingo verdade e significado conhecimento e pensamento e quando insisto na importância dessa distinção não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca da verdade do conhecimento Ao formular as irrespondíveis questões de significado os homens afirmamse como seres que interrogam Por trás de todas as questões cognitivas para as quais os homens encontram respostas escondemse as questões irrespondíveis que parecem inteiramente vãs e que desse modo sempre foram denunciadas É bem provável que os homens se viessem a perder o apetite pelo significado que chamamos pensamento e deixassem de formular questões irrespondíveis perdessem não só a habilidade de produzir aquelas coisaspensamento que chamamos obras de arte como também a capacidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda qualquer civilização Nesse sentido a razão é a condição a priori do intelecto e da cognição e porque razão e intelecto estão assim conectados apesar da completa diferença de disposição e propósito é que os filósofos sentiramse sempre tentados a aceitar o critério da verdade tão válido para a ciência e para vida cotidiana como igualmente aplicável ao âmbito bastante extraordinário em que se movem Pois nosso desejo de conhecer quer surja de perplexidades práticas ou puramente teoréticas é saciado quando atinge o objetivo prescrito e enquanto a sede de conhecimento pode ser ela mesma inesgotável em virtude da imensidão do desconhecido a própria atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda civilização como parte integrante de seu mundo O fracasso dessa acumulação e da especialização técnica necessária para conservála e aumentála tem como conseqüência o fim desse mundo particular A atividade do pensamento ao contrário não deixa nada de tangível em seu rastro e portanto a necessidade de pensar não pode nunca ser exaurida pelos insights dos homens sábios À medida que nos preocupamos com resultados positivos o máximo que podemos esperar da atividade do pensamento é o que Kant finalmente atingiu quando levou a cabo o intuito de estender embora apenas negativamente nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado sensorialmente ou seja eliminar os obstáculos com os quais a razão se embaraça81 A famosa distinção kantiana entre Vernunft e Verstand entre a faculdade do pensamento especulativo e a capacidade de conhecer que surge da experiência sensorial onde todo pensamento é apenas um meio para alcançar a intuição Quaisquer que sejam as maneiras e os meios pelos quais um conhecimento esteja relacionado com objetos a intuição é o meio através do qual o conhecimento está em relação imediata com os objetos e para o qual todo pensamento como um meio se dirige82 tem conseqüências de alcance muito mais amplo e por vezes são distintas das conseqüências por ele reconhecidas83 Discutindo Platão Kant certa vez observou que não é nada incomum quando se comparam os pensamentos expressos por um autor com o seu assunto descobrir que compreendemos melhor esse autor do que ele próprio compreendeu a si mesmo À medida que o autor não determinou suficientemente seu conceito pode ser que algumas vezes ele tenha falado ou até pensado em sentido contrário à sua intenção84 Isso naturalmente é aplicável à própria obra de Kant Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento particularmente em relação a Deus à liberdade e à imortalidade para ele os mais elevados objetos do pensamento não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento assim como do conhecimento é a verdade e a cognição é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkenntnis conhecimento derivado da razão pura85 uma noção que para ele deve ter sido uma contradição em termos Kant nunca teve completa consciência de haver liberado a razão e o pensamento de haver justificado essa faculdade e sua atividade mesmo quando elas não se podem gabar de ter produzido quaisquer resultados positivos Como vimos ele afirmou ter achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a e86 mas o que ele de fato negou foi o conhecimento das coisas incognoscíveis com isso abriu espaço para o pensamento não para a fé Acreditava ter lançado as fundações de uma metafísica sistemática futura como um legado para a posteridade87 e é verdade que sem a liberação do pensamento especulativo realizada por Kant o surgimento do idealismo alemão e de seus sistemas metafísicos dificilmente teria sido possível Mas a nova leva de filósofos Fichte Schelling Hegel não teria agradado Kant Liberados por ele do velho dogmatismo escolástico e de seus exercícios estéreis e encorajados a cultivar o pensamento especulativo eles seguiram na verdade o exemplo de Descartes saíram em busca de certeza apagaram novamente a linha demarcatória entre pensamento e conhecimento e acreditaram honestamente que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos O que minou a grande descoberta de Kant a distinção entre o conhecimento que usa o pensamento como um meio para um fim e o pensamento propriamente dito tal como surge da íntima natureza de nossa razão e se realiza em seu próprio benefício foi a permanente comparação que ele mesmo estabeleceu entre os dois termos Nesse contexto só faz sentido falar de erro ou ilusão quando somente a verdade para Kant a intuição e não o significado é o critério último para as atividades espirituais do homem Kant diz que é impossível que a razão o mais elevado tribunal de todos os direitos e de todas as pretensões de especulação tivesse de ser ela mesma a fonte de erros e ilusões88 Ele está certo mas apenas porque a razão como faculdade do pensamento especulativo não se move no mundo das aparências dessa maneira ela pode gerar absurdos e ausências de significado mas não erros ou ilusões que pertencem propriamente ao âmbito da percepção sensorial e do raciocínio do senso comum Ele mesmo reconhece isso quando chama as idéias da razão pura de meramente heurísticas em oposição aos conceitos ostensivos89 as idéias da razão pura realizam apenas ensaios não provam nem exibem nada Não se deve admitir que elas existam em si mesmas mas que tenham apenas a realidade de um esquema e devem ser vistas somente como análogas a coisas reais não como coisas reais em si mesmas90 Em outras palavras elas não alcançam nem são capazes de apresentar ou representar a realidade Não são apenas as coisas transcendentes do outro mundo que elas nunca atingem a realidade dada pela ação conjunta dos sentidos coordenados pelo senso comum e garantida pela pluralidade também se encontra além do alcance daquelas idéias Mas Kant não insiste nesse aspecto da questão porque teme que suas idéias possam transformarse em coisaspensamento vazias leere Gedankendinge i como invariavelmente acontece quando ousam mostrarse nuas ou seja não transformadas e de certo modo não adulteradas pela linguagem em nosso mundo e em nossa comunicação cotidiana Talvez seja por essa mesma razão que Kant equaciona o que aqui chamamos de significado com fim e até com intenção Zweck e Absicht a mais elevada unidade formal a que repousa unicamente sobre conceitos da razão é a unidade das coisas com relação a um fim O interesse especulativo da razão toma necessário encarar toda a ordem do mundo como se ela tivesse se originado na intenção de uma razão suprema92 Conseqüentemente a razão persegue fins específicos e possui intenções específicas quando se serve de suas idéias é a necessidade da razão humana e seu interesse por Deus pela liberdade e pela imortalidade que fazem os homens pensar Não obstante algumas páginas depois Kant irá admitir que o interesse meramente especulativo da razão com relação aos três objetos principais do pensamento a liberdade da vontade a imortalidade da alma e a existência de Deus é muito pequeno e apenas por causa dele dificilmente nos daríamos ao trabalho das investigações transcendentais já que quaisquer que fossem as descobertas sobre esses temas não seria possível que delas extraíssemos alguma utilidade algum uso in concreto93 Mas não precisamos ir buscar pequenas contradições na obra desse grande pensador Bem no meio das passagens acima citadas está a sentença que apresenta o maior contraste possível com relação à própria equação que ele faz entre razão e fim A razão pura não se ocupa de nada a não ser de si mesma Ela não pode ter qualquer outra vocação94 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 9 Invisibilidade e retirada do mundo Pensar querer e julgar são as três atividades espirituais básicas Não podem ser derivadas umas das outras e embora tenham certas características comuns não podem ser reduzidas a um denominador comum Para a pergunta O que nos faz pensar não há em última instância outra resposta senão a que Kant chamava de a necessidade da razão o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação Algo semelhante pode ser dito da vontade que não pode ser movida nem pela razão nem pelo desejo Nada além da vontade é a causa total da volição nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate na notável fórmula de Duns Scotus ou voluntas vult se velle a verdade quer quererse como até mesmo São Tomás o menos voluntarista dentre aqueles que refletiram sobre esta faculdade teve que admitir1 Por fim o juízo a misteriosa capacidade do espírito pela qual são reunidos o geral sempre uma construção espiritual e o particular sempre dado à experiência sensível é uma faculdade peculiar e de modo algum inerente ao intelecto nem mesmo no caso dos juízos determinantes em que os particulares são subordinados a regras gerais sob a forma de um silogismo porque não dispomos de nenhuma regra para as aplicações da regra Saber como aplicar o geral ao particular é um dom natural suplementar cuja ausência é comumente chamada de estupidez e para tal falha não há remédio2 A natureza autônoma do juízo é ainda mais óbvia no caso do juízo reflexivo que não desce do geral para o particular mas vai do particular até o universal quando determina sem qualquer regra geral que isto é belo isto é feio isto é certo isto é errado e aqui por um princípio direto o julgar só pode adaptar se como uma lei de si mesmo e para si mesmo3 Denominei essas atividades espirituais de básicas porque elas são autônomas cada uma delas obedece às leis inerentes à própria atividade embora todas elas dependam de uma certa quietude das paixões que movem a alma daquela tranquilidade desapaixonada leidenschaftslose Stille que Hegel atribuiu à cognição meramente pensante4 Uma vez que é sempre a mesma pessoa cujo espírito pensa quer e julga a natureza autônoma dessas atividades produz grandes dificuldades A incapacidade da razão para mobilizar a vontade mais o fato de que o pensamento só pode compreender o que já é passado sem removêlo ou rejuvenecêlo a coruj a de Minerva só começa o seu vôo quando cai o crepúsculo5 deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional em suma deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões isto é levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da alma Cumpre assinalar em todas essas teorias e doutrinas o monismo implícito a suposição de que por trás da óbvia multiplicidade das aparências do mundo e de modo mais pertinente ainda para o nosso contexto por trás da óbvia pluralidade das faculdades e das capacidades humanas deve haver uma unidade o velho hen pan o todo é um uma única origem ou um único soberano A autonomia das atividades espirituais além disso implica também que essas atividades não são condicionadas nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente Pois a tranquilidade desapaixonada da alma nãoé propriamente falando umacondição a mera tranqüilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual a premência de pensar como também a necessidade da razão na maior parte das vezes silencia as paixões e não o contrário E certo que os objetos do meu pensar querer ou julgar aquilo de que o espírito se ocupa são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo quer pela minha vida no mundo Os homens embora totalmente condicionados existencialmente limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte submetidos ao trabalho para viver levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes podem espiritualmente transcender todas essas condições mas só espiritualmente jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados podem querer o impossível como por exemplo a vida eterna e podem pensar isto é especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade como de fato não há em nosso mundo oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem em última instância da vida do espírito Em suma dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e não nos dotam diretamente com o poder de agir Heidegger A ausência de pensamento é um poderoso fator nos assuntos humanos estatisticamente é o mais poderoso deles não apenas na conduta de muitos mas também na conduta de todos A premência a ascholia dos assuntos humanos requer juízos provisórios a confiança no hábito e no costume isto é nos preconceitos Sobre o mundo das aparências que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia O espírito é separado de todas as coisas sophon esti panton kechorismenon E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo a saber criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral isto é sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico Vista da perspectiva do mundo das aparências e das atividades por ele condicionadas a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade Propriamente falando elas nunca aparecem embora se manifestem para o ego pensante volitivo ou judicativo que percebe estar ativo embora lhes falte a habilidade ou a urgência para aparecer como tal O lema epicurista lathe biosas viver oculto pode ter sido um conselho prudente é também uma descrição exata pelo menos negativamente do topos do lugar do homem que pensa e é na verdade o oposto do spectemuragendo que nos vejam em ação de John Adams Em outros termos ao invisível que se manifesta para o pensamento corresponde uma faculdade humana que não é apenas como as outras faculdades invisível porque latente uma mera possibilidade mas que permanece não manifesta em plena realidade Se considerarmos toda a escala das atividades humanas do ponto de vista da aparência encontraremos vários graus de manifestação Nem o labor nem a fabricação requerem a exibição da própria atividade somente a ação e a fala necessitam de um espaço da aparência bem como de pessoas que vejam e ouçam para se realizar efetivamente Mas nenhuma dessas atividades é invisível Se seguíssemos o costume lingüístico grego segundo o qual os heróis os homens que agem no sentido mais elevado eram chamados de andres epiphaneis homens completamente manifestos e altamente visíveis deveriamos chamar os pensadores de homens por definição e por profissão nãovisíveis7 Nesse e em outros aspectos o espírito é decisivamente diferente da alma o seu principal competidor ao cargo de legislador do nosso interior de nossa vida nãovisível A alma em que surgem nossas paixões sentimentos e emoções é um torvelinho de acontecimentos mais ou menos caóticos que não encenamos ativamente mas que sofremos pathein e que nos casos de grande intensidade pode nos dominar como a dor ou o prazer sua invisibilidade assemelhase à dos nossos órgãos internos cujo funcionamento ou nãofuncionamento também percebemos sem controlar A vida do espírito ao contrário é pura atividade E essa atividade assim como qualquer outra pode ser iniciada e paralisada à vontade Além disso embora seu lugar seja invisível as paixões têm uma expressividade própria coramos de vergonha ou de constrangimento empalidecemos de medo ou de raiva nos iluminamos de felicidade ou aparentamos tristeza ou desânimo e precisamos de um considerável treino de autocontrole para impedir que as paixões se mostrem e apareçam A única manifestação externa do espírito é o alheamento uma óbvia desatenção em relação ao mundo que nos cerca algo de inteiramente negativo que sequer chega a sugerir o que está de fato se passando intemamente A simples invisibilidade o simples fato de que algo possa ser sem ser manifesto aos olhos deve ter sido sempre surpreendente Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre alma espírito e consciência elementos freqüentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos Desse modo Platão concluiu que a alma é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis E mesmo Kant o mais crítico dos filósofos com relação aos preconceitos metafísicos tradicionais enumera ocasionalmente dois tipos de objetos Eu enquanto pensamento sou um objeto de sentido interno e me chamam alma O objeto dos sentidos externos é chamado corpo8 Isso é evidentemente apenas uma variante da velha teoria metafísica dos dois mundos Fazse uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos de modo que um sentido interno a saber a intuição da introspecção é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra intemamente com a mesma segurança que os nossos sentidos externos fazem ao lidar com o mundo exterior No que diz respeito à alma a analogia não é totalmente ilusória Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados mas são paixões provocadas por eventos externos que afetam a alma e produzem certas reações a saber as pathemata da alma seus humores e estados passivos essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis como observou Kant somente com base na suposição da experiência externa9 Ademais a sua própria passividade o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada resulta em uma impressionante semblância de estabilidade Esta semblância produz então certas ilusões da introspecção que por sua vez levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades como também pode governar as paixões da alma como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estóicas do controle da dor e do prazer pelo espírito sua falácia de que é possível sentirse feliz ao ser assado no Touro de Falera repousa em última instância sobre a equação entre espírito e alma isto é reside em atribuir à alma e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito Nenhum ato do espírito muito menos o ato de pensar contentase com o seu objeto tal como lhe é dado Ele sempre transcende a pura imediatez do que quer que tenha despertado sua atenção e transforma isso no que Petrus Iohannis Olivi o filósofo franciscano da Vontade no século XIII10 chamou de experimentam suitatis um experimento do Eu comigo mesmo Uma vez que a pluralidade é uma das condições existenciais básicas da vida humana na Terra de modo que inter homines esse estar entre os homens era para os romanos o sinal de estar vivo ciente da realidade do mundo e do Eu e inter homines esse desinere deixar de estar entre os homens um sinônimo para morrer estar sozinho e estabelecer um relacionamento consigo mesmo é a característica mais marcante da vida do espírito Só podemos dizer que o espírito tem sua vida própria à medida que ele efetiva esse relacionamento no qual existencialmente falando a pluralidade é reduzida à dualidadejá implícita no fato e na palavra consciência ou syneidenaiconhecer comigo mesmo Chamo esse estado existencial no qual faço companhia a mim mesmo de estar só para distinguilo da solidão na qual também me encontro sozinho mas abandonado não apenas de companhia humana mas também de minha própria companhia E somente na solidão que me sinto privado da companhia humana e é somente na aguda consciência de tal privação que os homens podem chegar a existir realmente no singular assim como talvez seja somente nos sonhos ou na loucura que eles percebam completamente o horror impronunciável e insuportável desse estado Todas as atividades do espírito testemunham elas próprias por sua natureza reflexiva uma dualidade inerente à consciência o agente espiritual só pode ser ativo agindo implícita ou explicitamente sobre si mesmo A consciência o eu penso de Kant não somente acompanha todas as outras representações mas todas as minhas atividades nas quais no entanto posso estar inteiramente esquecido do meu eu A consciência como tal antes de se efetivar no estar só chega no máximo a perceber a igualdade uniforme do eusou Tenho consciência de mim não de como apareço para mim nem de como sou eu mesmo mas somente que sou12 que assegura a continuidade idêntica de um eu através das múltiplas representações experiências e memórias de uma vida Como tal ela expressa o ato de determinar a minha existência13 As atividades espirituais e como veremos mais adiante especialmente o pensar o diálogo sem som de mim comigo mesmo podem ser entendidas como a efetivação da dualidade originária ou da cisão entre mim e meu eu intrínseca a toda consciência Mas essa pura consciência de mim da qual estou por assim dizer inconscientemente consciente não é uma atividade porque acompanha todas as outras atividades ela é a garantia de um eusoueu completamente silencioso A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som mas nunca é silenciosa e jamais pode se esquecer completamente de si pela natureza reflexiva de todas as suas atividades Todo cogitare não importa qual seja seu objeto é também um cogito me cogitare toda volição é um volo me velle mesmo o juízo só é possível por um retour secret sur moimême como observou Montesquieu Essa reflexi vidade parece apontar para um lugar de interioridade dos atos do espírito construído sob o princípio do espaço externo no qual os meus atos não espirituais têm lugar Mas a idéia de que essa interioridade diferentemente da interioridade passiva da alma só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta nos primeiros séculos da Era Cristã da Vontade e das experiências do ego volitivo Pois só estou consciente das faculdades do espírito e de sua reflexividade durante sua atividade E como se os próprios órgãos do pensamento da vontade ou do juízo só viessem a existir quando penso quero ou julgo em seu estado latente supondo que tal latência exista anteriormente à sua efetivação não estão abertos à introspecção O ego do pensamento do qual tenho perfeita consciência enquanto dura a atividade do pensamento desaparecerá como se fosse uma simples miragem tão logo o mundo real volte a se impor Uma vez que as atividades do espírito por definição nãoaparentes ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências através de seus órgãos sensoriais receptivos bem como através de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências Tratase não tanto de uma retirada do mundo somente o pensamento por sua tendência a generalizar isto é por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular tende a se retirar completamente do mundo mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos A re presentação o fazer presente o que está de fato ausente é o dom singular do espírito E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da visão esse dom é chamado de imaginação definida por Kant como a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto14 A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes a memória quase sempre guarda e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer mas que ainda não é Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer não mais e constituir um passado para nós mesmos ou dizer ainda não e nos preparar para um futuro Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana Assim para querer o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que sem refletir e sem reflexividade estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado pois a vontade não se ocupa de objetos mas de projetos como por exemplo com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente A vontade transforma o desejo em uma intenção E por último o juízo seja ele estético legal ou moral pressupõe uma retirada decididamente não natural e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho Pareceme errado tentar estabelecer uma ordem hierárquica entre as atividades do espírito mas também parcccmc inegável que existe uma ordem de prioridades Se o poder da representação e o esforço para dirigir a atenção do espírito para o que escapa da atenção da percepção sensível não se antecipassem e preparassem o espírito para julgar seria impossível pensar como exerceriamos o querer e o julgar isto é como poderiamos lidar com coisas que ainda não são ou que já não são mais Em outras palavras aquilo que geralmente chamamos de pensar embora incapaz de mover a vontade ou de prover o juízo com regras gerais deve preparar os particulares dados aos sentidos de tal modo que o espírito seja capaz de lidar com eles na sua ausência em suma ele deve desensorializálos A melhor descrição que conheço desse processo de preparação é dada por Santo Agostinho A percepção sensível diz ele a visão que era externa quando o sentido era formado por um corpo sensível é seguida por uma visão similar interna a imagem que o representa15 Essa imagem é então guardada na memória pronta para se tomar uma visão em pensamento no momento cm que o espírito a agarra o decisivo é que o que fica na memória a mera imagem daquilo que era real é diferente da visão em pensamento o objeto deliberadamente relembrado O que fica na memória é uma coisa e algo diferente surge quando lembramos16 pois o que é ocultado e mantido na memória é uma coisa e o que é impresso por ela no pensamento daquele que relembra é outra17 Portanto o objeto do pensamento é diferente da imagem assim como a imagem é diferente do objeto sensível e visível do qual é uma simples representação E por causa dessa dupla transformação que o pensamento de fato vai mais longe ainda para além da esfera de toda imaginação possível onde nossa razão proclama a infinidade numérica que nenhuma visão no pensamento de coisas corpóreas jamais alcançou ou nos ensina que até mesmo os corpos mais minúsculos podem ser infinitamente divididos18 A imaginação portanto que transforma um objeto visível em uma imagem invisível apta a ser guardada no espírito é a condição sine qua non para fornecer ao espírito objetosdepensamento adequados mas estes só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente relembra recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha a atrair o seu interesse a ponto de induzir a concentração nessas operações o espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para ir mais além em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes e que não podem ser lembradas porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível Embora essa última classe de objetosdepensamento conceitos idéias categorias e assemelhados tenha se tomado o tema especializado da filosofia profissional não há nada na vida comum do homem que não possa se tornar alimento para o pensamento isto é que não possa estar sujeito à dupla transformação que prepara um objeto sensível tomandoo propriamente objetodepensamento Todas as questões metafísicas que a filosofia escolheu como tópicos especiais vêm das experiências do senso comum a necessidade da razão a busca de significado que faz com que os homens formulem questões não difere em nada da necessidade que os homens têm de contar a história de algum acontecimento de que foram testemunhas ou de escrever poemas a respeito dele Em todas essas atividades reflexivas os homens movemse fora do mundo das aparências e usam uma linguagem cheia de palavras abstratas que é claro são parte integrante da fala cotidiana bem antes de se tomarem moedacorrente da filosofia A retirada do mundo das aparências é então a única condição anterior essencial para o pensamento embora não para a filosofia tecnicamente falando Para pensarmos em alguém este alguém deve ser afastado da nossa presença enquanto estivermos com ele não pensaremos nele ou sobre ele o pensamento sempre implica lembrança todo pensar é estritamente falando um repensar É claro que acontece de começarmos a pensar em alguém ou em algo ainda presente nesse caso teremos nos retirado secretamente do ambiente que nos cerca passando a nos portar como se já estivéssemos ausentes Essas observações podem indicar por que o pensar a busca de significado oposta a sede de conhecimento e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento foi tão freqüentemente considerada antinatural como se os homens sempre que refletissem sem propósito específico ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estaraí do mundo e pela sua própria existência estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana O pensar enquanto tal e não apenas como o levantamento das questões últimas irrespondíveis mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos está como observou Heidegger fora de ordem grifo nosso19 Ela interrompe qualquer fazer qualquer atividade comum seja ela qual for Todo pensar exige um pareepense As teorias dos dois mundos quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante E uma vez que qualquer coisa que impede o pensar de pertencer ao mundo das aparências e às experiências do sensocomum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade realness que tenho do meu próprio ser é como se de fato o pensar me paralisasse do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais Taccomplissement dun acte qui doit être réflexe ou ne peut être como sentenciou Valéry Identificando o estado de consciência com o estado de pensar ele acrescenta on en pourrait tirer toute une philosophic que je résumerais ainsi tantôtje pense et tantôt je suis ora penso e ora sou20 Essa observação extraordinária totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias a saber que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão que somente o corpo do filósofo isto é o que o faz aparecer entre as outras aparências ainda habita a cidade dos homens como se pensando os homens se retirassem do mundo dos vivos A noção bastante curiosa de uma afinidade entre a filosofia e a morte persistiu ao longo da história da filosofia Por muitos séculos esperavase que a filosofia ensinasse os homens a morrer foi nesse espírito que os romanos decidiram que o estudo da filosofia era uma ocupação adequada somente aos velhos ao passo que os gregos sustentavam que ela deveria ser estudada pelos jovens Foi Platão contudo o primeiro a observar que o filósofo aparece para os que não fazem filosofia como se estivesse perseguindo a morte21 Assim como foi Zenão o fundador do estoicismo quem relatou no mesmo século que o oráculo de Delfos ao ser indagado sobre o que fazer para chegar à melhor vida havia respondido Tome a cor dos mortos22 Em tempos modernos não é incomum encontrar quem defenda como Schopenhauer que a nossa mortalidade é a fonte eterna da filosofia que a morte é de fato o gênio inspirador da filosofia e que sem a morte sequer haveria qualquer atividade filosófica2 E mesmo o jovem Heidegger de Sein und Zeit ainda encarava a antecipação da morte como a experiência decisiva pela qual o homem poderia alcançar o seu eu autêntico e se libertar da inautenticidade do Eles sem perceber que essa doutrina de fato originavase como indicara Platão da opinião de muita gente 10 A luta interna entre pensamento e senso comum Tome a cor dos mortos deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas aparece para o senso comum dos homens já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer O próprio fato de sempre ter havido homens ao menos desde Parmênides que escolheram deliberadamente este modo de vida sem serem candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante E muito mais o próprio senso comum do filósofo o fato de ser ele um homem como você e eu que o toma consciente de estar fora de ordem quando se empenha em pensar Ele não está imune à opinião comum pois afinal compartilha da qualidade do ser comum commonness a todos os homens e é seu próprio senso de realidade realness que o faz suspeitar da atividade de pensar Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do sensocomum e contra a insistência na falta de sentido de sua busca por significado o filósofo sentese inclinado a responder nos termos do senso comum termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a morte é o maior dentre todos os males o filósofo da época de Platão quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo é tentado a dizer pelo contrário a morte é uma divindade uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo24 Desse modo ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente25 Toda a história da filosofiaque nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante encontrase atravessada por uma luta interna entre o senso comum este sexto sentido que adequa nossos cinco sentidos a um mundo comum e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão que obrigam o homem a afastarse por períodos consideráveis deste mundo Os filósofos interpretaram essa luta interna como a hostilidade natural da multidão e de suas opiniões com relação aos poucos e à sua verdade mas são bastante escassos os fatos históricos capazes de sustentar essa interpretação Há o julgamento de Sócrates que provavelmente levou Platão a declarar no final da parábola da Caverna quando o filósofo retoma de seu vôo solitário ao céu das idéias para a escuridão da caverna e para a companhia de seus semelhantes que tivesse a multidão uma única chance poria suas mãos sobre os poucos e os mataria Essa interpretação do julgamento de Sócrates ecoa através da história da filosofia até Hegel Deixando de lado algumas dúvidas muito justificadas sobre a versão de Platão para o fato26 não existem exemplos de relatos em que a multidão por sua própria iniciativa tenha declarado guerra aos filósofos No que diz respeito aos muitos e aos poucos tem ocorrido justo o contrário Foi o filósofo que espontaneamente abandonou a Cidade dos homens e dirigiuse àqueles que deixou para trás dizendo que no melhor dos casos eles haviam sido enganados pela confiança que depositaram em seus sentidos pela sua disposição em acreditar nos poetas e a se deixar instruir pela gentalha em lugar de usar os seus espíritos No pior dos casos contentavamse em viver apenas para o prazer sensorial e para se fartar como o gado27 É óbvio que a multidão nunca se parece com um filósofo Mas isso não significa como afirmou Platão que os que fazem filosofia são necessariamente amaldiçoados e perseguidos pela multidão como um homem caído entre feras selvagens28 O modo de vida do filósofo é solitário mas esse estar só é livremente escolhido O próprio Platão quando enumera as condições naturais que favorecem o desenvolvimento do dom filosófico nas mais nobres naturezas não menciona a hostilidade da multidão Ao invés ele fala de exílios de um grande espírito nascido em um pequeno estado cujos assuntos políticos passam despercebidos e de outras circunstâncias tais como a saúde precária que afasta essas naturezas dos negócios públicos do povo29 Mas essa inversão de posições tomar a luta entre pensamento e senso comum o resultado dos poucos voltandose contra os muitos embora ligeiramente mais razoável e melhor documentada a saber na pretensão que o filósofo tem de governar do que a mania persecutória tradicional do filósofo não está provavelmente mais próxima da verdade A explicação mais verossímil para a disputa entre o senso comum e o pensamento profissional ainda é o ponto já mencionado o de que estamos aqui lidando com uma luta interna visto que foram seguramente os próprios filósofos os primeiros a tomar consciência de todas as objeções que o senso comum podería levantar contra a filosofia E o próprio Platão em um contexto diferente em que ele não está se ocupando de uma política digna da natureza filosófica desfaz com risos a pergunta a respeito da possibilidade de um homem que se ocupa das coisas divinas estar também apto ao trato das coisas humanas30 O riso e não a hostilidade é a reação natural da multidão diante das preocupações do filósofo e da aparente inutilidade daquilo de que ele se ocupa Esse riso é inocente e muito diferente do ridículo com que freqüentemente se ataca um adversário em discussões sérias em que ele pode vir a converterse em uma temível arma Mas Platão que argumentou nas Leis em favor da proibição explícita de qualquer escrito que ridicularizasse qualquer cidadão31 temia o ridículo que há em todo riso O que é decisivo aqui não são as passagens dos diálogos políticos as Leis ou a República contra a poesia e especialmente contra os comediantes mas a maneira totalmente séria que conta a história da camponesa trácia explodindo às gargalhadas quando vê Tales cair no poço enquanto observava os movimentos dos corpos celestes declarando que ele estava ansioso para conhecer as coisas dos céus enquanto lhe escapavam as que se encontravam aos seus pés E Platão acrescenta Qualquer pessoa que dedique sua vida à filosofia está vulnerável a esse tipo de escárnio Toda a ralé se juntará à camponesa rindo dele pois em seu desamparo ele parece um tolo32 É estranho que na longa história da filosofia tenha ocorrido exatamente a Kant que se encontrava tão singularmente livre de todos os vícios especificamente filosóficos que o dom para o pensamento especulativo poderia ser como aquele dom com que Juno honrou Tirésias a quem cegou para concederlhe o dom da profecia Kant suspeitava que a familiaridade com outro mundo podia ser obtida aqui somente privandose de algum dos sentidos necessários no mundo presente Seja como for Kant parece ter sido um caso único entre os filósofos revelouse suficientemente seguro para juntarse ao riso do homem comum Provavelmente sem ter em mente a história de Platão sobre a camponesa trácia ele conta com indiscutível bom humor uma história virtualmente idêntica envolvendo Tycho de Brahe e seu cocheiro o astrônomo havia proposto durante uma viagem noturna que se orientassem pelas estrelas de modo a encontrar o caminho mais curto ao que lhe responde o cocheiro Caro senhor é possível que conheças muito sobre os corpos celestes mas aqui na Terra és um tolo33 Sob o pressuposto de que o filósofo não necessita da ralé para informálo sobre sua tolice o senso comum que ele compartilha com todos os homens deve alertálo a tempo de prever o riso de que será objeto em resumo sob o pressuposto de que aquilo com o que estamos lidando é uma luta interna entre o raciocínio do senso comum e o pensamento especulativo luta que se passa no próprio espírito do filósofo examinemos mais de perto a afinidade entre a morte e a filosofia Do ponto de vista do mundo das aparências o mundo comum no qual aparecemos pelo nascimento e do qual desaparecemos pela morte é natural o desejo de conhecer nosso hábitat comum e de reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito Em função da necessidade que o pensamento tem de transcender o mundo dele nos afastamos Metaforicamente desaparecemos deste mundo e isso pode ser compreendido do ponto de vista do que é natural e do nosso raciocínio de senso comum como a antecipação de nossa partida final ou seja de nossa morte Foi assim que Platão descreveu a situação no Fedon da perspectiva da multidão os filósofos só fazem buscar a morte A multidão poderia concluir caso os filósofos não se preocupassem com isso que o melhor para eles seria morrer34 E Platão não está muito seguro de que a multidão não esteja certa a não ser pelo fato de que eles não sabem em que sentido isso deve se realizar O verdadeiro filósofo o que passa a vida inteira imerso em pensamentos tem dois desejos O primeiro é que possa estar livre de todo tipo de ocupação especialmente livre de seu corpo que sempre exige cuidados e se interpõe em nosso caminho a cada passo e que provoca confusão gera problemas e pânico35 O segundo é que ele possa vir a viver em um além onde essas coisas com que o pensamento está envolvido tais como a verdade a justiça e a beleza não estarão menos acessíveis nem serão menos reais do que tudo o que agora podemos perceber com os sentidos corporais36 Mesmo Aristóteles em um de seus escritos mais populares lembra aos seus leitores aquelas ilhas dos bem aventurados que são bemaventurados porque lá os homens não necessitariam de nada e nada teria para eles utilidade de tal modo que só restariam pensamento e contemplação theorem ou seja o que agora mesmo chamávamos de uma vida livre37 Em resumo a reviravolta inerente ao pensamento não é de modo algum uma empreitada inofensiva No Fedon ela inverte todas as relações os homens que naturalmente se esquivam da morte como o maior de todos os males voltamse agora para ela como o maior de todos os bens Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia ou mais academicamente está posto em linguagem metafórica Os filósofos não são famosos por seus suicídios nem mesmo quando afirmam com Aristóteles em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikosx que os que querem se divertir deveríam filosofar ou deixar a vida pois tudo o mais parece tolo e sem sentido Mas a metáfora da morte ou melhor a inversão metafórica da vida e da morte o que usualmente chamamos vida é morte o que habitualmente chamamos morte é vida não é arbitrária embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático Se o pensamento estabelece suas próprias condições se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado quando remove tudo que está à mão isso acontece para que o distante se tome manifesto Formulando de uma maneira simples no alheamento proverbial do filósofo todo o presente está ausente porque algo realmente ausente está presente em seu espírito e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo Tanto a hostilidade do filósofo com relação à política os pequenos assuntos humanos39 quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais Elas são inerentes à própria experiência Enquanto pensa a pessoa não tem consciência de sua corporalidade Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo e foi isso também que fez Descartes concluir que a alma pode pensar sem o corpo com a ressalva de que enquanto ela estiver ligada ao corpo pode ser importunada em suas operações pela má disposição dos órgãos corporais40 Mnemosyne Memória é a mãe das Musas e a lembrança a mais freqüente e também a mais básica experiência do pensamento está relacionada às coisas ausentes que desapareceram dos meus sentidos Entretanto o ausente que é reunido e feito presente no meu espírito uma pessoa um evento um monumento não pode aparecer do mesmo modo que apareceu aos meus sentidos como se a lembrança fosse uma espécie de feitiçaria Para aparecer ao meu espírito a lembrança deve primeiramente ser dessensorializada e a capacidade para transformar objetos sensíveis em imagens é chamada imaginação Sem essa faculdade que toma presente o que está ausente em uma forma dessensorializada não se processa nenhum pensamento e seria impossível haver qualquer série de pensamento O pensamento portanto é fora de ordem não só porque interrompe todas as demais atividades necessárias para os assuntos vitais e para a manutenção da vida mas também porque inverte todas as relações habituais O que está perto e aparece diretamente aos nossos sentidos agora está distante e o que se encontra distante está realmente presente Quando estou pensando não me encontro onde realmente estou estou cercado não por objetos sensíveis mas por imagens invisíveis para os outros E como se eu tivesse me retirado para uma terra imaginária a terra dos invisíveis da qual nada poderia saber não fosse esta faculdade que tenho de lembrar e de imaginar O pensamento anula distâncias temporais e espaciais Posso antecipar o futuro pensálo como se já fosse presente e lembrar do passado como se ele não tivesse desaparecido Já que o tempo e o espaço da experiência comum não podem nem mesmo ser pensados sem um contínuo que se estende do próximo ao distante do agora ao passado ou ao futuro do aqui a qualquer ponto do espaço esquerda e direita à frente e atrás acima e abaixo eu poderia dizer com alguma razão que não apenas as distâncias mas também o tempo e o espaço são abolidos no processo do pensamento No que diz respeito ao espaço não conheço nenhum conceito filosófico ou metafísico que pudesse estar razoavelmente relacionado a esta experiência Mas tenho certeza de que o nunc stans o agora permanente tomouse o símbolo da eternidade o nunc aeternitatis Duns Scotus para a filosofia medieval porque era uma descrição convincente de experiências que ocorriam na meditação bem como na contemplação os dois modos de pensamento conhecidos pelo cristianismo Acabei de me referir aos objetos sensíveis dessensorializados isto é aos invisíveis que pertencendo ao mundo das aparências desapareceríam temporariamente ou ainda não teriam alcançado nosso campo de percepção e que são trazidos à nossa presença pela lembrança ou pela antecipação O que realmente ocorre nesses casos foi eternizado na história de Orfeu e Eurídice Orfeu desceu ao Hades para resgatar sua esposa morta e lhe disseram que a poderia ter de volta sob a condição de que não se voltasse para vêla enquanto ela o seguia Mas quando se aproximaram do mundo dos vivos Orfeu olhou para trás e Eurídice imediatamente desapareceu De modo mais preciso do que qualquer linguagem terminológica faria o velho mito conta o que acontece no momento em que o processo do pensamento chega ao fim no mundo da vida ordinária todos os invisíveis tomam a sumir Também convém que o mito se refira à lembrança e não à antecipação A faculdade de antecipar o futuro em pensamento deriva da faculdade de lembrar o passado que por sua vez enraízase na habilidade ainda mais elementar de dessensorializar e de ter presente diante e não apenas em do seu espírito o que está fisicamente ausente A habilidade de criar entidades fictícias no espírito tais como o unicórnio e o centauro ou os personagens fictícios de uma história uma habilidade usualmente denominada imaginação produtiva é inteiramente dependente da assim chamada imaginação reprodutiva Na imaginação produtiva os elementos do mundo visível são rearranjados isto é possível porque os elementos agora livremente manejados já atravessaram o processo de dessensorialização do pensamento Não é a percepção sensorial na qual experimentamos as coisas que estão diretamente à mão mas a imaginação que vem depois dela que prepara os objetos de nosso pensamento Antes de levantarmos questões tais como o que é a felicidade o que é a justiça o que é o conhecimento e assim por diante é preciso que tenhamos visto gente feliz e infeliz que tenhamos testemunhado atos justos e injustos experimentado o desejo de conhecer sua boa realização ou sua frustração Além do mais temos que repetir a experiência direta cm nossos espíritos depois de ter abandonado a cena em que ela ocorreu Repetindo todo pensar é um repensar Ao repetir na imaginação nós dessensorializainos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos Somente nessa forma imaterial é que nossa faculdade de pensar pode começar a se ocupar com esses dados Essa operação precede todos os processos de pensamento tanto o pensamento cognitivo quanto o pensamento sobre significados apenas o raciocínio lógico em que o espírito em estreita coerência com suas próprias leis produz uma cadeia dedutiva a partir de uma dada premissa cortou definitivamente todos os vínculos com a experiência vivida Ele pode operar dessa forma porque supõese que a premissa seja fato ou hipótese é autoevidente e portanto não está sujeita ao exame do pensamento Mesmo simplesmente contar o que aconteceu quer a história seja bem ou mal sucedida é uma operação precedida pela dessensorialização A língua grega contém esse elemento temporal em seu próprio vocabulário a palavra conhecer como já fiz notar anteriormente é derivada da palavra ver Ver é idein conhecer é eidenai ou seja ter visto Primeiro você vê depois conhece Em outras palavras todo pensamento deriva da experiência mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento Do ponto de vista do pensamento a vida em seu puro estaraí é sem sentido Do ponto de vista da imediaticidade da vida e do mundo dado aos sentidos o pensamento é como Platão indicou uma morte em vida O filósofo que vive na terra do pensamento Kant41 será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida Como não coincide com o eu real o ego pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências Visto de sua perspectiva é como se o invisível viesse primeiro como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências que por sua própria presença distraem o espírito e i mpedem sua atividade estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito Dito de outra maneira o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito cm relação ao mundo aparece na perspectiva do próprio espírito como uma retirada do Ser ou um esquecimento do Ser Seinsentzug e Seinsvergessenheit Heidegger E é verdade que a vida cotidiana a vida dos Eles é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é visível para o espírito A busca de significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como ao mesmo tempo seus resultados permanecem incertos e não verificáveis O pensamento c de alguma forma autodestrutivo Na privacidade das notas postumamente publicadas Kant escreveu Não concordo com a regra segundo a qual algo que ficou provado pelo uso da razão pura não está mais sujeito à dúvida como se isso fosse um sólido axioma ou ainda não compartilho da opinião segundo a qual depois que se está convencido de alguma coisa não se pode duvidar dela Na filosofia pura isto é impossível Nosso espírito tem uma aversão natural a isto grifo nossos42 Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope desfazse toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior43 Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de homens sábios Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento e os pensamentos que ontem tive irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensálos novamente Estivemos considerando as principais características da atividade de pensar Sua retirada do mundo das aparências do mundo do senso comum sua tendência autodestruti va em relação a seus próprios resultados sua reflexi vidade e a consciência da pura atividade que a acompanha Além disso tudo há o estranho fato de que só percebo minhas faculdades espirituais enquanto a atividade perdura o que significa que o pensamento não pode jamais se estabelecer solidamente como uma das ou mesmo a mais elevada propriedade da espécie humana o homem pode ser definido como o animal que fala no sentido aristotélico de logon echon dotado de fala mas não como o animal que pensa o animal rationale Nenhuma dessas características escapou à atenção dos filósofos O que há de curioso entretanto é que quanto mais profissionais eram os pensadores quanto mais eles cresciam em nossa tradição filosófica mais inclinavamse a encontrar maneiras e meios de reinterpretar esses traços inerentes do pensamento de forma a armaremse contra as objeções do raciocínio do senso comum com relação às inutilidades e à irrealidade de todo o empreendimento filosófico A incursão por que os filósofos avançam nessas reinterpretações bem como aqualidade de sua argumentação seria inexplicável se eles se dirigissem mais à famosa multidão que nunca se importou com eles e permaneceu alegremente ignorante com relação à argumentação filosófica em vez de serem primordialmente estimulados por seu próprio senso comum e pela autodesconfiança que inevitavelmente acompanha a suspensão do pensamento O mesmo Kant que confiou suas verdadeiras experiências de pensamento à privacidade de suas anotações anunciou publicamente que havia lançado as fundações de todo sistema metafísico futuro Hegel o último e o mais engenhoso dentre os construtores de sistemas transformou o ato característico que o pensamento tem de desfazer seus próprios resultados no enorme poder de negação sem o qual seria impossível qualquer movimento ou desenvolvimento Para Hegel a mesma cadeia inexorável de conseqüências em desenvolvimento que regula a natureza orgânica da passagem da semente ao fruto na qual cada fase sempre nega e cancela a precedente regulamenta a negação do processo pensante do espírito exceção feita no caso do pensamento que é mediatizado pela consciência e pela vontade através das atividades espirituais ao fato de que ele pode ser visto como produzindose a si mesmo O espírito é apenas aquilo que ele faz de si mesmo e a si mesmo realmente realizando o que potencialmente ele é Para começar isso deixa incidentalmente sem resposta a questão de quem fez a potencialidade do espírito Mencionei Hegel porque grandes partes de sua obra especialmente o prefácio da Fenomenologia do espírito podem ser lidas como uma polêmica desenvolvida contra o senso comum Desde muito cedo 1801 ele havia afirmado com humor truculento obviamente ainda incomodado pela camponesa trácia de Platão e seu riso inocente que realmente o mundo da filosofia é para o senso comum um mundo virado de cabeça para baixo44 Assim como Kant havia começado a tratar o escândalo da Razão isto é quando a razão queria conhecer viase às voltas com suas próprias antinomias também Hegel pôsse a tratar da impotência da razão kantiana pois ela só poderia alcançar um Ideal e um Dever e declarou que pelo contrário a razão por causa da Idéia é das schlechthin Màchtige o poder como tal45 A importância de Hegel em nosso contexto está no fato de que ele talvez mais do que qualquer outro filósofo atesta a luta interna entre a filosofia e o senso comum porque ele por natureza é igualmente bem dotado como historiador e pensador Ele sabia que a intensidade das experiências do ego pensante devese ao fato de elas serem pura atividade a própria essência do espírito é ação Ele faz de si mesmo o que essencialmente ele é ele é seu próprio produto sua própria obra E Hegel conhecia a reflexividade do espírito Nesta ânsia de atividade ele apenas lida consigo mesmo46 Até admitia a seu modo a tendência do espírito para destruir seus próprios resultados Assim o espírito está em guerra consigo mesmo Deve superar a si mesmo como seu próprio inimigo e formidável obstáculo47 Mas esses insights da razão especulativa sobre o que ela está realmente fazendo quando do ponto de vista das aparências não está fazendo nada ele transformouos em peças de conhecimento dogmático tratandoos como resultados da cognição Dessa maneira foi possível adequálos a um sistema abrangente onde então teriam a mesma realidade que os resultados das demais ciências resultados que por outro lado ele denunciou como produtos essencialmente desimportantes do raciocínio do senso comum ou conhecimento ilusório E de fato o sistema com sua organização estritamente arquitetônica pode dar pelo menos uma impressão da realidade aos fugazes insights da razão especulativa Se a verdade é tomada como o mais elevado objeto do pensamento então o verdadeiro é real apenas como sistema Apenas como um artefato mental desse tipo ele tem alguma chance de aparecer e adquirir aquele mínimo de durabilidade que exigimos de qualquer real como mera proposição ele dificilmente sobreviverá à batalha de opiniões Para ter certeza de que eliminou a noção de senso comum segundo a qual o pensamento lida com abstrações e irrelevâncias o que de fato ele não faz Hegel afirmou sempre no mesmo tom polêmico que o Ser é Pensamento dass das Sein Denken ist que apenas o espiritual é real e que apenas aquelas generalidades com as quais lidamos no pensamento realmente são48 Ninguém lutou com mais determinação contra o particular o eterno obstáculo do pensamento o irrecusável estaraí dos objetos que nenhum pensamento pode alcançar ou explicar A mais elevada função da filosofia segundo Hegel é eliminar o contingente e todos os particulares Tudo o que existe é contingente por definição A filosofia lida com particulares como partes de um todo e o todo é o sistema um produto do pensamento especulativo Esse todo cientificamente falando nunca pode ser mais do que uma hipótese possível que integrando cada particular em um pensamento abrangente os transforma em coisaspensamento e assim elimina sua propriedade mais escandalosa sua realidade junto com sua contingência Foi Hegel quem declarou que chegou o tempo de elevar a filosofia à categoria de ciência e queria transformar a filosofia o mero amor à sabedoria em sabedoria sophia Dessa maneira ele estava convencido de que pensar é agir exatamente o que essa ocupação eminentemente solitária nunca pode fazer já que só podemos agir em conjunto em companhia de e em concordância com nossos pares e portanto em uma situação existencial que efetivamente impede o pensamento Em agudo contraste com todas essas teorias formuladas como um tipo de apologia do pensamento especulativo encontrase a famosa estranhamente desconhecida e sempre mal traduzida observação que está no mesmo prefácio à Fenomenologia e que expressa diretamente de modo não sistemático as experiências originais de Hegel com o pensamento especulativo O verdadeiro é sempre a festa báquica onde nenhum participante ou seja nenhum pensamento particular deixa de estar bêbado e já que cada participante cada pensamento não se separa da linha de pensamento da qual ele é mera parte sem se dissolver imediatamente a festa é por isto mesmo um estado de quietude transparente e inquebrantável Para Hegel essa é a maneira pela qual a própria vida da verdade verdade que se tomou viva no processo do pensamento manifestase para o ego pensante Esse ego pode não saber se homem e mundo são reais ou vejase especialmente a filosofia hindu pura miragem ele só sabe estar vivo em uma exaltação que sempre beira a intoxicação como disse uma vez Nietzsche Podese avaliar como esse sentimento marca profundamente todo o sistema quando o reencontramos no fim da Fenomenologia lá ele aparece em contraste com o sem vida a ênfase é sempre na vida e se expressa através dos versos de Schiller citados erroneamente Do cálice deste reino espiritual espuma a infinitude do espírito Aus dem Kelche dieses Geisterreichesschãumt ihm seine Unendlichkeit 110 pensar e o agir o espectador Estive falando sobre as características especiais do pensamento que podem ser atribuídas ao radicalismo de sua retirada do mundo Em contrapartida nem a vontade nem o juízo embora dependentes da reflexão preliminar que o pensamento faz sobre os seus objetos ficam presos a essa reflexão seus objetos são particulares têm seu lar estabelecido no mundo das aparências do qual o espírito volitivo ou judicante se retira apenas temporariamente e com a intenção de uma volta posterior Isto aplicase particularmente à vontade cuja fase de retirada é caracterizada pela forma mais forte de reflexividade uma ação sobre si mesma o vollo me velle é muito mais característico da vontade do que o cogito me cogitare é característico do pensamento Contudo o que todas essas atividades têm em comum é uma peculiar quietude uma ausência de qualquer ação ou perturbação a retirada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos que de um modo ou de outro fazem de mim parte do mundo real uma retirada aque me referi anteriormente como condição e prérequisito de todo juízo Historicamente esse tipo de retirada do agir é a mais antiga condição postulada para a vida do espírito Em sua forma original fundase na descoberta de que somente o espectador e nunca o ator pode conhecer e compreender o que quer que se ofereça como espetáculo Essa descoberta contribuiu muito para a convicção que os filósofos gregos tinham da superioridade do modo de vida contemplativo que meramente assiste e presencia e cuja condição mais elementar segundo Aristóteles que foi o primeiro a elaborála49 era a schole Schole não é o tempo para o lazer tal como o entendemos hoje o tempo de inatividade que sobra depois do trabalho diário usado para cumprir as exigências da existência5 mas o ato deliberado de se abster de se conter scheiri e de não participar das atividades comuns determinadas pelas nossas necessidades cotidianas he ton anagkaion schole com a finalidade de ativar o lazer scholen agein que era por sua vez o verdadeiro objetivo de todas as outras atividades assim como a paz era o verdadeiro objetivo da guerra para Aristóteles A recreação e o jogo que são no nosso entendimento as atividades naturais do lazer ainda pertenciam ao contrário à ascholia ao estado de privação do lazer uma vez que o jogo e a recreação são necessários à restauração da força do labor humano encarregado de cuidar das necessidades da vida Encontramos esse ato de nãoparticipação ativa e deliberada nas atividades da vida cotidiana em sua forma provavelmente mais antiga e certamente mais simples em uma parábola atribuída a Pitágoras e relatada por Diógenes Laércio A Vida é como um festival assim como alguns vêm ao festival para competir e alguns para exercer os seus negócios mas os melhores vêm como espectadores theatai assim também na vida os homens servis saem à caça da fama dosa ou do lucro e os filósofos à caça da verdade51 O que é enfatizado aqui como mais nobre do que a competição pela fama e pelo lucro não é certamente uma verdade invisível e inacessível ao homem comum tampouco o lugar para onde os espectadores se retiram pertence a alguma região mais elevada tal como foi posteriormente figurada por Parmênides e por Platão seu lugar está no mundo e a sua nobreza está somente em não participar do que está ocorrendo em observálo como a um mero espetáculo O termo filosófico teoria deriva da palavra grega que designa espectadores theatai a palavra teórico até há alguns séculos significava contemplando observando do exterior de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam É óbvia a inferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e compreender como espectador podese compreender a verdade sobre o espetáculo mas o preço a ser pago é a retirada da participação no espetáculo O primeiro dado que sustenta essa apreciação é o fato de que somente o espectador ocupa uma posição que lhe permite ver o jogo a cena toda assim como o filósofo é capaz de ver o kosmos como um todo harmoniosamente ordenado O ator parcela do todo deve encenar o seu papel ele não somente é por definição uma parte como também está preso à circunstância de que encontra seu significado último e a justificativa de sua existência unicamente como constituinte de um todo Assim a retirada do envolvimento direto para uma posição fora do jogo o festival da vida não apenas é a condição do julgar para ser o árbitro final na competição que se desenrola como também é a condição para compreender o significado do jogo Em segundo lugar o que interessa essencialmente ao ator é a doxa uma palavra que significa tanto fama quanto opinião pois é através da opinião da audiência e do juiz que a fama vem a se consolidar Para o ator mas não para o espectador a maneira pela qual ele aparece para os outros é decisiva ele depende do pareceme do espectador o seu dokei moi que dá ao ator a sua doxa ele não é o seu próprio senhor não é o que Kant chamaria posteriormente autônomo ele deve se portar de acordo com o que os espectadores esperam dele e o veredito final de sucesso ou fracasso está nas mãos desses espectadores Evidentemente a retirada do juízo é muito diferente da retirada do filósofo Este não abandona o mundo das aparências mas se retira do envolvimento ativo neste mundo para uma posição privilegiada que tem como finalidade contemplar o todo Além disso e talvez mais significativamente os espectadores de Pitágoras são membros de uma audiência e portanto são bem diferentes do filósofo que inicia o seu bios theoretikos deixando a companhia dos seus semelhantes e as opiniões incertas as suas doxai que só podem expressar um pareceme Assim o veredito do espectador ainda que imparcial e livre dos interesses do lucro ou da fama não é independente do ponto de vista dos outros ao contrário segundo Kant uma mentalidade alargada tem que os levar em conta Os espectadores embora livres da particularidade característica do ator não estão solitários Tampouco são autosuficientes como o deus mais elevado que o filósofo tenta imitar pelo pensamento e que segundo Platão é etemamente solitário em razão de sua excelência sempre capaz de estar junto a si mesmo não precisando de mais ninguém amigo ou conhecido e bastando a si mesmo52 Essa distinção entre pensar e julgar só veio a merecer destaque com a filosofia política de Kant o que não é de se estranhar já que Kant foi o primeiro e permaneceu sendo o último dos grandes filósofos a lidar com o juízo como uma das atividades espirituais básicas Pois o que importa é que nos vários tratados e ensaios que Kant escreveu tardiamente o ponto de vista do espectador não é determinado pelos imperativos categóricos da razão prática isto é pela resposta da razão à pergunta O que devo fazer Essa resposta é moral e diz respeito ao indivíduo como indivíduo em plena independência autônoma da razão Como tal ele jamais pode de um modo moralprático reclamar para si o direito de rebelarse Ainda assim o mesmo indivíduo não quando age mas quando é um mero espectador tem o direito de julgar e de emitir o veredito final sobre a Revolução Francesa unicamente com base em sua ansiosa participação beirando o entusiasmo em seu desejo de compartilhar da exaltação do público não envolvido baseandose em outras palavras no juízo dos espectadores seus semelhantes que também não tinham a menor intenção de participar dos eventos E foi o veredito deles em última análise e não o desempenho dos atores que persuadiu Kant a chamar a Revolução Francesa de um fenômeno na história humana que não deve ser esquecido53 Nesse choque entre a ação participante e conjunta sem a qual afinal os eventos a serem julgados jamais teriam chegado a existir e o juízo observador e reflexivo Kant não tem dúvidas sobre qual deles deve ter a última palavra Supondo que a história seja apenas a história miserável dos eternos altos e baixos da humanidade o espetáculo de som e fúria poderá talvez ser comovente por algum tempo mas a cortina eventualmente deve cair Pois ao cabo de certo tempo o espetáculo tornase uma farsa E mesmo que os atores não se cansem dele pois eles são tolos o espectador se cansará pois um único ato será para ele suficiente se puder dele concluir que a peça interminavelmente encenada será etemamente a mesma grifos nossos54 Esta é de fato uma passagem reveladora Se a ela acrescentamos a convicção kantiana de que os assuntos humanos são guiados pelo ardil da natureza que conduz a espécie humana por trás dos homens de ação em um perpétuo progresso assim como a astúcia da razão de Hegel leva os homens à revelação do Espírito Absoluto poderemos encontrar justificativa para a questão ou nem todos os atores são tolos ou o espetáculo ao revelarse somente ao espectador não poderia também estar a serviço dos tolos Com qualificações mais ou menos sofisticadas essa sempre foi a suposição secreta dos filósofos da história isto é daqueles pensadores da era moderna que pela primeira vez decidiram levar a sério o bastante a esfera dos assuntos humanos os ta ton anthroponpragmata de Platão para chegar a refletir sobre ela E não estariam certos Não é verdade que das ações dos homens resulta algo diferente do que eles tencionavam e do que chegam a realizar algo diferente do que conhecem ou do que querem Para fazer uma analogia um homem pode incendiar a casa de outro por vingança A ação imediata é a de aproximar uma pequena chama de uma pequena parte de uma viga de madeira O que se segue é uma vasta conflagração Esse resultado não foi parte do ato primeiro nem a intenção daquele que o iniciou Esse exemplo apenas mostra que na ação imediata pode estar envolvido algo diferente daquilo que é conscientemente desejado pelo ator55 Estas são palavras de Hegel mas poderíam ter sido escritas por Kant Em ambos os casos não é por meio da ação mas da contemplação que o algo diferente a saber o significado do todo é revelado O espectador e não o ator tem a chave do significado dos negócios humanos apenas e isto é decisivo os espectadores de Kant existem no plural e é esta a razão pela qual ele pôde chegar a uma filosofia política O espectador de Hegel existe estritamente no singular o filósofo tomase o órgão do Espírito Absoluto e o filósofo é o próprio Hegel Mas mesmo Kant mais consciente da pluralidade humana do que qualquer outro filósofo pôde esquecer convenientemente que se o espetáculo fosse sempre o mesmo e portanto fosse cansativo as audiências mudariam de geração para geração e que seria pouco provável que uma nova audiência chegasse às mesmas conclusões legadas pela tradição sobre o que teria a dizer uma peça imutável Dificilmente poderemos evitar a questão do lugar ou da região para onde se dirige o movimento de subtração do mundo quando falamos na retirada do espírito como condição necessária a todas as atividades espirituais Tratei de modo prematuro ainda que um tanto longo da retirada do juízo para a posição do espectador porque minha intenção era a de levantar a questão primeiramente em sua forma mais simples e mais óbvia apontando casos em que a região da retirada estivesse localizada em nosso mundo comum sem contar a reflexividade Lá estão eles em Olímpia nas filas de degraus que se elevam a partir do palco ou do estádio cuidadosamente separados das encenações em curso e o público não envolvido de Kant que acompanhava os eventos em Paris com um prazer desinteressado e uma simpatia beirando o entusiasmo estava presente em todos os círculos intelectuais da Europa durante os primeiros anos da década de noventa do século XVIII embora o próprio Kant provavelmente estivesse pensando nas multidões das ruas de Paris Mas o problema está em que não podemos encontrar tal localidade incontestável quando nos perguntamos onde estamos quando pensamos ou quando exercemos a vontade cercados por assim dizer por coisas que não são mais ou que ainda não existem ou finalmente por coisaspensamento usadas cotidianamente tais como justiça liberdade coragem e que no entanto se encontram totalmente fora da experiência sensível E bem verdade que o ego volitivo cedo encontrou uma residência uma região que era propriamente sua tão logo essa faculdade foi descoberta nos primeiros séculos da Era Cristã ela foi localizada em nosso interior e caso alguém se pusesse a escrever a história da interioridade em termos de uma vida interna esse alguém logo percebería que essa história coincide com a história da Vontade Mas a interioridade como já indicamos tem seus próprios problemas mesmo quando concordamos que a alma e o espírito não são a mesma coisa Além disso a peculiar natureza reflexiva da vontade às vezes identificada com o coração e quase sempre considerada como o órgão do nosso eu mais profundo tomou essa região ainda mais difícil de ser isolada Quanto ao pensamento a questão de saber onde estamos quando pensamos parece ter sido levantada apenas por Platão no Sofista56 lá depois de ter determinado o lugar do sofista ele promete determinar também o lugar do próprio filósofo o topos noetos mencionado nos primeiros diálogos57 mas jamais cumpriu a promessa Pode ser que simplesmente tenha fracassado na tarefa de completar a trilogia do SofistaPolíticoFilósofo ou que tenha chegado a acreditar que a resposta estivesse dada implicitamente no Sofista em que retrata o sofista como estando em casa na escuridão do Nãoser o que o torna tão difícil de ser percebido ao passo que o filósofo é difícil de ser visto porque sua região é tão luminosa pois o olho da multidão não pode manter o olhar fixo no divino58 Essa resposta era de fato esperável por parte do autor da República e da parábola da Caverna 12 Linguagem e metáfora As atividades mentais invisíveis e ocupadas com o invisível tomamse manifestas somente através da palavra Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem os seres pensantes ainda que pertencentes ao mundo das aparências mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente têm em si o ímpeto de falar e assim tornar manifesto aquilo que de outra forma não podería absoiutamente pertencer ao mundo das aparências Mas enquanto o aparecer pressupõe e exige em si a presença de espectadores o pensar em sua necessidade de discurso não exige ou pressupõe ouvintes a linguagem humana com uma intrincada complexidade gramatical e sintática não seria necessária na comunicação entre semelhantes A linguagem dos animais sons sinais gestos serviría bastante bem para as nossas necessidades imediatas não só de autopreservação e preservação da espécie como também para tornar evidentes as disposições da alma Não é nossa alma mas nosso espírito que exige o discurso Referime a Aristóteles quando estabelecí uma distinção entre espírito e alma os pensamentos de nossa razão e as paixões de nosso aparato emocional e chamei a atenção sobre como é reforçada essa distinçãochave em De anima por uma passagem na introdução do pequeno tratado sobre a linguagem De interpretatione Voltarei a esse tratado já que seu ponto mais interessante é a afirmação de que o critério do Logos do discurso coerente não é a verdade ou a falsidade mas sim o significado As palavras em si não são nem verdadeiras nem falsas A palavra centauro por exemplo Aristóteles usa o exemplo de veadobode um animal que é metade veado metade bode significa algo embora não signifique nada que seja falso ou verdadeiro a não ser que se acrescente não ser ou ser a essa palavra O Logos é o discurso no qual as palavras são reunidas para formar uma sentença que seja totalmente significativa em virtude da síntese synthekef Palavras significativas em si mesmas e pensamentos noematà assemelhamse eiokeri Disso se depreende que o discurso ainda que sempre som com significado phone semantike não é necessariamente apophantikos um enunciado ou uma proposição em que aletheuein e pseudesthai verdade e falsidade ser e nãoser estão em jogo Não é sempre esse o caso uma prece como vimos é um logos mas não é falsa nem verdadeira61 Assim implícita no ímpeto da fala está a busca do significado e não necessariamente a busca da verdade É interessante notar também que em nenhum momento da discussão da relação que a linguagem mantém com o pensamento Aristóteles levanta a questão da prioridade não decide se o pensamento é a origem da fala tomado o discurso como mero instrumento de comunicação de nossos pensamentos ou se o pensamento é uma conseqüência do fato de que o homem é um animal falante De qualquer forma uma vez que palavras portadoras de significados e pensamentos assemelhamse seres pensantes têm o ímpeto de falar seres falantes têm o ímpeto de pensar De todas as necessidades humanas a necessidade da razão é a únicaque jamais poderia ser adequadamente satisfeita sem o pensamento discursivo e o pensamento discursivo é inconcebível sem palavras já significativas antes que um espírito viaje por assim dizer através delas poreuesthai dia logon Platão A linguagem sem dúvida serve também para a comunicação entre os homens mas aí sua necessidade vem simplesmente do fato de que os homens seres pensantes que são têm a necessidade de comunicar seus pensamentos os pensamentos para acontecer não precisam ser comunicados mas não podem ocorrer sem ser falados silenciosa ou sonoramente em um diálogo conforme o caso Como o pensar embora sempre proceda por palavras não necessita de ouvintes Hegel pôde de acordo com o testemunho da maioria dos filósofos dizer que a filosofia é algo solitário E a razão não porque o homem seja um ser pensante mas porque ele só existe no plural também quer a comunicação e tende a perderse caso dela tenha que se privar pois a razão como observou Kant não é de fato talhada para isolarse mas para comunicarse61 A função desse discurso silencioso tacite secum rationare raciocinar silenciosamente consigo mesmo nas palavras de Santo Anselmo de Canterbury62 é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências do diaadia a necessidade da razão é dar conta logon didonai como a chamavam os gregos com grande precisão de qualquer coisa que possa ser ou ter sido Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento a necessidade pode surgir em conexão com fenômenos bastante conhecidos e inteiramente familiares mas pela busca do significado O puro nomear das coisas a criação de palavras é a maneira humana de apropriação e por assim dizer de desalienação do mundo no qual afinal cada um de nós nasce como um recémchegado como um estranho Essas observações sobre a interconexão de linguagem e pensamento que nos fazem suspeitar de que não há possibilidade de existir um pensamento nãodiscursivo obviamente não se aplicam a civilizações em que o signo escrito em lugar da palavra falada é decisivo e em que consequentemente o pensamento em si não é discurso silencioso mas sim um lidar mental com imagens Isso vale claramente para a China cuja filosofia pode muito bem equipararse à filosofia do Ocidente Lá o poder das palavras é sustentado pelo poder do signo escrito da imagem e não como ocorre com as linguagens alfabéticas em que a escrita é considerada secundária nada além de que um conjunto convencional de símbolos63 Para os chineses todo signo toma visível aquilo a que chamaríamos um conceito ou uma essência contase que Confúcio disse uma vez que o signo chinês para cachorro é a imagem perfeita do cachorro em si enquanto que para nosso entendimento não há imagem que se possa adequar ao conceito de cachorro em geral Essa imagem jamais conteria aquela universalidade do conceito que o toma válido para todos os cachorros64 O conceito cachorro segundo Kant que no capítulo sobre Esquematismo na Crítica da razão pura esclarece uma das hipóteses básicas de todo o pensamento ocidental significa a regra de acordo com a qual minha imaginação é capaz de delinear a figura de um animal de quatro patas de uma maneira geral sem limitarse por qualquer figura determinada que possa de fato ser apresentada pela experiência ou por qualquer imagem que eu possa representar in concreto E acrescenta esse esquematismo de nosso intelecto é uma arte escondida nas profundezas da alma humana é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte que eles se desvelem ao nosso olhar65 Em nosso contexto a passagem tomase relevante porque evidencia que nossa faculdade espiritual de lidar com invisíveis se faz necessária até em experiências sensíveis ordinárias mesmo para que reconheçamos um cachorro como um cachorro qualquer que seja a forma com que o animal de quatro patas se apresente Conseqüentemente deveriamos ser capazes de intuir no sentido kantiano o caráter geral de um objeto que jamais se apresenta aos nossos sentidos Para esses esquemas puras abstrações Kant usou a palavra monograma e a escrita chinesa pode por assim dizer ser melhor entendida como monogramática Em outras palavras aquilo que para nós é abstrato e invisível para os chineses é emblematicamente concreto e dado visivelmente em sua escrita como acontece por exemplo quando a imagem de duas mãos unidas serve para designar o conceito de amizade Os chineses pensam com imagens e não com palavras E esse pensar com imagens permanece sempre concreto e não pode ser discursivo passando por uma seqüência ordenada de pensamento nem pode dar conta de si mesmo logon didonai a resposta para a questão socrática típica O que é amizade está visivelmente presente e evidente no emblema das duas mãos unidas e o emblema libera toda uma cadeia de representações pictóricas por meio de associações possíveis pelas quais as imagens são reunidas Isso pode ser visto melhor na enorme variedade de signos compostos por exemplo o signo para frio combina todas aquelas noções que se associam ao pensamento de um tempo frio às atividades que servem para dele proteger o homem A poesia portanto mesmo quando lida em voz alta afetará o ouvinte opticamente ele não se aterá à palavra que ouve mas ao signo de que se lembra e com ele às visões para as quais o signo claramente aponta Tais diferenças entre o pensamento concreto em imagens e nosso lidar abstrato com conceitos verbais são fascinantes e inquietantes não tenho competência para lidar com elas adequadamente São talvez até mais inquietantes porque entre elas podemos perceber uma hipótese que compartilhamos com os chineses a prioridade inquestionável da visão para as atividades mentais Tal prioridade como veremos rapidamente permanece absolutamente decisiva através da história da metafísica ocidental e de sua noção de verdade O que nos distingue deles não é o nous mas sim o logos nossa necessidade de explicar e de justificar com palavras Todos os processos estritamente lógicos tais como a dedução de inferências do geral para o particular ou como o raciocínio indutivo de particulares para alguma regra geral representam tais justificativas e isso só se pode fazer com palavras Wittgenstein ao que eu saiba foi o único a conscientizarse do fato de que a escrita hieroglífica correspondia à noção de verdade compreendida segundo a metáfora da visão Ele escreve Para entender a essência de uma proposição devemos considerar a escrita hieroglífica que retrata os fatos que descreve E a escrita alfabética dela se desenvolveu sem perder o que era essencial de ser retratado66 Essa observação final é por certo altamente duvidosa Menos duvidoso é que a filosofia tal como a conhecemos dificilmente teria chegado a existir sem a recepção e a adaptação iniciais do alfabeto feitas pelos gregos a partir de fontes fenícias Ainda assim a linguagem o único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais não só para o mundo exterior como também para o próprio eu espiritual não é de modo algum tão evidentemente adequada à atividade do pensamento quanto a visão o é para sua tarefa de ver Nenhuma língua tem um vocabulário já pronto para as necessidades da atividade espiritual todas tomam seu vocabulário de empréstimo às palavras originalmente concebidas para corresponder ou a experiências dos sentidos ou a outras experiências da vida comum Tal empréstimo entretanto jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico como os símbolos matemáticos ou emblemático toda a linguagem filosófica e a maior parte da linguagem poética é metafórica não no sentido simples do Dicionário Oxford que define Metáfora como a figura de linguagem na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um objeto diferente de mas análogo àquele ao qual é adequadamente aplicável Não há analogia entre digamos um pôrdosol e a velhice e quando o poeta em uma metáfora gasta fala da velhice como o poente da vida ele pensa que o poente se relaciona com o dia que o precede da mesma forma que a velhice se relaciona com a vida Se portanto como diz Shelley a linguagem do poeta é vitalmente metafórica ela o é enquanto marca relações de coisas anteriormente não apreendidas perpetuando sua apreensão grifo nosso67 Toda metáfora descobre uma percepção intuitiva de similaridades em dessemelhantes e segundo Aristóteles é exatamente por isso que ela é um sinal de gênio de longe a maior de todas as coisas68 Mas essa similaridade também para Aristóteles não está presente em objetos diferentes sob outros aspectos mas é uma similaridade de relações como numa analogia que sempre necessita de quatro termos e pode ser representada pela fórmula B A DC Desse modo uma taça está para Dionísio assim como um escudo está para Ares A taça será por conseguinte descrita metaforicamente como o escudo de Dionísio69 E essa fala por analogia em linguagem metafórica é segundo Kant o único modo pelo qual a razão especulativa que aqui chamamos pensamento pode se manifestar A metáfora fornece ao pensamento abstrato e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências cuja função é a de estabelecer a realidade de nossos conceitos7 como que desfazendo a retirada do mundo précondição para as atividades do espírito Isso é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências isto é desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do sensocomum o que precisamos para o pensamento do sensocomum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências são meras abstrações E completamente diferente quando a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo e nos leva ao mar incerto da especulação em que não pode ser dada nenhuma intuição adequada a idéias da razão71 Nesse ponto entra a metáfora A metáfora realiza a transferência metapherein de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos a transição de um estado existencial aquele do pensar para outro aquele do ser uma aparência entre aparências e isso só pode ser feito através de analogias Kant dá como exemplo de metáfora bem sucedida a descrição do estado despótico como uma simples máquina como um moedor manual porque é governado por uma vontade individual absoluta Pois entre um estado despótico e um moedor manual não há decerto qualquer semelhança mas há semelhança nas regras segundo as quais refletimos sobre essas duas coisas e sobre sua causalidade E acrescenta Nossa linguagem está cheia de apresentações indiretas desse tipo um assunto que não foi suficientemente analisado até agora e que merece uma investigação mais profunda72 As percepções da metafísica são alcançadas por analogia não no sentido habitual de semelhança imperfeita entre duas coisas mas de uma semelhança perfeita entre duas relações entre coisas completamente diferentes13 Na linguagem muitas vezes menos precisa da Crítica do juízo Kant chama também de simbólicas essas representações de acordo com uma simples analogia74 Todos os termos filosóficos são metáforas analogias congeladas por assim dizer cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original que estava muito nítido no espírito do primeiro filósofo a utilizálo Quando Platão introduziu as palavras cotidianas alma e idéia na linguagem filosófica conectando um órgão invisível no homem a alma com algo invisível no mundo dos invisíveis as idéias ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e préfilosófica Psyche é o sopro da vida que os moribundos expiram e idéia ou eidos é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das idéias A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve se da seguinte maneira assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona is to é ao cadáver a alma daí em diante está em princípio relacionada com o corpo que vive A analogia subjacente à sua doutrina das idéias pode ser reconstruída de maneira semelhante assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto a totalidade dos dados sensíveis e materiais no mundo das aparências relacionase a e é avaliada de acordo com um padrão invisível situado no céu das idéias Sabemos que a palavra noeomai foi primeiramente utilizada no sentido de percepção visual e em seguida transferida para percepções do espírito com o sentido de apreensão acabou finalmente tomandose uma palavra para designar a mais alta forma de pensamento E razoável supor que ninguém pensou que o olho o órgão da visão e o nous o órgão do pensamento fossem o mesmo mas a própria palavra indicou que a relação entre o olho e o objeto visto era semelhante à relação entre o espírito e seu objetodepensamento isto é forneceu o mesmo tipo de evidência Sabemos que ninguém antes de Platão usara essa palavra própria para designar tanto a forma como o esboço do artesão na linguagem filosófica assim como ninguém antes de Aristóteles usara a palavra energos um adjetivo que designa aquele que é ativo que está trabalhando ocupado para formular o termo energeia atualidade em oposição a dynamis simples potencialidade E o mesmo se dá com termos tão clássicos quanto substância e acidente derivados do latim hypokeimenon e kata symbebekos aquilo que subjaz distinto daquilo que acidentalmente acompanha Ninguém antes de Aristóteles usara a palavra Kategoria categoria cujo significado era aquilo que se afirmava em um julgamento a respeito do réu em outro sentido que não fosse o de acusação75 No sentido aristotélico essa palavra acabou tomandose algo como predicado a partir da seguinte analogia assim como fazer uma acusação katagoreuein ti tinos é atribuir ao réu algo de que ele é culpado e portanto algo que pertence a ele predicar é atribuir ao sujeito a qualidade apropriada Esses exemplos são todos familiares e poderíam se multiplicar Acrescentarei apenas mais um a meu ver especialmente expressivo dada a grande importância que tem na terminologia filosófica nossa palavra para o grego nous é ou mente do latim mens indicando algo como o alemão Gemüt ou razão Interessome aqui por esta última acepção Razão vem do latim ratio derivado do verbo rear ratus sum que significa calcular e também raciocinar A tradução latina tem um conteúdo metafórico inteiramente distinto que se aproxima muito mais da palavra grega logos do que de nous Para aqueles que têm um preconceito compreensível contra argumentos etimológicos gostaria de lembrar a famosa expressão de Cícero ratio et oratio que não faria qualquer sentido em grego A metáfora servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e conseqüentemente à filosofia mas a metáfora em si é na origem poética e não filosófica Não é de espantar portanto que poetas e escritores afinados com a poesia e não com a filosofia conhecessem sua função essencial Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Emest Fenollosa publicado por Ezra Pound e ao que eu saiba jamais mencionado na literatura sobre metáfora A metáfora é a própria substância da poesia sem ela não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê76 O descobridor desse instrumento originalmente poético foi Homero cujos dois poemas estão cheios de todos os tipos de expressões metafóricas Escolho em um embarras de richesses a passagem da Ilíada em que o poeta compara o açoite violento do medo c da dor do coração dos homens com o açoite dos ventos que chegam de várias direções nas águas do mar77 Pensem nessas tempestades já tão conhecidas parece nos dizer o poeta e compreenderão a dor e o medo E bastante significativo que a coisa não funcione ao contrário Podese pensar à vontade acerca da dor e do medo sem que se chegue a descobrir qualquer coisa sobre os ventos e o mar a comparação tem a intenção clara de contar o que o medo e a dor podem fazer ao coração humano isto é tem a intenção de iluminar uma experiência que não aparece A irreversibilidade da análise distinguea nitidamente do símbolo matemático utilizado por Aristóteles na tentativa de descrever a mecânica da metáfora Por mais feliz que seja o achado de uma metáfora na expressão de uma semelhança perfeita de relação entre duas coisas completamente diferentes e por maior perfeição já que A não é obviamente o mesmo que C e B não é o mesmo D que a fórmula BD DC possa ter na expressão dessa semelhança a equação de Aristóteles implica reversibilidade se BA DC CD AB O que se perde no cálculo matemático é a função real da metáfora a volta ao mundo sensível que ela proporciona ao espírito com a finalidade de iluminar suas experiências nãosensíveis e para as quais não há palavras em qualquer língua A fórmula aristotélica funcionou porque lidou apenas com coisas visíveis e na verdade foi aplicada não à metáfora e a seu transporte de um domínio para outro mas sim a emblemas e os emblemas são já ilustrações visíveis de algo invisível a taça de Dionísio um ideograma da disposição festiva associada com o vinho o escudo de Ares um ideograma da fúria da guerra a balança da justiça nas mãos da deusa cega um ideograma da Justiça pesando as ações sem considerar os agentes O mesmo se dá com analogias esgotadas transformadas em expressões idiomáticas como no caso do segundo exemplo de Aristóteles A velhice D está para a vida C assim como o anoitecer B está para o dia A É claro que há na linguagem comum uma enorme variedade de expressões figurativas que se assemelham às metáforas sem que venham a exercer a verdadeira função delas78 São simples figuras de linguagem mesmo quando usadas por poetas branco como marfim para ficar com Homero e são também muitas vezes caracterizadas por uma transferência quando algum termo pertencente a uma classe de objetos é remetido a outra classe é assim que falamos no pé de uma mesa como se fosse parte de um homem ou de um animal Aqui a transferência se dá em um mesmo domínio dentro do gênero dos visíveis e aqui a analogia é de fato reversível Mas não é sempre o caso mesmo quando se trata de metáforas que não apontam diretamente para algo invisível Homero nos dá um outro tipo mais complexo de metáfora estendida ou símile a qual deslocandose entre os visíveis aponta para uma história oculta Por exemplo o famoso diálogo entre Ulisses e Penélope logo antes da cena do reconhecimento em que Ulisses disfarçado de mendigo e contando muitas coisas falsas diz a Penélope que hospedara seu marido em Creta Relatase a maneira como as lágrimas corriam enquanto Penélope ouvia e seu corpo se ia derretendo como a neve derrete nas altas montanhas quando ali sopram o Zéfiro espalhando a e quando é derretida pelo Euro fazendo transbordar os rios Assim corriam as lágrimas pelas belas faces de Penélope enquanto chorava por um marido que ali estava sentado junto dela79 Aqui a metáfora parece combinar apenas os visíveis as lágrimas nas faces não são menos visíveis do que a neve que derrete O invisível que se faz visível na metáfora é o longo inverno da ausência de Ulisses a indiferença sem vida e a dureza oculta daqueles anos que agora aos primeiros sinais de esperança por uma vida renovada começa a abrandarse As lágrimas em si expressam apenas o pesar seu significado os pensamentos que produziam essas lágrimas manifestase na metáfora da neve derretendo e amaciando a terra antes da primavera Kurt Riezler o primeiro a associar o símile homérico com o início da filosofia insiste na tertium comparationis necessária a qualquer comparação que permite ao poeta perceber e tomar conhecida a alma como mundo e o mundo como alma8 Por trás da oposição entre mundo e alma deve haver uma unidade que tome possível a correspondência uma lei ignorada com diz Riezler citando Goethe presente tanto no mundo dos sentidos quanto no domínio da alma E a mesma unidade que reúne todos os opostos dia e noite luz e escuridão frio e calor cada um dos quais inconcebíveis em separado impensáveis a não ser quando misteriosamente relacionados à sua antítese Tal unidade oculta tornase segundo Riezler o tópico dos filósofos a koinos logos de Heráclito a hen pan de Parmênides a percepção dessa unidade distingue a verdade do filósofo das opiniões dos homens comuns E a título de reforço Riezler cita Heráclito O deus é dianoite invemoverão guerrapaz saciedadefome todos os opostos ele é o nous ele se modifica assim como o fogo quando misturado aos aromas é nomeado pelo perfume que a ele se mistura81 A filosofia é razoável admitir foi à escola de Homero para imitarlhe o exemplo E a tendência para admitir isto é ainda mais reforçada pelas duas primeiras mais famosas e influentes parábolas do pensamento a viagem de Parmênides aos portões do dia e da noite e a parábola da caverna de Platão sendo que a primeira é um poema e a segunda é essencialmente poética impregnada pela linguagem homérica Isso no mínimo sugere que Heidegger estava certo quando chamou a poesia e o pensamento de vizinhos próximos82 Tentando agora examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o mundo das aparências podemos oferecer provisoriamente a seguinte descrição geral da sugestiva definição aristotélica da linguagem como emissão sonora e significativa de palavras que já em si são sons com significado que se assemelham a pensamentos podese concluir que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem sem qualquer esforço especial já encontrou uma morada adequada ainda que provisória no mundo audível Se falar e pensar nascem da mesma fonte então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma aparência A terra do pensamento de Kant Land des Denkens pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do corpo manifestase com todo tipo de distorção não só para nosso espírito mas também para os ouvidos do corpo E é nesse contexto que a linguagem do espírito através da metáfora retoma ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto mas que pode ser dito Analogias metáforas e emblemas são fios com que o espírito se prende ao mundo mesmo nos momentos em que desatento perde o contato direto com ele são eles também que garantem a unidade da experiência humana Além disso servem como modelos no próprio processo de pensamento dandonos orientação quando tememos cambalear às cegas entre experiências nas quais nossos sentidos corporais com sua relativa certeza de conhecimento não nos podem guiar O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias que o mundo das aparências nos lembra coisas nãoaparentes pode ser visto como uma espécie de prova de que corpo e espírito pensamento e experiência sensível visível e invisível se pertencem são por assim dizer feitos um para o outro Em outras palavras se a rocha no mar que resiste à rota veloz dos ventos que silvam às ondas que se elevam e nela rebentam pode tomarse uma metáfora para resistência em combate não é correto dizer que a rocha é vista antropomorficamente a não ser que acrescentemos que nossa compreensão da rocha é antropomórfica pela mesma razão que essa compreensão pode permitir que nos vejamos petromorfícamente3 Há finaímente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora ela indica à sua maneira a absoluta primazia do mundo das aparências fornecendo assim mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem Esse último ponto é de especial importância Se a linguagem do pensamento é essencialmentc metafórica o mundo das aparências inserese no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências A teoria dos dois mundos como já disse é uma falácia metafísica mas não é absolutamente arbitrária ou acidental E a falácia mais razoável que atormenta a experiência do pensamento A linguagem prestandose ao uso metafórico tornanos capazes de pensar isto é de ter trânsito em assuntos não sensíveis pois permite uma transferência metapherein de nossas experiências sensíveis Não há dois mundos pois a metáfora os une 13 A metáfora e o inefável As atividades do espírito trazidas à linguagem como único meio de sua manifestação retiram cada uma de suas metáforas de um sentido corporal diferente sua plausibilidade depende de uma afinidade inata entre certos dados mentais e certos dados sensíveis Assim desde o início da filosofia formal o pensamento foi concebido em termos de visão E como o pensamento é a mais fundamental e a mais radical das atividades espirituais a visão tendeu a servir de modelo para a percepção em geral e portanto de medida para os outros sentidos84 A predominância da visão impregna tão profundamente o discurso grego e portanto nossa linguagem conceituai que raramente se encontra qualquer consideração a seu respeito como se ela pertencesse às coisas óbvias demais para serem notadas Uma breve observação de Heráclito Os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos85 é uma exceção de resto não das mais úteis Pelo contrário quando levamos em conta como é fácil para a visão diferentemente dos outros sentidos deixar de fora o mundo exterior e quando examinamos a antiga noção de bardo cego cujas histórias são ouvidas podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento86 Não é de todo verdade contudo que nas palavras de Hans Jonas o espírito foi onde a visão apontou87 As metáforas utilizadas pelos teóricos da Vontade raramente são extraídas da esfera da visão seu modelo ou é o desejo como propriedade quintessencial de todos os nossos sentidos já que servem ao apetite geral de um ser que precisa e que quer ou é extraída da audição na linha da tradição judaica de um Deus que se ouve mas não se vê As metáforas retiradas da audição são muito raras na história da filosofia a mais notável exceção moderna são os últimos escritos de Heidegger onde o ego pensante ouve o chamado do Ser Os esforços medievais para reconciliar o ensino bíblico com a filosofia grega atestam a completa vitória da intuição e da contemplação sobre toda forma de audição tal vitória foi por assim dizer pressagiada pela antiga tentativa de Fílon de Alexandria de afinar seu credo judaico com uma filosofia platonizante Ele estava todavia ciente da distinção entre uma verdade hebraica que era escutada e a visão grega do verdadeiro Transformou a primeira em simples preparação para a segunda alcançada pela intervenção divina que transformara os ouvidos do homem em olhos permitindo a maior perfeição da cognição humana88 Finalmente o juízo que é em termos de descoberta a última de nossas habilidades espirituais retira como tão bem sabia Kant sua linguagem metafórica do sentido do gosto A crítica do juízo foi originalmente concebida como Crítica do gosto o mais íntimo privado e indiossincrático dos sentidos de certo modo oposto à visão com sua nobre distância O principal problema da Crítica do juízo tomouse portanto a questão de como proposições de juízo poderíam chegar a pretender como é o caso uma concordância geral Jonas enumera todas as vantagens da visão como metáforaguia e como modelo para o espírito pensante Há em primeiro lugar o fato indiscutível de que nenhum outro sentido estabelece distância tão segura entre sujeito e objeto a distância é a condição mais básica para o funcionamento da visão O ganho é o conceito de objetividade da coisa como ela é em si diferentemente da coisa como ela me afeta dessa distinção surge toda a idéia de theoria e de verdade teórica Além disso a visão nos fornece um múltiplo cotemporâneo enquanto todos os outros sentidos especialmente a audição constroem suas unidades de percepção de um múltiplo a partir de uma seqüência temporal de sensações A visão permite liberdade de escolha em função do fato de que vendo ainda não estou capturado pelo objeto visto O objeto visto deixame estar assim como eu o deixo estar enquanto os outros sentidos me afetam diretamente Isso vale especialmente para a audição a única concorrente possível para a visão em termos de primazia mas que se vê desqualificada pelo fato de que invade um sujeito passivo Na audição aquele que percebe está à mercê de algo ou de alguém A propósito esta pode ser a razão pela qual a língua alemã tenha feito derivar uma enorme série de palavras indicadoras da posição de nãoliberdade do verbo hõren ouvir gehorchen hõrig gehõren obedecer servir pertencer O mais importante em nosso contexto é o fato trazido à tona por Jonas de que a visão necessariamente introduz o observador e para o observador em contraste com o ouvinte o presente não é a experiência pontual do agora que passa mas é transformado em uma dimensão dentro da qual as coisas podem ser observadas como uma permanência do mesmo Somente a visão fornece a base sensível na qual o espírito pode conceber a idéia do eterno aquilo que jamais se modifica e está sempre presente89 Mencionei anteriormente que a linguagem o único meio no qual o invisível pode tomarse manifesto em um mundo de aparências não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível Sugeri que a metáfora pode a seu modo curar o defeito A cura tem os seus perigos e jamais chega tampouco a ser completamente adequada O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível As metáforas podem portanto ser usadas pela razão especulativa que na verdade não as pode evitar mas quando elas invadem como é sua tendência o raciocínio científico são usadas e abusadas para fornecer evidência plausível para teorias que na realidade são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos Hans Blumenberg em seu Paradigemenzu einerMetaphorologie investigou certas figuras de retórica bastante comuns tais como a metáfora do iceberg ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental e então quase por acidente descobriu em que medida as pseudo ciências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora que substitui a falta de evidência dos dados O melhor exemplo é a teoria da consciência da psicanálise em que a consciência é vista como a ponta de um iceberg uma simples indicação da massa flutuante de inconsciência que está submersa90 Não só essa teoriajamais foi demonstrada como é indemonstrável em seus próprios termos no momento em que um fragmento de inconsciência alcança a ponta do iceberg ele terá se tomado consciente e terá perdido todas as propriedades de sua alegada origem Ainda assim a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus O único problema é que cada uma dessas especulações traz em si um constructo espiritual em cuja ordem sistemática cada dado pode encontrar seu lugar hermenêutico com uma consistência ainda mais rigorosa do que a fornecida por uma teoria científica bem sucedida uma vez que sendo um constructo exclusivamente espiritual sem necessidade de qualquer experiência real não tem de lidar com as exceções à regra Seria tentador acreditar que o pensamento metafórico é um perigo somente quando é utilizado pelas pseudociências e que o pensamento filosófico se não tem pretensão à verdade demonstrável está a salvo na utilização de metáforas apropriadas Infelizmente não é esse o caso Os sistemasde pensamento dos grandes filósofos e metafísicos do passado apresentam uma desconfortável semelhança com os constructos espirituais das pseudo ciências exceto pelo fato de que os grandes filósofos em contraste com a convicção absoluta de seus confrades inferiores insistiram quase que unanimemente em algo inefável por detrás das palavras escritas algo de que quando pensavam c não escreviam tinham clara ciência e que entretanto resistia a ser definido e transmitido para os outros os filósofos insistiram em resumo em que havia algo que se recusava a passar por uma transformação que fizesse com que esse algo aparecesse e tomasse seu lugar entre as aparências do mundo Retrospectivamente somos tentados a ver essas sempre recorrentes declarações como tentativas de advertir o leitor de que ele estaria correndo o risco de cometer um erro fatal de compreensão o que se oferecia a ele eram pensamentos não cognições não pedaços sólidos de conhecimento que uma vez adquiridos dissipariam a ignorância como filósofos estiveram inicialmente interessados em assuntos que escapavam ao conhecimento humano sem que por isso escapassem à razão humana vendose inclusive atormentados por ela E uma vez que na busca dessas questões os filósofos inevitavelmente descobriram um grande número de coisas de fato cognoscíveis a saber todas as leis e axiomas do pensar correto e as várias teorias do conhecimento eles próprios bem cedo acabaram por empalidecer a distinção entre pensar e conhecer Enquanto Platão continuou mantendo que a verdadeira arche início e princípio da filosofia é o espanto91 Aristóteles nos parágrafos iniciais da Metafísica2 interpretou e foi o primeiro a fazêlo este mesmo espanto como pura perplexidade ou desorientação aporem através da perplexidade os homens conscientizamse de sua ignorância a respeito das coisas que se deixam conhecer começando pelas coisas que estão à mão e avançando em direção a grandes assuntos como o Sol a Lua as estrelas e a gênese de todas as coisas Os homens disse ele filosofaram para escapar à ignorância e o espanto platônico foi entendido não mais como um princípio mas como um mero começo todos os homens começam por espantarse mas é preciso terminar com o oposto do espanto e com o que é melhor do que espantarse como é o caso quando eles aprendem93 Assim Aristóteles embora também ele em um contexto diferente tenha falado de uma verdade aneu logou uma verdade que resistia à expressão discursiva94 não teria dito com Platão dos assuntos que abordo nada é conhecido já que não existe nada escrito sobre eles nem jamais haverá qualquer coisa a ser escrita no futuro Quem escreve sobre tais coisas nada sabe sequer conhecese a si mesmo Pois não há jeito de colocar tais coisas em palavras assim como há outras coisas que podem ser aprendidas Por conseguinte ninguém que possua a verdadeira faculdade do pensamento nous e que portanto perceba a debilidade das palavras jamais arriscará a modelar pensamentos em discurso e muito menos a ajustar os pensamentos a uma forma inflexível quanto a das letras escritas95 O mesmo será ouvido quase que com as mesmas palavras ao final de todo este desenvolvimento É desse modo que Nietzsche que certamente não era um platonista escreve a seu amigo Overbeck Minha filosofia não pode mais ser comunicada pelo menos não pode ser impressa96 e em Além do bem e do mal Não se pode mais amar suficientemente um insight quando o comunicamos97 E Heidegger escreve não sobre Nietszche mas sobre si mesmo O limite interno de todo pensamento é que o pensador jamais pode dizer aquilo que é mais seu porque a palavra falada recebe sua determinação do inefável98 Ao que podemos acrescentar breves observações de Wittgenstein cujas investigações filosóficas centramse no inefável em um esforço incansável para dizer o que pode ser Os resultados da filosofia são a descoberta de galos que o intelecto ganhou quando bateu com a cabeça nos limites da linguagem Esses galos são o que designamos aqui como falácias metafísicas são aquilo que nos faz ver o valor da descoberta Ou Os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias wenn die Sprache feiert No alemão isto é ambíguo pode significar tirar férias isto é a linguagem pára de funcionar ou pode significar celebrar o que teria um significado quase oposto Ou A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento de nossa inteligência pela linguagem O problema claro é que novamente tal batalha só pode ser travada com a linguagem99 Voltemos a Platão já que ele é ao que eu saiba o único filósofo de peso a nos deixar mais do que observações ocasionais sobre o assunto A principal parte da Sétima carta não se dirige contra a fala mas contra a escrita Ela repete de forma abreviada as objeções já levantadas contra a escrita no Fedro Há em primeiro lugar o fato de que a escrita implanta o esquecimento fiandose na palavra escrita os homens cessam de exercitar a memória Há em segundo lugar o silêncio majestoso da palavra escrita que não pode nem explicar a si mesma nem responder a questões Em terceiro lugar ela não pode escolher o destinatário cai em mãos erradas e se espalha por toda parte malbaratada e abusada é incapaz de defenderse dela o melhor que se pode dizer é que é um passatempo inofensivo um armazém de mantimentos para quando a era do esquecimento chegar ou um abandono à recreação como as pessoas regalamse com bebida festas e coisas do gênero100 Mas na Sétima carta Platão vai além não menciona suas agrapha dogmata das quais tomamos conhecimento através de um comentário de Aristóteles101 mas também negaas implicitamente quando explicitamente afirma que não há jeito de colocar tais coisas em palavras assim como há outras coisas que podem ser aprendidas Isso é muito diferente do que se lê nos diálogos platônicos embora não seja motivo para considerar a Sétima carta espúria Lêse no Político portanto algo sobre semelhanças entre o visível e o invisível Semelhanças que os sentidos podem apreender estão disponíveis na natureza para aqueles seres reais de modo que quando alguém reivindica uma explicação sobre esses seres não há qualquer problema é só indicar as semelhanças sensíveis e dispensar qualquer indicação com palavras Mas para a maior e mais importante classe de seres não há semelhanças correspondentes visíveis Nesses casos nada de visível pode ser apontado que satisfaça o espírito interrogador Portanto devemos nos treinar para dar uma explicação em palavras para cada ser Porque os seres que não possuem um corpo visível os seres que têm o maior valor e a importância principal são demonstráveis somente pela fala logos e não devem ser apreendidos por qualquer outro meio102 No Fedrotm Platão contrasta a palavra escrita com a palavra falada usada na arte de discorrer sobre as coisas techne dialektike a fala viva o original do qual o discurso escrito pode bem ser chamado de uma espécie de imagem A arte do discurso vivo é exaltada porque ele sabe como selecionar seus ouvintes ele não é estéril akarpoi mas contém um sêmen a partir do qual diferentes logoi palavras e argumentos crescem em diferentes ouvintes de modo que a semente se tome imortal Mas se quando pensamos levamos a cabo esse diálogo interior é como se estivéssemos escrevendo palavras em nossas almas em momentos como esses nossa alma é como um livro mas um livro que já não contém mais palavras104 Depois do escritor um segundo artesão intervém quando pensamos tratase de um pintor que pinta em nossa alma aquelas imagens correspondentes às palavras escritas Isso acontece quando afastamos essas opiniões e afirmações faladas da visão ou de qualquer outro tipo de percepção de modo que então passamos de alguma maneira a ver as imagens daquilo sobre o que inicialmente opinamos e falamos105 Na Sétima carta Platão nos diz brevemente como essa dupla transformação pode chegar a acontecer como é que se pode falar sobre nossa percepção sensível e como esse falar sobre dialegesthai é em seguida transformado em uma imagem visível somente para a alma Temos nomes para o que vemos como por exemplo o nome círculo para algo redondo esse nome pode ser explicado em discurso logos em sentenças compostas de nomes e verbos e dizemos que o círculo é uma coisa cujas distâncias entre o centro e as extremidades são sempre iguais Tais sentenças podem levar à confecção de círculos de imagens eidolon que podem ser desenhadas e apagadas viradas e destruídas processos que obviamente não afetam o círculo em si que é diferente de todos esses círculos O conhecimento e o espírito nous apreendem o círculo essencial isto é aquilo que todos os círculos têm em comum algo que não reside nem nos sons da fala nem nas formas dos corpos mas na alma e tal círculo é claramente diferente do círculo real percebido primeiramente na natureza pelos olhos do corpo e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal Esse círculo na alma é percebido pelo espírito nous que está mais próximo dele por afinidade e semelhança E essa intuição interna pode em si ser chamada de verdade106 À verdade do tipo evidenciai construída conforme o princípio das coisas percebidas pelos nossos olhos do corpo podese chegar através da orientação diagoge de palavras na dialegesthai o fio discursivo de pensamento que pode ser silencioso ou falado entre mestre e discípulo movendose para cima e para baixo interrogando sobre o que é verdadeiro e o que é falso Mas o resultado que se supõe ser uma intuição e não uma conclusão virá de súbito depois de uma longa série de perguntas e respostas quando um instante de insight phronesis geral fulgura e o espírito é inundado de luz107 Essa própria verdade está além das palavras os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas e as retas de redondas08 e as palavras o discurso argumentado da fala que busca explicar são débeis não oferecem mais do que uma pequena orientação para reavivar a luz na alma como a de uma centelha tremulante a qual uma vez gerada tomase autosustentável109 Citei essas poucas páginas da Sétima carta com algum vagar porque oferecem como em nenhum outro lugar uma visão sobre a incompatibilidade entre a intuição a metáforaguia para a verdade filosófica e o discurso o meio pelo qual o pensamento se manifesta a primeira sempre nos apresenta um múltiplo cotemporâneo enquanto o último necessariamente revelase em uma sequência de palavras e sentenças A idéia de que o discurso era um simples instrumento para a intuição foi uma axioma até mesmo para Platão e assim permaneceu ao longo da história da filosofia Desse modo Kant ainda nos diz worauf alies Denken ais Mittel abzweckt íst die Anschauung todo pensamento é um meio de alcançar a intuição110 E Heidegger A dialegesthai traz em si a tendência em direção a uma nova noein uma visão Faltalhe o meio adequado da própria theorem Isso é o sentido básico da dialética platônica que tende para uma visão para um desvelamento que prepara a intuição original através dos discursos O logos permanece atado à visão se a fala se afasta da evidência dada na intuição ela degenera em um palavrório que impede a visão Leigen se enraiza em visão horani A interpretação de Heidegger é confirmada por uma passagem no Filebo2 de Platão em que o diálogo interior de mim comigo mesmo é mais uma vez mencionado sendo que agora em seu nível mais elementar um homem vê um objeto à distância e já que por acaso está sozinho pergunta a si mesmot O que é isso que aparece lá Responde à sua própria pergunta É um homem Se ele estivesse com alguém teria de fato falado aquilo que disse a si mesmo teria se dirigido a seu companheiro teria pronunciado de forma audível os mesmos pensamentos enquanto que sozinho continua a pensar o mesmo consigo próprio A verdade aqui é a evidência vista e falar bem como pensar será autêntico se acompanhado pela evidência vista que se aproprie da verdade traduzindoa em palavras no momento em que essa fala se afasta da evidência vista como por exemplo quando se repetem as opiniões ou pensamentos de outras pessoas ela ganha a mesma inautenticidade que era para Platão característica da imagem quando comparada ao original Dentre as peculiaridades mais destacadas de nossos sentidos está o fato de que não podem ser traduzidos entre si nenhum som pode ser visto nenhuma imagem pode ser ouvida e assim por diante embora estejam interligados pelo senso comum que por essa simples razão é o maior de todos os sentidos Sobre esse tema citei São Tomás de Aquino a única faculdade que se estende a todos os objetos dos cinco sentidos3 A linguagem correspondendo ou acompanhando o senso comum dá a um objeto seu nome comum esse aspecto comum não só é fator decisivo para a comunicação intersubjetiva o mesmo objeto sendo percebido por diferentes pessoas e comum a elas como também serve para identificar um dado que aparece de forma totalmente diferente para cada um dos cinco sentidos áspero ou macio ao tato amargo ou doce ao paladar brilhante ou escuro à visão soando em tons diferentes para a audição Nenhuma dessas sensações pode ser adequadamente descrita em palavras Nossos sentidos cognitivos visão e audição têm muito pouco mais em comum com as palavras do que os sentidos inferiores do olfato do paladar e do tato O máximo que podemos dizer de alguma coisa é que cheira como uma rosa que o gosto é como o de sopa de ervilha que a textura é como a do veludo Uma rosa é uma rosa é uma rosa Obviamente tudo isso é apenas mais uma maneira de dizer que a verdade na tradição metafísica entendida nos termos da metáfora da visão é inefável por definição Sabemos pela tradição hebraica o que acontece com a verdade quando a metáforaguia não é a visão mas a audição em muitos aspectos é mais parecida com o pensamento do que a visão pela habilidade que tem de acompanhar seqüências O Deus hebraico pode ser ouvido mas não visto e a verdade tornase portanto invisível Não farás para ti escultura ou imagem semelhante a nada do que há nos céus ou abaixo da terra A invisibilidade da verdade é na religião hebraica tão axiomática quanto sua inefabilidade na filosofia grega da qual toda filosofia posterior derivou suas hipóteses axiomáticas E enquanto a verdade entendida em termos de audição exige obediência a verdade em termos de visão apóiase no mesmo tipo de autoevidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante de nossos olhos A metafísica a ciência assombrosa que contempla aquilo que é enquanto é episteme he theorei to on he on poderia descobrir uma verdade que constrangesse os homens pela força da necessidade hyp autes tes aletheias anagkazomenoi115 porque ela apóia se na mesma impermeabilidade à contradição que conhecemos tão bem pelas experiências visuais Porque nenhum discurso seja ele dialético no sentido socráticoplatônico seja lógico que use regras estabelecidas para tirar conclusões a partir de premissas aceitas seja retóricopersuasivo jamais pode equipararse à simples inquestionada e inquestionável certeza da evidência visível O que é aquilo que lá aparece É um homem Essa é uma perfeita adequado rei et intellectus6 o acordo entre o conhecimento e seu objeto que até para Kant era ainda a definitiva definição de verdade Kant entretanto estava ciente de que para tal verdade não se pode exigir qualquer critério geral Seria autocontraditório117 A verdade como autoevidência não demanda um critério ela é o critério o árbitro final de tudo o que possa vir Assim Heidegger ao discutir o conceito tradicional de verdade em Sein und Zeit ilustraa da seguinte maneira Suponhamos que alguém de costas para a parede faz a afirmação correta de que o quadro pendurado na parede está torto A afirmação é confirmada quando quem que a faz virase e percebe o quadro torto na parede118 Talvez todas as dificuldades que a ciência assombrosa a metafísica levantou desde o seu surgimento pudessem ser resumidas na tensão natural entre theoria e logos entre ver e raciocinar com palavras seja na forma de dialética dialegesthai ou ao contrário na de silogismo syl logizesthaiy isto é ao separar as coisas especialmente as opiniões por meio de palavras ou ao reunilas em um discurso que depende para seu conteúdo de verdade de uma premissa inicial percebida pela intuição pelo nous que não está sujeito ao erro por não ser meta logou por não ser uma seqüência de palavras119 Se a filosofia é a mãe de todas as ciências ela é em si a ciência dos começos e dos princípios da ciência dos archai e esses archai que se tomam então o tópico da metafísica aristotélica não podem mais ser derivados são dados ao espírito em intuição autoevidente O que recomenda a visão como metáforaguia na filosofiae juntamente com a visão a intuição como ideal de verdade é não somente a nobreza desse nosso sentido mais cognitivo como também a própria noção inicial de que a busca filosófica pelo significado era idêntica à busca do cientista pelo conhecimento Vale a pena recolocar aqui a estranha volta que Aristóteles dá no primeiro capítulo da Metafísica à proposição de Platão pela qual thaumazeüi o espanto é o começo de toda filosofia Mas a identificação da verdade com o significado foi feita é claro em momento ainda anterior Porque o conhecimento vem da busca daquilo que nos acostumamos a chamar de verdade e a forma mais alta mais definitiva da verdade cognitiva é a intuição Todo conhecimento começa na investigação das aparências tais como nos são dadas aos sentidos E se o cientista quiser então prosseguir e descobrir as causas dos efeitos visíveis seu objetivo final será fazer aparecer o que possa estar escondido por trás das simples superfícies Isso é verdade até mesmo para os mais complicados instrumentos mecânicos projetados para capturar o que se esconde à inspeção a olho nu Em última análise a confirmação da teoria de qualquer cientista surge pela evidência dos sentidos exatamente como no modelo simplista que tomei de Heidegger A tensão a que aludi entre a visão e a fala não entra aqui nesse nível como no exemplo citado a fala traduz a visão de maneira bastante adequada seria diferente se o conteúdo do quadro e não somente sua posição na parede tivesse que ser expresso em palavras O simples fato de que os símbolos matemáticos possam ser substituídos por palavras reais e que possam mesmo ser o mais expressivo dos fenômenos subjacentes forçados a aparecer pelos instrumentos contra sua própria inclinação demonstra a eficácia superior das metáforas da visão para tomar manifesta qualquer coisa que dispense a fala como condutora O pensamento entretanto em contraste com as atividades cognitivas que o podem utilizar como um de seus instrumentos precisa do discurso não só para ter realidade sonora e para tornarse manifesto precisa dele até mesmo para poder ser ativado E uma vez que o discurso é realizado em sequências de sentenças o final do pensamento não pode jamais ser uma intuição nem pode ser confirmado por algum pedaço de autoevidência observado através da contemplação muda Se o pensamento guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função espera verdade de sua atividade tal verdade não é só inefável por definição Como as crianças que tentam agarrar a fumaça com as mãos os filósofos vêem muitas vezes o objeto que estava ao seu alcance escapulir diante deles Bergson o último filósofo a acreditar firmemente em intuição descreveu muito precisamente o que de fato aconteceu com os filósofos daquela escola120 E o motivo do fracasso é simplesmente que nada expresso em palavras pode jamais se ater à imobilidade de um objeto de simples contemplação Comparado com um oojeto de contemplação o significado sobre o qual se pode falar é fugidio se o filósofo quer vêlo e capturálo ele foge121 Desde Bergson o uso da metáfora da visão na filosofia vem não sem surpresa diminuindo à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala de nous para logos Com essa mudança o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto a adequatio rei et intellectus entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto à simples forma do pensamento cuja regra básica é o axioma da nãocontradição da consistência interna isto é passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples pedra de toque negativa da verdade Além da esfera do conhecimento analítico ela não tem como um critério suficiente de verdade qualquer autoridade ou campo de aplicação122 Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais por mais tênues e duvidosas que sejam para Heidegger e para Walter Benjamin a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo mas por assim dizer encolheu em Benjamin a verdade passa despercebida huscht vorübery em Heidegger o momento de iluminação é concebido como relâmpago Blitz e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente das Gelaüt der Stille o som ressonante do silêncio Em matéria de tradição esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação nãodiscursiva Pois embora a metáfora seja agora no fim e no ápice do processo de pensamento extraída do sentido da audição ela não corresponde em nada à escuta de uma seqüência articulada de sons como uma melodia mas novamente a um estado mental imóvel de pura receptividade E uma vez que o pensamento um diálogo silencioso de mim comigo mesmo é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma Catão as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão Bergson ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição falando sobre o ideal de verdade referese ao caráter essencialmente ativo eu quase diria violento da intuição metafísica sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade muito menos uma atividade violenta123 E Aristóteles fala de energeia filosófica como a atividade perfeita e desembaraçada que justamente por essa razão abriga em si o mais doce de todos os prazeres Alla men he ge teleia energeia kai akolytos en heaute echei to chairein hoste an eie he theoretike energeia pason hediste24 Em outras palavras a principal dificuldade parece aqui ser que para o próprio pensamento cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceituai depende inteiramente do dom da metáfora que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível o mundo das aparências e o ego pensante não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos portanto concebidas como atividades essas metáforas têm uma finalidade exterior elas não são energeia um fim em si mesmas mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo O pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim Em outras palavras o prazer de que fala Aristóteles apesar de manifesto para o ego pensante é inefável por definição A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo Sem o sopro de vida o corpo humano é um cadáver sem pensamento o espírito humano está morto De fato é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica A atividade do pensamento energeia que tem seu fim em si mesma é vida125 A lei a ela inerente que somente um deus pode tolerar para sempre e o homem só vez por outra nos momentos em que ele se diviniza é um movimento incessante que é um movimento circular126 o único movimento ou seja o movimento que não tem fim ou que nunca resulta em produto final Surpreende que essa estranhíssima noção do autêntico processo de pensamento isto é a noesis noeseos como um girar em círculos a mais gloriosa justificativa para o argumento circular na filosofiajamais tenha preocupado nem aos filósofos nem aos intérpretes de Aristóteles em parte talvez por causa das freqüentes más traduções de nous e theoria por conhecimento ou seja o que sempre alcança um fim e o que sempre produz um resultado final127 Se o pensar fosse um empreendimento cognitivo ele teria que seguir um movimento retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição O movimento circular aristotélico tomado em conjunto com a metáfora da vida sugere uma busca do significado que para o homem enquanto ser pensante acompanha a vida e termina somente com a morte O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital o qual embora indo do nascimento à morte também gira em círculos enquanto o homem vive A simples experiência do ego pensante mostrouse impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar de que existe algo como a cognição especulativa de Hegel128 Vemos Hegel dizer sem qualquer referência a Aristóteles A filosofia forma um círculo ela é uma seqüência que não está solta no ar ela não é algo que comece a partir de absolutamente nada pelo contrário ela retoma a si mesma em círculos grifo nosso129 Encontramos a mesma noção no final de O que é a Metafísica de Heidegger onde ele define a questão básica da metafísica como Por que existe algo e não o nada de certo modo a primeira questão do pensar mas ao mesmo tempo o pensamento no qual ela sempre volta a mergulhar130 Ainda assim tais metáforas embora correspondam ao modo especulativo e nãocognitivo de pensar e permaneçam leais às experiências do ego pensante uma vez que não se relacionam com qualquer capacidade cognitiva permanecem singularmente vazias e o próprio Aristóteles não as utilizou em lugar algum a não ser quando afirma que estar vivo é energein isto é estar ativo para o seu próprio bem131 Além disso a metáfora obviamente resiste a responder à questão inevitável Por que pensamos uma vez que não existe resposta para a questão Por que vivemos Nas Investigações filosóficas de Wittgenstein escritas depois de ter ele se convencido da insustentabilidade de sua tentativa anterior no Tractatus de compreender a linguagem e portanto o pensamento como uma figuração da realidade Uma proposição é uma figuração da realidade Uma proposição é um modelo da realidade tal como a concebemos132 há um interessante jogo de pensamento que pode ajudar a ilustrar essa dificuldade Ele pergunta Para que o homem pensa Será que pensa porque descobriu que pensar funciona Por que pensa que é vantajoso pensar Isso seria perguntar Será que ele cria seus filhos porque descobriu que isso funciona Ainda assim temos que admitir que às vezes pensamos porque descobrimos que funciona indicando com o grifo que esse é o caso somente às vezes Portanto Como podemos descobrir por que o homem pensa Ao que responde É freqüente tomarmonos conscientes àos fatos importantes somente quando suprimimos a questão Por queT e então no curso de nossas investigações tais fatos nos levam a uma resposta133 E em um esforço deliberado para suprimir a questão Por que pensamos que eu tratarei da questão O que nos faz pensar Capítulo 3 O que nos faz pensar 14 Os pressupostos filosóficos da filosofia grega Nossa questão O que nos faz pensar não procura nem causas nem objetivos Sem questionar a necessidade humana de pensar ela parte da suposição de que a atividade de pensar está incluída entre as energeiai aqueles atos que como o de tocar flauta têm o seu fim em si mesmos e não deixam nenhum produto externo e tangível no mundo que habitamos Não podemos datar o momento em que essa necessidade começou a ser sentida mas simplesmente a linguagem e tudo aquilo que conhecemos sobre épocas préhistóricas e sobre as mitologias cujos autores não podemos identificar nos dão certo direito de supor que essa necessidade é contemporânea ao aparecimento do homem sobre a terra Podemos sem dúvida datar o começo da metafísica e da filosofia e podemos identificar as respostas dadas à nossa pergunta em diferentes períodos de nossa história Parte da resposta grega pode ser atribuída à convicção que todos os pensadores gregos tinham de que a filosofia toma os mortais capazes de habitar a vizinhança das coisas imortais e assim de adquirir ou alimentar a imortalidade em sua mais alta medida dentro dos limites da natureza humana1 Durante o curto espaço de tempo em que os mortais podem suportála a atividade de filosofar transformaos em criaturas semelhantes a deuses deuses mortais como diz Cícero E seguindo essa direção que a etimologia antiga várias vezes derivou a palavrachave theorem e até mesmo theatron de theos A dificuldade da resposta grega é sua inconsistência com relação à própria palavra filosofia o amor ou desejo da sabedoria que não pode propriamente ser atribuído aos deuses nas palavras de Platão nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio pois ele já o é3 Gostaria de comentar primeiro a estranha noção de athanatizein imortalizar cuja influência sobre o tema legítimo da nossa metafísica tradicional é quase impossível superestimar Em um capítulo anterior como vocês lembrarão interpretei a parábola pitagórica em termos do juízo O juízo como uma faculdade distinta foi descoberto já perto do fim da Idade Moderna quando Kant dando continuidade ao interesse do século XVIII pelo fenômeno do gosto e de seu papel tanto na estética como nas relações sociais escreveu a Crítica do juízo Historicamente falando minha interpretação foi bastante inadequada A concepção pitagórica do papel do espectador teve significado diferente e bem mais abrangente para o surgimento da filosofia no Ocidente A noção grega do divino está intimamente relacionada com o ponto principal da parábola a supremacia do theorem do contemplar sobre o fazer Segundo a religião homérica os deuses não eram transcendentes seu lar não era um além infinito mas o céu bronzeo sua fortaleza para sempre segura4 Homens e deuses eram semelhantes ambos do mesmo gênero hen andron hen theon genos ambos devendo a vida à mesma mãe Os deuses gregos como nos dias de Heródoto tinham a mesma physis que os homens5 Mas embora fossem anthropophysis do mesmo gênero que os homens os deuses tinham evidentemente certos privilégios sobre os mortais eles eram imortais e levavam uma vida fácil Livres das necessidades da vida mortal podiam se dedicar à observação olhando do alto do Olimpo as coisas humanas que para eles não eram mais do que um espetáculo a serviço de sua distração O sentimento dos deuses olímpicos em relação ao caráter de espetáculo do mundo uma noção tão diferente da que tinham outros povos a respeito das ocupações divinas tais como criar e promulgar leis fundar e governar comunidades era uma inclinação partilhada com seus irmãos menos afortunados da terra A paixão de ver como já observamos precede na língua grega até mesmo gramaticalmente a sede de conhecimento Que ela tenha caracterizado a atitude grega básica diante do mundo pareceme algo óbvio demais para exigir documentação O que quer que aparecesse estava lá antes de tudo para ser olhado e admirado a natureza e a ordem harmoniosa do cosmos as coisas que vieram a ser por si mesmas e as que as mãos humanas trouxeram ao ser agein eis ten ousian é a definição de Platão da fabricação to poiein bem como qualquer excelência humana arete apresentada no âmbito das coisas humanas6 O que induziu os homens à mera contemplação foi o kalon a simples beleza das aparências de tal forma que a mais alta idéia do bem encontravase no que mais brilhava tou ontos phanotaton1 A virtude humana o kalon kagathon não era avaliada nem através da intenção ou da qualidade inata do ator nem pela conseqüência de seus atos mas apenas pela execução como ele aparecería enquanto estava fazendo A virtude era o que nós chamaríamos de virtuosismo Assim como nas artes os feitos humanos tinham que brilhar por seus méritos intrínsecos para usar uma expressão de Maquiavel8 Tudo o que existia deveria ser em primeiro lugar um espetáculo digno dos deuses do qual os homens evidentemente como parentes pobres dos habitantes do Olimpo desejavam aproveitar uma parte Assim Aristóteles atribuiu aos gregos a faculdade do logos da fala racional como traço distintivo frente aos bárbaros Mas atribuiu o desejo de ver a todos os homens Desse modo os habitantes da caverna de Platão contentaramse em olhar para os eidola que estavam diante deles na tela sem proferir uma única palavra sem poder nem mesmo dirigirse uns aos outros e comunicarse já que estavam em seus lugares acorrentados pelas pernas e pelo pescoço A multidão compartilha da divina paixão de ver Era algo de divino o que estava implicado na posição do espectador pitagórico divorciado de qualquer coisa humana Quanto menos tempo um homem precisasse para cuidar de seu corpo quanto mais tempo dedicasse à ocupação divina mais ele se aproximaria do modo de vida dos deuses Além disso já que deuses e homens eram do mesmo gênero mesmo a imortalidade divina não parecería estar totalmente fora do alcance dos mortais Embora seja constante fonte de inveja o grande nome a recompensa preciosa por grandes feitos e grandes palavras Homero conferia uma imortalidade potencial um substituto inferior é bem verdade Por outro lado cabia ao espectador conceder essa recompensa ao ator Pois os poetas ocupavamse com o que aparece e desaparece da visibilidade do mundo no curso do tempo antes que os filósofos se ocupassem com o que permanecerá para sempre invisível e com o que não é apenas imortal mas de fato eterno ageneton com o que não apenas não tem fim mas tampouco começo isto é nascimento os deuses gregos como sabemos a partir da Teogonia de Hesíodo eram imortais mas não incriados O que estava em jogo portanto na idéia de uma posição externa ao âmbito dos assuntos humanos antes mesmo do surgimento da filosofia pode ser melhor esclarecido quando examinamos brevemente a noção que os gregos tinham da função poética e da posição do bardo Existe o relato de um poema perdido de Píndaro Ele descrevia o banquete de casamento de Zeus em que esse deus perguntou aos deuses reunidos se faltava algo à sua alegre bemaventurança Ao ouvir isso os deuses lhe imploraram que criasse alguns novos seres divinos que soubessem embelezar suas grandes obras com palavras e música Os novos seres de qualidades divinas a que Píndaro se referia eram os poetas e os bardos que ajudavam os homens a atingir a imortalidade9 Isto porque a história das coisas feitas sobreviveu aos atos e o que é dito tomase imortal se foi bem dito10Os bardos também à maneira de Homero endireitavam a história com palavras mágicas para encantar os homens daí por diante11 Eles não noticiavam simplesmente eles também endireitavam a história orthosas Ajax matouse por vergonha mas Homero mais sábio honrouo entre todos os homens Fazse aqui uma distinção entre uma coisa feita e uma coisa pensada e esta coisapensamento é acessível apenas ao espectador ao nãoagente Essa concepção do bardo vem diretamente de Homero Os versos cruciais são aqueles que contam como Ulisses chega à corte dos Feácios e por ordem do rei é entretido pelo bardo que canta a história de uma passagem da própria vida de Ulisses sua luta com Aquiles Ao ouvila Ulisses esconde sua face e chora apesar de nunca ter chorado antes nem sequer quando os fatos que ele agora ouve ocorreram Só quando ouve a história é que se toma totalmente consciente do seu significado E o próprio Homero diz o bardo canta para deuses e homens o que a musa Mnemosyne que cuida da lembrança pôs em seu espírito A musa deulhe coisas boas e más ela privouo do sentido da visão e deulhe o dom do canto harmonioso Píndaro no poema perdido sobre Zeus deve ter esclarecido tanto o aspecto subjetivo como o objetivo dessas primeiras experiências de pensamento se o homem e o mundo não receberem louvores sua beleza não poderá ser reconhecida Já que os homens aparecem em um mundo de aparências eles precisam de espectadores os que comparecem como espectadores ao festival da vida são tomados por pensamentos de admiração que são então postos em palavras Sem espectadores o mundo seria imperfeito O participante absorvido em coisas específicas e pressionado por afazeres urgentes não pode ver como todas as coisas particulares do mundo e como todos os feitos particulares ajustamse uns aos outros e produzem uma harmonia que não é ela mesma dada à percepção sensorial Esse invisível no visível permanecería para sempre oculto se não houvesse um espectador para cuidar dele admirálo endireitar as histórias e pôlas em palavras Em termos conceituais o significado daquilo que realmente acontece e aparece enquanto está acontecendo só é revelado quando desaparece A lembrança por meio da qual tomamos presente para o nosso espírito o que de fato está ausente e pertence ao passado revela o significado na forma de uma história O homem que faz a revelação não está envolvido com as aparências ele é cego protegido contra o visível para poder ver o invisível E o que ele vê com os olhos cegos e põe em palavras é a história não é nem o próprio ato nem o agente embora a fama do agente venha a atingir grandes alturas Daí surge a pergunta tipicamente grega quem se toma imortal o agente ou o narrador Ou quem está na dependência de quem O agente depende do poeta já que este toma aquele famoso ou o poeta depende do agente pois ele precisa realizar coisas que mereçam ser lembradas Basta lermos a oração fúnebre de Péricles no livro de Tucídides para perceber que a questão permanece sem solução sua resposta depende de quem a responde o homem de ação ou o espectador Péricles estadista e amigo dos filósofos considerava que a grandeza de Atenas a cidade que se tomara uma escola para Hélade assim como Homero se tomara o professor de todos os gregos deviase ao fato de não precisar de nenhum Homero ou de qualquer outro com o seu ofício para tomarse imortal Os atenienses teriam deixado atrás de si pelo simples poder de sua audácia monumentos imorredouros em terras e mares12 O traço distintivo da filosofia grega é que ela rompeu inteiramente com a avaliação de Péricles sobre o modo de vida mais alto e mais divino para os mortais Para citar apenas um dos contemporâneos de Péricles que era também seu amigo vejamos a resposta de Anaxágoras a uma pergunta que aliás parece ter preocupado o povo grego e não apenas os filósofos e os poetas por que ter nascido é melhor do que não ter nascido Anaxágoras responde Para olhar o céu e as coisas que lá estão as estrelas a Lua e o Sol como se nada além disso valesse a pena E Aristóteles concorda com ele Devemos filosofar ou deixar a vida e ir embora daqui13 O que havia de comum entre Péricles e os filósofos era a noção grega geral de que todos os mortais deviam esforçarse para atingir a imortalidade e isso era possível por causa da afinidade entre deuses e homens Comparados com as outras criaturas vivas o homem é um deus14 Ele é como um deus mortal quasi mortalem deum para citar novamente a frase de Cícero cuja tarefa principal portanto consiste em uma atividade que possa remediar sua mortalidade e assim aproximálo ainda mais dos deuses seus parentes mais próximos15 A alternativa a isto é submergir no nível da vida animal Os melhores escolhem uma coisa antes de tudo a fama imortal entre os mortais mas a multidão fartase como o gado16 Aqui o mais importante é que na Grécia préfilosófica tornouse axioma o fato de que o único incentivo digno do homem como homem era a busca da imortalidade o grande feito é belo e louvável não porque sirva a um país ou a um povo mas exclusivamente porque merecerá menção eterna no rol imortal da fama17 Como Diotima faz notar a Sócrates Você acha que Alçaste teria morrido para salvar Admetro ou Aquiles para vingar Pátroclo se eles não acreditassem que sua excelência arete viveria para sempre na memória dos homens como de fato ela vive na nossalí E os vários tipos de amor de acordo com o Banquete de Platão estão em última instância unidos pelo esforço que todas as coisas mortais realizam em direção à imortalidade Não sei quem foi o primeiro grego a tomarse consciente da falha decisiva dessa louvada e invejada imortalidade divina Os deuses eram imortais a thanatoi aqueles que eram para sempre aien eontes mas não eram eternos Como a Teogonia nos informa com alguma riqueza de detalhes todos eles tiveram um nascimento sua duração vital tinha um começo temporal São os filósofos que introduzem uma arche absoluta ou começo ele mesmo sem começo uma fonte nãogeradade geração permanente O iniciador aqui é provavelmente Anaximandro19 Podemos ver o resultado mais claramente no entanto no poema de Parmênides20 O seu ser épara sempre em sentido forte ele é tanto nãogerado aganeton quanto imperecível anolethrori Não limitada nem pelo nascimento nem pela morte a duração do que é substitui e transcende a sobrevivência infinita que caracterizava os deuses Olímpicos21 Em outras palavras para os filósofos o Ser sem nascimento e sem morte substitui a mera imortalidade dos deuses olímpicos O ser tomouse a verdadeira divindade da filosofia porque nas famosas palavras de Heráclito ele não foi feito por nenhum dos deuses ou homens mas foi e sempre será um fogo sempre vivo com medidas permanentes reavivandose e apagandose22 A imortalidade dos deuses não era confiável o que tinha vindo a ser poderia muito bem deixar de ser os deuses préolímpicos não tinham morrido e desaparecido Essa falha a meu ver muito mais do que a sua conduta freqüentemente imoral é que tomou os deuses olímpicos vulneráveis aos ferozes ataques de Platão A religião homérica nunca foi um credo que pudesse ser trocado por um outro credo os deuses olímpicos foram derrubados pela filosofia23 A nova e eterna divindade que Heráclito no fragmento acima citado ainda chama de kosmos não o mundo ou o universo mas sua ordem e harmonia finalmente recebeu de Parmênides o nome de Ser Como sugere Charles Kahn isto parece deverse às conotações de durabilidade que a palavra teve desde o início Sem dúvida é verdade embora não seja nem um pouco óbvio que o aspecto de durabilidade do verbo inseparável da raiz tinge qualquer uso que dele se faça inclusive o uso filosófico24 Se o Ser substituiu os deuses olímpicos a filosofia substituiu a religião Filosofar tomouse o único caminho possível da piedade e a característica mais recente desse novo deus é que ele era Um Tomase evidente que este Um era um deus e ainda inquestionavelmente diferente do que nós entendemos por ser quando vemos que Aristóteles chamou a sua Primeira Filosofia de Teologia que ele não entendia como uma teoria sobre os deuses mas o que passou a chamarse muito mais tarde no século XVIII Ontologia A grande vantagem da nova disciplina é que o homem não precisava mais confiar nos caminhos incertos da posteridade para fazer jus à sua cota de imortalidade Ele poderia realizála em vida sem recorrer à ajuda de seus semelhantes ou dos poetas que teriam podido tomar seu nome imortal ao concederlhe fama A via para a nova imortalidade era ocuparse totalmente e estabelecerse próximo das coisas eternas e a nova faculdade que tornava isto possível era chamadanows ou espírito O termo foi tomado de empréstimo a Homero onde nous abrange todas as atividades espirituais além de designar especificamente a inteligência de uma pessoa E o nous que corresponde ao Ser e quando Parmênides diz to gar auto noein estin te kai einai25 ser e pensar noein a atividade do nous são a mesma coisa ele já está dizendo implicitamente o que Platão e Aristóteles depois dele disseram explicitamente existe algo no homem que corresponde exatamente ao divino porque o capacita para viver por assim dizer na vizinhança do divino E esse caráter divino que faz com que Pensamento e Ser sejam a mesma coisa Usando o nous e retirandose espiritualmente de todas as coisas perecíveis o homem assimilase ao divino E essa assimilação é tomada em sentido literal Pois do mesmo modo que o Ser é um deus de acordo com Aristóteles que cita Ermótimos ou Anaxágoras é o deus em nós e toda vida mortal possui uma parte de algum deus26 O nous como concordam todos os homens sábios diz Platão é rei dos céus e da terra27 está portanto acima do universo inteiro do mesmo modo que o Ser ocupa uma posição mais alta do que todo o resto O filósofo portanto que ousou viajar além dos umbrais do Dia e da Noite Parmênides além do mundo dos mortais será chamado o amigo de deus e se é dado ao homem o privilégio de alcançar a imortalidade esse é um privilégio que lhe foi concedido28 Resumindo engajarse no que Aristóteles chamou theoretike energeia que é a mesma atividade da divindade he tou theou energeia significa imortalizarse athanatizeiri engajarse em uma atividade que em si mesma nos toma imortais na medida do possível e fazer o máximo para viver de acordo com o que em nós é mais elevado29 Para nós é importante notar que a parte imortal e divina dentro do homem só existe se for realizada e concentrada sobre o divino que permanece do lado de fora Em outras palavras o objeto dos nossos pensamentos concede imortalidade à própria atividade do pensamento O objeto é invariavelmente o eterno o que foi é e será e que portanto nem pode ser diferente do que é e nem pode não ser Esse objeto é primariamente as revoluções do universo que podemos acompanhar espiritualmente provando assim que não somos planta de raízes terrenas porém celestes criaturas que têm sua afinidade original não com a terra mas com o céu30 Por trás dessa convicção podemos facilmente detectar o mais antigo e originário espanto filosófico É o espanto que impele o cientista a dissipar a ignorância e que fez Einstein dizer O eterno mistério do mundo isto é do uni verso ésuacompreensibilidade Portanto todo o desenvolvimento subsequente de teorias que correspondam à compreensibilidade do universo é numa certa medida uma fuga contínua do assombro31 Estaríamos tentados a dizer que o Deus dos cientistas criou o homem à sua própria imagem e o pôs no mundo apenas com um Mandamento agora trate de descobrir por si mesmo como tudo isto foi feito e como funciona Em todo caso para os gregos a filosofia era a obtenção da imortalidade32 e como tal realizavase em dois estágios O primeiro era a atividade do nous que consistia na contemplação do eterno e era em si mesma aneu logou não discursiva em seguida vinha a tentativa de traduzir a visão em palavras Isso era chamado por Aristóteles aletheuein e significa não apenas dizer as coisas como elas realmente são sem esconder nada mas além disso aplicase exclusivamente às proposições sobre coisas que sempre e necessariamente são e que não podem ser de outro modo O homem como homem distinto de outras espécies animais é um composto de nous e logos sua essência é ordenada de acordo com o nous e o logos ho anthropos kai kata logon kai kata noun tetaktai autou he ousia33 Dos dois apenas o nous habilita o homem a tomar parte no etemo e no divino enquanto o logos que se destina a dizer o que é legein ta eonta Heródoto é a habilidade singular e especificamente humana que se aplica também ao mero pensamento mortal opiniões ou dogmata a habilidade que ocorre no âmbito dos assuntos humanos e do que meramente parece mas não é O logos ao contrário do nous não é divino e a tradução da visão do filósofo em palavras aletheuein no sentido estrito do filósofo criou dificuldades consideráveis O critério da fala filosófica é a homoiosis em oposição à doxa ou opinião fazer um similar ou assimilar em palavras o mais fielmente possível a visão fornecida pelo nous em si mesma sem palavras e que vê diretamente sem nenhum processo de raciocínio discursivo34 O critério para a faculdade da visão não é a verdade como sugere o verbo aletheuein derivado do termo homérico alethes verídico Em Homero esse verbo é usado para as verba dicendi no sentido de diga me sem esconder lanthanaí nada dentro de você ou seja não me engane como se a função comum da fala aqui implicada no alpha privativum fosse precisamente a de enganar A verdade permanece como critério da fala embora mude de caráter à medida que ela tem que se assimilar e seguir as indicações da visão do nous O critério para a visão é somente a qualidade de eternidade no objeto visto O espírito pode diretamente tomar parte nessa eternidade mas se um homem abandonase aos apetites e às ambições e só com eles ocupase ele não deixará de tomarse totalmente mortal pois só alimenta sua parte mortal Mas se ele empenhouse ardentemente na contemplação dos objetos eternos não poderá deixar de possuir a imortalidade no mais alto grau que a natureza humana admite35 Admitese em geral que a filosofia que a partir de Aristóteles é a área de investigações sobre as coisas que ultrapassavam os objetos físicos e os transcendiam ton meta ta physika sobre o que vem depois do físico tem uma origem grega E tendo origem grega ela coloca para si mesma o objetivo original grego a imortalidade que parecia até mesmo lingüisticamente o propósito mais natural para homens que se compreendiam corho mortais thnetoi ou brotoi Os mortais para quem segundo Aristóteles a morte era o maior dos males eram parentes de sangue pertenciam ao mesmo clã que os deuses imortais como se diz devendo a vida à mesma mãe A filosofia nada fez para mudar esse objeto natural apenas propôs um novo caminho para alcançálo Dito de uma maneira sucinta esse objetivo desapareceu com o declínio e a queda do povo grego e desapareceu totalmente da filosofia com o advento do cristianismo que anunciou a boa nova dizendo aos homens que eles não eram mortais Ao contrário das crenças pagãs o mundo estaria condenado ao fim mas os homens ressuscitariam encarnados após a morte O último traço da busca grega de eternidade pode ser visto no nunc stans o agora permanente da contemplação dos místicos medievais Essa fórmula é impressionante e veremos mais adiante que ela sem dúvida corresponde a uma experiência altamente característica do ego pensante Embora houvesse desaparecido o poderoso incentivo para o filosofar os temas da metafísica permanecem os mesmos e continuaram a prejulgar através dos séculos quais as coisas que valem a pena ser pensadas quais não O que para Platão era evidente que o conhecimento puro diz respeito às coisas que são sempre as mesmas sem mudança nem mistura ou pelo menos as que mais se aproximam delas36 permaneceu sendo com múltiplas variantes a pressuposição principal da filosofia até os últimos estágios da Era Moderna Por definição estavam excluídos todos os assuntos relativos aos negócios humanos porque contingentes podiam sempre ser diferentes do que realmente são Desse modo o próprio Hegel sob a influência da Revolução Francesa na qual segundo ele princípios eternos como liberdade e justiça foram realizados incluiu a história em seu campo de investigação Mas só pôde fazer isso supondo que não apenas as revoluções celestes além das simples coisas do pensamento números e coisas afins mas também o desenrolar dos negócios humanos na Terra seguiam as leis férreas da necessidade as leis da encarnação do Espírito Absoluto Daí por diante o objetivo do filosofar não era a imortalidade mas a necessidade acontemplaçãofilosóficanãotemoutro propósito senão o de eliminar o acidental37 Os assuntos metafísicos originalmente divinos o eterno e o necessário sobreviveram à necessidade de imortalizar por meio do esforço do espírito para ficar e permanecer na presença do divino esforço tomado inútil com a ascensão do Cristianismo quando a fé substituiu o pensamento no papel de condutor da imortalidade E permaneceu também de maneira diferente a avaliação da posição do espectador como o melhor e mais essencialmente filosófico modo de vida Em tempos précristãos essa noção divina estava presente nas escolas filosóficas da Antigüidade tardia quando a vida no mundo não era mais considerada uma graça e quando o envolvimento com os assuntos humanos não era mais visto como uma distração em relação a uma atividade mais divina mas como atitude perigosa e insípida em si mesma Manterse distante do envolvimento político significava ocupar uma posição externa ao turbilhão e à miséria dos assuntos mundanos e de suas mudanças inevitáveis Os espectadores romanos não estavam mais situados nas últimas filas de um teatro de onde eles como deuses poderíam olhar lá embaixo o jogo do mundo Agora o seu lugar era a costa ou o porto seguro de onde poderíam observar sem correr riscos a agitação selvagem e imprevisível do mar varrido pela tempestade Essas são as palavras de Lucrécio louvando as vantagens da posição de mero espectador que prazer quando sobre o mar aberto os ventos revolvem as águas contemplar da costa o penoso trabalho de outrem Não porque as aflições de alguém sejam em si mesmas uma fonte de prazer mas considerar que estás livre de tais males sem dúvida é um prazer38 Aqui evidentemente perdeuse completamente a relevância filosófica da posição de espectador uma perda imposta a todas as noções gregas que passavam para mãos romanas O que se perdeu não foi apenas o privilégio que o espectador tinha de julgar como encontramos em Kant nem o contraste fundamental entre pensar e fazer mas a percepção ainda mais fundamental de que tudo aquilo que aparece está lá para ser visto a percepção de que o conceito mesmo de aparência exige um espectador o que tomava a visão e a contemplação atividades de estatuto o mais elevado Coube a Voltaire tirar conclusões sobre a afirmação de Lucrécio Para ele o desejo de ver não é mais do que curiosidade vulgar ela atrai gente para assistir ao espetáculo de um navio prestes a ser afundado ela leva pessoas a subir em árvores a olhar para os massacres de uma batalha ou a comparecer a execuções públicas E segundo Voltaire essa paixão humana é partilhada com os macacos e filhotes de cachorro Em outras palavras se Lucrécio tem razão e a paixão que o homem tem de assistir aos espetáculos pode ser creditada unicamente ao seu senso de segurança então o simples prazer de ver pode ser atribuído apenas a um impulso imaturo e irracional que põe em perigo nossa própria existência O filósofo a quem Lucrécio se dirige não precisa ver o naufrágio para se prevenir de arriscar sua segurança na ferocidade do mar Infelizmente foi deste modo um tanto superficial que a distância nobre e vantajosa entre o espectador e seu objeto nos chegou pela tradição se aqui deixarmos de fora o alto posto ocupado pela contemplação na filosofia medieval com suas conotações totalmente distintas É curioso notar como Lucrécio é muitas vezes a referência implícita ou explícita Assim escreveu Herder sobre a Revolução Francesa Podemos olhar a Revolução Francesa a partir de um porto seguro como se estivéssemos olhando um naufrágio em mar aberto e estranho a menos que a má sorte nos lance nele contra nossa vontade E Goethe quando indagado sobre como tinha se saído na batalha de Jena respondeu com a mesma imagem Não posso me queixar Eu era como um homem que observa de uma sólida rocha o mar furioso lá embaixo e que embora impotente para prestar socorro não pode ser atingido pela arrebentação De acordo com um autor antigo este deve ser um sentimento reconfortante39 Quando chegamos à Idade Moderna quanto mais nos aproximamos da nossa época menos resta não nos manuais mas na experiência real dos pressupostos préfilosóficos que de fato foram as parteiras da ciência assombrosa McKeon chamada metafísica 15 A resposta de Platão e seus ecos Existe na filosofia grega contudo uma resposta à questão sobre O que nos faz pensar que nada tem a ver com esses pressupostos préfilosóficos tão importantes para a história da metafísica e que provavelmente já há muito tempo perderam a relevância Em minha opinião uma resposta que não perdeu nada de sua piausibilidade é a já citada afirmação de Platão a saber a de que a origem da filosofia é o espanto Pois esse espanto não tem nenhuma ligação com a busca de imortalidade Mesmo na famosa interpretação de Aristóteles do espanto como aporein o estar perplexo devido à própria ignorância que pode ser descartada pelo conhecimento não se encontra nenhuma menção ao athanatizein à atividade imortalizante que conhecemos da Ética a Nicômaco e que é sem dúvida inteiramente platônica40 A observação de Platão sobre o espanto ocorre antes abruptamente durante uma discussão sobre a relatividade das percepções sensoriais e ao que eu saiba não se repete em lugar algum de sua obra Ao falar de algo fora de ordem a própria passagem está um tanto fora de ordem como freqüentemente acontece em Platão onde sentenças mais eloqüentes podem facilmente ser isoladas e soam fora do contexto Isso ocorre especialmente quando depois de ter se envolvido em perplexidades lógicas e de outros tipos próprias de seu século e das quais poderiamos corretamente dizer que são datadas ele subitamente interrompe a discussão Ali Teeteto acabara de dizer que estava espantado no sentido comum de estar perplexo pelo que Sócrates o elogia Esta é a verdadeira marca do filósofo Mas Platão nunca volta à questão que estava sendo até então discutida A curta passagem é a seguinte Pois essa é a principal paixão pathos do filósofo espantarse thaumazeiri Não há outro começo ou princípio arche da filosofia senão esse Penso que não era mau genealogista aquele ou seja Hesíodo que fez de íris o arcoíris um mensageiro dos deuses filha de Thaumas aquele que espanta41 À primeira vista isso parece apenas dizer que a filosofia para a escola jônica tinha nascido da astronomia tinha surgido do maravilhamento com os milagres do céu Assim como o arcoíris ao ligar o céu com a terra traz sua mensagem aos homens o pensamento ou a filosofia correspondendo no espanto à filha daquele que espanta ligam a terra ao céu Em um exame mais detalhado essas poucas palavras indicam muito mais A palavra íris arcoíris aparece também no Crátilo42 em que Platão a deriva do verbo dizer eireiri porque ela era uma mensageira ao passo que a palavra para designar espanto thaumazein que ele ali despoja do sentido ordinário em que Teeteto a havia empregado quando traça sua genealogia aparece regularmente em Homero e é derivada de um dos muitos verbos gregos que designam ver no sentido de olhar para theasthai encontramos antes a mesma raiz nos theatai de Pitágoras os espectadores Em Homero esse olhar suscitado pelo espanto está em geral reservado para homens a quem um deus aparece Ele também é usado como adjetivo para homens admiráveis a saber homens dignos do espanto admirativo que costumamos reservar para os deuses para homens semelhantes a deuses Além disso os deuses que apareciam aos homens tinham essa peculiaridade apareciam sob um disfarce humano familiar e eram reconhecidos apenas por aqueles que se aproximavam O espanto como resposta não é algo portanto que os homens possam evocar por si mesmos O espanto é um pathos algo sofrido e não produzido Em Homero é o deus quem age enquanto os homens têm que suportar sua aparição e não dela fugir Em outras palavras o que deixa os homens espantados é algo familiar e ainda assim normalmente invisível que eles são forçados a admirar Aquele espanto que é o ponto de partida do pensamento não é nem a confusão nem a surpresa nem a perplexidade é um espanto de admiração Aquilo que nos maravilha é afirmado e confirmado pela admiração que irrompe na fala o dom de íris o arcoíris a mensageira das alturas A fala então toma a forma de louvor de glorificação não de uma aparência particularmente surpreendente nem da soma total das coisas no mundo mas da ordem harmoniosa por trás delas que em si mesma é invisível e da qual não obstante o mundo das aparências oferece um vislumbre Pois as aparências são um vislumbre do nãorevelado opsis gar ton adelon ta phainomena nas palavras de Anaxágoras43 A filosofia começa com a consciência dessa ordem harmônica invisível do kosmos que se manifesta em meio às visibilidades familiares como se estas se tivessem tomado transparentes O filósofo maravilhase com a harmonia nãovisível que segundo Heráclito é melhor do que a visível harmonie aphanes phaneres kreitton44 Outra palavra que desde cedo designou o invisível em meio às aparências é physis natureza a qual de acordo com os gregos era a totalidade das coisas que não eram feitas pelo homem nem criadas por um artífice divino mas que tinham vindo a ser por si mesmas Heráclito diz dessaphysis que ela gosta de se esconder45 por trás das aparências Introduzí Heráclito à guisa de explicação já que o próprio Platão não especifica a que se dirige esse espanto admirativo Ele também não diz como esse maravilhamento original transformase no diálogo do pensamento Em Heráclito a importância do logos é ao menos sugerida no seguinte contexto Apoio diz ele o mestre do oráculo de Delfos e podemos acrescentar o deus dos poetas não fala nem esconde mas indica oute legei oute kryptei alia semainei4 Isto é ele ambiguamente insinua algo para ser entendido apenas por aqueles que compreendem simples insinuações o deus winkt acena na tradução de Heidegger De uma sugestão ainda mais tantalizante é outro fragmento Olhos e ouvidos são más testemunhas para os homens quando eles têm almas bárbaras47 isto é quando não possuem logos Para os gregos o logos não era apenas a fala mas o dom do argumento racional que os distinguia dos bárbaros Em resumo o espanto levou a pensar em palavras a experiência do espanto diante do invisível manifesto nas aparências foi apropriada pela fala que ao mesmo tempo é forte o suficiente para dissipar os erros e as ilusões a que nossos órgãos para o visível olhos e ouvidos estão sujeitos quando o pensamento não vem em seu socorro Daí parece óbvio que o espanto que acomete o filósofo jamais pode dizer respeito a qualquer coisa em particular mas é sempre evocado pelo todo que ao contrário da soma total dos entes jamais se manifesta A harmonia de Heráclito realizase através do ressoar em conjunto dos contrários um efeito que jamais pode ser atingido por nenhum som particular Essa harmonia de certo modo é separada kechorismenori dos sons que a produzem do mesmo modo que o sophon que pode ser e não ser chamado pelo nome de Zeus48 está separado de todas as coisas49 Nos termos da parábola pitagórica é a beleza do jogo do mundo o significado e a significação de todos os particulares agindo juntos que como tal se manifesta apenas para um espectador em cujo espírito instâncias particulares e seqüências estão invisivelmente unidas Desde Parmênides a palavrachave para esse todo invisível e imperceptível implicitamente manifesto em tudo aquilo que aparece tem sido Ser aparentemente a palavra mais vazia e geral a mais desprovida de sentido em nosso vocabulário Descreveuse com grande precisão milhares de anos depois de ter sido pela primeira vez descoberto pela filosofia grega aquilo que ocorre a um homem normal que subitamente interrompe seu caminho normal quando se dá conta da presença absolutamente penetrante do Ser no mundo das aparências A passagem é relativamente moderna e portanto mais enfática a respeito de emoções pessoais e subjetivas do que seria qualquer outro texto grego e talvez por esta razão ela é mais persuasiva para os ouvidos psicologicamente treinados Coleridge escreve Algum dia já elevastes teu espírito para considerar a existência em si e por si do mero ato de existir Algum dia já dissestes pensativo É Sem te importar nesse momento se havia diante de ti um homem uma flor ou um grão de areia em uma palavra sem referência a este ou àquele modo ou forma particular da existência Se tiveres alcançado isto fará sentido a presença de um mistério que fixou teu espírito no espanto e na admiração As próprias palavras Não há nada ou Houve um tempo em que não havia nada são contraditórias Algo em nós repele essa proposição com uma luz tão repleta e instantânea que é como se recebesse sua evidência em nome da própria eternidade Não ser portanto é impossível ser incompreensível Se dominaste essa intuição da existência absoluta terá também apreendido que foi essa e não outra a intuição que nos primeiros tempos apoderouse dos espíritos mais nobres dos eleitos entre os homens com uma espécie de horror sagrado Foi ela que primeiro os levou a sentir dentro de si algo inefavelmente maior do que a sua própria natureza individual50 O espanto platônico o choque inicial que põe o filósofo em seu caminho foi revivido em nossa própria época quando Heidegger em 1922 concluiu uma conferência intitulada O que é metafísica com as palavras já citadas Porque existe afinal algo e não antes o nada Heidegger dizia que era esta a questão básica da metafísica51 A mesma pergunta expressando o choque do filósofo em termos modernos foi formulada antes de Heidegger Ela aparece nos Príncipes de la nature et de la grâce de Leibniz Pourquoi il y a plutôt quelque chose que rien Pois uma vez que le rien est plus simple et plus facile que quelque chose 52 esta coisa tem que ter uma causa suficiente para sua existência e esta causa por sua vez precisa ter sido produzida por outra coisa Seguindo essa linha de pensamento ele finalmente chega à causa sui a algo que é causa de si mesmo de tal modo que a resposta de Leibniz chega à causa última chamada Deus o deus dos filósofos uma resposta que já se encontrava no motor imóvel aristotélico Foi Kant é claro quem aplicou o golpe de misericórdia nesse deus e em suas palavras sobre o tema podemos claramente reconhecer aquilo que Platão apenas insinuara a necessidade incausada e incondicionada que o nosso pensamento de causaeefeito exige de maneira tão indispensável como suporte definitivo de todas as coisas é o verdadeiro abismo para a razão humana Não podemos evitar o pensamento que entretanto não podemos suportar de que um ser que nos representamos como um ser supremo entre todos os seres possíveis devesse dizer para si mesmo Eu sou desde a eternidade até a eternidade fora de mim nada existe que não tenha sido pela minha simples vontade mas então de onde souT Aqui tudo rui sob nossos pés e nem a maior e nem a menor perfeição é substantiva ou fundamentada para a razão especulativa que não faz nenhum esforço para reter uma ou outra e não sente perda alguma em deixar ambas desvanesceremse53 O que nos impressiona aqui em seu aspecto especificamente moderno é que confirmando a antiga intuição de Parmênides de que o nada é inconcebível e impensável a ênfase deslocouse do nada para o Ser Kant em lugar algum diz que o abismo do nada não é porque é inconcebível e embora possa ter dito que as antinomias da razão fizeramno pensar despertandoo do sono dogmático da razão ele não diz em lugar algum que a experiência desse abismo o outro lado do espanto platônico produziu o mesmo efeito Schelling citou enfaticamente as palavras de Kant e provavelmente foi dessa passagem e não da observação mais superficial de Leibniz que ele derivou sua própria e repetida insistência nessa questão última de todo pensamento por que existe algo por que não existe nada54 Schelling diz que é esta a mais desesperadoradas questões55 A referência ao puro desespero que surge do próprio pensamento aparece nos escritos tardios de Schelling e isto é significativo porque o mesmo pensamento já o havia assombrado antes em sua juventude quando ele ainda acreditava que para banir o nada bastava a afirmação absoluta que ele chamava a essência da nossa alma Por meio dessa afirmação reconhecemos que o nãoser é para sempre impossível incognoscível e incompreensível E para o jovem Schelling essa questão última porque não há o nada porque há algo colocada pelo intelecto tomado de vertigem à beira do abismo é para sempre suprimida pela percepção de que o Ser é necessário feito de tal forma que ele é pela afirmação absoluta do Ser na cognição56 Tudo isso sugeriría um simples retomo à posição de Parmênides se Schelling não tivesse sentido que somente a posição absoluta da idéia de Deus poderia garantir essa afirmação que segundo ele é a negação absoluta do nada é tão certo que a razão para sempre nega o nada e que o nada não é coisa nenhuma quanto é certo que a razão afirma o Todo e que Deus é eterno Portanto a única resposta completamente válida à questão Por que o nada não existe por que existe algo em geral não é alguma coisa mas o Todo ou Deus51 A razão sem a ajuda da idéia de Deus e segundo a sua simples natureza pode postular um Ser que é para sempre mas então ao confrontarse com esse pensamento que é da sua própria natureza postular ela permanece atônita quasi attonitd paralisada incapaz de se mover58 Nenhum mensageiro semelhante a íris trazendo o dom da fala e com ele o dom do argumento racional e o da resposta argumentada acompanha o choque filosófico e a afirmação do Ser em clara correspondência com o elemento de admiração no espanto de Platão necessita da fé em um DeusCriador que sal ve a razão humana de seu olhar de relance mudo e vertiginoso sobre o abismo do nada Uma vez que essa fé tenha sido resolutamente rejeitada e que a razão humana tenha ficado completamente só com as suas próprias capacidades o que sucede à questão última do pensamento pode ser detectado em  náusea de Sartre de longe sua mais importante obra filosófica Ao olhar para a raiz de um castanheiro o herói do romance foi repentinamente tomado por aquilo que significava existir a existência costuma se esconder Ela está aí à nossa volta em nós ela é nós não podemos dizer duas palavras sem mencionála mas nunca se pode tocála Mas agora a existência tinha se desvelado subitamente Tinha perdido a aparência inofensiva de uma categoria abstrata ela era a verdadeira pasta das coisas Ou melhor a raiz os portões do parque o banco a grama esparsa tudo se tinha esvanecido a diversidade de coisas sua individualidade eram apenas uma aparência um verniz A reação do herói de Sartre não é de admiração sequer de espanto mas de náusea diante da opacidade da simples existência do puro estaraí despojado do que é dado factualmente que sem dúvida nenhum pensamento jamais conseguiu apreender e muito menos iluminar e tomar transparente Não se poderia sequer perguntar de onde tudo isso surgiu ou como o mundo veio a existir em lugar de nada Agora que todo maravilhamento foi eliminado tornouse o escândalo de Ser que o nada seja impensável Nada havia antes Nada Isso era o que me irritava é claro que não havia nenhuma razão para a existência desse fluxo de lava Mas era impossível para ele não existir Ele era impensável para imaginar o nada é preciso já ser no meio do mundo vivo com os olhos bem abertos Percebi com tédio que eu não tinha nenhum meio de entender Nenhum meio E no entanto ele estava lá à espera como que espreitando E esse estaraí completamente sem sentido que faz o herói exclamar Imundície Quanta imundice mas ela estava lá firme e era tanta tons e mais tons de existência infinitamente59 Seria muito tentador ver o fim da filosofia ao menos daquela cujo início Platão fixou nesse deslocamento progressivo do Ser para o Nada causado não pela perda do espanto ou da perplexidade mas pela perda da admiração e da disposição para afirmar o Ser no pensamento Sem dúvida a mudança de direção da afirmação para a negação é até fácil de entender não porque tenha sido ocasionada por qualquer evento tangível ou pensamento mas porque como Kant já tinha observado à razão especulativa não custa nada e tampouco ganha ela alguma coisa ao se voltar para qualquer um dos aspectos da questão Assim a noção de que pensar significa dizer sim e confirmar a factualidade da simples existência encontrase em muitas variantes através da história da filosofia na Idade Moderna Nós a encontramos notadamente na aquiescência de Espinoza ao processo em meio ao qual tudo o que existe oscila e onde os tubarões sempre devoram os peixes pequenos Ela aparece nos escritos précríticos de Kant quando ele diz ao metafísico que ele deveria em primeiro lugar perguntar E possível que nada exista O que então o levaria à conclusão de que se absolutamente nenhuma existência fosse dada tampouco haveria sobre o quê pensar um pensamento que por sua vez levao a um conceito de um ser absolutamente necessário61 uma conclusão que Kant dificilmente teria endossado no período crítico Mais interessante é uma observação feita por ele um pouco antes sobre a vida no melhor dos mundos possíveis Ele repete o velho e reconfortante pensamento de que o todo é o melhor e tudo é bom em vista do todo mas ele mesmo não parece estar nem um pouco convencido desse antigo topos da metafísica pois subitamente exclama rz rufe aliem Geschõpfe zu Heil uns wir sind Conclamo todas as criaturas Viva para nós porque nós somos61 Essa afirmação ou melhor a necessidade de reconciliar pensamento e realidade é um dos motivos condutores da obra de Hegel Ela inspira o amorfati de Nietzsche e sua noção de eterno retomo a mais alta forma de afirmação que pode ser alcançada62 precisamente porque é ao mesmo tempo o peso mais pesado E se um demônio te dissesse essa vida tal como agora tu a vives terás que vivêla inúmeras vezes ainda e não haverá nada de novo nela ao contrário cada dor e cada alegria e cada pensamento e cada suspiro voltarão na mesma ordem e seqüência A ampulheta da existência será virada sempre de novo e tu com ela mísero grão de poeira Tu não te atirarias ao chão e não amaldiçoarias o demônio que o tivesse dito A menos que tu tenhas vivido um momento formidável quando lhe terias respondido Es um deus e jamais ouvi nada mais divino Quão bem disposto deverías tornarte para ti mesmo e a paz a vida de modo a não desejar nada deforma mais fervorosa do que essa eterna e definitiva confirmação e selo63 O ponto relevante dessa passagem é que a noção nietzscheana do eterno retorno não é uma idéia no sentido kantiano que regula nossas especulações nem obviamente é nada que lembre uma teoria uma recaída por assim dizer do antigo conceito de tempo e de seu movimento cíclico Ela é um mero pensamento ou melhor um experimento de pensamento e sua pungência reside na conexão íntima que junta o pensamento do Ser ao pensamento do nada Aqui a necessidade de confirmação não surge da admiração grega pela beleza e pela harmonia invisível que reúne a diversidade infinita de coisas particulares mas do simples fato de que ninguém pode pensar o Ser sem ao mesmo tempo pensar o nada ou pensar no significado sem pensar na futilidade na vaidade e na ausência de significado A saída para essa perplexidade parece estar indicada no velho argumento de que sem uma confirmação original do Ser não haveria nada sobre que pensar nem ninguém que pensasse Em outras palavras a própria atividade de pensar não importa que tipo ela tenha jápressupõe aexistência Mas tais soluções meramente lógicas são sempre traiçoeiras Uma pessoa que se agarre à noção de que não há verdade jamais se deixará dissuadir mesmo quando lhe for demonstrado que a proposição se destrói a si mesma Uma solução existencial e metalógica da perplexidade pode ser encontrada em Heidegger que como vimos exibiu algo semelhante ao espanto platônico quando reiterou a pergunta por que afinal há alguma coisa e não antes o nada Segundo Heidegger pensar think e agradecer thank são essencialmente a mesma coisa até os nomes são derivados da mesma raiz etimológica Essa resposta sem dúvida está mais próxima do espanto admirativo de Platão do que qualquer uma das outras anteriormente discutidas A dificuldade não reside na derivação etimológica nem na falta de demonstração argumentativa E ainda a velha dificuldade característica de Platão da qual ele mesmo parece ter estado bastante consciente e que é discutida no Parmênides O espanto admirativo concebido como ponto de partida da filosofia não deixa lugar para a existência factual da desarmonia da feiúra e enfim do mal Nenhum diálogo de Platão trata da questão do mal apenas no Parmênides ele demonstra um real interesse pelas conseqüências da inegável existência das coisas hediondas e dos atos vis sobre a doutrina das Idéias Se tudo o que aparece toma parte de uma Idéia visível apenas aos olhos do espírito e se deriva dessa forma qualquer que seja a realidade que possa ter na caverna dos assuntos humanos o mundo da percepção sensorial ordinária então tudo o que aparece e não apenas as coisas admiráveis deve sua aparição a um ente suprasensível que explica sua presença no mundo Nesse caso pergunta Parmênides o que dizer a respeito dos objetos corriqueiros e baixos como o cabelo a lama e a sujeira que jamais despertaram admiração em ninguém Platão falando por meio da figura de Sócrates não usa a justificativa comum surgida mais tarde do mal e da feiúra como partes necessárias do todo que apenas da perspectiva limitada do homem aparecem como mal e como feio Ao contrário Sócrates responde que seria simplesmente absurdo atribuir Idéias a tais coisas nesses casos as coisas são exatamente as que vemos e sugere que é melhor recuar por medo de cair em um poço sem fundo de contrasensos Parmênides contudo já um velho no diálogo aponta Isto é porque você ainda é jovem Sócrates e a filosofia ainda não se apoderou de você de uma maneira tão firme como penso que ela um dia o fará Então você não desprezará nenhuma dessas coisas mas hoje sua juventude ainda o faz considerar o que o mundo vai pensar64 Mas a dificuldade não se resolve e Platão nunca mais levanta a questão Só estamos interessados aqui na doutrina das Idéias à medida que se puder demonstrar que a noção de Idéia ocorreu a Platão por causa das coisas belas e que jamais lhe ocorrería se ele estivesse cercado apenas por objetos corriqueiros e baixos Existe evidentemente uma diferença decisiva entre a investigação sobre os assuntos divinos empreendida por Platão e Parmênides e as tentativas de Sólon e Sócrates aparentemente mais humildes de definir as medidas que não se vêem que ligam e determinam os negócios humanos E é enorme a relevância dessa diferença para a história da filosofia que não é a história do pensamento Importa em nosso contexto que nos dois casos o pensamento ocupase com as coisas invisíveis para as quais não obstante as aparências apontam o céu estrelado acima de nós ou os feitos e destinos dos homens coisas invisíveis que estão presentes no mundo visível da mesma maneira que os deuses homéricos que eram visíveis apenas para aqueles de quem de aproximavam 16 A resposta romana Em minha tentativa de isolar e examinar uma das fontes básicas do pensamento nãocognitivo enfatizei os elementos de admiração confirmação e afirmação que encontramos tão poderosos no pensamento filosófico e préfilosófico gregos Podemos reencontrálos através dos séculos não como uma influência mas muitas vezes como uma experiência de primeira mão Não estou de modo algum segura de que tudo o que venho descrevendo contraria as atuais experiências de pensamento mas estou totalmente certa de que contraria a opinião que hoje em dia se tem sobre o assunto A opinião comum sobre a filosofia foi formada pelos romanos que se tomaram os herdeiros da Grécia Ela traz a marca não da experiência romana original que foi exclusivamente política e que encontramos em sua forma mais pura em Virgílio mas do último século da República romana quando a respublica a coisa pública já estava se perdendo até finalmente tomarse propriedade privada da família imperial após a tentativa de restauração empreendida por Augusto A filosofia bem como as artes e as letras como a poesia e a historiografia tinha sido importada da Grécia Em Roma enquanto a coisa pública permaneceu intacta a cultura foi encarada com alguma suspeita Mas foi também tolerada e até admirada como um passatempo nobre para as pessoas de boa educação e como uma maneira de embelezar a Cidade Eterna Apenas nos séculos de declínio e queda primeiro da República depois do Império essas atividades tomaramse sérias e a filosofia por sua vez e apesar do legado grego tornouse uma ciência a animi medicina de Cícero o oposto do que tinha sido na Grécia65 Sua utilidade era ensinar aos homens como curar seus espíritos desesperados escapando do mundo através do pensamento Sua famosa divisaque quase parece ter sido formulada em oposição ao espanto admirativo platônico tornouse nil admirari não surpreenderse com nada nada admirar66 Mas não é apenas a imagem popular da figura do filósofo o homem sábio a quem nada perturba que devemos à herança romana O famoso dito de Hegel sobre a relação da filosofia com a realidade A coruja de Minerva só levanta vôo depois de começado o crepúsculo traz mais a marca da experiência romana do que da grega67 Para Hegel a coruja de Minerva representava Platão e Aristóteles surgindo por assim dizer dos desastres da guerra do Peloponeso Não a filosofia mas a filosofiapoZírica de Platão e de Aristóteles nasceu do declínio da polis uma forma de vida que havia envelhecido Em relação a essa filosofia política a observação brilhantemente impertinente de Pascal em Pensées é de uma adequação evidente Só conseguimos imaginar Platão e Aristóteles vestindo as grandes túnicas de acadêmicos Eles eram pessoas de bem e como as outras riam com seus amigos e quando quiseram se divertir escreveram as Leis e a Política Essa parte de suas vidas foi a menos filosófica e a menos séria Se escreveram sobre política foi como que para pôr ordem em um hospício e se deram a impressão de estar falando sobre uma grande coisa é porque sabiam que os loucos a que falavam pensavam ser reis e imperadores Adotaram seus princípios para tomar a loucura deles o mais inofensiva possível61 De qualquer modo é patente a profunda influência romana mesmo sobre um filósofo tão metafísico como Hegel no primeiro livro que publicou em que discute a relação entre filosofia e realidade A necessidade da filosofia surge quando o poder unificador desapareceu da vida dos homens quando os opostos perderam a tensão viva de sua relação e sua dependência mútua para se tomarem autônomos É da desunião da desavença que nasce o pensamento ou seja a necessidade de reconciliação Entzweiung ist der Quell des Bedürfnisses der Philosophicw O que há de romano na noção hegeliana de filosofia é que o pensamento não surge de uma necessidade da razão mas tem uma raiz existencial na infelicidade Hegel com seu grande sentido histórico reconheceu muito claramente o caráter tipicamente romano dessa raiz no seu tratamento do mundo romano em suas conferências tardias publicadas sob o título de Filosofia da história O estoicismo o epicurismo e o ceticismo embora opostos um ao outro tinham o mesmo propósito a saber tomar a alma absolutamente indiferente a tudo o que o mundo real tinha a oferecer70 O que ele aparentemente não reconheceu contudo é até que ponto generalizou a experiência romana A História do Mundo não é o teatro da felicidade Os períodos de felicidade são as suas páginas em branco pois esses são períodos de harmonia71 O pensamento então surge da desintegração da realidade e da resultante des união entre homem e mundo da qual surge a necessidade de um outro mundo mais harmonioso e significativo Tudo isso soa bastante coerente Frequentemente sem dúvida o primeiro impulso do pensamento coincidiu com o impulso para escapar de um mundo que se tinha tornado insuportável E improvável que esse impulso para escapar seja menos antigo do que o espanto admirativo Não o encontramos expresso entretanto em uma linguagem conceituai durante todo o período anterior aos longos séculos de declínio que começaram a partir do momento em que Lucrécio e Cícero transformaram a filosofia grega em algo essencialmente romano o que significou entre outras coisas algo essencialmente prático72 E após esses precursores que do desastre tinham apenas o pressentimento tudo está decaindo gradualmente e se aproximando do fim exaurido pela velhice nas palavras de Lucrécio foi necessário mais de um século para que essas linhas de pensamento se desenvolvessem em uma espécie de sistema filosófico consistente73 Isso ocorreu com Epiteto o escravo grego e possivelmente o espírito mais penetrante dentre os estóicos tardios De acordo com ele o que precisa ser aprendido para tomar a vida suportável não é realmente o pensamento mas o uso correto da imaginação a única coisa que está inteiramente em nosso poder Ele ainda usa um vocabulário grego enganosamente familiar mas o que ele chama de faculdade do raciocínio dynamis logike tem tão pouco a ver com o logos e o nous gregos quanto o que chama de vontade tem a ver com a proairesis aristotélica A faculdade de pensar é para ele em si estéril akarpa Para ele o tema da filosofia é a própria vida de cada um E o que a filosofia ensina é uma arte de viver de como lidar com a vida do mesmo modo que a carpintaria ensina a lidar com a madeira75 O que conta não é a teoria abstratamente mas seu uso e sua aplicação chresis ton theorematon Pensar e compreender são uma mera preparação para a ação admirar o mero poder da exposição o logos o argumento racional e o próprio curso do pensamento pode acabar por fazer do homem um gramático em vez de um filósofo76 Em outras palavras o pensamento tornouse uma techne um tipo particular de artesania talvez merecedor da mais alta estima certamente a mais urgentemente requerida uma vez que o seu produto acabado é a conduta de nossa própria vida O que se tinha em mente não era uma forma de vida no sentido de um bios theoretikos ou politikos uma vida dedicada a uma atividade particular mas o que Epiteto chamava de ação uma ação em que não se age em uníssono com nenhuma outra pessoa da qual se espera que não mude nada além do próprio eu e que se podería tornar manifesta apenas na apatheia e na ataraxia do homem sábio isto é na sua recusa de agir não importando o que de bom ou de ruim lhe pudesse ocorrer Tenho que morrer mas preciso fazêlo suspirando Não posso evitar o acorrentamento mas não posso evitar as lágrimas Você começa a algemarme são as minhas mãos que você algema Você começa a decapitarme mas quando foi que eu disse que a minha cabeça não podería ser cortada fora77 Evidentemente esses não são apenas exercícios de pensamento mas exercícios de poder da vontade Não peça que os eventos ocorram como você quer mas faça com que sua vontade seja a de que eles ocorram como de fato ocorrem e então você terá paz Essa é a quintessência da sabedoria de Epiteto pois é impossível que o que acontece seja diferente do que de fato é78 Isso irá nos interessar quando lidarmos com o fenômeno da vontade uma faculdade espiritual totalmente distinta cuja característica principal comparada com a habilidade de pensar é que não fala na voz reflexiva nem usa de argumentos mas apenas de imperativos mesmo quando não comanda nada além do pensamento ou melhor da imaginação Pois para obter a retirada radical da realidade exigida por Epiteto a ênfase na habilidade que o pensamento tem de tomar presente o que está ausente deslocase da reflexão para a imaginação e isso não para imaginar utopicamente um mundo diferente ou melhor O objetivo é muito mais reforçar o alheamento original que caracteriza o pensamento a tal ponto que a realidade desapareça completamente O pensamento é normalmente a faculdade de tomar presente o que está ausente ao passo que a faculdade de lidar com as impressões corretamente mencionada por Epiteto consiste em esconjurar e banir o que de fato está presente Tudo o que nos diz respeito existencialmente enquanto vivemos em um mundo de aparências são as impressões por meio das quais somos afetados Se aquilo que nos afeta existe ou é mera ilusão depende de nossa decisão de reconhecêlo ou não como real Sempre que a filosofia é compreendida como a ciência que lida com o espírito tomado como mera consciência e portanto sempre que a questão da realidade é totalmente suspensa posta entre parênteses reencontramos a velha posição estóica Falta apenas o motivo original que faz do pensamento um mero instrumento que trabalha a serviço da vontade Em nosso contexto a questão é que essa suspensão da realidade é possível não por causa da força da vontade mas em virtude da própria natureza do pensamento Se Epiteto pode estar entre os filósofos é por ter descoberto que a consciência possibilita que as atividades mentais voltemse sobre si mesmas Se quando percebo um objeto fora de mim decido concentrarme sobre a minha percepção sobre o ato de ver em vez de concentrarme sobre o objeto visto é como se eu tivesse perdido o objeto original porque ele perdeu seu impacto sobre mim Eu mudei o tema por assim dizerem vez de lidar com a árvore agora lido apenas com a árvore percebida isto é com o que Epiteto chama de impressão A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido algo externo a mim a árvore percebida está dentro de mim invisível ao mundo exterior como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos O que importa aqui é que a árvore da vida não é uma coisapensamento mas uma impressão Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento e que é sempre precedido pela experiência em um mundo de aparências A árvore está dentro de mim na sua total presença sensorial ela é a própria árvore apenas privada de realidade realness uma imagem e não um re pensar sobre árvores O truque descoberto pela filosofia estóica foi usar o espírito de tal modo que a realidade não pudesse atingir o seu possuidor mesmo que ele não tenha se retirado dela Em vez de ter se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão o espírito carregou para dentro de si as aparências E sua consciência tornouse um substituto completo para o mundo exterior apresentado como impressão ou imagem E nesse momento sem dúvida que a consciência sofre uma mudança decisiva ela não é mais a autoconsciência que acompanha todos os meus atos e pensamentos e assegura a minha identidade o simples eu sou eu e nem se trata aqui da estranha diferença que se insere no âmago dessa identidade a qual veremos mais tarde uma inserção peculiar às atividades espirituais pois elas voltamse sobre si mesmas Eu mesma tomandome como pura consciência surjo como um ente totalmente novo uma vez que não estou mais absorvida por um objeto dado aos meus sentidos mesmo se esse objeto intacto na sua estrutura essencial continue presente como um objeto da consciência o que Husserl chamou de objeto intencional Esse novo ente pode existir no mundo em completa independência e soberania e além disso aparentemente ainda na posse desse mundo a sabes da sua simples essência despojado de seu caráter existencial de sua realidade realness que me podería tocar e ameaçar minha integridade Com isso tomeime eu para mim mesma de uma maneira enfática encontrando em mim tudo o que originalmente me foi dado como uma realidade estranha Não é tanto o espírito mas antes essa consciência monstruosamente alargada que oferece um refúgio sempre presente e aparentemente seguro da realidade Essa suspensão da realidade esse desvencilharse da realidade tratandoa como nada mais do que uma impressão permaneceu sendo uma das grandes tentações dos pensadores profissionais até que um dos maiores dentre eles Hegel foi ainda adiante e construiu sua filosofia do Espírito do Mundo a partir de experiências do ego pensante Ao reinterpretar esse ego no modelo da consciência ele trouxe para dentro da consciência o mundo todo como se este fosse essencialmente um simples fenômeno do espírito Para o filósofo a eficácia desse procedimento que consiste em virar as costas para o mundo e caminhar em direção ao eu está acima de qualquer suspeita Existencialmente falando Parmênides estava errado quando disse que apenas o Ser manifestase no pensamento e é a ele idêntico Se é a vontade que comanda o espírito então o nãoSer também é pensável A força que ele tem de retirarse é então pervertida em um poder aniquilador e o nada tomase um substituto completo para a realidade porque o nada traz alívio O alívio é sem dúvida irreal ele é meramente psicológico um sedativo para a ansiedade e para o medo Eu ainda duvido de que tenha havido alguém a continuar senhor das suas impressões enquanto estava sendo assado no Touro de Falera Como Sêneca Epiteto viveu sob o regime de Nero isto é sob condições de muito desespero embora ele ao contrário de Sêneca não tenha sido muito perseguido Mais de cem anos antes contudo durante o último século da República Cícero tinha descoberto as linhas de pensamento pelas quais era possível encontrar o caminho para fora deste mundo Bastante versado em filosofia grega descobriu que tais pensamentos de modo algum tão extrema e cuidadosamente elaborados como em Epiteto provavelmente ofereceríam conforto e ajuda neste mundo tal como ele era então e que evidentemente é mais ou menos o que sempre é Os homens que ensinavam esse modo de pensar eram altamente estimados nos círculos literários romanos Lucrécio diz que Epicuro que mais de dois séculos depois de sua morte finalmente encontrou um discípulo digno de si é um deus porque foi o primeiro a inventar um modo de vida que hoje é chamado sabedoria e porque através de sua arte resgatou a vida de tais tormentas e de tamanha escuridão79 Para os nossos propósitos no entanto Lucrécio não é o melhor exemplo ele não insiste no pensamento mas apenas no conhecimento O conhecimento adquirido pela razão pode dissipar a ignorância e assim destruir o maior dos males o medo cuja fonte é a superstição Um exemplo mais apropriado seria o famoso Sonho de Cipião de Cícero Para compreender quão extraordinário é sem dúvida esse capítulo exclusivo da República de Cícero e quão estranhos os pensamentos aí expressos devem ter parecido aos romanos temos que lembrar em poucas palavras o pano de fundo sobre o qual ele foi escrito A filosofia tinha encontrado na Roma do último século antes de Cristo uma espécie de lar adotivo Naquela sociedade totalmente política ela tinha que provar antes de mais nada que era útil Nas TusculananDisputationes encontramos a primeira resposta de Cícero tratavase de tomar Roma mais bonita e civilizada A filosofia era uma ocupação própria de homens bem educados que se haviam retirado da vida pública e não tinham nada de mais importante com o que se preocupar Filosofar não se relacionava com nada que fosse de suma importância Tampouco tinha algo a ver com o divino para os romanos fundar e conservar comunidades políticas eram as atividades que mais se pareciam com as dos deuses A filosofia tampouco tinha conexão com a imortalidade A imortalidade era concedida tanto aos deuses como aos homens mas nunca era propriedade de homens individuais para os quais a morte não era apenas necessária mas muitas vezes desejável Em contrapartida ela era decididamente a propriedade potencial das comunidades humanas Se um estado civitas é destruído e extinguese é como se comparando coisas pequenas com coisas grandes todo o mundo se arruinasse e perecesse80 Para as comunidades a morte não é nem necessária nem desejável Ela sobrevêm apenas como uma punição pois uma comunidade deve ser constituída de tal modo que dure para sempre81 Toda essa citação foi tirada do tratado que termina com o Sonho de Cipião Cícero embora velho e desapontado não tinha portanto mudado de opinião Na verdade nada nem mesmo na própria República preparanos para o Sonho de Cipião no final exceto as lamentações do livro 5 Apenas em palavras e por causa de nossos vícios e por nenhum outro motivo ainda mantemos a coisa pública a res publica o tema do tratado a própria coisa foi há muito tempo perdida82 E então vem o sonho83 Cipião o africano conquistador de Cartago relata um sonho que teve pouco antes de destruir a cidade No sonho apresentou se a ele um alémmundo onde encontrou um ancestral que lhe contou que ele destruiría a cidade e o prevenia de que depois da destruição ele teria de restaurar a coisa pública em Roma assumindo a autoridade suprema de Ditador se conseguisse escapar de ser assassinado coisa em que ele mais tarde fracassou Cícero quis dizer que Cipião poderia ter sido capaz de salvar a República Para cumprir essa tarefa para reunir a coragem necessária é dito a Cipião que ele deveria ter sic habeto a seguinte crença de que os homens que preservaram a pátria certamente irão encontrar seu lugar no céu e serão abençoados com a eternidade Pois o deus supremo que governa o mundo preza acima de tudo as assembléias e as relações humanas a que chamamos Estados os governantes e aqueles que os conservam voltam ao céu depois de terem deixado este mundo Seu trabalho na Terra é guardar a Terra Evidentemente isso não implica uma promessa cristã de ressurreição em um outro mundo e embora a citação das vontades divinas ainda tenha o tom das tradições romanas ela traz uma nuance sinistra é como se os homens não quisessem fazer o que a coisa pública deles exige a não ser que houvesse a promessa de uma recompensa Como diz o ancestral de Cipião e isto é essencial as recompensas deste mundo não são de modo algum suficientes para premiar o esforço de uma pessoa Elas são vazias e irreais quando as vemos da perspectiva correta do alto do céu Cipião é convidado a olhar para a Terra e ela aparece tão pequena que ele sofreu ao ver que o nosso Império era apenas um ponto Ao que lhe respondem se a Terra daqui lhe parece tão pequena olhe sempre para o alto de modo a poder desprezar os assuntos humanos Pois que fama você pode atingir nas conversas dos homens e que tipo de glória você pode conquistar entre eles Não vê como é estreito o espaço onde residem glória e fama Aqueles que hoje falam de nós por quanto tempo ainda falarão E ainda que pudéssemos confiar na tradição e na memória das gerações futuras as catástrofes naturais inundações e incêndios nos impedirão de conquistar uma fama duradoura para não falar da fama eterna Se você levantar os olhos verá o quanto tudo isso é fútil A fama nunca foi eterna e o esquecimento da eternidade a destrói Transcrevi extensamente o ponto principal da passagem para deixar claro o quanto essas linhas de pensamento estão em franca contradição com aquilo em que Cícero como outros romanos bem educados sempre acreditou e que expressou até naquele mesmo livro No nosso contexto quis dar um exemplo um exemplo famoso talvez o primeiro registrado em nossa história intelectual de como certas linhas de pensamento realmente pretendem levar uma pessoa a pensarse fora do mundo por meio de uma relativização Em relação ao universo a Terra é um ponto que importa o que nela acontece Em relação à imensidão do tempo os séculos são apenas instantes e o esquecimento recobriría tudo e todos que importa o que os homens fazem No que se refere à morte que é igual para todos tudo o que é específico e distinto perde seu peso se não existe nenhum além e a vida após a morte para Cícero não é um artigo de fé mas uma hipótese moral não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos Aqui pensar significa seguir uma seqüência de raciocínio que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências c à sua própria vida A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e de uma maneira geral da própria vida Esse é apenas o começo de uma tradição que culminou filosoficamente em Epiteto e que atingiu o clímax de intensidade aproximadamente cinco séculos mais tarde no final do Império Romano Sobre a consolação dafilosofia de Boécio um dos livros mais populares de toda a Idade Média e hoje praticamente ignorado foi escrito em condições tão extremas que Cícero jamais poderia ter dele alguma premonição Boécio um nobre romano de alta posição caído em desgraça encontravase na prisão aguardando a execução Em vista da situação o livro foi comparado ao Fedon uma analogia bastante estranha de um lado Sócrates cercado de amigos depois de um julgamento em que teve permissão para falar longamente em sua defesa aguardando uma morte tranqüila e indolor do outro lado Boécio encarcerado sem ser ouvido absolutamente só depois que a sentença de morte foi pronunciada em uma farsa de julgamento no qual ele não esteve presente e em que muito menos teve oportunidade de se defender e que agora aguardava a execução por meio de lentas e abomináveis torturas Embora cristão foi a Filosofia que veio consolálo e não Deus ou o Cristo E embora seu lazer secreto na época em que desempenhava altas funções fosse a leitura e tradução de Platão e Aristóteles Boécio consolouse com raciocínios tipicamente ciceronianos e também estóicos A diferença é que o que era no sonho de Cipião uma mera relativização agora irá tomarse violenta aniquilação Os imensos espaços de eternidade para onde o espírito quando coagido deve se dirigir aniquilam a realidade tal como ela existe para os mortais o caráter instável da Fortuna aniquila todos os prazeres pois embora tudo o que ela nos dá riqueza honra fama seja fonte de prazer vivemos sempre com medo de perdêlo O medo aniquila toda felicidade Tudo em que você acredita impensadamente desaparece assim que você começa a pensar isso é o que a Filosofia a deusa da consolação diz a ele E aqui surge a questão do mal em que Cícero pouco havia tocado A linha geral de pensamento sobre o mal ainda bastante primitiva em Boécio já contém todos os elementos que iremos encontrar mais tarde em uma forma muito mais sofisticada e complexa ao longo de toda a Idade Média É a seguinte Deus é a causa final de tudo o que é Deus como bem supremo não pode ser a causa do mal tudo o que é tem que ter uma causa uma vez que há apenas causas aparentes do mal mas não uma causa última o mal não existe Os maus diz a Filosofia não apenas são impotentes eles não são O que você impensadamente considera mau tem seu lugar na ordem do universo E nessa medida é necessariamente bom Seus aspectos maus são uma ilusão dos sentidos da qual você pode livrarse pelo pensamento E um antigo conselho estóico o que negamos pelo pensamento e o pensamento está em nosso poder não pode nos afetar O pensamento torna irreal E claro que imediatamente lembramonos da glorificação que Epiteto faz daquilo que hoje chamamos de força de vontade Há inegavelmente um elemento de vontade nesse tipo de pensamento Pensar assim significa agir sobre si mesmo a única ação que resta em um mundo onde todo agir tornouse fútil O que mais impressiona nesse modo de pensar da Antigüidade tardia é que ele é centrado exclusivamente no eu John Adams vivendo em um mundo ainda não completamente fora dos trilhos tinha uma resposta Um leito de morte dizem mostra a vacuidade de todas as honrarias Pode ser No entanto as leis e o governo que regulam as coisas sublunares deveríam ser negligenciados por parecerem quinquilharias na hora da morte84 Até aqui abordei duas fontes das quais o pensamento tal como o conhecemos historicamente surgiu Uma fonte é grega a outra romana e elas são diferentes a ponto de serem opostas De um lado o espanto admirativo diante do espetáculo em meio a que o homem nasceu e para cuja apreciação ele está tão bem equipado de corpo e espírito Do outro lado o extremo terrível de ter sido jogado em um mundo cuja hostilidade é arrasadora onde o medo prodomina e de onde o homem tenta escapar ao máximo Há numerosas indicações de que essa última experiência não era completamente estranha para os gregos A frase de Sófocles não ter nascido é superior a todo logos o segundo maior bem sem dúvida é voltar o mais rápido possível para o lugar de onde viemos85 parece ter sido a variante poética de um dito proverbial O fato notável é que dentro do meu conhecimento essa disposição de ânimo não é mencionada em lugar algum como uma fonte grega de pensamento O mais impressionante talvez é que ela nunca produziu nenhuma grande filosofia a menos que queiramos incluir Schopenhauer entre os grandes pensadores Mas embora as mentalidades gregae romana constituíssem mundos separados e embora a maior falha da história da filosofia tal como ela se encontra nos manuais seja a de aplainar distinções tão agudas até parecer que todo mundo disse vagamente a mesma coisa também é verdade que as duas mentalidades têm coisas em comum Em ambos os casos o pensamento deixa o mundo das aparências Apenas porque o pensamento implica retirada é que ele pode ser usado como um instrumento para escapar Além disso como já foi enfatizado o pensamento implica uma inconsciência do corpo e do eu e põe em seu lugar a experiência da pura atividade mais gratificante segundo Aristóteles do que a satisfação de qualquer outro desejo já que dependemos de algo ou de alguém para obter todos os outros prazeres86 O pensamento é a única atividade que não precisa de nada além de si mesmo para seu exercício Um homem generoso precisa de dinheiro para praticar atos generosos e um homem moderado precisa da oportunidade da tentação87 Qualquer outra atividade de nível baixo ou elevado tem que vencer algo fora de si Isso aplicase até mesmo às artes performativas como tocar flauta cujo fim e propósito residem na própria realização e mais ainda ao trabalho de produzir coisas que é feito tendo como objetivo seus resultados e não por si mesmo e onde a alegria e a satisfação por uma obra bem feita vêm depois que a própria atividade chegou ao fim A frugalidade dos filósofos sempre foi proverbial e Aristóteles mencionaa Um homem engajado na atividade teórica não tem nenhuma necessidade e muitas coisas são apenas obstáculos àquela atividade Apenas pelo simples fato de que é um humano ele vai precisar dessas coisas que estão implicadas na própria condição de ser humano anthropeuesthai ter um corpo vi ver junto com outros homens etc No mesmo sentido Demócrito recomenda abstinência ao pensamento ele ensina como o logos deriva o seu prazer de si mesmo auton ex heautou A inconsciência do corpo durante a experiência do pensamento combinada com o simples prazer da atividade é o que melhor explica não apenas os efeitos sedativos e consoladores que tais linhas de pensamento tiveram sobre os homens da Antigüidade tardia mas explica também suas teorias curiosamente radicais a respeito do poder do espírito sobre o corpo teorias claramente refutadas pela experiência comum Gibbon escreve em seu comentário sobre Boécio Tais tópicos sobre consolação tão óbvios tão vagos ou tão abstrusos são impotentes para subjugar os sentimentos da natureza humana e a vitória final do Cristianismo que oferecia esses tópicos da filosofia como fatos reais e promessas seguras prova como Gibbon tinha razão89 E acrescentou de qualquer modo o sentimento de infortúnio pode ser distraído pelo labor do pensamento e ao menos indica o que de fato ocorre isto é o temor pelo corpo desaparece enquanto dura o labor do pensamento não porque os conteúdos do pensamento possam vencer o medo mas porque a atividade de pensar tornanos inconscientes do corpo e pode até superar as sensações de pequenos desconfortos A força excessiva dessa experiência pode elucidar o estranho fato histórico de que a antiga dicotomia entre corpo e espírito acentuadamente hostil com relação ao corpo possa ter sido adotada quase inalterada pelo credo cristão Afinal de contas este credo baseavase no dogma da encarnação o Verbo feito Came e na crença na ressurreição do corpo ou seja doutrinas que deveríam ter representado o fim da dicotomia corpoespírito e de seus enigmas insolúveis Antes de voltar a Sócrates quero mencionar brevemente o curioso contexto em que o termo filosofar não o substantivo mas o verbo apareceu pela primeira vez Heródoto conta que Sólon após ter promulgado as leis de Atenas partiu em viagem durante dez anos em parte por razões políticas mas também para ver o mundo theorem Chegou a Sárdia onde Creso estava no auge do seu poder Creso depois de mostrar a Sólon todas as suas riquezas perguntalhe Estrangeiro as notícias sobre sua sabedoria e suas andanças chegaram até nós dizendo que você percorreu muitos países da Terra filosofando sobre os espetáculos que yiu Daí ocorreume perguntar se você conheceu um homem que se considerasse o mais feliz do mundo9 O resto da história é conhecido Creso que esperava ser considerado o homem mais feliz do mundo ouve de Sólon que de nenhum homem por mais afortunado que seja podese dizer que seja feliz antes da sua morte Creso consulta Sólon não porque ele viu tantos países mas porque ele é famoso por filosofar por refletir sobre o que vê e a resposta de Sólon embora baseada na experiência encontrase claramente além da experiência Ele substituiu a pergunta quem é o mais feliz dos mortais pela pergunta o que é a felicidade para os mortais E a resposta à pergunta foi um philosophoumenon uma reflexão sobre os assuntos humanos anthropeion pragmaton e sobre a duração da vida humana na qual nenhum dia é igual ao outro de tal modo que o homem é pura sorte Sob tais condições é prudente esperar e prestar atenção ao fim pois a vida humana é uma história em que apenas o fim da história quando tudo está completo pode dizer o que ela foi91 Como a vida humana tem começo e fim como ela compõe um todo um ente em si pode ser julgado quando a vida termina na morte A morte não é apenas o fim da vida mas também concede a ela em silêncio uma completude que é assim subtraída do arriscado fluxo a que todas as coisas humanas estão sujeitas Este é o ápice do que mais tarde se tornou um topos proverbial da Antigüidade grega e latina nemo ante mortem beatus dici potest92 O próprio Sólon estava bem consciente das dificuldades envolvidas nessas proposições enganosamente simples Em um fragmento que se encaixa muito bem na história de Heródoto são a ele atribuídas as palavras o mais difícil de tudo é perceber a medida oculta aphanes do juízo que embora não apareça no entanto circunscreve os limites de todas as coisas93 Aqui Sólon parece um precursor de Sócrates que também como disseram depois quis trazer a filosofia do céu para a terra começando então por examinar as medidas ocultas por meio das quais julgamos as coisas humanas Quando perguntaram a Sólon quem era o mais feliz dos homens ele responde com a questão mas digame por favor o que é a felicidade como você pode medila Do mesmo modo como Sócrates levantou as questões o que é a coragem a piedade a amizade a sophrosyne o conhecimento a justiça etc Mas Sólon dá uma espécie de resposta positiva que contém até mesmo o que se chamaria hoje de uma filosofia total no sentido de uma Weltanschauung quando corretamente compreendida em suas implicações A incerteza do futuro torna a vida humana miserável o perigo é inerente a todos os atos e feitos ninguém sabe como vai terminar aquilo que começou aquele que se conduz bem não pode prever a má sorte que sobre ele pode se abater enquanto um deus em tudo favorece o perverso94 Portanto a frase nenhum homem pode ser considerado feliz enquanto vive de fato significa nenhum homem é feliz todos os mortais iluminados pelo Sol são miseráveis95 Isso já é mais do que uma reflexão é uma espécie de doutrina e como tal nãosocrática Pois Sócrates confrontado com tais questões conclui quase todo diálogo estritamente socratico dizendo Fracassei completamente em descobrir o que é96 E esse caráter aporético do pensamento socratico signi fica que o assombro admirativo diante de atos justos ou corajosos vistos pelos olhos do corpo dão origem a perguntas do tipo o que é a coragem ou o que é a justiça A existência da coragem ou da justiça foi indicada aos meus sentidos pelo que vi embora elas mesmas não façam parte da percepção sensorial e portanto não sejam dadas como realidade autoevidente A pergunta básica de Sócrates surge dessa experiência o que temos em mente quando usamos essa classe de palavras mais tarde chamadas conceitos Mas não apenas o espanto original não é resolvido portais perguntas uma vez que elas continuam sem resposta como ainda por cima é reforçado O que começa como espanto termina com perplexidade e portanto leva de volta ao espanto Não é maravilhoso que os homens possam executar atos corajosos ou justos mesmo que não conheçam e não possam explicar o que são coragem e justiça 17 A resposta de Sócrates A pergunta o que nos faz pensar apresentei respostas historicamente representativas oferecidas por filósofos profissionais exceto por Sólon Pela mesma razão essas são respostas dúbias A pergunta quando levantada pelo profissional não surge das suas próprias experiências enquanto está pensando Ela é formulada de fora seja esse lado de fora constituído pelos seus interesses profissionais como pensador seja o seu próprio senso comum questionando uma atividade fora de ordem na vida normal E as respostas que recebemos são sempre muito gerais e vagas para fazer sentido na vida cotidiana onde o pensamento afinal constantemente ocorre interrompendo os processos comuns da vida do mesmo modo como a vida cotidiana constantemente interrompe o pensamento Se despojamos essas respostas de seu conteúdo doutrinário que sem dúvida varia enormemente tudo o que obtemos são confissões de uma necessidade de concretizar as implicações do espanto platônico a necessidade em Kant que a faculdade da razão tem de transcender os limites do cognoscível a necessidade de reconciliarse com o que de fato é e com o curso dos acontecimentos no mundo a necessidade da filosofia em Hegel que pode transformar as ocorrências externas nos nossos próprios pensamentos ou enfim a necessidade de buscar o significado de tudo o que é ou ocorre como eu mesma disse de modo não menos vago e geral É essa impotência do ego pensante para explicarse que fez dos filósofos dos pensadores profissionais uma tribo tão difícil de lidar Porque o problema é que o ego pensante como vimosà diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências Ele é um personagem escorregadio invisível não apenas para os outros mas também para o próprio eu impalpável e impossível de ser apreendido Isto em parte se dá porque ele é pura atividade e em parte porque como disse Hegel uma vez como ego abstrato ele está liberado da particularidade de todas as outras propriedades disposições etc e é ativo apenas com relação ao geral ao que é o mesmo para todos os indivíduos97 Em todo caso visto a partir do mundo das aparências da praça do mercado o ego pensante vive escondido lathe biosas E nossa questão o que nos faz pensar de fato pergunta pela maneira como podemos trazêlo à luz do dia como provocá lo por assim dizer a manifestarse O melhor e na verdade o único modo que me ocorre para dar conta da pergunta é procurar um modelo um exemplo de pensador nãoprofissional que unifique em sua pessoa duas paixões aparentemente contraditórias a de pensar e a de agir Essa união não deve ser entendida como a ânsia de aplicar seus pensamentos ou estabelecer padrões teóricos para a ação mas tem o sentido muito mais relevante do estar à vontade nas duas esferas e ser capaz de passar de uma à outra aparentemente com a maior facilidade do mesmo modo como nós avançamos e recuamos constantemente entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir sobre ele Melhor talhado para esse papel deve ser um homem que não se inclua nem entre os muitos nem entre os poucos uma distinção que remonta no mínimo a Pitágoras que não tenha nenhuma pretensão a ser um governante de homens nem mesmo a de estar melhor preparado para aconselhar pela sua sabedoria superior os que estão no poder mas tampouco que se submeta docilmente às regras em resumo um pensador que tenha permanecido sempre um homem entre homens que nunca tenha evitado a praça pública que tenha sido um cidadão entre cidadãos que não tenha feito nem reivindicado nada além do que em sua opinião qualquer cidadão poderia e deveria reivindicar Não deve ser fácil encontrar esse homem Caso ele possa representar para nós a real atividade de pensar então não terá deixado atras de si nenhum corpo doutrinário Não se terá dado ao trabalho de escrever seus pensamentos mesmo que deles restasse algum resíduo tangível pronto para ser registrado depois que ele tivesse acabado de pensar Vocês já terão percebido que estou pensando em Sócrates Não saberiamos quase nada sobre ele pelo menos nada que pudesse nos impressionar muito se ele não tivesse causado uma enorme impressão sobre Platão Talvez não soubéssemos nada sobre ele nem mesmo através de Platão se ele não tivesse decidido dar a vida não por um credo ou uma doutrina específica ele não tinha nenhum dos dois mas simplesmente pelo direito de examinar as opiniões alheias pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo Espero que o leitor não pense que escolhi Sócrates por acaso Mas é necessário prevenir há muitas controvérsias em torno do Sócrates histórico e embora este seja um dos temas mais fascinantes do debate erudito vou ignorálo98 para apenas mencionar de passagem o que é provavelmente o principal motivo de discórdia a saber minha crença de que existe uma linha divisória nítida entre o que é autenticamente socrático e a filosofia ensinada por Platão O maior obstáculo aqui é o fato de que Platão usou Sócrates como o filósofo não apenas nos primeiros diálogos claramente socráticos como também mais tarde quando muitas vezes fez de Sócrates o portavoz de teorias e doutrinas inteiramente nãosocráticas Em muitos momentos o próprio Platão marcou as diferenças No Banquete por exemplo o famoso discurso de Diotima nos diz que Sócrates não sabe nada a respeito dos grandes mistérios e talvez não os possa compreender Em outros momentos porém as fronteiras tomamse indistintas decerto porque Platão ainda podia contar com um público leitor que percebesse algumas enormes inconsistências como quando ele deixa Sócrates dizer no Teeteto que os grandes filósofos desde a juventude ignoraram o caminho da praça pública uma palavra de ordem antisocrática se é que algum dia ele chegou a proferila E contudo para piorar a situação isso de modo algum significa que o mesmo diálogo não possa fornecer informações totalmente autênticas sobre o Sócrates real1 Ninguém penso eu contestará a sério que minha escolha seja historicamente justificável O que é mais difícil de justificar é talvez a transformação da figura histórica em um modelo pois não há dúvida de que alguma transformação se faz necessária quando a figura em questão deve desempenhar a função que lhe designamos Etienne Gilson em seu grande livro sobre Dante escreveu na Divina Comédia um personagem conserva tanto de sua realidade histórica quanto a função representativa que Dante lhe atribui e que dele exige101 E fácil conceder esse tipo de liberdade aos poetas e chamála de licença poética mas não é tão fácil concedêla quando nãopoetas aventuramse a dela se servir Com ou sem justificativas no entanto é precisamente o que fazemos quando construímos tipos ideais não a partir do nada como nas alegorias e abstrações personificadas tão caras aos maus poetas e a alguns eruditos mas a partir da multidão dos seres vivos passados ou presentes que parecem ter um significado representativo E Gilson ao menos indica a verdadeira justificativa desse método ou técnica quando discute o papel representativo que Dante atribui a São Tomás de Aquino o Tomás real aponta Gilson não teria feito o que Dante o fez fazer o elogio de Siger de Brabante Mas a única razão pela qual o verdadeiro São Tomás teria se recusado a fazer esse elogio seria uma certa fraqueza humana um defeito de caráter como diria Gilson a parte de sua constituição que ele teria que ter deixado na porta do Paraíso para poder entrar102 Há vários traços no Sócrates de Xenofonte cuja credibilidade histórica está acima de dúvidas que Sócrates teria que deixar na porta do Paraíso A primeira coisa a chamar nossa atenção nos diálogos socráticos de Platão é que eles são todos aporcticos A argumentação não leva a lugar nenhum ou gira em círculos Para saber o que é a justiça é preciso saber o que é o conhecimento E para saber isso c preciso ter uma noção prévia não examinada do conhecimento103 Por isso um homem não pode tentar descobrir o que sabe ou o que não sabe Se ele já sabe não há necessidade de investigação Se ele não sabe sequer sabe o que é para ser buscado114 Ou no Eutífron para ser pio é preciso saber o que é a piedade As coisas que agradam aos deuses são pias mas elas são pias porque agradam aos deuses ou agradam aos deuses porque são pias Nenhum dos logoi dos argumentos fica sempre no mesmo lugar eles dão voltas Sócrates fazendo perguntas para as quais ele não conhece a resposta colocaos em movimento e quando as afirmações voltam ao ponto de partida em geral é ele quem alegremente propõe começar tudo de novo e investigar o que são a justiça a piedade ou a coragem105 Pois os tópicos desses primeiros diálogos lidam com conceitos muito simples e cotidianos tais como surgem toda vez que as pessoas abrem a boca e começam a falar A introdução em geral é a seguinte sem dúvida há pessoas felizes atos justos homens corajosos belas coisas para ver e admirar como todos sabem o problema reside em nossos substantivos que são provavelmente derivados dos adjetivos que aplicamos a casos particulares tais como nos aparecem nós vemos um homem feliz percebemos o ato corajoso ou a decisão justa Em resumo o problema começa com palavras como felicidade justiça coragem c outras que hoje em dia chamamos de conceitos a medida nãoaparente de Sólon aphanes metroií a mais difícil de compreender para o espírito e contudo a que circunscreve os limites de todas as coisas10 e que Platão um pouco mais tarde chamou de idéias perceptíveis apenas para os olhos do espírito Essas palavras fazem parte da nossa fala cotidiana e mesmo assim não podemos delas dar conta Quando tentamos definilas tornamse escorregadias quando começamos a discutir seu significado nada mais fica no lugar tudo começa a moverse Assim em vez de repetir o que aprendemos com Aristóteles a saber que Sócrates foi o homem que descobriu o conceito perguntaremos o que Sócrates fez ao descobrilo Pois certamente essas palavras faziam parte da língua grega antes que ele tentasse fazer com que os atenienses e ele próprio se dessem conta do que eles todos tinham em mente na firme convicção é claro de que nenhum discurso seria possível sem elas Hoje isso já não é tão certo Nosso conhecimento das línguas ditas primitivas mostra que o procedimento que agrupa diversos particulares sob um nome comum a todos não é de modo algum evidente ou natural Essas línguas cujo vocabulário é muitas vezes impressionantemente rico carecem daqueles substantivos abstratos mesmo com relação a objetos claramente visíveis Para simplificar a questão tomemos um substantivo que já não nos parece mais abstrato Podemos usar a palavra casa para um grande número de objetos para a cabana de barro de uma tribo para o palácio de um rei para a casa de campo de um citadino para o chalé na aldeia para o apartamento na cidade mas dificilmente a empregamos para as tendas de alguns nômades A casa em si e por si auto kathauto que nos faz usar a palavra para todos esses edifícios particulares e muito diferentes entre si nunca é vista seja pelos olhos do corpo seja pelos olhos do espírito Toda casa imaginada por mais abstrata que seja e por mínimos que sejam os traços que a tomam reconhecível já é uma casa particular Essa outra casa invisível da qual já precisamos ter uma noção para reconhecer edifícios particulares como casas foi explicada de diferentes modos e chamada por diferentes nomes na história da filosofia isso não nos interessa aqui embora possamos achar a casa menos difícil de definir do que palavras como felicidade ou justiça A questão aqui é que casa implica algo consideravelmente menos tangível do que a estrutura percebida por nossos olhos Ela significa que alguém é por ela abrigado e que nela alguém habita como não poderia fazer em nenhuma tenda montada hoje e desmontada amanhã A palavra casa é a medida oculta que circunscreve os limites de todas as coisas relacionadas ao habitar É uma palavra que não existiría sem o pressuposto do que se pensa sobre ser abrigado habitar ter um lar Como palavra casa é uma abreviatura para todas essas coisas o tipo de abreviatura sem a qual o pensamento e sua rapidez característica seriam absolutamente impossíveis A palavra casa é como um pensamento congelado que o ato de pensar tem que degelar sempre que pretende encontrar o seu significado original Na filosofia medieval esse tipo de pensamento era chamado meditação e a palavra era entendida como diferente e até mesmo oposta à contemplação Em todo caso esse tipo de reflexão ponderativa não produz definições e neste sentido não produz nenhum resultado embora alguém que tivesse ponderado sobre o significado de casa pudesse ter tornado sua própria casa mais agradável Mesmo assim dizse que Sócrates acreditava que a virtude pudesse ser ensinada E parece que ele realmente achava que falar e pensar sobre a piedade a justiça a coragem e coisas do gênero poderíam tomar os homens mais pios justos e corajosos embora nem definições nem valores lhes fossem dados para que pudessem orientar sua conduta futura As convicções reais de Sócrates sobre tais assuntos podem ser melhor ilustradas pelas comparações que ele fazia a respeito de si mesmo Autodenominavase um moscardo e uma parteira Segundo Platão alguém chamouo de arraiaelétrica um peixe que ao contato paralisa e entorpece e Sócrates admite a semelhança desde que seus ouvintes reconheçam que a arraiaelétrica paralisa os outros apenas por estar ela mesma paralisada Não é que eu deixe os outros perplexos já conhecendo as respostas A verdade é que eu lhes transmito a minha própria perplexidade1117 Esta é evidentemente a expressão concisa do único modo como o pensamento pode ser ensinado embora Sócrates como ele repetidamente dizia não ensinasse nada pela simples razão de que nada tinha a ensinar ele seria estéril como as parteiras na Grécia mulheres que já tinham passado da idade de dar à luz Já que ele não tinha nada para ensinar nenhuma verdade para divulgar foi acusado de nunca revelar seu próprio ponto de vista gnome como nos informa Xenofonte que o defende desta acusação108 É como se ao contrário dos filósofos profissionais ele sentisse a necessidade de verificar com seus semelhantes se suas perplexidades também eram por eles compartilhadas e isso é totalmente diferente da propensão a encontrar soluções para enigmas e então demonstrálas aos outros Examinemos rapidamente as três comparações Na primeira Sócrates é um moscardo ele sabe como ferroar os cidadãos que sem ele vão continuar a dormir pelo resto de suas vidas a menos que alguém venha despertálos E para que os desperta Para o pensamento e para 0 investigação uma atividade sem a qual a seu ver a vida não vali a a pena e nem sequer era totalmente vivida Sobre esse assunto não apenas na Apologia como em outras ocasiões Sócrates diz quase o contrário do que Platão o faz dizer na apologia melhorada do Fedon NaApologia Sócrates diz a seus pares cidadãos por que ele deveria continuar vivo e por que embora a vida lhe fosse muito cara ele não tem medo de morrer No Fedon ele explica aos amigos como é difícil suportar a vida e por que alegrase em morrer Na segunda comparação Sócrates é uma parteira no Teeteto diz que sabe trazer à luz os pensamentos alheios porque ele mesmo é estéril mais ainda graças a essa esterilidade ele tem a perícia da parteira e pode decidir se está lidando com uma gravidez real ou ilusória da qual a genitora deve ser aliviada Mas nos diálogos praticamente nenhum dos interlocutores de Sócrates jamais produziu um pensamento que não fosse um falso feto que Sócrates considerasse merecedor da vida De fato ele fazia o que Platão disse aos sofistas no Sofista certamente pensando em Sócrates ele purgava as pessoas de suas opiniões isto é daqueles preconceitos não examinados que os impediríam de pensarajudandoos como disse Platão a livrarse do que neles há de mau as opiniões sem no entanto tomálos bons mostrandolhes a verdade109 Em terceiro lugar Sócrates sabendo que não sabemos recusase contudo a deixar tudo por isso mesmo e desistir de suas próprias perplexidades e como a arraiaelétrica permanece paralisado e paralisa os que com ele entram em contato A arraiaelétrica à primeira vista parece ser o contrário do moscardo ela paralisa enquanto o moscardo desperta No entanto aquilo que do lado de fora é visto como paralisia do ponto de vista dos negócios humanos comuns é sentido como o mais alto grau de atividade e de vida Isso pode ser confirmado a despeito das raras evidências documentadas sobre a experiência do pensamento por um certo número de afirmações dos filósofos através dos séculos Sócrates o moscardo a parteira a arraiaelétrica não é portanto um filósofo ele nada ensina e nada tem a ensinar nem um sofista pois não pretende tomar os homens sábios Quer apenas mostrarlhes que eles não são sábios e que ninguém é sábio uma busca que o mantém tão ocupado que sequer deixa tempo para os negócios públicos ou privados110 E mesmo quando se defende vigorosamente contra a acusação de corromper os jovens em momento nenhum afirma tomálos melhores Não obstante sustenta que o aparecimento da atividade de pensar e investigar em Atenas representa em si mesma o maior bem algum dia concedido à cidade111 Desse modo ele preocupase com a utilidade do pensamento embora não tivesse neste como em todos os outros assuntos uma resposta bem definida Podemos ter certeza de que um diálogo sobre a pergunta para que serve o pensamento terminaria com as mesmas perplexidades que todos os outros diálogos Se tivesse havido uma tradição socrática no pensamento ocidental se nas palavras de Whitehead a história da filosofia fosse uma coleção de notas de pé de página não para Platão mas para Sócrates o que sem dúvida teria sido impossível não encontraríamos nela nenhuma resposta para nossa pergunta mas sem dúvida muitas variantes da própria pergunta Sócrates mesmo consciente de que estava lidando com invisíveis em sua investigação usou uma metáfora para explicar a atividade de pensar a metáfora do vento os ventos são eles mesmos invisíveis mas o que eles fazem mostrase a nós e de certa maneira sentimos quando eles se aproximam112 Encontramos a mesma metáfora em Sófocles que na Antígona relaciona o pensamento rápido como o vento dentre as coisas dúbias assombrosas deina com que os homens são abençoados ou amaldiçoados113 Em nossos dias Heidegger às vezes fala do tufão do pensamento e usa explicitamente a metáfora no único lugar de sua obra em que fala diretamente de Sócrates Durante toda a sua vida e até a hora da morte Sócrates não fez mais do que se colocar no meio desta correnteza desta ventania do pensamento e nela manterse Eis porque ele é o pensador mais puro do Ocidente Eis porque ele não escreveu nada Pois quem sai do pensamento e começa a escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam em um abrigo de um vento muito forte para elas Todos os pensadores posteriores a Sócrates apesar de sua grandeza são como estes refugiados O pensamento tomouse literatura Em uma nota explicativa posteriorele acrescenta que ser o pensador mais puro não significa ser o maior114 No contexto em que Xenofonte sempre ansioso para defenderseu mestre com seus próprios argumentos vulgares contra acusações igualmente vulgares menciona a metáfora ela não faz muito sentido Mesmo assim até ele indica que o vento invisível do pensamento se manifestava nos conceitos virtudes e valores com que Sócrates lidava em suas investigações O problema é que este mesmo vento sempre que surge tem a peculiaridade de varrer para longe todas as suas manifestações anteriores eis porque o mesmo homem pode ser entendido e entender a si mesmo ao mesmo tempo como um moscardo e como uma arraiaelétrica E da natureza deste elemento invisível desfazer e por assim dizer degelar o que a linguagem o veículo do pensamento congelou como pensamentos palavras conceitos frases definições doutrinas cuja impotência e inflexibilidade Platão tão brilhantemente denuncia na Sétima carta A conseqüência é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corrosivo sobre todos os critérios estabelecidos valores padrões para o bem e para o mal em suma sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e ética Estes pensamentos congelados Sócrates parece dizer ocorrem tão facilmente que até dormindo podemos fazer uso deles mas se o vento do pensamento que agora provoquei sacudiu você do seu sono e deixouo totalmente desperto e vivo você verá que pode dispor apenas de perplexidades e o melhor que se pode fazer com elas é partilhá las com os outros Assim a paralisia induzida pelo pensamento é dupla ela é inerente ao parar para pensar à interrupção de todas as atividades psicologicamente podemos definir um problema como uma situação que por alguma razão retém em grande medida um organismo em seus esforços para atingir um objetivo115 e pode ter também um efeito atordoante depois que a deixamos nos sentindo inseguros sobre o que parecia acima de qualquer dúvida enquanto estávamos impensadamente engajados em fazer alguma coisa Se o que estamos fazendo é aplicar regras gerais de conduta a casos particulares tal como eles ocorrem na vida cotidiana encontramonos paralisados porque esse tipo de regra não resiste ao vento do pensamento Tomando de novo o exemplo do pensamento congelado inerente à palavra casa uma vez que pensamos em seu significado implícito habitar ter um lar abrigarse não estaremos mais tão dispostos a aceitar tudo o que a moda do dia prescreve para nossa própria casa mas isso não é uma garantia de que se vai encontrar uma solução aceitável para o que se tomou problemático Isso nos leva ao último e talvez maior perigo deste empreendimento perigoso e sem resultados No círculo de Sócrates havia homens como Alcebíades e Crítias e Deus sabe que eles não eram de modo algum os piores entre os seus autodenominados discípulos que se revelaram uma verdadeira ameaça àpolis e isto não porque tivessem sido paralisados pela arraiaelétrica mas ao contrário porque foram despertados pelo moscardo Foi para a licenciosidade e o cinismo que foram despertados Não satisfeitos em terem aprendido como pensar sem ter uma doutrina transformaram os nãoresultados da investigação socrática sobre o pensamento em um resultado negativo se não podemos definir o que é a piedade sejamos ímpios o que é quase o contrário do que Sócrates esperava atingir quando falava de piedade A busca de significado que implacavelmente dissolve e reexamina todas as doutrinas e regras aceitas pode a qualquer momento voltarse contra si mesma produzir uma reversão dos antigos valores e declarar que estes contrários são novos valores Em certa medida isto é o que Nietzsche fez quando inverteu o platonismo esquecendo que um Platão ao contrário ainda é Platão ou o que Marx fez quando virou Hegel de cabeça para baixo produzindo neste processo um sistema de História estritamente hegeliano Tais resultados negativos do pensamento entrarão na mesma rotina impensada de antes no momento em que forem aplicados ao domínio dos negócios humanos é como se nunca tivessem sido submetidos ao processo do pensamento O que nós geralmente chamamos de niilismo que somos tentados a datar historicamente deplorar politicamente e atribuir a pensadores que segundo se diz tiveram pensamentos perigosos é um perigo inerente à própria atividade de pensar Não há pensamentos perigosos o próprio pensamento é perigoso mas o niilismo não é o seu produto O niilismo é antes o reverso do convencionalismo o seu credo consiste em negações dos atuais valores ditos positivos aos quais ele permanece aprisionado Todo exame crítico tem que passar pelo menos hipoteticamente pelo estágio de negação de opiniões e valores aceitos quando busca seus pressupostos e implicações tácitas Neste sentido o niilismo pode ser visto como um perigo sempre presente para o pensamento Mas este perigo não surge da convicção socrática de que uma vida não submetida a questionamento não vale a pena ser vivida Ao contrário ele surge do desejo de encontrar resultados que dispensariam o pensar O pensamento é igualmente perigoso para todos os credos e por si mesmo não dá origem a nenhum novo credo Seu aspecto mais perigoso do ponto de vista do senso comum é que o que era significativo durante a atividade do pensamento dissolvese no momento em que se tenta aplicálo à vida de todos os dias Quando o ponto de vista da opinião cotidiana se apodera dos conceitos isto é das manifestações do pensamento na fala comum e começa a tratálos como se fossem resultados cognitivos a única conclusão só pode ser a de que nenhum homem é sábio Na prática pensar significa que temos que tomar novas decisões cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade A ausência do pensamento contudo que parece tão recomendável em assuntos políticos ou morais também apresenta perigos Ao proteger contra os perigos da investigação ela ensina a aderir rapidamente a tudo o que as regras de conduta possam prescrever em uma determinada época para uma determinada sociedade As pessoas acostumamse com mais facilidade à posse de regras que subsumem particulares do que propriamente ao seu conteúdo cujo exame inevitavelmente as levaria à perplexidade Se aparecer alguém não importa com que propósitos que queira abolir os velhos valores ou virtudes esse alguém encontrará um caminho aberto desde que ofereça um novo código Precisará de relativamente pouca força e nenhuma persuasão isto é de provas de que os novos valores são melhores do que os velhos para impor o novo código Quanto maior é a firmeza com que os homens aderem ao velho código maior a facilidade com que assimilarão o novo Na prática isso significa que os mais dispostos a obedecer serão os que foram os mais respeitáveis pilares da sociedade os menos dispostos a se abandonarem aos pensamentos perigosos ou de qualquer outro tipo ao passo que aqueles que aparentemente eram os elementos menos confiáveis da velha ordem serão os menos dóceis Se as questões da ética e da moral fossem realmente o que a etimologia destas palavras indica não seria mais difícil mudar os costumes e hábitos de um povo do que suas maneiras à mesa E a facilidade com que tais mudanças ocorrem sob certas circunstâncias sugere realmente que todo mundo estava dormindo profundamente quando elas ocorreram Estou me referindo é claro ao que houve na Alemanha nazista e em certa medida também na Rússia stalinista quando subitamente os mandamentos básicos da moralidade ocidental foram invertidos no primeiro caso o mandamento não matarás e no segundo não levantarás falso testemunho E tampouco o que veio depois poderia nos consolar isto é a inversão da inversão o fato de ter sido tão surpreendentemente fácil reeducar os alemães após o colapso do Terceiro Reich tão fácil mesmo que se poderia dizer que a reeducação foi automática Na verdade nos dois casos tratase do mesmo fenômeno Voltando a Sócrates os atenienses lhe disseram que o pensamento era subversivo que o vento do pensamento era um furacão a varrer do mapa os sinais estabelecidos pelos quais os homens se orientavam trazendo desordem às cidades e confundindo os cidadãos E embora Sócrates negue que o pensamento corrompa ele tampouco alega que aperfeiçoe alguém O pensamento apenas desperta e isto lhe parece um grande bem para a cidade Mesmo assim Sócrates não diz que empreendeu todas estas investigações para se tomar um grande benfeitor No que diz respeito a ele mesmo a única coisa que se pode dizer é que uma vida sem pensamento seria sem sentido embora o pensamento jamais tome alguém sábio ou dê respostas às perguntas que ele mesmo levanta O significado do que Sócrates fazia repousava nesta simples atividade Ou em outras palavras pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa e isto implica que o pensamento tem sempre que começar de novo é uma atividade que acompanha a vida e tem a ver com os conceitos como justiça felicidade e virtude que nos são oferecidos pela própria linguagem expressando o significado de tudo o que acontece na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos O que chamei de busca do significado aparece na linguagem socrática como o amor no sentido grego de Eros não no sentido cristão de agape O amor como Eros é antes de tudo uma falta deseja o que não tem Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios Amam a beleza e fazem o belo por assim dizer philokaloumen como disse Péricles na Oração fúnebre6 porque eles não são belos O amor é o único assunto sobre o qual Sócrates se diz conhecedor e esta habilidade guiao também na escolha de companheiros e amigos embora eu seja inútil para todas as outras coisas este dom eu tenho reconheço imediatamente o amante e o amado117 Ao desejar o que não tem o amor estabelece uma relação com o que não está presente Para trazer à luz e fazer aparecer esta relação os homens procuram falar dela assim como o amante procura falar do amado E porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amorbeleza sabedoria justiça etc O mal e afeiúra quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento Eles podem apresentarse como deficiências consistindo a feiura na ausência da beleza e o mal kakia na ausência de bem Em si não têm raízes próprias nem essências onde o pensamento possa se firmar Se o pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original então o mesmo processo tem que dissolver estes conceitos negativos até a sua ausência de significado original isto é até o nada do ponto de vista do ego pensante Eis porque Sócrates acreditava que ninguém pudesse fazer o mat voluntariamente o mal como diriamos nós não tem estatuto ontológico ele consiste em uma ausência um algo que não é Demócrito que compreendia o logos a palavra como acompanhamento da ação da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais distinguindoas assim da mera semblância por isso mesmo desaconselhava que se falasse dos maus atos ao ignorarmos o mal privandoo de qualquer manifestação na fala ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra118 Quando abordamos o espanto admirativo e afirmativo de Platão encontramos a mesma exclusão do mal tab como ele se desdobra em pensamento e a encontramos em quase todos os filósofos ocidentais Ao que parece a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar enquanto que reciprocamente aqueles que amam a investigação e assim fazem filosofia são incapazes de fazer o mal 18 O doisemum Onde chegamos com relação a um dos nossos principais problemas a saber com relação à possível conexão entre a ausência de pensamento e o mal Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socrático o amor da sabedoria da beleza e da justiça são capazes de pensamento e dignas de confiança Em outras palavras chegamos às naturezas nobres de Platão às poucas a respeito das quais se pode dizer que não fazem o mal voluntariamente No entanto nem mesmo em seu caso é verdadeira a conclusão implícita e perigosa de que todo mundo quer fazer o bem A triste verdade é que na maioria dos casos o mal é praticado por pessoas que jamais se decidiram a fazer o bem ou o mal Sócrates que diferentemente de Platão considerava todos os assuntos e conversava com todas as pessoas não pode ter acreditado que só os poucos são capazes de pensamento nem que só alguns objetos de pensamento visíveis aos olhos da mente bem treinada mas inefáveis no discurso conferem dignidade e relevância à atividade de pensar Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade independentemente dos seus objetos Sócrates este amante das perplexidades fez poucas afirmações positivas Entre elas há duas intimamente ligadas que tratam do assunto Ambas ocorrem em Górgias o diálogo sobre a retórica a arte de dirigir e convencer os muitos O Górgias não faz parte dos diálogos socráticos da juventude foi escrito pouco antes de Platão tomarse diretor da Academia Além disso o próprio tema do diálogo é uma arte ou uma forma de discurso que parecería perder todo sentido se fosse aporético E apesar disso ele é aporético exceto pelo fato de que Platão concluiuo com um daqueles mitos sobre o alémmundo de recompensas e punições que aparentemente isto é ironicamente resolvem todas as dificuldades A gravidade desses mitos é puramente política e consiste no fato de eles se dirigirem à multidão Os mitos do Górgias certamente não são socráticos mas mesmo assim são importantes porque revelam embora de uma forma não filosófica o reconhecimento platônico de que os homens voluntariamente cometem atos maus Isso acarreta a admissão suplementar de que Platão assim como Sócrates não sabia como tratar filosoficamente esse fato perturbador Podemos não saber se Sócrates acreditava realmente que a ignorância causasse o mal ou que a virtude pudesse ser ensinada no entanto é certo que Platão achava mais prudente fiarse em ameaças As duas sentenças afirmativas de Sócrates são as seguintes a primeira é melhor sofrer o mal do que o cometer Ao que Cálicles o interlocutor no diálogo responde o que todo grego teria respondido Sofrer o mal não é digno de um homem mas de um escravo para quem é melhor morrer do que viver para quem não é capaz de socorrer nem a si mesmo nem àqueles que para ele são importantes119 A segunda afirmação é Eu preferirira que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico e preferiría que multidões de homens discordassem de mim do que eu sendo um viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizerme1211 Ao ouvir isso Cálicles responde que Sócrates está enlouquecido pela eloqüência e que seria melhor para ele e para todos se ele deixasse a filosofia121 E nisso ele tem suas razões Foi sem dúvida a filosofia ou antes a experiência do pensamento que levou Sócrates a tais afirmações embora é claro ele não tenha se lançado em sua empresa com o objetivo de chegar a elas assim como não foi para serem felizes que outros filósofos se lançaram às suas próprias investigações122 Seria um grave engano penso eu compreender essas afirmações como o resultado de reflexões sobre a moralidade elas são insights é verdade mas da experiência e no que diz respeito ao próprio processo do pensamento elas são no máximo subprodutos incidentais Para nós é difícil compreender como deve ter soado paradoxal a primeira afirmação na sua época após milhares de anos de uso e abuso ela soa como moralismo barato E a melhor demonstração de como é difícil para leitores modernos apreender a força da segunda afirmação é o fato de que as palavraschave sendo um que precedem seria pior para mim estar em desacordo comigo mesmo do que com multidões inteiras freqüentemente são ignoradas pelos tradutores A primeira é uma afirmação subjetiva que significa é melhor para mim sofrer o mal do que o cometer E no diálogo em que ocorre ela é contestada simplesmente por outra afirmação igualmente subjetiva que evidentemente soa muito mais plausível O que fica claro é que Cálicles e Sócrates estão falando de eus diferentes o que é bom para um é mau para outro Mas se por outro lado encaramos essa proposição do ponto de vista do mundo que é distinto daquele dos dois falantes teríamos que dizer o que conta é que o mal foi feito e aí é irrelevante saber quem se saiu melhor o autor ou a vítima Na qualidade de cidadãos nós devemos evitar que o mal seja cometido porque está em jogo o mundo em que todos nós o malfeitor a vítima e o espectador vivemos A cidade foi injuriada Nossos códigos legais levam isso em consideração ao distinguir crimes em que a acusação é obrigatória e transgressões que pertencem ao domínio privado dos indivíduos que podem querer ou não mover uma ação Poderiamos quase definir um crime como aquela transgressão da lei que exige punição não importando quem foi injuriado a vítima pode estar disposta a perdoar e a esquecer e se houver a suspeita de que o malfeitor certamente não voltará a fazer o mal pode não haver perigo para as outras pessoas No entanto a lei da terra não permite essa escolha porque a comunidade como um todo foi violada Em outras palavras Sócrates não está falando aqui na pessoa do cidadão de quem se supõe preocuparse mais com o mundo do que consigo mesmo ele fala aqui como um homem devotado principalmente ao pensamento E como se ele dissesse a Cálicles se você estivesse como eu apaixonado pela sabedoria e se sentisse a necessidade de pensar sobre tudo e examinar tudo você saberia que é melhor sofrer o mal do que o praticar caso não haja alternativa caso o mundo seja como você o descreve dividido entre fortes e fracos onde os fortes fazem o que está em seu poder e os fracos sofrem o que têm que sofrer Tucídides Mas é claro que o pressuposto aqui é se você está apaixonado pela sabedoria e pelo filosofar se você sabe o que significa investigar Ao que eu saiba há apenas uma outra passagem na literatura grega que diz o mesmo que Sócrates quase com as mesmas palavras Mais desgraçado kakodaimonesteros do que o injuriado é o malfeitor lemos em um dos fragmentos de Demócrito o grande adversário de Parmenides que provavelmente por esta mesma razão nunca é mencionado por Platão123 A coincidência parece notável porque Demócrito ao contrário de Sócrates não estava particularmente interessado em assuntos humanos mas parece antes ter estado bastante interessado na experiência do pensamento Chega a parecer que aquilo que somos tentados a compreender como uma proposição puramente moral na verdade tem origem na experiência do pensar enquanto tal E isto nos leva à segunda afirmação que é de fato o prérequisito para a primeira Ela também é altamente paradoxal Sócrates afirma ser um e por isso mesmo não querer correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo Mas nada do que é idêntico a si mesmo verdadeira e absolutamente Um assim como A é A pode estar em harmonia ou desarmonia consigo mesmo no mínimo dois tons sempre são necessários para produzir um som harmonioso Certamente quando apareço e sou visto pelos outros sou um de outro modo seria irreconhecível E enquanto estou junto a outras pessoas pouco consciente de mim mesmo sou tal como apareço para os outros Chamamos de consciência literalmente conhecer comigo mesmo como vimos o fato curioso de que em certo sentido eu também sou para mim mesmo embora quase não apareça para mim o que indica que o sendo um socrático não é tão pouco problemático como parece eu não sou apenas para os outros mas também para mim mesmo e nesse último caso claramente eu não sou apenas um Uma diferença se instala na minha Unicidade Conhecemos essa diferença sob outros aspectos Tudo o que existe em meio a uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é em sua identidade mas também é diferente de outras coisas esse ser diferente pertence à sua própria natureza Quando tentamos apreendêlo em pensamento querendo definilo devemos levar em conta essa alteridade altereitas ou diferença Quando dizemos o que uma coisa é temos que dizer o que ela não é sob pena de falarmos apenas por tautologias toda determinação é uma negação como diz Espinoza Há uma curiosa passagem do Sofista de Platão para a qual Heidegger chamou a atenção e que trata do problema da identidade e da diferença O Estrangeiro afirma que no diálogo de duas coisas por exemplo repouso e movimento cada uma é diferente da outra mas para si mesma é a mesma hekaston heauto tauton2i Ao interpretar a sentença Heidegger dá ênfase ao dativo heauto pois Platão não diz como seria de se esperar hekaston auto tauton cada uma em si tomada fora de contexto é a mesma coisa no sentido tautológico em que A é A onde a diferença surge da pluralidade de coisas Segundo Heidegger esse dativo significa que cada coisa é restituída a si mesma cada uma em si é a mesma para si porque ela é consigo mesma A mesmidade implica a relação de com isto é uma mediação uma conexão uma síntese a unificação em uma unidade125 A passagem examinada por Heidegger localizase na parte final do Sofista sobre a koinonia a comunidade a qualidade que as idéias têm de ajustaremse e misturaremse umas às outras e especialmente sobre a possível comunidade de Diferença e Identidade que parecem ser contrárias O diferente é sempre dito com referência a outras coisas pros alia121 mas seus contrários as coisas que são o que são em si mesmas kathhauta participam da Idéia da diferença à medida que se referem de novo a si mesmas Elas são as mesmas para si ou consigo mesmas de tal forma que cada eidos é diferente do resto não em virtude da sua própria natureza mas porque participa do caráter da Diferença127 isto é não porque tenha uma relação com outra coisa da qual ele é diferente pros ti mas porque ele existe em meio a uma pluralidade de Idéias e todo ente enquanto ente encena a possibilidade de ser considerado diferente de alguma coisa128 Em nossos termos onde quer que haja uma pluralidade de seres vivos de coisas de idéias há diferença e essa diferença não vem do lado de fora mas é inerente a cada ente sob a forma da dualidade da qual surge a unidade como unificação Esta construção a implicação de Platão bem como a interpretação de Heideggerpareceme errônea Ti rar uma simples coisa do seu contexto do meio das outras coisas e olhála apenas na sua relação consigo mesma kathhauto isto é na sua identidade não revela nenhuma diferença nenhuma alteridade quando elaperde a relação com algo que ela não é perde também a própria realidade e adquire um bizarro caráter de fantasmagoria É o que ocorre freqüentemente nas obras de arte especialmente nos trechos em prosa do primeiro Kafka ou em algumas pinturas de Van Gogh onde um objeto singular uma cadeira ou um par de sapatos é representado Mas essas obras de arte são coisaspensamento e o que lhes confere o seu significado como se elas não fossem apenas elas mesmas mas para elas mesmas é precisamente a transformação sofrida quando o pensamento delas se apropriou Em outras palavras é a experiência do ego pensante que está sendo transferida para as coisas Pois nada pode ao mesmo tempo ser em si e para si mesmo senão o doisemum que Sócrates descobriu ser a essência do pensamento e que Platão traduziu em linguagem conceituai como o diálogo sem som eme emauto de mim comigo mesmo129 Mas novamente não é a atividade de pensar que constitui a unidade que unifica o doisem um ao contrário o doisemum tomase novamente Um quando o mundo exterior impõese ao pensador e interrompe bruscamente o processo do pensamento Quando o pensador é chamado de volta ao mundo das aparências onde ele sempre é Um é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse violentamente voltando de novo à unidade Existencialmente falando o pensamento é um estarsó mas não é solidão o estarsó é a situação em que me faço companhia A solidão ocorre quando estou sozinho mas incapaz de dividirme no doisemum incapaz de fazerme companhia quando como Jaspers dizia eu falto a mim mesmo ici bleibe mir aus ou em outras palavras quando sou um e sem companhia O fato de que o estarsó enquanto dura a atividade de pensar transforma a mera consciência de si que provavelmente compartilhamos com os animais superiores em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta e quem responde O pensamento pode se tomar dialético e crítico porque ele se submete a esse processo de perguntas e respostas ao diálogo do dialegesthai o qual é na verdade uma viagem através das palavras poreuesthai dia ton logon30 em que constantemente levantamos a pergunta socrática básica o que você entende por 1 Só que este legein este dizer é sem som e portanto é tão rápido que sua estrutura dialógica tomase um tanto difícil de detectar O critério do diálogo espiritual não é mais a verdade que exigiría respostas para as perguntas que me coloco esteja ela sob a forma da Intuição que compele com a força da evidência sensorial ou sob a forma das conclusões necessárias de um cálculo de conseqüências como o raciocínio matemático ou lógico cuja força de coerção repousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural O único critério de pensamento socrático é a conformidade o ser consistente consigo mesmo homologein autos heauto3 O seu oposto o estar em contradição consigo mesmo enantia legein autos heauto33 de fato significa tomarse seu próprio adversário Eis porque Aristóteles em sua primeira formulação do famoso princípio da nãocontradição afirma explicitamente que ele é um axioma temos que acreditar nele porque ele não se dirige à palavra externa exo logos isto é à palavra falada e endereçada a outra pessoa amiga ou adversária mas ao discurso interno à alma e embora possamos sempre levantar objeções contra a palavra externa nem sempre podemos fazêlo contra o discurso interior porque o parceiro é a própria pessoa e é impossível que eu queira tomarme meu próprio adversário133 Podemos observar neste caso como um insight feito a partir da experiência factual do ego pensante perdese quando é generalizado em uma doutrina filosófica como A não pode ser B e A sob as mesmas condições e ao mesmo tempo uma transformação realizada pelo próprio Aristóteles quando discute o mesmo assunto em sua Metafísica Uma leitura minuciosa do Organon do Instrumento nome dado a partir do século VI dC ao conjunto dos primeiros tratados lógicos de Aristóteles mostra claramente que o que hoje chamamos lógica não era originalmente compreendido como um instrumento do pensamento do diálogo interior empreendido dentro da alma Ao contrário lógica designa a ciência de falar e argumentar corretamente quando estamos tentando convencer os outros ou explicar o que afirmamos partindo sempre como Sócrates de premissas mais fáceis de serem aceitas pela maioria dos homens ou pela maioria dos considerados geralmente como os mais sábios entre estes O axioma da nãocontradição nos primeiros tratados apenas decisivos para o diálogo interno do pensamento ainda não tinha sido estabelecido como a regra mais básica para o discurso em geral Só depois que esse caso particular tomouse o exemplo condutor para todo pensamento é que Kant que na Antropologia tinha definido pensar como conversar consigo mesmo e portanto também escutar interiormente135 pôde relacionar a prescrição de pensar sempre consistentemente e de acordo consigo mesmo OJederzeit mit sich selbst einstimmig denken entre as máximas que devem ser consideradas mandamentos imutáveis para a classe dos pensadores136 Em poucas palavras a realização especificamente humana da consciência no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas são também as mesmas condições da existência do ego mental do homem já que ele só existe na dualidade E esse ego o eusoueu faz a experiência da diferença na identidade precisamente quando ele não está relacionado às coisas que aparecem mas apenas a si mesmo Essa dualidade original aliás explica a futilidade da busca de identidade tão em voga Nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida se nunca ficássemos a sós e nunca tentássemos pensar Sem aquela lição original a afirmação de Sócrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparências é Um não teria sentido A consciência não é o mesmo que o pensamento os atos de consciência têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos intencionais e portanto cognitivos ao passo que o ego pensante não pensa alguma coisa mas sobre alguma coisa e este ato é dialético ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso Sem a consciência no sentido da consciência de si mesmo o pensamento seria impossível O que o pensamento toma real no meio desse processo infinito é a diferença na consciência diferença dada como um simples fato bruto factum brutumf é apenas sob essa forma humanizada que a consciência tomase a característica notória de um homem e não de um deus ou de um animal Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele o doisem um socrático cura o estar só do pensamento sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra Para Sócrates a dualidade do doisemum significava apenas que quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os parceiros do diálogo estejam em bons termos para que eles sejam amigos O parceiro que desperta novamente quando estamos alertas e sós é o único do qual nunca podemos nos livrar exceto parando de pensar E melhor sofrer uma injustiça do que cometêla quem gostaria de ser amigo e ter que conviver com um assassino Nem mesmo outro assassino No fundo é a essa consideração bastante simples sobre a importância do acordo de uma pessoa consigo mesma que o Imperativo Categórico de Kant recorre Subjacente ao imperativo aja apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo querer que ela se tome uma lei universal está a ordem não se contradiga137 Um assassino ou um ladrão não podem querer que mandamentos como tu matarás ou tu roubarás se tomem leis válidas para todos já que eles temem evidentemente pela própria vida e pela propriedade Quem abre uma exceção para si mesmo se contradiz Em um dos diálogos contestados o Hípias Maior que pode ainda assim oferecer um testemunho autêntico sobre Sócrates mesmo que não tenha sido escrito por Platão Sócrates descreve essa situação de maneira simples e precisa no fim do diálogo Na hora de voltar para casa Sócrates diz a Hípias como ditosamente afortunado era ele que tinha se revelado um parceiro singularmente estúpido em comparação com o pobre Sócrates que é aguardado em casa por um sujeito muito irritante que vive a interrogálo Ele é meu parente próximo e vive na mesma casa No momento em que esse sujeito ouvir Sócrates concordar com as opiniões de Hípias ele perguntará se Sócrates não se envergonha de discorrer sobre um belo modo de vida quando a série de interrogações já evidencia que ele sequer conhece o significado da palavra beleza13S Quando Hípias volta para casa ele permanece um pois embora viva só não busca fazerse companhia Não é certamente que ele perca a consciência só que ele não costuma exercitála Quando Sócrates vai para casa ele não está solitário está junto a si mesmo Evidentemente Sócrates tem que entrar em alguma espécie de acordo com o sujeito que o espera já que eles vivem sob o mesmo teto E melhor se desaver com o mundo todo do que com aquela única pessoa com quem se é forçado a viver após terse despedido de todas as companhias O que Sócrates descobriu é que podemos ter interação conosco mesmos bem como com os outros e os dois tipos de interação estão de alguma maneira relacionados Aristóteles falando da amizade observou o amigo é um outro eu139 Isso significa podese com ele empreender o diálogo de pensamento como se faz consigo mesmo A observação faz parte da tradição socrática mas Sócrates diria também o eu é uma espécie de amigo A experiência condutora nesses assuntos é evidentemente a amizade e não a individualidade antes de conversar comigo mesmo converso com os outros examinando qualquer que seja o assunto da conversa e então descubro que eu posso conduzir um diálogo não apenas com os outros mas também comigo mesmo No entanto o ponto em comum é que o diálogo do pensamento só pode ser levado adiante entre amigos e seu critério básico sua lei suprema diz não se contradiga É característico das pessoas moralmente baixas estarem em discordância consigo mesmas diapherontai heautois e dos homens maus evitar a própria companhia sua alma se rebela contra si mesma stasiazei11 Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a alma não está em harmonia mas em guerra consigo mesma É este o diálogo que se subentende quando Ricardo III de Shakespeare está só What do I fear Myself Theres none else by Richard loves Richard that is I am I Is there a murderer here No Yes I am Then fly what from myself Great reason why Lest I revenge What myself upon myself Alack I love myself Wherefore For any good That I myself have done unto my self Oh no alas I rather hate myself For rateful deeds committed by myself I am a villain Yet I lie I am not Fool of thyself speak well fool do not flatter 1 No entanto as coisas mudam depois de meianoite e Ricardo escapa da própria companhia para juntarse a seus pares Então Conscience is but a word that cowards use Devisd at first to keep the strong in awe 2 Até o próprio Sócrates tão apaixonado pela praça pública tem que voltar para casa onde estará só para encontrar o outro indivíduo Chamei a atenção para a passagem do Hípias Maior em sua absoluta simplicidade porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar sob o risco de simplificar em demasiaassuntos difíceis e que portanto sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados Épocas posteriores deram ao sujeito que espera Sócrates em casa o nome de consciência moral Perante o tribunal para adotar a linguagem kantiana temos que comparecer e explicarnos E escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare embora use a palavra consciência moral não a usa aqui no sentido costumeiro Muito tempo se passou antes que a língua separasse a palavra consciência consciousness da consciência moral conscience e em algumas línguas como o francês essa separação nunca foi feita A consciência moral tal como a entendemos em assuntos morais ou legais está supostamente sempre presente em nós assim como a mera consciência E essa consciência moral supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender antes de se tornar o lumen naturale ou a razão prática de Kant ela era a voz de Deus Ao contrário dessa consciência sempre presente o sujeito de quem Sócrates fala foi deixado em casa ele o teme do mesmo modo como os assassinos de Ricardo III temem a consciência moral como algo ausente Aqui a consciência moral aparece como um repensar despertada ou por um crime no caso do próprio Ricardo ou por opiniões não submetidas a exame como no caso de Sócrates Ela pode também ser o medo antecipado de tais atos de repensar como no caso dos assassinos contratados de Ricardo Essa consciência moral diferentemente da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale não oferece nenhuma prescrição positiva mesmo o daimon a voz divina ouvida por Sócrates só lhe diz o que não fazer nas palavras de Shakespeare ela deixa um homem repleto de embaraços O que faz um homem temêla é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa O assassino de Shakespeare diz todo homem que pretende viver bem se esforça por viver sem ela Isso é fácil de conseguir pois tudo o que ele tem a fazer é nunca iniciar o diálogo isolado e sem som a que chamamos de pensar nunca voltar para casa e examinar as coisas Não se trata aqui de perversidade ou bondade como também não se trata de inteligência ou estupidez Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa na qual examinamos o que dizemos e fazemos não se importa em contradizerse e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz nem se importará em cometer um crime já que pode estar certa de esquecêlo no momento seguinte As pessoas más não obstante a opinião em contrário de Aristóteles não são cheias de remorsos O pensamento em seu sentido nãocognitivo e nãoespecializado como uma necessidade natural da vida humana como a realização da diferença dada na consciência não é umaprerrogativa de poucos mas uma f acuidade sempre presente em todo mundo do mesmo modo a inabilidade de pensar não é uma imperfeição daqueles muitos a quem falta inteligência mas uma possibilidade sempre presente para todos incluindo aí os cientistas os eruditos e outros especialistas em tarefas do espírito Todos podemos vir a nos esquivar daquela interação conosco mesmos cuja possibilidade concreta e cuja importância Sócrates foi o primeiro a descobrir O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo E uma vez que a vida é um processo sua quintessência só pode residir no processo real do pensamento e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos específicos Uma vida sem pensamento é totalmente possível mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência ela não é apenas sem sentido ela não é totalmente viva Homens que não pensam são como sonâmbulos Para o ego pensante e para sua experiência a consciência moral que deixa o homem cheio de embaraços é um efeito colateral acessório Não importa em que séries de pensamentos o ego pensante se engage para o eu que nós todos somos importa cuidar de não fazer nada que tome impossível para os doisemum serem amigos e viverem em harmonia E isto o que Espinoza entende por aquiescência do próprio eu acquiescentia in seipso ela pode brotar da razão raciocínio e este contentamento é a maior alegria possível141 Seu critério de ação não será o das regras usuais reconhecidas pelas multidões e acordadas pela sociedade mas a possibilidade de eu viver ou não em paz comigo mesmo quando chegar a hora de pensar sobre meus atos e palavras A consciência moral é a antecipação do sujeito que aguarda quando eu voltar para casa Esse efeito moral colateral é para o pensador um tanto marginal E o pensamento como tal traz bem poucos benefícios à sociedade muito menores do que a sede de conhecimento que usa o pensamento como um instrumento para outros fins Ele não cria valores ele não encontrará o que é o bem de uma vez por todas ele não confirma regras de conduta ao contrário dissolveas E ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência A consideração de que eu tenho que poder conviver comigo mesmo não tem nenhum aspecto político exceto em situações limite Esta expressão foi cunhada por Jaspers para designar a condição humana geral e imutável não posso viver sem ter que lutar e sofrer não posso evitar a culpa tenho que morrer um dia para indicar a experiência de algo imanente que já oferece um vislumbre de transcendência e que quando a ela correspondemos tornarmonos a Existenz que potencialmente somos142 Em Jaspers a expressão ganha plausibilidade sugestiva menos das experiências específicas do que do simples fato de que a própria vida limitada pelo nascimento e pela morte é um caso limite no sentido de que a minha existência mundana sempre força a que eu me dê conta do passado quando eu ainda não era e de um futuro quando não mais serei O ponto é que sempre que transcendo os limites do próprio tempo de vida e começo a refletir sobre esse passado julgandoo e sobre esse futuro formando projetos da vontade o pensamento deixa de ser uma atividade politicamente marginal E tais reflexões surgem inevitavelmente em emergências políticas Quando todos estão deixandose levar impensadamente pelo que os outros fazem e por aquilo em que crêem aqueles que pensam são forçados a mostrarse pois a sua recusa em aderir tomase patente e tomase portanto um tipo de ação Em tais emergências resulta que o componente depurador do pensamento a maiêutica de Sócrates que traz à tona as implicações das opiniões nãoexaminadas e portanto as destrói valores doutrinas teorias e até mesmo convicções é necessariamente político Pois essa destruição tem um efeito liberador sobre outra faculdade a faculdade do juízo que podemos chamar com alguma propriedade de a mais política das capacidades espirituais humanas E a faculdade que julga particulares sem subsumilos a regras gerais que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tomem hábitos capazes de serem substituídos por outros hábitos e regras A faculdade de julgar particulares tal como foi revelada por Kant a habilidade de dizer isto é errado isto é belo e por aí afora não é igual à faculdade de pensar O pensamento lida com invisíveis com representações de coisas que estão ausentes O juízo sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos Mas as duas faculdades estão interrelacionadas do mesmo modo como a consciência moral e a consciência Se o pensamento o doisemum do diálogo sem som realiza a diferença inerente à nossa identidade tal como é dada à consciência resultando assim na consciência moral como seu derivado então o juízo o derivado do efeito liberador do pensamento realiza o próprio pensamento tomandoo manifesto no mundo das aparências onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento é a habilidade de distinguir o certo do errado o belo do feio E isso nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa pode sem dúvida prevenir catástrofes ao menos para o eu Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum Vou me aproximando do fim dessas considerações na esperança de que nenhum leitor esteja na expectativa de um sumário conclusivo Esforçarme neste sentido estaria em flagrante contradição com o que aqui foi descrito Se o pensamento é uma atividade que tem seu fim em si mesma e se a única metáfora da nossa experiência sensorial comum que a ele se adequa é a sensação de estar vivo disso resulta que todas as perguntas sobre o objetivo ou propósito do pensamento são tão irrespondíveis quanto as perguntas sobre o objetivo ou propósito da vida Estou levantando a questão onde estamos quando pensamos ao fim da nossa investigação não porque a sua resposta pudesse ser conclusiva mas porque a própria pergunta e as considerações a que ela dá lugar só podem fazer sentido diante do conjunto dessa abordagem Como o que vem a seguir apóiase fundamentalmente em minhas reflexões anteriores eu as resumirei brevemente no que podem parecer mas não são proposições dogmáticas Em primeiro lugar o pensamento está sempre fora de ordem interrompendo todas as atividades ordinárias e sendo por elas interrompido A melhor ilustração disso pode ser ainda como conta a velha história o hábito socrático de subitamente voltar seu espírito para si mesmo deixando de lado toda companhia permanecendo onde se está surdo a todas as súplicas para que se retorne ao que se vinha até então fazendo1 Xepofonte relata como permaneceu vinte e quatro horas em completa imobilidade em um campo de batalha mergulhado em pensamentos como diriamos Em segundo lugar as manifestações das experiências autênticas do ego pensante são múltiplas Entre elas encontramse as falácias metafísicas como a teoria dos dois mundos e as ainda mais interessantes descrições nãoteóricas do pensamento como uma espécie de morrer ou inversamente a noção de que enquanto pensamos somos membros de um outro mundo numênico que se nos insinua mesmo na obscuridade do aquieagora real ou ainda a definição de Aristóteles do bias theoretikos como um bios xenikos como a vida do estrangeiro As mesmas experiências refletemse na dúvida cartesiana sobre a realidade do mundo no às vezes sou às vezes penso de Valéry como se ser real e pensar fossem opostos nas palavras de MerleauPonty Só estamos realmente sós quando não o sabemos é essa ignorância mesma que é o nosso estarsó o do filósofo2 E bem verdade que o ego pensante quaisquer que sejam as suas realizações jamais poderá alcançar a realidade enquanto tal ou convencer a si mesmo de que algo realmente existe e de que a vida a vida humana é mais do que um sonho A suspeita de que a vida seja apenas um sonho é evidentemente um dos traços mais característicos da filosofia asiática inúmeros exemplos podem ser tirados da filosofia indiana Escolhi um exemplo chinês bastante eloqüente por sua concisão Ele conta uma história sobre o filósofo taoísta isto é anticonfuciano Chuang Chou Ele uma vez sonhou que era uma borboleta esvoaçando alegremente de um lado para o outro satisfeita consigo mesma fazendo o que lhe aprazia Ele não sabia que era Chuang Chou Subitamente despertou e lá estava sólida e inequivocamente Chuang Chou Mas ele não sabia se Chuang Chou tinha sonhado ser uma borboleta ou se uma borboleta estava sonhando ser Chuang Chou Entre Chuang Chou e uma borboleta deve haver alguma distinção3 A intensidade da experiência do pensamento por outro lado manifestase na facilidade com que a oposição entre pensamento e realidade pode ser invertida de tal modo que apenas o pensamento parece ser real enquanto tudo o que simplesmente é parece ser tão transitório que é como se não fosse o que é pensado é e o que é é apenas à medida que é pensado Was gedacht ist ist und was ist ist nur insofern es Gedanke isffi O ponto decisivo contudo é que todas essas dúvidas desaparecem assim que o estarsó do pensador é interrompido e o chamado do mundo exterior e dos seus semelhantes transforma de novo a dualidade do doisemum em uma unidade A idéia de que tudo aquilo que é poderia bem ser um sonho ou é o pesadelo que surge da experiência do pensamento ou o consolo para o qual se apela não quando eu me retirei do mundo mas quando o mundo se retirou e tomouse irreal Em terceiro lugar estas curiosas características ligadas à atividade de pensar surgem da retirada inerente a todas as atividades do espírito o pensamento sempre lida com ausências e abandona o que está presente e ao alcance da mão Isso evidentemente não prova a existência de um mundo diferente daquele do qual fazemos parte na vida cotidiana mas quer dizer que a realidade e a existência que só podemos conceber em termos espaço temporais podem ser temporariamente suspensas Elas podem ser despojadas de seu peso e deste modo também do seu significado para o ego pensante Durante a atividade de pensar o que se toma significativo são extratos produtos da dessensorialização e tais extratos não são meros conceitos abstratos eles eram outrora chamados de essências As essências não podem ser localizadas O pensamento humano ao apossarse delas deixa o mundo dos particulares e dá início à busca de algo significativo de uma maneira geral embora não necessariamente universalmente válido O pensamento sempre generaliza comprime os muitos particulares os quais graças ao processo dessensorializante ele pode compactar para uma rápida manipulação para encontrar o significado que possam ter A generalização é inerente a todo pensamento mesmo que este ou aquele pensamento insista na primazia universal do particular Em outras palavras o essencial é o que se aplica em toda parte e esse em toda parte que confere ao pensamento seu peso específico é espacialmente falando um lugar nenhum O ego pensante movendose entre universais e essências invisíveis não se encontra em sentido estrito em lugar algum Ele não tem lar no sentido forte da expressão o que talvez explique o surgimento precoce de um espírito cosmopolita entre os filósofos O único grande filósofo ao que eu saiba explicitamente cônscio desta condição de não ter lar como própria à atividade de pensar foi Aristóteles talvez porque conhecesse e declarasse tão bem a diferença entre ação e pensamento a distinção decisiva entre o modo de vida filosófico e o político e tirando a óbvia conclusão se recusasse a compartilhar da sina de Sócrates e a deixar os atenienses pecarem duas vezes contra a filosofia Quando uma acusação de impiedade foi contra ele lançada deixou Atenas e retirouse para Khalkis um baluarte sob a influência macedônia5 Entre as vantagens do modo de vida do filósofo ele relacionava a de não ter um lar como declarou no Protreptikos uma das obras de juventude ainda bem conhecida na Antigüidade mas que só chegou até nós em fragmentos Nela Aristóteles louvava o bios theoretikos porque ele não precisa de quaisquer implementos ou lugares especiais para se realizar em qualquer lugar da terra onde alguém se devota ao pensamento ele atingirá a verdade onde quer que esteja como se ela estivesse presente Os filósofos amam esse lugar nenhum como se fosse um país philochoreiri e desejam abandonar todas as atividades em favor do scholazein o não fazer nada como nós diriamos em vista da doçura inerente ao próprio pensar ou filosofar6 A razão para essa abençoada independência é que a filosofia a cognição kata logon não se ocupa com particulares nem com coisas dadas aos sentidos mas com universais kathholou com coisas que não podem ser localizadas7 Seria um grande erro procurar tais universais em assuntos políticopráticos em que sempre se trata de particulares Nesse domínio as afirmações gerais aplicáveis igualmente em toda parte se degeneram imediatamente em generalidades vazias A ação se exerce sobre particulares e apenas afirmações particulares podem ser válidas no campo da ética ou da política8 Em outras palavras quando perguntávamos pelo lugar do ego pensante podíamos bem estar colocando uma pergunta errada e imprópria O em toda parte do ego pensante chamando à sua presença de qualquer ponto do tempo ou do espaço tudo o que lhe apraz com velocidade maior do que a da luz considerado da perspectiva do mundo cotidiano das aparências é um lugar nenhum E uma vez que este lugar nenhum não é de modo algum idêntico ao duplo lugar nenhum de onde subitamente aparecemos ao nascer e no qual quase tão subitamente desaparecemos ao morrer ele só pode ser concebido como o Vazio E o vazio absoluto pode ser um conceito limite embora não inconcebível ele é impensável Obviamente se não existe absolutamente nada nada há sobre o que pensar O fato de que tenhamos estes conceitoslimites que encerram nosso pensamento dentro de muros intransponíveis entre eles as noções de começo e fim absoluto nos diz apenas que somos realmente seres finitos Supor que essas limitações pudessem servir para demarcar uma região onde o ego pensante pudesse ser localizado seria apenas dar uma outra variante para a teoria dos dois mundos A finitude humana irrevogavelmente determinada por nosso curto tempo de vida compreendido em uma infinidade de tempo que se estende para o passado e para o futuro constitui por assim dizer a infra estrutura de todas as atividades do espírito A finitude manifestase como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está côncio mesmo quando o ego pensante retirouse do mundo das aparências e perdeu o sentido de realidade realness inerente ao sensus communis que nos orienta nesse mundo Dito de outra maneira a observação de Valéry quando pensamos não somos estaria correta se nosso sentido de realidade realness fosse inteiramente determinado por nossa existência espacial O emtodaparte do pensamento é de fato uma região do lugar nenhum Mas nós não existimos apenas no espaço existimos também no tempo lembrando coletando e recolhendo o que não está mais presente fora do ventre da memória Santo Agostinho antecipando e planejando na forma da vontade o que ainda não é Talvez a pergunta onde estamos quando pensamos estivesse errada porque ao perguntar pelo topos dessa atividade nós estivéssemos orientados exclusivamente pelo sentido espacial como se tivéssemos esquecido o famoso insight de Kant de que o tempo nada mais é do que a forma do sentido interno isto é da intuição de nós mesmos e de nosso estado interno Para Kant isso significa que o tempo nada tem a ver com as aparências enquanto tais nem com a figura nem com a posição como estão dadas aos nossos sentidos mas apenas com as aparências enquanto afetam nosso estado interno no qual o tempo determina a relação das representações9 E essas representações através das quais tomamos presente o que fenomenicamente está ausente são sem dúvida coisaspensamento isto é experiências ou noções sobre as quais se efetuou uma operação de desmaterialização Através dela o espírito espera preparar seus próprios objetos e ao generalizálos privaos igualmente de suas propriedades espaciais O tempo determina o modo como essas representações estão relacionadas umas às outras forçandoas a entrar em uma sequência e esta seqüência é o que chamamos seqüências de pensamentos Todo pensamento é discursivo e à medida que acompanha uma seqüência de pensamento poderia ser descrito por analogia como uma linha avançando na direção do infinito o que corresponde ao modo como usualmente representamos para nós mesmos a natureza seqüencial do tempo Mas para criar uma tal linha de pensamento precisamos transformar a justaposição na qual as experiências nos são dadas em umawmcvvúo de palavras proferidas sem som o único meio que podemos usar para pensar oque significa que nós não apenas dessensorializamos mas também desespacializamos a experiência original 20 A lacuna entre passado e futuro o nunc stans Na esperança de descobrir onde o ego pensante está temporalmente situado e se a sua incansável atividade pode ser temporalmente determinada recorrerei a uma parábola da Kafka que em minha opinião trata especificamente desse tema A parábola faz parte de uma coleção de aforismos intitulada ELE10 Ele tem dois antagonistas o primeiro empurrao de trás a partir da origem O segundo veda o caminho à frente Ele luta com ambos Na verdade o primeiro lhe dá apoio na luta contra o segundo pois ele quer empurrálo para frente e da mesma forma o segundo apóiao na luta contra o primeiro pois ele empurrao para trás Mas isso é assim apenas teoricamente Pois não são somente os dois antagonistas que estão lá mas também ele e quem conhece realmente suas intenções Todavia o seu sonho é que em um momento de desatenção e isto é preciso admitir exigiría uma noite tão escura como nenhuma já foi ele pulasse para fora da linha de batalha e graças à sua experiência em lutar fosse promovido à posição de árbitro da luta de seus adversários entre si Para mim essa parábola descreve a sensação temporal do ego pensante Ela analisa poeticamente nosso estado interno em relação ao tempo do qual nos damos conta quando nos retiramos das aparências e encontramos nossas atividades espirituais voltandose de modo característico sobre si mesmas cogito me cogitares volo me velle etc A sensação interna do tempo surge não quando estamos inteiramente absorvidos pelos invisíveis ausentes sobre os quais pensamos mas quando começamos a dirigir nossa atenção para a atividade ela mesma Nessa situação passado e futuro estão igualmente presentes precisamente porque estão igualmente ausentes da nossa percepção Assim o nãomais do passado é transformado graças à metáfora espacial em algo que se encontra atrás de nós e o aindanão do futuro em algo que se aproxima pela frente a palavra alemã Zukunft bem como a francesa avenir significam literalmente o que vem Em Kafka esse cenário é um campo de batalha onde as forças do passado e do futuro chocamse uma contra a outra Entre elas encontramos o homem que Kafka chama Ele que se pretende manter sua posição tem que enfrentar ambas as forças Elas são seus antagonistas elas não são apenas opostas e dificilmente entrariam em luta se ele não estivesse no meio delas opondo resistência Mesmo que tal antagonismo fosse de alguma forma inerente às duas e elas pudessem lutar uma contra a outra sem ele há muito tempo elas já teriam se neutralizado e destruído reciprocamente já que como forças são claramente equipotentes Em outras palavras o continuum a mudança incessante é partida nos tempos passado presente e futuro de modo que o passado e o futuro só se antagonizam sob a forma do nãomais e do aindanão em virtude da presença do homem que tem ele mesmo uma origem seu nascimento e um fim sua morte e portanto encontrase em todos os momentos entre o passado e o futuro esse intervalo chamase presente E a inserção do homem com seu limitado período de vida que transforma em tempo tal como o conhecemos o fluxo contínuo da pura mudança um fluxo que podemos conceber tanto ciclicamente quanto como movimento linear sem jamais poder conceber um começo ou um fim absolutos A parábola em que os dois tempos modais passado e futuro são entendidos como forças antagônicas que colidem no Agora presente parecenos bastante estranha A extrema parcimônia da linguagem kafkiana que em consideração ao realismo da fábula elimina toda realidade factual que pudesse engendrar o mundo do pensamento pode fazêla soar ainda mais estranha do que exigiría o próprio pensamento que ela contém Assim utilizarei uma história de Nietzsche escrita no estilo pesadamente alegórico de Assim falou Zaratustra e curiosamente aparentada com esse pensamento Essa história é muito mais fácil de ser compreendida porque conta simplesmente como diz o título uma Visão ou um Enigma11 A alegoria começa com a chegada de Zaratustra a um pórtico O pórtico como qualquer outro tem uma entrada e uma saída ou seja pode ser visto como o ponto de encontro entre os dois caminhos Dois caminhos aqui encontramse ninguém ainda os seguiu até o fim Esse longo caminho estendese uma eternidade para trás E o outro longo caminho adiante é outra eternidade Eles se contradizem estes caminhos e se afrontam e é aqui ao pé desse pórtico que eles se encontram O nome do pórtico está escrito lá em cima Agora Augenblick Observem esse Agora Para trás desse pórtico estendese um caminho longo e eterno atrás de nós jaz uma eternidade e outro caminho conduz adiante para um eterno futuro Heidegger que interpreta essa passagem em seu Nietzsche2 observa que este não é o ponto de vista do espectador mas apenas daquele que está sob o pórtico para aquele que observa o tempo passa da maneira como habitualmente o pensamos como uma sucessão de agoras em que uma coisa sempre sucede a outra Não há aí ponto de encontro não há dois caminhos ou duas estradas só uma A colisão se produz apenas para aquele que é ele mesmo o agora Quem está no agora voltase para as duas direções para ele Passado e Futuro correm um contra o outro E resumindo no contexto da doutrina do Eterno Retomo de Nietzsche Heidegger diz este é o autêntico conteúdo da doutrina do Eterno Retomo isto é que a Eternidade é no Agora que o Momento não é o Agora fútii que é apenas para o observador mas a colisão de Passado e Futuro Encontramos o mesmo pensamento em Blake Segura o infinito na palma da sua mão E a eternidade em uma hora Para voltar a Kafka é preciso lembrar que nenhum desses exemplos tematiza uma doutrina ou teoria mas pensamentos ligados às experiências do ego pensante Vista da perspectiva de um fluxo etemo e constante a inserção do homem lutando em ambas as direções produz uma ruptura que por ser defendida em duas direções abre uma lacuna o presente definido como um campo de batalha Esse campo de batalha é para Kafka uma metáfora do lar do homem sobre a Terra Visto da perspectiva do homem a cada momento capturado e encerrado entre seu passado e seu futuro onde passado e futuro dirigemse àquele que está criando o seu presente o campo de batalha é um intervalo um Agora prolongado onde ele passa sua vida O presente que na vida cotidiana é o mais fútii e escorregadio dos tempos modais quando eu digo agora e o aponto ele já não é mais é apenas o choque entre o passado que não é mais e o futuro que vem se aproximando e no entanto ainda não é O homem vive nesse intervalo e o que ele chama de presente é uma luta que dura toda a vida contra o peso morto do passado que o impulsiona com a esperança e contra o medo do futuro cuja única certeza é a morte que o empurra para trás para a serenidade do passado com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza O fato de que essa imagem do tempo seja totalmente distinta da seqüência temporal da vida cotidiana onde os três tempos se sucedem sem rupturas e o próprio tempo pode ser entendido fazendose uma analogia com a seqüência numérica fixada pelo calendário de acordo com a qual o presente é hoje o passado começa ontem e o futuro amanhã não deveria nos assustar em demasia Aqui também o presente está rodeado pelo passado e pelo futuro à medida que ele permanece o ponto fixo a partir do qual nos orientamos olhamos para trás ou para frente Devemos não ao próprio tempo mas à continuidade de nossas ocupações e atividades no mundo e ao fato de que continuamos o que ontem começamos e que esperamos terminar amanhã a possibilidade de dar ao fluxo eterno da pura mudança a forma de um continuum temporal Em outras palavras o continuum do tempo depende da continuidade de nossa vida cotidiana e o conjunto das ocupações que formam a vida cotidiana é sempre espacialmente condicionado e determinado ao contrário da atividade do ego pensante sempre independente das circunstâncias espaciais que o cercam Graças a essa penetrante especialidade da nossa vida cotidiana é que podemos falar com plausibilidade do tempo usando categorias espaciais é que o passado pode aparecer como algo que se encontra atrás de nós e o futuro como algo que se encontra à frente A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas mas apenas ao ego pensante à medida que ele se retirou da rotina diária A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão cujo tema é aquilo mesmo que está ausente ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu A reflexão traz essas regiões ausentes à presença do espírito dessa perspectiva a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo E apenas porque ele pensa e portanto deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparências que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que ele pode tomar consciência de um nãomais que o empurra para frente e de um aindanão que o empurra para trás O conto de Kafka está evidentemente redigido em linguagem metafórica E suas imagens tiradas da vida cotidiana são tomadas como analogias sem as quais como foi dito os fenômenos do espírito não podem de modo algum ser descritos E isso sempre apresenta dificuldades para a interpretação A dificuldade específica aqui é que o leitor tem que estar consciente de que o ego pensante não é o eu que aparece e se move no mundo recordando o próprio passado biográfico como se ele estivesse à la recherche du temps perdu ou planejando o futuro Porque o ego pensante não tem idade nem localização o passado e o futuro podem tomarse como tais manifestos para ele esvaziados por assim dizer de seu conteúdo concreto e liberados de todas as categorias espaciais O que o ego pensante vê como os seus dois antagonistas são o próprio tempo e a mudança constante que ele implica o movimento inexorável que transforma todo Ser em Devir em vez de deixálo ser destruindo assim incessantemente seu estar presente Como tal o tempo é o maior inimigo do ego pensante porque o tempo pela encarnação do espírito em um corpo cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados regular e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo sem nada fazer Esse significado final da parábola fica claro na sentença conclusiva quando ele situado na lacuna temporal no presente imóvel que é um nunc stans sonha com um movimento de desatenção quando o tempo tenha exaurido as suas forças A calmaria então descería sobre o mundo Não uma eterna calmaria mas apenas o tempo necessário para dar a ele a chance de pular para fora da linha de combate e ser promovido à posição de árbitro juiz e espectador de fora do jogo da vida para quem o significado deste lapso de tempo entre o nascimento e a morte pode ser endereçado porque ele não está envolvido nisso O que são este sonho e esta região senão o velho sonho da metafísica ocidental de Parmênides a Hegel o sonho com uma região fora do tempo uma presença eterna em total quietude completamente além dos calendários e relógios humanos em uma palavra a própria região do pensamento E o que é esta posição de árbitro o desejo que impulsiona o sonho senão o lugar dos espectadores de Pitágoras dos melhores porque não participam da luta pela fama e pelo ganho porque são desinteressados descomprometidos imperturbáveis absorvidos apenas pelo próprio espetáculo São eles que podem encontrar o seu significado e julgar o desempenho Sem violentar muito a magnífica história de Kafka talvez possamos dar um passo adiante O problema com a metáfora de Kafka é que ao pular fora da linha de combate ele pula totalmente fora deste mundo e o julga de fora embora não necessariamente do alto Além disso se é a inserção do homem que interrompe o fluxo indiferente da eterna mudança atribuindo a esse fluxo um objetivo isto é ele mesmo o ser que combate o fluxo e se através dessa inserção o curso indiferente do tempo articulase com o que ficou para trás o passado com o que está adiante o futuro e com o próprio homem o presente em luta então essa presença humana produz um desvio do fluxo temporal com relação a qualquer direção original ou supondose um movimento cíclico com relação a qualquer nãodireção final O desvio parece inevitável porque não se trata apenas de um objeto passivo colocado no meio da corrente carregado por ondas que passam por cima dele mas de um lutador que defende sua própria presença e assim define o que de outro modo poderia serlhe indiferente como seus antagonistas o passado que ele pode enfrentar com a ajuda do futuro o futuro que ele enfrenta apoiado pelo passado Sem ele não havería nenhuma diferença entre passado e futuro mas apenas uma eterna mudança Ou então essas forças bateríam de frente e se aniquilariam mutuamente Mas graças à entrada de uma presença combativa elas formam um ângulo e a imagem correta teria que ser então o que os físicos chamam de paralelogramo de forças A vantagem dessa imagem é que a região do pensamento não teria mais que situarse além e acima do mundo e do tempo humano o lutador não teria mais que pular da linha de combate para encontrar a calmaria e a quietude necessárias para o pensamento Ele reconhecería que sua luta não foi em vão já que o próprio campo de batalha oferece a região onde ele pode descansar quando está exausto Em outras palavras a localização do ego pensante no tempo seria o intervalo entre passado e futuro ou seja o presente agora misterioso e fugidio uma mera lacuna no tempo em direção ao qual não obstante passado e futuro se dirigem à medida que indicam o que não é mais e o que ainda não é O fato de que eles de alguma forma sejam deve se obviamente ao homem que instalou sua presença entre eles Uma vez tendo corrigido a imagem permitamme acompanhar sucintamente as suas implicações Falando em termos ideais a ação das duas forças que formam nosso paralelogramo deveria produzir uma terceira força a diagonal resultante cuja origem seria o ponto em que as duas forças se encontram e sobre o qual elas agem A diagonal permanecería no mesmo plano e não pularia para fora da dimensão das forças que formam o tempo mas diferiría delas sob o aspecto importante As duas forças antagônicas passado e futuro são indefinidas quanto à sua origem Observadas da perspectiva do presente que se encontra no meio delas uma vem de um passado infinito e a outra vai para um futuro infinito Mas embora o começo seja desconhecido elas têm um fim o ponto em que elas se encontram e colidem que é o presente A força diagonal ao contrário tem uma origem definida como o ponto de colisão das duas outras forças mas terminaria no infinito por ser a resultante da ação conjunta de suas forças que têm sua origem no infinito Essa força diagonal cuja origem é conhecida e cuja direção é determinada pelo passado e pelo futuro mas que se exerce na direção de um fim indeterminado como se pudesse estenderse ao infinito pareceme uma metáfora perfeita para a atividade do pensamento Se o ele de Kafka pudesse caminhar sobre essa diagonal perfeitamente eqüidistante das forças prementes do passado e do futuro ele não pularia para fora da linha de batalha como exige a parábola nem acima e além da confusão Pois essa diagonal embora aponte na direção de algum infinito é limitada encerrada por assim dizer pelas forças do passado e do futuro estando assim protegida contra o vazio Ela tem sua raiz no presente e permanece ligada a ele um presente inteiramente humano embora só realizado completamente no processo do pensamento e não durando além dele Ela é a quietude do Agora na existência humana pressionada e agitada pelo tempo Para mudar a metáfora ela é a calmaria que reina no centro do furacão que ainda pertence a ele embora dele seja totalmente diferente Nessa lacuna entre o passado e o futuro encontramos o nosso lugar no tempo quando pensamos isto é quando estamos distantes o suficiente do passado e do futuro Estamos aí em posição de descobrir o seu significado de assumir o lugar do árbitro das múltiplas e incessantes ocupações da existência humana no mundo do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas mas respostas sempre novas à pergunta que está realmente em questão Para evitar malentendidos as imagens que estou usando para indicar metafórica e experimentalmente a localização do pensamento só podem ser válidas no domínio dos fenômenos espirituais Aplicadas ao tempo histórico e biográfico essas metáforas não podem fazer nenhum sentido aí não ocorrem lacunas no tempo E apenas na medida em que pensa e portanto que não é nas palavras de Valéry que o homem um Ele como Kafka tão precisamente o chama e não um alguém na realização total do seu ser concreto vive nessa lacuna entre passado e futuro nesse presente atemporal Embora tenhamos ouvido falar dessa lacuna pela primeira vez como um nunc stans o agora permanente da filosofia medieval tornada modelo e metáfora para a eternidade divina sob a forma do nunc aeternitatis ela não é historicamente datável mas parece ser contemporânea à própria existência do homem sobre a Terra13 Usando uma metáfora diferente podemos chamála a região do espírito mas talvez ela seja muito mais a trilha aberta pelo pensamento a pequena e inconspícua trilha de nãotempo traçada pela atividade de pensar no espaçotempo concedido a homens que nascem e morrem Ao seguir esse caminho as seqüências de pensamento recordação e antecipação salvam tudo aquilo que tocam da ruína do tempo histórico e biográfico Esse pequeno espaço nãotemporal no âmago do tempo ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos não pode ser herdado nem transmitido pela tradição embora cada grande livro de pensamento deixeo entrever e como que o decifracom diz Heráclito a respeito do Oráculo de Delfos notoriamente críptico e indigno de confiança onte legei oute krytei alia semainei ele não diz nem oculta ele insinua Cada nova geração cada novo ser humano quando se toma consciente de estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito tem que descobrir e traçar diligentemente desde o começo a trilha do pensamento E é afinal possível e na minha opinião provável que a estranha sobrevivência das grande obras sua permanência relativa através de milênios devase ao fato de terem nascido na pequena e inconspícua trilha de nãotempo que o pensamento de seus autores percorreu por entre um passado e um futuro infinitos Por terem aceito passado e futuro como dirigidos e apontados por assim dizer para eles mesmos como aquilo que os antecede e os sucede como seu passado e seu futuro eles conquistaram para si mesmos um presente uma espécie de tempo sem tempo no qual os homens podem criar obras atemporais com que transcendam sua própria finitude Essa atemporalidade não é certamente a eternidade ela brota por assim dizer do choque entre passado e futuro ao passo que eternidade é o conceito limite impensável porque assinala o colapso de todas as dimensões temporais A dimensão temporal do nunc stans experimentada na atividade de pensar reúne junto a si os tempos ausentes o aindanão e o nãomais É o que Kant chama dc terra do puro intelecto Land des reinen Verstandes uma ilha encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza e rodeada por um vasto e tempestuoso oceano o mar da vida cotidiana14 E embora não acredite que esta é a terra da verdade ela é certamente o único domínio onde o conjunto de uma vida humana e seu significado de resto inacessível a homens mortais nemo ante mortem beatus esse dici potest cuja existência ao contrário de todas as outras coisas que só começam a ser em sentido enfático quando estão terminadas termina quando não é mais onde esse conjunto inapreensível pode se manifestar como a pura continuidade do eusou uma presença que permanece em meio à transitoriedade sempre mutável do mundo E por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente no mundo das aparências o mais transitório dos tempos tomouse quase um alvo dogmático da especulação filosófica Ao fim dessas reflexões gostaria de chamar a atenção não para o meu método nem para os meus critérios ou ainda pior para os meus valores todos estes numa tal incursão permanecem caridosamente ocultos ao próprio autor embora possam ser ou melhor parecer manifestos ao leitor e ouvinte mas para o que na minha opinião é a pressuposição básica desta investigação Já que me detive nas falácias metafísicas que como vimos contêm indicações importantes sobre essa atividade curiosa e fora de ordem chamada pensamento Em outras palavras junteime claramente às fileiras daqueles que já há algum tempo vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia com todas as suas categorias do modo como as conhecemos desde o seu começo na Grécia até hoje Tal desmontagem só é possível se aceitarmos que o fio da tradição está rompido e que não podemos reatálo Historicamente falando o que de fato se partiu foi a trindade romana que por milhares de anos uniu religião autoridade e tradição A perda dessa trindade não destrói o passado e o processo de desmontagem em si mesmo não é destrutivo ele apenas tira conclusões a respeito de uma perda que é um fato e como tal não mais pertence à história das idéias mas à nossa história política à história do nosso mundo O que se perdeu foi a continuidade do passado tal como ela parecia passar de geração em geração desenvolvendose no processo de sua própria consistência O processo de desmontagem tem sua própria técnica e não pretendí tocar aqui no assunto a não ser perifericamente Aquilo com o que se fica então é ainda o passado mas um passado fragmentado que perdeu sua certeza de julgamento Para ser breve vou citar umas poucas linhas que falam melhor e de modo mais denso do que eu poderia fazêlo Full fathom five thy father lies Of his bones are coral made Those are pearls that were his eyes Nothing of him that doth fade But doth suffer a seachange Into something rich and strange 3 A tempestade Ato I Cena 2 Lidei aqui com estes fragmentos do passado após a transformação marinha por que passaram Devemos à trilha intemporal que o pensamento vai pavimentando no mundo do espaço e do tempo o fato de podermos usar esses fragmentos Se alguns de meus ouvintes ou leitores se dispuserem a tentar a sorte com a técnica de desmontagem que sejam cuidadosos para não destruir o rico e estranho o coral e as pérolas que provavelmente só poderão ser salvos como fragmentos O plunge your hands in water Plunge them in up to the wrist Stare stare in the basin And wonder what youve missed The glacier knocks in the cupboard The desert sighs in the bed And the crack in the teacup opens A lane to the land of the dead 4 W H Auden15 Ou para dizer o mesmo em prosa Alguns livros são imerecidamente esquecidos nenhum é imerecidamente lembrado 6 21 Postscriptum No segundo volume desta obra irei tratar da vontade e do juízo as duas outras atividades do espírito Vistas da perspectiva dessas especulações temporais elas dizem respeito às coisas que estão ausentes seja porque ainda não existem seja porque já não existem mais distintamente da atividade do pensamento no entanto que lida com os invisíveis em toda experiência e tende sempre a generalizar essas atividades lidam sempre com particulares e sob esse aspecto estão bem mais próximas do mundo das aparências Se desejarmos aplacar o nosso senso comum tão inevitavelmente ofendido pela necessidade que a razão tem de sempre avançar em sua busca sem fim de significado é tentador justificar essa necessidade unicamente com base no fato de o pensamento ser uma preparação indispensável na decisão do que será e na avaliação do que não é mais Uma vez que o passado como passado fica sujeito ao nosso juízo este por sua vez seria uma mera preparação para a vontade Esta é inegavelmente a perspectiva legítima dentro de certos limites do homem à medida que ele é um ser que age Mas esta última tentativa de defender a atividade de pensar da acusação que lhe dirigem de não ser prática nem útil não funciona A decisão à que chega a vontade não poderá jamais ser derivada da mecânica do desejo ou das deliberações do intelecto que podem vir a precedêla Ou bem a vontade é um órgão da livre espontaneidade que interrompe cada cadeia causai da motivação que a prende ou bem ela nada mais é que uma ilusão Com relação ao desejo por um lado e à razão por outro a vontade age como uma espécie de coup détat como disse Bergson e isso obviamente significa que os atos livres são excepcionais embora sejamos livres sempre que queremos voltar a nós mesmos raramente acontece de querermos isso grifos nossos17 Em outras palavras é impossível lidar com a atividade volitiva sem tocar no problema da liberdade Proponhome a levar a sério a evidência interna nos termos de Bergson o dado imediato da consciência e de vez que concordo juntamente com vários outros escritores que se ocuparam desse assunto com o fato de que este dado e todos os problemas a ele ligados eram desconhecidos da Antigüidade grega devo aceitar que essa faculdade foi descoberta que podemos datar a descoberta historicamente e que ao fazêlo chegaremos à conclusão de que ela coincide com a descoberta da interioridade humana como uma região especial da nossa vida Em suma proponhome a analisar a faculdade da vontade em termos de sua história Acompanharemos as experiências que os homens tiveram com essa faculdade paradoxal e autocontraditória toda volição produz a suaprópriacontravolição uma vez que se dirige a si mesma através de imperativos começando pela descoberta original da impotência da vontade feita por São Paulo Apóstolo Eu não faço o que quero faço exatamente o que odeio18 Examinaremos a seguir o testemunho que nos foi legado pela Idade Média começando com a compreensão por Agostinho de que não são o espírito e a carne que estão em guerra mas o espírito como vontade consigo mesmo o eu mais profundo do homem consigo mesmo Passaremos então à Era Moderna que com o surgimento da noção de progresso substituiu a antiga primazia filosófica do presente sobre os outros modos temporais pela primazi a do futuro uma força nas palavras de Hegel à que o Agora não pode resistir de modo que o pensamento é compreendido como essencialmente a negação de algo imediatamente presente in der Tat ist das Denken wesentlich die Negation eines unmittelbar Vorhandeneriw Ou nas palavras de Schelling Em últimae máxima instância não háoutro Ser senão a Vontade211uma atitude que encontrou o seu climático e malogrado final na Vontade de Potência de Nietzsche Iremos ao mesmo tempo acompanhar um desenvolvimento paralelo na história da Vontade segundo o qual a volição é a capacidade interna pela qual os homens decidem sempre quem eles vão ser sob que forma desejam se mostrar no mundo das aparências Em outras palavras é a vontade cujo tema é sempre um projeto e não um objeto que cm certo sentido cria a pessoa que pode ser reprovada ou elogiada ou de qualquer modo que pode ser responsabilizada não somente por suas ações mas por todo o seu Ser o seu caráter As noções marxistas e existencialistas que desempenham um papel tão destacado no pensamento do século XX e que fazem crer que o homem é o seu próprio produtor e criador baseiam se nessas experiências embora seja claro que ninguém jamais tenha criado a si mesmo ou produzido a sua existência esta penso eu é a última das falácias metafísicas que corresponde à ênfase que a Era Moderna faz recair sobre a vontade como substituta do pensamento Concluiremos o segundo volume com uma análise da faculdade do juízo Aqui a principal dificuldade será a curiosa escassez de fontes que possam fornecer um testemunho insuspeito Esta faculdade só se tornou um grande tópico de um grande pensador com o advento da Crítica do juízo de Kant Procurarei mostrar que minha hipótese principal ao isolar o juízo como uma capacidade distinta de nossos espíritos foi a de que os juízos não são alcançados por dedução ou por indução em suma eles não têm nada em comum com as operações lógicas como é o caso quando dizemos todos os homens são mortais Sócrates é um homem logo Sócrates é mortal Estaremos à procura do sentido silencioso que quando chegou a ser tratado foi sempre pensado mesmo em Kant como gosto c portanto como pertencente ao campo da estética Nas questões práticas e morais o juízo foi chamado de consciência e a consciência não julgava ela dizia como voz divina de Deus ou da Razão o que fazer o que não fazer e do que se arrepender O que quer que seja a voz da consciência não se pode dizer que ela seja silenciosa e sua validez depende totalmente de uma autoridade que está acima e além de todas as leis e regras meramente humanas Em Kant o juízo emerge como um talento peculiar que somente pode ser praticado e não ensinado O juízo lida com particulares e quando o ego pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares o espírito necessita de um novo dom para lidar com elas Kant acreditava que uma pessoa tacanha ou obtusa pode de fato ser treinada pelo estudo até mesmo chegar ao ponto de se tornar erudita Mas como geralmente ainda falta o exercício do juízo a tais pessoas é comum encontrarse homens cultos que na aplicação do seu conhecimento científico traemse e revelam aquela falta original que jamai s pode ser compensada21 Em Kant é a razão com as suas idéias regulativas que vem em socorro do juízo Mas se a faculdade é uma faculdade do espírito separada das outras então teremos que lhe atribuir o seu próprio modus operandi a sua própria maneira de proceder Isso tem certa relevância para todo um conjunto de problemas que assombra o pensamento moderno e em especial para o problema da teoria e da prática bem como para qualquer tentativa de chegar a uma teoria razoavelmente plausível da ética Desde Hegel e Marx essas questões têm sido tratadas na perspectiva da história e sob a hipótese de que existe realmente isso a que se chama Progresso da raça humana Finalmente ficaremos com a única alternativa possível para essas questões ou bem dizemos com Hegel Die Weltgeschichte istdas Weltgericht deixando ao Sucesso o juízo final ou bem mantemos com Kant a autonomia dos espíritos humanos e sua possível independência das coisas tais como são ou como vieram a ser Aqui teremos de nos ocupar e não pela primeira vez do conceito de história Mas talvez possamos refletir sobre o significado mais arcaico dessa palavra que como tantos outros termos da nossa linguagem política e filosófica é de origem grega e derivada de historein inquirir para poder contar como foilegein ta eonta em Heródoto Mas a origem desse verbo é uma vez mais Homero Uliada XVIII onde aparece o substantivo histor historiador por assim dizer e o historiador homérico é o juiz Se o juízo é a nossa faculdade para lidar com o passado o historiador é o homem que indaga sobre esse passado e que ao relatálo preside ao seu julgamento Se assim for poderemos reclamar para nós nossa dignidade humana resgatá la por assim dizer da pseudodivindade chamada História na Era Moderna sem negar a importância da história mas negandolhe o direito de ser o último juiz O velho Catão com quem dei início a estas reflexões nunca estou menos só do que quando a sós comigo mesmo nunca estou mais ativo do que quando nada faço deixounos uma frase curiosa que resume adequadamente o princípio político implícito na empresa de recuperação Disse ele Victrix causa deis placuit sed victa Catoni A causa vitoriosa agradou aos deuses mas a derrotada agrada a Catão 1 De que estou com medo De mim mesmo Não há mais ninguém aqui Ricardo ama Ricardo isto é eu sou eu Há um assassino aqui Não Sim eu Então fujamos Como De mim mesmo Boa razão essa Por medo de que me vingue Como Eu de mim mesmo Ora Eu me amo Por que Por algum bem Que possa ter feito a mim mesmo Mas não ai de mim Eu deveria me odiar Pelos atos execráveis cometidos por mim Sou um canalha Não minto eu não sou Idiota falas bem de ti mesmo idiota não te adules tradução livre NT 2 Consciência é apenas uma palavra que os covardes usam Inventada antes de mais nada para infundir temor nos fortes tradução livre NT 3 A cinco braças jaz teu pai De seus ossos se fez coral Aquelas pérolas foram seus olhos Nada dele desaparece Mas sofre uma transformação marinha Em algo rico e estranho tradução livre NT 4 Mergulha tuas mãos na água Mergulhaas até os pulsos Olha olha bem na bacia E pensa no que perdeste A geleira bate no guardalouças O deserto suspira na cama E a rachadura na xícara de chá abre Uma trilha para a terra dos mortos tradução livre NT Notas Introdução 1 Critique of Pure Reason B871 Para esta citação e as seguintes veja a tradução de Norman Kemp Smith Immanuel Kants Critique of Pure Reason Nova Iorque 1963 da qual a autora freqüentemente se valeu 2 Eichmann in Jerusalem Nova Iorque 1963 3 Notas sobre metafísica Kants handschriftlicher Nachlass vol V in Kants gesammelte Schriften Akademie Ausgabe Berlim Leipzig 1928 vol XVIII 5636 4 Hugh de St Victor 5 André Bridoux Descartes Oeuvres etLettres Pléiade Paris 1937 Introduction p viii Cf Galileu les mathématiques sont la langue dans laquelle est écrit Iunivers p xiii 6 Nicholas Lobkowicz Theory and Practice History of a Concept from Aristotle to Marx Notre Dame 1967 p 419 7 De Republica I 17 8 The Phenomenology of Mind trad J B Baillie 1910 Nova Iorque 1964 SenseCertainty p 159 9 Veja anotaem Vom Wesen der Wahrheit uma conferência pronunciada em 1930 Agora em Wegmarken Frankfurt 1967 p 97 10 Veja Glauben und Wissen 1802 Werke Frankfurt 1970 vol 2 p 432 111 Ia edição 12 Werke Darmstadt 1963 vol I pp 982 621 630 968 952 959 974 13 Introdução a The Basic Works of Aristotle Nova Iorque 1941 p xviii Nas citações de Aristóteles foi ocasionalmente utilizada a tradução de McKeon 14 Critique of Pure Reason B878 A frase surpreendente ocorre na última seção da Crítica da razão pura em que Kant pretende haver estabelecido a metafísica como ciência cuja idéia é tão antiga quanto a razão especulativa humana e sobre o que não especula o ser humano racional seja em forma escolástica ou popular B871 Esta ciência caiu agora em descrédito geral porque mais se esperou da metafísica do que aquilo que razoavelmente dela se poderia exigir B877 Cf também as seções 59 e 60 dos Prolegomena to Any Future Metaphysics 15 The Gay Science livro III n 125 The madman 16 How the True World finally became a fable 6 17 Nietzsches Wort Gott ist tot in Holzwege Frankfurt 1962 p 193 18 B125eB9 19 René Char Feuillets dHypnos Paris 1946 n 62 20 Symposium 212a 21 Kants handschriftlicher Nachlass vol VI Akademie Ausgabe vol XVIII 6900 22 Werke vol I p 989 23 Prolegomena Werke vol Ill p 245 24 Critique of Pure Reason Bxxx 25 Kants handschriftlicher Nachlass vol V Akademie Ausgabe vol XVIII 4849 26 Tradução de John Macquarrie e Edward Robison Londres 1962 p 1 Cf pp 151e324 27 Einleitung zu Was ist MetaphysikT in Wegmarken p 206 28 Hegel The Phenomenology of Mind tradução de Baillie Introdução p 131 29 Ibid p 144 Capítulo 1 1 Os três modos de vida são enumerados na Nicomachean Ethics I 5 e na Eudemian Ethics 1215a35 ss Para a oposição entre o belo o necessário e o útil veja Politics 1333a30 ss É interessante comparar os três modos aristotélicos de vida com a enumeração de Platão no Philebus o modo do prazer o modo do pensamento phronesis e um modo misto 22 contra o modo do prazer Platão defende que o prazer é em si mesmo ilimitado no tempo e na intensidade ele não se contém em si e dele não deriva começo meio ou fim 31a E embora concorde com todos os sábios sophoif em que o nous faculdade do pensamento e da verdade é para nós o rei do céu e da terra 28c ele também pensa que para meros mortais uma vida que não conhece nem alegrias nem sofrimentos embora a mais divina das vidas 33a b seria insuportável e portanto a fonte de toda beleza é uma mistura do ilimitado com o que estabelece limites 26b 2 Thomas Langan MerleauPontys Critique of Reason New Haven Londres 1966 p 93 3 Frag 1 4 Republic VII 514a521b The Collected Dialogues of Plato Edith Hamilton e Huntington Cairns ed Republic tradução de Paul Shorey Nova Iorque 1961 algumas vezes próxima à de Francis MacDonald Comford The Republic of Plato Nova Iorque Londres 1941 5 Kant Opus Postumum ed Erich Adickes Berlim 1920 p 44 A data provável desta observação é 1788 6 Critique of Pure Reason B565 7 Maurice MerleauPonty The Visible and the Invisible Evanston 1968 p 17 8 Maurice MerleauPonty Signs Evanston 1964 Introdução p 20 9 Hermann Diels e Walther Kranz Die Fragmente der Vorsokratiker Berlim 1959 vol II B26 10 The Visible and the Invisible pp 4041 11 Das Tier als soziales Wesen Zurique 1953 p 252 12 Animal Forms and Patterns tradução de Hella Czech Nova Iorque 1967 p 19 13 Ibid p 34 14 Das Tier als soziales Wesen p 232 15 Ibid 16 Ibidp 127 17 Animal Forms and Patterns pp 112 113 18 Das tier als soziales Wesen p 64 19 Biologie und Geist Zurique 1956 p 24 20 Of Human Understanding livro III cap 1 n 5 21 MerleauPonty Signs Introdução p 17 22 The Visible and the Invisible p 259 23 Signs p 21 24 The Visible and the Invisible p 259 25 De Anima 403a510 26 Ibid 413b24 e ss 27 De generatione animalium II 3736b529 citado em Lobkowicz op cit p 24 28 De Interpretatione 16a313 29 Mary McCarthy Hanging by a Thread The Writing on the Wall Nova lorque 1970 30 Enarrationes in Psalmos Patrologiae Latina J P Migne Paris 185466 vol 37 CXXXIV 16 31 Frag 149 32 Schelling Of Human Freedom 1809 414 tradução de James Gutmann Chicago 1936 p 96 33 Frag 34 34 Critique of Pure Reason B354B355 35 Ibid A107 Cf também B413 Na intuição interna não há nada permanente e B420 Nada de permanente é dado na intuição enquanto penso a mim mesmo 36 The Visible and the Invisible pp 1819 37 Critique of Pure Reason A381 38 Critique of Pure Reason B565B566 Kant escreve aqui transcendental mas quer dizer transcendente Esta não é a única passagem em que ele se confunde com aquilo que é uma das armadilhas montadas pela sua obra para o leitor A mais clara e mais simples explicação sobre o uso das duas palavras pode ser encontrada nos Prolegomena em que ele responde a um crítico na nota da página 252 Werke vol Ill onde está escrito o seguinte Meu lugar é o fértil bathos da experiência e a palavra transcendental não significa algo que transcenda a experiência mas o que a priori a precede de forma a tomála possível Se esses conceitos transcendessem a experiência eu denominaria seu uso transcendente O objeto que determina as aparências distinto da experiência claramente transcendeas como experiências 39 Critique of Pure Reason B566 40 tóB197 41 ftídB724 42 Ibid B429 43 The Philosopher and Theology Nova Iorque 1962 p 7 No mesmo espírito Heidegger costumava contar na sala de aula a biografia de Aristóteles Aristóteles ele dizia nasceu trabalhou passou a vida pensando e morreu 44 Em seu Commentary ao I Corinthians 15 45 Critique of Pure Reason A381 46 ZZrâf B157B158 47 Ibid B420 48 A última e supostamente a melhor tradução para o inglês feita por John Manolesco apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer and Other Writings Nova Iorque 1969 Eu mesma traduzi a passagem do alemão in Werke volI pp 946951 49 Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels Werke vol I p 384 Tradução para o inglês Universal Natural History and Theory of the Heavens por W Hastie Ann Arbor 1969 50 The Bounds of Sense An Essay on Kants Critique of Pure Reason Londres 1966 p 249 51 The Visible and the Invisible pp 28 e ss 52 The Human Condition pp 252 e ss 53 Le Discours de la Méthode 3a parte in Descartes Oeuvres et Lettres pp Ill 112 veja para a primeira citação The Philosophical Works of Descartes traduzido por Elizabeth S Haldane e G R T Ross Cambridge 1972 vol I p 99 54 Platão Philebus 67b 52b 55 Ibid 33b 28c 56 Le Discours de la Methode 4a parte in Descartes Oeuvres et Lettres p 114 The Philosophical Works vol I p 101 57 The Visible and the Invisible pp 3637 58 Antropologie n 24 Werke vol VI p 465 59 Heidegger assinala com razão O próprio Descartes enfatiza que a sentença cogito ergo sum não é um silogismo O eusou não é conseqüência do eupenso mas ao contrário o fundamentum a sua base Heidegger menciona a forma que o silogismo deveria ter Id quod cogitat est cogito ergo sum Die Frage nach dem Ding Tübingen 1962 p 81 60 Tractatus 562 6431 64311 Cf Notebooks 19141916 Novalorque 1969 p 75e 61 Tomás de Aquino Summa Theologica parte I questões 1 3 an 2 62 Parece que foi Gottsched o primeiro a falar em senso comum sensus communis como um sexto sentido In Versuch einer Kritischen Dichtkunst für die Deutschen 1730 Cf Cícero De Oratore III 50 63 Citado de Thomas Landon Thorson Biopolitics Nova Iorque 1970 p 91 64 Summa Theologica parte I questão 78 4 an 1 65 Op cit loc cit 66 Ibid 67 Notebooks 19141916 pp 48 48e 68 Politics 1324al6 69 The Visible and the Invisible p 40 70 Philebus 2526 71 Ibid 31a 72 Thomas S Kuhn The Structure of Scientific Revolutions Chicago 1962 p 163 73 Critique of Pure Reason B367 74 De Interpretatione 17al4 75 980a22 e ss 76 Monadology n 33 77 Phisics 188b30 Tomás de Aquino faz eco à sentença de Aristóteles quasi ab ipsa veritate coacti como se fora forçado pelo própria verdade em seu comentário ao De Anima I 2 43 780 Dictionnaire de I Academic disse no mesmo espírito La force de la vérité pour dire le pouvoir que la vérité a sur Iesprit des homines 79 Décadas atrás subitamente você chegou em meio à infinita cascata de criaturas vomitadas das entranhas da Natureza Um evento aleatório diz a Ciência O que não nos impede de responder com o poeta Aleatório uma ova Um verdadeiro milagre digo eu pois quem duvida de que ele estava destinado a ser W H Auden Talking to Myself Collected Poems Nova Iorque 1976 p 653 tradução livre 80 Philosophic der Weltgeschichte Lasson Leipzig 1920 parte I pp 6162 81 Notes on Metaphisics Akademie Ausgabe vol XVIII 4849 82 Critique of Pure Reason A19 B33 83 Que eu conheça a única interpretação de Kant que poderia ser citada em apoio à minha própria compreensão da distinção kantiana entre razão e intelecto é a excelente análise de Crítica da razão pura feita por Eric Weil Penser et Connàitre la Foi et la Choseensoi in Problèmes Kantiens T ed Paris 1970 Segundo Weil é inevitável daffirmer que Kant qui dénie à la raison pure la possibilité de connàitre et de développer une science lui reconnait en revanche celle dacquerir un savoir qui au lieu de connàitre pense p 23 Devese admitir entretanto que as conclusões de Weil permanecem próximas da compreensão que Kant tinha de si mesmo Weil está interessado principalmente na interconexão entre as razões Pura e Prática desse modo afirma que le fondement de la philosophic kantienne doit être cherché dans sa theórie de Ihomme dans Ianthropologicphilosophique non dans une théorie de la connaissance p33 Por outro lado minhas principais reservas em relação à filosofia de Kant dizem respeito precisamente à sua filosofia moral ou seja à Crítica da razão prática embora eu concorde naturalmente que aqueles que leram a Crítica da razão pura como uma espécie de epistemologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do livro p 34 Os quatro ensaios do livro de Weil de longe os mais importantes artigos da literatura sobre Kant nos últimos anos estão baseados na descoberta simples mas crucial de que Lopposition connàitre et penser est fondamentale pour la compréhension de la pensée kantienne p 112 n 2 84 Critique of Pure Reason A314 85 Ibid B868 86 Ibid Bxxx 87 Ibid 88 Ibid B697 89 Ibid B699 90 Ibid B702 91 WB698 92 WdB714 93 Ibid B826 94 Ibid B708 Capítulo 2 1 De Veritate questão XXII art 12 2 Critique of Pure Reason B171 B174 3 Critique of Judgement trad J H Bernard Nova Iorque 1951 Introdução IV 4 Science of Logic Prefácio à 2a edição 5 Philosophy of Right Prefácio 6 Frag 108 7 Tucídides II 43 8 Critique of Pure Reason B400 9 Ibid B275 10 Ver Ernest Stadter Psychologic und Metaphysik der menschlichen Freiheit Munique Paderborn Viena 1971 p 195 11 Ver a magnífica descrição como a de um sonho da completa solidão em Observations on the Feeling of the Beautful and Sublime trad John T Goldthwait Berkley Los Angeles 1960 pp 4849 12 Critique of Pure Reason Bl 57 Cf cap I do presente volume 13 WJB158n 14 Anthropologie n 28 Werke vol VI p 466 15 The Trinity livro XI cap 3 Trad ingl séries Fathers of the Church Washington D C 1963 vol 45 16 Ibid 17 Ibid cap 8 18 Ibid cap 10 19 An Introduction to Methaphysics trad Ralph Manhein New Haven 1959 p 12 20 Discours aux chirurgiens in Variété Paris 1957 vol I p 916 21 Phaedo 64 22 Diogenes Laércio VII 2 23 Sammtliche Werke Leipzig sd Über den Tod vol II p 1240 24 Phaedo 6467 25 Cf Valéry op cit loc cit 26 Ver a análise de NA Greenberg Socrates choise in the Crito in Howard Studies in Classical Philology vol 70 n 1 1965 27 Heráclito frag 104 29 28 Republic 494a e 496d 29 Ibid 496a e ss Comford The Republic of Plato pp 203204 30 Philebus 62b 31 Laws 935 Nas disputas todos estão habituados a fazer os oponentes caírem no ridículo É impossível ofender sem cair no ridículo Daí todo escritor de comédia ou de poemas iâmbicos ou líricos deve ser rigorosamente proibido de ridicularizar qualquer cidadão e se ele desobedecer deve ser banido do país Para as passagens da República contudo em que o medo do ridículo dificilmente desempenha qualquer papel ver 394 ss e 606 ss 32 Theaetetus 174ad 33 Trãurne eines Geistersehers Werke vol I p 951 34 Phaedo 64 35 Ibid 66 36 Ibid 65 37 Protreptikos B43 Ingemar Diking Ed Frankfurt 1969 38 Ibid Bl 10 39 Republic 500c 40 Cartas de março de 1638 Descartes Oeuvres etLettres p 780 41 Nota da editora não fomos capazes de encontrar esta referência 42 Akademie Ausgabe vol XVIII 5019 e 5036 43 Platão em Phaedo 84a menciona a teia de Penélope mas no sentido oposto A alma do filósofo liberada do cativeiro do prazer e da dor não deve agir como Penélope desmanchando sua própria teia Uma vez desembaraçada por meio de logismos do prazer e da dor que cravam a alma no corpo a alma o ego pensante de Platão muda sua natureza e até mesmo suas razões logizesthai mas estima theasthai a verdade e o divino e aí permanece para sempre 44 Über das Wesen der Philosophischen Kritik Hegel Studienausgabe Frankfurt 1968 vol Ip 103 45 Philosophic der Weltgeschichte ed Lasson Leipzig 1917 parte II pp 45 46 Reason in History trad Robert S Hartman Indianápolis Nova Iorque 1953 p 89 47 Reason in History Tradução do autor 48 Prefácio à Phenomenology of Mind 49 Politics 1269a35 1334al5 ver livro VII cap 15 50 Paul Weiss A Philosophical Definition of Leisure in Leisure in America Blessing or Curse J C Charlesworth ed Filadélfia 1964 p 21 51 VIII 8 Sigo a tradução de Kirk e Raven frag 278 52 Timaeus 34b 53 Der Streit der Fakultaten parte II 6 e 7 Werke vol VI pp 357 362 54 Uber den Gemeinspruch Werke vol VI pp 166167 55 Hegel Philosophic der Weltgeschichte Introdução 56 Sophist 254 57 Republic 517b e Phaedrus 247c 58 Sophist 254ab 59 Ver cap I do presente volume No início de De Interpretatione Aristóteles referese ao seu De Anima como tratando de alguns dos mesmos pontos mas nada no De Anima parece corresponder aos pontos levantados no De Interpretatione Se minha leitura do texto é correta Aristóteles deve ter pensado na passagem por mim usada no cap I e que é De Anima 403a510 60 De Interpretatione 16a417a9 61 Reflexionen zur Anthropologie n 897 Akademie Ausgabe vol XV p 392 62 Monologion 63 Para o que aqui segue baseeime rigorosamente no primeiro capítulo sobre Language and Script o grande livro de Marcei Granet La Pensée Chinoise Paris 1934 Usei a nova edição alemã que foi recémpublicada por Manfred Porkert Das chinesische Denkenlnhalt Form Charakter Munique 1971 64 Kant Critique of Pure Reason Bl 80 65 B180181 66 Tractatus 4016 tw das Wesen des Satzes zu verstehen denken wiran die Hieroglyphenschrift welche die Tatsachen die sie beschreibt abbildet Und aus ihr wurde die Buchstabenschrift ohne das Wesentliche der Abbildung zu verlieren 67 A Defense of Poetry 68 Poetics 1459 69 Ibid 1457b 17 e ss 70 Critique of Judgment n 59 71 Ibid ll Ibid 73 Prolegomena to Every Future Metaphysics n 58 trad Carl J Friedrich Modem Library Nova Iorque sd O próprio Kant estava ciente dessa peculiaridade da linguagem filosófica na época pré crítica Nossos mais altos conceitos racionais amiúde usam uma roupagem física de modo a obter clareza Trãume eines Geistersehers p 948 74 N 59 Seria interessante examinar a noção kantiana de analogia nos antigos escritos de Opus Postumurm é notável como cedo ocorreu a Kant que o pensamento metafórico isto é o pensamento por analogias poderia livrar o pensamento especulativo de sua peculiar irrealidade Já em Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels publicado em 1755 escreve ele a respeito da probabilidade da existência de Deus Não estou assim tão devotado às conseqüências de minhas teorias que não possa reconhecer que elas são indemonstráveis Espero contudo que como um mapa do infinito compreendendo como compreende um tema que parecia estar para sempre oculto ao entendimento humano isso não signifique que essas considerações sejam a um só tempo vistas como uma quimera quando o recurso empregado foi o da analogia grifos meus Trad inglesa por W Hastie citada do Kant s Cosmogony Glasgow 1900 pp 146147 75 Ver Francis MacDonald Cornford Platos Theory of Knowledge Nova Iorque 1957 p 275 76 O ensaio The Chinese Written Character as a Medium for Poetry editado por Ezra Pound em Instigations Freeport Nova Iorque 1967 contém um curioso pedido em favor dos documentos chineses Sua etimologia é constantemente visível Uma palavra fonética não carrega sua metáfora na face Esquecemos que personalidade já significou não a alma mas a máscara da alma por meio da qual a alma soava como era personare Esse é o tipo de coisa de que não podemos esquecer quando usamos o símbolo chinês Para nós o poeta é aquele para quem os tesouros acumulados da raçapalavras são reais e ativos p 25 77 IX 18 78 O infelizmente inédito manuscrito de Marshall Cohen The Concept of Metaphor que pude consultar por permissão régia tem muitos exemplos acompanhados por uma excelente revisão da literatura sobre o tema 79 The Odyssey of Homer livro XIX 11 203209 trad Richamond Lattimore Nova Iorque 1967 p 287 80 Das Homerische Gleichnis und der Anfang der Philosophic in Die Antike vol XII 1936 81 Diels e Kranz frag B67 82 Aus der Erfahrung des Denkens Bema 1947 83 Bruno Snell From Myth to Logic The Role of The Comparison in The Discovery of the Mind Harper Torchbooks Novalorque Evanston 1960 p 201 84 Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova Iorque 1966 p135 Seu estudo The Nobility of Sight é a única ajuda no esclarecimento da história do pensamento Ocidental 85 Diels e Kranz frag 101a 86 Aristóteles parece ter pensado nessas linhas em um de seus tratados científicos Dessas faculdades o olhar é a mais importante simplesmente pelas necessidades da vida mas para o espírito nous e indiretamente kata symbebekos a mais importante é o ouvido É ele que mais contribui para a sabedoria O discurso que é a causa do aprendizado só o é porque é audível mas não é audível em si mas indiretamente porque a fala é composta por palavras e cada palavra é um símbolo racional Por conseguinte para aqueles que estão privados de um sentido ou outro desde o nascimento a cegueira é mais inteligente do que a surdez ou o mutismo O caso é que ele parece nunca ter lembrado dessa observação quando escreveu filosofia Aristóteles On Sense and Sensible Objects 437a417 87 Op cit p 152 88 Ver Hans Jonas cap 3 sobre Filo da Alexandria especialmente pp 9497 do Vos der Mythologie zur mystischen Philosophic Gottingen 1954 que é a segunda parte de Gnosis undspatantiker Geist Gottingen 1934 89 The Phenomenon of Life pp 136147 Cf Von der Mythologie pp 138152 90 Bonn 1960 p 200 s 91 Theaetetus 155d 92 982bll22 93 983a 1420 94 Ver por exemplo Nicomachean Ethics VI 8 em que o nous é a percepção mental aisthesis do primário imutável ou termoslimites para o qual não existe logos 1142a2527 Cf 1143b5 95 Seventh Letter 341b343a paráfrase 96 2 de julho de 1885 97 N 160 98 Nietzsche Pfullingen 1961 vol II p 484 99 Philosophical Investigations trad G E Anscombe Nova Iorque 1953 n 119 19 109 100 Phaedrus 274e277c 101 Phisics 209b 15 102 286a b 103 275d277a 104 Philebus 38e39b 105 Ibid 39bc 106 342 107 Ibid 344b 108 Ibid 343b 109 Ibid 34le 110 Critique of Pure Reason B33 Para Nicht dadurch dass ich bloss denke erkenne ich irgend ein Objekt sondern nur dadurch dass ich eine gegebene Anschauung hestimme kann ich irgendeinen Gegenstanderkennen Não conheço um objeto apenas pelo que penso mas apenas à medida que determino uma dada intuição posso conhecer um objeto B406 111 Faço uma citação do antigo curso de Heidegger sobre o Sofista de Platão 19241925 de acordo com uma transcrição literal pp 8 e 155 160 Ver também o comentário de Comford sobre o Sofista em Platos Theory of Knowledge p 189 e n 1 onde noein significa o ato de intuição noesis que vê diretamente sem razão discursiva 112 38ce 113 Cap I do presente volume 114 Aristóteles Metaphisics 1003a21 115 Ibid 984b 10 116 São Tomás de Aquino De Veritate questão I art 1 117 Critique of Pure Reason B82 B83 118 Sein und Zeit Tubingen 1949 n 44a p 217 119 Ver Aristóteles Posterior Analytics 100b517 120 An Introduction to Metaphisics 1903 trad T E Hulme Indianápolis Nova Iorque 1955 p 45 121 Ibid 122 Critique of Pure Reason B84 e B189B191 123 An Introduction to Metaphisics p 45 124 Protreptikos During ed B87 1251072b27 126 1072a21 127 Essa má tradução estraga o Aristotle de W D Ross Meridian Books Nova Iorque 1959 mas está misericordiosamente ausente de sua tradução de Metaphisics em The Basic Works ofAristolle de Richard McKeon 128 Philosophy of History Introdução p 9 129 Hegels Philosophy of Right trad T M Knox Londres Oxford Nova Iorque 1967 acréscimo ao parágrafo 2 p 225 130 Wegmarken p 19 131 Nicomachean Ethics 1175a 12 132 Tractatus 401 Pareceme óbvio que a primeira teoria da linguagem de Wittgenstein está solidamente enraizada no velho axioma metafísico da verdade como adequatio rei et intellectus a dificuldade sempre apresentada por tal definição é que essa equação só é possível como intuição isto é como uma imagem interna que copia os objetos visíveis sensorialmente dados A figura lógica de um fato que de acordo com Wittgenstein é um pensamento sigo a Introdução ao Tractatus de Bertrand Russell na edição bilíngüe Londres p xii é uma contradição em termos a não ser que se tome a figura como expressão metafórica Certamente existe uma relação que une linguagem e mundo mas embora tal relação seja possível ela certamente não é uma figura Se houvesse uma relação figurativa toda proposição seria verdadeira a não ser que capitulasse e repetisse um erro acidental na percepção sensorial algo parece uma árvore mas para um exame rigoroso acaba sendo um homem posso fazer contudo uma enormidade de proposições sobre um fato elas serão inteiramente significativas sem que sejam necessariamente verdadeiras o sol gira em torno da Terra ou em setembro de 1939 a Polônia invadiu a Alemanha uma está errada e a outra é mentira Mas há por outro lado proposições que são inerentemente inaceitáveis como por exemplo o triângulo ri citado no texto que nem c uma verdade nem uma falsa afirmação mas uma coisa sem sentido O único critério lingüístico interno às proposições é ter ou não sentido Em vista dessas dificuldades bastante óbvias e do fato de que o próprio Wittgenstein tenha posteriormente rejeitado sua teoria figurativa das proposições é mais interessante descobrir como isso chegou a acontecer Creio que há duas versões da coisa Ele estivera lendo uma revista na qual havia uma figura esquemática que representava a seqüência possível de acontecimentos em um acidente automobilístico A figura então serviu como uma proposição ela era como uma descrição de um estado de coisas possível Tinha essa função de realizar uma correspondência entre as partes da figura e as coisas da realidade Ocorreu então a Wittgenstein que se podia inverter a analogia e dizer que uma proposição funciona como uma figura em razão de uma correspondência similar entre suas partes O modo pelo qual as partes da proposição estão combinadas a estrutura da proposição representa uma possível combinação de elementos na realidade Ver Biographical Sketch de G H von Wright in Norman Malcolm Ludwig Wittgenstein A Memoir Londres 1958 pp 78 O que parece decisivo aqui é que ele não partiu da realidade mas de uma reconstrução esquemática de um evento que ele mesmo foi submetido a um processo de pensamento ou seja ele partiu da ilustração de um pensamento Em Philosophical Investigations 663 há uma observação que parece ser a refutação dessa teoria Se digo Eu represento ele algo muito próximo de uma figura vem à minha mente mas é uma figura apenas como uma ilustração para uma história Seria impossível concluir qualquer coisa somente partindo dela apenas quando se conhece a história podese saber o significado da figura A segunda versão da origem da teoria figurativa das proposições pode ser encontrada no próprio Tractatus 40311 e parece mais razoável Wittgenstein que substituiu sua antiga teoria da linguagemjogo parece ter sido influenciado por outro jogo que muitas vezes animava a seriedade de seu tempo o jogo dos tableaux vivants as regras determinam que alguém deve adivinhar qual a proposição expressa pelo quadrovivo encenado por certo número de pessoas Uma palavra é representada por uma coisa outra palavra por outra coisa e elas são combinadas com uma outra coisa Nesse caso o grupo todo como um quadro vivo apresenta um estado de coisas supõese que isso realmente explique uma proposição Menciono isso tudo para indicar o estilo de pensamento de Wittgenstein Ajuda a explicar o caráter enigmático de sua filosofia posterior que é tão fragmentada e não tem plano diretor Ver a excelente apresentação de David Pears Ludwig Wittgenstein Nova lorque 1970 pp 4 e ss O Tractatus dá início a uma observação casual a partir da qual contudo seu autor estaria apto a desenvolver uma teoria consistente que o teria livrado de futuras observações episódicas e o teria capacitado para escrever um trabalho contínuo A despeito de sua freqüente brusquidão o Tractatus é totalmente consistente Philosophical Investigations mostra como esse espírito incessantemente ativo funcionava de fato se não de todo pelo menos quase acidentalmente guiado por uma única pressuposição como por exemplo a tese de que deve haver algo em comum entre a estrutura da sentença e a estrutura do fato Russell op cit por exemplo chama corretamente essa de a tese mais fundamental da teoria de Wittgenstein A propriedade mais destacada de Philosophical Investigations é seu ritmo é como pensar que alguém realizou a parada inerente ao pensamento no ponto em que todo processo de pensamento se deteve e todó o encadeamento interrompeuse recolhendose nele mesmo A tradução inglesa mitiga isso um pouco ao fazer o sempre repetido Denk dir corresponder a uma variedade de palavras tais como suponha imagine 133 Philosophical Investigations nos 466471 Capítulo 3 1 Timaeus 90c ver nota 35 abaixo 2 Ver o muito instrutivo Theory and Practice de Nicholas Lobkowicz 3 Symposium 204a 4 Píndaro Nemea 6 The Odes of Pindar trad Richmond Lattmore Chicago 1947 p 111 51 131 6 Sophist 219b 7 Republic 518c 8 The Discourses livro II Introdução Esta expressão não se encontra no lugar aqui assinalado pela autora N T 9 Bruno Snell Pindars Hymn to Zeus op cit pp 7779 10 Nemea 4 Isthmia 4 ambos na tradução de Lattimore 11 Isthmia 4 trad de Lattimore 12 Tucídides II 41 13 Protreptikos ed Diking B19 e Bl 10 Cf Eudemian Ethics 1216al 1 14 Protreptikos ed Diiring B109 15 De Finibus Bonorum et Malorum II 13 16 Heráclito B29 17 Symposium 208c 18 Ibid 208á 19 Anaximandro parece ter sido o primeiro a equacionar o divino como o apeiron o nãolimitado cuja natureza deveria ser eterna atemporal imortal e imperecível 20 Frag 8 21 Charles H Kahn em seu fascinante estudo The Greek Verb to be and the Concept of Being examina o uso préfilosófico do verbo que serve para expressar o conceito de Ser em grego p 245 In Foundations of Language vol 2 1966 p 255 22 B30 23 Snell op cit p 40 24 Kalhm op cit p 260 25 Frag 3 26 Protreptikos ed Diiring Bl 10 27 Philebus 28c 28 Symposium 212a 29 Nicomachean Ethics 1178b3 1178b22 1177b33 o último trecho segue a trad de Martim Ostwald Indianápolis Nova Iorque 1962 30 Timaeus 90d a 31 Citado de The Secrets of the Old OneII de Jeremy Bernstein The New Yorker 17março 1973 32 Francis MacDonald Comford Plato and Parmenides Nova Iorque 1957 Introdução p 27 33 Protreptikos ed Diiring B65 34 Cornford Platos Theory of Knowledge p 189 35 Timaeus 90c 36 Philebus 59b c 37 Philosophic der Weltgeschichte Hegel Studienausgabe vol I p 291 38 De Rerum Natura livro II primeiras linhas On the Nature of the Universe trad Ronald Latham Penguin Harmondsworth 1951 p 60 39 Devo as citações de Herder e Goethe ao interessante estudo de Hans Blumenberg sobre a navegação o naufrágio e o espectador como metáforas existenciais intitulado Beobachtungen an Metaphem in Archiv für Begriffsgeschichte vol XV Heft 2 1971 pp 171 e ss Sobre Voltaire ver o artigo Curiosité in Dictionnaire Philosophique Sobre Herder ver também Briefe zur Befórderung der Humanitat 1972 17a carta sobre Goethe Goethes Gesprdche Artemis Zurique 1949 vol22 n 725 p 454 40 1177b2733 41 Theaetetus 155d 42 Cratylus 408b 43 B21a 50 The Friend III 192 citado por Herbert Read in Coleridge as Critic Londres 1949 p 30 51 Agora com duas explicações posteriores uma Introdução e um Epílogo in Wegmarken pp 19 e 210 52 1714 n 7 53 Critique of Pure Reason B641 54 Werke 6 Ergãnzungsband ed M Schrõter Munique 1954 p 242 55 Ibid p 7 56 Ver o System der gesammten Philosophic 1804 publicado postumamente in Samtliche Werke I Stuttgart e Augsburg 1860 vol VI p 155 57 Samtliche Werke I vol VII p 174 58 Ibid II vol Ill p 163 Cf também Karl Jaspers Schelling Munique 1955 pp 124130 59 Paris 1958 pp 161171 60 Ver Preisschrift Über die Deutlichkeit der Grundsãtze dernatiirlichen Theologie und der Moral 1964 4a Consideração n 1 Werke vol I pp 768769 61 Über die Optimismus Werke vol I p 594 62 Ecce Homo Thus Spoke Zarathustra 1 63 The Gay Science livro IV n 341 64 130d e 65 Tusculanae Dispntationes III iii 6 66 Ibid Ill xiv 30 Cf Horácio Epistolae I vi 1 Plutarco em seu De recta Ratione 13 menciona a máxima estóica e a atribui na tradução grega me thaumazein a Pitágoras Dizse de Demócrito que ele louvou a athaumastia e a athambia como sabedoria estóica mas ele parece ter tido em mente apenas a imperturbabilidade e o destemor do homem sábio 67 Hegel Philosophy of Right p 13 68 LOeuvre de Pascal ed Pléiade Bruxelas 1950 294 p 901 69 Dijferenz des Fichte schen und Schelling schen Systems der Philosophic 1801 ed Meiner 1962 p 12 ss 70 Trad de J Sibree Nova Iorque 1956 p 318 71 Ibid 26 72 Essa transformação é mais impressionante sempre onde o empréstimo tomado à filosofia grega c mais óbvio como quando Cícero diz que o homem é destinado ad mundum contemplandum e acrescenta imediatamente et imitandum De Natura Deorum II xiv 37 Ele compreende o homem estritamente no sentido moralpolitico e não científico como séculos mais tarde compreendia Bacon Para comandar a natureza é preciso conhecêla e o que na contemplação é como se fosse a causa na operação é como se fosse a regra Novum Organon ed Oxford 1889 p 192 73 De Rerum Natura livro II 1174 On the Nature of the Universe trad Latham p 95 74 Discourses 11 cap 17 75 Ibid livro I cap 15 76 The Manual 49 The Stoic and Epicurean Philosophers ed Whitney Oates Nova Iorque 1940 p 482 77 Discourses I cap 1 78 The Manual 8 ed Oates p 470 Fragments 8 ed Oates p 460 79 Op cit V 7 ss Tradução da autora 80 De Republica I 7 81 Ibid Ill 23 82 Ibid V 1 83 Baseado evidentemente no mito do Er que conclui a República de Platão Para as diferenças importantes ver a análise de Richard Harder o eminente filólogo alemão Über Ciceros Somnium Scipionis in Kleine Schriften Munique 1960 pp 354395 84 Discourses on Davila The Works of John Adams ed Charles Francis Adams Boston 18501856 vol VI p 242 85 Oedipus at Colunnus 86 Politics 1267a 12 87 Nicomachean Ethics 1178a2930 88 Frag 146 89 The Decline and Fall of the Roman Empire Modem Library Nova Iorque sd vol II p 471 90 130 Tradução da autora para hos philosopheon gen pollen theories heineken epelelythas 91 I 32 92 O conteúdo de pensamento desse dito foi totalmente explicado apenas nas análises heideggerianas da morte em Ser e tempo que se orientam metodologicamente pelo fato de que a vida humana distinta das coisas que só começam sua existência quando estão completas e terminadas só se completa quando não é mais Portanto é apenas na antecipação da própria morte que ela aparece completa e pode ser submetida à análise 93 Anthologia Lyrica Graeca ed E Diehl Leipzig 1936 frag 16 94 Ibid frag 13 linhas 6370 95 Ibid frag 14 96 Charmides 175b 97 Hegel Encyclopadie der philosophischen Wissenschaften ed Lasson Leipzig 1923 23 Das Denken sich als abstraktes Ich als von aller Partikularitãt sonstiger Eigenschaften Zustande usf befreites verhalt und nur das Allgemeine tut in welchem es mit alien Individuen identisch ist 98 Examinando a literatura muitas vezes bastante erudita supreendemonos ao ver o pouco que essa erudição contribuiu para a compreensão do homem A única exceção que consegui desenterrar é uma espécie de perfil inspirado de autoria do classicista e filósofo Gregory Vlastos The Paradox of Socrates Ver a Introduction ao The Philosophy of Socrates a Collection of Critical Essays por ele cuidadosamente selecionado Nova Iorque Anchor Books 1977 99 173d 100 Sobre o problema socrático ver o curto e sensato relato de Laszlo Varsényi em apêndice ao seu Socratic Humanism Londres New Haven 1963 101 Dante and Philosophy trad David Moore Harper Torchbooks Nova Iorque Evanston Londres 1963 p 267 102 Ibid p 273 103 Como no Teeteto e no Charmides 104 Meno 80e 105 A idéia muito frequente segundo a qual Sócrates conduz seu interlocutor com suas perguntas para certos resultados dos quais o próprio Sócrates está de antemão convencido como um professor esperto faz com seus alunos pareceme totalmente enganosa mesmo quando é engenhosamente qualificada como no ensaio de Lazlo acima mencionado no qual ele sugere p 13 que Sócrates precisa do outro para descobrir por si mesmo como no Meno que não é todavia aporético O melhor que se pode dizer é que Sócrates queria que seus parceiros ficassem tão perplexos como ele estava E era sincero quando dizia que não ensinava nada Assim diz ele a Crítias no Cármides Crítias tua atitude comigo parece atribuirme a pretensão de conhecer as respostas para as perguntas que te faço e de poder dá las se quisesse Não é nada disso Examino com você porque eu mesmo não tenho esse conhecimento 165b cf 166cd 106 Diehl frag 16 107 Meno 80c cf passagem anteriormente mencionada na nota 105 108 Memorabilia IV vi 15 e IV iv 9 109 Sophist 226231 110 Apology 23b 111 Ibid 30a 112 Xenofonte Memorabilia IV iii 14 113 Antigone 353 1140 texto alemão de Was Heisst Denkeríl Tübingen 1954 p 52 diz o seguinte Sokrates hat zeit seines Lebens bis in seinen Tod hinein nichts anderes getan ais sich in den Zugwinddieses Zuges zu stellen und darin sich zu halten Darum ist er der reinste Denker des Abendlandes Deshalb hat er nichts geschrieben Denn wer aus dem Denken zu schreiben beginnt muss unweigerlich den Menschen gleichen die vor allzu starkem Zugwind in den Windschatten flüchten Es hleibt das Geheimnis einer noch verborgenen Geschichte dass alle Denker des Abendlandes nach Sokrates unbeschadet ihrer Grosse solche Fliichtlinge sein mussten Das Denken ging in die Literatur ein 115 G Humphrey Thinking An Introduction to its Experimental Psychology Londres e Nova Iorque 1951 p 312 116 Tucídedes II 40 117 Lysis 204bc 118 Frags 145 190 119 Gorgias 474b 483a b 120 Ibid 482c 121 Ibid 482c 484c d 122 Aristóteles muitas vezes insistia que pensar produz felicidade mas se produz não é como a medicina produz saúde mas como a saúde toma um homem saudável Nicomachean Ethics 1144a 123 Diels e Kranz B45 124 254d 125 Identity and Difference trad Joan Stambaugh Nova Iorque Evanston Londres 1969 pp 2425 126 255d 127 Sophist 255e Comford Platos Theory of Knowledge p 282 128 Heidegger transcrição da palestra Sophist p 382 129 Theaetetus 189e Sophist 263e 130 Sophist 253b 131 Protagoras 339c 132 Ibid 339b 340b 133 Posterior Analytics 76b2225 134 1005b231008a2 135 N 36 Werke vol VI p 500 136 N 56 ibid p 549 137 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Werke vol 4 pp 51 55 138 304d 139 Nicomachean Ethics 1166a30 140 Ibid 1166b525 141 Ethics IN 52 III 25 142 Philosophy 1932 trad E B Ashton Chicago Londres 1970 vol 2 pp 178179 Capítulo 4 1 Symposium 174175 2 MerleauPonty Signs The Philosopher and His Shadow p 174 3 Citado de Sebastian de Grazia About Chuang Tzu Dalhousie Review Verão 1974 4 Hegel Encyclopadie derphilosophischen Wissenschaften 465n 5 Ross Aristotle p 14 6 Protreptikos ed Düring B56 7 Physics VI viii 189a5 8 Nicomachean Ethics 1141b24l 142a30 Cf 1147al10 9 Critique of Pure Reason B49 B50 10 Gesammelte Schriften Nova Iorque 1946 vol V p 289 Trad inglesa por Willa e Edwin Muir The Great Wall of China Nova Iorque 1946 p 276277 11 Parte III On the Vision and the Riddle seção 2 12 VolI pp 311 e s 13 Duns Scotus Opux Oxoniense I 40 questão 1 nota 3 Citado de Walter Hoeres Der Wille als reine Vollkommenheit nach Duns Scotus Munique 1962 p 111 n 72 14 Critique of Pure Reason B294 s 15 As I Walked Out One Evening Collected Poems p 115 16 W H Auden The Dyers Hand and Other Essays Vintage Books Nova Iorque 1968 17 Time and Free Will 1910 trad F L Pogson Harper Torchbooks Nova Iorque Evanston 1960 pp 158 167 240 18 Romans 715 19 Encyclopadie 12 20 Of Human Freedom trad Gutmann p8 21 Critique of Pure Reason B172B173 Volume 2 O Querer A Vontade Introdução O segundo volume de A Vida do espírito será dedicado à faculdade da Vontade e por conseguinte ao problema da Liberdade o qual como disse Bergson foi para os modernos o que os paradoxos dos Eleatas foram para os antigos Os fenômenos com os quais temos de lidar estão em grande parte encobertos por uma camada de argumentos que não são de modo algum arbitrários e que por isso não devem ser desprezados mas que acabam se desvinculando das experiências reais do ego volitivo favorecendo doutrinas e teorias não necessariamente interessadas em salvar os fenômenos Uma razão para estas dificuldades é bem simples a faculdade da Vontade era ignorada na Antiguidade grega e sua descoberta resultou de experiências sobre as quais quase não ouvimos falar antes do primeiro século da Era Cristã O problema para os séculos posteriores era conciliar essa faculdade com as principais doutrinas da filosofia grega Os pensadores não estavam mais dispostos a abandonar totalmente a filosofia e dizer com São Paulo pregamos a Cristo crucificado que é um escândalo para judeus e uma loucura para os gentios dando a questão por encerrada Para isso como veremos somente o próprio São Paulo estavapreparado Mas o fim da Era Cristã não significa absolutamente o fim dessas dificuldades A principal dificuldade estritamente cristã isto é como conciliar a fé em um Deus todopoderoso e onisciente com as alegações de uma vontade livre sobrevive profundamente e de várias maneiras na Era Moderna na qual muitas vezes nos deparamos com quase o mesmo tipo de argumentação anterior Ou encontrase a vontade livre em choque com a lei da causalidade ou mais tarde fica difícil conciliála com as leis da História cuja significação depende do progresso ou de um desenvolvimento necessário do Espírito do Mundo Tais dificuldades persistem até mesmo quando todos os interesses estritamente tradicionais metafísicos ou teológicosperdem a força John Stuart Mill por exemplo sintetiza um raciocínio muito recorrente quando diz Nossa consciência interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência aparente da raça humana nos diz que jamais utilizamos Ou para usar o exemplo mais extremo Nietzsche chama toda a doutrina da Vontade a mais fatídica falsificação feita em psicologia até hoje inventada essencialmente para o castigo A maior dificuldade enfrentada em qualquer discussão sobre a Vontade é o simples fato de que não há qualquer outra capacidade do espírito cuja própria existência tenha sido questionada e refutada de forma tão consistente e por uma sucessão de filósofos tão eminentes quanto esta O mais recente é Gilbert Ryle para quern a Vontade é um conceito artificial que não corresponde a nada que jamais existiu e que cria enigmas inúteis como tantas das falácias metafísicas Desconhecendo aparentemente seus ilustres predecessores ele parte para refutar a doutrina de que há uma Faculdade da Vontade e que portanto ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como volições Ryle não ignora o fato de que Platão e Aristóteles nunca mencionaram volições em suas freqüentes e elaboradas discussões acerca da natureza da alma e das origens da conduta porque não estavam familiarizados então com a hipótese especial de tempos posteriores cuja aceitação baseiase não na descoberta mas na postulação de certas verdades fantasmagóricas Faz parte da natureza de todo exame crítico da faculdade da Vontade ser empreendido por pensadores profissionais os Denker von Gewerbe de Kant isso levanta a suspeita de que as denúncias da Vontade como uma mera ilusão da consciência e as refutações da existência da faculdade que vemos sustentadas por argumentos quase idênticos em filósofos que partem de pressupostos bastante diferentes podem deverse a um conflito básico entre as experiências do ego pensante e as do ego volitivo Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo e o mesmo eu una corpo alma e espírito está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável permanecendo imparcial e objetiva quando se trata de outras atividades do espírito Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis mas é também um dado imediato da consciência nas palavras de Bergson tanto quanto o eupenso de Kant ou o cogito em Descartes cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional Para antecipar o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade Se devo necessariamente querer por que então preciso falar da vontade no dizer de Santo Agostinho A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderiamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites em que as necessidades corporais as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobreporse a quaisquer considerações seja da Vontade seja da Razão A Vontade ao que parece tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento que mesmo em sua forma mais livre mais especulativa não pode escapar ao princípio de não contradição Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma benção Os pensadores muitas vezes consideraramno uma maldição Tomarei a seguir a evidência interna de um euquero como testemunho suficiente da existência do fenômeno e uma vez que concordo com Ryle e muitos outros que esse fenômeno e todos os problemas a ele relacionados eram ignorados na Antigüidade grega tenho que aceitar o que Ryle rejeita a saber que essa faculdade foi de fato descoberta e que pode ser datada Em resumo analisarei brevemente a Vontade em termos de sua história coisa que em si tem as suas dificuldades As faculdades humanas não são ao contrario das condições e circunstâncias da vida humana contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra Se não fosse este o caso como poderiamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados Há decerto uma história das idéias e seria bem fácil traçar a história da idéia de Liberdade como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político aquele do cidadão livre e não o do escravo e de uma circunstância física factual aquela de um homem saudável cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentirse livre quando era na verdade um escravo ou quando não era capaz de mover seus membros As idéias são artefatos do espírito e sua história pressupõe a identidade imutável do homem o artífice Voltaremos mais adiante a esse problema De qualquer forma o fato é que antes do surgimento do cristianismo jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à idéia de Liberdade assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade e a faculdade da Razão a coisas que estão além do conhecimento humano ou como dissemos aqui ao Significado Começaremos nosso exame da natureza da capacidade da Vontade e de sua função na vida do espírito investigando a literatura pósclássica e pré moderna que atesta as experiências do espírito causadoras da descoberta dessa faculdade bem como as experiências que a própria descoberta causou uma literatura que cobre o periodo entre a Epístola de São Paulo aos romanos e o questionamento de Duns Scotus à posição de São Tomás de Aquino Mas antes irei tratar de maneira breve de Aristóteles em parte pela influência decisiva que O filósofo exerceu sobre o pensamento medieval em parte porque sua noção deproairesis em minha opinião uma espécie de precursora da Vontade pode servir como exemplo paradigmático de como certas questões da alma foram levantadas e respondidas antes da descoberta da Vontade Essa seção entretanto que abarca os capítulos II e III será precedida de uma consideração preliminar bastante longa sobre argumentos e teorias que desde o reflorescimento da filosofia no século XVII encobriram mas também reinterpretaram muitas dessas experiências autênticas Afinal é com essas teorias doutrinas e argumentos em mente que abordamos nosso tema A seção final começa com um exame da conversão de Nietzsche e de Heidegger à filosofia da Antigüidade como conseqüência de sua reavaliação e de seu repúdio à faculdade da Vontade Iremos nos perguntar então se os homens de ação não estariam talvez em melhorposição para aprendera lidarcomos problemas da Vontade do que os pensadores contemplados no primeiro volume deste estudo O que estará em jogo aqui é a Vontade como fonte da ação isto é como um poder para começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos Kant Sem dúvida todo homem pelo fato de ter nascido é um novo começo e seu poder de começar pode muito bem corresponder a este fato da condição humana E na linha dessas reflexões agostinianas que a Vontade foi às vezes e não só por Santo Agostinho considerada uma atualização doprincipium individual ionis A questão é como essa faculdade de ser capaz de ocasionar algo novo e assim mudar o mundo pode funcionar no mundo das aparências isto é em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recémchegados no foi dos fatos fieri factus sum Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 Tempo e atividades do espírito Concluí o primeiro volume de A vida do espírito com certas especulações sobre o tempo Foi uma tentativa de esclarecer uma questão bastante antiga levantada primeiramente por Platão sem jamais ter sido por ele respondida onde fica o topos noetos a região do espírito na qual habita o filósofo1 Reformulei a questão no decorrer da investigação onde estamos quando pensamos Para onde nos retiramos quando nos retiramos do mundo das aparências interrompemos todas as atividades habituais e iniciamos aquilo a que Parmênides no começo de nossa tradição filosófica nos encorajou tão enfaticamente Olhe para aquilo que embora ausente para os sentidos está tão firmemente presente em nosso espírito2 Formulada em termos espaciais a questão recebeu uma resposta negativa Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir o ego pensante invisível não está a rigor em Lugar Nenhum Retirouse do mundo das aparências inclusive de seu próprio corpo e portanto também do êu do qual não mais tem consciência E isso aponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte e de Valéry poder dizer Tantôtje pense et tantôtje suis dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real aparente não pensa Seguese daí que nossa pergunta onde estamos quando pensamos foi feita de fora da experiência de pensamento e foi portanto imprópria Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do ego pensante deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada A memória o poder que o espírito possui de ter presente aquilo que irrevogavelmente já passou e que está portanto ausente dos sentidos foi sempre o exemplo paradigmático mais plausível do poder que o espírito tem de tomar presentes os invisíveis Porque tem esse poder o espírito parece ser até mais forte que a realidade opõe sua força à futilidade inerente a tudo o que está sujeito à mudança recupera e relembra o que de outra forma estaria condenado à ruína e ao esquecimento A região temporal em que se dá esse salvamento é o Presente do ego pensante uma espécie de hoje todayness duradouro hodiernos do dia de hoje era como Santo Agostinho chamava a eternidade de Deus3 o agora permanente mine stans da meditação medieval um presente que dura oprésent qui dure de Bergson4 a lacuna entre o passado e o futuro conforme a designação que demos ao explicar a parábola kafkiana do tempo Mas é somente quando aceitamos a interpretação medieval dessa experiência temporal como um indício da eternidade divina que somos forçados a concluir que não só a espacialidade mas também a temporalidade é provisoriamente suspensa nas atividades do espírito Tal interpretação envolve toda a nossa vida espiritual em uma aura de misticismo e estranhamente desconsidera exatamente o que há de comum na experiência em si A constituição de um presente que dura é o ato habitual normal banal do nosso intelecto5 realizado em qualquer tipo de reflexão seja quando ela tem como objeto as ocorrências comuns do diaa dia seja quando a atenção se concentra em coisas etemamente invisíveis que ficam de fora da esfera do poder humano A atividade do espírito sempre cria para si mesma un présent qui dure uma lacuna entre o passado e o futuro Aristóteles ao que parece foi o primeiro a mencionar essa suspensão do movimento do tempo em um presente que dura e isso é interessante notar em sua discussão sobre prazer hedone no livro X da Ética a Nicômaco O prazer ele diz não está no tempo Pois o que se dá em um Agora é um todo não há movimento E uma vez que segundo ele a atividade de pensar maravilhosa em pureza e certeza era a mais prazerosa de todas as atividades fica claro que ele estava falando do Agora imóvel6 que viria a ser mais tarde o nunc starts Para ele o mais sensato de todos os grandes pensadores este parecia ser um momento de êxtase tão grande quanto o dos místicos medievais só que Aristóteles seria é claro o último a se deixar levar por extravagâncias histéricas Disse anteriormente que as atividades do espírito e especialmente a atividade do pensamento sempre estão fora de ordem quando vistas da perspectiva da continuidade incólume de nossos negócios no mundo das aparências A cadeia de agoras aí desenrolase inexoravelmente fazendo com que se compreenda o presente como unindo precariamente passado e futuro no momento em que tentamos definilo ele já é ou um não mais ou um ainda não Desse ângulo o presente que dura se parece com um agora prolongado uma contradição em termos como se o ego pensante fosse capaz de esticar o momento produzindo assim uma espécie de hábitat espacial para si Mas essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo Como nos diz Bergson que descobriu isso são todos termos tomados de empréstimo à linguagem espacial Se desejamos refletir sobre o tempo é o espaço que responde Assim a duração é sempre expressa como extensão7 e o passado é entendido como algo que fica atrás de nós o futuro fica em algum lugar à nossa frente A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia para nossas atividades cotidianas no mundo sobre as quais o ego pensante pode refletir mas nas quais ele não está envolvido precisamos de medidas de tempo e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais Mesmo a distinção comum entre justaposição espacial e sucessão temporal pressupõe um espaço estendido no qual a sucessão se deve dar Estas considerações preliminares e de modo algum satisfatórias sobre o conceito de tempo parecemme necessárias em nossa discussão sobre o ego volitivo porque a Vontade se é que ela existe e uma quantidade desconfortável de grandes filósofos que nunca duvidaram da razão ou do pensamento sustentaram que a Vontade não passa de uma ilusão é obviamente o nosso órgão espiritual para o futuro do mesmo modo que a memória é o nosso órgão espiritual para o passado A estranha ambivalência da língua inglesa na qual will como auxiliar designa o futuro enquanto o verbo to will indica volições atesta em realidade nossas in certezas quanto a esses assuntos Em nosso contexto o problema básico com a Vontade é que ela não lida simplesmente com coisas que estão ausentes de nossos sentidos e que precisam se fazer presentes através do poder de representação do espírito mas lida também com coisas visíveis e invisíveis que absolutamente nunca existiram No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro não estamos mais preocupados com objetos mas sim com projetos e não importa se eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras E assim como o passado apresentase ao espírito sempre com o aspecto de certeza a característica principal do futuro é sua incerteza básica por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão Em outras palavras estamos lidando com coisas que nunca foram que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser Nosso Testamento nossa Última Vontade preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão a saber nossa própria morte mostra que a necessidade da Vontade de querer não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar em ambos os casos o espírito transcende suas próprias limitações naturais seja por fazer perguntas irrespondíveis seja por projetarse em um futuro que para o sujeito volitivo jamais será Aristóteles lançou as bases para uma tomada de posição da filosofia em relação à Vontade e através dos séculos a solidez dessas bases resistiu a testes e desafios da maior importância Segundo Aristóteles8 todas as coisas que podem ser ou não ser que aconteceram mas que poderíam não ter acontecido são por acaso kata symbebekos ou na tradução latina são por acidente ou contingência em contraposição àquilo que necessariamente é como é que é e não pode não ser A isto Aristóteles chamou hypokeimenori é o que subjaz a tudo que é acrescentado por acaso isto é a tudo o que não pertença à própria essência como a cor é acrescentada a objetos cuja essência é independente de tais qualidades secundárias Os atributos que podem ou não se juntar ao que subjaz a eles seu substrato ou substância as traduções latinas para hypokeimenori são acidentais Pouca coisa é mais contingente do que atos voluntários os quais pressupondose uma vontade livre poderíam todos ser definidos como atos que sei muito bem que podería ter deixado de fazer Uma vontade que não é livre é uma contradição em termos a não ser que se entenda a faculdade da volição como um órgão executivo meramente auxiliar para o que quer que o desejo ou a razão tenham proposto No quadro dessas categorias tudo o que acontece no campo dos assuntos humanos é acidental ou contingente prakton desti to endechomenon kai allos echein o que vem a ser através de uma ação é aquilo que podería também ser outro9 as próprias palavras de Aristóteles já indicam o status ontológico baixo deste campo um status que nunca foi seriamente ameaçado até a descoberta de Hegel do Sentido e da Necessidade na História Na esfera das atividades humanas Aristóteles admitiu uma exceção importante a esta regra a saber a feitura ou fabricação poiein diferente de prattein ação ou praxis Para usar o exemplo de Aristóteles o artesão que faz uma esfera de bronze reúne matéria e forma bronze e esfera ambos com existência anterior ao começo de seu trabalho e produz um objeto novo a ser acrescentado a um mundo que consiste de coisas feitas pelo homem e de coisas que ganharam existência independentemente dos atos humanos O produto humano esse composto de matéria e forma por exemplo uma casa de madeira feita segundo uma forma préexistente no espírito nous do artesão claramente não foi feito do nada e assim Aristóteles compreendia que ele préexistia potencialmente antes de ser atualizado por mãos humanas Essa noção foi derivada do modo de ser particular da natureza das coisas vivas em que tudo o que aparece cresce de alguma coisa que contém potencialmente o produto final como o carvalho existe potencialmente na semente e o animal no sêmen A visão de que tudo o que é real deve ser precedido de uma potencialidade como uma de suas causas nega implicitamente o futuro como um tempo verbal autêntico o futuro nada mais é que uma conseqüência do passado e a diferença entre as coisas naturais e as feitas pelos homens reside simplesmente na distinção entre aquelas cujas potencialidades necessariamente transformamse em atualidades e aquelas que podem ou não se atualizar Nessas circunstâncias qualquer idéia da Vontade como órgão para o futuro do mesmo modo que a memória é um órgão para o passado era completa mente supérflua Aristóteles não precisava ter consciência da existência da Vontade os gregos sequer têm uma palavra para o que consideramos a fonte principal da ação Thelein significa estar pronto estar preparado para algo boulesthai é ver algo como mais desejável e a própria palavra nova inventada por Aristóteles que se aproxima mais do que essas da nossa idéia de algum estado espiritual que tenha que preceder a ação é proairesis a escolha entre duas possibilidades ou melhor a preferência que me faz escolher uma ação ao invés de outra10 Autores que conhecem bem a literatura grega sempre souberam desta lacuna Assim Gilson aponta o fato notório de que Aristóteles não fala de liberdade nem de vontade livre o próprio termo falta11 e já em Hobbes temos este ponto bastante explícito12 A lacuna fica ainda um tanto difícil de identificar pois é claro que a língua grega conhece a diferença entre atos intencionais e não intencionais entre o voluntário hekon e o involuntário akori isto é em termos legais entre assassinato e homicídio culposo e Aristóteles tem o cuidado de observar que só os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou à exaltação13 Mas o que ele entende por voluntário significa somente que o ato não foi casual mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física a fonte do movimento estava no agente14 e a distinção engloba apenas danos cometidos por ignorância ou infortúnio Um ato no qual estou sob a ameaça de violência mas a que não sou forçado fisicamente como no caso em que dou meu dinheiro com minhas próprias mãos ao homem que me ameaça com uma arma seria qualificado como voluntário É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado volições em suas freqüentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta15 e portanto de que não é possível sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tomado objeto de debate na filosofia de Sócrates Platão e Aristóteles16 está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antigüidade que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra a recorrente transformação de dia e noite verão e inverno a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte Quando Aristóteles sustenta que vira ser necessariamente implica a préexistência de algo que é em potência mas não em ato17 ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive em que de fato todo fim é um começo e todo começo um fim de maneira que o viraser continue embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas18 Isso a ponto de poder dizer que não só eventos mas até mesmo opiniões doxai ocorrendo entre os homens repetemse não só uma ou poucas vezes mas com infinita freqüência19 Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktema es aei um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história baseavase implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos Para nós que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo com sua ênfase na unicidade do momento histórico a exaltação grega pré filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida seja para o mal ou para o bem Tucídides para além de todas as considerações morais ele merece ser salvo do esquecimento primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores parece ser incompatível com o conceito cíclico de tempo dos antigos Mas até que os filósofos descobrissem a perenidade do Ser que não tem nascimento e morte o tempo e a mudança no tempo não constituíam problema Os anos circulares de Homero forneciam apenas o pano de fundo em que a notável história aparecera e era narrada Podese encontrar indícios dessa visão não especulativa mais antiga em toda a literatura grega assim o próprio Aristóteles em sua discussão sobre a eudaimonia na Ética a Nicômaco está pensando em termos homéricos quando aponta os altos e baixos as circunstâncias acidentais tychai que voltam muitas vezes na vida de uma pessoa ao passo que sua eudaimonia é mais durável porque reside em certas atividades energeiai kat areten que vale a pena lembrar por sua excelência e em torno das quais portanto o esquecimento não cresce genesthai1 Quaisquer que sejam as origens e as influências históricas que possamos atribuir ao conceito cíclico de tempo babilônicas persas egípcias seu aparecimento foi do ponto de vista lógico quase inevitável uma vez que os filósofos tinham descoberto um Ser perene sem nascimento e sem morte dentro de cuja estrutura eles precisavam explicar o movimento a mudança o constante ir e vir dos seres vivos Aristóteles foi bastante explícito com relação à primazia do pressuposto de que o todo celestial não foi gerado e não pode ser destruído como alegam alguns mas é único e eterno não tendo começo ou fim em sua existência total contendo e abrangendo em si tempo infinito21 Que tudo retoma é de fato como observou Nietzsche a maior aproximação possível entre um mundo de Devir e um mundo de Ser22 Não é portanto de se estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade nosso órgão espiritual para o futuro em princípio indeterminado sendo portanto um possível anunciador de novidade Estranho mesmo é verificar que uma tendência tão forte para denunciar a Vontade como uma ilusão ou como uma hipótese inteiramente supérflua depois da crença hebraicocristã em um início divino No princípio Deus criou os céus e a terra tenha se tomado um pressuposto dogmático em filosofia Especialmente quando esse novo credo também estabelecia que o homem era a única criatura feita à imagem do próprio Deus dotada portanto de uma faculdade semelhante de começar Ainda assim de todos os pensadores cristãos somente Santo Agostinho ao que parece tirou a conclusão Initium ut esset creatus est homo Para que um começo fosse feito o homem foi criado23 A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta autônoma esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã que iremos examinar adiante em mais detalhe Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega em especial para com Aristóteles ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antigüidade e sua noção de eterna recorrência A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a morte e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos que não se podem repetir Cristo um dia morreu por nossos pecados e levantando se dos mortos Ele não mais morreu24 A seqüência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo tem um início definido um ponto decisivo o ano Um de nosso calendário25 e um fim definido E foi uma história da máxima importância para os cristãos embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem como no passado Além do mais a vida após a morte do cristão era decidida enquanto ele ainda era um peregrino na terra ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua Liberdade necessária foram em toda a sua complexidade descobertas primeiramente por São Paulo Uma das dificuldades de nosso tópico portanto é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua origem histórica na teologia mais do que em uma tradição contínua de pensamento filosófico26 Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pósantigos sobre a localização da liberdade humana no euquero claro está que no esquema do pensamento précristão a liberdade localizavase no euposso liberdade era um estado objetivo do corpo não um dado da consciência ou do espírito Liberdade significava poder fazer o que se quer sem ser forçado pela ordem de um senhor nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo nem por algum defeito somático tal como saúde má ou paralisia de um dos membros Segundo a etimologia grega isto é segundo a autointerpretação grega a raiz da palavra liberdade eleutheria é eleuthein hopos ero ir conforme eu queira27 e não resta dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento Uma pessoa era livre se pudesse locomoverse como quisesse o euposso não o euquero era o critério 2 A Vontade e a Era Moderna No contexto dessas considerações preliminares podemos nos permitir saltar as complexidades da Era Medieval e tentar uma rápida olhada no próximo ponto crítico importante em nossa história intelectual o surgimento da Era Moderna Aqui é de se esperar que haja um interesse ainda mais forte do que no período medieval em um órgão espiritual próprio para o futuro uma vez que o conceito principal e completamente novo da Era Moderna a noção de Progresso como força que governa a história humanacolocou uma ênfase sem precedentes no futuro Ainda assim as especulações medievais sobre o assunto ainda exerciam grande influência pelo menos durante os séculos XVI e XVII E era tão forte a suspeita em relação à faculdade da Vontade tão aguda a relutância em conceder aos seres humanos desprotegidos por qualquer Providência ou orientação divina um poder absoluto sobre seus próprios destinos oprimindoos assim com uma responsabilidade formidável por coisas cuja própria existência dependería só deles tão grande nas palavras de Kant era o embaraço da razão especulativa ao lidar com a questão da liberdade da vontade a saber com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou estados28 distinto da faculdade de escolha entre dois ou mais objetos dados o liberum arbitrium no sentido estrito que foi somente na última fase da Era Moderna que a Vontade começou a substituir a Razão como a mais alta faculdade do espírito Isso coincidiu com a última era de autêntico pensamento metafísico na virada do século XIX ainda no estilo da metafísica que começou com o equacionamento de Parmênides entre Ser e Pensar to gar auto esti noein te kai einai de repente logo depois de Kant passou a ser comum equacionar Querer e Ser Assim Schiller declarou que não há outro poder no homem a não ser a sua Vontade e que a Vontade como o fundamento da realidade tem poder sobre a Razão e a Sensualidade cuja oposição a oposição de duas necessidades Verdade e Paixão provê a origem da liberdade29 Assim Schopenhauer concluiu que a coisaemsi kantiana o Ser por trás das aparências a natureza mais interna do mundo seu cerne do qual o mundo objetivo é simplesmente o lado de fora é a Vontade30 enquanto Schelling em um nível muito mais alto de especulação declarou apoditicamente Na instância final e mais alta não há outro Ser além da vontade31 Esse desenvolvimento contudo alcançou o ápice com a filosofia da história de Hegel a qual por esta razão prefiro tratar em separado e chegou a um final surpreendentemente rápido no final do mesmo século A filosofia de Nietzsche centrada na Vontade de Potência parece à primeira vista constituir o clímax da ascendência da Vontade na reflexão teórica Penso que essa interpretação de Nietzsche é um equívoco em parte causado pelas circunstâncias bastantes infelizes que cercaram as primeiras edições não críticas de suas publicações póstumas Devemos a Nietzsche muitos insights decisivos a respeito da natureza da faculdade da Vontade e do ego volitivo aos quais voltaremos mais tarde em seus trabalhos contudo a maior parte das passagens sobre a Vontade dá testemunho de uma declarada hostilidade com relação à teoria da liberdade da Vontade refutada centenas de vezes teoria que deve sua permanência precisamente ao fato de ser refutável Sempre aparece alguém que se sente forte o suficiente para refutála uma vez mais32 A refutação final do próprio Nietzsche está contida em seu pensamento do Eterno Retomo o conceito básico do Zaratustra que expressa a mais alta fórmula de afirmação possível33 Como tal ele se localiza historicamente na série de teodicéias essas estranhas justificativas de Deus e do Ser de que os filósofos desde o século XVII sentiram necessidade para reconciliar o espírito do homem com o mundo no qual ele deveria passar sua vida O pensamento do Eterno Retomo implica uma negação incondicional do conceito retilíneo moderno de tempo e de seu curso progressivo e nada mais é do que uma volta explícita ao conceito cíclico de tempo da Antigüidade O que o toma moderno é o tom trágico no qual é expresso indicando a proporção de veemência deliberada de que o homem moderno precisa para recuperar o simples espanto admirativo e afirmador thaumazein que foi um dia para Platão o começo da filosofia A filosofia moderna ao contrário originarase na dúvida cartesiana e leibniziana de que o Ser Por que há algo e não antes o nada pudesse absolutamente ser justificado Nietzsche fala do Eterno Retomo no tom de uma conversão religiosa e foi uma conversão que o levou a este pensamento ainda que ela não tivesse sido religiosa Com este pensamento Nietzsche tentou converterse ao antigo conceito de Ser e negar todo o credo filosófico da Era Moderna a qual ele foi o primeiro a diagnosticar como a Era da suspeita Atribuindo seu pensamento a uma inspiração ele não tem dúvidas de que seria preciso voltar milhares de anos no tempo para encontrar alguém que tivesse o direito de dizer a ele esta é também a minha experiência34 Embora Nietzsche nas primeiras décadas de nosso século tenha sido lido e mal interpretado por quase todo mundo na comunidade intelectual européia sua influência na filosofia a rigor foi mínima hoje em dia não há nietzscheanos no mesmo sentido em que há ainda kantianos e hegelianos Seu primeiro reconhecimento como filósofo veio com a revolta bastante destacada dos pensadores contra a filosofia acadêmica que leva o infeliz título de existencialismo Não houve estudo sério sobre o pensamento de Nietzsche antes dos livros de Jaspers e de Heidegger35 e ainda assim isso não quer dizer que Jaspers ou Heidegger possam ser concebidos como fundadores tardios de uma escola nietzscheana Mais importante neste contexto é que nem Jaspers nem Heidegger põem em sua própria filosofia a Vontade como o centro das faculdades humanas Para Jaspers a liberdade humana é assegurada por não termos a verdade a verdade compele e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais Preciso querer porque não sei O Ser que é inacessível ao conhecimento pode ser revelado somente à minha volição Nãosaber é a raiz de ter que querer36 Heidegger compartilhara na fase mais inicial de seu trabalho da ênfase da Era Moderna no futuro como entidade temporal decisiva o futuro é o fenômeno primário de uma temporalidade original e autêntica e introduzira Sorge uma palavra alemã que apareceu pela primeira vez como termo filosófico em Ser e tempo e que significa um cuidado com e também preocupação com o futuro como o fato existencial básico da existência humana Dez anos mais tarde ele rompeu com toda a fi losofia da Era Moderna no segundo volume de seu li vro sobre Nietzsche precisamente porque descobrira até que ponto a própria Era e não somente seus produtos teóricos baseavase na dominação da Vontade Concluiu sua filosofia da fase final com a proposição aparentemente paradoxal do querernãoquerer37 E certo que em sua filosofia inicial Heidegger não compartilhou da crença moderna no Progresso e que sua proposição querernãoquerer nada tem a ver com a superação nietzscheana da Vontade através de sua restrição ao querer que tudo que aconteça continue acontecendo repetidas vezes Mas o famoso Kehre de Heidegger a grande reviravolta em sua filosofia da fase final é no entanto algo semelhante à conversão de Nietzsche em primeiro lugar foi uma espécie de conversão e em segundo teve a conseqüência idêntica de leválo de volta aos primeiros pensadores gregos É como se no final das contas os pensadores da Era Moderna escapassem para uma terra do pensamento Kant38 na qual as suas próprias preocupações especificamente modernas com o futuro com a Vontade como seu órgão espiritual para o futuro e com a liberdade como um problema não existissem na qual em outras palavras não houvesse qualquer noção de uma faculdade do espírito que pudesse corresponder à liberdade do mesmo modo que a faculdade do pensamento correspondeu à verdade 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pósmedieval O propósito dessas observações preliminares é facilitar nossa abordagem das complexidades do ego volitivo nessa nossa preocupação metodológica dificilmente podemos nos permitir desconsiderar o fato simples de que toda filosofia da Vontade é produto do ego pensante e não do ego volitivo Embora é claro seja sempre o mesmo espírito que pensa e quer vimos que não se pode confiar em que a avaliação das outras faculdades do espírito pelo ego pensante permaneça imparcial com certeza ficamos desconfiados quando encontramos pensadores com filosofias gerais bastante diferentes levantando argumentos idênticos contra a Vontade Esboçarei brevemente as principais objeções assim como elas aparecem na filosofia pósmedieval antes de entrar em uma discussão sobre a posição de Hegel Há em primeiro lugar a descrença sempre recorrente na própria existência da faculdade de querer Suspeitase que a Vontade seja uma mera ilusão um fantasma da consciência uma espécie de engano inerente à própria estrutura da consciência Um pião de madeira nas palavras de Hobbes impulsionado pelos meninos às vezes rodando às vezes atingindo os homens na canela se fosse sensível ao próprio movimento pensaria que este procedia de sua própria vontade a não ser que sentisse o que o estava pondo em movimento39 E Espinoza seguia a mesma linha de pensamento uma pedra posta em movimento por alguma força externa acreditaria ser completamente livre e pensaria permanecer em movimento somente por sua própria vontade contanto que estivesse consciente de seu esforço e fosse capaz de pensar411 Em outras palavras os homens acreditam ser livres simplesmente porque são conscientes de suas ações sem ter consciência das causas pelas quais estas ações são determinadas Assim os homens são subjetivamente livres e objetivamente assujeitados As correlações de Espinoza levantam a objeção óbvia Se isto nos fosse dado toda maldade seria desculpável o que não o perturba nem um pouco Ele responde Os homens maus não devem ser menos temidos e não são menos nocivos quando são maus por necessidade41 Hobbes e Espinoza admitem a existência da Vontade como uma faculdade sentida subjetivamente negando somente sua liberdade Reconheço essa liberdade de que posso fazer se quiser mas tomo como um discurso absurdo dizer que posso querer se quiser Pois a Liberdade significa a rigor a ausência de impedimentos externos para o movimento Mas quando esse impedimento do movimento está na constituição da coisa em si não costumamos dizer dela que quer a liberdade mas sim que quer o poder de moverse como no caso de uma pedra imóvel ou de um homem que está preso à cama por enfermidade Tais reflexões estão em perfeita harmonia com a posição grega a esse respeito O que já não se alinha com a filosofia clássica é a conclusão de Hobbes de que Liberdade e necessidade são congruentes como no caso da água que tem não só a liberdade mas também uma necessidade de descer pelo canal Assim como ocorre nas ações que os homens realizam voluntariamente porque essas ações procedem de sua vontade elas procedem da liberdade ainda assim porque todo ato da vontade do homem procede de alguma causa e esta de uma outra causa em uma cadeia contínua todo ato da vontade do homem procede da necessidade De modo que para aquele que pudesse enxergar a conexão dessas causas ficaria evidente a necessidade de todas as ações voluntárias do homem42 Tanto em Hobbes quanto em Espinoza a negação da Vontade está muito bem fundada em suas respectivas filosofias Mas encontramos praticamente o mesmo argumento em Schopenhauer cuja filosofia geral era quase o oposto e para quem a consciência ou a subjetividade eram a própria essência do Ser como Hobbes ele não nega a Vontade mas nega que a Vontade seja livre há um sentimento ilusório de liberdade quando tenho a experiência da volição quando delibero sobre o que farei em seguida e depois de rejeitar várias possibilidades chego finalmente a alguma decisão determinada isto é feito com uma vontade tão livre quanto a da água se dissesse para si mesma posso fazer grandes ondas Posso descer montanha abaixoPosso cair espumando e jorrandoPosso erguerme livremente como uma corrente de água no ar numa fonte mas não estou fazendo nada disso agora e por vontade própria permaneço água quieta e clara no lago espelhado43 Esse tipo de argumento está melhor resumido por John Stuart Mill no trecho já citado Nossa consciência interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos grifo nosso44 O que impressiona nessas objeções contra a própria existência da faculdade de querer é em primeiro lugar o fato de que elas são levantadas invariavelmente nos termos da idéia moderna de consciência uma noção tão ignorada pela filosofia antiga quanto a noção de Vontade A synesis grega poder compartilhar um conhecimento comigo mesmo syniemi sobre coisas que ninguém mais pode testemunhar é mais uma precursora da consciência moral do que da consciência45 como se pode ver quando Platão menciona o modo como a memória do feito sangrento atormenta o homicida46 No mais as mesmas objeções poderíam facilmente ser levantadas mas quase nunca foram contra a existência da faculdade do pensamento Sem dúvida o cálculo das conseqüências de Hobbes quando entendido como pensamento não dará margem a tais suspeitas mas esse poder de imaginar e fazer cálculos futuros coincide em vez disso com as deliberações do ego volitivo sobre os meios para alcançar um fim ou com a capacidade usada na resolução de enigmas e problemas matemáticos Um equacionamento do gênero está claramente por trás da refutação que Ryle faz da doutrina de que existe uma Faculdade da Vontade e que portanto ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como volições Nas palavras do próprio Ryle Ninguém diz jamais coisas como ele desempenhou cinco volições rápidas e fáceis e duas volições lentas e difíceis entre o meiodia e a hora do lanche47 Não se pode sustentar a sério que produtosdepensamento duráveis tais como A crítica da razão pura de Kant ou a Fenomenologia do espírito de Hegel pudessem algum dia ser compreendidos nesses termos Os únicos filósofos que conheço que ousaram duvidar da faculdade do pensamento foram Nietzsche e Wittgenstein Este em seus primeiros experimentos de pensamento sustentava que o ego pensante o que ele chamava de vorstellendes Subjekt derivando sua teoria de Schopenhauer poderia em última instância ser mera superstição provavelmente uma ilusão vazia mas o sujeito volitivo existe Justificando sua tese Wittgenstein reitera os argumentos co mumente levantados no século XVII contra a negação da Vontade de Espinoza a saber se a Vontade não existisse tampouco existiría o portador da ética48 Quanto a Nietzsche é preciso dizer que tinha suas dúvidas tanto com relação à vontade quanto ao pensamento O fato perturbador de que entre os filósofos até mesmo os chamados voluntaristas aqueles inteiramente convencidos como Hobbes do poder da vontade pudessem resvalar tão facilmente para a dúvida quanto à própria existência da faculdade de querer pode ser de certa forma esclarecido examinandose a segunda de nossas dificuldades sempre recorrentes O que despertou a desconfiança dos filósofos foi precisamente a conexão inevitável com a Liberdade repetindo a noção de uma vontade nãolivre é uma contradição em termos Se devo necessariamente querer por que então preciso falar da vontade Nossa vontade não seria vontade se não estivesse em nosso poder Por estar em nosso poder é livre49 Para citar Descartes que se pode contar entre os voluntaristas Ninguém levando em consideração somente a si mesmo deixa de experimentar o fato de que a vontade e a liberdade são uma só50 Como já disse mais de uma vez a pedra de toque de um ato livre desde a decisão de sair da cama de manhã ou de dar um passeio à tarde até as mais altas resoluções com as quais nos comprometemos para o futuro é que sempre sabemos que poderiamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos A Vontade ao que parece é caracterizada por uma liberdade infinitamente maior que o pensamento e para repetir mais uma vez este fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção Assim ouvimos de Descartes Sou consciente de uma vontade tão vasta que não se pode submeter a limites E somente a vontade livre que encontro tão grande em mim que não consigo conceber qualquer outra idéia como maior do que ela é essa vontade que me faz saber que trago comigo a imagem e semelhança de Deus c acrescenta imediatamente que essa experiência consiste unicamente no fato de que agimos de tal modo que não estamos minimamente conscientes de que qualquer força externa nos limite a capacidade de escolher o que vamos ou o que não vamos fazer51 Falando assim Descartes deixa uma porta bem aberta por um lado para as dúvidas de seus sucessores e por outro para as tentativas contemporâneas de fazer com que os desígnios de Deus se harmonizem com a liberdade de nossa vontade52 O próprio Descartes pouco disposto a envolverse nas grandes dificuldades que resultariam se nos comprometéssemos a conciliar previdência e onipotência de Deus com liberdade humana apela explicitamente para as benéficas limitações de nosso pensamento o qual é finito e portanto sujeito a certas regras como por exemplo o axioma da nãocontradição e as convincentes necessidades da verdade auto evidente53 E é precisamente a liberdade sem lei de que a vontade parece gozar que fez com que até mesmo Kant falasse ocasionalmente de liberdade como mais que uma simples entidade do pensamento um fantasma do cérebro54 Outros como Schopenhauer acharam mais fácil conciliar Liberdade e Necessidade escapando assim do dilema inerente ao simples fato de que o homem é ao mesmo tempo um ser que pensa e que quer uma coincidência carregada das mais sérias conseqüências declarando simplesmente o homem faz o tempo todo somente o que quer e ainda assim o faz necessariamente Mas isso é porque ele é o que quer Subjetivamente todos sentem que fazem sempre apenas aquilo que querem Mas isso significaria simplesmente que sua atividade é uma pura expressão de seu próprio ser Todo ser natural mesmo o mais inferior sentiría o mesmo se pudesse sentir55 Nossa terceira dificuldade está ligada a esse dilema Aos olhos dos filósofos que advogaram o ego pensante foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica Mas antes da Era Moderna existiram não muitas mas algumas vias de escape bastante trilhadas pelo menos pelos filósofos Na Antigüidade havia o bios theoretikost o pensador habitava a vizinhança das coisas necessárias e perenes tomando parte em seu Ser até o ponto em que isso é possível para os mortais Na era da filosofia cristã havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades mas também o pensamento consolador da divina Providência conjugado à expectativa de uma vida após a morte quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro a alma vendo cara a cara ao invés de por espelho obscuramente não mais conhecendo só em parte pois ela conhecerá tanto quanto é conhecida Sem tal esperança de um Além até mesmo Kant julgava a vida infeliz demais por demais destituída de sentido para ser suportada E óbvio que a progressiva secularização ou melhor descristianização do mundo moderno ligada como estava a uma ênfase inteiramente nova no futuro no progresso e portanto nas coisas que não são nem necessárias nem eternas acabaria por expor os pensadores à contingência de todas as coisas humanas de uma maneira mais radical e impiedosa do que nunca O que desde o fim da Antigüidade fora o problema da liberdade agora estava incorporado por assim dizer ao acaso da história cheia de som e de fúria uma história narrada por um idiota significando nada a que correspondia o caráter fortuito das decisões pessoais que se originam em uma vontade livre que não foi guiada nem pela razão nem pelo desejo Este velho problema reaparecendo na roupagem de uma nova era a Era do Progresso que só agora em nosso próprio tempo está alcançando o fim à medida que o Progresso aproximase rapidamente dos limites dados pela condição humana na Terra encontrou sua pseudosolução na filosofia da história do século XIX cujo maior representante produziu uma teoria engenhosa de uma Razão e de um Significado escondidos no curso dos acontecimentos do mundo guiando as vontades dos homens em toda sua contingência na direção de um objetivo final que eles jamais pretenderam alcançar Uma vez que se complete esta história e Hegel parece ter acreditado que o início do fim da história era contemporâneo à Revolução Francesa o olhar retrospectivo do filósofo pelo puro esforço do ego pensante pode internalizar e relembrar ex innerri a falta de sentido e a necessidade do movimento que se desenrola de modo que possa novamente morar com o que é e não pode nãoser Afinal em outras palavras o processo do pensamento mais uma vez coincide com o autêntico Ser o pensamento depurou a realidade daquilo que é meramente acidental 4 O problema do novo Se reconsideramos as objeções levantadas pelos filósofos contra a Vontade contra a existência da faculdade contra a noção de liberdade humana nela implícita e contra a contingência que adere a uma vontade livre isto é a um ato que por definição podese deixar de realizar tomase óbvio que elas se aplicam muito menos ao que a tradição conhece como liberum arbitrium a liberdade de escolha entre dois ou mais objetos desejados ou entre dois modos de conduta do que à Vontade como um órgão para o futuro idêntica ao poder de começar algo novo O liberum arbitrium decide entre coisas igualmente possíveis e dadas a nós por assim dizer em statu nascendi como simples potencialidades enquanto o poder de começar algo realmente novo não poderia propriamente ser precedido por qualquer potencialidade que figuraria nesse caso como uma das causas do ato realizado Mencionei anteriormente o embaraço de Kant para lidar com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos por exemplo se neste momento levantome de minha cadeira uma nova série tem seu começo absoluto com este acontecimento embora acrescenta ele no que diz respeito ao tempo este acontecimento seja apenas a continuação de uma série precedente56 Bastante problemática é a noção de um começo absoluto pois uma série começando no mundo pode apenas relativamente ter um primeiro começo sendo sempre precedida de algum outro estado de coisas e isso naturalmente também se aplica à pessoa do pensador visto que eu que penso jamais deixo de ser uma aparência entre aparências por mais que consiga retirarme dessas aparências espiritualmente Sem dúvida a própria hipótese de um começo absoluto remonta à doutrina bíblica da Criação em contraposição às teorias orientais de emanação segundo as quais forças préexistentes desenvolveramse e expandiramse em um mundo Mas essa doutrina é uma razão suficiente em nosso contexto somente se acrescentarmos que a criação de Deus é ex nihilo e que uma criação desse tipo é desconhecida pela Bíblia hebraica tratase de um acréscimo feito em especulações posteriores57 Essas especulações surgiram quando os padres da Igreja já tinham começado a explicar a fé cristã em termos da filosofia grega isto é quando foram confrontados com o Ser para o qual a língua hebraica não tem uma palavra Parece bastante óbvio pela lógica que um equacionamento do Universo e do Ser deve implicar o nada como seu oposto ainda assim a transição de Nada para Algo é logicamente tão difícil que se pode suspeitar que foi o novo ego volitivo que a despeito de doutrinas ou credos considerou a idéia de um começo absoluto apropriada para a sua experiência de fazer projetos Pois há algo de fundamentalmente errado no exemplo de Kant Somente quando ele ao levantarse da cadeira tem em mente algo que deseja fazer é que este acontecimento começa uma nova série se não é esse o caso se ele habitualmente se levanta a essa hora ou se se levanta para pegar alguma coisa de que precisa para sua ocupação do momento este acontecimento é ele mesmo a continuação de uma série precedente Mas suponhamos que esta tenha sido uma omissão e que Kant tivesse muito claro em mente o poder de espontaneamente começar e que portanto estivesse preocupado com uma possível reconciliação entre uma nova série de atos e estados e o contínuo de tempo que essa nova série interrompe a solução tradicional para o problema mesmo naquele tempo teria sido ainda a distinção aristotélica entre potência e ato salvandose a unidade do conceito de tempo e assumindose que a nova série estava contida na série precedente Mas a insuficiência da explicação aristotélica é evidente pode alguém sustentar a sério que a sinfonia produzida por um compositor era possível antes de ser real58 A não ser que o que se entenda por possível seja apenas a idéia de que a sinfonia não era claramente impossível o que naturalmente é bem diferente de a sinfonia haver existido em um estado de potencialidade à espera de algum músico que se desse ao trabalho de tornála real Apesar disso como Bergson sabia muito bem há um outro lado da questão Do ponto de vista da memória isto é olhandose retrospectivamente um ato levado a cabo de forma livre perde seu ar de contingência sob o impacto de ser agora um fato realizado de ter se tornado parte inseparável da realidade em que vivemos O impacto da realidade é esmagador a ponto de sermos incapazes de removêla do pensamento o ato agora aparece para nós com aspecto de necessidade uma necessidade que não é absolutamente uma simples ilusão da consciência ou que se deve só à limitação de nossa habilidade para imaginar alternativas possíveis Isso é bastante óbvio no campo da ação em que nenhum feito pode ser desfeito com segurança mas aplicase também embora de maneira menos coercitiva aos incontáveis objetos que a fabricação humana constantemente acrescenta ao mundo e à sua civilização objetos de arte bem como objetos de uso é quase impossível remover do pensamento as grandes obras de arte de nossa herança cultural a deflagração das duas Guerras Mundiais ou qualquer outro acontecimento que tenha decidido a própria estrutura de nossa realidade Nas palavras do próprio Bergson Pela simples razão de ser factual a realidade lança a sua sombra atrás de si em um passado infinitamente distante assim parece ter existido em estado de potencialidade anteriormente à sua própria realização Par le seulfaitde s accomplir la réalité projette derrière son ombre dans le passé indéfiniment lointain elle parrait ainsi avoir préexisté sous forme de possible à sa propre réalization59 Visto por este ângulo que é o ângulo do ego volitivo não é a liberdade mas a necessidade que parece ser uma ilusão da consciência O insight de Bergson pareceme ao mesmo tempo elementar e altamente significativo mas não será também significativo o fato de que esta observação apesar de sua plausibilidade simples nunca tenha tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus liberdade Ao que eu saiba o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson Tratase de Duns Scotus o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e mais que isto do fator contingência em tudo o que é Se há algo como uma filosofia cristã então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como o mais importante pensador da Idade Média cristã60 mas talvez também como o único que não buscou um meio termo entre a fé cristã e a filosofia grega c que ousou portanto tomar um símbolo dos verdadeiros cristãos dizer que Deus age contingentemente Aqueles que negam que algum ser é contingente disse Scotus deveríam ser expostos a tormentos até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados61 Se a contingência que para a filosofia clássica era o máximo da falta de sentido irrompeu como realidade nos primeiros séculos da Era Cristã por causa da doutrina bíblica que opunha a contingência à necessidade a particularidade à universalidade a vontade ao intelecto assegurando assim um lugar para o contingente dentro da filosofia contra o preconceito original desta última62 ou se as abaladoras experiências políticas dos primeiros séculos daquela Era deixaram à mostra os truísmos e plausibilidades do pensamento antigo essa é uma questão que pode ficar em aberto Não resta dúvidas porém de que o preconceito original contra a contingência a particularidade e a Vontade e a predominância correspondente da necessidade da universalidade e do Intelecto sobreviveu profundamente ao desafio até a Era Moderna A filosofia religiosa e medieval bem como a secular e moderna encontraram diversas maneiras de assimilar a Vontade o órgão da liberdade e do futuro à ordem mais antiga das coisas Pois como quer que enxerguemos esses assuntos factualmente Bergson está bastante certo quando diz A maioria dos filósofos é incapaz de conceber a novidade radical e a imprevisibilidade Mesmo os poucos que acreditaram no liberum arbitrium reduziramno a uma simples escolha entre duas ou mais opções como se estas opções fossem possibilidades e a Vontade ficou restrita a realizar uma delas Logo eles ainda aceitavam que tudo é dado Parecem nunca ter tido a menor noção de uma atividade inteiramente nova E esse tipo de atividade é afinal a ação livre63 Até mesmo hoje em dia quando ouvimos uma discussão entre dois filósofos em que um deles defende o determinismo e o outro a liberdade será sempre o determinista que parecerá estar com a razão Os ouvintes sempre concordarão que ele é simples claro e verdadeiro64 Do ponto de vista teórico o problema sempre foi que a vontade livre quer concebida como liberdade de escolha ou como liberdade de começar algo novo parece ser absolutamente incompatível não só com a divina Providência mas também com a lei da causalidade a liberdade da Vontade pode ser pressuposta pela força ou melhor pela fraqueza da experiência interior mas não pode ser provada A não plausibilidade do pressuposto ou Postulado da Liberdade devese às nossas experiências externas no mundo das aparências onde na verdade a despeito do que disse Kant raramente começamos uma nova série Mesmo Bergson cuja filosofia inteira baseia se na convicção de que cada um de nós tem o conhecimento imediato de sua espontaneidade livre65 admite que embora sejamos livres quando queremos nos voltar para nós mesmos raramente queremos fazer isto E Os atos livres são excepcionais66 Os hábitos tomam conta da maioria dos nossos atos do mesmo modo como os preconceitos são responsáveis pela maioria de nossos juízos cotidianos O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser pela própria natureza incompreensível67 Pois estas coisas são tais que cada um deve experimentálas em si mesmo em vez de persuadirse delas pelo raciocínio mas vós pareceis não cuidar e não notar a maneira pela qual o espírito age no interior de si mesmo Não sejais então livres se esta liberdade não vos apraz grifo nosso68 Pode ser tentador aqui retorquir que o Cogito cartesiano certamente nada mais é do que uma ação do espírito no interior de si mesmo mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova como um mero dado da consciência O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o volo me velle mesmo em Descartes que era um voluntarista Será que aprazia menos aos pensadores profissionais ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante a liberdade do que a necessidade Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade dentro de nós ou enfraquecer a liberdade conciliandoa com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente especulativas já que não podem apelar para qualquer experiência A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal Desse modo Santo Agostinho inicia seu tratado De libero arbítrio voluntatis O livrearbítrio da vontade com a seguinte questão Digame por favor se não é Deus o autor do mal Tratase de uma questão primeiramente levantada em toda sua complexidade por São Paulo na Epístola aos romanos e em seguida generalizada para qual é a causa do mal com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem Todo esse problema atormentou os filósofos e suas tentativas de resolvêlo nunca tiveram muito sucesso via de regra seus argumentos fogem ao assunto em sua gritante simplicidade Ou negase que o mal é verdadeiramente real ele existe apenas como modalidade deficiente do bem ou se descarta o mal com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica o problema está em nosso intelecto limitado que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que somente o todo é na verdade real nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeif nas palavras de Hegel O mal não sendo nisso diferente da liberdade parece pertencer àquelas coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada69 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições religiosas ou seculares é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que foram para chegar a uma avaliação razoável do corpo Mas a hostilidade dos filósofos contra o corpo é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão Ela não é primordialmente motivada pela falibilidade da experiência sensorial pois esses erros podem ser corrigidos ou pela notória ingovemabilidade das paixões pois estas podem ser domadas pela razão mas sim pela simples e incorrigível natureza de nossas necessidades e desejos corporais O corpo como enfatiza corretamente Platão sempre quer ser cuidado e até mesmo nas melhores condições saúde e prazer por um lado e uma comunidade equilibrada por outro ele interromperá com suas repetidas exigências as atividades do ego pensante nos termos da alegoria da Caverna o corpo forçará o filósofo a retomar do céu das idéias para a Caverna dos assuntos humanos E comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão cm relação à came Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais a ressurreição da carne diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da alma mantevese em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica E claro que o antagonismo do ego pensante com relação à Vontade é de uma espécie bem diferente O conflito aqui se dá entre duas atividades espirituais que parecem incapazes de coexistir Quando produzimos uma volição isto é quando nos concentramos em um projeto futuro não nos retiramos menos do mundo das aparências do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento Pensamento e Vontade antagonizamse somente no que afetam nossos estados psíquicos ambos é verdade tomam presente para o nosso espírito o que na realidade está ausente mas o pensamento traz para seu presente duradouro aquilo que ou é ou pelo menos foi enquanto a Vontade estendendose para o futuro movese em uma região em que tais certezas não existem Nosso aparato psíquico a alma em contraposição ao espírito está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa cujas modalidades principais são esperança e medo Essas duas maneiras de sentir estão intimamente relacionadas uma vez que ambas estão propensas a dar uma guinada em direção a seu aparente oposto e dadas as incertezas desta região tais mudanças são quase automáticas Toda esperança traz consigo um medo e todo medo curase ao tomarse a esperança correspondente Foi por sua natureza mutável instável e inquieta que esses sentimentos foram incluídos pela Antigüidade Clássica entre os males da caixa de Pandora O que a alma exige do espírito nessa situação desconfortável não é tanto um dom profético para prever o futuro e assim confirmar a esperança ou o medo Bem mais tranqüilizadora que as brincadeiras fraudulentas dos adivinhos profetas astrólogos e similaresé a não menos fraudulenta teoria que alega provar que tudo o que é ou vem a ser era para ser na feliz expressão de Gibert Ryle70 O fatalismo que na verdade nenhum filósofo de primeiro ou segundo nível defendeu ou fez muito esforço para atacar realizou no entanto uma carreira assombrosamente bem sucedida no pensamento popular através dos séculos temos de fato nossos momentos de fatalismo como diz Ryle7 e a razão é que não há outra teoria que possa acalmar com tanta eficácia qualquer ímpeto de ação qualquer impulso para fazer um projeto em suma qualquer forma de eu quero Essas vantagens existenciais do fatalismo estão visivelmente esboçadas no tratado de Cícero Sobre o destino que é ainda hoje a argumentação clássica sobre a questão Para a proposição tudo está predestinado ele usa o seguinte exemplo quando adoecemos já está predestinado se vamos ou não nos recuperar quer chamemos um médico quer não72 e é claro que também estaria predestinado se iremos ou não chamar um médico Por conseguinte o argumento leva a um infinito regresso73 Designado como argumento vão ele é rejeitado porque obviamente levaria à completa extinção de toda a ação na vida Seu grande atrativo é que por meio dele o espírito liberase de toda necessidade de movimento74 Em nosso contexto o interesse da proposição reside no fato de que ela consegue extinguir totalmente o tempo verbal futuro assimilandoo ao passado O que será ou poderá ser era para ser pois tudo o que será se vai mesmo ser não pode ser concebido como se fosse para não ser quicquidfuturum est id intelligi non potest si futurum sit nonfuturum esse como disse Leibniz75 O caráter tranqüilizador da formulação vem do que Hegel chamou de a calma do passado die Ruhe der Vergangenheif16 uma calma assegurada pelo fato de que o que passou não pode ser desfeito e que a Vontade não pode querer retroativamente77 Não é o futuro enquanto tal mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado Em Hegel e Marx o poder da negação cujo motor faz avançar a História deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto o projeto nega o agora e o passado ameaçando assim o presente duradouro do ego pensante Uma vez que o espírito retirado do mundo das aparências traz para sua própria presença aquilo que está ausente o que já não é mais assim como o que não é ainda é como se o passado e o futuro pudessem unirse em um denominador comum podendo assim ser salvos juntos do fluxo do tempo Mas o nunc starts a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante embora possa absorver aquilo que não é mais sem qualquer perturbação do mundo exterior já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro Toda volição ainda que seja uma atividade do espírito relacionase com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizarse em contraste flagrante com o pensamento nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade Qualquer volição não só envolve particulares como também e isto é de grande importância anseia por seu próprio fim o momento em que o querer algo terá se transformado no fazêlo Em outras palavras o humor habitual do ego volitivo é a impaciência a inquietude e a preocupação Sorge não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo mas também porque o projeto da vontade pressupõe um euposso que não está absolutamente garantido A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um euqueroefaço isto é por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação Em resumo a Vontade sempre quer fazer algo menosprezando assim implicitamente o pensamento puro cuja atividade depende totalmente de não fazer nada Veremos quando examinarmos a história da Vontade que nunca um teólogo ou filósofo exaltou a doçura da experiência do ego volitivo doçura que os filósofos costumavam exaltar na experiência do ego pensante Há duas exceções importantes Duns Scotus e Nietzsche que entendiam a Vontade como uma espécie de poder voluntas estpotentia quia ipsa aliquidpotest Ou seja o ego volitivo comprazse consigo mesmo condelectari sibi a ponto de o euquero antecipar um euposso o euqueroeeuposso é o prazer da Vontade78 Quanto a este aspecto que vamos chamar de tonalidade das atividades do espírito a habilidade que a vontade tem de tomar presente o ainda não é exatamente oposta à lembrança A lembrança tem uma afinidade natural com o pensamento todo pensamento como dissemos é um re pensar Cadeias de pensamento surgem naturalmente da atividade de relembrar quase de forma automática sem que haja qualquer interrupção Essa é a razão pela qual a anamnesis em Platão pôde tornarse uma hipótese tão plausível para a capacidade humana de aprender e a razão pela qual Santo Agostinho pôde equacionar de maneira tão convincente espírito e memória A lembrança pode afetar a alma com um anseio pelo passado mas essa nostalgia embora possa conter dor e pesar não perturba a serenidade do espírito pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar O ego volitivo ao contrário olhando para frente e não para trás lida com coisas que estão em nosso poder mas cuja realização não está absolutamente assegurada A tensão daí resultante em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão uma mistura de medo e esperança que se toma insuportável quando se descobre que na formulação de Santo Agostinho querer e ser capaz de realizar velle e posse não são a mesma coisa A tensão pode ser superada somente pelo fazer isto é pela desistência da atividade espiritual como um todo uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento Para falar em termos de tonalidade isto é em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores independentemente dos acontecimentos externos criando assim uma espécie de vida do espírito o humor predominante do ego pensante é a serenidade o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria A medida que essa atividade está intimamente ligada à lembrança seu humor inclinase para a melancolia segundo Kant e Aristóteles o humor característico do filósofo O humor predominante da Vontade é a tensão que arruina a tranqüilidade do espírito a animi tranquilitas de Leibniz na qual segundo ele todos os filósofos sérios insistem79 e que foi por ele mesmo encontrada em cadeias de pensamento que provavam ser este o melhor dos mundos possíveis Desse ângulo a única tarefa que resta à Vontade é na verdade querer não querer uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na harmonia universal do mundo em que tudo o que é visto da perspectiva do Todo é o melhor80 Assim Leibniz com uma consistência admirável chega à conclusão de que o pecado de Judas não está em sua traição a Jesus mas em seu suicídio ao condenarse ele condenou implicitamente o todo da criação de Deus ao odiarse ele odiou o Criador81 Encontramos o mesmo pensamento na sua versão mais radical em uma das sentenças condenadas do Mestre Eckhart Tenha um homem cometido mil pecados mortais se teve uma intenção correta não deve desejar não os ter cometido Wenn jemand tausend Todsünden begangen hãtte dilrfte er ware es recht um ihn bestellt nicht wollen sie nicht begangen zu haben2 Podemos nos permitir conjecturar que esta rejeição surpreendente do arrependimento por parte de dois pensadores cristãos em Eckhart foi motivada por uma superabundância de fé que exigia à maneira de Jesus que o pecador perdoasse a si mesmo assim como se esperava que perdoasse aos outros sete vezes ao dia porque a alternativa seria declarar que teria sido melhor não só para ele como também para toda a Criação nunca ter nascido Que uma mó fosse pendurada em seu pescoço e que fosse lançado ao mar enquanto que em Leibhiz podemos vêla como uma vitória final do ego pensante sobre o ego volitivo porque a vã tentativa que este último faz de querer retroativamente quando bem sucedida poderia apenas resultar na aniquilação de tudo o que é 6 A solução de Hegel a filosofia da História Nenhum filósofo descreveu o ego volitivo em seu confronto com o ego pensante com maior simpatia insight e significação para a história do pensamento do que Hegel Temos aqui um assunto um tanto complexo não somente pela terminologia esotérica e altamente idiossincrática de Hegel mas também porque ele trata o problema todo no decorrer de suas especulações sobre o tempo e não nas escassas embora de modo algum insignificantes passagens na Fenomenologia do Espírito na Filosofia do Direito e na Filosofia da História que lidam diretamente com a Vontade Tais passagens foram reunidas e interpretadas por Alexandre Koyré em um ensaio pouco conhecido e muito importante publicado em 1934 sob o título enganador Hegel à léna63 dedicado aos textos fundamentais de Hegel sobre o tempo do Jenenser Logik e Jenenser Realphilosophie da fase inicial à Fenomenologia à Enciclopédia e aos vários manuscritos pertencentes à Filosofia da História A tradução e os comentários de Koyré tornaramse a fonte e a base da interpretação altamente influente da Fenomenologia feita por Alexandre Kojève84 Acompanharei de perto a seguir a argumentação de Koyré A tese central é de que a maior originalidade de Hegel está em sua insistência no futuro na primazia atribuída ao futuro em relação ao passado85 Isso não nos surpreendería se não se referisse a Hegel Por que um pensador do século XIX tendo em comum com seus predecessores dos séculos XVII e XVIII e com seus contemporâneos a confiança no progresso não haveria de chegar também à conclusão apropriada atribuindo ao futuro a primazia sobre o passado Afinal o próprio Hegel disse que todo mundo é filho de seu próprio tempo e portanto a filosofia é seu tempo compreendido em pensamento Mas ele também disse no mesmo contexto que entender o que existe é a tarefa da filosofia pois o que existe é razão ou o que épensadoé e o que é existe somente à medida que é pensamento gedacht ist ist und was ist ist nur insofern es Gedanke ist16 E é nessa premissa que está baseada a mais importante e decisiva contribuição de Hegel Pois Hegel é acima de tudo o primeiro pensador a conceber uma filosofia da história isto é do passado reunido pelo olhar retrospectivo do ego pensante e rememorativo ele é internalizado er innert tomase parte inseparável do espírito através do esforço do conceito dieAnstrengung desBegriffs e desta maneira intemalizadora alcança a reconciliação entre Espírito e Mundo Já houve maior triunfo do ego pensante do que o representado neste panorama Nessa retirada do mundo das aparências o ego pensante não tem mais que pagar o preço da falta de atenção e da alienação do mundo Segundo Hegel o espírito por simples força de reflexão pode assimilar para si sugar para si por assim dizer certamente não todas as aparências mas qualquer coisa que nelas tenha tido significado considerando tudo o que não é assimilável como acidente irrelevante sem significação para o curso da História ou para a linha do pensamento discursivo A primazia do passado entretanto como Koyré descobriu desaparece inteiramente quando Hegel passa a discutir o Tempo para ele acima de tudo o tempo humano87 cujo fluxo o homem inicialmente por assim dizer experimenta sem pensar como puro movimento até que acontece de ele refletir sobre os acontecimentos exteriores A atenção do espírito fica então dirigida essencialmente para o futuro isto é para o tempo que está no processo de vir em nossa direção como indica conforme já foi dito o termo alemão Zukunft vindo de zu kommen semelhante ao francês avenir cuja origem é à venir e esse futuro antecipado nega o presente permanente do espírito transformandoo em um nãomais antecipado Nesse contexto a dimensão dominante do tempo é o futuro que ganha prioridade sobre o passado O Tempo encontra sua verdade no futuro já que é o futuro que terminará e realizará o Ser Mas o Ser terminado e realizado pertence como tal ao Passado88 Essa reversão da seqüência de tempo mais comum passadopresentefuturo é causada pela negação que o homem faz de seu presente ele diz não ao seu Agora criando assim seu próprio futuro89 O próprio Hegel não menciona a Vontade nesse contexto nem tampouco Koyré mas parece óbvio que a faculdade que está por trás do espírito que nega não é o pensar mas o querer e que a descrição de Hegel do tempo experimentado humanamente relacionase à seqüência de tempo adequada ao ego volitivo E adequada porque o ego volitivo quando produz seus projetos vive de fato para o futuro Nas famosas palavras de Hegel a razão pela qual o presente o Agora não pode resistir ao futuro não é absolutamente a inexorabilidade com a qual cada hoje é seguido por um amanhã pois esse amanhã quando não projetado e dominado pela Vontade poderia ser simplesmente uma repetição do que se passou antes coisa que de fato acontece com freqüência o hoje é na própria essência ameaçado somente pela interferência do espírito que o nega e através da Vontade convoca o aindanão que está ausente cancelando espiritualmente o presente ou melhor considerando o presente como aquele espaço de tempo efêmero cuja essência é não ser O Agora é vazio ele se preenche no futuro O futuro é sua realidade91 Do ponto de vista do ego volitivo o futuro está diretamente dentro do presente pois nele está contido como seu fato negativo O Agora é tanto o ser que desaparece quanto o nãoser que se converte em Ser91 A medida que o eu se identifica com o ego volitivo e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade ele existe em uma transformação contínua de seu próprio futuro em um Agora e pára de ser no dia em que não há mais futuro quando não há mais nada por vir le jour ou ilny a plus davenir ou rien nest plus à venir quando tudo chegou e tudo está realizado92 Vista da perspectiva da Vontade a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro Essa perda no entanto coincide com a realização máxima da vida do indivíduo que em seu fim tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro abrese para a tranqiiilidade do passado e deste modo para o exame para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado Assim do ponto de vista do ego pensante a velhice nas palavras de Heidegger é o tempo da meditação ou nas palavras de Sófocles é o tempo de paz e liberdade93 libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma à paixão da vontade chamada ambição Em outras palavras o passado começa com o desaparecimento do futuro em tal tranquilidade o ego pensante afirmase Mas isso só acontece quando tudo chega ao seu final quando o Devir em cujo processo o Ser se desdobra e desenvolve é interrompido Pois a inexorabilidade é a base do Ser94 é o preço pago pela Vida assim como a morte ou melhor a antecipação da morte é o preço pago pela tranqüilidade E a inexorabilidade daquilo que vive não vem da contemplação do cosmos ou da história não é o efeito de movimento externo o movimento incessante das coisas naturais ou os altos e baixos incessantes dos destinos humanos está localizada e é engendrada no espírito do homem Aquilo que em um pensamento existencial posterior transformouse na noção de autoprodução do espírito humano pode ser encontrado em Hegel como a autoconstituição do Tempo95 o homem não é só temporal ele é o Tempo Sem o homem poderia haver movimentação e movimento mas não haveria Tempo Nem poderia haver se o espírito humano fosse equipado somente para pensar para refletir sobre o que é dado sobre aquilo que é e não poderia ser outro se fosse assim o homem viveria espiritualmente em um eterno presente Seria incapaz de se dar conta de que ele mesmo um dia não foi e de que um dia não será mais isto é ele seria incapaz de compreender o que significa para ele existir E pela visão que Hegel tem do espírito humano como produtor do tempo que tem lugar a sua outra e mais óbvia identificação entre lógica e história e esta identificação é na verdade como apontou há muito tempo Léon Brunschvicg um dos pilares essenciais de seu sistema96 Mas em Hegel o espírito produz o tempo somente em virtude da Vontade seu órgão para o futuro e o futuro nesta perspectiva é também a fonte do passado já que o futuro é engendrado espiritualmente pela antecipação feita pelo espírito de um segundo futuro em que o euserei imediato terá se transformado em eutereisido Nesse esquema o passado é produzido pelo futuro e o pensamento que contempla o passado é o resultado da Vontade Porque a vontade em última instância antecipa a frustração final dos projetos da vontade que é a morte tais projetos também um dia terão sido Pode ser interessante notar que Heidegger também diz Die Gewesenheit entspringt in gewisser Weise der Zukunft o passado o tersido em um certo sentido tem sua origem no futuro97 Em Hegel o homem não se distingue das outras espécies animais por ser um animal rationale mas por ser a única criatura viva que sabe de sua própria morte E nesse ponto máximo da antecipação feita pelo ego volitivo que o ego pensante se constitui Na antecipação da morte os projetos da vontade tomam a aparência de um passado antecipado e sendo assim podem tomarse objeto de reflexão e é neste sentido que Hegel sustenta que somente o espírito que não ignora a morte capacita o homem para dominar a morte resistir a ela e preservarse dentro dela98 Para usar as palavras de Koyré no momento em que o espírito se depara com o próprio fim o movimento incessante da dialética temporal é interrompido e o tempo se preenche este tempo preenchido cai natural e inteiramente no passado o que significa que o futuro perdeu seu poder sobre ele e ficou pronto para o presente permanente do ego pensante Assim ocorre que o verdadeiro Ser do futuro deve ser o Agora99 Mas em Hegel este nunc stans não é mais temporal é um nunc aeternitatis já que a eternidade para Hegel é também a natureza quintessencial do Tempo a imagem de eternidade platônica vista como o eterno movimento do espírito100 O próprio tempo é eterno na união entre Presente Futuro e Passado101 Para simplificar ao máximo se existe algo como a vida do espírito isto devese ao órgão do espírito próprio para o futuro e à inquietude daí resultante se existe algo como a vida do espírito isto devese à morte que prevista como um fim absoluto paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado os projetos da vontade em objetos de pensamento a expectativa da alma em uma lembrança antecipada Assim resumida e supersimplificada a doutrina de Hegel soa bem moderna o primado do futuro em suas especulações sobre o tempo parece estar tão bem sintonizado com a fé dogmática que seu século tinha no Progresso sua mudança do pensamento para a vontade e depois de volta para o pensamento parece uma solução tão engenhosa para o problema que os filósofos modernos tinham para entrar em acordo com a tradição de uma maneira aceitável para a Idade Moderna que é tentador encerrar as considerações sobre o constructo hegeliano encarandoo como contribuição autêntica aos problemas do ego volitivo Apesar disso em suas especulações sobre o tempo Hegel tem um predecessor estranho para quem nada poderia ser mais alheio do que a noção de progresso para quem nada poderia apresentar menos interesse do que descobrir uma lei que governasse os acontecimentos históricos Tratase de Plotino Também ele sustenta que o espírito humano a alma humana psyche é que dá origem ao tempo O tempo é gerado pela natureza hiperativa da alma polypragmon um termo que sugere intensa atividade corporal ansiando por sua própria imortalidade futura a alma busca algo além do seu estado presente e assim movese sempre para um próximo e um depois e para algo que não é o mesmo mas é outra coisa e depois outra mais uma vez Movendonos assim percorremos um bom pedaço de nosso caminho em direção à nossa eternidade futura e construímos o tempo a imagem da eternidade Assim o tempo é a vida da alma uma vez que a propagação da vida envolve o tempo a alma produz a sucessão de tempo juntamente com sua atividade na forma de um pensamento discursivo cuja discursividade corresponde ao movimento que a alma faz ao passar de um modo de ser para outro conseqiientemente o tempo énãoum acompanhamento da alma mas algo que está nelae com elal02Em outras palavras para Plotino assim como para Hegel o tempo é gerado pela inquietude inata do espírito seu estenderse para o futuro seus projetos e sua negação do estado presente E em ambos os casos o preenchimento do tempo é a eternidade ou em termos seculares existencialmente falando a mudança do espírito do querer para o pensar Seja como for há muitas passagens em Hegel que indicam que sua filosofia é menos inspirada nas obras de seus predecessores menos uma reação às opiniões deles menos uma tentativa de resolver problemas de metafísica menos livresca enfim do que os sistemas de quase todos os filósofos pós antigos não apenas os que vieram antes dele mas também os que vieram depois Nos tempos atuais esta peculiaridade foi amiúde reconhecida103 Foi Hegel quem ao construir uma história seqüencial da filosofia que correspondesse à história factual e política algo que antes dele era bastante desconhecido rompeu realmente com a tradição porque ele foi o primeiro grande pensador a levar a história a sério isto é a tomála como geradora de verdade O campo dos assuntos humanos no qual tudo o que é veio a ser através do homem ou dos homens nunca tinha sido levado em tanta consideração por um filósofo E a mudança deveuse a um acontecimento a Revolução Francesa A Revolução admite Hegel pode ter tomado seu primeiro impulso com a filosofia mas a sua significação histórica mundial consiste no fato de que pela primeira vez o homem ousou virarse de cabeça para baixo apoiarse sobre a cabeça e o pensamento e construir a realidade de acordo com ele Nunca desde que o Sol se ergueu no firmamento e os planetas giraram em tomo dele se percebera que a existência do homem está centrada em sua cabeça isto é no pensamento Este foi um glorioso amanhecer espiritual Todos os seres pensantes compartilharam o júbilo dessa época um entusiasmo espiritual vibrou pelo mundo como se a reconciliação entre o Divino e o Secular estivesse sendo então alcançada pela primeira vez104 O que o acontecimento histórico da Revolução mostrou equivaleu para o homem à aquisição a uma nova dignidade tornar públicas as idéias de como uma coisa deve ser feita causará a supressão da letargia da gente presunçosamente ponderada die gesetzten Leute que sempre aceita as coisas como elas são105 Hegel jamais esqueceu essa experiência dos primeiros tempos Ainda dizia em 182930 aos seus alunos Nestes dias de reviravoltas políticas a filosofia encontra seu lugar é aí que o pensamento precede e molda a realidade Pois quando uma forma do Espírito não traz mais satisfação a filosofia presta rapidamente atenção e procura compreender o descontentamento106 Em resumo ele contradiz quase explicitamente seu famoso enunciado sobre a coruja de Minerva no prefácio da Filosofia do Direito O glorioso amanhecer espiritual de sua juventude inspirou e informou toda sua obra do início ao fim Na Revolução Francesa os princípios e pensamentos tinham sido percebidos uma reconciliação ocorrera entre o Divino com que o homem passa o tempo enquanto pensa e o secular os assuntos dos homens Tal reconciliação está no centro de todo o sistema hegeliano Se fosse possível entender a História do Mundo e não somente as histórias de épocas e nações particulares como uma única sucessão de acontecimentos cujo resultado final seria o momento em que o Reino Espiritual se manifestasse extemamente fosse corporificado na vida secular107 então o curso da história não seria mais acidental e o campo dos assuntos humanos não estaria mais destituído de significado A Revolução Francesa provara que a verdade em sua forma viva podia mostrarse nos assuntos do mundo108 Poderseia então considerar cada momento na seqüência histórica do mundo como um era para ser e atribuir à filosofia a tarefa de compreender este plano desde o seu início de sua fonte oculta ou princípio nascente no útero do tempo até sua existência fenomênica presente109 Hegel identifica esse Reino Espiritual com o reino da Vontade110 porque as vontades dos homens são necessárias para trazer à tona o campo espiritual e por esta razão afirma que a Liberdade da Vontade per se isto é a liberdade que a Vontade necessariamente quer é ela mesma absoluta é aquilo por meio de que o Homem se torna Homem e é portanto o princípio fundamental do Espírito111 Na verdade a única segurança se é que se trata de uma segurançade que o objetivo final do desenvolvimento do Espírito do Mundo nos assuntos mundanos deve ser a Liberdade está implícita na liberdade que está implícita na Vontade O insight a que a filosofia deve nos levar então é o de que o mundo real é como deveria ser112 E uma vez que para Hegel a filosofia diz respeito ao que é verdadeiro etemamente nem o Ontem nem o Amanhã mas o Presente enquanto tal o Agora no sentido de uma presença absoluta113 uma vez que o espírito assim como é percebido pelo ego pensante é o Agora enquanto tal a filosofia tem que apaziguar o conflito entre o ego pensante e o ego volitivo Tem que unir as especulações sobre o tempo que fazem parte da perspectiva da Vontade e sua concentração no futuro com o Pensamento e sua perspectiva de um presente que dura A tentativa está longe de ser bem sucedida Como observa Koyré nas frases que concluem seu ensaio a noção hegeliana de um sistema chocase com a primazia que Hegel confere ao futuro Este exige que o tempo nunca termine enquanto haja o homem sobre a Terra ao passo que a filosofia no sentido hegeliano a coruja de Minerva que inicia seu vôo no crepúsculo exige uma interrupção no tempo real e não simplesmente a suspensão do tempo durante a atividade do ego pensante Em outras palavras a filosofia de Hegel poderia reivindicar a verdade objetiva somente sob a condição de que a história estivesse factualmente no fim que a humanidade não tivesse mais futuro que nada que trouxesse algo de novo pudesse ainda ocorrer E Koyré acrescenta É possível que Hegel acreditasse nisso até mesmo que acreditasse que essa condição essencial para uma filosofia da história já fosse uma realidade e que esta fosse a razão pela qual ele próprio foi capaz fora capaz de completála114 Esta é de fato a convicção de Kojève para quem o sistema hegeliano é a verdade e portanto o fim definitivo da filosofia bem como da história O fracasso final de Hegel em conciliar as duas atividades do espírito pensar e querer com os seus conceitos de tempo opostos pareceme evidente mas ele próprio teria discordado o pensamento especulativo é precisamente a unidade de pensamento e tempo115 não lida com o Ser mas com o Devir e o objeto do espírito pensante não é o Ser mas um Devir intuído6 O único movimento que pode ser intuído é um movimento que gira em um círculo que forma um ciclo que retoma sobre si mesmo que pressupõe o seu começo e chega ao seu começo somente no fim Este conceito cíclico de tempo como vimos está em perfeita harmonia com a filosofia grega clássica enquanto a filosofia pósclássica seguida da descoberta da Vontade como a fonte principal do espírito para a ação exige um tempo retilíneo sem o qual o Progresso seria impensável Hegel encontra a solução para esse problema isto é descobre como transformar os círculos em uma linha progressiva admitindo que existe algo por trás de todos os membros individuais da espécie humana e que este algo chamado Humanidade é na verdade uma espécie de alguém que ele chamou de Espírito do Mundo para ele não uma simples coisapensamento mas uma presença corporificada encarnada na Humanidade assim como o espírito de um homem está encarnado em seu corpo Esse Espírito do Mundo corporificado na Humanidade em contraposição a diferentes indivíduos e a nações particulares leva a cabo um movimento retilíneo inerente à sucessão de gerações Cada geração nova forma uma nova fase de existência um novo mundo e assim tem que começar tudo outra vez mas começa em um nível mais alto porque sendo humana e dotada de espírito ou seja de Lembrança conservou a experiência anterior grifo nosso117 Tal movimento no qual as noções retilínea e cíclica de tempo são conciliadas ou unidas formando uma Espiral não se baseia nem nas experiências do ego pensante nem nas do ego volitivo é o movimento não experienciado do Espírito do Mundo que constitui o Geisterreich o domínio dos espíritos assumindo forma definida na existência por meio de uma seqüência em que um se desprende do outro soltandoo e em que cada um toma de seu predecessor o império do mundo espiritual1 IS Esta é sem dúvida uma solução muito engenhosa para o problema da Vontade e é sua reconciliação com o pensamento puro Mas tal solução é alcançada com prejuízo de ambos da experiência do ego pensante de um presente duradouro e da insistência do ego volitivo na primazia do futuro Em outras palavras não é mais do que uma hipótese Além do mais a plausibilidade da hipótese depende inteiramente da pressuposição da existência de um Espírito do Mundo a governar a pluralidade das vontades humanas e a orientálas na direção de uma significação que surja da necessidade da razão ou seja falando em termos psicológicos do desejo bastante humano de viver em um mundo que é como deveria ser Encontramos uma solução semelhante em Heidegger cujos insights sobre a natureza da vontade são incomparavelmente mais profundos e cuja antipatia por essa faculdade é ostensiva e constitui a verdadeira reviravolta Kehre do último Heidegger não é a vontade humana a origem da vontade de querer mas a Vontade quer que o homem queira sem experimentar o que a Vontade é119 É apropriado que se façam algumas observações técnicas tendo em vista a renovação do interesse por Hegel nas últimas décadas renovação em que tiveram seu papel alguns pensadores altamente qualificados O engenho do movimento dialético triádico de Tese para Antítese para Síntese impressiona especialmente quando aplicado à noção moderna de Progresso Embora o próprio Hegel acreditasse em uma interrupção no tempo em um fim da história que permitisse ao espírito intuir e conceituar todo o ciclo do Devir este movimento dialético visto em si mesmo parece assegurar um progresso infinito à medida que o primeiro movimento de Tese para Antítese resulta em uma Síntese a qual imediatamente estabelece uma nova Tese Embora o movimento original não seja de forma alguma progressivo mas gire para trás e retorne sobre si o movimento de Tese para Tese se estabelece por trás desses ciclos e constitui um linha retilínea de progresso Querendo visualizar o tipo de movimento teremos como resultado a seguinte figura Progresso Infinito Síntese Tese Síntese Tese Antítese Síntese Tese Antítese Síntese Tese Tese Antítese Antítese A vantagem desse esquema como um todo é que ele assegura o progresso e sem quebrar o contínuo do tempo pode ainda dar conta do inegável fato histórico da ascensão e queda das civilizações A vantagem do elemento cíclico em particular é que ele nos permite ver cada fim como um novo começo Ser e Nada são a mesma coisa a saber Devir Uma direção é a Dissipação o Ser passa a Nada mas o Nada é do mesmo modo o seu próprio oposto uma transição para o Ser isto é Surgimento120 Além disso a própria infinitude do movimento embora de alguma forma em conflito com outras passagens hegelianas está em perfeita harmonia com o conceito de tempo do ego volitivo e com a primazia que ele dá ao futuro sobre o presente e o passado A Vontade que não se subjuga à Razão e à sua necessidade de pensar nega o presente e o passado mesmo quando o presente a confronta com a realização de seus próprios projetos Isolada a Vontade do homem preferiría querer o Nada a não querer como observou Nietzsche121 e a noção de um progresso infinito implicitamente nega todo objetivo e admite fins somente como meios para burlarse a si mesma 122 Em outras palavras o famoso poder de negação inerente à Vontade e concebido como o motor da História não somente em Marx mas portanto já em Hegel é uma força aniquilante que poderia resultar tanto em um processo de aniquilação permanente quanto em um Progresso Infinito O motivo pelo qual Hegel pôde construir o movimento Histórico Mundial em termos de uma linha ascendente traçada pela astúcia da Razão que atua por trás dos homens de ação encontrase em minha opinião em seu pressuposto jamais questionado de que o próprio processo dialético começa do Ser supõe o Ser em contraposição àcreatio exnihilo em sua marcha em direção ao NãoSer e ao Devir O Ser inicial empresta a todas as outras transições a sua realidade seu caráter existencial e impede que elas caiam no abismo do NãoSer É somente porque sucede no Ser que o NãoSer contém sua relação com o Ser tanto o Ser quanto sua negação são simultaneamente afirmados e essa afirmação é o Nada tal como existe no Tornarse Hegel justifica seu ponto de partida invocando Parmênides e o início da filosofia isto é identificando lógica e história rejeitando tacitamente desse modo a Metafísica Cristã mas basta fazer uma experiência com o pensamento de um movimento dialético que comece do NãoSer para se perceber que nenhum Devir jamais poderia surgir daí o NãoSer no início aniquilaria tudo o que foi gerado Hegel tem bastante consciência disso sabe que sua proposição apodítica de que não há no céu ou na terra qualquer coisa que não contenha tanto Ser quanto Nada baseia se no pressuposto sólido da primazia do Ser que por sua vez simplesmente corresponde no fato de que o puro nada isto é uma negação que não nega algo específico e particular é impensável Só o que podemos pensar é em um Nada do qual Algo está para se originar de modo que o Ser esteja já contido no Começo123 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade Em minha discussão sobre o Pensamento utilizei o termo falácias metafísicas mas sem tentar refutálas como se fossem o simples resultado de erro lógico ou científico Ao invés disso procurei demonstrar sua autenticidade derivandoas das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o mundo das aparências Como vimos o ego pensante retirase temporariamente deste mundo sem nunca chegar a deixálo de todo porque está incorporado a um eu corpóreo a uma aparência entre aparências As dificuldades que cercam qualquer discussão sobre a Vontade têm uma semelhança óbvia com aquilo que consideramos verdadeiro nessas falácias isto é com o fato de que provavelmente são causadas pela natureza dessa própria faculdade Enquanto a descoberta da razão e de suas peculiaridades coincidiu com a descoberta do espírito e com o início da filosofia a faculdade da Vontade só se tomou manifesta muito mais tarde A questão que irá nos orientar será portanto a seguinte que experiências fizeram com que os homens tomassem consciência de que eram capazes de constituir volições A investigação da história de uma faculdade pode facilmente ser confundida com um esforço para acompanhar a história de uma idéia como se nós aqui por exemplo estivéssemos interessados na história da Liberdade ou confundíssemos a Vontade com uma mera idéia que poderia então ser tomada como um conceito artificial Ryle inventado para resolver problemas artificiais1 As idéias são coisaspensamento artefatos do espírito que pressupõem a identidade de um artífice e supor que exista uma história das faculdades do espírito distintas dos produtos do espírito parece o mesmo que supor que o corpo humano que é um corpo que fabrica e usa ferramentas sendo a ferramenta primordial a mão humana está tão sujeito a mudanças produzidas pela invenção de novas ferramentas e utensílios quanto o ambiente que nossas mãos não param de remodelar Sabemos que não é esse o caso Poderia ser diferente com nossas faculdades do espírito Poderia o espírito adquirir novas faculdades no curso da história A falácia que subjaz a essas questões reside em uma identificação quase automática do espírito com o cérebro É o espírito que determina a existência tanto dos objetos de uso quanto das coisaspensamento e assim como o espírito daquele que faz objetos de uso é um espírito de ferramenteiro isto é o espírito de um corpo cjptado de mãos também o espírito que origina pensamentos e os reifica em coisaspensamento ou idéias é o espírito de uma criatura dotada de um cérebro humano e de potência cerebral O cérebro a ferramenta do espírito não está mais sujeito a mudanças operadas pelo desenvolvimento de novas faculdades espirituais do que a mão humana pela invenção de novas ferramentas ou pela mudança enorme e tangível que realizam em nosso meio ambiente Mas o espírito do homem seus interesses e suas faculdades é afetado tanto pelas mudanças no mundo cuja significação ele examina quanto e talvez de forma até mais decisiva por suas próprias atividades Todas estas têm natureza reflexiva maior como veremos no caso das atividades do ego volitivo e contudo jamais poderíam funcionar bem sem a ferramenta imutável da potência cerebral o mais precioso talento de que o corpo dotou o animal humano O problema que está diante de nós é bastante conhecido em história da arte em que ele é chamado de enigma do estilo isto é o simples fato de que diferentes épocas e diferentes nações tenham representado o mundo visível de modos tão diferentes E surpreendente que isso possa ter acontecido na ausência de quaisquer diferenças físicas e é talvez ainda mais surpreendente que não tenhamos a menor dificuldade em reconhecer as realidades para as quais apontam mesmo quando as convenções de representação que adotamos são completamente diferentes2 Em outras palavras o que muda através dos séculos é o espírito humano e embora essas mudanças sejam muito acentuadas tanto que podemos datar os produtos de acordo com o estilo e a origem nacional com grande precisão elas também se limitam rigorosamente pela natureza imutável dos instrumentos de que o corpo humano é dotado Na linha dessas reflexões começaremos por nos perguntar como a filosofia grega lidou com fenômenos e dados da experiência humana que nossas convenções pósclássicas acostumaramse a atribuir à Vontade como fonte principal da ação Para tal voltamonos para Aristóteles e isso por duas razões Há em primeiro lugar o simples fato histórico da influência decisiva que a análise aristotélica da alma exerceu sobre todas as filosofias da Vontade exceto no caso de São Paulo que como veremos contentavase com simples descrições e recusavase a filosofar sobre suas experiências Há em segundo lugar o fato não menos indubitável de que nenhum outro filósofo grego chegou tão perto de reconhecer a estranha lacuna de que falamos na língua e no pensamento grego e pode portanto servir como um primeiro exemplo de como certos problemas psicológicos podiam ser resolvidos antes de a Vontade ser descoberta como uma faculdade autônoma do espírito O ponto de partida das reflexões de Aristóteles sobre o assunto é o insight antiplatônico de que a razão por si só não move coisa alguma3 A questão portanto que orienta sua investigação é a seguinte O que é que na alma origina o movimento4 Aristóteles admite a noção platônica de que a razão dá ordens keleuei porque sabe o que se deve buscar e o que se deve evitar mas nega que essas ordens sejam necessariamente obedecidas O homem incontinente seu exemplo paradigmático ao longo de toda essa investigação segue seus desejos independentemente das ordens da razão Por outro lado por recomendação da razão podese resistir a esses desejos Logo tampouco os desejos têm uma força inerente em si por si sós não originam movimento Aqui Aristóteles está lidando com um fenômeno que mais tarde depois da descoberta da Vontade aparece como a distinção entre vontade e inclinação A distinção vem a tomarse a pedra angular da ética kantiana mas aparece primeiramente na filosofia medievalpor exemplo na distinção de Mestre Eckhart entre a inclinação para pecar e a vontade de pecar não sendo a inclinação um pecado o que deixa a própria questão dos atos maus completamente sem explicação Se nunca fiz o mal mas apenas tive a vontade do mal tratase de um pecado tão grande quanto matar todos os homens embora eu não tenha feito nada5 Ainda assim em Aristóteles o desejo guarda uma prioridade na origem do movimento que se dá por um jogo entre a razão e o desejo E o desejo de um objeto ausente que estimula a entrada em cena da razão calculando as melhores formas e meios de obter o objeto Aristóteles chama essa razão que calcula de nouspratikos razão prática diferente da nous theoretikos razão especulativa ou pura a primeira está interessada somente no que depende exclusivamente dos homens eph hemin em coisas que estão em seu poder e que são portanto contingentes enquanto a razão pura interessase somente pelas coisas cuja modificação está além do poder humano A razão prática é necessária para vir em auxílio do desejo sob certas condições O desejo é influenciado pelo que está bem à mão sendo portanto facilmente alcançável uma sugestão contida na própria palavra usada para apetite ou desejo orexis cujo significado primário vindo de orego indica a ação de esticar a mão para pegar alguma coisa próxima Somente quando a satisfação de um desejo reside no futuro e tem que levar em conta o fator tempo é que a razão prática fazse necessária e é estimulada por este desejo No caso da incontinência o que leva a ela é a força do desejo pelo que está perto e aqui a razão prática irá intervir por interesse nas conseqüências futuras Mas os homens não desejam somente o que está à mão são capazes de imaginar objetos de desejo que para serem obtidos tomam necessário o cálculo dos meios apropriados E esse objeto futuro imaginado que estimula a razão prática no que diz respeito ao movimento daí resultante ao ato em si o objeto desejado é o início enquanto para o processo de cálculo esse mesmo objeto é o fim do movimento Parece que o próprio Aristóteles considerou esse esboço de relação entre a razão e o desejo insatisfatório para explicar adequadamente a ação humana Porque ela se baseia ainda embora com modificações na dicotomia platônica entre razão e desejo No primeiro Protreptikos Aristóteles dera a seguinte interpretação Uma parte da alma é a Razão É ela a soberana e juíza natural das coisas que nos dizem respeito A natureza da outra parte é seguila e submeterse a seu jugo6 Veremos mais adiante que dar ordens está entre as características principais da Vontade Em Platão a razão podia assumir essa função por causa do pressuposto de que a razão diz respeito à verdade e a verdade de fato compele Mas a razão em si à medida que leva à verdade é persuasiva e não imperativa no diálogo sem som do pensamento de mim comigo mesmo somente aqueles que não são capazes de pensar precisam ser constrangidos Dentro da alma humana a razão só se toma um princípio governante e comandante por causa dos desejos que são cegos e destituídos de razão e que devem supostamente portanto obedecer cegamente Essa obediência é necessária para a tranqüilidade do espírito a harmonia imperturbável do doisemum que é assegurada pelo princípio da nãocontradição não se contradiga permaneça amigo de si mesmo todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma7 Quando o desejo não se submete às ordens da razão o resultado em Aristóteles é o homemvil que se contradiz e está em desacordo consigo mesmo diapherein Os homens maus esquivamse à própria vida destruindo a si mesmos incapazes de suportar a própria companhia ou buscam a companhia de outras pessoas com quem possam passar seus dias mas evitam a própria companhia Pois quando estão sozinhos lembramse de muitos acontecimentos que causam desassossego mas enquanto estão com outros podem esquecer Não têm nenhuma amizade por si mesmos sua alma é dividida por forças contrárias uma parte arrastaos para um lado a outra para outro como se quisessem esquartejar o indivíduo Os homens maus estão repletos de arrependimentos8 Essa descrição do conflito interno um conflito entre razão e apetites pode funcionar na explicação da conduta nesse caso a conduta ou melhor a máconduta do homem incontinente Não explica a ação o tópico da ética aristotélica pois a ação não é a simples execução das ordens da razão ela é em si uma atividade da razão embora não seja uma atividade da razão teórica mas daquilo que no tratado Sobre a alma chamase nous praktikos razão prática Nos tratados éticos ela é chamada phronesis uma espécie de insight e entendimento das coisas que são boas ou ruins para os homens um tipo de sagacidade nem sabedoria nem inteligência necessária nos assuntos humanos que Sófocles seguindo o que era de costume atribuiu à velhice9 e que Aristóteles transformou em conceito Phronesis é uma exigência em qualquer atividade que envolva coisas cujo alcance está no poder do homem Tal sentido prático orienta também a produção e as artes mas estas têm outro fim que não elas mesmas enquanto a ação é em si mesma um fim11 A distinção é a diferença entre o flautista para quem tocar é um fim em si e quem faz a flauta cuja atividade é somente um meio e tem de chegar a um fim quando a flauta é produzida Há então algo que se chama eupraxia a ação bem feita e consideravase que fazer alguma coisa bem independentemente de suas consequências é fazer uma coisa entre as aretai as excelências ou virtudes aristotélicas As ações desse tipo também são movidas não pela razão mas pelo desejo não se trata contudo de desejo de um objeto de um o que que posso pegar compreender e usar de novo como um meio para outro fim o desejo é de um como um modo de desempenhar uma excelência de aparência na comunidade a região que é própria dos assuntos humanos Muito mais tarde mas bem dentro do espírito aristotélico Plotino diria o seguinte conforme a paráfrase de um intérprete recente O que está realmente em poder do homem no sentido de ser aquilo que depende inteiramente dele é a qualidade de sua conduta to kalos o homem obrigado a lutar ainda está livre para lutar com bravura ou com covardia11 A ação no sentido do modo como os homens querem aparecer exige um plano anterior deliberado para o qual Aristóteles inventa um novo termo proairesis escolha no sentido de preferência entre alternativas uma em vez da outra Os archai começos e princípios dessa escolha são desejo e logos o logos fornecenos o propósito pelo qual agimos a escolha tomase o ponto de partida das próprias ações12 A escolha é uma faculdade intermediária inserida por assim dizer na dicotomia mais antiga entre razão e desejo e suaprincipal função é mediar a relação entre os dois O oposto da escolha deliberada ou da preferência é o pathos paixão ou emoção como diriamos no sentido de sermos motivados por algo que sofremos Assim um homem pode cometer o adultério por paixão e não porque deliberadamente preferiu o adultério à castidade pode ter roubado sem ser um ladrão13 A faculdade da escolha é necessária sempre que os homens agem com um propósito heneka tinos à medida que os meios têm que ser escolhidos mas o propósito em si a finalidade última do ato em razão da qual ele foi iniciado não se abre à escolha A finalidade última dos atos humanos é eudaimonia a felicidade no sentido de bemviver que todos os homens desejam todos os atos não passam de meios diferentes escolhidos para se chegar a isso A relação entre os meios e os fins quer na ação quer na fabricação é que todos os meios são igualmente justificáveis por seus fins o problema moral específico na relação meiofim se todos os fins justificam os meiosjamais é mencionado por Aristóteles O elemento de razão na escolha é chamado deliberação e nunca deliberamos a respeito de fins mas somente sobre os meios de obtêlos14 Ninguém escolhe ser feliz escolhe sim ganhar dinheiro ou correr riscos com o propósito de ser feliz15 É na Ética a Eudemio que Aristóteles explica de uma maneira mais concreta por que achou necessário inserir uma nova faculdade em meio à velha dicotomia resolvendo assim a antiga disputa entre a razão e o desejo Ele dá o exemplo da incontinência todos os homens concordam que a incontinência é algo ruim e que não se deve desejar a moderação ou so phrosyne aquilo que salva sozeiri a razão prática phronesis é o critério naturalmente dado de todos os atos Se um homem segue seus desejos cego para as conseqüências futuras cultivando então a incontinência é como se o mesmo homem devesse agir a um só tempo voluntária isto é intencional e involuntariamente isto é contrariamente às suas intenções e isso observa Aristóteles é impossível16 A proairesis é a saída para a contradição Se razão e desejo permanecessem sem uma mediação em seu antagonismo natural e bruto teríamos de concluir que o homem assediado pelos impulsos conflitantes de ambas as faculdades obrigase a afastarse de seu desejo quando permanece moderado e obrigase a afastarse de sua razão quando o desejo o domina Mas nada semelhante a um serobrigado ocorre em qualquer dos dois casos ambos os atos são realizados intencionalmente e quando o princípio vem de dentro não há força17 O que de fato ocorre é que estando a razão e o desejo em conflito decidir entre eles é uma questão de preferência ou escolha deliberada O que intervém é a razão não o nous que diz respeito às coisas que são para sempre e não podem ser diferentes do que são mas dianoia ou phronesis que lidam com as coisas que estão em nosso poder diferentes dos desejos e das imaginações que se podem estender às coisas que jamais podemos alcançar por exemplo quando queremos ser deuses ou imortais É tentadora a conclusão de que a proairesis a faculdade da escolha é a precursora da Vontade Ela abre um primeiro espaço pequeno e bastante restrito para o espírito humano que sem ela estava entregue a duas forças poderosas por um lado a força da autoevidência em relação à qual não somos livres para concordar ou discordar e por outro a força das paixões e dos apetites na qual é como se a natureza nos dominasse a menos que a razão nos obrigasse a dela nos afastar Mas o espaço deixado para a Liberdade é bastante pequeno Deliberamos somente sobre os meios para alcançar um fim que tomamos como certo que não podemos escolher Ninguém escolhe felicidade ou saúde como seu objetivo embora possamos pensar sobre essas duas coisas os fins são inerentes à natureza humana e são os mesmos para todos1S Quanto aos meios ora temos de descobrir quais são ora como devem ser utilizados ora por meio de quem eles podem ser adquiridos19 Conseqüentemente os meios e não somente os fins são dados e nossa livre escolha consiste apenas em uma seleção racional entre proairesis é o árbitro entre as diversas possibilidades Em latim a faculdade de escolha em Aristóteles é liberum arbitrium Toda vez que com ela nos deparamos nas discussões medievais sobre a Vontade não estamos lidando com o poder espontâneo de começar algo novo e nem com uma faculdade autônoma determinada por sua própria natureza e obediente a suas próprias leis O exemplo mais grotesco é o do asno de Buridan o pobre animal teria morrido de fome entre dois montes de feno equidistantes cheirando igualmente bem já que não há processo deliberativo que pudesse lhe dar uma razão para preferir um ao outro e ele só sobreviveu porque foi suficientemente esperto para renunciar à livre escolha confiar em seu desejo e apossarse de qualquer dos montes ao seu alcance O liberum arbitrium não é nem espontâneo nem autônomo encontramos os últimos vestígios de um árbitro entre razão e desejo ainda em Kant cuja boa vontade acaba por verse em um estranho impasse ou é boa sem restrições caso em que goza de completa autonomia mas não tem escolha ou recebe sua lei o imperativo categórico da razão prática que diz à Vontade o que fazer e acrescenta não faça de si mesmo uma exceção obedeça ao axioma da nãocontradição que desde Sócrates governa o diálogo sem som do pensamento A Vontade em Kant é na verdade razão prática20 muito no sentido do nouspraktikos de Aristóteles ela retira seu poder de imposição da coerção que a verdade autoevidente ou o raciocínio lógico exercem sobre o espírito Essa é a razão pela qual Kant afirmou inúmeras vezes que todo tu deves que não vem de fora mas surge no próprio espírito implica um tu podes O que está em jogo é claramente a convicção de que tudo o que depende de nós e diz respeito somente a nós mesmos está em nosso poder é essa convicção que Aristóteles e Kant têm basicamente em comum embora suas avaliações sobre a importância do campo dos assuntos humanos sejam bem diferentes A Liberdade tornase um problema e a Vontade como faculdade autônoma é descoberta somente quando os homens começam a duvidar da coincidência entre o tudeves e o euposso quando surge a questão As coisas que só a mim dizem respeito estão em meu poder 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade A primeira e mais fundamental resposta para a questão que levantei no início deste capítulo que experiências fizeram com que o homem tomasse consciência de sua capacidade de constituir volições é que essas experiências hebraicas na origem não foram políticas e não se relacionaram com o mundo seja com o mundo das aparências e a posição que nele o homem ocupa seja com o campo dos assuntos humanos cuja existência depende de feitos e ações mas localizaramse exclusivamente dentro do próprio homem Ao lidarmos com experiências relevantes para a Vontade estamos lidando com experiências que os homens têm não só consigo mesmos mas também dentro de si mesmos Tais experiências não eram de modo algum ignoradas na Antigüidade grega No volume anterior falei com algum detalhe sobre a descoberta socrática do doisemum a que daríamos hoje o nome de consciência e que tinha originalmente a função do que hoje chamamos de consciência moral Vimos como esse doisemum um simples fato da consciência realizavase e articulavase no diálogo sem som que desde Platão temos chamado de pensamento Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estarsó em uma retirada do mundo das aparências em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos bem como para os outros Mas a interioridade do diálogo em pensamento que faz da filosofia a atividade solitária de Hegel embora tenha ciência de si o cogito me cogitare de Descartes o Ich denke de Kant acompanhando silenciosamente tudo o que faço não se refere tematicamente ao eu mas sim às experiências e às questões que esse eu uma aparência entre aparências elegem para serem investigadas Esse exame meditativo de tudo o que é dado pode ser perturbado pelas necessidades da vida pela presença de outros por todos os tipos de assuntos urgentes Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito pois os doisemum são amigos e parceiros e manter essa harmonia intacta está acima de tudo para o ego pensante A descoberta do apóstolo Paulo que ele descreve com muitos detalhes na Epístola aos romanos escrita entre 54 e 58 DC envolve novamente um doisemum mas esses dois não são amigos ou parceiros estão em permanente luta Precisamente quando ele quer fazer o correto to kalon descobre que o mal está ali à mão 721 pois ele não conhecería a concupiscência se a lei não dissesse Não cobiçarás Portanto foi a ordem da lei que ocasionou toda a concupiscência Porque sem a lei o pecado estava morto 778 A função da lei é ambígua é boa para que o pecado se mostrasse pecado 713 mas já que fala no tom de uma ordem desperta as paixões e revive o pecado O próprio mandamento que prometia a vida foi para mim a morte 7910 O resultado é que não entendo o que faço Tomei me uma questão para mim mesmo Pois não faço o que quero mas o que odeio isso é o que faço 715 E o ponto central do problema é que esse conflito interno jamais pode ser solucionado seja em favor da obediência à lei seja da submissão ao pecado essa miséria interna segundo São Paulo pode ser curada somente através da graça gratuitamente Foi essa a percepção que veio como um lampejo para o homem de Tarso chamado Saulo que fora como ele disse um fariseu extremamente zeloso Gálatas 114 conforme a mais severa seita de nossa religião Atos 264 O que ele queria era a justiça dikaiosyne mas a justiça isto é permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei para fazêlas Gálatas 310 é impossível tal é a maldição da lei e se a justiça vem da lei Cristo morreu em vão Gálatas 221 Este é no entanto somente um lado do problema São Paulo tomouse o fundador da religião cristã não só porque por sua própria declaração fora lhe confiado o evangelho para os não circuncisados Gálatas 27 mas também porque pregava por onde quer que andasse a ressurreição dos mortos Atos 2421 O centro de sua preocupação que é nítida e obviamente distinta daquela dos evangelhos não é Jesus de Nazaré sua pregação e seus feitos mas Cristo crucificado e ressuscitado Dessa fonte ele colheu sua nova doutrina que veio a tomarse escândalo para os judeus e loucura para os gentios I Coríntios 123 E a preocupação com da vida eterna onipresente no Império Rotnano na época que separa tão nitidamente a Nova Era da Antigüidade e que se toma o iaç0 comum que uniu sincreticamente os vários cultos orientais novos Não é que a preocupação de São Paulo com a ressurreição individual tivesse origem judaica para os hebreus a imortalidade era tida como necessária somente para o povo como um todo e somente para ele era garantida o indivíduo satisfaziase em sobreviver em sua prole contentandose também em morrer velho e farto dos anos E no mundo antigo romano ou grego a única imortalidade que se desejava ou se buscava era o nãoesquecimento do grande nome ou do grande feito e portanto das instituições a polis ou civitas que podiam assegurar uma continuidade de lembrança Quando São Paulo disse o salário do pecado é a morte Romanos 623 poderia estar lembrando as palavras de Cícero que dissera que embora os homens devam morrer as comunidades civitae devem ser eternas e perecer somente em conseqüência de seus pecados Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a experiência comum de um mundo em declínio talvez moribundo e a boa nova do Cristianismo em seus aspectos escatológicos era suficientemente clara a você que acreditou que os homens morrem mas o mundo é perene basta converterse à fé de que o mundo chega a um fim mas você mesmo terá vida eterna Assim é claro a questão da justiça isto é de merecer essa vida eterna ganha uma importância pessoal completamente nova O interesse pela imortalidade individual pessoal aparece também nos evangelhos todos eles escritos no último terço do primeiro século Perguntase comumente a Jesus Que farei para herdar a vida eterna por exemplo Lucas 1025 Jesus porém parece não ter pregado a ressurreição Ao invés disso disse que se as pessoas fizessem o que ele dizia vai e faze tu o mesmo ou vem e segueme então o Reino de Deus está entre vós Lucas 1721 ou é chegado a vós Mateus 1228 Se o pressionavam mais sua resposta era sempre a mesma Cumpre a lei como sabes e vende tudo quanto tens reparteo entre os pobres Lucas 1822 O ponto mais importante do ensinamento de Jesus está contido neste e que levou a lei conhecida e bem aceita ao seu extremo inerente Isto é o que ele provavelmente quis expressar quando disse Não vim para destruir a lei mas para cumprila Mateus 517 Logo não o Amar ao próximo mas sim o Amai aos vossos inimigos ao que te ferir uma face oferecelhe também a outra ao que te tirar a capa não o impeças de levar a túnica Em resumo não o Não faças com os outros o que não queres que façam contigo mas sim o O que quereis que vos façam os homens fazeio vós também a eles Lucas 62731 certamente a versão mais radical possível do Ama ao próximo como a ti mesmo São Paulo certamente não ignorava a mudança radical que a velha exigência de se cumprir a lei sofrerá no ensinamento de Jesus de Nazaré E é bem possível que tenha subitamente entendido que nisso reside o único cumprimento verdadeiro da lei tendo então descoberto que um tal cumprimento estava além do poder humano levava a um euqueromas nãoposso muito embora o próprio Jesus nunca tivesse dito a seus seguidores que não poderíam fazer o que quisessem Já existe em Jesus contudo uma nova ênfase na vida interior Ele não teria ido tão longe quanto Eckhart mais de mil anos depois afirmando que ter vontade de fazer era suficiente para herdar a vida eterna pois diante de Deus querer fazer conforme minha capacidade e ter feito são a mesma coisa Ainda assim a ênfase de Jesus no Não cobiçarás o único dos Dez Mandamentos que se relaciona com a vida interior aponta naquela direção todo o que olhar para uma mulher cobiçandoa já cometeu adultério no seu coração Mateus 528 Analogamente em Eckhart o homem que tem a vontade de matar sem nunca ter matado ninguém não cometeu pecado menor do que se tivesse assassinado toda a raça humana21 De relevância talvez ainda maior são as pregações de Jesus contra a hipocrisia como o pecado dos fariseus e sua suspeita das aparências Por que olhas para o argueiro que está no olho de teu irmão e não descobres a trave que está no teu Lucas 641 E eles gostam de andar com ricos mantos de ser cumprimentados nas praças Lucas 2046 o que coloca um problema que deve ter sido familiar para homens da Lei A questão é que tudo o que se faça de bom justamente pelo fato de aparecer para os outros ou para si fica sujeito ao autoquestionamento22 Jesus sabia disso Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita Mateus 63 isto é vive à sombra até mesmo à sombra de ti mesmo e não te preocupes em ser bom Ninguém há de bom senão um que é Deus Lucas 1819 A despeito disso esse adorável descuidarse dificilmente poderia ser mantido em um tempo em que fazer o bem e ser bom tinham se transformado em um requisito para superar a morte e herdar a vida eterna Assim quando se trata de São Paulo a ênfase muda inteiramente do fazer para o crer do homem exterior que vive no mundo das aparências ele mesmo uma aparência entre aparências sujeito portanto à semblância e à ilusão para uma interioridade que por definição jamais se manifesta inequivocamente e que só pode ser examinada por um Deus que também jamais se mostra de maneira inequívoca Os desígnios desse Deus são impenetráveis Para os gentios Sua principal propriedade é a invisibilidade para São Paulo o mais impenetrável é que Até antes da lei existia o pecado no mundo mas o pecado não é imputado se não houver lei Romanos 513 de modo que era inteiramente possível que os gentios que não andavam no encalço da justiça tivessem alcançado a justiça ao passo que Israel que seguia uma lei de justiça não conseguiu obtêla Romanos 93031 Que a lei não pode ser cumprida que a vontade de cumprir a lei ativa uma nova vontade a vontade de pecar e que uma vontade jamais existe sem a outra este é o tema de que São Paulo trata na Epístola aos Romanos E verdade que São Paulo não discute o tema em termos de duas vontades mas em termos de duas leis a lei do espírito que o deixa desfrutar da lei de Deus em seu eu mais íntimo e a lei de seus membros que lhe diz para fazer o que no seu eu mais íntimo ele odeia A própria lei é entendida como a voz de um senhor exigindo obediência o tudeves da lei exige e espera um ato voluntário de submissão um euquero de assentimento A Velha Lei dizia não farás A Nova Lei diz não quererás O que levou à descoberta da Vontade foi a experiência de um imperativo que exigia submissão voluntária E era inerente a essa experiência o fato admirável de uma liberdade que nenhum dos povos antigos grego romano ou hebreu conhecera ou seja o fato de que há uma faculdade no homem em virtude da qual ele pode independentemente de necessidade e coação dizer Sim ou Não concordar ou discordar daquilo que é dado factualmente inclusive seu próprio eu e sua existência e também que uma tal faculdade pode vir a determinar o que ele irá fazer Mas essa faculdade tem uma natureza curiosamente paradoxal Realizase por um imperativo que não diz simplesmente tu deves como no caso em que o espírito fala ao corpo conforme colocou Santo Agostinho mais tarde e o corpo imediata e por assim dizer impensadamente obedece mas diz também tu deves querer o que já implica que seja o que for que eu acabe fazendo de fato posso responder quero ou não quero O próprio mandamento o tu deves colocame diante de uma escolha entre o eu quero e o eu não quero ou seja em termos teológicos entre a obediência e a desobediência A desobediência lembramos vem a tomar se mais tarde o pecado mortal par excellence e a obediência a própria base da ética cristã a virtude das virtudes Ekhart A propósito uma virtude que diferentemente da pobreza e da castidade dificilmente pode ser tirada dos ensinamentos e das pregações de Jesus de Nazaré Se a vontade não tivesse a opção de dizer Não ela não seria mais uma vontade e se não houvesse uma contravontade em mim despertada pelo próprio conteúdo do mandamento do tu deves se para usar os termos de São Paulo o pecado não habitasse em mim Romanos 720 eu não precisaria absolutamente de uma vontade Falei anteriormente da natureza reflexiva das atividades do espírito o cogito me cogitare o volo me velle mesmo o juízo a faculdade menos reflexiva das três repercute atua sobre si mesma Veremos depois que essa reflexividade fica mais forte do que nunca no ego volitivo a questão é que todo euquero surge de uma inclinação natural para a liberdade isto é de uma reação natural dos homens livres quando subjugados A vontade sempre se dirige a si mesma quando a lei diz tu deves a vontade responde tu deves querer o que diz a ordem e não a executar inadvertidamente É então que tem início a disputa interna pois a contra vontade despertada tem semelhante poder de ordem Logo a razão pela qual os que observam a Lei estão sob o peso da maldição Gálatas 310 não é somente o euqueroenãoposso mas é também o fato de que o quero é inevitavelmente rebatido por um nãoquero de modo que até mesmo quando a lei é obedecida e cumprida ainda reste uma resistência interna Na luta entre o querer e o nãoquerer o resultado só pode depender de um ato se ações não contam mais a Vontade nada pode E uma vez que o conflito se dá entre velle e nolle a persuasão não tem lugar como tinha no velho conflito entre a razão e os desejos Quanto ao fenômeno em si Não faço o bem que quero mas o mal que não quero esse eu faço Romanos 719 ele não é obviamente uma novidade Encontramos quase as mesmas palavras em Ovídio Vejo o que é melhor e aprovo sigo o que é pior23 e esta é provavelmente uma tradução da famosa passagem da Medéia de Euripides linhas 107880 Sei muito bem o mal que desejo fazer mais forte porém do que minhas deliberações boulemata é o meu thymos o que faz com que eu me mova a causa dos maiores males entre os mortais Euripides e Ovídio podem ter lamentado a fraqueza da razão quando confrontada com o impulso passional dos desejos e Aristóteles pode ter dado um passo à frente quando detectou a autocontradição na escolha do pior um ato que lhe forneceu a definição do homemvil mas nenhum deles teria atribuído esse fenômeno à livre escolha da Vontade A Vontade que se divide produzindo automaticamente sua própria contra vontade precisa ser curada para tornarse de novo uma só Como o pensamento a vontade dividiu o um em doisemum só que no caso do ego pensante curarse da divisão seria a pior coisa que poderia acontecer poria fim completo ao pensamento Ora seria bastante tentador concluir que a misericórdia divina a solução de São Paulo para a desgraça da Vontade na verdade elimina a Vontade destituindoa por milagre de sua contravontade Mas não se trata mais de volições já que a misericórdia não pode ser almejada a salvação não depende do querer ou do esforço do homem mas da misericórdia de Deus e Ele usa de misericórdia com quem quer e endurece o coração de quem quer Romanos 91618 Além disso assim como veio a lei não somente para tomar o pecado identificável mas para aumentar a perdição também a graça abundou onde o pecado cresceu tratase de fato defelix culpa pois como poderíam os homens conhecer a glória se não tivessem contato com a desgraça Como conheceriamos o dia se não houvesse noite Em suma a vontade é impotente não por causa de algo externo que a impeça de ter êxito mas porque se toma um obstáculo para si mesma E onde não é um obstáculo como em Jesus ela ainda não existe Para São Paulo a explicação é relativamente simples o conflito se dá entre carne e espírito e o problema é que o homem é tanto carnal quanto espiritual A came vai morrer e portanto viver de acordo com a carne significa uma espécie de morte A tarefa principal do espírito não é só governar os desejos e fazer com que a carne obedeça mas também causar sua mortificação crucificála com suas paixões e desejos Gálatas 524 coisa que na verdade está além do poder humano Vimos que do ponto de vista do ego pensante era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo A carnalidade do homem embora não necessariamente origem do pecado interrompe a atividade pensante do espírito e oferece uma resistência ao diálogo sem som e veloz que o espírito mantém consigo mesmo um intercâmbio cuja própria doçura está em uma espiritualidade na qual nenhum fator material interfere Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao corpo que encontramos em São Paulo uma hostilidade que além disso sem falar nos preconceitos contra a carne surge da própria essência da Vontade A despeito de sua origem espiritual a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência e a carne no raciocínio de São Paulo mesmo posteriormente quando é disfarçada em inclinação tomase a metáfora para a resistência interna Assim até mesmo nesse esquema simplista a descoberta da Vontade já terá aberto a autêntica caixa de Pandora das questões irrespondíveis que o próprio São Paulo de modo algum ignorava e que a partir daí viriam a infestar de absurdos qualquer filosofia rigorosamente cristã São Paulo sabia como seria fácil deduzir de suas indicações que devemos permanecer no pecado para que haja abundância de graça Romanos 61 Por que então não praticamos o mal do qual vem o bemcomo alguns injuriosamente dizem que ensinamos Romanos 38 embora dificilmente pudesse prever quanta disciplina e rigidez de dogma seriam necessárias para proteger a Igreja contra o peccafortiter Ele também sabia bastante bem qual era o maior obstáculo para uma filosofia cristã a contradição óbvia entre um Deus onisciente e onipotente e aquilo que Santo Agostinho chamou mais tarde de monstruosidade da Vontade Como Deus pode permitir a desgraça humana Acima de tudo como pode Ele ainda se queixar uma vez que ninguém consegue resistir à Sua vontade Romanos 919 São Paulo era um cidadão romano falava e escrevia em grego koine e estava bem claramente familiarizado com a lei romana e com o pensamento grego Não obstante o fundador da religião cristã senão da Igreja permaneceu sendo judeu talvez não possa haver prova mais contundente disso do que sua resposta para as questões irrespondíveis levantadas pela sua nova fé e pelas novas descobertas de seu próprio interior Essa prova equivale quase palavra por palavra à resposta que Jó deu quando foi levado a questionar os desígnios impenetráveis do Deus hebreu A resposta de São Paulo como a de Jó é muito simples e completamente nãofilosófica Mas quem és tu um homem para retrucar a Deus Porventura a coisa formada dirá ao que a formou Por que me fizestes assim Não tem o oleiro poder sobre o barro para da mesma massa fazer um vaso para a beleza e outro para ser usado E que dirás se Deus querendo dar a conhecer o seu poder suportou os vasos da ira feitos para a destruição de modo a tomar conhecidas também as riquezas de sua glória nos vasos da misericórdia que já havia feito para a glória Romanos 92023 Jó 10 No mesmo estilo Deus encerrando todas as perguntas dissera a Jó que Lhe ousara interrogar Vou interrogarte e tu me responderás Onde estavas quando estabelecí os princípios da terra Deve um maldizente questionar o Todopoderoso E para esta pergunta existe de fato apenas a resposta de Jó Relatei o que não entendi coisas que para mim eram maravilhosas e eu não as entendia Jó 423 Ao contrário de sua doutrina da ressurreição dos mortos o argumentum ad hominem de São Paulo cortando todas as indagações com um Quemé vocêparaperguntar acabou não sobrevivendo às primeiras fases da fé cristã Isso para falar em termos históricos uma vez que obviamente não podemos saber quantos cristãos durante os longos séculos de um imitatio Christi permaneceram fora do alcance das recorrentes tentativas de conciliar a fé hebraica absoluta no DeusCriador com a filosofia grega As comunidades judaicas de qualquer forma foram alertadas contra quaisquer especulações o Talmude provocado pelo gnosticismo disselhes Melhor seria para o homem que pensa em quatro coisas que nunca tivesse nascido o que está acima o que está abaixo o que era antes e o que será depois24 Como um eco débil desse temor fiel diante do mistério de todo o Ser séculos mais tarde ouvimos Santo Agostinho repetir o que deve ter sido um chiste conhecido na época Respondo ao homem que diz Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra Preparava o inferno para aqueles que perscrutam mistérios tão profundos Mas Santo Agostinho não parou por aí Muitos capítulos adiante nas Confissões depois de denunciar seriamente os que fazem tais perguntas como homens acometidos por uma enfermidade criminosa que os faz ter mais sede do que permite a sua capacidade dá a resposta logicamente correta e existencialmente insatisfatória de que uma vez que o DeusCriador é eterno Ele tem que ter criado o tempo quando criou o Céu e a Terra de modo que não pudesse haver um antes prévio à Criação Que eles vejam que não poderia haver tempo sem um ser criado25 9 Epiteto e a onipotência da Vontade Na Epístola aos Romanos São Paulo descreve uma experiência interna a experiência do euqueroenãoposso Essa experiência seguida de uma experiência da misericórdia de Deus é avassaladora Ele explica o que lhe aconteceu e nos conta por que as duas ocorrências estão interligadas Ao longo da explicação desenvolve a primeira teoria abrangente da história uma teoria sobre aquilo a que a história diz respeito além de lançar as bases da doutrina cristã Faz isso contudo em termos de fatos não argumenta e é isto o que o distingue muito nitidamente de Epiteto com quem sob outros aspectos ele tinha muito em comum Os dois eram quase contemporâneos oriundos mais ou menos da mesma região do Oriente Próximo viveram no Império Romano helenizado e falavam a mesma língua koine embora um fosse cidadão romano e o outro fosse homem alforriado um exescravo e um fosse judeu e o outro estóico Têm também em comum uma certa rigidez moral que os distinguia em seus ambientes Ambos declaram que cobiçar a mulher do próximo é cometer adultério Atacam quase com as mesmas palavras o establishment intelectual de sua época os fariseus no caso de São Paulo e os filósofos os estóicos e os acadêmicos no de Epiteto acusandoo de hipócrita que não se comporta conforme seus próprios ensinamentos Mostrame um estóico se fores capaz exclama Epiteto Mostrame alguém que está doente e que ainda assim seja feliz que está em perigo e ainda assim feliz morrendo e ainda assim feliz no exílio e feliz em desgraça e feliz Pelos deuses de bom grado eu enxergaria aí um estóico26 Esse menosprezo é mais declarado e desempenha papel ainda mais importante em Epiteto do que em São Paulo Finalmente eles têm em comum um desprezo quase instintivo pelo corpo este saco nas palavras de Epiteto que dia após dia eu preencho para em seguida esvaziar Poderia haver algo mais cansativo27 e a insistência na distinção entre um eu interno e as coisas exteriores28 O conteúdo efetivo da interioridade é descrito em cada um deles exclusivamente em termos das incitações da Vontade que São Paulo acreditava ser impotente ao passo que Epiteto declarava ser todapoderosa Onde está o bem Na vontade Onde está o mal Na vontade Onde não estão nem um nem outro No que não está sob o controle da vontade29 A princípio parece que temos aí a antiga doutrina estóica só que sem qualquer dos suportes filosóficos do estoicismo antigo não ouvimos de Epiteto nada sobre a bondade intrínseca da natureza de acordo com a qual Jcata physin o homem deve viver e pensaristo é tirar do pensamento todo o mal aparente entendendoo como um componente necessário de um bem completo Em nosso contexto o interessante em Epiteto é justamente a ausência em seus ensinamentos de tais doutrinas metafísicas Epiteto foi fundamentalmente um professor E uma vez que ensinava e não escrevia30 consideravase aparentemente um seguidor de Sócrates esquecendose como a maioria dos chamados seguidores de Sócrates de que Sócrates nada tinha a ensinar De qualquer forma Epiteto considerava se um filósofo e definia o assunto da filosofia como a arte de viver a própria vida 31 Essa arte consistia principalmente em ter um argumento pronto para qualquer emergência para cada situação de sofrimento agudo Seu ponto de partida era o omnes homines beati esse volunt da Antigüidade todos os homens desejam ser felizes e a única questão para a filosofia era descobrir como alcançar esse objetivo patente Só que Epiteto de acordo com a inclinação da época e em contraste com a da Era précristã estava convencido de que a vida assim como ela é dada na Terra tendo a morte como fim inevitável e sendo portanto acossada por medos e temores era incapaz de trazer a verdadeira felicidade sem que houvesse um esforço especial da vontade do homem Assim felicidade muda de significado não é mais entendida como eudaimonia a atividade de eu zen viver bem mas como euroia biou uma metáfora estóica indicativa de uma vida que flui livremente sem perturbarse com os vendavais as tempestades ou os obstáculos As características dessa felicidade eram serenidade galene a bonança depois da tempestade e tranqüilidade eudia o tempo bom32 metáforas que a Antigüidade clássica desconhecia Todas elas relacionam se com uma disposição da alma que é melhor descrita em termos negativos como ataraxia e que consiste em algo totalmente negativo ser feliz agora significava fundamentalmente não ser desgraçado A filosofia podia ensinar o processo da razão os argumentos como armas brilhantes e prontas para o uso33 a serem dirigidos contra o infortúnio da vida real A razão descobre que o que traz a desgraça não é a ameaça externa da morte mas o medo interior da morte não a dor mas sim o medo da dor não é a morte ou a dor que aterroriza mas o medo da dor ou da morte34 A única coisa certa a se temer é portanto o próprio medo e se os homens não podem escapar à dor ou à morte podem por outro lado dissuadirse do medo dentro de si eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos se guardamos nosso medo não para a morte ou para o exílio mas para o próprio medo então deveriamos nos treinar para evitar o que pensamos de mal35 Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado na morada da alma por um medo avassalador de ter medo ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança a impressão de Epiteto basta isso para compreendermos o valor psicológico terraaterra dessas teorias aparentemente improváveis Uma vez que a razão descobre essa região interna em que o homem enfrenta somente as impressões que as coisas externas deixam em seu espírito em vez de enfrentar sua existência factual sua tarefa está cumprida O filósofo não é mais o pensador que examina qualquer coisa que lhe apareça no caminho mas sim o homem que se educou para jamais se voltar para as coisas externas onde quer que ele esteja Epiteto dá um exemplo esclarecedor desta atitude Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um mas ao contrário da multidão vulgar dos outros espectadores ele está ali interessado somente em si mesmo e em sua própria felicidade forçase portanto a querer que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha36 Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela em contraste com a retirada do ego pensante para o estarsó do diálogo sem som de mim comigo mesmo em que todo pensamento é um repensar por definição tem conseqüências muito importantes Significa por exemplo que quando alguém vai a algum lugar não presta atenção a seu objetivo mas só se interessa pela própria atividade de caminhar ou quando a deliberação está unicamente interessada no ato de deliberar e não em obter aquilo que se planeja37 Nos termos da parábola do jogo é como se esses espectadores olhando com olhos que não vêem fossem meras aparições fantasmagóricas no mundo das aparências Pode ser úti 1 comparar essa atitude com a do filósofo na velha parábola pitagórica sobre os Jogos Olímpicos os melhores eram os que não participavam da luta pela fama ou pelo lucro mas que eram simples espectadores interessados nos jogos pelos jogos Não sobra aqui nenhum vestígio deste interesse desinteressado Somente o eu tem interesse e o soberano indisputável do eu é a razão argumentativa não o velho nous o órgão interno para a verdade o olho invisível do espírito dirigido para o que é invisível no mundo visível mas sim uma dynamis logike cuja maior distinção é tomar conhecimento de si mesma e de todas as outras coisas e que tem o poder de aprovar ou desaprovar sua própria ação38 A primeira vista isso pode se assemelhar ao doisemum socrático realizandose no processo pensante mas na verdade está muito mais próximo daquilo que hoje chamamos de consciência A descoberta de Epiteto foi de que o espírito conseguindo reter as impressões externas phantaisiai era capaz de lidar com as coisas exteriores como simples dados da consciência como diriamos A dynamis logike examina tanto a si mesma quanto as impressões deixadas no espírito A filosofia nos ensina a lidar com as impressões corretamente ela testaas e distingueas sem fazer uso de uma sequer que não tenha sido testada Olhar para uma mesa não nos capacita para decidir se a mesa é boa ou ruim a visão não nos informa nem qualquer outro dos nossos sentidos Somente o espírito que lida não com as mesas reais mas com impressões de mesas pode nos informar O que nos informa que o ouro é uma coisa bela Pois não é o ouro que nos informa Claramente é a faculdade que lida com impressões39 O importante é que não é preciso sair de si mesmo se o interesse concentrase integralmente no eu As coisas só têm valor à medida que o espírito pode envolvêlas de dentro de si Uma vez que o espírito se retira das coisas exteriores para a interioridade de suas próprias impressões descobre ser em um certo nível completamente independente de todas as influências externas Pode alguém impedirte de concordar com o que é verdade Ninguém Pode alguém obrigarte a aceitar o falso Ninguém Vês que nessa esfera tua faculdade está livre de qualquer empecilho e limite ou coerção40 Faz parte da natureza da verdade compelir isto é um insight antigo hosper hip antes tes aletheias anagkasthentes compelidas pela própria verdade como diz Aristóteles quando fala das teorias autoevidentes que não exigem qualquer raciocínio especial41 Mas em Epiteto esta verdade e sua dynamis logike não têm absolutamente nada a ver com o conhecimento ou com a cognição para os quais os processos da lógica são infrutíferos42 não prestam literalmente para nada akarpa O conhecimento e a cognição envolvem as coisas externas independentes do homem e além de seu poder portanto não são ou pelo menos não deveríam ser de interesse O início da filosofia é uma percepção synaisthesis da própria fraqueza no que diz respeito às coisas necessárias Não temos uma concepção inata das coisas que devemos conhecer tais como um triângulo retângulo mas podemos aprender com as pessoas que sabem e aqueles que ainda não sabem sabem que não sabem Algo bem diferente disso ocorre com coisas que de fato nos dizem respeito das quais a vida que levamos depende Nesse nível todo mundo nasce com um pareceme que dokei moi uma opinião e é aí que começa a nossa dificuldade na descoberta do conflito nos espíritos dos homens entre si e na tentativa de descobrir um padrão assim como descobrimos a balança para lidar com pesos e a régua para lidar com coisas retas e curvas Este é o começo da filosofia43 A filosofia estabelece então os padrões e as normas e ensina o homem a usar suas faculdades sensoriais a lidar corretamente com as impressões e a testálas e calcular seus valores O critério de toda filosofia é pois sua utilidade na tarefa de levar uma vida sem dor Mais especificamente ela ensina certas linhas de pensamento capazes de derrotar a impotência inata do homem Neste quadro filosófico geral teria de ser a razão o raciocínio argumentativo a receber a primazia sobre todas as outras faculdades do espírito mas isso não acontece Em seu violento ataque aos homens que foram filósofos somente da boca para fora Epiteto aponta a lacuna aterradora entre os ensinamentos de um homem e sua conduta real aludindo portanto ao velho insight de que a razão por si só nem move nem realiza nada A grande realizadora não é a razão mas a Vontade Em considere quem tu és temos uma exortação dirigida ao que parece à razão mas o que se descobre então é que o homem não tem nada de mais soberano kyrioteros do que a vontade proairesis tudo o mais está sujeito a ela e a vontade em si é livre da escravidão e do jugo É verdade que a razão logos distingue o homem dos animais que estão portanto marcados para servir ao passo que o homem é talhado para o comando44 apesar disso o órgão que tem capacidade de comando não é a razão mas a Vontade Se a filosofia lida com a arte de se viver a própria vida e se o seu maior critério é a utilidade neste âmbito então a filosofia significa muito pouco além do seguinte procurar saber como é viável exercitar a vontade de obter e a vontade de evitar sem obstáculos45 A primeira coisa que a razão pode ensinar à vontade é a distinção entre as coisas que dependem do homem aquelas que estão em seu poder o eph hemin aristotélico e aquelas que não estão O poder da vontade reside em sua decisão soberana de interessarse somente pelas coisas que estão em poder do homem e estas coisas residem cxclusivamente na interioridade humana46 Logo a primeira decisão da vontade é não querer o que não pode obter e deixar de não querer o que não pode evitar em suma não se interessar por qualquer coisa sobre a qual não tenha poder Que importa se o mundo é composto de átomos ou de partes infinitas ou se é composto de fogo e de terra Não é suficiente conhecer os limites entre a vontade de obter e a vontade de evitar e desconsiderar as coisas que estão além de nós47 E uma vez que é impossível que o que acontece viesse a ser diferente do que é4S uma vez que o homem em outras palavras não tem absolutamente nenhum poder no mundo real foramlhe concedidas as faculdades surpreendentes da razão e da vontade que lhe permitem reproduzir o exterior completo mas destituído de sua realidade dentro de seu espírito no qual ele é inegavelmente o senhor e o soberano Ali ele reina sobre si e sobre os objetos de seu interesse já que só a vontade pode ser obstáculo para si mesma Tudo o que parece ser real o mundo das aparências precisa na verdade de meu consentimento para poder ser real para mim E tal consentimento não pode ser impingido a mim se recusome a consentir a realidade do mundo desaparece como se fosse uma mera aparição Essa faculdade de afastamento do que é exterior em direção a um interior invencível obviamente requer treino gymnazeiri e constante discussão já que não só o homem vive sua vida diária no mundo como ele é mas também seu eu interior enquanto vive localizase dentro de algo externo um corpo que não está em seu poder mas pertence às coisas exteriores A questão constante é se sua vontade é suficientemente forte não simplesmente para desviar sua atenção do exterior ameaçando as coisas mas sim para concentrar sua imaginação em impressões diferentes na presença real de dor e infortúnio A recusa do consentimento ou colocar a realidade entre parênteses não é de modo algum um exercício de puro pensamento tem que dar provas de si Tenho que morrer Tenho que ser aprisionado Tenho que sofrer um exílio Mas tenho que morrer gemendo Tenho também que me lastimar Alguém pode impedirme de ir para o exílio com um sorriso O senhor ameaça acorrentarme Que dizes Acorrentarme Vais acorrentar minha perna sim mas não a minha vontade não nem mesmo Zeus pode conquistála49 Epiteto dá inúmeros exemplos que não preciso enumerar aqui constituiríam leitura tediosa como exercícios em um livro escolar O desfecho é sempre o mesmo O que incomoda os homens não é o que realmente acontece a eles mas seu próprio julgamento dogma no sentido de crença ou opinião Serás prejudicado somente quando achares que foste prejudicado Ninguém pode te prejudicar sem teu consentimento51 Por exemplo o que significa ser difamado Aproximate de uma pedra e difamaa que efeito isso terá51 Seja como uma pedra e serás invulnerável A ataraxia invulnerabilidade é tudo o que você precisa purasentirse livre uma vez que descubra que a própria realidade depende do seu consentimento para ser reconhecida como tal Como a maioria dos estóicos Epiteto reconhecia que a vulnerabilidade do corpo impõe certos limites a essa liberdade interior Incapazes de negar que não são as simples aspirações ou os desejos que nos impedem de ser livres mas os grilhões a nós presos na forma de um corpo52 eles tinham que provar portanto que os grilhões não eram indestrutíveis Uma resposta para a pergunta O que nos impede de cometer o suicídio passa a ser um tópico necessário nos escritos dessa escola Epiteto de qualquer forma parece claramente terse dado conta de que esse tipo de liberdade interna ilimitada pressupõe na verdade que é preciso lembrar e fixar a idéia de que a porta está aberta53 Para uma filosofia de total alienação do mundo há muita verdade na frase extraordinária com que Camus começou seu primeiro livro II nyaqu un problème philosophique vraiment sérieux c est le suicide 54 A primeira vista essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença apatheia como se proteger da realidade como perder sua habi lidade de ser por ela afetado para o bem ou para o mal na alegria ou na tristeza parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental Encontramos em Santo Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível Os estóicos diz ele descobriram o truque de como fingir que estão felizes Não podendo ter o que quer o homem quer o que pode ter Ideo igitur id vult quod potest quoniam quod vult nom potest55 Além disso prossegue os estóicos pressupõem que todo homem deseja por natureza ser feliz sem contudo acreditar em imortalidade pelo menos não em ressurreição do corpo isto é em uma vida futura sem morte e aí temos uma contradição em termos Pois se todo homem deseja de fato ser feliz deve necessariamente também querer ser imortal Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo Cum ergo beati esse omnes homines velint si vere volunt profecto et esse immortales volunt Ut enim homo beate vivat oportet ut vivat56 Em outras palavras os mortais não podem ser felizes e a insistência dos estóicos no medo da morte como a maior fonte de infelicidade atesta isso o máximo que podem conseguir é ficar indiferentes deixar de ser afetados pela vida ou pela morte Essa refutação entretanto tão razoável nesse nível de argumentação deixa escapar alguns pontos importantes Há em primeiro lugar a questão de por que deveria ser necessário um querer com a finalidade de não querer por que não seria possível simplesmente perder a faculdade sob o domínio dos insights superiores do raciocínio correto Afinal não sabemos todos como é relativamente fácil perder pelo menos o hábito senão a faculdade de pensar Basta viver em constante estado de distração e jamais deixar a companhia de outros Podese argumentar que é mais difícil quebrar o hábito que os homens têm de querer o que está fora de seu poder do que quebrar o hábito de pensar mas para um homem suficientemente treinado não deve ser necessário ficar repetindo mil vezes o não querer já que o me thele o não querer onde não se pode evitar c no mínimo tão importante para esse aprendizado quanto o simples apelo à força de vontade Muito relacionado ao que foi dito anteriormente e ainda mais enigmático é o fato de que Epiteto não fica absolutamente satisfeito com o poder da vontade de deixar de querer Ele não prega simplesmente a indiferença a tudo o que não está em nosso poder ele exige com insistência que o homem queira o que de qualquer maneira acontece Já citei a parábola do jogo na qual o homem cujo único interesse é o bemestar do eu é exortado a querer que aconteça somente o que acontece e que ganhe somente quem ganha Em um outro contexto Epiteto vai muito além e exalta sem citar nomes filósofos que disseram que se o homem bom soubesse de antemão dos acontecimentos vindouros ele ajudaria a natureza mesmo que isso significasse lidar com a doença com a morte com a mutilação57 Certamente ele recai em seu argumento na velha noção estóica de heimarmene a doutrina do destino segundo a qual tudo acontece em harmonia com a natureza do universo e cada coisa particular homem ou animal planta ou pedra tem sua tarefa designada pelo todo sendo por ele justificada Mas não só Epiteto demonstra explicitamente não estar interessado em qualquer questão relativa à natureza ou ao universo como também não há nada na antiga doutrina que indique que a vontade do homem totalmente infrutífera por definição tenha algum valor na ordenação do universo Epiteto se interessa pelo que acontece a ele Quero uma coisa e ela não acontece quem é mais desgraçado do que eu Não aquero e ela acontece quem é mais desgraçado do que eu58 Em resumo para viver bem não é suficiente deixar de pedir para que os eventos aconteçam como se quer devese deixar a vontade ser tal que os eventos devam acontecer como acontecem59 Somente quando o poder da vontade chega a esse ponto de clímax em que consegue querer o que é nunca estando portanto em desavença com as coisas exteriores é que ele se pode dizer onipotente Subjacente a todos os argumentos para tal onipotência está a patente pressuposição de que a realidade para mim obtém seu grau de realidade por consentimento meu e subjacente a essa pressuposição garantindo sua eficácia prática está o fato simples de que posso cometer o suicídio quando achar a vida verdadeiramente insuportável a porta está sempre aberta E aqui a solução não implica como é o caso por exemplo em Camus uma espécie de rebelião cósmica contra a condição humana para Epiteto tal rebelião não teria nenhum sentido já que é impossível que aquilo que acontece seja diferente do que é60 Isso é impensável porque mesmo uma negação absoluta depende do puro e inexplicável estaraí thereness de tudo o que é inclusive eu mesmo e Epiteto jamais exige uma explicação ou uma justificativa para o inexplicável Logo como Santo Agostinho vem a argumentar mais tarde61 aqueles que acreditam escolher não ser quando cometem suicídio estão errados escolhem uma forma de ser que acabará por vir algum dia de todo modo e escolhem a paz que é naturalmente apenas uma forma de ser A única força que pode obstruir esse consentimento básico e ativo dado pela vontade é ela mesma Assim o critério para a conduta correta é o seguinte Queira estar satisfeito tu contigo mesmo theleson aresai autos seauto E Epiteto acrescenta Queira aparecer nobre diante do deus Theleson kalos phanenai to theoa sendo que o adendo é na verdade redundante já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente mas sustenta que a alma é semelhante a Deus e que o deus está dentro de ti tu és um fragmento dele63 O ego volitivo acaba então não sendo menos dividido em dois do que o doisemum socrático do diálogo de pensamento de Platão Mas como vimos em São Paulo os dois no ego volitivo estão longe de manter entre si um relacionamento harmonioso e amigável embora em Epiteto sua relação francamente antagônica não submeta o eu aos extremos de desespero que tanto ouvimos na lamentação de São Paulo Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente luta agon uma competição olímpica que exige uma suspeita semprealerta de mim para comigo Em uma palavra o filósofo que sempre olha para si para o bem ou para o mal mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo hos echthron heautou quando está à sua espera64 Basta relembrarmos o insight de Aristóteles todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma para reavaliarmos a distância percorrida pelo espírito humano desde a Antigüidade O eu do filósofo governado pelo ego volitivo que lhe diz que só a própria vontade pode obstruirlhe o caminho ou servirlhe de limite engajase em uma luta sem fim com a contravontade engendrada precisamente por sua própria vontade O preço pago pela onipotência da Vontade é muito alto o pior que poderia acontecer ao doisemum do ponto de vista do ego pensante a saber estar em desacordo consigo mesmo tomase parte inseparável da condição humana E o fato de que esse destino não é mais atribuído ao homemvil de Aristóteles mas ao contrário ao homem bom e sábio que aprendeu a arte de conduzir a própria vida quaisquer que sejam as circunstâncias externas pode levantar uma indagação se a cura da desgraça humana não será pior do que a doença A despeito disso há nessa empreitada lamentável somente uma descoberta que nenhum argumento pode eliminar e que no mínimo explica porque o sentimento de onipotência bem como o de liberdade humana puderam se originar das experiências do ego volitivo Um assunto que abordamos marginalmente na discussão sobre São Paulo a saber o de que toda obediência presume o poder de desobedecer está bem no centro das considerações de Epiteto O cerne da questão aí é o poder da Vontade para assentir ou dissentir dizer Sim ou Não pelo menos no que me diz respeito Eis porque as coisas que em sua existência pura isto é impressões de coisas exteriores dependem somente de mim estão também em meu poder não só posso ter vontade de mudar o mundo embora essa proposta seja de interesse duvidável para alguém totalmente alienado do mundo em que se encontra como posso também negar realidade a tudo e qualquer coisa através de um deixodequerer Esse poder deve ter tido algo de muito terrível de realmente esmagador para o espírito humano pois nunca houve um filósofo ou teólogo que depois de ter prestado a devida atenção ao Não implícito em cada Sim não tenha imediatamente exigido um consentimento enfático aconselhando o homem como fez Sêneca em frase citada com grande aprovação pelo Mestre Eckhart a aceitar todas as ocorrências como se ele mesmo as tivesse desejado e tivesse rogado por elas Certamente se enxergamos nesse acordo universal somente o último e mais profundo ressentimento do ego volitivo em relação à sua impotência existencial no mundo como ele é factualmente veremos aqui também apenas mais um argumento para o caráter ilusório da faculdade uma confirmação final de que ela é um conceito artificial Ao homem nesse caso teria sido dada uma faculdade realmente monstruosa Santo Agostinho compelida por sua natureza a exigir um poder que é capaz de exercer somente na região dominada pela ilusão da mera fantasia na interioridade de um espírito que conseguiu separarse de toda aparência exterior em sua busca incansável pela tranqüilidade absoluta E como recompensa final e irônica para tanto esforço terá obtido um relacionamento desconfortavelmente íntimo com o depósito das dores e o tesouro dos males nas palavras de Demócrito ou com o abismo que segundo Santo Agostinho escondese no coração bom e no coração mau65 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade Se é devido às Escrituras que há uma filosofia que é cristã é devido à tradição grega que o cristianismo possui uma filosofia Etienne Gilson Santo Agostinho o primeiro filósofo cristão e é tentador acrescentar o único filósofo que os romanos jamais tiveram66 foi também o primeiro pensador que se voltou para a religião em função de perplexidades filosóficas Como muitas das pessoas cultas de sua época fora educado como cristão a despeito disso o que ele mesmo descreveu como uma conversão o tema das Confissões foi completamente diferente da experiência que transformou o fariseu extremamente zeloso Saulo em São Paulo o apóstolo cristão e seguidor de Jesus de Nazaré Nas Confissões Santo Agostinho contanos como seu coração pela primeira vez foi posto em chamas pelo Hortênsius de Cícero um livro hoje perdido que continha uma exortação à filosofia Citou essa obra até o fim da vida Tomouse o primeiro filósofo cristão porque se manteve preso à filosofia ao longo de toda a vida Seu tratado Sobre a Trindade uma defesa do dogma fundamental da Igreja Cristã é ao mesmo tempo o desenvolvimento mais profundo e mais articulado de sua posição filosófica própria c muito original O ponto de partida porém era ainda a busca romana e estóica da felicidade E certo disse Cícero que todos queremos ser felizes67 Na juventude ele tinhase voltado para a filosofia por miséria interior e na idade adulta voltouse para a religião porque a filosofia não lhe ajudara Esta atitude pragmática exigir da filosofia que seja a guia da vida Cícero68 é tipicamente romana teve uma influência mais duradoura na formação do pensamento de Santo Agostinho do que Plotino e os neoplatônicos a quem ele devia tudo o que sabia sobre filosofia grega Não é que a aspiração humana genérica à felicidade tivesse escapado à atenção dos gregos a máxima romana parece ter sido uma tradução do grego mas não foi esse desejo que os fez fazer filosofia Somente os romanos estavam convencidos de que não há razão para o homem filosofar a não ser com o intuito de ser feliz69 Encontramos esse interesse pragmático na felicidade privada durante toda a Idade Média ele subjaz à esperança da salvação eterna e ao medo da danação eterna e esclarece muitas especulações que de outra forma seriam incompreensíveis e cujas origens romanas fica difícil detectar O fato deque a Igreja Católica Romana a despeito da influência decisiva da filosofia grega tenha permanecido tão profundamente romana deveuse muito à estranha coincidência de que seu primeiro e mais influente filósofo tenha sido também o primeiro pensador a ir buscar inspiração mais profunda em fontes e experiências latinas Em Santo Agostinho a luta pela vida eterna como o summum bonum e a interpretação da morte eterna como o siiminum malum alcançaram o mais alto grau de articulação porque ele as combinou com a descoberta da nova era da vida interior Entendia que o interesse exclusivo por esse eu interior significava que torneime uma questão para mim mesmo fquaestio mihi factus sum uma questão que a filosofia assim como era ensinada e aprendida então nem levantava nem respondia70 As famosas análises do conceito de Tempo no Livro XI das Confissões constituem um exemplo paradigmático do desafio do que era novo e problemático o tempo é algo bastante familiar e comum até que alguém pergunte O que é o Tempo momento em que se transforma em um enigma intrincado cujo desafio é ser tanto inteiramente comum quanto inteiramente misterioso71 Não há dúvida de que Santo Agostinho está entre os maiores c mais originais pensadores não era porém um pensador sistemático e é verdade que o corpo principal de sua obra está repleto de linhas de pensamento que não vão até as últimas conseqüências e de empreitadas literárias abandonadas7 além de estar cheio de repetições Nestas condições cumpre notar a continuidade dos tópicos principais que ele no fim da vida submeteu a um exame minucioso intitulado Retractationes ou Retratações como se o Bispo e Príncipe da Igreja fosse o seu próprio Inquisidor Talvez o mais fundamental desses tópicos sempre recorrentes tenha sido o Li vrearbítrio da Vontade o Liberum arbitrium voluntatis como faculdade distinta do desejo e da razão embora Santo Agostinho tenha dedicado a ele apenas um tratado inteiro com esse título Foi um trabalho dos primeiros tempos cuja parte inicial está ainda totalmente no estilo de suas outras primeiras obras filosóficas embora tenha sido escrita depois do dramático acontecimento da conversão e do batismo Acho que é muito expressivo da qualidade do homem e do pensador o fato de ele ter levado dez anos para escrever com os mínimos detalhes aquilo que para ele havia sido o mais grave e importante momento de sua vida e isto não apenas em prol da lembrança ou da misericórdia mas em função de suas implicações espirituais O mais recente biógrafo de Santo Agostinho Peter Brown expressa isso de maneira um pouco simplista dizendo que ele definitivamente não era um type croyant como era comum entre os homens instruídos no mundo latino antes de seu tempo73 para Santo Agostinho não se tratava de abandonar as incertezas da filosofia em favor da Verdade revelada mas de descobrir as implicações filosóficas de sua nova fé Nesse esforço imenso fiouse sobretudo nas Epístolas do Apóstolo Paulo a dimensão do seu sucesso pode ser avaliada pelo fato de que sua autoridade através dos séculos subseqüentes da filosofia cristã tornouse equivalente à de Aristóteles para a Idade Média o filósofo Comecemos pelo interesse inicial de Santo Agostinho pela Vontade tal como é exposto na primeira parte do tratado escrita nos primeiros tempos as duas partes finais foram escritas quase dez anos depois mais ou menos ao mesmo tempo que as Confissões A questão principal aí é uma investigação sobre a causa do mal pois sem alguma causa ele não poderia existir e Deus não pode ser a causa do mal porque Deus é bom A questão comum mesmo naquela época tinhao atormentado em excesso desde sua mocidade impelindoo à heresia isto é a aderir aos ensinamentos de Maniqueu74 Daí em diante o que temos estritamente é um raciocínio argumentative embora em forma de diálogo assim como em Epiteto e a esta altura os pontos significativos soam como um resumo com propósitos didáticos até que chegamos à conclusão em que o discípulo é levado a dizer Pergunto se o livrearbítrio nos deveria ter sido dado por Aquele que nos fez Pois parece que não poderiamos pecar se não tivéssemos um livrearbítrio E é de se temer que dessa maneira Deus também possa ser considerado a causa de nossos maus atos Nesse ponto Santo Agostinho tranqüiliza o indagador e adia a discussão75 Trinta anos mais tarde de uma forma diferente em Cidade de Deus ele retoma a questão do propósito da Vontade como a do Propósito do Homem A questão cuja resposta adiou por tantos anos é o ponto de partida para uma filosofia da Vontade própria de Santo Agostinho Mas foi em uma interpretação minuciosa da Epístola de São Paulo aos Romanos que ele a concebeu originalmente Nas Confissões bem como nas duas seções finais de O livrearbítrio tira conclusões filosóficas e enuncia as conseqüências do estranho fenômeno o de que é possível querer e na ausência de qualquer empecilho externo ser ainda assim incapaz de realizar que São Paulo descrevera em termos de leis antagônicas Santo Agostinho porém não fala de duas leis mas de duas vontades uma nova e a outra antiga uma carnal e a outra espiritual e descreve em detalhe assim como São Paulo a maneira como essas vontades lutaram dentro dele e como a discórdia entre elas lhe dilacerou a alma76 Em outras palavras toma cuidado para evitar sua própria heresia maniqueísta inicial que ensina que dois princípios antagônicos governam o mundo um bom e um mau um carnal e um espiritual Para ele agora há somente uma lei e o primeiro insight portanto é o mais óbvio e também o mais surpreendente Non hoc velle quod posse querer e poder não são o mesmo77 O que surpreende é estarem as duas faculdades querer e poder realizar tão intimamente ligadas A vontade deve estar presente para que o poder seja produtivo e nem é preciso dizer que o poder deve estar presente para que a vontade possa dele fazer uso Se agimos isso jamais pode ser sem vontade mesmo quando fazemos uma coisa a contragosto sob coação Quando não agimos o motivo pode ser a falta de vontade ou a falta de poder78 Surpreende ainda mais que Santo Agostinho concorde com o argumento principal dos estóicos para explicara predominância da Vontade isto é nada está tanto em nosso poder como a própria vontade pois não há intervalo no momento em que queremos lá está79 Mas ele não acredita que a Vontade seja suficiente A lei não comandaria se não houvesse vontade nem a graça ajudaria se a vontade fosse suficiente O que importa aqui é que a Lei não se dirige ao espírito caso em que simplesmente se revelaria e não ordenaria dirigese sim à Vontade porque o espírito não se move até que queira ser movido E esse é o motivo pelo qual somente a Vontade nem a razão nem os apetites ou desejos está em nossas mãos é livre80 Essa prova da liberdade da Vontade fundase exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real a faculdade necessária para se executar os comandos da Vontade A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão por um lado e com os desejos por outro e não é possível para nenhum dos dois dizerse livre Vimos que Aristóteles introduziu suaproairesis para evitar o dilema de dizer que o homem bom obrigase a desviarse de seus apetites ou que o homem vil obrigase a desviarse de sua razão Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão Posso ser capaz de dizerNão para uma verdade a mim revelada mas não posso de modo algum fazêlo em termos racionais Os apetites surgem automaticamente em meu corpo e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim posso dizer Não a eles aconselhado pela razão ou pela lei de Deus mas a razão em si não me leva à resistência Duns Scotus muito influenciado por Santo Agostinho elabora mais tarde esse argumento Sem dúvida o homem cantai no sentido em que São Paulo o entendia não pode ser livre mas o homem espiritual tampouco é livre Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitarse a ele mas deve também querer fazêlo81 A faculdade da Escolha tão decisiva para o liberum arbitrium aplicase aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim mas principalmente e em Santo Agostinho exclusivamente à escolha entre velle e nolle entre querer e nãoquerer Este nolle nada tem a ver com o querernão querer e não pode ser traduzido como eudeixodequerer porque isso sugere ausência de vontade Nolle não é menos ativamente transitivo do que velle e não é menos uma faculdade de vontade se quero o que não desejo tratase de nãoquerer meus desejos e posso do mesmo jeito nãoquerer o que a razão me diz estar certo Em todo ato de vontade há um euquero e um nãoquero envolvidos São essas as duas vontades cuja discórdia Santo Agostinho disse que lhe dilacerou a alma Seguramente aquele que quer quer alguma coisa e este algo lhe é apresentado exteriormente através dos sentidos do corpo ou vem ao espírito por meios ocultos mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade82 O que é então que faz a vontade querer O que põe a vontade em movimento A questão é inevitável mas a resposta acaba levando a um regresso ao infinito Pois se a pergunta fosse respondida não irias perguntar também sobre a causa daquela causa caso a descobrisses Não desejarias saber a causa da vontade anterior à vontade Não poderia ser inerente à Vontade nesse sentido não ter uma causa Pois ou a Vontade é a sua própria causa ou não é uma Vontade83 A Vontade é um fato que em sua factualidade puramente contingente não pode ser explicado em termos de causalidade Ou para antecipar uma sugestão do último Heidegger já que a Vontade se experimenta como causadora do acontecimento de coisas que de outra forma não teriam acontecido não poderia ocorrer que aquilo que se esconde por trás da nossa busca de causas não é nem o intelecto nem nossa sede de saber que poderia ser saciada com a informação direta mas precisamente a Vontade como se por trás de cada por que existisse um desejo latente não só de aprender e de conhecer mas também de saber como Finalmente ainda no rastro das dificuldades descritas porém não explicadas na Epístola aos Romanos Santo Agostinho vem a interpretar o lado escandaloso da doutrina da graça de São Paulo Veio a Lei para que crescesse a perdição mas onde o pecado cresceu a graça abundou ainda mais Partindose daí fica difícil não chegar à seguinte conclusão Façamos o mal para que o bem frutifique Ou de forma mais amena valeu ter sido incapaz de fazer o bem em virtude da alegria irresistível da graça como disse uma vez o próprio Santo Agostinho84 Sua resposta nas Confissões aponta para os estranhos caminhos da alma até mesmo na falta de qualquer experiência especificamente religiosa A alma deleitase mais com as coisas encontradas ou reavidas que ama do que se as tivesse possuído sempre O general vitorioso triunfa e quanto maior o perigo no combate maior gozo no triunfo Um amigo está doente Melhora E embora não tenha recuperado a força anterior já há tanto júbilo que é como se não existisse o tempo em que ele caminhava com mais força e vigor E é assim com todas as coisas a vida humana está repleta de testemunhos disso A alegria maior é precedida de uma dor maior este é o modo de ser que cabe a todas coisas vivas do anjo ao menor verme Até Deus uma vez que Ele é um deus vivo sente mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove que não precisam arrependerse85 Esse modo de ser modus é igualmente válido para as coisas vis e para as nobres para as mortais e para as divinas Isto certamente é a quintessência do que São Paulo tinha a dizer mas expresso de uma maneira conceituai não descritiva sem apelar para qualquer interpretação puramente teológica ele oblitera a mordacidade das lamentações e acusações latentes de São Paulo das quais somente o argumentun ad hominem a pergunta no estilo de Jó Quem é você para perguntar tais coisas e levantar tais objeções poderia salválo Na refutação de Santo Agostinho ao estoicismo podemos ver uma transformação e uma solidificação semelhantes ocasionadas por meio de pensamento conceituai O verdadeiramente escandaloso na doutrina não era que o homem pudesse querer dizer Não à realidade mas que este Não fosse insuficiente diziam ao homem que para ele encontrar a tranqüilidade deveria treinar sua vontade a dizer Sim e a deixar sua vontade ser a de que os eventos aconteçam como acontecem Santo Agostinho entende que esta submissão voluntária pressupõe uma limitação rigorosa da própria capacidade da vontade Embora em sua visão a todo velle corresponda um nolle a liberdade da faculdade é limitada porque nenhum ser criado pode querer contra a criação pois isso seriamesmo no caso do suicídio um querer dirigido não só contra uma contravontade mas também contra o próprio sujeito que quer e que nãoquer A vontade a faculdade de um ser vivo não pode dizer preferiría não ser ou preferiría o nada per se Quem disser preferiría não existir a ser infeliz não merece crédito já que enquanto está dizendo isso ainda está vivo Não obstante isso só pode acontecer porque estar vivo sempre implica um desejo de continuar vivendo por essa razão a maior parte das pessoas prefere ser infeliz a não ser absolutamente nada Mas e quanto àqueles que dizem se eu tivesse sido consultado antes de existir teria preferido não existir a ser infeliz Esses não levaram em conta que até mesmo essa proposição é feita com base firme no Ser se considerassem devidamente o assunto veriam que sua própria infelicidade faz com que eles existam menos do que desejam ela lhes toma um pouco da existência O grau de sua infelicidade é proporcional à distância que mantêm daquilo que existe no grau supremo quod summe esí e portanto fora da ordem temporal que está cheia de nãoexistência pois as coisas temporais antes de existir não têm existência enquanto existem passam tendo passado jamais existirão novamente Todos os homens temem a morte e este sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião que nos leve a pensar que deveriamos querer não existir pois o fato é que começar a existir é o mesmo que caminhar para a nãoexistência Em suma todas as coisas pelo simples fato de que são são boas inclusive o mal e o pecado e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus Criador mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a nãoexistência absoluta Nesse contexto é importante observar que Santo Agostinho embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis em nenhum lugar exige como Eckhart fez mais tarde que um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina de modo a querer aquilo que Deus quer portanto se Deus quis que eu pecasse não devo querer não ter cometido meu pecado é este o meu verdadeiro arrependimento86 O que Santo Agostinho infere dessa teoria do Ser não é a Vontade mas a Louvação Agradece por existir louva a todas as coisas pelo simples fato de que existem Evite não somente dizer Seria melhor se os pecadores não existissem mas também Eles devem ter sido constituídos de outra maneira E o mesmo se dá com tudo já que todas as coisas foram criadas dentro da ordem correspondente e se ousares depreciar um deserto fazeo somente porque pode comparálo com o que é melhor E como se alguém que apreendesse pela razão a esfericidade perfeita se indignasse por não poder encontrála na natureza Deveria ficar grato por ter a idéia da esfericidade87 No volume anterior falei da antiga noção grega de que todas as aparências porque aparecem não só implicam a presença de criaturas sensíveis capazes de percebêlas mas também requerem reconhecimento e louvor Esta noção era uma espécie de justificação filosófica da poesia e das artes a alienação do mundo que precedeu o surgimento do pensamento estóico e do cristão conseguiu eliminála de nossa tradição embora nunca a tenha apagado totalmente das reflexões dos poetas Ainda se pode encontrála expressa com muita ênfase em W H Auden que fala sobre Aquele singular comando Não o entendo Agradeça ao que há por existirIA que devo obedecer pois Para que mais sou feito para concordar ou divergir88 no poeta russo Osip Mandelstam e é claro na poesia de Rainer Maria Rilke Quando se encontra essa noção em um contexto estritamente cristão ela já tem um sabor argumentativo desconfortável como se fosse simplesmente uma conclusão necessária da fé incontestada no DeusCriador como se os cristãos tivessem a obrigação de repetir as palavras de Deus após a Criação E Deus viu tudo e isto era muito bom De todo modo as observações de Santo Agostinho sobre a impossibilidade de um nãoquerer completo já que não se pode nãoquerer a própria existência enquanto se está nãoquerendo é impossível portanto nãoquerer absolutamente até mesmo no suicídio configuram uma refutação efetiva das artimanhas espirituais que os filósofos estóicos recomendaram para habilitar os homens a retirarse do mundo continuando a viver nele Voltamos à questão da Vontade nas Confissões que são quase totalmente nãoargumentativas e ricas no que hoje chamamos de descrições fenomenológicas Pois embora Santo Agostinho comece por conceituar a posição de São Paulo ele vai muito além além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais de que querer e estar apto a executar não são a mesma coisa de que a lei não poderia mandar se não houvesse vontade nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos o dia tomandose noite e a noite tomadose dia e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça sobre a coragem somente através da covardia e assim por diante Refletindo sobre o que de fato acontecera durante o combate ardoroso que travara consigo mesmo antes de sua conversão Santo Agostinho descobriu que a interpretação que São Paulo fazia de uma luta entre carne e espírito estava errada Pois meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma movendo seus membros a um mínimo sinal do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada89 Assim o problema não estava na natureza dual do homem metade carne e metade espírito encontravase na própria faculdade da Vontade De onde vem tal monstruosidade E por que motivo O espírito ordena ao corpo e este imediatamente lhe obedece o espírito dá uma ordem a si mesmo ele resiste Unde hoc monstrum et quare istud Imperat ainimus corpori et paretur statin imperate animus sibi et resistitur O corpo não tem vontade própria e obedece ao espírito embora ele seja diferente do corpo Mas quando o espírito ordena ao espírito que ele queira ainda que seja o mesmo espírito ele não obedece De onde provém esta monstruosidade Qual a razão Repito o espírito ordena a si que queira algo e se não quisesse não ordenaria e não executa o que lhe manda Talvez prossegue Santo Agostinho isso possa ser explicado por uma certa fraqueza da vontade uma falta de compromisso talvez o espírito não queira totalmente portanto tampouco ordena terminantemente e portanto não é o que manda Mas quem manda aqui o espírito ou a vontade Porventura o espírito animus ordena à vontade e então hesita de modo que a vontade não receba uma ordem clara A resposta é não pois é a vontade que ordena que haja vontade não uma outra vontade como ocorrería se o espírito se dividisse entre vontades conflitantes mas exatamente a mesma vontade90 A cisão dáse na própria vontade o conflito não surge de uma cisão entre o espírito e a vontade e tampouco de uma cisão entre a carne e o espírito Isso comprovase pelo simples fato de que a Vontade fala sempre no modo imperativo Tu Deves Querer diz a Vontade a si mesma Somente a própria Vontade tem poder para emitir semelhantes ordens e se a vontade fosse plena não ordenaria que fosse vontade É da natureza da Vontade duplicarse e neste sentido onde quer que haja uma vontade há sempre duas vontades nenhuma das quais é plena tota e o que falta a uma está presente na outra Por essa razão são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade não é portanto monstruoso querer em parte e em parte nãoquerer Et ideo sunt duae voluntates quia una earun tota non est Non igitur monstrum partim velle partim nolle O problema é que é o mesmo ego volitivo que simultaneamente quer e não quer Era eu o que queria era eu o que não queria eu mesmo Não era um querer total e tampouco um nãoquerer completo e isso não significa que eu tivesse dois espíritos um bom e o outro mau mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito dilaceravame91 Os maniqueístas explicavam o conflito assumindo a existência de duas naturezas contrárias uma boa e a outra má Mas se houvesse tantas naturezas contrárias quantas vontades em luta dentro de nós não haveria só duas mas sim muitas naturezas Pois encontramos o mesmo conflito de vontades onde nenhuma escolha entre o bem e o mal está em jogo onde ambas as vontades devem ser ditas más ou ambas ditas boas Sempre que um homem tenta chegar a uma decisão encontrase um espírito oscilando entre muitas vontades Suponha que alguém tente se decidir entre ir ao circo ou ao teatro se ambos forem no mesmo dia ou a um terceiro lugar roubar a casa de alguém ou a um quarto lugar cometer adultério e todas estas vontades se realizassem no mesmo momento todas igualmente desejadas sendo coisas que não podem acontecer ao mesmo tempo Temos aqui quatro vontades todas más e todas em conflito dilacerando o ego volitivo E o mesmo se dá com vontades que são boas92 Santo Agostinho não nos informa nesse ponto como tais conflitos se resolvem apenas admite que em um dado momento escolhese um objetivo para onde a vontade única e plena antes multiplamente dividida pode ser conduzida Mas a cura da vontade e este é um ponto decisivo não advém da graça divina No final das Confissões ele volta mais uma vez ao problema e com base em certas considerações bastante diferentes explicitamente demonstradas em Sobre a Trindade obra que levou quinze anos para escrever de 400 a 416 dá seu diagnóstico a vontade final e unificadora que por fim decide a conduta de um homem é o Amor O Amor é o peso da alma sua lei da gravidade aquilo que leva o movimento da alma ao repouso Um tanto influenciado pela física aristotélica Santo Agostinho sustenta que o fim de todo movimento é o repouso compreendendo agora as emoções movimentos da alma em uma analogia com os movimentos do mundo físico Pois os corpos nada mais desejam por seu peso do que a alma deseja por seu amor Assim nas Confissões Meu peso é o meu amor é ele que me leva onde quer eu vá93 Devemos reter o seguinte primeiro a cisão dentro da Vontade é um conflito não um diálogo e independe do conteúdo daquilo que se quer Uma vontade ruim não é menos dividida do que uma boa e viceversa Segundo a vontade comandando o corpo não passa de um órgão executivo do espírito e como tal não apresenta maiores problemas O corpo obedece ao espírito porque não possui qualquer órgão que torne possível a desobediência A vontade ao dirigirse a si mesma desperta a contra vontade porque o intercâmbio se dá completamente no espírito uma competição só é possível entre iguais Uma vontade que fosse plena sem uma contravontade já não poderia ser adequadamente chamada de vontade Terceiro uma vez que está na natureza da vontade ordenar e exigir obediência está também na natureza da vontade resistir a si mesma Finalmente no quadro das Confissões não se dá qualquer solução ao enigma dessa faculdade monstruosa permanece um mistério a explicação de como a vontade dividida contra si mesma chega finalmente ao momento em que se toma plena Se é esse o modo como a vontade funciona como é que ela pode chegar a nos fazer agir a preferir por exemplo o roubo ao adultério Pois as flutuações da alma de Santo Agostinho flutuações entre muitos fins igualmente desejáveis são muito diferentes das deliberações de Aristóteles que envolvem não os fins mas os meios para um fim que é dado pela natureza humana Nas principais análises de Santo Agostinho semelhante árbitro final nunca aparece a não ser no término das Confissões quando ele subitamente começa a falar da Vontade como uma espécie de Amor o peso de nossa alma sem dar entretanto qualquer explicação para essa estranha identificação Essa solução é evidentemente uma exigência uma vez que sabemos que tais conflitos do ego volitivo são resolvidos no final Na verdade como irei demonstrar adiante aquilo que parece um deus ex machina nas Confissões deriva de uma teoria diferente da Vontade Mas antes de nos voltarmos para Sobre a Trindade pode ser útil uma interrupção para vermos como o mesmo problema é tratado em termos de consciência por um pensador moderno John Stuart Mill ao examinar a questão da vontade livre sugere que a confusão de idéias comum nessa área da filosofia tem de ser muito natural para o espírito humano e descreve de maneira menos vivida e também menos precisa mas com palavras estranhamente semelhantes àquelas que acabamos de ouvir os conflitos a que está sujeito o ego volitivo É errado insiste descrevêlos como se ocorressem entre mim e alguma força estranha a qual conquisto ou pela qual sou sobrepujado Pois é óbvio que eu sou ambas as partes nesta disputa o conflito se dá de mim para comigo mesmo O que faz com que eu ou se preferir minha Vontade me identifique com um dos lados ao invés do outro é que um dos eus representa um estado mais permanente dos meus sentimentos do que o outro Mill precisou desta permanência porque era inteiramente contrário à idéia de que temos consciência de sermos capazes de nos contrapor ao mais forte desejo ou aversão tinha portanto que explicar o fenômeno do arrependimento O que descobriu então foi que depois de se cair em tentação isto é no maior desejo do momento o eu desejante termina mas o eu que tem a consciência pesada pode perdurar até o fim da vida Embora este persistente eu da consciência pesada não tenha qualquer importância nas considerações posteriores de Mill ele sugere aqui a intervenção de algo chamado consciência moral ou caráter que sobrevive a todas as volições ou desejos temporalmente limitados De acordo com Mill o eu que perdura e que se manifesta somente quando uma volição chega a seu fim deveria assemelharse a qualquer coisa que tenha impedido o asno de Buridan de morrer de fome na dúvida entre dois montes de feno com o mesmo cheiro bom Por simples cansaço misturado à sensação de fome o animal acabariapor deixar completamente de pensar nos objetos rivais Mas isto Mill dificilmente poderia admitir já que o eu que perdura é claramente uma das partes na disputa e quando ele diz que o objeto da educação moral é a educação da vontade está pressupondo que é possível ensinar uma das partes a vencer A educação entra aqui como um deus ex machina a proposição de Mill baseiase em um pressuposto não examinado semelhante aos que os filósofos da moral adotam com uma confiança enorme e que não podem ser provados ou refutados94 Não se pode esperar de Santo Agostinho esse mesmo tipo estranho de confiança ela surgiu muito mais tarde para neutralizar pelo menos na esfera da ética e de certo modo por decreto a dúvida universal que caracteriza a Era Moderna a que Nietzsche corretamente a meu ver chamou de era da suspeita Quando os homens não podiam mais louvar voltaram seus maiores esforços conceituais para justificar Deus e sua Criação em teodicéias Mas é claro que Santo Agostinho também precisava de alguma forma de redenção da Vontade A graça divina não poderia servir uma vez que ele descobrira que a fragmentação da Vontade era a mesma tanto para a má quanto para a boa vontade é um tanto difícil imaginar a graça de Deus decidindo se devo ir ao teatro ou cometer adultério Santo Agostinho vai encontrar sua solução em uma abordagem totalmente nova do problema Passa a investigar a Vontade não isolada das outras faculdades do espírito mas em sua interrelação com elas a questão principal agora é a seguinte qual a função da vontade na Vida do espírito como um todo Ainda assim o dado fenomênico que sugeriu a resposta antes mesmo que ela fosse encontrada e devidamente delineada é curiosamente algo semelhante ao eu que perdura de Mill Nas palavras de Santo Agostinho este dado seria que há alguém em mim que é mais eu do que eu mesmo95 O insight que mais se destaca no tratado Sobre a Trindade provém do mistério da trindade cristã Pai Filho e Espírito Santo três substâncias quando cada uma está em relação consigo mesma podem ao mesmo tempo formar uma Unidade assegurando assim que o dogma não significa uma quebra do monoteísmo A unidade se dá porque todas as três substâncias são mutuamente predicadas em relação umas com as outras sem que com isso percam a existência em suaprópria substância não é esse o caso por exemplo quando uma core um objeto colorido são mutuamente predicados na relação que mantêm pois a cor não tem substância própria uma vez que o corpo colorido é uma substância mas a cor está em uma substância96 O paradigma de uma relação mutuamente predicada entre substâncias independentes é a amizade podese dizer de dois homens amigos que são substâncias independentes enquanto relacionados a si mesmos são amigos somente na relação que mantêm entre si Um par de amigos só forma uma unidade só forma Um à medida que e enquanto são amigos no momento em que a amizade acaba eles são novamente duas substâncias independentes Isso demonstra que alguém ou algo pode ser uma Unidade na relação que mantém somente consigo e ainda assim ser tão relacionado a um outro estar a ele tão intimamente ligado que os dois podem aparecer como uma Unidade sem modificar sua substância sem perder sua independência substancial e sua identidade E assim com a Santíssima Trindade Deus permanece Um quando relacionado somente a Si mesmo mas é três na unidade com o Filho e o Espírito Santo O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre iguais portanto não se pode aplicála à relação entre o corpo e a alma entre o homem carnal e o espiritual embora eles sempre apareçam juntos porque aqui a alma é obviamente o princípio governante Para Santo Agostinho no entanto o misterioso trêsemum tem que ser encontrado em algum lugar na natureza humana uma vez que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança e uma vez que é precisamente o espírito humano que distingue o homem de todas as outras criaturas o trêsemum será provavelmente encontrado na estrutura do espírito Encontramos as primeiras mostras dessa nova linha de investigação no final das Confissões a obra anterior mais próxima de Sobre a trindade Ali ocorre pela primeira vez a Santo Agostinho utilizar o dogma teológico do trêsemum como um princípio filosófico geral Insta o leitor a considerar essas três coisas que existem em si mesmas e são bem diferentes da Trindade as três coisas de que falo são Ser Conhecer e Querer As três estão interligadas Pois eu Sou Conhecendo e Querendo e tenho Conhecimento de que Sou e de que Quero e Quero Ser e Conhecer Repare quem puder nesses três quão inseparável é uma vida um espírito uma essência enfim como é difícil a distinção que ainda assim existe97 A analogia não significa é claro que o Ser é análogo ao Pai o Conhecer ao Filho e o Querer ao Espírito Santo O que interessa a Santo Agostinho é simplesmente que o Eu espiritual contém três coisas totalmente diferentes que são inseparáveis e ainda assim distintas A tríade Ser Querer e Conhecer aparece somente na formulação um tanto incerta das Confissões é óbvio que o Ser aqui não está em seu lugar já que não é uma faculdade do espírito Em Sobre a Trindade a mais importante tríade do espírito é Memória Intelecto e Vontade Essas três faculdades não são três espíritos mas um só Referemse mutuamente sendo que cada uma é compreendida pelas outras duas e que também mantêm relação consigo mesmas Lembrome de que tenho memória intelecto e vontade entendo que entendo quero e me lembro e quero querer lembrarme e entender98 Essas três faculdades são iguais em peso mas sua Unidade devese à Vontade A Vontade diz à Memória o que reter e o que esquecer diz ao Intelecto o que escolher para o entendimento A Memória e o Intelecto são contemplativos e sendo assim são passivos é a Vontade que os faz trabalhar e que ao final os reúne Somente quando através de uma destas faculdades a saber a Vontade as três são forçadas a tomarse uma unidade estamos falando de pensamento o cogitado que Santo Agostinho jogando com a etimologia deriva de cogere coactum obrigar a junção unir à força Atque ita fit ilia trinitas ex memória et interna visione et quae utrumque copulat voluntate Quia tria in unum coguntur ab ipso coactu cogitado diciturw A força unificadora da Vontade não funciona só na atividade puramente espiritual manifestase também na percepção sensorial É esse elemento do espírito que dá significado à sensação Em todo ato de visão diz Santo Agostinho temos que distinguir as três seguintes coisas o objeto que vemos e esse pode naturalmente existir antes de ser visto em segundo lugar a visão que não estava lá antes de percebermos o objeto e em terceiro lugar a força que fixa o sentido da visão no objeto a saber a atenção do espírito Sem esta última uma função da Vontade temos apenas impressões sensoriais sem que realmente as percebamos um objeto é visto somente quando concentramos nosso espírito na percepção Podemos ver sem perceber e ouvir sem escutar como acontece amiúde quando estamos distraídos A atenção do espírito é necessária para transformar a sensação em percepção a Vontade que fixa o sentido na coisa vista estabelecendo um nexo entre os dois é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto visível é espírito e não corpo Além disso ao fixar nosso espírito no que vemos ou ouvimos estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado e ao nosso intelecto o que é para ser entendido que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento A memória e o intelecto retiraramse das aparências exteriores e não é com essas aparências em si a árvore real que lidam mas com imagens a árvore vista que estão claramente dentro de nós Em outras palavras a Vontade por meio da atenção primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa e então arrasta esse mundo exterior para dentro nós preparandoo para operações posteriores do espírito para ser lembrado para ser entendido par ser afirmado ou negado Pois as imagens internas não são absolutamente meras ilusões Ao nos concentrarmos com exclusividade nas imaginações internas e ao voltarmos por completo o olho do espírito para longe dos corpos que cercam os nossos sentidos deparamos com uma semelhança tão surpreendente das espécies corpóreas expressadas pela memória que é difícil dizer se estamos vendo ou simplesmente imaginando Tão grande é o poder do espírito sobre o seu corpo que a pura imaginação pode despertar os órgãos genitais101 Esse poderão espírito devese não ao Intelecto tampouco à Memória mas somente à Vontade que une a interioridade do espírito ao mundo exterior A posição privilegiada do homem dentro da Criação no mundo exterior se deve ao espírito que imagina de dentro e ainda assim imagina coisas que são de fora Pois ninguém poderia usar tais coisas do mundo exterior a não ser que as imagens das coisas sensíveis ficassem retidas na memória e a não ser que a mesma vontade fosse adaptada tanto aos corpos de fora quanto às suas imagens de dentro102 Essa Vontade como a força que unifica e liga o aparato sensorial humano ao mundo exterior e é então aquilo que reúne as diferentes faculdades espirituais do homem apresenta duas características que estiveram completamente ausentes das várias descrições de vontade que examinamos até aqui Essa Vontade poderia ser entendida como a fonte da ação ao orientar a atenção dos sentidos controlando as imagens impressas na memória e fornecendo ao intelecto o material para a compreensão a Vontade prepara o terreno no qual a ação se pode dar Ficase tentado a afirmar que essa Vontade está tão ocupada preparando a ação que sequer tem tempo de se envolver na controvérsia com suaprópria contravontade E assim como no homem e na mulher há uma só carne de dois também a natureza única do espírito a Vontade abarca nosso intelecto e nossa ação ou nosso conselho e nossa execução Assim como foi dito daqueles homem e mulher Devem ser dois em uma só carne podese também dizer destes do homem interior e do exterior Dois em um só espírito103 Eis aqui um primeiro indício de certas conseqüências que muito mais tarde Duns Scotus viria a extrair do voluntarismo agostiniano a redenção da vontade não pode ser espiritual e tampouco advém de intervenção divina a redenção vem do ato que com frequência na forma de um coup détat na expressão bemachada de Bergson interrompe o conflito entre o velle e o nolle E o preço da redenção é como veremos a liberdade Assim como expressou Duns Scotus seguindo o resumo de um comentador moderno é possível para mim estar escrevendo neste momento assim como me é possível não estar a escrever Ainda sou completamente livre e pago por essa liberdade pelo fato curioso de que a Vontade sempre quer e nãoquer ao mesmo tempo a atividade do espírito no caso da vontade não exclui o seu oposto Ainda assim meu ato de escrever exclui o seu oposto Por um ato de vontade posso me determinar a escrever e por outro posso decidir não escrever mas minha ação com relação às duas coisas não pode ser simultânea104 Em outras palavras a Vontade é redimida cessando de querer e começando a agir e a interrupção não pode se originar de um ato de querernãoquerer pois isso já seria uma nova volição Em Santo Agostinho assim como mais tarde em Duns Scotus a solução do conflito interno da Vontade surge por uma transformação na própria Vontade por sua transformação em Amor A Vontade vista em seu aspecto operatório e funcional como um agente de união de ligação pode também ser definida como Amor voluntas amor seu dilectio105 pois o Amor é obviamente o agente de ligação de maior êxito No Amor há novamente três coisas aquele que ama aquilo que é amado e o Amor O Amor é uma certa vida que liga duas coisas aquele que ama e aquilo que é amado106 Do mesmo modo a Vontade como atenção era necessária para efetuar a percepção ligando aquele que tem olhos para ver àquilo que é visível só que a força unificadora do Amor é mais forte Pois aquilo que o Amor liga está maravilhosamente unido de forma que haja uma coesão entre o que ama e o que é amado cohaerunt enim mirabiliter glutino amorism A grande vantagem da transformação é não só a maior força do Amor na unificação do que está separado quando a Vontade ligando a forma do corpo que se vê e a imagem que aparece ao sentido isto é ao sentido da visão é tão violenta que mantém o sentidocra na visão uma vez que ela tenha se formado esta vontade pode também ser chamada de amor ou desejo ou paixão108 mas vem também do fato de que o amor ao contrário da vontade e do desejo não se extingue quando alcança seu objetivo mas sim possibilita ao espírito permanecer imóvel para poder desfrutálo O que a vontade não é capaz de realizar é esse desfrutar imóvel a vontade é dada como uma faculdade do espírito porque o espírito não se basta e em virtude de sua necessidade e do seu querer tomase excessivamente atento às suas próprias ações109 A vontade decide como usar a memória e o intelecto isto é remete estas faculdades a alguma outra coisa mas não sabe como usálas com o júbilo não da esperança mas do que é realmente o melhor110 E este o motivo pelo qual a vontade não está jamais satisfeita pois satisfação significa que a vontade está em repouso111 e nada e certamente nunca a esperança pode apaziguar a inquietação de vontade a não ser a resignação o desfrutar calmo e duradouro de algo presente somente a força do amor é tão grande que faz com que o espírito envolva em si mesmo as coisas sobre as quais refletiu longamente com amor112 Todo o espírito está nas coisas sobre as quais pensa com amor e são essas as coisas sem as quais ele não pode pensar em si mesmo113 A ênfase aqui recai sobre o pensar do espírito em si mesmo e o amor que acalma o tumulto e a inquietação da vontade não é o amor das coisas tangíveis mas as pegadas deixadas pelas coisas sensíveis no interior do espírito Ao longo de todo o tratado Santo Agostinho é cuidadoso em estabelecer a distinção entre pensar e conhecer ou entre sabedoria e conhecimento Uma coisa é não se ter conhecimento de si outra é não se pensar em si114 No caso do Amor a pegada duradoura que o espírito transforma em coisa inteligível não seria nem o que ama e nem o amado mas o terceiro elemento a saber o próprio Amor o amor com o qual os amantes se amam A dificuldade nessas coisas inteligíveis é que embora estejam tão presentes à mirada do espírito quanto as coisas tangíveis estão presentes aos sentidos corporais alguém que chega a elas não se detém nelas e criase assim um pensamento transitório de uma coisa que não é transitória E este pensamento transitório é memorizado de modo que haja um lugar para onde o pensamento possa de novo retomar O exemplo que ele dá de durabilidade em meio à transitoriedade humana é retirado da música E como se alguém fosse querer apreender uma melodia passando por intervalos de tempo enquanto ela está à parte do tempo em uma espécie de silêncio secreto e sublime sem a memória para registrar a seqüência de sons não seria possível sequer conceber a melodia ainda que se pudesse ouvir o canto115 O que o Amor produz é a duração uma permanência da qual o espírito seria de outra forma incapaz Santo Agostinho conceituou as palavras de São Paulo na Epístola aos Coríntios O amor não acaba nunca permanecem estes três a fé a esperança e o amor porém o maior destes o mais durável por assim dizer é o amor I Coríntios 138 Para resumir a Vontade de Santo Agostinho que não é concebida como uma faculdade isolada mas em sua função dentro do espírito como um todo em que todas as faculdades individuais memória intelecto e vontade referemse mutuamente116 encontra redenção ao transformar se em Amor O Amor como uma espécie de vontade duradoura e livre de conflitos apresenta uma semelhança óbvia com o eu que perdura de Mill que prevalece finalmente nas decisões da vontade O Amor de Santo Agostinho exerce sua influência pelo peso a vontade assemelhase a um peso117 juntase à alma interrompendo assim suas flutuações Os homens não vêm a ser justos por saber o que é justo mas por amar a justiça O amor é a gravidade da alma ou o contrário a gravidade específica dos corpos é por assim dizer seu amor118 No mais o que se salva nessa transformação da concepção mais antiga de Santo Agostinho é o poder que a Vontade tem de afirmar ou negar não há maior afirmação de algo ou de alguém do que amar este algo ou alguém isto é do que dizer quero que tu sejas Amo Volo ut sis Até aqui deixamos de lado todas as questões estritamente teológicas e junto com elas o maior problema que a vontade livre apresenta para toda a filosofia estritamente cristã Nos primeiros séculos depois de Cristo a existência do Universo podia ser explicada como emanação o fluxo de forças divinas e antidivinas sem necessidade da pessoa de um Deus por trás de tudo Ou seguindo a tradição hebraica podia ser explicada como criação tendo a figura de um Deus como seu autor O autor divino criou o mundo por Sua própria vontade livre e criouo do nada E criou o homem à Sua imagem isto é dotouo também de uma vontade livre A partir daí as teorias da emanação corresponderam às teorias fatalistas ou deterministas da necessidade as teorias da criação tinham que lidar teologicamente com a Vontade Livre de Deus que foi Quem decidiu criar o mundo e conciliar esta Liberdade com a liberdade da criatura o homem Porque Deus é onipotente Ele pode sobreporse à vontade do homem e tem conhecimento prévio a liberdade humana parece ficar duplamente neutralizada O argumento padrão então é o seguinte Deus apenas prevê Ele não compele Encontrase o argumento também em Santo Agostinho mas ele propõe no mínimo uma linha de pensamento muito diferente Retomamos anteriormente os argumentos básicos dados para explicar a enorme importância que tiveram fatalismo e determinismo na mentalidade do mundo clássico especialmente na Antiguidade romana E vimos com Cícero como este raciocínio sempre acabava em contradições e paradoxos Todos lembramse do chamado argumento vão quando adoecemos já está predestinado se vamos ou não vamos nos recuperar quer chamemos um médico quer não Em outras palavras todas as nossas faculdades tomamse vãs quando seguimos esta linha de pensamento sem trapacear O raciocínio baseiase em causas anteriores isto é baseiase no passado Mas é claro que é no futuro que estamos realmente interessados Queremos que o futuro seja previsível era para ser mas basta começar a argumentar nesta linha para deparar com outro paradoxo Se posso prever que vou morrer amanhã em um desastre de avião então não sairei da cama amanhã Mas desse modo não morro Mas então não terei previsto corretamente o futuro119 A falha dos dois argumentos tanto no relacionado com o passado quanto no relacionado com o futuro é a mesma o primeiro extrapola o presente para o passado e o segundo extrapolao para o futuro e ambos assumem que o agente da extrapolação fica de fora da esfera em que o acontecimento se dá e que ele o observador externo não tem qualquer poder para agir ele mesmo não é uma causa Em outras palavras uma vez que o próprio homem é parte inseparável do processo temporal que é um ser com um passado e uma faculdade especial para o passado chamada memória uma vez que vive no presente e anseia pelo futuro ele não pode saltar para fora da ordem temporal Acentuei anteriormente o fato de que o argumento do determinismo só alcança agudeza real quando se introduz Alguém que tudo prevê que se situa fora da ordem temporal e vê o que acontece da perspectiva da eternidade Ao introduzir este Alguém Santo Agostinho foi capaz de chegar ao seu ensinamento mais dúbio e também mais terrível a doutrina da predestinação Não estamos interessados aqui nessa doutrina uma radicalização perversa da doutrina de São Paulo segundo o qual a salvação não está nas ações mas na fé e é dada pela graça de Deus de modo que nem mesmo a fé está em poder dos homens Essa doutrina encontrase em um dos últimos tratados On grace and free will escrito contra os seguidores do pelagianismo os quais referindose precisamente às doutrinas agostinianas iniciais da vontade enfatizaram os méritos da boa vontade antecedente para se receber a graça cujo concedimento só era completamente gratuito no perdão aos pecados120 Os argumentos filosóficos não para a predestinação mas para a co existência da vontade livre do homem e da onisciência de Deus ocorrem em uma discussão do Timeu de Platão O conhecimento humano é de vários tipos os homens conhecem de maneiras diferentes coisas que ainda não são coisas que são e coisas que foram Mas não é do nosso modo que Ele olha à frente para o que é futuro nem para o que é presente ou para trás para o que é passado é de uma maneira completa e profundamente diferente do nosso modo de pensar Pois Ele não passa disso àquilo seguindo em pensamento aquilo que se modificou do passado para o presente para o futuro mas vê na totalidade de maneira imutável de modo que todas as coisas que para nós se erguem temporalmente o futuro que ainda não é bem como o presente que já é e o passado que não é mais são por Ele compreendidas em presença estável e perpétua tampouco Ele enxerga de modo diverso com os olhos do corpo e com os olhos do espírito pois Ele não é composto de espírito e corpo nem Ele vê de modo diferente o agora o antes e o depois pois seu conhecimento ao contrário do nosso não é um conhecimento de três tempos presente passado e futuro através de cuja variação nosso conhecimento é afetado Nem há qualquer intenção que passe de pensamento em pensamento em cuja intuição incorpórea todas as coisas que Ele conhece estão presentes de uma só vez Pois Ele conhece todos os tempos sem noções temporais exatamente como Ele move todas as coisas temporais sem movimentos temporais121 Nesse contexto não se pode mais falar do conhecimento prévio de Deus para Ele o passado e o futuro não existem A Eternidade entendida em termos humanos é um presente perpétuo Se o presente fosse sempre presente já não seria tempo mas sim eternidade122 Citei de forma um tanto extensa esse argumento porque se é possível supor que há uma pessoa para quem a ordem temporal não existe a coexistência da vontade livre do homem e da consciência de Deus deixa de ser um problema insolúvel No mínimo ela pode ser abordada como parte do problema da temporalidade do homem isto é em uma consideração de todas as nossas faculdades relacionadas ao tempo Encontrase uma preparação para esse novo pontodevista que é explicado em A cidade de Deus no famoso Livro XI das Confissões para o qual agora iremos nos voltar de maneira breve Considerados em termos de categorias temporais o presente das coisas passadas está na memória o presente das coisas presentes está em uma intuição do espírito contuitus uma visão que reúne as coisas e presta atenção a elas e o presente das coisas futuras está na expectativa121 Mas esses triplos presentes do espírito não constituem em si o tempo constituem o tempo somente porque passam de um para o outro do futuro atravessando o presente pelo qual se vai ao passado e o presente é o menos durável dos três uma vez que não tem espaço próprio Portanto o tempo passa daquilo que ainda não existe por aquilo que não tem espaço para aquilo que já não existe124 O Tempo portanto não pode absolutamente ser constituído pelos movimentos dos corpos celestiais os movimentos dos corpos estão no tempo somente à medida que têm um início e um fim e o tempo que pode ser medido está no próprio espírito isto é do tempo em que comecei a ver ao tempo em que deixei de ver Pois medimos na verdade o intervalo entre algo que começa até ter algum tipo de fim e isso só é possível porque o espírito retém em seu próprio presente a expectativa daquilo que ainda não é a que presta atenção e relembra quando passa O espírito desempenha essa ação temporalizante em cada ato cotidiano Estou prestes a recitar um salmo A vida deste meu ato se divide em memória pelo que já recitei e em expectativa pelo que estou para recitar A atenção está presente e através dela o que era futuro é levado traiiciatur a tomarse passado A atenção como vimos é uma das maiores funções da Vontade o grande elemento unificador que aqui naquilo que Santo Agostinho chama de distensão do espírito reúne os tempos verbais do tempo no presente do espírito A atenção perdura e através dela aquilo que será presente sucede para tornarse algo ausente a saber o passado E o mesmo dáse em toda a vida do homem que jamais seria um todo sem a distensão do espírito o mesmo dáse também em toda a era dos filhos dos homens da qual as vidas dos homens são apenas partes isto é à medida que esta era possa ser recontada como uma história coerente e contínua125 Partindo da perspectiva da temporalidade das faculdades humanas Santo Agostinho retoma mais uma vez então no último dos grandes tratados A cidade de Deus ao problema da Vontade126 Enuncia ali a principal dificuldade Deus embora seja Ele mesmo eterno e sem começo fez com que o tempo tivesse um começo e o homem que Ele previamente não havia feito Ele o fez no tempo127 A criação do mundo e do tempo coincidem o mundo foi feito não no tempo mas junto com o tempo não só porque a própria criação implica um começo mas também porque as criaturas vivas foram feitas antes de ser feito o homem Onde não há criatura cujo movimento de transformação permita a sucessão não é absolutamente possível haver tempo sendo o tempo impossível sem a criatura128 Mas qual foi então o propósito de Deus ao criar o homem indaga Santo Agostinho por que Ele quis fazêlo no tempo este que Ele nunca fizera antes Diz que essa questão é algo com efeito profundo e fala da profundidade imperscrutável deste propósito de criar o homem temporal hominem temporalem que jamais existira antes isto é uma criatura que não vive simplesmente no tempo mas que é essencialmente temporal que é de certo modo a essência do tempo129 Para responder a esta questão dificílima da criação de coisas novas por um Deus eterno Santo Agostinho vê primeiramente a necessidade de refutar o conceito cíclico de tempo dos filósofos uma vez que a novidade não poderia ocorrer em ciclos Dá então uma resposta bastante surpreendente à questão de por que teria sido necessário criar o Homem separado de todas as outras criaturas e acima delas Para que possa haver novidade ele diz há de haver um começo e esse começo jamais existira antes isto é nunca antes da criação do Homem Portanto para que um tal começo pudesse ser foi o homem criado sem que ninguém o fosse antes dele quod initium eo modo antea nunquam fuit Hoc ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit130 E Santo Agostinho distingue este começo do começo da criação usando a palavra initium para a criação do Homem mas principium para a criação dos Céus e da Terra131 Quanto às criaturas vivas feitas antes do Homem elas foram criadas no plural como começos de espécies ao contrário do Homem que foi criado no singular e continuou a propagarse a partir de indivíduos132 E o caráter de individualidade do Homem que explica o fato de Santo Agostinho dizer que não havia ninguém antes dele isto é ninguém que se pudesse chamar de pessoa esta individualidade manifestase na Vontade Santo Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos ambos com temperamentos semelhantes do corpo e da alma Como podemos distingui los O único dom que permite a distinção entre os dois é sua vontade se ambos são igualmente tentados e um cai na tentação enquanto o outro permanece impassível o que mais pode causar isso senão suas próprias vontades nos casos em que o temperamento é idêntico133 Em outras palavras e elaborando um pouco essas especulações temos o seguinte o Homem é posto em um mundo de mudança e de movimento como um novo começo porque sabe que tem um começo e que terá um fim sabe até mesmo que este começo é o começo de seu fim toda a nossa vida nada mais é do que uma corrida em direção à morte134 Nenhum animal de nenhuma espécie tem neste sentido um começo ou um fim Com o homem criado à imagem do próprio Deus veio ao mundo um ser que por ser um começo correndo para um fim pôde ser dotado da capacidade de querer ou não querer Nesse aspecto ele foi a imagem de um DeusCriador mas uma vez que era temporal e não eterno a capacidade foi completamente dirigida para o futuro Sempre que Santo Agostinho fala dos três tempos verbais enfatiza a primazia do futuro de modo semelhante a Hegel como vimos O primado da Vontade entre as faculdades do espírito exige a primazia do futuro nas especulações sobre o tempo Todo homem sendo criado no singular é um novo começo em virtude de ter nascido se Santo Agostinho tivesse levado essas especulações às suas consequências teria definido os homens não à maneira dos gregos como mortais mas como natais e teria definido a liberdade da Vontade não como o liberum arbitrium a escolha livre entre querer e não querer mas como a liberdade de que fala Kant na Crítica da razão pura A faculdade do homem de começar espontaneamente uma série no tempo a qual ao ocorrer no mundo pode ter um primeiro começo apenas relativo e que ainda assim é um começo absolutamente primeiro não no tempo mas na causalidade deve ser novamente invocada Se por exemplo levantome agora da cadeira em completa liberdade uma nova série com todas as suas conseqüências naturais in infinitum tem seu começo absoluto neste acontecimento135 A distinção entre um começo absoluto e um relativo aponta para o mesmo fenômeno que enxergamos na distinção que Santo Agostinho fez entre oprincipium do Céu e da Terra e o initium do Homem E se Kant tivesse conhecido a filosofia da natalidade de Santo Agostinho provavelmente teria concordado que a liberdade da espontaneidade relativamente absoluta não é mais embaraçosa para a razão humana do que o fato de os homens nascerem continuamente recém chegados a um mundo que os precede no tempo A liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana Seu órgão espiritual é a Vontade Capítulo 3 O Querer e o Intelecto 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto Há mais de quarenta anos Etienne Gilson o grande revigorador da filosofia cristã falando em Aberdeen na posição de Gifford Lecturer discursou sobre o reflorescimento magnífico da filosofia grega no século XIII o resultado foi uma formulação clássica e a meu ver duradoura O Espírito da filosofia medieval do princípio básico de toda a especulação medieval Referiuse afides quaerens intellectum a fé pedindo auxílio ao intelecto de Santo Anselmo fazendo assim da filosofia ancilla theologiae a serva da fé Havia sempre o perigo de a serva tomarse ama conforme a advertência do Papa Gregório IX na Universidade de Paris que antecipava em mais de duzentos anos os fulminantes ataques de Lutero a esta stultitia a esta loucura Menciono o nome de Gilson certamente não para sugerir comparações que seriam fatais para mim mesma mas ao invés disso por um sentimento de gratidão e também com a finalidade de explicar por que daqui por diante evitarei discutir assuntos que foram há muito tempo tratados de maneira tão magistral e com um resultado que está disponível até mesmo em brochura Oitocentos anos separam São Tomás de Santo Agostinho tempo suficiente não só para fazer do Bispo de Hipona um santo e um Padre da Igreja mas também para conferirlhe uma autoridade igual à de Aristóteles e quase igual à de São Paulo o Apóstolo Na Idade Média tal autoridade era da maior importância nada poderia ser mais nocivo a uma nova doutrina do que se declarar abertamente nova nunca houve maior predomínio daquilo que Gilson chamou de ipsedixitismo Mesmo quando São Tomás discorda completamente de uma opinião precisa citar alguém de autoridade para estabelecer a doutrina contra a qual irá então argumentar Sem dúvida isso tinha algo a ver com a autoridade absoluta da palavra de Deus registrada em livros no Velho e no Novo Testamento mas o que importa aqui é que quase todo autor conhecido cristão judeu muçulmano era citado como uma autoridade seja para a verdade seja para alguma inverdade importante Em outras palavras quando estudamos tais obras medievais precisamos nos lembrar que seus autores viveram em monastérios sem os quais não existiría nada semelhante a uma história das idéias no mundo ocidental e isto significa que esses escritos saíram de um mundo de livros Em contrapartida as reflexões de Santo Agostinho estiveram intimamente relacionadas com suas experiências foi importante para ele descrevêlas em detalhe e mesmo quando tratava de assuntos especulativos tais como a origem do mal no diálogo O livrearbítrio da vontade da fase inicial nem sequer lhe ocorreu citar as opiniões de um sem número de homens eruditos e conceituados no assunto Os autores escolásticos usam a experiência somente para dar um exemplo que sustente seus argumentos a experiência em si não inspira o argumento O que na verdade surge dos exemplos é uma espécie curiosa de casuística uma técnica de forçar princípios gerais a envolver casos particulares O último autor que ainda escreveu claramente sobre as perturbações de sua alma ou espírito totalmente alheio a interesses livrescos foi Santo Anselmo e isso duzentos anos antes de São Tomás Isso não significa dizer é claro que os autores escolásticos não estivessem interessados nas questões reais e que buscassem inspiração simplesmente em argumentos mas sim que estamos agora entrando em uma era de comentadores Gilson cujos pensamentos sempre se guiavam por alguma autoridade escrita e seria um grave erro acreditar que tal autoridade tivesse necessária ou mesmo primordialmente que ser escolástica ou bíblica A despeito disso Gilson cuja mentalidade harmonizavase de forma tão admirável com as exigências de seu grande tema e que reconhecia que é por causa das Escrituras que há uma filosofia que é cristã assim como é por causa da tradição grega que o cristianismo possui uma filosofia pôde sugerir a sério que a razão pela qual Platão e Aristóteles não conseguiram penetrar na verdade final residia na infelicidade de não terem tido a vantagem de ler as primeiras linhas do Gênese se eles as tivessem lido toda a história da filosofia poderia ter sido diferente1 A grande obraprima interminada de São Tomás a Summa Theologica pretendia originalmente servir para objetivos pedagógicos como manual para as novas universidades Ela enumera de maneira rigorosamente sistemática todas as questões e todos os argumentos possíveis e pretende dar respostas finais a cada um deles Nenhum sistema posterior que eu conheça pode rivalizar com esta codificação de verdades supostamente estabelecidas com esta soma de conhecimento coerente Todo sistema filosófico visa a oferecer ao espírito inquieto uma espécie de hábitat espiritual uma casa segura nenhum deles porém jamais teve tanto êxito quanto este e nenhum acho eu esteve tão livre de contradições Qualquer um que estivesse disposto a fazer o considerável esforço espiritual para entrar nessa casa era recompensado com a segurança de que em seus inúmeros cômodos jamais se veria desorientado ou desamparado Ler São Tomás é aprender como tais domicílios são construídos Primeiro levantamse as Questões do modo mais abstrato possível ainda que não de modo especulativo então os pontos de investigação para cada questão são ordenados seguindose as Objeções que podem ser feitas para cada resposta possível depois disso um Ao contrário introduz a posição oposta e é somente depois de o terreno ter sido preparado que a resposta do próprio São Tomás é dada completa e com respostas específicas às Objeções Esta ordem esquemática jamais se altera e o leitor com paciência suficiente para seguir a longa seqüência de questões e de respostas levando em conta cada objeção e cada posição contrária ficará fascinado com a imensidão de um intelecto que parece tudo saber Em cada caso apelase para alguma autoridade e isso é particularmente impressionante quando os argumentos que estão sendo refutados foram antes expostos com a citação de uma autoridade a apoiálos Não que a referência a uma autoridade seja o único modo ou mesmo o modo predominante de argumentação Ela vem sempre acompanhada de uma espécie de demonstração racional pura normal mente protegida por uma couraça Jamais utiliza retórica ou qualquer tipo de persuasão o leitor é compelido como só a verdade pode compelir A confiança na verdade coercitiva tão generalizada na filosofia medieval não tem limites em São Tomás Ele distingue três tipos de necessidade a necessidade absoluta que é racional por exemplo a de que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos a necessidade relativa que é aquela da utilidade por exemplo a de que a comida é necessária à vida ou a de que um cavalo é necessário para uma viagem e a coerção é imposta por um agente externo E entre elas somente a última é contrária à vontade2 A verdade compele ela não ordena como a vontade ordena e não coage Ela é o que Scotus chamou mais tarde de dictamem rationis o ditame da razão isto é um poder que prescreve em forma de discurso diceré e cuja força tem o seu limite nas limitações do intercâmbio racional Com clareza insuperável São Tomás estabelece a distinção entre duas faculdades de apreensão o intelecto e a razão as duas têm suas correspondentes faculdades intelectualmente apetitivas vontade e liberum arbitrium ou livre escolha O intelecto e a razão lidam com a verdade O intelecto também chamado de razão universal lida com a verdade matemática ou autoevidente com os primeiros princípios que dispensam demonstração para serem admitidos enquanto a razão ou razão particular é a faculdade através da qual retiramos conclusões particulares de proposições universais como nos silogismos A razão universal é por natureza contemplativa ao passo que a tarefa da razão particular é passar do conhecimento de uma coisa ao conhecimento de outra e assim raciocinamos sobre conclusões a que se chega por meio de princípios3 Esse processo de raciocínio discursi vo domina todas as obras de São Tomás A época do Iluminismo foi chamada de Idade da Razão o que pode ou não ser uma descrição adequada esses séculos da Idade Média certamente são melhor nomeados como Idade do Raciocínio A distinção seria que a verdade percebida apenas pelo intelecto revelase ao espírito e a ele se impõe sem que haja qualquer atividade da parte do espírito enquanto que no processo do raciocínio discursivo o espírito compele a si mesmo O processo de raciocínio argumentative é ativado pela fé de uma criatura racional cujo intelecto voltase naturalmente para o Criador em busca de ajuda para atingir um tal conhecimento do ser verdadeiro que é Ele tal como pode ser encontrado dentro dos limites da razão natural4 O que se revelou à fé nas Escrituras não estava sujeito a dúvidas assim como não se duvidava da autoevidência dos primeiros princípios na filosofia grega A verdade compele O que distingue em São Tomás esse poder de compelir da coerção pela aletheia grega não é o fato de que a revelação decisiva venha de fora mas sim de que a verdade que a revelação promulgava de fora respondia de dentro a luz da razão A fé ex auditu por exemplo Moisés escutando a voz divina despertou de imediato uma voz em resposta5 A mudança mais impressionante que se observa quando se passa de Santo Agostinho para São Tomás e Duns Scotus é que nenhum dos dois últimos está interessado na problemática da estrutura da Vontade vista como faculdade isolada o que está em jogo para eles é a relação entre a Vontade e a Razão ou o Intelecto e a questão dominante é qual dessas faculdades é a mais nobre e portanto qual delas tem o direito de primazia sobre a outra Mais significativo ainda especialmente em vista da enorme influência de Santo Agostinho sobre os dois pensadores pode ser o fato de que das três faculdades de Santo Agostinho Memória Intelecto e Vontade uma delas tenha se perdido a saber a Memória a faculdade mais especificamente romana a que liga o homem ao passado Tal perda acabou sendo definitiva nunca mais se vê em nossa tradição filosófica a Memória na mesma posição do Intelecto e da Vontade Sem falar nas conseqüências desta perda para toda a nossa filosofia estritamente política6 é óbvio que o que se foi junto com a memória sedes animi est in memória foi uma compreensão do caráter profundamente temporal da natureza e da existência humana manifesto no homo temporalis de Santo Agostinho7 O Intelecto que em Santo Agostinho se relacionava a tudo o que estivesse presente no espírito em São Tomás volta a relacionarse com os primeiros princípios isto é com o que é logicamente anterior a qualquer outra coisa é a partir deles que tem início o processo de raciocínio que lida com particulares8 O objeto próprio da Vontade é o fim e ainda assim este fim não é o futuro assim como o primeiro princípio não é o passado princípio e fim são categorias lógicas e não temporais No que diz respeito à Vontade São Tomás seguindo de perto a Ética a Nicômaco insiste principalmente na categoria meiosfim e como em Aristóteles o fim embora seja objeto da Vontade é dado à Vontade pelas faculdades de apreensão isto é pelo Intelecto A ordem de ação adequada é portanto a seguinte Dáse primeiro a apreensão do fim depois o conselho deliberação sobre os meios e finalmente o desejo pelos meios9 A cada passo o poder de apreensão precede tem primazia sobre o movimento apetitivo O fundamento conceituai de todas essas distinções é que o bem e o Ser diferem somente em pensamento são a mesma realiter e isso a ponto de se poder dizer que são conversíveis O homem tem de bondade tanto quanto tem de Ser e faltandolhe plenitude de seu Ser faltalhe bondade o que é chamado de mal10 Nenhum ser à medida que é pode ser dito mau mas somente à medida que lhe falte Ser Tudo isso é claro nada mais é do que uma elaboração da posição de Santo Agostinho mas a posição é ampliada e conceitualmente mais aguda Do ponto de vista das faculdades da apreensão o Ser aparece sob o aspecto de verdade do ponto de vista da Vontade em que o fim é o bem aparece sob o aspecto de algo desejável que o Ser não expressa O mal não é um princípio porque é pura ausência e a ausência pode ser enunciada em um sentido privativo e em um sentido negativo A ausência do bem tomada negativamente não é o mal como por exemplo no caso de faltar a um homem a rapidez do cavalo o mal é uma ausência em que uma coisa é privada de um bem que a ela pertence de forma essencial por exemplo o homem cego privado da visão11 Por esse caráter de privação o mal radical ou absoluto não pode existir Não há mal em que se possa detectar a ausência total do bem Pois se pudesse haver o mal pleno ele destruiría a si mesmo12 São Tomás não foi o primeiro a considerar o mal como nada mais do que privação uma espécie de ilusão de ótica causada quando o todo do qual o mal é apenas uma parte não é levado em conta Já Aristóteles tivera a noção de um Universo no qual toda parte tem seu lugar perfeitamente ordenado de modo que o bem inerente ao fogo causa mal à água por acidente13 E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do mal nem mesmo Kant que inventou o conceito de mal radical acreditava que alguém que não possa demonstrarse um amante deva por isso estar fadado a demonstrarse um vilão que usando a linguagem de Santo Agostinho velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre querer e não querer Ainda assim é verdade que este velho topos da filosofia faz mais sentido em São Tomás do que na maior parte dos outros sistemas porque o centro do sistema de São Tomás seu primeiro princípio é o Ser No contexto de sua filosofia dizer que Deus criou não só o mundo mas também criou nele o mal seria dizer que Deus criou o nada como apontou Gilson14 Todas as coisas criadas cuja distinção maior é a de que são aspiram a Ser cada uma do seu próprio modo mas somente o Intelecto tem conhecimento do Ser como um todo os sentidos não conhecem o Ser exceto sob as circunstâncias do aqui e do agora15 O Intelecto apreende o Ser absolutamente e para todo o sempre e o homem dotado desta faculdade só pode desejar sempre existir Tal é a inclinação natural da Vontade cujo objetivo final é para ela tão necessário quanto a verdade é coercitiva para o Intelecto A bem dizer a vontade é livre apenas no que diz respeito a bens particulares pelos quais ela não é necessariamente movida embora os apetites possam ser por eles movidos O objetivo final o desejo que o Intelecto tem de existir para sempre mantém os apetites sob controle de modo que a distinção concreta entre os homens e os animais manifestese no fato de que o homem não é movido de imediato por seus apetites que ele têm em comum com todas as coisas vivas mas aguarda a ordem da Vontade que é o apetite superior e assim o apetite inferior não basta para causar movimento a não ser que o apetite mais alto consinta16 E óbvio que o Ser o primeiro princípio de São Tomás é simplesmente uma conceituação da Vida e do instinto vital do fato de que todas as coisas vivas por instinto preservam a vida e evitam a morte Isto também é uma elaboração dos pensamentos que encontramos em estado mais provisório em Santo Agostinho mas cuja conseqüência intrínseca um equacionamento entre a Vontade e o instinto de vida sem qualquer relação com a vida eterna é extraída comumente só no século XIX Em Schopenhauer ela é enunciada de forma explícita e na vontade de potência de Nietzsche a própria verdade é entendida como uma função do processo vital o que nós chamamos verdade são aquelas proposições sem as quais não poderiamos continuar vivendo Não é a razão mas a nossa vontade de viver o que toma forçosa a verdade Agora iremos nos voltar para a questão de qual dos dois poderes do espírito quando comparados será absolutamente mais alto e mais nobre A primeira vista a questão não parece fazer muito sentido já que o objeto final é o mesmo é o Ser que aparece como bom e desejável para a vontade e verdadeiro para o intelecto E São Tomás concorda esses dois poderes estão incluídos um no outro em seus atos porque o Intelecto entende que a Vontade quer e a Vontade quer que o Intelecto entenda17 Mesmo quando estabelecemos uma distinção entre o bom e o verdadeiro considerandoos correspondentes a diferentes faculdades do espírito eles acabam sendo muito parecidos porque ambos são universais no que diz respeito a seu alcance Assim como o Intelecto apreende o ser universal e a verdade também a Vontade deseja o bem universal e assim como o Intelecto tem o raciocínio como seu poder subordinado para lidar com os particulares também a Vontade tem como subordinada a faculdade do livrearbítrio liberum arbitrium um auxiliar subserviente na escolha dos meios particulares adequados para se alcançar um fim universal Além disso já que ambas as faculdades têm o Ser como objetivo final seja sob o aspecto do que é Verdadeiro ou do que é Bom elas parecem iguais dispondo cada uma dos serviços de seu próprio criado para lidar com os meros particulares A linha que na verdade separa as faculdades mais altas das mais baixas portando parece ser a mesma que divide as faculdades superiores das subservientes e esta distinção jamais é questionada Para São Tomás assim como para quase todos os seus sucessores em filosofia que são em maior número do que os tomistas declarados era evidente na verdade era a própria pedra de toque da filosofia como disciplina isolada o fato de que o universal é mais nobre e ocupa posição mais alta que o particular e a única prova necessária disso continuava a ser o velho enunciado aristotélico de que o todo é sempre maior do que a soma de suas partes O que distingue única e enormemente Duns Scotus é o fato de ter questionado e desafiado esse pressuposto o Ser em sua universalidade não é mais do que um pensamento o que falta a ele é realidade somente das coisas particulares res que são caracterizadas pelo seristo Thiness hecceidade podese dizer que são reais para o homem Assim Scotus estabeleceu um nítido contraste entre cognição intuitiva cujo objeto próprio é o singular existente percebido como existente e cognição abstrativa cujo objeto próprio é a qüididade ou essência da coisa conhecida18 Desse modo e isto é decisivo a imagem espiritual a árvore vista por ter perdido sua existência real tem estatura ontológica menor do que a árvore concreta embora o conhecimento daquilo que uma coisa é não fosse possível sem as imagens espirituais A conseqüência dessa inversão é que este homem particular por exemplo em sua existência viva ocupa um lugar mais alto do que a espécie ou o simples pensamento de humanidade e os precede Kierkegaard levantou mais tarde um argumento bastante semelhante contra Hegel A inversão parece uma conclusão bastante óbvia para uma filosofia que foi buscar sua maior inspiração na Bíblia isto é em um DeusCriador que certamente era uma pessoa que criou os homens à Sua própria imagem isto é necessariamente como pessoas E São Tomás é cristão o suficiente para sustentar que persona significai id quod est perfectissimum in tota natura a pessoa significa o que há de mais perfeito em toda a natureza19 A base da Bíblia como nos mostrou Santo Agostinho está no Gênese em que todas as espécies naturais foram criadas no plural plura simul iussit exsistere Ele ordenou que fossem muitas de uma vez Somente o homem foi criado no singular de forma que a espécie humana tomada como espécie animal se multiplicasse a partir do Um exuno multiplicavit genus humanum 21Em Santo Agostinho e em Scotus mas não em São Tomás a Vontade é o órgão espiritual que realiza esta singularidade é o principium individuationis Voltando a São Tomás ele insiste Se Intelecto e Vontade forem comparados de acordo com a universalidade de seus respectivos objetos então o Intelecto é absolutamente mais alto e mais nobre do que a Vontade Essa proposição é bastante significativa porque ela não vem de sua filosofia geral do Ser O próprio São Tomás de certa forma admite isso Para ele a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos a Verdade sobre o Bem mas sim no modo como as duas faculdades concorrem dentro do espírito humano todo movimento da vontade é precedido de uma compreensão ninguém pode querer o que não conhece enquanto que a compreensão não é precedida de um ato da vontade21 Aqui naturalmente ele se afasta de Santo Agostinho que sustentava a primazia da Vontade como atenção mesmo para atos de percepção sensorial Tal precedência mostrase em cada volição Na livre escolha por exemplo em que se elegem os meios para um fim os dois poderes concorrem na eleição o poder cognitivo através do qual julgamos que uma coisa é preferível a outra e o poder apetitivo por meio do qual exigese que o apetite aceite o julgamento do conselho22 Se encaramos as posições agostinianas e tomísticas em termos puramente psicológicos como seus autores costumavam com freqüência qualificálas temos que admitir que a oposição entre elas é algo espúria já que ambas são igualmente plausíveis Quem poderia negar que ninguém pode querer o que não conhece de alguma forma ou ao contrário que alguma volição precede e decide a direção que queremos dar a nosso conhecimento ou à nossa busca de conhecimento A verdadeira razão de São Tomás para sustentar a primazia do Intelecto assim como a razão final de Santo Agostinho para decidir sobre o primado da Vontade está na resposta indemonstrável para a questão decisiva de todos os pensadores medievais em que consiste o fim e a felicidade última do homem23 Sabemos que a resposta de Santo Agostinho foi amor ele pretendia passar sua vida eterna em uma união livre de desejos e inseparável da criatura com seu criador Já São Tomás em óbvia resposta a Santo Agostinho e aos agostinianos embora sem mencionálos diz que embora se possa pensar que a felicidade e o fim último do homem consistam não em conhecer Deus mas em amáLo ou em algum outro ato de vontade em direção a Ele ele São Tomás sustenta que uma coisa é possuir o bem que é o nosso fim e outra é amálo pois o amor era imperfeito antes de possuirmos o fim e perfeito depois de dele termos tomado posse Para ele um amor sem desejo é impensável e portanto a resposta é categórica A felicidade última do homem é essencialmente conhecer Deus pelo Intelecto não é um ato da Vontade Aqui São Tomás segue seu mestre Alberto Magnus que declarou que o júbilo supremo se dá quando o Intelecto encontrase em estado de contemplação24 A concordância absoluta de Dante merece menção Hence may be seen how the celestial bliss Is founded on the act that seeth god Not that which loves which comes after this25 Quando iniciei essas considerações tentei enfatizar a distinção entre Vontade e desejo e conseqüentemente entre o conceito de Amor na filosofia da Vontade de Santo Agostinho e o eros platônico no Symposium em que se indica uma deficiência no amante e um desejo de possuir qualquer coisa que possa faltar O que acabei de citar de São Tomás mostra a meu ver até que ponto seu conceito das faculdades apetitivas devese ainda à noção de um desejo de possuir em um Além tudo o que possa faltar à vida terrena Pois a Vontade entendida basicamente como desejo termina quando se toma posse do objeto desejado e a noção de que a Vontade é exaltada quando está de posse daquilo que quer26 é simplesmente uma inverdade este é precisamente o momento em que a Vontade deixa de querer O Intelecto que segundo São Tomás é um poder passivo27 tem garantida a primazia sobre a Vontade não só porque apresenta um objeto ao apetite sendo assim anterior a ele mas também porque sobrevive à Vontade que se extingue de certo modo quando se alcança o objeto A transformação da Vontade em Amor em Santo Agostinho bem como em Duns Scotus era pelo menos em parte inspirada por uma separação mais radical entre a Vontade e os apetites e desejos e por uma noção diferente da felicidade e do fim último do homem Mesmo no Além o homem continua sendo homem e sua felicidade última não pode ser a simples passividade O Amor pôde ser invocado para redimir a vontade porque ainda é ativo embora sem inquietude sem perseguir um fim ou ter medo de perdêlo Uma atividade que tivesse seu fim em si mesma e que portanto pudesse ser compreendida fora da categoria meiosfim jamais fez parte das considerações de São Tomás Para ele todo agente atua segundo um fim o princípio de tal movimento está no fim Logo é esta a arte interessada no fim cujo comando move a arte interessada nos meios assim como a arte de velejar comanda a arte de construir embarcações 2S Sem dúvida isso vem diretamente da Ética a Nicômaco só que em Aristóteles se aplica a um tipo de atividade a saber poiesis as artes produtivas em oposição às artes performativas em que o fim está na atividade em si tocar flauta quando comparado a fazer uma flauta ou simplesmente sair para um passeio comparado a caminhar para alcançar uma destinação predeterminada Em Aristóteles fica bastante claro que a praxis deve ser entendida em analogia com as artes performativas e não em termos da categoria meiosfim é bastante impressionante que São Tomás que dependia tanto dos ensinamentos do filósofo especi almente os da Ética a Nicômaco pudesse ter desconsiderado a distinção entre poiesis e praxis Quaisquer que sejam as vantagens dessa distinção e a meu ver elas são cruciais para qualquer teoria da ação elas têm pouca relevância para a noção que São Tomás tem de felicidade última Ele opõe a contemplação a qualquer tipo de fazer aqui em grande harmonia com Aristóteles para quem a energeia tou theou é contemplativa enquanto a ação como a produção são insignificantes e indignas dos deuses Se tiramos a ação de um ser vivo sem mencionar a produção o que sobra senão a contemplação Logo humanamente falando a contemplação é o nada fazer exaltado pela intuição pura venturosamente em repouso A felicidade diz Aristóteles depende do descanso pois nosso propósito ao nos ocuparmos seja agindo seja fazendo é ter descanso e promovemos a guerra para termos paz29 Para São Tomás somente este fim último a ventura da contemplação move a vontade necessariamente a vontade não pode deixar de querêla Logo a Vontade move o Intelecto para que ele seja ativo do mesmo modo que se diz que um agente move mas o Intelecto move a Vontade do modo como o fim move30isto é do modo como o motor imóvel de Aristóteles devia moverse e como poderia moverse senão em virtude de ser amado assim como o amante é movido pelo amado31 Aquilo que em Aristóteles era o mais contínuo dos prazeres é agora esperado como ventura eterna não um prazer que possa atender às volições mas um deleite que põe em repouso a vontade de modo que o fim último da Vontade visto em referência a si mesmo seja deixar de querer atingir em suma o seu próprio nãoser E no contexto do pensamento de São Tomás isto implica que toda atividade já que seu fim jamais é alcançado enquanto ainda é ativa ambiciona finalmente a sua própria autodestruição os meios desaparecem quando o fim é alcançado E como se alguém ao escrever um livro fosse sempre levado pelo desejo de terminálo e de se livrar da escrita O ponto a que São Tomás em sua decidida predileção pela contemplação como simples ver e nãofazer estava disposto a chegar fica evidente em uma fortuita observação marginal quando interpreta um texto paulino que trata do amor entre duas pessoas Poderia o prazer de amar alguém indaga ele significar que o fim último da vontade foi posto no homem A resposta é não pois segundo São Tomás o que São Paulo disse na verdade foi que gostava de seu irmão como um meio para gostar de Deus32 e Deus como vimos não pode ser alcançado pela Vontade ou pelo Amor do Homem mas somente por seu Intelecto Isto é claro está muito longe do Amor de Santo Agostinho que ama o amor do amado e também ofende bastante os ouvidos daqueles que ensinados por Kant estão bem convencidos de que devemos tratar a humanidade seja em nossa própria pessoa seja na de outra qualquer sobretudo como fim nunca apenas como meio33 12 Duns Scotus e a primazia da Vontade Passando agora para Duns Scotus não estaremos dando um salto sobre os séculos com todas as inevitáveis descontinuidades e discordâncias que tomam o historiador suspeito Apenas uma geração o separava de São Tomás foram quase contemporâneos Estamos ainda em meio à Escolástica Encontrase nos textos dos dois a mesma mistura curiosa de citações da Antigüidade tratadas como autoridades e razão argumentativa Embora Scotus não tenha escrito uma Summa procede do mesmo modo que São Tomás primeiro a Questão enuncia o que está sendo investigado por exemplo o monoteísmo Pergunto se há somente um Deus discutemse então os prós e contras com base em citações de autoridade em seguida os argumentos de outros pensadores são apresentados e finalmente no Respondeo Scotus enuncia suas próprias opiniões as viae os Caminhos como ele as designa que as cadeias de pensamento percorrerão junto com os argumentos corretos34 Sem duvida à primeira vista a impressão é de que o único ponto de diferença em relação ao escolasticismo tomista é a questão da primazia da vontade a qual é provada por Scotus com tanta plausibilidade argumentativa quanto a que São Tomás desenvolveu para provar a primazia do Intelecto e com quase o mesmo número de citações de Aristóteles Pondo em poucas palavras os argumentos opostos temos o seguinte se São Tomás argumentara que a Vontade é um órgão executivo necessário para executar os insights do Intelecto uma faculdade rreramente subserviente Duns Scotus sustenta que Intellectus est causa subserviens voluntatis O Intelecto serve à Vontade fornecendo a ela seus objetos bem como o conhecimento necessário ou seja o Intelecto tomase por sua vez uma faculdade meramente subserviente Precisa da Vontade para direcionar sua atenção e só pode funcionar adequadamente quando seu objeto é confirmado pela Vontade Sem esta confirmação o Intelecto deixa de funcionar35 Seria um tanto sem sentido entrar aqui nas velhas controvérsias sobre se Scotus era um aristotélico ou um agostiniano alguns especialistas chegaram a sustentar que Duns Scotus é tanto um discípulo de Aristóteles quanto São Tomás36 porque Scotus não era nenhuma das duas coisas Mas onde o debate faz sentido ou seja biograficamente parece que Bettoni o italiano especialista em Scotus está certo Duns Scotus é um agostiniano que se beneficiou ao máximo do método aristotélico na exposição dos pensamentos e doutrinas que constituem sua visão metafísica da realidade37 Essas avaliações e outras semelhantes são reações superficiais mas infelizmente acabaram por conseguir obliterar enormemente a originalidade do homem e a significância de seu pensamento Como se o principal elemento para o qual o Doutor Subtilis quisesse chamar nossa atenção fosse a própria sutileza a complexidade e o intrincamento singulares de sua exposição Scotus era franciscano e a literatura franciscana sempre foi muito afetada pelo fato de que São Tomás um dominicano apesar das dificuldades iniciais tenha sido reconhecido como santo pela Igreja e de que sua Summa Theologica tenha sido a princípio utilizada mas depois prescrita como o manual para o estudo da filosofia e da teologia em todas as escolas católicas Em outras palavras a literatura franciscana é apologética em geral cautelosa e defensiva muito embora as polêmicas do próprio Scotus dirijamse a Henrique de Gante em vez de voltaremse para São Tomás38 Uma leitura mais detida dos textos logo nos faz abandonar essas primeiras impressões aquilo que distingue e diferencia o homem mostrase bem claramente quando ele parece estar em completa harmonia com as regras do escolasticismo Assim em uma interpretação detalhada de Aristóteles ele subitamente propõe reforçar o raciocínio do Filósofo e ao discutir a prova da existência de Deus dada por Santo Anselmo quase que casualmente cede à inclinação de retocála um pouco mas com efeito ele o faz de modo bem considerável O importante é que insistia em estabelecer pela razão argumentos colhidos de uma autoridade39 Situandose no momento decisivo o início do século XIV em que a Idade Média transformavase em Renascimento ele poderia ter dito o que Pico delia Mirandola disse no final do século XV em plena Renascença Sem compromisso com qualquer doutrina percorrí a filosofia de todos os mestres investiguei todos os livros conheci todas as escolas41 Só que Scotus não teria partilhado com os filósofos posteriores a confiança ingênua no poder persuasive da razão No centro de sua reflexão e no centro de sua misericórdia está a firme convicção de que no que tange às questões que dizem respeito a nosso fim e à nossa perpetuidade sempitema o homem mais culto e mais genial nada poderia conhecer pela razão natural41 Pois àqueles que não têm fé a razão correta como parece a si mesma mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em corpo quanto em alma42 O que desencaminha o leitor é a grande atenção que Scotus dedica a opiniões com as quais nunca se comprometeu mas cujo exame e investigação constituem o corpo de sua obra Ele certamente não era um cético antigo ou moderno mas tinha uma mentalidade crítica coisa que é e sempre foi muito rara Dessa perspectiva grandes partes de sua obra são uma tentativa incansável de provar por simples argumentação o que ele suspeitava que não poderia ser provado mas como poderia ele ter certeza de estar certo contra quase todos os demais senão seguindo todos os argumentos sujeitandoos ao que Petrus Johannis Olivi chamou de experimentum suitatis um experimento do espírito consigo mesmo Foi por isso que achou necessário reforçar os antigos argumentos ou retocálos um pouco Sabia muito bem o que fazia Como disse Desejo dar a interpretação mais razoável de que sou capaz às palavras de outros pensadores43 Só dessa maneira essencialmente não polêmica a fraqueza inerente da argumentação poderia ser demonstrada Essa evidente fraqueza da razão natural jamais pode ser usada como argumento para a superioridade de faculdades irracionais no pensamento amadurecido do próprio Scotus ele não era nenhum místico e a noção de que o homem é irracional era para ele impensável incogitabile44 Tratase aqui segundo ele da fronteira natural de uma criatura essencialmente limitada cuja finitude é absoluta anterior a qualquer referência que venha a fazer a outra essência Pois assim como um corpo limitase primeiramente em si mesmo por suas próprias extremidades antes de ser limitado em relação a qualquer outra coisa também a forma finita é primeiro limitada em si mesma antes de ser limitada em relação à matéria45 Essa finitude do intelecto humano bastante semelhante àquela do homo temporalis de Santo Agostinho devese ao simples fato de que o homem enquanto homem não criou a si mesmo embora seja capaz de multiplicarse como outras espécies de animais Logo para Scotus a questão nunca é como derivar extrair deduzir a finitude da infinitude divina ou como ascender da finitude humana à infinitude divina mas sim como explicar que um ser absolutamente finito possa conceber algo infinito e chamálo de Deus Por que motivo ao intelecto não repugna a noção de algo infinito46 Dito de outra forma o que há no espírito humano que faz com que seja capaz de transcender suas próprias limitações sua finitude absoluta Em Scotus a resposta para esta questão diferentemente de São Tomás é a Vontade Certamente não há filosofia que possa jamais substituir a revelação divina que o cristão aceita por força do testemunho no qual tem fé A Criação e a ressurreição são objetos de fé não podem ser provadas ou refutadas pela razão natural Como tal elas são contingentes são verdades factuais cujo oposto não é inconcebível dizem respeito a acontecimentos que poderíam não ter acontecido Para aqueles que foram educados na fé cristã elas têm a mesma validade de outros acontecimentos dos quais só sabemos por confiarmos no testemunho dos que viram por exemplo o fato de que o mundo existia antes de nascermos ou de que há lugares no mundo em que nunca estivemos ou mesmo de que certas pessoas são nossos pais47 Uma dúvida radical que rejeite o testemunho dos que presenciaram e que confie apenas na razão é impossível para o homem tratase de um simples artifício retórico do solipsismo constantemente refutado pela própria existência daquele que duvida Todos os homens vivem juntos na base sólida de uma fides acquisita uma fé adquirida que têm em comum O teste para os incontáveis fatos cuja fidedignidade sempre tomamos como certa é que façam sentido para os homens ao se constituírem E neste aspecto o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma uma criatura dotada de um corpo e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece As provas dos filósofos para a imortalidade da alma mesmo quando logicamente corretas seriam irrelevantes Para que seja existencialmente relevante para o viator o viajante ou peregrino na terra a vida eterna deve ser uma segunda vida e não um modo totalmente diferente de ser como uma entidade incorpórea Ainda assim se parece óbvio para Scotus que a razão natural dos filósofos jamais alcançou as verdades proclamadas pela revelação divina continua sendo inegável que a noção de divindade antecedeu a qualquer revelação cristã o que significa que deve haver uma capacidade espiritual no homem pela qual ele é capaz de transcender tudo o que lhe é dado e de transcender portanto a própria factualidade do Ser Pois o homem segundo Scotus foi criado junto com o Ser como parte inseparável dele assim como para Santo Agostinho o homem foi criado não no tempo mas junto com o tempo Seu Intelecto está em sintonia com este Ser e seus órgãos sensoriais são talhados para a percepção de aparências seu Intelecto é natural cadit sub naturaf o homem é forçado a aceitar compelido pela evidência do objeto qualquer coisa que o Intelecto lhe proponha Non habet in potestatre sua intelligere et non intelligere49 Com a Vontade é diferente A Vontade pode achar difícil não aceitar o que a razão dita mas a coisa não é impossível assim como não é impossível para a Vontade resistir aos apetites naturais fortes Difficile est voluntatem non inclinari ad id quod est dictatum a ratione practica ultimatim non tamen est impossibile sicut voluntas naturaliter inclinatur sibi dismissa ad condelectandum appetitui sensitivo non tamem impossibile ut frequenter resistat ut patet in virtuosis et sanctis5 É a possibilidade de resistência às necessidade do desejo por um lado e aos ditames do intelecto e da razão por outro que constituem a liberdade humana A autonomia da Vontade sua completa independência das coisas como elas são o que os escolásticos chamam indiferença com o que querem dizer que a vontade não é determinada indeterminata por qualquer objeto que se lhe apresente tem uma só limitação não pode negar o Ser como um todo A limitação do homem nunca fica tão evidente como no fato de que seu espírito aí incluída a faculdade da vontade pode ter como objeto de fé que Deus criou o Ser ex nihilo do nada sem contudo ser capaz de conceber o nada Assim a indiferença da Vontade está relacionada a elementos contraditórios voluntas autem sola habet indifferentiam ad contradictoria somente o ego volitivo sabe que uma decisão que de fato se tomou poderia não ter sido tomada e uma escolha diferente que de fato se fez poderia ter sido feita51 E esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada e nem o desejo nem o intelecto podem equipararse a ela um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou nãoquerer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle quae sunt contraria respectu unius obiecti Está em poder de nossa vontade querer e nãoquerer que são contrários com relação ao mesmo objeto52 Ao dizer isso Scotus não está negando é claro que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto mas sustenta sim que o ego volitivo ao realizar uma delas sabe ser livre para realizar também o seu contrário A característica essencial de nossos atos volitivos é o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha uma vez que tenha sido feita grifo nosso53 E precisamente desta liberdade que se manifesta apenas como atividade espiritual o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade Além de ser aberta a contrários a Vontade pode suspenderse e enquanto tal suspensão só pode ser o resultado de outra volição em contraste com o querernãoquerer nietzscheano e heideggeriano que discutiremos mais adiante esta segunda volição em que a indiferença é escolhida diretamente é um testemunho importante da liberdade humana da habilidade que o espírito tem para evitar toda determinação coercitiva que venha de fora E por sua liberdade que o homem embora parte inseparável do Ser criado pode louvar a criação de Deus pois se tal louvação viesse da razão não seria mais do que uma reação natural causada pela harmonia dada que temos com todas as outras partes do universo Mas ele pode do mesmo modo absterse de tal louvação e até mesmo odiar a Deus e encontrar satisfação em semelhante ódio ou pode pelo menos recusarse a amáLo Esta recusa que Scotus não menciona em sua discussão do possível ódio a Deus é postulada em analogia com sua objeção à velha idéia de que todos os homens querem ser felizes Ele admite ser evidente que os homens desejam por natureza ser felizes embora não haja um acordo sobre o que é felicidade mas a Vontade e aqui temos o ponto crucial pode transcender a natureza no caso suspendêla há uma diferença entre a inclinação natural do homem para a felicidade e a felicidade comoobjetivo de vida deliberadamente escolhido não é absolutamente impossível para o homem descartar de todo a felicidade ao fazer seus projetos voluntários No que diz respeito à inclinação natural e à limitação imposta pela natureza ao poder da Vontade tudo o que se pode afirmar é que nenhum homem quer ser desgraçado54 Scotus evita dar uma resposta clara à questão de se o ódio a Deus é possível ou não pela relação íntima que existe entre essa questão e a questão do mal Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores também ele nega que o homem possa querer o mal como mal mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta55 A autonomia da Vontade nada além da vontade é a causa total da volição nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate56 limita de forma decisiva o poder da razão cujo ditame não é absoluto mas não limita o poder da natureza seja da natureza do homem interior a que se dá o nome de inclinações seja da natureza das circunstâncias exteriores A vontade não é de modo algum onipotente em sua efetividade real sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer Para ilustrar essa liberdade do espírito Scotus dá o exemplo de um homem que se atira de um lugar alto57 Este ato acaba com sua liberdade uma vez que agora ele necessariamente cai Segundo Scotus não Enquanto o homem está caindo necessariamente compelido pela lei da gravidade permanece livre para continuar a querer cair e pode também é claro mudar de idéia caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade Lembramos o exemplo de Espinoza da pedra que rola a qual se fosse dotada de consciência seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que se estava agora rolando era por sua própria vontade Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações no disfarce de argumentos plausíveis dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou liberdade como fatos autoevidentes Para ficar com o presente exemplo nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é real e necessariamente conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto Duns Scotus distingue dois tipos de vontade vontade natural ut natura que segue as inclinações naturais e pode ser inspirada pela razão e pelo desejo e a vontade livre ut libera propriamente dita58 Concorda com quase todos os outros filósofos que está na natureza humana inclinarse para o bem explicando o mal como fraqueza humana a marca de uma criatura que veio do nada creatio ex nihilo e que portanto tem uma certa tendência para mergulhar de volta no nada omnis creaturapotest tendere in nihil et in non esse eo quod de nihilo est59 A vontade natural funciona como a gravidade nos corpos e Scotus chamaa de affectio commodi o fato de sermos afetados pelo que é adequado e conveniente Se o homem tivesse somente a vontade natural seria no máximo um bonum animal uma espécie de bruto esclarecido cuja própria racionalidade ajudaria a escolher os meios adequados a fins dados segundo a natureza humana A vontade livre distinta do liberum arbitrium que só é livre para selecionar os meios para um fim prédesignado designa livremente fins que são perseguidos por si mesmos e dessa busca somente a vontade é capaz voluntas enim est productiva actum pois a Vontade produz seu próprio ato60 O problema é que Scotus não parece dizerem lugar algum o que é de fato esse ato designado livremente embora pareça ter entendido a atividade do livre designar como a real perfeição da Vontade61 Lamento muito admitir que não pode ser este o lugar e que eu não estaria qualificada se este fosse o lugar para fazer justiça à originalidade do pensamento de Duns Scotus especialmente à paixão pelo pensamento construtivo que permeia todo o seu genuíno trabalho62 que ele não teve nem tempo morreu muito jovem jovem demais para um filósofo nem talvez inclinação para apresentar sistematicamente É difícil pensar em qualquer grande filósofo qualquer um dos grandes pensadores e não há muitos deles que ainda precise tanto ser descoberto e auxiliado por nossa atenção e entendimento63 Tal auxílio será tão bemvindo quanto difícil de provar pela razão bastante boa de que não será possível encontrar um nicho confortável para ele entre seus predecessores e sucessores na história das idéias Não será suficiente evitar o clichê do oponente sistemático de São Tomás presente nos manuais e em sua insistência na Vontade como a faculdade mais nobre em comparação com o Intelecto ele teve muitos predecessores dentre os escolásticos o mais importante foi Petrus Johannis Olivi64 Tampouco será suficiente esclarecer e mostrar com detalhes a influência sem dúvida grande que teve sobre Leibniz e Descartes muito embora ainda seja verdade como disse Windelband há mais de setenta anos que os laços destes com o maior dos escolásticos não tenham infelizmente encontrado a consideração e o tratamento que merecem65 Certamente a presença íntima da herança agostiniana em seu trabalho é patente demais para não ser notada não há quem leia Agostinho com maior afinidade e com compreensão mais profunda e sua dívida com Aristóteles foi talvez ainda maior do que a que teve com São Tomás A grande verdade no entanto é que quanto à quintessência de seu pensamento a contingência o preço pago de bom grado pela liberdade ele não teve predecessores ou sucessores Tampouco quanto a seu método uma elaboração cuidadosa do experimentum suitatis de Olivi em experimentos de pensamento que foram estruturados como o teste final do exame crítico do espírito no curso das ações efetuadas consigo e dentro de si mesmo experimur in nobis experientia interna A seguir resumirei estas cadeias de pensamento ou experiências de pensamento admiravelmente originais e altamente relevantes que claramente se chocam com a natureza de nossas tradições filosóficas e teológicas mas que nos escapam facilmente por serem apresentadas à maneira do escolástico e por se perderem facilmente nas intrincadas argumentações scotianas Já mencionei alguns dos notáveis insights primeiro sua objeção ao velho clichê de que todos os homens querem ser felizes do qual só sobrou que nenhum homem pode querer ser infeliz segundo sua não menos surpreendente prova da existência da contingência Que todos aqueles que negam a contingência sejam torturados até que admitam que seria possível não serem torturados67 Ao esbarrarmos com observações tão terraaterra em cercanias eruditas é tentador vêlas como simples chistes Sua validade segundo Scotus depende da experientia interna uma experiência do espírito cuja evidência só pode ser negada por aqueles a quem falta a experiência assim como o homem cego negaria a experiência da cor O caráter seco e inflamável de tais observações poderia sugerir clarões de insights ao invés de cadeias de pensamento mas esses clarões abruptos normalmente só se dão na coisapensamento em uma única frase expressiva que é o resultado de um longo exame crítico prévio E característico de Scotus que a despeito de sua paixão pelo pensamento construtivo ele não fosse um edificador de sistemas seus insights mais surpreendentes aparecem com freqüência por acaso e fora de contexto ele devia saber das desvantagens disso pois nos adverte explicitamente para não entrarmos em disputas com oponentes litigiosos que na falta da experiência interna são capazes de ganhar uma discussão e perder a questão68 Comecemos pela Contingência como o preço a ser pago pela liberdade Scotus é o único pensador para quem a palavra contingente não tem conotação depreciativa Repito que a contingência não é simples privação ou defeito do Ser como a deformidade que é o pecado Em vez disso a contingência é um modo positivo de Ser assim como a necessidade é outro modo69 Essa posição parece inevitável para ele uma questão de integridade intelectual quando há intenção de se salvar a liberdade A primazia do Intelecto sobre a Vontade deve ser rejeitada porque ela não pode salvar a liberdade de forma alguma quia hoc nullo modo salvat libertatem Para ele a principal distinção entre cristãos e pagãos reside na noção bíblica da origem do Universo o Universo do Gênese não veio a ser através da emanação de forças necessárias predeterminadas de modo que sua existência fosse também necessária mas foi criado ex nihilo por decisão do DeusCriador o Qual temos que supor era completamente livre para criar um mundo diferente em que nem as nossas verdades matemáticas nem nossos preceitos morais fossem válidos Daí seguese que tudo o que é poderia não ter sido a não ser o próprio Deus Sua existência é necessária da perspectiva de um mundo não necessário mas não é necessária no sentido de que sempre houve uma necessidade que O coagisse ou inspirasse em Sua criação tal necessidade atuando sobre Ele estaria em clara contradição com a onipotência de Deus bem como com Sua supremacia Os homens são parte inseparável dessa Criação e todas as suas capacidades naturais inclusive seu intelecto seguem naturalmente as leis estabelecidas pelo Fiat divino Ainda assim o Homem em contraposição a todas as outras partes da Criação não foi planejado livremente foi criado à imagem do próprio Deus como se Deus não precisasse somente de anjos em algum mundo sobrenatural mas precisasse também de algumas criaturas à Sua semelhança em meio à natureza do mundo para Lhe fazer companhia A marca desta criatura obviamente mais próxima de Deus do que qualquer outra não é absolutamente a criatividade neste caso a criatura seria de fato algo como um Deus mortal e a meu ver esta é justamente a razão pela qual Scotus não deu prosseguimento à noção de um objetivo da Vontade livremente planejado mesmo tendo ao que parece concebido uma habilidade sem valor de planejar livremente como a verdadeira perfeição71 Em vez disso a criatura de Deus distinguese pela capacidade do espírito de afirmar ou negar livremente sem se deixar coagir pelo desejo ou pelo raciocínio E como se o Ser vindo a existir precisasse do juízo final de Deus para sua plenitude E Deus viu tudo o que fez e observou que era muito bom e esse juízo fosse também extraído do mortal que fora criado à Sua semelhança De qualquer forma o preço da liberdade da Vontade é ser livre frente a cada objeto o homem pode odiar a Deus e encontrar satisfação em tal ódio pois algum prazer deletactio acompanha cada volição72 A liberdade da Vontade não consiste na seleção dos meios para um fim predeterminado eudaimonia ou beatitudo ou bemaventurançaprecisamente porque esse fim já é7y7o pela natureza humana consiste em afirmar ou negar ou odiar livremente o que quer que lhe apareça É essa liberdade da vontade de tomar uma posição espiritualmente que coloca o homem à parte do resto da criação sem isso ele seria um animal esclarecido bonum animal na melhor das hipóteses ou como dissera Olivi anteriormente uma bestia intellectualis uma besta intelectual73 O milagre do espírito humano é que através da Vontade ele pode transcender tudo voluntas transcendit omne creatum como disse Olivi74 e este é o sinal de que o homem foi criado à imagem de Deus A noção bíblica de que Deus mostrou a ele Sua preferência concedendolhe domínio sobre todas as obras de Suas mãos Salmo 8 apenas o tomaria a mais alta de todas as coisas criadas não o colocaria absolutamente apartado delas Quando o ego volitivo diz em sua mais alta manifestação Amo Volo ut sis eu te amo quero que sejas e não quero terte ou quero mandar em ti ele mostrase capaz do mesmo amor com que Deus supostamente ama os homens a quem criou somente porque queria que existissem e a quem Ele ama sem desejar Era assim que a questão se apresentava aos cristãos é por isso que os cristãos dizem que Deus age contingentemente livre e contingentemente75 Mas é possível também segundo Scotus chegar à mesma avaliação da contingência por meio da filosofia Afinal fora o Filósofo que definira o contingente e o acidental to symbebekos como aquilo que poderia também não ser endechomenon me einai16 e de que o ego volitivo tinha mais ciência em cada volição do que o fato de que poderia também não querer experitur enim qui vult se posse non velle1 Como o homem poderia chegar a ser capaz de distinguir um ato livre de vontade de um desejo irresistível sem aquele teste interno infalível O que aparentemente ia contra a liberdade da Vontade de querer ou não querer era a lei da causalidade que Scotus também conhecia na versão aristotélica uma cadeia causai que tomasse o movimento inteligível e levasse finalmente a uma fonte imóvel de todo o movimento o motor imóvel uma causa que não é ela mesma causada A força do argumento ou melhor sua força explanatória está no pressuposto de que uma só causa é suficiente para explicar porque uma coisa é em vez de nãoser isto é para explicar o movimento e a mudança Scotus questiona toda a noção de uma cadeia de causalidade que siga em uma linha contínua através de uma sucessão de causas suficientes e necessárias e que tenha de chegar no final a uma Causa Primeira para evitar um regresso ao infinito Começa a discussão indagando se o ato de vontade é causado na vontade pelo objeto que a move ou pelo movimento da vontade em si e rejeita a resposta de que a vontade é movida por um objeto exterior a ela uma vez que isso não pode de maneira alguma salvar a liberdade quia hoc nullo modo salvat libertatem Rejeita a resposta contrária de que a vontade é onipotente porque ela não pode explicar todas as conseqüências que seguem uma volição quia tunc non possunt salvari omnes conditiones quae consequuntur actum volendi Assim chega à sua posição intermediária na verdade a única posição que salva ambos os fenômenos a liberdade e a necessidade Apresentada desta forma ela soa como um dos exercícios lógicos tão comuns na Escolástica como um jogo um tanto vazio com conceitos abstratos Entretanto Scotus vai desde logo mais além em sua investigação e chega a uma teoria das causas parciais as quais podem concorrer de igual para igual e independentemente umas das outras Tomando como seu maior exemplo a procriação em que duas substâncias independentes macho e fêmea devem unirse para gerar a criança chega à teoria de que toda mudança se dá porque uma pluralidade de causas coincide e a coincidência engendra a textura de realidade nos assuntos humanos78 Assim o cerne do problema não é simplesmente insistir na liberdade original que Deus teve ao criar o mundo e portanto na possibilidade de que Ele poderia ter criado um mundo totalmente diferente mas sim mostrar que a mudança e o movimento como tais aqueles fenômenos que originalmente em Aristóteles levaram à Lei da Causalidade os aitiai bem como os archai são governados pela Contingência Por contingente disse Scotus não designo algo que não é necessário ou que não tivesse sempre existido mas sim algo cujo oposto poderia ter ocorrido no momento em que este realmente ocorreu E por isso que não digo que uma coisa é contingente mas sim que é causada contingentemente79 Em outras palavras é precisamente o elemento causativo nos assuntos humanos que os condena à contingência e à imprevisibilidade Nada poderia entrar em maior contradição com toda a tradição filosófica do que essa insistência no caráter contingente dos processos Basta pensar nas bibliotecas inteiras que foram erguidas para explicar a necessidade da eclosão das últimas duas guerras cada teoria identificando uma única causa diferente quando na verdade nada parece mais plausível do que uma coincidência de causas talvez postas em movimento finalmente por mais uma causa adicional que contingentemente causou as duas conflagrações Embora essa noção de contingência corresponda à experiência do ego volitivo que no ato de volição sabese livre não coagido por suas metas a agir ou não agir em sua busca ela parece ao mesmo tempo oporse de modo insolúvel a uma outra experiência do espírito igualmente válida e ao senso comum que nos diz que na verdade vivemos em um mundo factual de necessidade Uma coisa pode ter acontecido bastante ao acaso mas uma vez que tenha vindo a ser e que tenha assumido realidade perde seu aspecto de contingência e apresentase a nós com o aspecto de necessidade E mesmo quando fomos nós mesmos que efetuamos o evento ou quando somos pelo menos uma das causas que contribuíram para ele como no caso de nos casarmos ou cometermos um crime o simples fato existencial de que ele agora é como veio a ser sejam quais forem as razões resistirá provavelmente a todas as reflexões sobre sua original casualidade Uma vez que o contingente aconteceu não podemos mais desembaraçar os fios que o enredaram até que se tomasse um evento como se pudesse ainda ser ou não ser80 A razão para essa mudança estranha de perspectiva que está na raiz de muitos dos paradoxos ligados ao problema da liberdade é que não há substituto real ou imaginário para a existência como tal Certamente o fluxo do tempo e da transformação pode dissolver os fatos e os eventos mas cada uma dessas dissoluções até mesmo a mudança mais radical já pressupõe a realidade que a precedeu Nas palavras de Scotus tudo o que épassado é absolutamente necessário Tornouse a condição necessária para a minha própria existência e não posso de forma espiritual ou de outra maneira qualquer conceber minha própria nãoexistência já que sendo parte inseparável do Ser sou incapaz de conceber o nada do mesmo modo que concebo Deus como o Criador do Ser mas não um Deus anterior ao creatio ex nihilo Em outras palavras a concepção aristotélica de que a atualidade necessariamente advém de uma potencialidade que a precede seria verificável somente se fosse possível reverter o processo partindose do ato para a potência ao menos espiritualmente só que isso não pode ser feito Só o que se pode dizer sobre o real é que obviamente não era impossível nunca podemos provar que era necessário só porque agora é impossível para nós imaginar um estado de coisas em que não houvesse acontecido Foi isso que fez John Stuart Mill afirmar que nossa consciência interna nos diz que temos um poder isto é uma liberdade que toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos ora em que consiste essa experiência externa da raça humana senão nos registros dos historiadores cujo olhar retrospectivo vê aquilo que foi factum est e que já se tomou portanto necessário Nesse momento a experiência externa suplanta as certezas da consciência interna sem contudo destruíla e o resultado é para um espírito que tenta coordenar e manter em equilíbrio tanto a consciência interna quanto a experiência externa como se a base da necessidade dependesse ela mesma de uma contingência Se por outro lado o espírito no desconforto da aparente contradição com que se depara decide orientarse exclusivamente por sua própria interioridade e entra em um estado de reflexão sobre o passado decobrirá que também aí factualmente como resultado do viraser já terá reordenado os processos em um padrão de necessidade tendolhes eliminado o acaso Essa é a condição necessária da presença existencial do ego pensante ponderando sobre o significado daquilo que veioaser e que agora é Sem se assumir a priori algum tipo de seqüência linear de eventos que tenham sido causados necessária e não contingentemente não seria possível qualquer explicação que tivesse alguma coerência O modo óbvio e mesmo o único possível de preparar e contar uma história é eliminar do que realmente aconteceu os elementos acidentais cuja enumeração fiel seja ela qual for é impossível até mesmo para um cérebro computadorizado Dizse que Scotus admitiu de bom grado que não há resposta real para a questão sobre o modo de conciliar a liberdade e a necessidade82 Não estava a par da dialética hegeliana na qual o processo da necessidade pode produzir a liberdade Mas no seu modo de pensar não era preciso haver tal conciliação pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito se é que havia conflito ele correspondería a um conflito intramuros entre os egos pensante e volitivo um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte por quê A razão para isso é simples a Vontade como Nietzsche descobriria mais tarde é incapaz de querer retroativamente logo deixese para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado A questão por quê qual é a causa é sugerida pela vontade porque a vontade se experimenta como um agente causativo E esse aspecto da Vontade que enfatizamos quando dizemos que a Vontade é a fonte da ação ou na linguagem escolástica que nossa vontade é produtora de atos e é o que permite a seu possuidor operar explicitamente no querer83 Para falar em termos de causalidade primeiro a vontade causa volições e tais volições causam então certos efeitos que nenhuma vontade pode desfazer O intelecto tentando fornecer à vontade uma causa explanatória que lhe abrande a indignação quanto à própria fraqueza fabricará uma história que faça com que os dados se encaixem Sem pressupor a necessidade faltaria à história toda a coerência Em outras palavras o passado justamente por ser o que é absolutamente necessário está além do alcance da Vontade Para Scotus o problema apresentavase de maneira mais simples os opostos decisivos não são necessidade e liberdade mas sim liberdade e natureza a Vontade ut natura e a Vontade ut libera Assim como o Intelecto a Vontade se inclina naturalmente para a necessidade só que a Vontade ao contrário do Intelecto pode conseguir resistir à inclinação Intimamente ligada a esta doutrina da contingência está a solução de simplicidade surpreendente que Scotus dá ao velho problema da liberdade uma vez que o problema surge da própria faculdade da vontade Discutimos com algum detalhe a curiosa fragmentação da vontade o fato de que a divisão doisemum característica de todos os processos do espírito e descoberta primeiramente por Sócrates e Platão no processo do pensamento transformase em uma luta fatal entre o euquero e o não quero entre velle e nolle que devem ambos estar presentes para assegurar a liberdade Experitur enim qui vult se posse non velle Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não querer85 Os escolásticos seguindo a filosofia da Vontade de São Paulo o Apóstolo e de Santo Agostinho concordavam que a graça divina era necessária para curar o infortúnio da Vontade Scotus talvez o mais pio dentre eles discordava disso Não é necessária qualquer intervenção divina para redimir o ego volitivo Ela própria sabe muito bem como se curar das conseqüências do dom inestimável e ainda assim altamente questionável da liberdade humana questionável porque o fato de a vontade ser livre e de não ser determinada ou limitada por qualquer objeto dado exterior ou interiormente não significa que o homem como homem goze de liberdade ilimitada O modo normal que o homem tem de escapar à sua liberdade é simplesmente agir conforme as proposições da vontade Por exemplo é possível para mim estar escrevendo neste momento assim como me é possível não estar escrevendo ainda assim meu ato de escrever exclui o seu oposto Por um ato da vontade posso me determinar a escrever e por outro ato posso decidir não escrever mas não posso tomar uma atitude simultânea em relação às duas coisas86 Em outras palavras a vontade humana é indeterminada aberta a contrários e portanto fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições no momento em que pára de querer e começa a agir conforme uma das proposições da vontade ela perde sua liberdadee o homem o possuidor do ego volitivo fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno decidindo seguir seu instinto parar de escolher e começar a comer Subjaz a esta solução que parece simplista à primeira vista uma distinção feita por Scotus provavelmente sob a influência de Aristóteles entre activum e factivum Tratase da distinção entre a atividade pura a energeia aristotélica que tem seu fim e ergon em si mesma e a fabricação facere que consiste em produzir ou moldar algum objeto externo e isso implica que a operação é transitória isto é tem um fim fora do agente Os artefatos do homem são produzidos por uma atividade transitória147 As atividades do espírito tais como pensar ou querer são atividades da primeira espécie e estas pensava Scotus embora não tenham qualquer resultado no mundo real são de uma perfeição maior porque essencialmente não são transitórias Elas cessam não por terem chegado a seu próprio fim mas somente porque o homem criatura limitada e condicionada é incapaz de continuálas indefinidamente Scotus compara essas atividades do espírito à atividade da luz que se renova permanentemente em sua própria fonte e conserva assim sua constância interna e simplesmente perdura88 Porque o dom da vontade livre foi entregue a um ens creatum este ser para poder se salvar é forçado a passar do activum para o factivum da atividade pura para a fabricação de algo que tem seu fim naturalmente com a emergência do produto A mudança é possível por que há um euposso inerente em cada euquero e este euposso impõe limitações ao euquero que não estão fora da própria atividade da vontade Voluntas estpotentia quia ipsa aliquid potest a Vontade é um poder porque pode alcançar algo e essa potência inerente à Vontade é com efeito o oposto da potentia passiva dos aristotélicos É um euposso poderoso e ativo que o ego experimenta89 Com essa experiência da Vontade como uma potência do espírito cujo poder não consiste como em Epiteto em proteger o espírito da realidade mas ao contrário em inspirálo e conferirlhe autoconfiança é como se tivéssemos chegado ao fim de uma história cujo começo foi a descoberta de São Paulo de que velle eposse não coincidem coincidência que era tida como certa na Antigüidade précristã A última palavra de Scotus sobre a Vontade como faculdade do espírito diz respeito ao mesmo fenômeno que foi elucidado muitos séculos mais tarde na identificação feita por Nietzsche e por Heidegger entre Vontade e Poder só que Scotus ainda não tinha conhecimento do aspecto aniquilador niilista do fenômeno isto é do poder gerado pela negação Ele ainda não via o futuro como uma negação antecipada do presente ou talvez visse mas só no sentido genérico de perceber a futilidade inerente de todas os acontecimentos meramente mundanos como disse Santo Agostinho quodfuturum est transiturum expectatur o que está no futuro é esperado como algo que terá sido90 O homem é capaz de transcender o mundo do Ser junto com o qual foi criado e que permanece sendo seu habitat até a morte ainda assim mesmo as atividades do seu espírito nunca deixam de relacionarse ao mundo dado aos sentidos Assim o intelecto está preso aos sentidos e sua função inata é entender os dados sensoriais de maneira semelhante a Vontade está presa ao apetite sensorial e sua função inata é desfrutar de si mesma Voluntas conjuncta appetitui sensitivo nata est condelectari sibi sicut intellectus conjunctus sensui natus est intelligere sensibilia91 As palavras decisivas aqui são condelectari sibi um prazer inerente à própria atividade da vontade diferente do prazer do desejo de obter o objeto desejado que é transitório a posse extingue o desejo e o prazer O condelectatio sibi importa seu prazer de sua proximidade do desejo e Scotus disse explicitamente que não há prazer do espírito que possa competir com o prazer que surge da satisfação do desejo sensual só que este prazer é quase tão transitório quanto o próprio desejo92 Assim ele estabelece uma distinção nítida entre vontade e desejo porque somente a vontade não é transitória Um prazer inerente à vontade em si mesma é tão natural para a vontade quanto entender e conhecer o são para o intelecto e ele pode ser detectado até mesmo no ódio mas sua perfeição inata a paz final entre o doisemum pode se dar somente quando a vontade é transformada em amor Se a vontade fosse mero desejo de possuir deixaria de existir quando se possui o objeto não desejo aquilo que tenho Quando Scotus especula sobre uma vida após a morte isto é sobre uma existência ideal para o homem como homem esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma logo a bemaventurança futura a beatitude que se goza na vida eterna não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação A contemplação do summum bonum da coisa mais alta portanto Deus seria o ideal do intelecto que sempre se baseia na intuição a apreensão de uma coisa em seu seristo Thisness haecceitas que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado mas também porque a intuição do seristo é imperfeita o intelecto recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade93 A noção de paz eterna ou de Descanso surge da experiência da inquietação dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendêlos em atividades do espírito sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles O que a Vontade em um estado de bemaventurança isto é em uma vida após a morte não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio mas isso não significa que o homem em estado de bemaventurança tenha perdido a faculdade de dizer sim A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de Amor Amo volo ut sis A beatitude é portanto o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele94 Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade mas não mais como uma atividade do espírito uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto Pois a beatitude consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si e não simplesmente como está no espírito95 O espírito transcendendo as condições existenciais do viajante ou peregrino na terra tem uma indicação desta bemaventurança futura em sua experiência de pura atividade isto é em uma transformação da vontade em amor Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio o amor perfeito a Deus por amor a Deus e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma ainda assim é amor concupiscentiae amor desejoso96 Já em Santo Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de São Paulo sobre o amor que jamais acaba nem mesmo quando vier o que é perfeito e tudo o mais tiver sido aniquilado I Coríntios 13813 Em Santo Agostinho a transformação se dá pela força unificadora da vontade não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam maravilhosamente unidos97 Mas para Scotus a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado purificado dos desejos e das necessidades mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura Se nesta vida o milagre do espírito humano é que o homem possa ao menos espiritual e provisoriamente transcender suas condições terrenas e desfrutar da realidade pura de um exercício cujo fim está em si mesmo então o milagre que se espera em uma vida eterna é o de que o homem seja em toda sua existência espiritualizado Scotus fala de um Corpo glorificado98 não mais dependente de faculdades cujas atividades são interrompidas ou pelo factivum o fazer e o moldar objetos ou pelos desejos de uma criatura necessitada que conferem ambos um caráter transitório a toda atividade nesta vida inclusive as atividades do espírito Transformada em amor a inquietação da vontade é abrandada mas não extinta o poder duradouro do amor não é sentido como interrupção no movimento assim como o fim da fúria de uma guerra é sentido como a calma da paz mas sim como a serenidade de um movimento que se autocontém que se auto realiza e é perene Não aparecem aqui a calma e o prazer que se seguem a uma operação perfeita mas sim a quietude de um ato repousado em seu fim Nesta vida sabemos de tais atos em nossa experientia interna e segundo Scotus deveriamos ser capazes de compreendêlos como indicações de um futuro incerto em que eles durariam para sempre A faculdade de atuar se verá acalmada em seu objeto através do ato perfeito o Amor pelo qual ela o obtém99 A idéia de que poderia haver uma atividade que encontra seu repouso em si mesma é de uma originalidade tão surpreendente e sem precedentes ou sucessores na história do pensamento ocidental quanto a da preferência ontológica de Scotus pelo contingente em detrimento do necessário e pelo particular existente em detrimento do universal Tentei mostrar que não encontramos em Scotus simples inversões conceituais mas sim novos e genuínos insights que poderíam todos provavelmente ser explicados como as condições especulativas para uma filosofia da liberdade A meu ver na história da filosofia somente Kant pode se igualar a Duns Scotus em seu compromisso com a liberdade Não obstante Kant não tinha o menor conhecimento de Scotus Vou terminar portanto com uma estranha passagem de Kant na Crítica da razão pura que lida no mínimo com o mesmo problema sem contudo mencionar Liberdade ou Vontade Há algo de muito estranho no fato de que desde que supomos que algo existe não mais possamos evitar a consequência de que alguma coisa existe necessariamente Por outro lado tomando o conceito de uma coisa não importa qual descubro que a existência desta coisa nunca pode ser representada por mim como absolutamente necessária e que sobre o que quer que possa existir nada me impede de pensar em sua nãoexistência Assim se tenho que admitir algo necessário como uma condição para o que existe em geral não posso pensar em qualquer coisa particular como necessária em si Em outras palavras nunca posso acabar o regresso às condições da existência a não ser admitindo um ser necessário e ainda assim jamais estou em posição de começar a partir dele E concluindo esta reflexão algumas páginas depois não há nada que absolutamente force a razão a aceitar uma tal existência ao contrário podese sempre anulála em pensamento sem contradição a necessidade absoluta é uma necessidade encontrável somente no pensamento100 Ao que se pode acrescentar conforme nos ensina Scotus que o nada absoluto não é encontrável no pensamento Mais tarde teremos oportunidade de voltar a essa idéia quando discutirmos os destinos incertos da faculdade da Vontade no final da Era Moderna Capítulo 4 Conclusões 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos Antes de passarmos à parte final dessas considerações tentarei justificar o último e maior salto sobre os séculos nesta incompleta e fragmentária apresentação que tive a pretensão de anunciar como uma história da Vontade Já mencionei minhas dúvidas a respeito da possibilidade de haver legitimamente uma História das idéias uma Geistesgeschichte baseada no pressuposto de que as idéias seguemse gerandose umas às outras em uma sucessão temporal O pressuposto faz sentido somente no sistema da dialética de Hegel Mas sem falar em teorias há um registro dos pensamentos de grandes pensadores cujo lugar na história factual é indiscutível e cujo testemunho afirmador ou negador da Vontade abordamos aqui somente de passagem Descartes e Leibniz de um lado da discussão Hobbes e Espinoza do outro O único grande pensador nesses séculos que seria verdadeiramente irrelevante em nosso contexto é Kant Sua Vontade não é uma capacidade especial do espírito distinta do pensamento mas sim razão prática um Vernunftwille não muito diferente do nouspraktikos de Aristóteles a afirmação de que a razão pura pode ser prática é a tese central da filosofia moral kantiana1 está perfeitamente correta A Vontade de Kant não é nem liberdade de escolha liberum arbitrium nem é sua própria causa para Kant a espontaneidade pura que ele chamou com freqüência de espontaneidade absoluta só existe em pensamento A Vontade de Kant é encarregada pela razão de ser seu órgão executivo em todas as questões da conduta Muito mais embaraçosa e portanto carente de justificação é a omissão em nossas considerações do desenvolvimento do idealismo alemão depois de Kant o salto que demos sobre Fichte Schelling e Hegel os quais a seu modo especulativo resumiram os séculos da Era Moderna Pois a ascensão e declínio da Era Moderna não é uma invenção da história das idéias mas um evento factual que pode ser datado a descoberta da Terra inteira e de parte do Universo a ascensão da ciência moderna e de sua tecnologia seguida do declínio da autoridade da Igreja pela secularização e pelo Iluminismo Essa momentosa ruptura factual que ocorreu em nosso passado foi caracterizada e interpretada segundo muitos pontos de vista diferentes e legítimos em nosso contexto o desenvolvimento mais decisivo que se deu durante esses séculos foi a subjetivização do pensamento cognitivo bem como do metafísico Foi só nesses séculos que o homem se transformou no centro de interesse da ciência e da filosofia Isso não acontecera em tempos anteriores muito embora como vimos a descoberta da Vontade tenha coincidido com a descoberta de um homem interior em um momento em que o homem se tomara uma questão para si mesmo Somente quando a ciência provou não só que os sentidos humanos estavam sujeitos ao engano que poderia ser corrigido à luz de uma nova evidência para que fosse revelada a Verdade mas também que seu aparato sensorial ficara para sempre incapaz de certezas autoevidentes foi que o espírito humano agora totalmente lançado de volta a si mesmo começou com Descartes a procurar uma certeza que fosse um dado puro da consciência Quando Nietzsche chamou a Era Moderna de escola da suspeita quis dizer que pelo menos a partir de Descartes o homem já não estava mais certo de coisa alguma nem mesmo de ser real ele precisava de uma prova da existência não só de Deus como também de si mesmo Foi a certeza do eu sou que Descartes descobriu em seu cogito me cogitare isto é em uma experiência do espírito para a qual nenhum dos sentidos que nos dão nossa realidade e a de um mundo exterior é necessário É claro que essa certeza é bastante questionável Já em Pascal ele próprio influenciado por Descartes encontramos a objeção de que esta consciência dificilmente poderia ser suficiente para distinguir entre sonho e realidade um pobre artesão sonhando durante doze horas toda noite que era rei teria a mesma vida e desfrutaria da mesma quantidade de felicidade que um rei que sonhasse toda noite que era um pobre artesão Além disso já que freqüentemente se sonha estar sonhando nada pode assegurar que aquilo a que chamamos nossa vida não seja um completo sonho do qual despertaremos na morte Duvidar de tudo de omnibus dubitandum est e encontrar certeza na própria atividade de duvidar exigida pela nova Filosofia que de tudo duvida Donne não ajuda pois não está quem duvida obrigado a duvidar que duvida Ninguém foi é verdade tão longe mas isso só significa que nenhum homem jamais foi um cético perfeito jpyrrhonien em Pascal ainda que não por estar fortalecido pela razão ele era impedido pela natureza a qual ajudava a razão impotente e assim o cartesianismo era algo como a história de Dom Quixote2 Séculos mais tarde Nietzsche ainda pensando na mesma linha suspeitou que foi a nossa crença cartesiana no ego pensante como única realidade que nos fez atribuir realidade às coisas em geral3 Com efeito nada se tomou mais característico das últimas fases da metafísica do que essa espécie de inversão de papéis na qual Nietzsche com seus experimentos de pensamento de uma honestidade implacável era um mestre Mas esse jogo ainda um jogo de pensamento mais do que um jogo de linguagem só se tornou possível quando com o surgimento do idealismo alemão romperamse todas as pontes a não ser a ponte arcoíris de conceitos4 ou para falarmenos poeticamente quando ficou claro para os filósofos que a novidade de nossa posição contemporânea em filosofia baseiase na convicção que nenhuma época teve antes de nós de que não possuímos a verdade Todas as gerações anteriores possuíam a verdade até mesmo os céticos5 Nietzsche e Heidegger estavam errados creio na data que deram a essa convicção moderna na verdade ela acompanhara o surgimento da ciência moderna tendo sido atenuada pela certeza cartesiana como substituta para a verdade essa por sua vez foi destruída por Kant junto com os resíduos do escolasticismo que na forma de exercícios lógicos e de dogmatismo das escolas levara uma existência um tanto frágil de simples erudição Mas foi somente no fim do século XIX e aqui Heidegger está certo que a convicção de não possuir a verdade tomase a opinião comum das classes instruídas estabelecendose como algo semelhante ao Espírito da Era da qual Nietzsche era provavelmente o mais destemido representante Entretanto o fator poderoso que atrasou por séculos esta reação brotou ele mesmo com o surgimento das ciências como resposta natural de todo homem pensante ao enorme e imensamente rápido avanço do conhecimento humano um avanço que haveria de fazer com que os séculos anteriores desde a Antigüidade parecessem por comparação pura estagnação O conceito de Progresso como esforço amplo e cooperativo no interesse do conhecimento em si mesmo no qual todos os cientistas do passado do presente e do futuro têm uma parte apareceu desenvolvido de forma completa pela primeira vez nas obras de Francis Bacon6 Com esse conceito operouse a princípio quase automaticamente uma mudança importante na compreensão do Tempo a elevação do Futuro à posição antes ocupada pelo Presente ou pelo Passado A idéia de que cada geração subseqüente saberia mais do que aquela que a precedeu e de que esse progresso jamais se completaria uma convicção que só agora em nosso tempo vem a ser questionada já era suficientemente importante mas para nosso contexto mais importante ainda é a percepção simples e natural de que o conhecimento científico só foi e só pode ser alcançado passo a passo pela contribuição de gerações de exploradores na construção que se faz sobre as descobertas de seus predecessores corrigindoas de maneira gradual A ascensão da ciência teve início com as novas descobertas dos astrônomos cientistas que não apenas usaram de maneira bastante sistemática as descobertas de seus predecessores mas que também sem os registros de gerações passadas vale dizer registros confiáveis teriam sido incapazes de fazer absolutamente qualquer progresso uma vez que o tempo de vida de um homem ou de uma geração de homens é evidentemente curto demais para a verificação de descobertas e validação de hipóteses científicas Mas os astrônomos escreveram catálogos astrais para serem usados por futuros cientistas isto é lançaram a base para avanços científicos A astronomia não estava é claro totalmente sozinha na iniciação do progresso São Tomás de Aquino tinha consciência de um aumento no conhecimento científico argumentum factum est que ele explicava pelas falhas de conhecimento dos que inventaram as ciências Os artesãos também acostumados ao método do ensaio e erro tinham uma consciência clara de certas melhorias em seus ofícios As próprias guildas contudo enfatizavam a continuidade ao invés do progresso do artesanato e a única passagem da literatura que expressa claramente a idéia do progresso gradual do conhecimento ou melhor da habilidade tecnológica aparece em um tratado sobre artilharia7 Mesmo assim o elemento decisivo que conferiu à ciência moderna o seu ímpeto surgiu na astronomia e a idéia de Progresso que a partir de então dominou todas as outras ciências até que finalmente se tomasse a noção dominante do igualmente novo conceito de história baseouse originalmente no estoque de dados no intercâmbio de conhecimento e no lento acúmulo de registros que eram os requisitos para o avanço em astronomia Somente depois das espantosas descobertas dos séculos XVI e XVII foi que o que andava acontecendo nesse campo chamou a atenção daqueles interessados na condição humana em geral Assim enquanto a nova Filosofia provando a inadequação de nossos sentidos de tudo duvidava e dava origem à suspeita e ao desespero o movimento de avanço igualmente mani festo do conhecimento dava origem a um imenso otimismo quanto ao que o homem pode conhecer e aprender Só que esse otimismo não se aplicava aos homens no singular e nem mesmo à relativamente pequena comunidade dos cientistas aplicavase somente à sucessão de gerações isto é à Humanidade como um todo Nas palavras de Pascal que foi o primeiro a detectar que a idéia de progresso era um complemento necessário à idéia de Humanidade era a prerrogativa particularmente humana distintiva do homem e do animal que não só cada ser humano possa avançar diariamente no conhecimento mas que todos os homens juntos progridam continuamente à medida que o universo vai envelhecendo de modo que a completa sucessão de homens através dos séculos deva ser considerada como um só homem que vive para sempre e aprende continuamente grifo nosso8 O decisivo nessa formulação é que a noção de todos os homens juntos que é claro constitui um pensamento e não uma realidade foi de imediato construída segundo o modelo do homem de um sujeito que podia servir como um nome para todos os tipos de atividades expressas por verbos Esse conceito não era uma metáfora propriamente dita era uma completa personificação do tipo das que encontramos nas alegorias das narrativas da Renascença Em outras palavras o Progresso tornouse o projeto da Humanidade atuando por trás dos homens reais uma força personificada que iremos encontrar mais tarde na mão invisível de Adam Smith no ardil da natureza de Kant na astúcia da Razão de Hegel e no materialismo dialético de Marx Sem dúvida o historiador das idéias não verá nessas noções nada além da secularização da divina providência uma interpretação bastante questionável uma vez que encontramos a personificação da Humanidade em Pascal que certamentc teria sido o último a desejar um substituto secular para Deus como aquele que verdadeiramente governa o mundo Seja como for as idéias interligadas de Humanidade e Progresso só vieram para o primeiro plano das especulações filosóficas depois que a Revolução Francesa demonstrou para os espíritos de seus mais pensativos espectadores a realização possível de coisas invisíveis como liberte fraternité egalité parecendo constituir assim uma refutação tangível para a mais antiga convicção dos homens pensantes a de que os altos e baixos da história e dos negócios sempre instáveis dos homens não merecem ser levados a sério Aos ouvidos contemporâneos o famoso dito de Platão nas Leis um homem sério guarda sua seriedade para as coisas sérias e não a desperdiça com insignificâncias9 tais como os assuntos humanos pode parecer desmedido na verdade isso nunca tinha sido questionado antes de Vico e Vico não teve influência ou eco até o século XIX O evento da Revolução Francesa clímax sob muitos aspectos da Era Moderna alterou o aspecto pálido do pensamento por quase um século os filósofos uma tribo de homens notoriamente melancólicos tomaramse exultantes e otimistas Agora acreditavam no Futuro e deixavam para os historiadores as antigas lamentações sobre o curso do mundo Aquilo que séculos de avanços científicos compreendidos na totalidade só pelos participantes da grande empreitada sem contudo ficar além da compreensão geral do filósofo tinham sido incapazes de alcançar era agora efetivado em poucas décadas os filósofos foram convertidos a uma fé no progresso não só do conhecimento mas também dos assuntos humanos em geral E enquanto começavam a refletir com uma lealdade nunca antes vista sobre o curso da história não podiam deixar de tomar consciência quase imediata do maior enigma que seu novo tema lhes apresentava Tratase do simples fato de que nenhuma ação jamais alcança o objetivo pretendido e de que o Progresso ou qualquer outra significação fixa do processo histórico surge de uma mistura sem sentido de erro e violência Goethe de uma casualidade melancólica no curso sem sentido dos assuntos humanos Kant Só se pode detectar algum sentido por meio da sabedoria da visão retrospectiva quando os homens deixam de agir e começam a contar a história do que aconteceu então é como se os homens ao perseguir seus propósitos sem se entender sem a menor lógica tivessem sido levados por uma intenção da natureza pelo fio condutor da razão10 Citei Kant e Goethe que estacaram ambos no limiar da nova geração aquela dos idealistas alemães para quem os acontecimentos da Revolução Francesa foram as experiências de vida decisivas Mas Vico já sabia que os fatos da história conhecida tomados em si mesmos não possuem nem uma base comum nem continuidade nem coerência e Hegel muito depois ainda insistia em que as paixões os propósitos privados e a satisfação de desejos egoístas são as mais efetivas fontes da ação Logo não é o registro dos eventos passados mas somente a história o que faz sentido e o que tanto impressiona nas observações de Kant ao final da vida é ter ele entendido imediatamente que o sujeito da ação da História teria que ser a Humanidade em vez de o homem ou qualquer comunidade humana constatável Não menos impressionante é o fato de ter sido capaz de perceber a grande falha no projeto da História Continuará sempre sendo desconcertante que as gerações anteriores pareçam levar adiante sua pesada tarefa pelo bem dos que virão e que somente os últimos devam ter a sorte de habitar o edifício terminado11 Provavelmente foi por pura coincidência que a geração amadurecida sob o impacto das revoluções do século XVIII tenha também tido o espírito formado pela liberação kantiana do pensamento por sua resolução do antigo dilema entre o dogmatismo e o ceticismo ao introduzir uma autocrítica da Razão E como a revolução encorajou essa geração a transportar a noção de Progresso do avanço científico para o campo dos assuntos humanos e a compreendêla como progresso da História era mais do que natural que sua atenção se voltasse para a Vontade como fonte da ação e como o órgão do Futuro O resultado foi que a idéia de fazer da liberdade a parte essencial da filosofia emancipou o espírito humano em todas as suas relações emancipou o ego pensante para a especulação livre nas cadeias de pensamento cujo fim último era provar que não só o Ego é tudo mas também ao contrario tudo é Ego12 Aquilo que aparecera de forma restrita e provisória no conceito personificado de Humanidade de Pascal começava agora a proliferar com uma incrível intensidade As atividades dos homens seja de pensar seja de agir foram transformadas em atividades de conceitos personificados que tornavam a filosofia tanto infinitamente mais difícil a dificuldade principal em Hegel é seu teor de abstração suas pistas somente ocasionais sobre os dados e fenômenos reais que ele tinha em mente quanto incrivelmente mais viva Era uma verdadeira orgia de pura especulação que em contraste nítido com a razão crítica de Kant estava repleta de dados históricos disfarçados de abstração radical Uma vez que é o próprio conceito personificado que deve supostamente agir é como se nas palavras de Schelling a filosofia se erguesse a um ponto de vista mais alto a um maior realismo em que as simples coisaspensamento os noumena de Kant produtos desma terializados da reflexão do ego pensante sobre dados reais dados históricos em Hegel e mitológicos ou religiosos em Schelling dessem início à sua curiosa dança incorpórea e espectral cujos passos e ritmos não se regulam nem se limitam por qualquer idéia da razão Foi nessa região de especulação pura que a Vontade apareceu durante o curto período do idealismo alemão Na instância última e mais alta declarou Schelling não há outro Ser senão a Vontade A Vontade é Ser primordial e todos os predicados aplicamse somente a ela a ausência de fundamento a eternidade a independência do tempo a autoafirmação Toda filosofia luta apenas para encontrar esta expressão maior13 E citando essa passagem em What is called thinking Heidegger logo acrescenta Os predicados pois que o pensamento metafísico atribuiu desde a Antigüidade ao Ser Schelling encontraos em sua forma final e mais alta no querer A Vontade nesse querer não significa aqui uma capacidade da alma humana entretanto a palavra querer designa aqui o Ser dos seres como um todo grifo nosso14 Sem dúvida Heidegger está certo a Vontade de Schelling é uma entidade metafísica mas ao contrário das falácias metafísicas mais comuns e mais antigas ela é personificada Em um contexto diferente e de forma mais precsa o próprio Heidegger sintetiza o significado deste Conceito personificado a falsa opinião de que a vontade humana é a origem da vontadedequerer surge facilmente quando ao contrario é a Vontadedequerer que quer o homem sem que ele sequer experimente a essência de tal vontade15 Com essas palavras Heidegger voltase resolutamente contra o subjetivismo da Era Moderna e também contra as análises fenomenológicas cuja meta principal sempre foi salvar os fenômenos assim como eles eram dados à consciência E ao entrar na ponte arcoíris de conceitos ele acaba encaininhandose para o idealismo alemão e para a sua exclusão engenhosa do homem e das faculdades do homem em favor de conceitos personificados Nietzsche diagnosticou a inspiração por trás dessa filosofia póskantiana com uma clareza insuperável ele conhecia aquela filosofia muito bem e ao final seguiu ele mesmo por um caminho semelhante e talvez ainda mais extremo A filosofia alemã disse Nietzsche é o modo mais fundamental de nostalgia que jamais houve o anseio pelo que já existiu de melhor Não se está mais etn casa em lugar algum ao final anseiase pela volta àquele único lugar em que se pode estar em casa o mundo grego Mas é precisamente naquela direção1 que todas as pontes estão quebradas exceto as pontes arcoíris de conceitos Ccom certeza é preciso ser muito leve muito sutil muito esguio para passar por essas pontes Mas que felicidade já há nessa vontade de espiritualidade quase de fantasmagoricidade Geisterhaftigkeit Desejase a volta através dos Padres da Igreja aos gregos A filosofia alemã é um pedaço de desejo de Renascença voontade de prosseguir na descoberta da Antigüidade no desenterrar da filosofia amtiga sobretudo dos présocráticos o templo grego enterrado mais fundo Daqrui a alguns séculos talvez julgarseá que toda a filosofia alemã colhe sua verdadeiira dignidade do fato de ser uma recuperação gradual do solo da Antigüidade tornaimonos mais gregos a cada dia primeiro como é razoável nos conceitos e avaliaçõtes como se fossem de certo modo fantasmas helenizantes16 Sem dúvida o conceito personificado tinha raiz em uma ex periênciaconstatável mas o pseudoreino de espíritos incorpóreos atuando por trás dos homens era construído pela nostalgia de um outro mundo no qual o espíriiito do homem pudesse sentirse em casa Esta é então minha justificativa para ter omitido de nossas considerações esse corpo de pensamento o idealismo alemão no qual a espectulação pura no campo da metafísica talvez tenha alcançado seu clímax junto com o fim Não quis atravessar a ponte arcoíris de conceitos talvez porque não seja suficientemente nostálgica em todo caso porque não acredito em um mundoo quer seja um mundo passado ou um futuro em que o espírito humano equipado pa ra retirarse do mundo das aparências poderia ou deveria chegar a sentirse confortavelmente em casa Além disso pelo menos nos casos de Nietzsche e de Heidegger foi precisamente um confronto com a Vontade como faculdade humana e não como categoria ontológica que os instou originalmente a repudiar a facualdade e então a se converter e depositar sua confiança nessa casa f antasmagórioca de conceitos personificados que foi tão obviamente construída e decorada poelo ego pensante em oposição ao volitivo 14 O repúdio nietzscheano da Vontade Em minha discussão sobre a Vontade mencionei repetidars vezes duas maneiras completamente diferentes de se entender esta faculdade coimo uma faculdade de escolha entre objetos ou metas o liberum arbitrium que atiua como árbitro entre fins dados e delibera livremente sobre os meios para alcançálos e por outro lado como nossa faculdade de começar espontaneamente uma série no tempo Kant17 ou como o initium ut esset homo creatus est de Santo Agmstinho a capacidade do homem começar por ser ele mesmo um começo Com o cconceito de Progresso da Era Moderna e sua inerente alteração do entendimento do Futuro que deixa de ser aqmlo que se aproxima de nós para ser aquilo que determinamos com os projetos da Vontade seria natural que o poder instigador da Vontade fosse alçado a primeiro plano E o foi de fato como nos informa a opinião comum na época Por outro lado nada é mais característico do início do que hoje chamamos de existencialismo do que a ausência de qualquer desses traços de otimismo Segundo Nietzsche somente a falta de sentido histórico uma falta que para ele é o erro original de todos os filósofos18 pode explicar esse otimismo Não nos deixemos enganar O tempo marcha para frente gostaríamos de acreditar que tudo o que está nele marcha também para frente que o desenvolvimento é o que se move para frente E quanto ao correlato do Progresso a idéia de Humanidade ele diz a Humanidade não avança nem sequer existe19 Em outras palavras embora a suspeita universal tenha sido fortemente neutralizada no início daEra Moderna detida primeiro pela própria noção de Progresso e depois por sua aparente corporificação e apogeu na Revolução Francesa esta ação ncutralizadora revelouse apenas um fator de adiamento cuja força ao final esgotouse Se preferimos olhar historicamente para tal desenvolvimento só podemos dizer que os experimentos de pensamento de Nietzsche uma filosofia experimental como a que vivo antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo mais fundamental20 finalmente completaram o que tivera início com Descartes e Pascal no século XVII Os homens sempre tentados a levantar o véu do futuro com o auxílio de computadores ou de horóscopos ou dos intestinos de animais sacrificados têm tido piores resultados nessas ciências do que em quase qualquer outra empreitada científica Se estivéssemos falando contudo de uma competição honesta entre futurólogos com relação à nossa própria época o prêmio poderia muito bem ir para John Donne um poeta sem qualquer ambição científica que escreveu em 1611 em reação imediata ao que ele sabia estar se passando nas ciências que ainda ficariam por muito tempo atuando sob o nome de filosofia natural Ele não precisou esperar por Descartes ou Pascal para tirar as conclusões daquilo que percebia And new Philosophy calls all in doubt The Element of fire is quite put out The Sun is lost and thearth and no mans wit Can well direct him where to looke for it Tis all in pieces all cohaerence gone All just supply and all Relation Prince Subject Father Sonne are things forgot E finaliza com lamentações que precisaram mais ou menos de trezentos anos para serem ouvidas de novo Quando conheceres isto Saberás que monstro horrendo que Fantasma lívido Que Cinza seca é este mundo21 É sobre este pano de fundo histórico que teremos que considerar os últimos dois pensadores ainda próximos o bastante da herança filosófica do Ocidente para reconhecer na Vontade uma das faculdades importantes do espírito Começamos com Nietzsche e lembramos que ele jamais escreveu um livro com o título Vontade de Potência a coleção de fragmentos notas e aforismos que levam este título foi publicação póstuma resultado de uma seleção feita sobre um caos de dizeres desconexos e muitas vezes contraditórios Cada um deles é o que todos os escritos do Nietzsche maduro na verdade são a saber um experimento de pensamento um gênero literário surpreendentemente raro nos registros de nossa história A analogia mais óbvia é com Pensées de Pascal que tem em comum com A vontade de potência de Nietzsche um descuido na organização que levou seus últimos editores a tentar reorganizálos com o aborrecido resultado de deixarem o leitor cheio de problemas para identificálos e datálos Consideraremos a princípio alguns enunciados descritivos simples sem conotações filosóficas gerais ou metafísicas A maior parte vai soar bastante familiar mas será melhor não precipitar a conclusão de que possamos estar aqui diante de influências eruditas Inferir esse tipo de coisa é especialmente tentador no caso de Heidegger por seu profundo conhecimento de filosofia medieval por um lado e por sua insistência na primazia do tempo futuro em Ser e Tempo de que já falei por outro Mais digno de nota ainda é que em sua discussão sobre a Vontade que toma fundamentalmente a forma de uma interpretação de Nietzsche ele nunca mencione as descobertas de Santo Agostinho nas Confissões Logo fica melhor atribuir aquilo que irá parecer familiar no que vem a seguir às características peculiares da faculdade da vontade até mesmo a influência de Schopenhauer sobre o jovem Nietzsche pode ser desconsiderada aqui sem maiores escrúpulos Nietzsche sabia que Schopenhauer falou sobre a vontade mas não há nada mais característico de sua filosofia do que a ausência de uma vontade genuína22 e viu corretamente que a razão para isso reside em um equívoco básico na compreensão da vontade como se o anseio o instinto o ímpeto fossem a essência da vontade ao passo que o querer é precisamente um senhor dos anseios aquilo que estipula para eles o seu modo e a sua medida23 Pois querer não é o mesmo que desejar esforçarse por algo ou ter necessidade de algo distinguese de tudo isso através do elemento do Comando Que se comande algo isto é inerente ao querer24 Heidegger comenta Não há expressão mais característica em Nietzsche do que querer é comandar inerente ao querer está o pensamento que comanda25 E não menos característico é que este pensamento que comanda só muito raramente dirigese ao domínio dos outros o comando e a obediência ocorrem ambos no espírito de um modo estranhamente semelhante ao da concepção de Santo Agostinho sobre a qual Nietzsche certamente nada sabia Ele explica em detalhes em Para além do bem e do mal Aquele que quer dá ordens a alguma coisa que nele obedece O aspecto mais estranho deste fenômeno múltiplo a que chamamos de Vontade é que só tenhamos uma palavra para ele e em especial que tenhamos só uma palavra para o fato de que somos em cada caso particular ao mesmo tempo quem dá as ordens e quem as obedece ao obedecermos experimentamos os sentimentos de coerção ânsia pressão resistência que normalmente começaram a se manifestar imediatamente após o ato de querer por estarmos entretanto no comando experimentamos uma sensação de prazer e isso ainda mais intensamente porque estamos habituados a superar a dicotomia pela noção do Eu o Ego e isso de um modo que tomamos como certa em nós a obediência e que identificamos querer e executar querer e agir grifo nosso Essa operação da vontade existente apenas em nosso espírito supera a dualidade espiritual do doisemum que veio a tomarse uma batalha entre um que comanda e um que supostamente deve obedecer pela identificação do Eu como um todo com a parte que comanda e antecipando que a outra a parte que resiste obedecerá e fará o que lhe disserem para fazer Aquilo que é chamado de liberdade da vontade é essencialmente uma superioridade passional em relação a alguém que deve obedecer Eu sou livre ele deve obedecer a consciência disto é a própria vontade 26 Não esperaríamos que Nietzsche acreditasse na graça divina como o poder de cura da dualidade da Vontade O inesperado na descrição acima é que ele tenha detectado na consciência da luta uma espécie de truque do Eu que o capacita para escapar ao conflito identificandose com a parte que comanda e para fechar os olhos por assim dizer para os sentimentos desagradáveis e paralisantes de se estar sob coerção e portanto sempre prestes a resistir Nietzsche com freqüência denuncia este sentimento de superioridade como uma ilusão ainda que como uma ilusão saudável Em outras passagens ele explica a estranheza do fenômeno como um todo chamandoo de uma oscilação da vontade entre sim e não mas mantém se preso ao sentimento da superioridade do Eu identificando aoscilação com uma espécie de vaivém entre o prazer e a dor O prazer diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus é claramente o júbilo antecipado do euposso inerente ao próprio ato de querer independente da performance do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem independente de exaltação ou de platéia Em Nietzsche o que importa é que ele inclui os sentimentos negativos de servidão de estar sob coação e de resistência ou ressentimento entre os obstáculos necessários sem os quais a Vontade nem sequer conhecería seu próprio poder Somente ao vencer uma resistência interna é que a Vontade toma consciência de sua gênese ela não brotou para adquirir poder o poder é sua própria fonte Novamente em Para além do bem e do mal Liberdade da vontade é a expressão para a condição prazerosa múltipla daquele que quer e que está no comando e simultaneamente se vê como o mesmo que executa o comando desfrutando enquanto tal o triunfo sobre a resistência mas de posse do juízo de que é sua própria vontade que está superando a resistência Dessa maneira aquele que quer acrescenta os sentimentos prazerosos da execução ao sentimento prazeroso que tem como Comandante27 Essa descrição que toma o doisemum da Vontade o Eu resistente e o Eu triunfante como a fonte do poder da Vontade deve sua plausibilidade à introdução inesperada do princípio de dor e de prazer na discussão colocar prazer e desprazer como fatos principiais28 Assim como a simples ausência de dor jamais pode causar o prazer também a Vontade senão tivesse que superar a resistência jamais poderia alcançar poder Aqui seguindo involuntariamente as antigas filosofias hedonistas em vez do cálculo contemporâneo do prazerdor Nietzsche baseiase em sua descrição na experiência de alívio da dor não na mera ausência de dor ou na mera presença de prazer A intensidade da sensação de alívio só se compara à intensidade da sensação de dor e é sempre maior do que qualquer prazer desligado da dor O prazer de beber o vinho mais delicioso não pode se comparar em intensidade ao prazer que um homem com uma sede desesperada sente ao tomar seu primeiro gole dágua Neste sentido há uma clara distinção entre o júbilo independente e desligado das necessidades e desejos e o prazer ânsia sensual de uma criatura cujo corpo está vivo a ponto de necessitar algo que não tem O júbilo ao que parece só pode ser experimentado quando se está completamente livre de dor e desejo isto é ele fica de fora do cálculo dor prazer que Nietzsche desprezava por seu inerente utilitarismo O júbilo aquilo que Nietzsche chamou de princípio dionisíaco vem da abundância e é verdade que todo júbilo é uma espécie de luxúria ele nos domina e só podemos ceder a ele depois que as necessidades da vida tenham sido satisfeitas Mas isso não nega a existência de um elemento sensual no júbilo abundância é ainda abundância de vida e o princípio dionisíaco em sua ânsia sensual tornase destruição justamente porque a abundância pode se permitir a destruição Neste aspecto não tem a Vontade a mais íntima afinidade possível com o princípio da vida que continuamente produz e destrói Assim Nietzsche define o dionisíaco como a identificação temporária com o princípio de vida incluindose a volúpia do mártir como o Júbilo na destruição e na visão de sua progressiva ruína Júbilo no que está por vir e reside no futuro que triunfa sobre coisas existentes por mais que sejam boas29 A mudança nietzscheana do euquero para o euposso antecipado que nega o euqueroenãoposso de São Paulo negando assim toda a ética cristã está baseada em um Sim irrestrito à Vida isto é em uma elevação da Vida tal como ela é experimentada fora de todas as atividades do espírito à posição de valor supremo segundo o qual tudo o mais deve ser avaliado Isso é possível e razoável porque há com efeito um euposso inerente a cada euquero como vimos em nossa discussão sobre Duns Scotus Voluntas estpotentia quia ipsa alquidpotest A Vontade é um poder porque consegue alcançar algo30 A Vontade nietzscheana entretanto não se limita por seu próprio euposso inerente por exemplo ela pode querer a eternidade e Nietzsche anseia por um futuro que produzirá o superhomem isto é uma nova espécie humana forte o suficiente para viver no pensamento de um eterno retomo Produzimos o pensamento mais pesado produzamos agora o ser para quem isso será fácil e venturosol Para celebrar o futuro não o passado Para cantar dichten o mito do futuro31 A idéia da Vida como o mais alto valor não pode é claro ser demonstrada é uma simples hipótese o pressuposto do senso comum de que a vontade é livre porque sem esse pressuposto como se tem dito repetidas vezes nenhum preceito de natureza moral religiosa ou jurídica poderia chegar a fazer sentido Ela é contrariada pela hipótese científica segundo a qual como apontou Kant de maneira notável todo ato no momento em que entra no mundo cai em uma rede de causas aparecendo assim em uma seqüência de ocorrências explicáveis somente no contexto da causalidade Para Nietzsche o decisivo é que a hipótese do senso comum constitui um sentimento dominante do qual não podemos nos livrar mesmo se as hipóteses científicas fossem demonstradas32 Mas a identificação da vontade com a vida a idéia de que nosso ímpeto de viver e nossa vontade de querer são ao final a mesma coisa tem outras conseqüências talvez mais sérias para o conceito nietzscheano de poder Isso pode ficar mais claro quando consideramos as metáforasguia em A gaia ciência uma relacionada com a vida outra que introduz o tema do eterno retorno a idéia básica do Zaratustra como ele a designou em Ecce Homo e também a idéia básica de seus aforismos póstumos reunidos sob o título enganador e nãonietzscheano de A vontade de potência A primeira aparece sob o título de Vontade e onda Wille und Welle Com que avidez aproximase esta onda como se estivesse à procura de algo Com que pressa terrível ela rasteja até o fundo das ranhuras mais secretas deste rochedo labiríntico Parece que há ali escondido algo de valor de infinito valor e agora volta um pouco mais lentamente mas ainda branca de emoção estará desapontada Terá encontrado aquilo que procurava Estará fingindo estar desapontada Mas já se aproxima outra onda ainda mais ávida e selvagem do que a primeira e sua alma também parece estar cheia de segredos e de gana para desenterrar tesouros E assim que vivem as ondas é assim que vivemos nós também nós que queremos Lançaivos como quiserdes impetuosas brami de prazer e de maldade ou mergulhai de novo e lançai vossa infinita crina branca de espuma e de musgo sobre elas Tudo aprovo pois tudo vos serve tão bem e tenho uma disposição tão boa para convosco para tudo Pois conheçovos e também a vosso segredo conheço vossa raça Vós e eu não somos da mesma raça Vós e eu não temos o mesmo segredo grifos nossos33 Aqui a princípio é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita uma semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes34 A relação entre as ondas e o mar do qual elas se erguem sem intenção ou meta criando uma euforia enorme e sem propósito assemelhase e portanto ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da alma parecendo estar sempre em busca de algo até que se acalma ainda que sem se extinguir sempre pronta para um novo levante A Vontade aprecia o querer assim como o oceano aprecia as ondas pois a não querer o homem prefere ainda querer o nada35 Em um exame mais detido entretanto parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica Aquelas metáforas como vimos eram sempre irreversíveis olhando para as tempestades no oceano nos lembraríamos de nossas emoções interiores mas aquelas emoções nada nos informavam sobre o mar Na metáfora nietzscheana as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham para Nietzsche elas são idênticas e o segredo do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento desta identidade Vontade e Onda são a mesma coisa e podese mesmo ficar tentado a supor que as experiências do ego volitivo fizeram com que Nietzsche descobrisse o turbilhão do mar Em outras palavras as aparências do mundo transformaramse em um mero símbolo das experiências interiores com a conseqüência de que a metáfora originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências entra em colapso O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos objetos que confrontam a vida humana mas sim por uma adesão sectária ao aparato da alma humana cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia Há inúmeras passagens em Nietzsche que apontam para este antropomorfismo fundamental Para citar apenas um exemplo Todas as pressuposições da teoria mecanicista que em Nietzsche é idêntica às hipóteses científicas matéria átomo gravidade pressão e forçanão são fatosemsi mas sim interpretações feitas com o auxílio de ficções físicas36 A ciência moderna chegou a suspeitas estranhamente semelhantes nas reflexões especulativas sobre seus próprios resultados os astrofísicos de hoje devem considerar a possibilidade de que seu mundo exterior seja somente o nosso mundo interior virado ao avesso Lewis Mumford Passemos agora à nossa segunda história que não é na verdade uma metáfora ou um símbolo mas uma parábola a história de um experimento de pensamento que Nietzsche intitulou Das grõsste Schwergewichf o pensamento que mais pesaria sobre nós E se algum dia ou noite um demônio viesse rondarte em tua mais solitária solidão e te dissesse Esta vida tal como a vives agora terás de viver mais uma vez e mais inúmeras vezes e nada de novo haverá nela mas a menor dor e o menor júbilo o menor pensamento e o menor suspiro e cada coisa indizivelmente pequena ou grande em tua vida terá de voltar a ti todas na mesma sucessão e sequência até mesmo esta aranha e este luar entre as árvores e até mesmo este momento e eu mesmo A eterna ampulheta da existência será invertida sem descanso e tu junto com ela poeira das poeiras Não te lançarias por terra e rangerías os dentes e amaldiçoarias o demônio que assim te falou A menos que tenhas vivido um momento formidável em que lhe responderías Es um deus e eu jamais ouvi nada mais divino Se este pensamento se apossasse de ti modificaria o teu modo de ser ou talvez te esmagasse A questão em cada uma e em todas as coisas Desejas isto uma vez mais e inúmeras vezes mais pesaria sobre tuas ações como o maior dos pesos Ou quão bem disposto estarias de transformar a tie a vida de modo a não desejar outra coisa com mais fervor além desta suprema confirmação final grifos nossos37 Nenhuma versão posterior da idéia de eterno retomo mostra mais inequivocamente sua principal característica a saber a de que não é uma teoria nem doutrina e nem mesmo uma hipótese mas um simples experimento de pensamento Como tal e implicando um retomo experimental ao conceito cíclico de tempo da Antigüidade parece estar em flagrante contradição com qualquer noção possível de Vontade cujos projetos sempre pressupõem o tempo retilíneo e um futuro que é ignorado e portanto aberto a mudanças No contexto dos enunciados do próprio Nietzsche sobre a Vontade e da mudança que ele postulou de um euquero para um euposso antecipado a única afinidade entre as duas histórias parece estar no momento formidável de transbordante benevolência o estar com uma disposição boa com relação à Vida que obviamente deu origem ao pensamento em cada caso Visto em termos de sua noção de Vontade este seria o momento em que o sentimento do euposso está no seu apogeu espalhando um sentimento de força Kraftgefiihl generalizado Esta emoção como observa Nietzsche surge em nós com frequência antes mesmo do ato ocasionada pela idéia daquilo que deve ser feito o que acontece quando vemos um inimigo ou um obstáculo em relação aos quais nos sentimos em iguais condições Para a vontade operante esta emoção tem pouca importância é sempre um sentimento acessório ao qual erradamente atribuímos a força de ação a qualidade de um agente causativo Nossa crença na causalidade é uma crença em força e efeito uma transferência de nossa experiência na qual identificamos a força e o sentimento da força38 A famosa descoberta de Hume de que a relação entre causa e efeito está na crença engendrada pelo costume e pela associação e não no conhecimento foi feita novamente e com muitas variantes por Nietzsche que ignorava ter tido um predecessor Seu exame é mais penetrante e mais crítico porque no lugar do cálculo de utilidades de Hume e de seu sentimento moral ele postula a experiência de um euquero a que se segue um efeito isto é usa o fato de que o homem tem consciência de si mesmo como um agente causativo mesmo antes de ter feito qualquer coisa Mas Nietzsche não acredita que isto tome a Vontade menos irrelevante para Nietzsche assim como para Hume a vontade livre é uma ilusão inerente à natureza humana uma ilusão de que a filosofia um exame crítico de nossas faculdades irá nos curar Só que para Nietzsche as consequências morais dessa cura são decididamente mais sérias Se já não podemos atribuir o valor de uma ação à intenção o propósito que nos levou a agir ou a viver se a ausência de intenção e propósito nos acontecimentos vem cada vez mais para o primeiro plano da consciência fica inevitável concluir que nada tem qualquer significado pois essa frase melancólica significa Todo significado está na intenção e se a intenção falta de todo então falta de todo também o significado Logo Por que um propósito não poderia ser um epifenômeno na série de mudanças de forças efetivas que produz a ação intencionada uma pálida imagem em nossa consciência um indício de ocorrências e não sua causa Mas com isso teremos criticado a vontade em si não será uma ilusão tomar por causa aquilo que surge para a consciência como um ato da vontade grifo nosso39 O fato de essa passagem ser contemporânea das passagens sobre o Eterno Retomo justifica que indaguemos se e como esses dois pensamentos podem ser se não conciliados pelo menos concebidos de um modo que não venham a entrar em choque frontal Primeiro comentemos brevemente alguns enunciados importantes de Nietzsche sobre a Vontade que não são especulativos mas sim descritivos Há em primeiro lugar o que parece óbvio mas que nunca foi apontado antes o fato de que a Vontade não pode querer retroativamenie não pode parar a roda do tempo Esta é a versão de Nietzsche para o eu queroenãoposso pois é precisamente este querer retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar Desta impotência Nietzsche retira todo o mal humano o rancor a sede de vingança castigamos porque não podemos desfazer o que foi feito a sede de poder para dominar os outros A essa genealogia da moral poderiamos acrescentar a impotência da Vontade que persuade o homem a preferir olhar para trás relembrando e pensando porque para o olhar retrospectivo tudo o que é parece ser necessário O repúdio da Vontade libera o homem de uma responsabilidade que seria intolerável caso nada do que foi feito pudesse ser desfeito Em todo caso foi provavelmente o choque da Vontade com o passado que fez com que Nietzsche fizesse experimentos com o Eterno Retorno Em segundo lugar o conceito de vontadedepotência é redundante a Vontade gera poder para o querer logo a vontade que tem como objetivo a humildade não é menos poderosa do que aquela cujo objetivo é mandar nos outros O ato de vontade em si já é um ato de potência uma indicação de força o sentimento de força Kraftgefühl que vai além do que se requer para satisfazer as necessidades e demandas da vida cotidiana Se há uma contradição simples nos experimentos de pensamento de Nietzsche é a contradição entre a impotência factual da Vontade ela quer mas não pode querer retroativamente e este sentimento de força Em terceiro lugar a Vontade seja quando é vontade retroativa e percebe sua impotência seja quando é vontade projetiva e percebe sua força transcende a simples gratuidade giveness do mundo Tal transcendência é espontânea e corresponde à avassaladora superabundância de Vida O objetivo autêntico da Vontade é portanto a abundância Com as palavras liberdade da Vontade falamos desse sentimento de excesso de força e o sentimento é mais do que uma simples ilusão da consciência porque corresponde de fato à própria superabundância de vida Seria portanto possível entender toda a Vida como Vontadedepotência Somente onde há vida há também vontade não vontade de vida mas vontade de potência41 Pois seria bem possível explicar a alimentação como a conseqüência de apropriação insaciável de vontade de potência e a procriação como a desagregação que sobrevêm quando as células dominantes são incapazes de organizar aquilo que foi apropriado41 Esse transcender que é inerente à vontade Nietzsche chama de Superação Ele é possível por causa da abundância a atividade em si é vista como criatividade e a virtude que corresponde a todo esse complexo de idéias é a Generosidade a superação da sede de vingança É a extravagância e a inconseqüência Übermut de uma vontade transbordante e esbanjadora que abre um futuro para além de todo o passado e de todo o presente O Excedente segundo Nietzsche e também segundo Marx o simples fato de um excedente de força de trabalho que resta depois que se satisfazem os requisitos para a preservação da vida individual e da sobrevivência da espécie constitui a conditioperquam de toda cultura O tão falado superhomem é homem à medida que é capaz de transcender de superar a si mesmo Mas essa superação não devemos esquecer é um exercício meramente espiritual recriar todo o foi assim em um assim eu quis que fosse somente a isto eu chamaria de redenção42 Pois O homem busca um mundo que não seja auto contraditório nem enganador que não mude um mundo verdadeiro O homem assim como ele é quando é honesto é um niilista isto é um homem que julga o mundo como ele é e como não deveria ser um homem que julga e o mundo como deveria ser e como não existe Para superar o niilismo é preciso a força de reversão dos valores e de exaltação do mundo aparente como o único mundo e dizer que esse valores são bons43 O necessário claramente não é mudar o mundo ou os homens mas sim o modo que estes têm de avaliálo seu modo em outras palavras de pensar e refletir sobre ee Nas palavras de Nietzsche o que deve ser superado são os filósofos aqueles cuja vida é um experimento de cognição44 devese ensinálos a lidar com as coisas Se Nietzsche tivesse desenvolvido esses pensamentos em uma filosofia sistemática teria criado uma espécie de doutrina epitetiana amplamente enriquecida ensinando mais uma vez a arte de viver a própria vida cujo truque psicológico poderoso consiste em querer que aconteça o que de qualquer modo acontece45 Mas o fato é que Nietzsche que conhecia e apreciava muito Epiteto não parou na descoberta da onipotência espiritual da Vontade Engajouse em uma construção do mundo dado que fizesse sentido que fosse uma morada adequada para uma criatura cuja força da vontade é grande o suficiente para abrir mão do significado das coisas que consegue resistir vivendo em um mundo sem sentido46 Eterno Retomo é o termo para esse pensamento final e redentor à medida que proclama a Inocência de todo Devir die Unschulddes Werdens e com isso sua inerente falta de metas e de propósitos sua liberdade da culpa e da responsabilidade A Inocência do Devir e o Eterno Retomo não são retirados de uma faculdade do espírito têm raiz no fato indiscutível de que nós somos realmente lançados no mundo Eleidegger de que ninguém nos perguntou se queríamos estar aqui ou se queríamos ser como somos Pois pelo que sabemos ou podemos algum dia saber ninguém é absolutamente responsável pelo fato de o homem estar aí por ele ser dessa ou daquela maneira ou por estar nestas circunstâncias e neste ambiente Logo o insight básico sobre a essência do Ser é que absolutamente não há fatos morais um insight que Nietzsche como ele mesmo disse foi o primeiro a formular Suas conseqüências são enormes não só porque o Cristianismo com seu conceito de uma ordem moral do mundo corrompe a inocência do devir por meio do castigo e da culpa e portanto pode ser visto como uma metafísica do carrasco mas também porque com a eliminação do propósito e da intenção de alguém que possa ser responsabilizado a própria causalidade é eliminada nada pode ser recuperado como causa uma vez que a causa prima é eliminada47 Com a eliminação da causa e do efeito não faz mais sentido a estrutura linear do Tempo cujo passado é sempre entendido como causa do presente e cujo presente é o tempo verbal da intenção e da preparação dos projetos para o futuro e cujo futuro é o resultado de ambos Além disso esse constructo temporal desintegrase sob o peso do insight não menos factual de que Tudo passa que o futuro traz apenas aquilo que terá sido e portanto que tudo o que é merece passar48 Assim como cada euquero em sua identificação com a parte que comanda no doisemum antecipa triunfalmente um euposso também a expectativa a disposição com a qual a Vontade afeta a alma contém em si a melancolia de um eisto tambémterásido a previsão do passado do futuro que reafirma o Passado como a forma verbal dominante do Tempo A única possibilidade de se redimir deste Passado devorador é o pensamento de que tudo o que passa retoma isto é um constructo cíclico do tempo que faz com que o Ser oscile dentro de si mesmo E a própria vida não é construída assim um dia não se segue ao outro estação após estação repetindose em uma rotina eterna Essa visão de mundo não é muito mais verdadeira para a realidade como a conhecemos do que a visão de mundo dos filósofos Se o movimento do mundo tivesse como meta um estado final esse estado teria sido alcançado O fato único fundamental entretanto é que ele não tem como meta um estado final e toda filosofia e toda hipótese científica que precisa de tal estado final é refutada por esse fato fundamental Busco uma concepção de mundo que leve esse fato em conta O Devir tem que ser explicado sem que se recorra a intenções finais o Devir tem que aparecer justificado a cada momento ou aparecer como incapaz de ser avaliado o que dá no mesmo o presente não deve absolutamente ser justificado por referência ao futuro e nem o passado com referência ao presente Nietzsche resume então 10 Devir não ambiciona um estado final não flui para ser 2 O Devir não é meramente um estado aparente talvez o mundo dos seres seja uma mera aparência 3 O Devir tem valor igual a todo momento em outras palavras não tem absolutamente valor algum pois falta qualquer coisa com relação à qual se possa medilo O valor total do mundo não pode ser medido1 Na confusão de aforismos observações e experimentos de pensamento que constituem a coletânea póstuma intitulada Vontade de potência a importância desta última passagem que citei um tanto extensamente é difícil de ser definida A julgar por sua evidência interna tendo a pensála como a palavra final de Nietzsche sobre o assunto e essa última palavra significa claramente um repúdio à Vontade e ao ego volitivo cujas experiências internas levaram os homens pensantes ao engano de supor que há algo como causa e efeito intenção e meta na realidade O superhomem é aquele que supera essas falácias aquele cujos insights são fortes o bastante para resistir às urgências da Vontade ou para alterar o seu rumo redimila de todas as oscilações acalmála levandoa àquela imobilidade em que desviar o olhar é a única negação50 porque nada resta senão almejar ser aquele que diz sim bendizer tudo o que é por ser bendizer e dizer Amém51 15 O querernãoquerer de Heidegger Nem a palavra vontade nem a palavra pensamento aparecem no trabalho inicial de Heidegger antes da tão falada reviravolta Kehre ou mudança radical que se deu em meados dos anos trinta e o nome de Nietzsche nunca é mencionado em Ser e Tempo52 Portanto a posição de Heidegger sobre a faculdade da Vontade que culmina com sua insistência passional em querer não querer que é claro nada tem a ver com a oscilação da Vontade entre velle e nolle querer e nãoquerer surge diretamente de sua investigação extremamente cuidadosa da obra de Nietzsche a que ele volta depois de 1940 repetidas vezes Ainda assim os dois volumes do seu Nietzsche que foram publicados em 1961 são em certos aspectos os mais expressivos contém conjuntos de conferências dadas em cursos entre os anos 1936 e 1940 isto é exatamente nos anos em que a reviravolta realmente ocorreu e que ainda não tinha portanto sido submetida às interpretações do próprio Heidegger Se ao ler esses dois volumes ignoramos as reinterpretações posteriores de Heidegger que se deram depois de Nietzsche podemos ficar tentados a datar a reviravolta como um evento autobiográfico concreto precisamente entre o volume I e o volume II pois a bem da verdade o primeiro volume explica Nietzsche aceitandoo enquanto c segundo é escrito em um tom suavizado mas inconfundivelmente polêmico Essa mudança importante de disposição foi observada ao que eu saiba somente por J L Metha em seu excelente livro sobre A filosofia de Martin Heidegger52 e de maneira menos decisiva por Walter Schulz A relevância dessa datação parece evidente é contra a vontadedepotência que a reviravolta se dirige original e primordialmente No entender de Heidegger a vontade de governar e de dominar é uma espécie de pecado original do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com seu breve passado no movimento nazista Quando mais tarde anunciou publicamente pela primeira vez em Sobre o humanismo í 94954 que tinha havido uma reviravolta na verdade em um sentido mais amplo ele estivera remodelando durante anos seus próprios pontos de vista sobre toda a história dos gregos até o presente concentrandose especialmente não na Vontade mas na relação entre Ser e Homem Originalmente durante aqueles anos a reviravolta tinha sido um voltarse contra a autoafirmação do homem como proclamou no famoso discurso pronunciado quando se tomou reitor da Universidade de Freiburg em 193355 encarnada simbolicamente em Prometeu o primeiro filósofo uma figura que nunca mais é mencionada em sua obra Agora voltavase contra o suposto subjetivismo de Ser e Tempo e o interesse central do livro na existência do homem em seu modo de ser Grosso modo se Heidegger sempre estivera interessado na questão do significado do Ser seu objetivo inicial provisório tinha sido analisar o ser do homem como a única entidade que pode fazer a pergunta porque ela toca o seu próprio ser logo quando o homem levanta a questão O que é o Ser ele é lançado de volta a si mesmo Mas quando lançado de volta a si mesmo ele levanta a questão Quem é o homem é o Ser ao contrário que avança para o primeiro plano é o Ser agora emergindo que convida o homem a pensar Heidegger foi forçado a abandonar sua abordagem original de Ser e Tempo em vez de procurar abordar o Ser através da abertura e da transcendência inerentes ao homem ele passa a tentar definir o homem em termos de Ser56 E a primeira exigência que o Ser faz ao homem é que pense bem sobre a diferença ontológica isto é a diferença entre o puro fato de ser zsness dos seres e o ser desse fato de ser zsMcyy ele mesmo o Ser do Ser Como o próprio Heidegger enuncia em Sobre o humanismo para falar simplesmente pensamento é pensamento do Ser onde o do tem duplo sentido O pensamento é do Ser à medida que dandose através do Ser pertence ao Ser Ao mesmo tempo é pensamento do Ser à medida que pertencendo ao Ser escuta o Ser57 A escuta do homem transforma o chamado silencioso do Ser em fala e a linguagem é a linguagem do Ser assim como as nuvens são as nuvens do céu58 A reviravolta neste sentido tem duas conseqüências importantes que não têm quase nada a ver com o repúdio pela Vontade Primeiro o Pensamento não é mais subjetivo Sem dúvida sem ser pensado pelo homem o Ser nunca se manifestaria ele depende do homem que lhe oferece uma morada a Linguagem é a morada do Ser Mas o que o homem pensa não surge de sua própria espontaneidade ou criatividade é a resposta obediente ao comando do Ser Segundo os entes em que o mundo das aparências se dá para o homem distraem o homem do Ser que se esconde por trás deles assim como as árvores escondem a floresta que no entanto vista de fora é constituída por elas Em outras palavras o Esquecimento do Ser Seinsvergessenheit pertence à própria natureza da relação entre Homem e Ser Heidegger agora não se satisfaz mais em eliminar o ego volitivo em favor do ego pensante sustentando por exemplo como faz ainda em Nietzsche que a insistência da Vontade no futuro força o homem ao esquecimento do passado que rouba do pensamento a sua atividade mais importante que é andenken lembrança A Vontade nunca possuiu o começo ela o deixou e o abandonou essencialmente através do esquecimento59 Agora ele dessubjetiviza o pensamento em si roubao de seu Sujeito o homem como ser pensante e transformao em uma função do Ser no qual reside toda eficácia fluindo daí em direção ao ente das Seiende determinando assim o curso real do mundo O Pensamento por sua vez deixase chamar pelo Ser que é o significado real do que acontece através dos entes para dar expressão à verdade do Ser60 Esta reinterpretação da reviravolta mais do que a reviravolta em si determina o desenvolvimento inteiro da filosofia final de Heidegger Contida de forma resumida na Brief über den Humanismus que interpreta Ser e Tempo como uma antecipação necessária e uma preparação para a reviravolta ela centrase na noção de que pensar a saber dizer a palavra não dita do Ser é o autêntico fazer Turi do homem é aí que a História do Ser Seinsgeschichte que transcende todos os atos meramente humanos e é superior a eles se passa na verdade Este pensar é recordação posto que ouve a voz do Ser nas expressões dos grandes filósofos do passado mas o passado vem a ele da direção oposta de modo que a descida Absteig ao passado coincida com a expectativa paciente e pensativa pela chegada do futuro o avenant1 Começamos com a reviravolta original Mesmo no primeiro volume de Nietzsche em que Heidegger segue cuidadosamente as caracterizações descritivas da Vontade de Nietzsche ele utiliza o que mais tarde aparece como diferença ontológica a distinção entre o Ser do Ser e o fato de ser isziess Seiendheit dos entes Segundo essa interpretação a vontadede potência significa o fato de ser Aness o modo principal em que tudo o que é realmente é Nesse aspecto a Vontade é entendida como uma simples função do processo vital o mundo vem a existir através da continuação do processo vital62 ao passo que o Eterno Retomo é visto como o termo de Nietzsche para o Ser do Ser através do qual a natureza transitória do tempo é eliminada e o Devir o meio para a finalidade da vontadede potência recebe a marca do Ser O Eterno Retorno é o pensamento mais afirmativo porque é a negação da negação Nessa perspectiva a vontadede potência não é mais do que uma necessidade biológica que mantém a roda girando e é transcendida por uma Vontade que vai além do mero instinto de vida ao dizer Sim para a Vida Na visão de Nietzsche como vimos O Devir não tem objetivo não termina no Ser O Devir tem valor igual a cada momento em outras palavras não tem valor algum pois não há nada a partir de cujo valor ele pudesse ser medido e a respeito de que a palavra valor fizesse qualquer sentido63 Na visão de Heidegger a verdadeira contradição em Nietzsche não se deve à aparente oposição entre a vontadedepotência que tendo um objetivo final pressupõe um conceito retilíneo de tempo e o Eterno Retomo com seu conceito cíclico de tempo Reside ao invés disso na transvaloração de valores nietzscheana que segundo o próprio Nietzsche faria sentido somente no esquema da vontadedepotência mas que ele via no entanto como a conseqüência final do pensamento do Eterno Retomo Em outras palavras foi em última análise a vontadedepotência em si uma postuladora de valores que determinou a filosofia da Vontade de Nietzsche A vontadedepotência avalia ao final um Devir eternamente recorrente como a única saída para a falta de sentido da vida e do mundo e essa transposição não só é um retomo à subjetividade cuja marca distintiva é o pensamento valorativo64 mas também sofre da mesma falta de radicalismo característica do platonismo invertido de Nietzsche que colocando as coisas de cabeça para baixo ou de baixo para cima mantém intacto o quadro categorial em que essas inversões podem funcionar A análise estritamente fenomenológica da Vontade feita por Heidegger no volume I de Nietzsche segue cuidadosamente suas análises anteriores do eu em Ser e tempo só que a Vontade toma o lugar atribuído ao Cuidado no trabalho anterior Lemos A autoobservação e o autoexame nunca trazem à luz o eu ou mostram como nós mesmos somos Mas ao querer e também ao nãoquerer fazemos exatamente isso aparecemos em uma luz que é em si iluminada por um ato de vontade Querer sempre significa trazerse a si mesmo Querendo encontramonos com quem somos autenticamente65 Logo querer é essencialmente querer o próprio eu mas não um eu dado que é aquilo que é mas o eu que quer tomarse aquilo que é A Vontade de fugir do próprio eu é na verdade um ato de não querer66 Veremos mais adiante que esse retorno ao conceito de eu de SereTempo não deixa de ter importância para a reviravolta ou mudança de disposição manifesta no segundo volume No segundo volume há uma mudança definitiva de ênfase do pensamento do Eterno Retomo para uma interpretação da Vontade quase que exclusi vamente como vontadedepotência no sentido específico de uma vontade de governar e dominar em lugar de uma expressão do instinto de vida A noção do volume I de que todo ato de vontade exatamente porque é um comando gera uma contravontade Widerwillen isto é a idéia de um obstáculo necessário em cada ato de vontade que deve primeiro superar um nãoquerer é agora generalizada para uma característica inerente a todo ato de fazer Para tim carpinteiro por exemplo a madeira consiste no obstáculo contra o qual ele trabalha quando faz com que ela se tome uma mesa67 Isso também é generalizado todo objeto exatamente porque é um objeto e não simplesmente uma coisa independente da avaliação do cálculo e do fazer humanos está aí para ser superado por um sujeito A vontadedepotência é a culminância da subjetivização da Era Moderna todas as faculdades humanas estão sob o comando da Vontade A Vontade é querer ser o senhor É fundamental e exclusivamente comando No comando aquele que dá o comando também o obedece Assim o eu que comanda é seu próprio superior68 Aqui o conceito da Vontade perde de fato as características biológicas que têm papel tão importante na compreensão de Nietzsche da Vontade como simples sintoma do instinto de vida Está na natureza do poder e não mais na natureza da superabundância e do excesso da vida espalharse c expandirse O poder existe somente à medida que ele mesmo aumente e à medida que a vontadedepotência comande este aumento A Vontade instiga a si mesma dando ordens não é a vida mas a vontadedepotência a essência do poder Essa essência e nunca uma quantidade limitada de poder continua sendo a meta da Vontade uma vez que a Vontade pode existir somente na relação com o poder Eis por que a Vontade necessariamente precisa dessa meta É também a raão pela qual um terror do vazio permeia essencialmente toda vontade Do ponto de vista da Vontade o nada é a extinção da Vontade no deixar de querer Logo citando Nietzsche nossa vontade prefere querer o nada a não querer Querer o nada aqui significa querer a negação a destruição a devastação grifos nossos69 A palavra final de Heidegger sobre essa faculdade diz respeito à destrutividade da Vontade assim como a palavra final de Nietzsche dizia respeito à sua criatividade e superabundância Tal destrutividade manifestase na obsessão da Vontade pelo futuro que leva necessariamente o homem ao esquecimento Para que possa querer o futuro no sentido de ser senhor do futuro o homem deve esquecer e finalmente destruir o passado Da descoberta de Nietzsche de que a Vontade não pode querer retroativamente seguese não só a frustração e o ressentimento mas também a vontade positiva e ativa de aniquilar o que foi E já que tudo o que é real veio a ser isto é incorpora um passado essa destrutividade relacionase em última instância a tudo o que é Heidegger sintetiza isso em What is Called Thinking Frente àquilo que foi a vontade não tem mais nada a dizer o foi resiste ao querer da Vontade o foi reage e é contrário à Vontade Mas por meio desta reação o contrário cria raízes dentro da própria vontade A vontade padece disso ou seja a Vontade padece de si mesma do que passou do passado Mas o que passou originase do passar Assim a Vontade quer ela mesma o passar A reação da Vontade contra todo foise mostrase como a vontade de fazer com que tudo passe de querer portanto que tudo mereça passar A reação que surge na Vontade é então a vontade contra tudo o que passa tudo isto é tudo o que vem a ser a partir de um vira ser e que perdura grifos nossos70 Nessa compreensão radical de Nietzsche a Vontade é essencialmente destrutiva e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe Seguindo essa interpretação a própria natureza da tecnologia é a vontade de querer ou seja de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo cujo fim natural só pode ser a destruição total A alternativa a esse jugo é deixarser e o deixarser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser A disposição que permeia o deixarser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer mais tarde em sua reinterpretação da reviravolta Heidegger a chama de Gelassenheit uma serenidade que corresponde ao deixar ser e que nos prepara para um pensamento que não é uma vontade71 Esse pensamento está além da distinção entre atividade e passividade porque está além do domínio da Vontade isto é além da categoria da causalidade que Heidegger concordando com Nietzsche deriva da experiência que o ego volitivo tem de produzir efeitos e portanto de uma ilusão produzida pela consciência O insight segundo o qual pensar e querer não são somente duas faculdades do ser enigmático chamado homem mas são também opostos ocorreu tanto a Nietzsche quanto a Heidegger E a versão de ambos do conflito fatal que se processa quando o doisemum da consciência realizado no diálogo sem som de mim comigo mesmo transforma sua harmonia e amizade originais em um conflito contínuo entre vontade e contravontade entre comando e resistência Mas encontramos testemunho deste conflito por toda a história desta faculdade A diferença entre a posição de Heidegger e a de seus predecessores reside no seguinte o espírito do homem chamado pelo Ser para transpor para a linguagem a verdade do Ser está sujeito a uma História do Ser Seinsgeschichte e essa História determina se os homens respondem ao Ser em termos de querer ou em termos de pensar É a História do Ser funcionando por trás dos homens de ação que como o Espírito do Mundo de Hegel determina os destinos humanos e revelase ao ego pensante caso este último consiga superar a vontade e realizar o deixarser À primeira vista isso pode parecer mais uma versão talvez um pouco mais sofisticada da astúcia da razão de Hegel da astúcia da natureza de Kant da mão invisível de Adam Smith ou da divina Providência todas elas forças invisíveis que dirigem os altos e baixos dos assuntos humanos para um objetivo predeterminado a liberdade em Hegel a paz eterna em Kant a harmonia entre os interesses contraditórios de uma economia de mercado em Adam Smith a salvação final na teologia cristã A noção em si a saber a de que as ações dos homens são inexplicáveis em si mesmas e que só podem ser entendidas como obra de algum propósito oculto ou agente oculto é muito mais velha Já Platão pôde imaginar que cada um de nós criaturas vivas é um fantoche feito pelos deuses talvez como um brinquedo talvez com algum propósito mais sério e que aquilo que tomamos como causas a busca do prazer e o afastamento da dor não são mais do que as cordas pelas quais somos postos para funcionar72 Nem sequer precisamos de uma demonstração das influências históricas para compreendermos a persistência obstinada da idéia desde a ficção etérea de Platão até o consrMcíoespiritual de Hegelque resultou de um repensar sem precedentes sobre a história do mundo que eliminava deliberadamente do registro factual tudo o que é meramente factual por ser acidental ou sem importância A simples verdade é que nenhum homem pode agir sozinho embora seus motivos para agir possam ser certos projetos desejos paixões e objetivos pessoais Tampouco podemos jamais realizar qualquer coisa completamente conforme o planejado mesmo quando como archon conseguimos liderar e iniciar e esperamos que nossos seguidores e ajudantes executem aquilo que começamos e isso se combina com a nossa consciência de sermos capazes de causar um efeito gerando a noção de que o resultado real deve ser atribuído a alguma força estranha sobrenatural que sem perturbarse com pluralidade humana fornece o resultado final Essa falácia assemelhase à que Nietzsche detectou na idéia de um progresso necessário da Humanidade Repetindo A Humanidade não avança nem sequer existe Mas já que o tempo marcha para frente gostaríamos de acreditar que tudo o que está nele marcha também para frente que o desenvolvimento é tal que se move para frente73 Certamente a Seinsgeschichte de Heidegger não pode deixar de nos lembrar o Espírito do Mundo de Hegel A diferença entretanto é decisiva Quando Hegel viu o Espírito do Mundo a cavalo em Napoleão em Jena sabia que Napoleão não tinha ele próprio consciência de ser a encarnação do Espírito sabia que ele estava agindo segundo aquela mistura humana comum de objetivos de curto prazo desejos e paixões para Heidegger contudo é o próprio Ser que sempre mudando se manifesta no pensamento do agente de modo que agir e pensar coincidem Se agir significa dar auxílio à essência do Ser então pensar é na verdade agir Isto é prepararse construir uma morada para a essência do Ser em meio aos entes pelos quais o Ser se transpõe junto com sua essência à fala Sem a fala o simples fazer ressentese da falta da dimensão em que pode efetivarse e seguir instruções A fala entretanto nunca é uma simples expressão do pensamento do sentimento ou da vontade A fala é a dimensão original na qual o ser humano é capaz de responder ao chamado do Ser e respondendo pertencer a ele O pensamento é a realização dessa correspondência original74 Em termos de uma simples reversão de pontos de vista poderiamos ficar tentados a ver na posição de Heidegger a justificativa da reversão aforística de Descartes feita por Valery Lhomme pense done je suis dit Tunivers O homem pensa logo eu existo diz o universo75 A interpretação é de fato tentadora já que Heidegger certamente concordaria com a frase de Valéry Les évènements ne sont que l écume des choses Os acontecimentos não são mais do que a espuma das coisas Não concordaria entretanto com o pressuposto de Valéry de que o que realmente é a realidade subjacente da qual a superfície é simples espuma é a realidade estável de um Ser substancial e em última análise imutável Tampouco teria concordado seja antes seja depois da reviravolta que o novo é por definição a parte perecível das coisas Le nouveau est par definition la partie périssable des choses71 Desde que reinterpreta sua reviravolta Heidegger insiste na continuidade de seu pensamento no sentido de que Ser e Tempo era uma preparação necessária que já continha de um modo provisório a principal direção de seu trabalho final E isso é em grande parte verdade embora possa vir a desradicalizar a reviravolta posterior e as conseqüências que nela estão obviamente implícitas para o futuro da filosofia Comecemos com as conseqüências mais impressionantes que se encontram no próprio trabalho posterior a saber primeiro a noção de que o pensamento solitário em si constitui a única ação relevante no registro factual da história e segundo a idéia de que pensar é o mesmo que agradecer e não só por razões etimológicas Uma vez feito isto tentaremos seguir o desenvolvimento de certos termoschave em Ser e Tempo e ver o que acontece com eles Os três termoschave que proponho são Cuidado Morte e Eu O Cuidado em Ser e Tempo o modo fundamental do interesse existencial do homem por seu próprio ser não desaparece simplesmente em favor da Vontade com a qual obviamente tem em comum algumas características ele altera radicalmente a sua própria função Quase perde sua relação consigo mesmo seu interesse pelo próprio ser do homem e junto com isso a disposição de ansiedade produzida quando o mundo no qual o homem é lançado revelase como nada para um ser que sabe de sua própria mortalidade das nackte Dass im Nichts der Welt aquilo nu no nada do mundo77 A ênfase alterase de Sorge como preocupação ou interesse para consigo mesmo para Sorge como tomar conta e isso não de si mesmo mas do Ser O homem que era o zelador Platzhalter do Nada e que portanto estava aberto ao desvelamento do Ser transformase agora no guardião Hüter ou pastor Hirte do Ser e sua fala oferece ao Ser sua morada A Morte por outro lado que originalmente era real para o homem somente como a possibilidade mais extrema se fosse realizada por exemplo no suicídio o homem obviamente perdería a possibilidade que tem de existir em face da morte78 transformase agora na redoma que reúne protege e salva a essência dos mortais que são mortais não porque sua vida tenha um fim mas porque estar morto pertence ainda ao seu ser mais íntimo79 Essas descrições que soam estranhas referemse a experiências bem conhecidas atestadas por exemplo pela antiga máxima de mortuis nil nisi bonum Não é a dignidade da morte enquanto tal que nos faz temêla e respeitála mas sim a curiosa mudança de vida para morte que acomete a personalidade dos mortos Na lembrança o modo como os mortais vivos pensam sobre seus mortos é como se todas as qualidades não essenciais perecessem com o desaparecimento do corpo em que estavam encarnadas Os mortos são postos na redoma da lembrança como relíquias preciosas deles mesmos Finalmente há o conceito de Eu e é este o conceito cuja mudança na reviravolta é a mais inesperada e também a que tem maiores conseqüências Em Ser e Tempo o termo Eu é a resposta para a questão Quem é o homem em oposição à questão O que ele é o Eu é o termo para a existência do homem em oposição a qualquer qualidade que ele possa ter Essa existência o autêntico ser um Eu é extraída polemicamente do Eles Mu dem Ausdruck Selbst antworten wirauf die Frage nach dem Wer desDaseins Das eigentliche Selbstein bestimmtsich ais eine existenzielle Modifikation des Man 80 Modificando o Eles da vida cotidiana a existência humana produz um solus ipse e Heidegger fala nesse contexto de um solipsismo existencial isto é da realização do principium individuationis uma realização que em outros filósofos encontramos como uma das funções essenciais da Vontade Heidegger atribuíraa originalmente ao Cuidado seu termo inicial para o órgão do homem para o futuro81 Para sublinhar a semelhança entre Cuidado antes da reviravolta e Vontade em um cenário moderno voltamosnos para Bergson que certamente não influenciado por pensadores anteriores mas seguindo a evidência imediata da consciência propusera apenas algumas décadas antes de Heidegger a coexistência de dois eus um social o Eles de Heidegger e o outro o fundamental o autêntico de Heidegger A função da vontade é recuperar esse eu fundamental das atribulações da vida social em geral e da linguagem em particular isto é daquela linguagem falada habitualmente em que cada palavra tem um significado social82 Tratase de uma linguagem repleta de clichês necessária para a comunicação com os outros em um mundo externo bem distinto de nós mesmos que é a propriedade comum a todos os seres conscientes A vida em comum com os outros criou seu próprio tipo de fala que leva à formação de um segundo eu que obscurece o primeiro A tarefa da filosofia é levar de volta esse eu social para o eu real e concreto cuja atividade não pode ser comparada à de qualquer outra força porque essa força é a pura espontaneidade de que cada um de nós tem consciência imediata e que é obtida somente pela observação imediata que se faz de si mesmo83 E Bergson bem na linha de Nietzsche e por assim dizer também em sintonia com Heidegger enxerga a prova dessa espontaneidade na criatividade artística A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial seja na forma de causas externas ou de motivos internos Quando um músico compõe uma sinfonia sua obra era possível antes de ser real84 Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve no volume I de Nietzsche isto é antes da reviravolta Querer sempre significa trazerse a si mesmo Querendo encontramo nos conosco assim como somos autenticamente85 Ainda assim esta é toda a afinidade que se pode encontrar entre Heidegger e seus predecessores imediatos Nunca em Ser e Tempo exceto por uma observação lateral sobre a fala poética como des velamen to possível da existência86 a criatividade artística é mencionada No volume I de Nietzsche a tensão e a relação íntima entre poesia e filosofia entre o poeta e o filósofo é observada em duas ocasiões mas nunca no sentido nietzscheano ou bergsoniano de criatividade pura87 Em Ser e Tempo ao contrário o Eu tomase manifesto na voz da consciência que chama o homem para retomar de seu próprio enredamento cotidiano no man em alemão um elemento que denota impessoalidade as pessoas ou eles retomo que a consciência em seu chamado desvela como culpa humana uma palavra Schuld que em alemão quer dizer tanto ser culpado ser responsável por algum ato quanto ter dívidas no sentido de dever algo a alguém88 O ponto principal na idéia de culpa de Heidegger é que a existência humana é culpada à medida que existe factualmente não precisa tomar se culpada de algo por omissões ou práticas apenas é chamada para realizar autenticamente a culpa que de qualquer forma ela é89 Aparentemente nunca ocorreu a Heidegger que fazendo com que todos os homens que escutam o chamado da consciência sejam igualmente culpados ele estava na verdade proclamando a inocência universal onde todos são culpados ninguém é culpado Essa culpa existencial dada pela existência humana se estabelece de duas maneiras Inspirado na idéia de Goethe de que aquele que age sempre se toma culpado Heidegger mostra que toda ação ao realizar uma única possibilidade mata de um só golpe todas as outras dentre as quais teve que fazer a escolha Todo compromisso acarreta algumas desistências Mais importante do que isso entretanto é que o conceito de ser lançado no mundo já implica que a existência humana deve sua existência a algo que não é ela mesma está endividada em virtude de sua própria existência o Dasein a existência humana naquilo que é foi lançado está aí mas aí não foi trazido por si mesmo90 A consciência exige que o homem aceite essa dívida e aceitação significa que o Eu consegue uma espécie de ação handelri entendida polemicamente como o oposto das ações audíveis e visíveis da vida pública a simples espuma daquilo que verdadeiramente é Esse agir é silencioso é um deixar o próprio eu agir em sua dívida e esta ação completamente interior na qual o homem se abre para a autêntica realidade de ser lançado91 pode existir somente na atividade do pensamento Essa é provavelmente a razão pela qual Heidegger por toda sua obra evitou propositalmente92 lidar com a ação O que mais surpreende em sua interpretação da consciência é a veemente denúncia da interpretação comum da consciência que sempre concebeu como uma espécie de solilóquio o diálogo sem som de mim comigo mesmo Tal diálogo sustenta Heidegger só pode ser explicado como uma tentativa inautêntica de autojustificação contra as alegações do Eles E isto é ainda mais impressionante porque Heidegger em um contexto diferente e é verdade só de maneira marginal fala da voz de um amigo que todo Dasein existência humana traz consigo93 Por mais estranha e em última análise inexplicável que a análise da consciência em Heidegger possa se mostrar pela evidência fenomenológica a ligação com os simples fatos da existência humana implícitos no conceito de uma dívida primordial certamente contêm a primeira pista para a identificação que posteriormente ele faz entre pensar e agradecer O que o chamado da consciência realiza na verdade é a recuperação do eu individualizado yereinzeltes de seu envolvimento nos acontecimentos que determinam as atividades cotidianas do homem e no curso do registro histórico 1écume des choses Intimado novamente o eu dirigese agora para um pensamento que expressa gratidão por aquilo nu ter sido dado Confrontado com o Ser a atitude do homem deve ser a do agradecimento E cumpre que isso seja visto como uma variante do thaumazein de Platão o princípio iniciador da filosofia Lidamos com aquele espanto admirativo e encontrálo em um contexto moderno não impressiona nem surpreende basta pensar na exaltação daqueles que dizem Sim de Nietzsche ou desviar a atenção das especulações acadêmicas para alguns dos grandes poetas deste século Eles mostram pelo menos como pode ser sugestiva uma afirmação como esta na solução para a aparente falta de sentido em um mundo completamente secularizado Aqui estão duas linhas do russo Osip Mandelstam escritas em 1918 We will remember in Lethes cold waters The earth for us has been worth a thousand heavens1 Estes versos podem ser facilmente comparados com algumas linhas de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino escritas mais ou menos na mesma época cito algumas delas Erde du liebe ich will Oh glaub es bediirfte Nicht deiner FrUhlinge mehr mich dir zu gewinnem Einer ach ein einziger ist schon dem Blute zu viel Namenlos bin ich zu dir entschlossen von weit her hnmer warstdu im recht 2 E finalmente como um lembrete cito novamente o que WH Auden escreveu mais ou menos vinte anos mais tarde That singular command I do not understand Bless what there is for being Which has to be obeyed for What else am I made for Agreeing or disagreeing Talvez esses exemplos de testemunho não acadêmico para os dilemas da última fase da Era Moderna possam explicar o grande apelo da obra de Heidegger para uma elite da comunidade intelectual a despeito do quase unânime antagonismo que despertou nas universidades desde o aparecimento de Ser e Tempo Mas se isto aplicase à coincidência entre pensar e agradecer dificilmente aplicase à fusão entre pensar e agir Em Heidegger ela não é só a eliminação da separação sujeitoobjeto com a finalidade de dessubjeti vizar o Ego Cartesiano mas é a fusão real das mudanças na História do Ser Seinsgeschichte com a atividade de pensamento dos pensadores A história do Ser inspira e guia secretamente o que se passa na superfície enquanto os pensadores escondidos e protegidos por Eles respondem ao Ser e o realizam Aqui o conceito personificado cuja existência fantasmagórica produziu o último grande avivamento da filosofia no Idealismo Alemão tomase completamente encarnado há um Alguém que transforma em ação o significado oculto do Ser originando no curso desastroso dos eventos uma contracorrente salutar Este Alguém o pensador que se habituou a deixar de querer passando a deixarser é na verdade o autêntico Eu de Ser e Tempo que agora ouve o chamado do Ser em lugar do chamado da Consciência Diferente do Eu o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu contudo ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadirse a agir factualmente sich in das faktische Handeln bringen94 Nesse contexto a reviravolta significa que o Eu não atua mais em si mesmo o que se abandonou foi o Insichhandelnlassen des eigensten Selbst95 mas obediente ao Ser desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à espuma dos seres as meras aparências cuja corrente é conduzida pela vontade de potência O Eles reaparece aqui mas sua principal característica não é mais o palavrório Geredef é a destrutividade inerente ao querer O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e querer a ser resolvida pelo querernãoquerer quanto do conceito personificado que apareceu em sua forma mais articulada no Espírito do Mundo de Hegel aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é factualmente ainda que de um modo sem sentido e contingente Em Heidegger este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador que age sem nada fazer sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como Pensadorcoisa que entretanto não significa seu retomo ao mundo das aparências Ele continua sendo o solus ipse no solipsismo existencial só que agora o destino do mundo a História do Ser passa a depender dele Até agora estivemos levando em conta os insistentes pedidos do próprio Heidegger para que se preste a devida atenção ao desenvolvimento contínuo de seu pensamento desde Ser e Tempo a despeito da reviravolta que se deu em meados dos anos trinta Baseamonos também em suas próprias interpretações da reviravolta durante o final dos anos trinta e o início dos quarentainterpretações corroboradas de forma precisa e coerente por suas inúmeras publicações dos anos cinqüenta e sessenta Mas há outra interrupção talvez até mais radical em sua vida e em seu pensamento a que ninguém inclusive Heidegger deu publicamente atenção Essa interrupção coincidiu com a derrota catastrófica da Alemanha nazista e com as sérias dificuldades do próprio Heidegger com a comunidade acadêmica e com as autoridades da ocupação logo depois da guerra Por um período de aproximadamente cinco anos Heidegger foi silenciado de maneira tão efetiva que dentre seus trabalhos publicados só existem dois ensaios maiores Sobre o humanismo escrito em 1946 e publicado na Alemanha e na França em 1947 e A sentença de Anaximandro também escrito em 1946 e publicado como o último ensaio de Holzwege em 1950 Desses dois Sobre o humanismo contém uma síntese eloqüente e um enorme esclarecimento sobre a alteração interpretativa que ele dera à reviravolta original mas A Sentença de Anaximandro tem um caráter diferente apresenta uma visão totalmente nova e inesperada sobre toda a colocação do problema do Ser As principais teses desse ensaio quç agora tentarei descrever em linhas gerais nunca foram continuadas ou plenamente explicadas no trabalho posterior de Heidegger De resto ele menciona em uma nota à publicação no Holzwege que o ei lio teria sido tirado de um Tratado Abhandlung escrito em 1946 e infelizmente jamais publicado A mim parece óbvio que essa nova visão tão isolada dr restante de seu pensamento há de ter emergido de mais uma mudança de disposição não menos importante do que a mudança que ocorreu entre o primeiro e o segundo volume sobre Nietzschea mudança da VontadedePotência como Vontadedequerer para a nova Gelassenheit a serenidade do deixar ser e o paradoxal querernãoquerer A disposição alterada reflete a derrota da Alemanha o pontozero como a chamou Emst Jünger que por alguns anos pareceu prometer um novo começo Na versão de Heidegger Estaremos nas vésperas da transformação mais monstruosa por que já passou nosso planeta Ou estaremos diante de uma noite que anuncia uma nova aurora Somos nós os retardatários e ao mesmo tempo os que precedem a aurora de uma era de todo diferente que já deixou para trás nossas representações historiográficas da história96 Tratase da mesma disposição que Jaspers expressou em um famoso simpósio em Genebra naquele mesmo ano Vivemos como se estivéssemos a bater em portões ainda fechados O que acontece hoje irá talvez um dia fundar e estabelecer um mundo97 Essa disposição de esperança logo desapareceu na rapidez com que a Alemanha recuperouse econômica e politicamente do pontozero confrontados com a realidade da Alemanha de Adenauer nem Heidegger nem Jaspers jamais expuseram de forma sistemática o que muito em breve aparecería para eles como uma interpretação equivocada da Nova Era No caso de Heidegger contudo temos ainda o ensaio sobre Anaximandro com seus perturbadores sinais a indicar uma outra possibilidade de especulação ontológica sinais que estão semiencobertos pelas considerações filológicas altamente técnicas do texto grego que é bastante obscuro e provavelmente adulterado partindo deles arriscarei uma exegese desta sedutora variante de sua filosofia Na tradução literal e provisória de Heidegger o pequeno texto grego diz Ora daquilo de que as coisas são geradas genesis também o desaparecer phthora se engendra conforme a necessidade pois as coisas se dão justiça diken didonai e penitência tisin umas às outras por sua injustiça adikia segundo a ordem do tempo98 O tema é pois o viraser e o desaparecer de tudo o que é A medida que qualquer coisa que seja é ela se demora no presente entre uma ausência dupla sua chegada e sua partida Durante as ausências ela está oculta é desocultada somente na curta duração de sua aparição Vivendo em um mundo das aparências tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é um movimento que deixa todo ser que emerge abandonar o ocultamento e ir em direção ao desocultamento demorando se ali por um tempo até que por sua vez abandone o desocultamento partindo e retirandose para o ocultamento99 Mesmo essa descrição nãoespeculativa estritamente fenomenológica está claramente em desacordo com o ensinamento habitual que Heidegger transmite de uma diferença ontológica segundo a qual aletheia verdade entendida como nãovelamento ou desocultamento está sempre do lado do Ser no mundo das aparências o Ser revelase somente na resposta do pensamento do homem em termos de linguagem Nas palavras de Sobre o humanismo A linguagem é a morada do Ser Die Sprache istj zumal das Haus des Seins und die Behausung des Menschenwesens Na exegese do fragmento de Anaximandro desocultamento não é verdade pertence aos seres que chegam e que partem para um Ser oculto O que dificilmente causou mas certamente facilitou essa reversão é o fato de que os gregos especialmente os présocráticos pensavam com freqüência no Ser como physis natureza cujo significado original deriva dephyein crescer isto é vir da escuridão para a luz Anaximandro diz Heidegger pensou em genesis e phthora em termos de physis como formas luminosas de ascensão e declínio101 E a physis segundo um fragmento muito citado de Heráclito aprecia ocultarse102 Embora Heidegger não mencione o fragmento de Heráclito no ensaio sobre Anaximadro suas teses principais parecem ter sido inspiradas por Heráclito em vez de Anaximandro De importância central é o conteúdo especulativo a relação na diferença ontológica é aí revertida e isso é expresso nas seguintes frases O desocultamento dos seres o brilho a eles concedido pelo Ser obscurece a luz do Ser pois ao revelarse em seres o Ser se retira Das Sein entzieht sich indent es sich in das Seiende entbirgtm A frase que grifei ganha muita ênfase no texto por ser muito repetida Sua plausibilidade imediata no original alemão baseiase inteiramente na relação lingüística cognata de verbergen esconder ocultar com bergen proteger e abrigar e entbergen desvelar Na tentativa de explicar o conteúdo especulativo da relação cognata como foi construída por Heidegger podemos resumilo da seguinte forma o ir e vir dos seres seu aparecer e desaparecer sempre começa com um desvelamento que é um entbergen a perda do abrigo bergen original que fora concedido pelo Ser o ser então se demora um pouco no brilho do desvelamento e acaba por retomar ao abrigo protetor do Ser em seu ocultamento Presumivelmente Anaximandro falava de genesis ephthora geração e declínio isto é genesis estin segundo a interpretação que gostaria de dar epthora ginetai viraser é e desaparecer vem a ser4 Em outras palavras há sem dúvida algo como um devir tudo o que conhecemos veio a ser emergiu de alguma escuridão anterior para a luz do dia e este devir fica sendo sua lei enquanto perdura sua duração é ao mesmo tempo o seu desaparecer O Devir a lei que governa os seres é agora o oposto de Ser quando ao desaparecer o devir interrompese ele se transforma de novo naquele Ser de cuja escuridão protetora e ocultadora emergiu originalmente Nesse contexto especulativo a diferença ontológica consiste na diferença entre Ser no sentido forte e duradouro e devir E através da retirada que o Ser sustenta sua verdade e a protege protegea do brilho dos seres que ofusca a luz do Ser ainda que originalmente o Ser tenha concedido este brilho Isto leva ao enunciado aparentemente paradoxal Ao prover o desocultamento dos seres o Ser estabelece seu ocultamento105 No decorrer dessa especulação a transformação na abordagem que Heidegger usualmente faz da busca do Ser die Seinsfrage e do esquecimento do Ser Seinsvergessenheit tomase evidente Não é mais a inautenticidade genuína ou outra particularidade da existência humana o que faz com que o homem esqueça o Ser em seu abandono ao man a palavra alemã para a pluralidade do Eles tampouco o faz por ficar distraído com a superabundância dos meros entes O esquecimento do Ser pertence à essência autoocultadora do Ser a história do Ser e não a história dos homens na filosofia em geral ou na metafísica em particular começa com o esquecimento do Ser já que o Ser juntamente com sua essência aquilo que o distingue dos seres guardase para si mesmo106 Através da retirada do Ser do reino dos seres esses entes cujo desocultamento foi causado por este Ser são lançados a esmo ficam a errar e este errar constitui o reino do erro o espaço em que se desdobra a história Sem a errância não havería conexão de destino a destino não haveria história grifo nosso7 Para resumir ainda estamos diante da diferença ontológica a separação categorial entre Ser e seres mas essa separação adquiriu por assim dizer uma espécie de história com um começo e um fim No começo o Ser desvelase nos seres e o desvelamento dá início a dois movimentos opostos o Ser retirase para si e os seres são lançados a esmo para constituir o reino no sentido do reino de um príncipe do erro Esse reino do erro é a esfera da história humana comum em que os destinos factuais são ligados e tomam uma forma coerente através do errar Nesse esquema não há lugar para a História do Ser Seinsgeschichte desempenhada por sob os homens de ação o Ser protegido em seu ocultamento não tem história e toda época da história mundial é época de errância Entretanto exatamente porque o contínuo de tempo fragmentase no campo histórico em diferentes eras o lançamento dos seres a esmo também se dá nas épocas e no esquema de Heidegger parece haver um momento privilegiado o momento de transição de uma época para outra de destino para destino quando o Ser como Verdade interrompe a continuidade do erro quando a essência epocal do Ser chama a si a natureza extática do Dase inw A este chamado o pensamento pode responder reconhecendo o chamado do destino isto é o espírito de uma era inteira pode tomarse atento para aquilo a que está destinado em vez de perderse nas particularidades errantes dos assuntos humanos cotidianos Heidegger nunca menciona nesse contexto uma ligação entre pensar e agradecer e está bem a par das possíveis conclusões pessimistas para não dizer niilistas que se podem retirar de uma interpretação que se adequaria perfeitamente à compreensão de Burckhardt e de Nietzsche da experiência grega em seu aspecto mais profundo109 Além disso convém observar que aqui ele não parece estar absolutamente interessado em sublinhar a tensão da relação muito íntima entre filosofia e poesia Em vez disso conclui o ensaio com algo que não disse em qualquer outro lugar Se a essência do homem consiste em pensar na verdade do Ser notese bem agora um Ser que se retirou que se esconde e se oculta então o pensar deve poetizar o enigma do Ser am Rãtsel des Seins dichterí Mencionei de passagem a mudança radical que o conceito de morte sofreu nos últimos escritos de Heidegger onde a morte aparece como redentora final da essência do homem o Gebirg des Seins in dem Spiel der Welt o abrigo do Ser no jogo do mundo111 E tentei explicar e de certo modo justificar a estranheza disto com um testemunho bem conhecido de certas experiências familiares que ao que eu saiba nunca foram conceitualizadas No ensaio sobre Anaximandro a palavra morte não aparece mas o conceito tem é claro presença bem transparente na idéia de vida entre duas ausências antes de se chegar pelo nascimento e depois de se desaparecer com a morte E aqui temos de fato um esclarecimento conceituai sobre a morte como abrigo para a essência da existência humana cuja presença temporal e transitória é compreendida como o demorarse entre duas ausências e como uma estada no reino da errância Pois a fonte deste errar e aqui podemos é claro enxergar até que ponto essa variante continua sendo simples variante das convicções filosóficas básicas e permanentes de Heidegger é o fato de que de um ser que se demora um pouco em presença entre duas ausências e tem a habilidade de transcender sua própria presença só se pode dizer que está realmente presente enquanto se deixa pertencer ao nãopresente112 Sua chance de alcançar isto está em conseguir aproveitarse do momento epocal na transição entre períodos em que os destinos históricos mudam e a verdade que subjaz à próxima época de errância tomase evidente ao pensamento A Vontade como destruidora aparece aqui também embora não se diga seu nome tratase da ânsia de persistir de suportar o apetite desmedido do homem para agarrarse a si mesmo Dessa forma ele faz mais do que simplesmente errar O Demorarse como persistência é insurreição a bem da simples duração113 A insurreição dirigese contra a ordem dike cria desordem adikia permeando o reino da errância Esses enunciados trazemnos de volta a território familiar como fica evidente quando lemos aí que a desordem é trágica e não uma coisa pela qual se pode responsabilizar o homem Com certeza não há mais qualquer chamado da consciência convocando o homem de volta ao seu eu autêntico ao insight de que não importa o que tenha feito ou se omitido de fazer era já schuldig culpado posto que sua existência era algo que ele devia depois de ter sido lançado no mundo Mas assim como em Ser e Tempo este eu culpado podia salvarse antecipando sua morte aqui também o Dasein errante enquanto demorase um pouco no reino da errância pode através da atividade do pensamento juntarse ao que está ausente Há entretanto a diferença de que aqui o ausente o Ser em sua permanente retirada não tem história no reino da errância e de que pensar e agir não coincidem Agir é errar perderse Deveriamos considerar também de que modo a definição inicial do serculpado como traço primordial do Dasein independentemente de qualquer ato específico foi substituída por errar como a marca decisiva de toda a história humana Ambas as formulações a propósito lembrarão curiosamente para quem lê alemão o Der Handelnde wird immer schuldig e o Es irrt der Mensch solang er strebt de Goethe114 Podemos acrescentar a esses diferentes ecos de si mesmo as seguintes frases do ensaio sobre Anaximandro Todo pensador depende do chamado do Ser A dimensão desta dependência determina a liberdade de influências irrelevantes115 com o que Heidegger quer claramente falar dos acontecimentos cotidianos factuais causados por homens que erram Quando juntamos essas correspondências é como se estivéssemos lidando aqui com uma simples variação do ensinamento básico de Heidegger Sejacomo for é óbvio que minha interpretação atual é extremamente provisória não pode de modo algum ser um substituto para o tratado não publicado do qual fazia parte originalmente o ensaio sobre Anaximandro Em nosso atual estado de conhecimento do texto a coisa toda continua muito duvidosa Mas seja encarando esse texto como variante seja como mudança a denúncia que Heidegger faz do instinto de autopreservação comum a todas as coisas vivas como uma insurreição veemente contra a ordem da criação é como tal tão rara na história das idéias que eu gostaria de citar o único dizer semelhante que conheço três linhas pouco conhecidas de Goethe em um poema escrito aproximadamente em 1821 com o título Eins und Alies Das Ewige regt sich fort in alien Denn alles muss in Nichts zerfallen Wenn es im Sein beharren will 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum Logo no começo dessas reflexões fiz uma advertência sobre a falha inevitável em todo exame crítico da faculdade da Vontade Tratase de algo bastante óbvio mas que passa facilmente despercebido na discussão dos argumentos e contraargumentos particulares simplesmente toda filosofia da Vontade é concebida e articulada não por homens de ação mas por filósofos os pensadores profissionais de Kant que de um jeito ou de outro estão comprometidos com o bios theoretikos e que portanto estão mais inclinados a interpretar o mundo do que a mudálo De todos os filósofos e teólogos que consultamos só Duns Scotus como vimos estava pronto a pagar o preço da contingência pelo dom da liberdade o dom do espírito que temos para começar algo novo algo que sabemos que poderia também não ser Sem dúvida a necessidade sempre agradou mais aos filósofos do que a liberdade porque eles precisavam para sua atividade de um tranquilitas animae Leibniz uma paz de espírito que com base na acquiescentia sibi a concordância de si consigo mesmo só poderia ser garantida efetivamente através de um assentimento do arranjo do mundo O mesmo eu que a atividade pensante desconsidera em sua retirada do mundo das aparências é afirmado e assegurado pela reflexividade da Vontade Assim como o pensamento prepara o eu para o papel de espectador a Vontade dá a ele a forma de um Eu duradouro que orienta todos os atos de volição particulares Ela cria o caráter do eu e foi por essa razão que às vezes foi entendida como o principium individuationis a fonte de identificação específica do indivíduo No entanto é precisamente esta individuação ocasionada pela Vontade que gera problemas novos e sérios para a noção de liberdade O indivíduo amoldado pela Vontade e sabedor de que poderia ser diferente daquilo que é o caráter ao contrário da aparência ou dos talentos e habilidades corporais não é inatamente dado ao eu sempre tende a afirmar um Eumesmo contra um Eles indefinido todos os O Eterno em tudo se faz sentir Pois tudo no Nada deve cair Se for insistir em Ser tradução livre NT outros que eu como indivíduo não sou Nada pode ser mais apavorante com efeito do que a noção de liberdade solipsista o sentimento de que o meu ficar de fora isolado de todos os demais devese à vontade livre de que nada nem ninguém pode ser responsabilizado por isso a não ser eu mesmo A Vontade com seus projetos para o futuro desafia a crença na necessidade no assentimento do arranjo do mundo a que chama de ufania Ainda assim não está claro para todos que o mundo não é e nunca foi o que deveria ser E quem sabe ou jamais soube o que vem a ser este deveria O deveria é utópico não tem topos próprio ou um lugar no mundo A confiança na necessidade na convicção de que tudo é como era para ser não é infinitamente preferível à liberdade comprada ao preço da contingência Nessas circunstâncias a liberdade não parece um eufemismo para essa região incinerada marcada pelo desamparo com o qual a existência humana Dasein foi abandonada a si mesma die Verlassenheit in der Überlassenheit an es selbst Essas dificuldades e ansiedades são causadas pela Vontade à medida que é uma faculdade do espírito sendo portanto reflexiva repercutindo sobre si mesma vollo me velle cogito me cogitare ou em termos heideggerianos pelo fato de que existencialmente falando a existência humana foi abandonada a si mesma Nada parecido perturba nosso intelecto a capacidade que o espírito tem de cognição e sua confiança na verdade As habilidades cognitivas como nossos sentidos não repercutem sobre si mesmas são completamente intencionais vale dizer completamente absorvidas pelo objeto que se pretende alcançar Logo à primeira vista é surpreendente encontrar um preconceito semelhante contra a liberdade nos grandes cientistas do nosso século Como se sabe eles ficaram muito perturbados quando suas descobertas demonstráveis na astrofísica e também na física nuclear deram origem à suspeita de que vivemos em um universo que nas palavras de Einstein é governado por um Deus que joga dados com ele ou à de que como sugeriu Heisenberg aquilo que consideramos o mundo exterior pode ser nosso mundo interior virado do avesso Lewis Mumford Tais pensamentos e repensamentos não são é claro enunciados científicos não pretendem fornecer verdades demonstráveis ou teoremas experimentais que seus autores possam ter a esperança de traduzir em proposições suscetíveis de prova São reflexões inspiradas por uma busca de significado e portanto não são menos especulativas do que outros produtos do ego pensante O próprio Einstein em uma observação muito citada traçou bastante claramente o limite entre enunciados cognitivos e proposições especulativas o fato mais incompreensível da natureza é o fato de a natureza ser compreensível Aqui podemos quase observar o modo como o ego pensante interfere na atividade cognitiva interrompea e paralisaa com suas reflexões Colocase fora de ordem com a atividade habitual dos cientistas repercutindo sobre si mesmo meditando sobre a ininteligibilidade fundamental daquilo que está fazendo ininteligibilidade que permanece um enigma sobre o qual vale a pena pensar embora não possa ser resolvido Tais reflexões podem render várias hipóteses e algumas podem até mesmo acabar produzindo conhecimento quando testadas de qualquer forma sua qualidade e seu peso dependerão das conquistas cognitivas de seus autores É difícil contudo negar que as reflexões dos grandes fundadores da ciência moderna Einstein Planck Bohr Heisenberg Schrodinger tenham provocado uma crise nos fundamentos da ciência moderna Grundlagenkrise e sua questão central como deve ser o mundo para que o homem possa conhecêlo é tão antiga quanto a própria ciência e continua sem resposta117 Parece somente natural que essa geração de fundadores em cujas descobertas a ciência moderna se baseou e cujas reflexões acerca do que estavam fazendo produziram a crise nos fundamentos fosse seguida por muitas gerações de epígonos menos eminentes que acham mais fácil responder questões irrespondíveis por terem menos consciência da linha que separa suas atividades habituais de suas reflexões sobre elas Falei da orgia de pensamento especulativo que se seguiu à liberação kantiana da necessidade da razão de pensar além da capacidade cognitiva do intelecto os jogos que os idealistas alemães fizeram com os conceitos personificados e as alegações feitas para a validade científicaalgo que muito se distancia da crítica de Kant Do ponto de vista da verdade científica as especulações idealistas eram pseudocientíficas agora no pólo oposto do eixo algo semelhante parece estar acontecendo Os materialistas jogam o jogo da especulação com o auxílio de computadores da cibernética e da automação suas inferências produzem não fantasmas como no jogo dos idealistas mas materializações como as das sessões espíritas O que mais impressiona nesses jogos materialistas é que seus resultados se assemelham aos conceitos dos idealistas Assim o Espírito do Mundo de Hegel materializouse recentemente na construção de um sistema nervoso feito no modelo de um computador gigante Lewis Thomas118 propõe que se entenda a comunidade mundial dos seres humanos como um Cérebro Gigante em que há um intercâmbio tão rápido de pensamentos que os cérebros da humanidade muitas vezes parecem funcionalmente estar sofrendo uma fusão Tendo a humanidade como seu sistema nervoso a Terra inteira assim se toma um organismo que respira com pequenas partes interligadas todas crescendo sob a membrana protetora da atmosfera do planeta119 Tais noções não são nem ciência nem filosofia mas sim ficção científica estão muito difundidas e demonstram que as extravagâncias da especulação materialista em muito se igualam às loucuras da metafísica idealista O denominador comum de todas essas falácias materialistas ou idealistas além do fato de se originarem historicamente da noção de progresso e de sua companheira a entidade indemonstrável chamada Humanidade é que elas preenchem a mesma função emocional Nas palavras de Lewis Thomas elas acabam com toda a preciosa noção de um eu próprio a antiga e maravilhosa ilha de um Eu autônoma voluntária livre para iniciativas independente e isolada que é um mito120 O nome próprio deste mito do qual somos de todos os lados aconselhados a nos livrar é Liberdade Aos pensadores profissionais filósofos ou cientistas não lhes aprouve a liberdade e seu caráter inelutavelmente aleatório não estiveram dispostos a pagar o preço da contingência pelo dom questionável da espontaneidade pela capacidade de fazer o que se poderia também deixar de ter feito Deixemos portanto esses pensadores profissionais de lado e concentremos nossa atenção nos homens de ação que devem ter um compromisso com a liberdade pela própria natureza de sua atividade que consiste em mudar o mundo e não em interpretálo ou conhecêlo Em termos conceituais passamos da noção de liberdade filosófica philosophical freedom para a de liberdade política political liberty uma diferença óbvia da qual ao que eu saiba somente Montesquieu falou e mesmo assim de passagem quando utilizou a liberdade filosófica como um pano de fundo no qual a liberdade política pudesse ser delineada com mais nitidez Em um capítulo intitulado De la liberté du citoyen Sobre a liberdade do cidadão ele disse La libertéphilosophique consiste dans Iexercise de sa volonté ou du moins sil faut parler dans tous les systèmes dans Vopinion oil Ion est que Ion exerce sa volonté La libertépolitique consiste dans la süreté ou du moins dans Iopinion que Ion a de la süreté A liberdade filosófica consiste no exercício da vontade ou pelo menos se temos de levar em conta todos os sistemas na opinião de que exercemos nossa vontade A liberdade política consiste na segurança ou pelo menos na opinião de que se tem segurança121 A liberdade política do cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que vem da opinião de que todos têm segurança e para que se possa estar de posse dessa liberdade o governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro122 A liberdade filosófica a liberdade da vontade é relevante somente para pessoas que vivem fora das comunidades políticas como indivíduos solitários As comunidades políticas nas quais os homens se tornam cidadãos são produzidas e preservadas por leis e tais leis feitas pelos homens podem variar muito e podem dar forma a inúmeros tipos de governo todos eles de uma maneira ou de outra tolhendo a vontade livre de seus cidadãos Com exceção da tirania no entanto em que uma vontade arbitrária governa as vidas de todos os governos abrem algum espaço de liberdade para a ação espaço que na verdade põe em movimento o corpo constituído de cidadãos Os princípios que inspiram as ações dos cidadãos variam de acordo com as diferentes formas de governo mas são todos como Jefferson os designou corretamente princípios energéticos123 e a liberdade política ne peut consister quà pouvoir faire ce que Ion doit vouloir et à nêtre point contraint de faire ce que Ion ne doit pas vouloir só pode consistir no poder de fazer aquilo que devemos querer e em não sermos forçados a fazer o que não devemos querer124 A ênfase aqui está claramente no Poder no sentido do euposso para Montesquieu assim como para os antigos era óbvio que não se poderia mais dizer que um agente era livre quando lhe faltasse a capacidade de fazer o que quisesse fazer quer por circunstâncias exteriores quer pelas interiores Além disso as Leis que segundo Montesquieu transformam indivíduos livres e sem lei em cidadãos não são os Dez Mandamentos de Deus ou a voz da consciência ou o lumen rationale da razão iluminando igualmente todos os homens mas sim rapports feitas pelos homens relações que envolvendo os assuntos inconstantes do homem mortal diferentes da eternidade de Deus ou da imortalidade do cosmos devem estar submetidas a todos os acidentes que podem acontecer e variar à proporção que a vontade do homem muda125 Para Montesquieu bem como para a Antigüidade précristã e para os homens que no final do século fundaram a República norteamericana as palavras poder e liberdade eram praticamente sinônimas A liberdade de movimento o poder de se movimentar sem o impedimento da doença ou de um senhor foi originalmente a mais elementar de todas a liberdades justamente o seu pré requisito Assim a liberdade política distinguese da liberdade filosófica por ser claramente uma qualidade do euposso e não do euquero Uma vez que é possuída pelo cidadão e não pelo homem em geral só pode se manifestar em comunidades onde o relacionamento dos muitos que vivem juntos é tanto no falar quanto no agir regulado por um grande número de rapports leis costumes hábitos e similares Em outras palavras a liberdade política só é possível na esfera da pluralidade humana e com a condição de que essa esfera não seja simplesmente uma extensão deste eueeumesmo Iand myself dual para um nós plural A ação em que um nós está sempre engajado em mudar nosso mundo comum mantém a oposição mais aguda possível com a atividade solitária do pensamento que funciona no diálogo de mim comigo mesmo Em circunstâncias excepcionalmente propícias esse diálogo pode como vimos estenderse a um outro já que um amigo é como disse Aristóteles um outro eu Jamais pode porém alcançar o nós o verdadeiro plural da ação Um erro bastante frequente entre filósofos modernos que insistem na importância da comunicação como garantia da verdade em especial Karl Jaspers e Martin Buber com sua filosofia do EuTu é acreditar que a intimidade do diálogo a ação interna na qual apelo a mim mesmo ou ao outro eu o amigo em Aristóteles o amado em Jaspers o Tu em Buber possa estenderse e tornarse paradigmática para a esfera política Esse nós surge onde quer haja homens vivendo juntos sua forma primordial é a família e pode constituirse de diferentes modos todos eles baseados em última instância em alguma forma de assentimento do qual a modalidade mais natural é a obediência assim como a modalidade mais natural e menos nociva de dissentimento é a desobediência O assentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir sozinho de que os homens querendo realizar algo no mundo devem agir de comum acordo o que seria trivial caso não houvesse sempre alguns membros da comunidade determinados a desrespeitar o acordo e a tentar por arrogância ou desespero agir sozinhos São esses os tiranos ou criminosos dependendo do objetivo final a que querem chegar o que têm em comum e o que os isola do resto da comunidade é que acreditam no uso de instrumentos de violência como substitutos para o poder Esta é uma tática que só funciona para os objetivos de curto prazo dos criminosos os quais depois de completar seu crime podem e têm que voltar a tomar parte na comunidade o tirano por outro lado sempre um lobo na pele de um cordeiro só pode resistir usurpando a posição justa da liderança o que o toma dependente de auxiliares para levar adiante projetos da sua própria vontade Ao contrário do poder que a vontade do espírito tem de afirmar ou negar cuja garantia prática final é o suicídio o poder político mesmo quando os que apoiam o tirano admitem o terror isto é o uso de violência é sempre um poder limitado e uma vez que poder e liberdade na esfera da pluralidade humana são na verdade sinônimos isso significa que também a liberdade política é sempre liberdade limitada A pluralidade humana o Eles sem um rosto do qual o Eu individual se separa para ficar a sós consigo mesmo é dividida em um enorme número de unidades e somente como membros desta unidade isto é de uma comunidade é que os homens ficam prontos para a ação A multiplicidade dessas comunidades manifestase de muitos modos e formas obedecendo cada uma a diferentes leis tendo diferentes hábitos e costumes e acalentando diferentes memórias do passado isto é uma multiplicidade de tradições Montesquieu provavelmente estava certo ao supor que cada uma dessas entidades movese e age segundo um princípio inspirador diferente reconhecido como o padrão final para julgar os feitos e os crimes a virtude nas repúblicas a honra e a glória nas monarquias a moderação nas aristocracias o medo e a suspeita nas tiranias só que essa enumeração orientada pela mais antiga distinção entre formas de governo o governo de um o de poucos o dos melhores ou o de todos é lamentavelmente inadequada à rica diversidade dos seres humanos que vivem juntos na Terra O único traço em comum entre todos esses modos e formas de pluralidade humana é simplesmente sua gênese isto é o fato de que em algum momento no tempo e por alguma razão um grupo de pessoas tenha vindo a pensar sobre si como um Nós Seja qual for o modo como esse Nós é inicialmente experimentado e expresso parece que ele sempre precisa de um começo e nada parece mais oculto na escuridão e no mistério do que este No princípio não só quanto à espécie humana em oposição a outros organismos vivos como também quanto à enorme variedade de sociedades indubitavelmente humanas A assombrosa obscuridade da questão pouco foi iluminada pelas recentes descobertas biológicas antropológicas e arqueológicas por mais êxito que tenham tido em estender a ponte pelo intervalo de tempo que nos separa de um passado ainda mais distante E é improvável que qualquer informação factual venha algum dia a lançar luz sobre o emaranhado desconcertante de hipóteses mais ou menos plausíveis todas sofrendo da suspeita incurável de que justamente sua plausibilidade e sua probabilidade possam acabar sendo sua própria anulação uma vez que toda a nossa existência real a gênese da Terra o desenvolvimento da vida orgância ali a evolução do homem a partir das incontáveis espécies animais ocorreu contra possibilidades estatísticas esmagadoras Tudo o que é real no Universo e na natureza foi um dia uma infinita improbabilidade No mundo cotidiano em que passamos nosso próprio e exíguo quociente de realidade só podemos estar certos de um encolhimento do tempo para trás que não é menos decisivo do que o encolhimento das distâncias espaciais na Terra Aquilo que há somente algumas décadas recordando os três mil anos de Goethe Wer nicht von dreitausend Jahren Sich weiss Rechenschaft zu geben Bleib im Dunkel unefahrenMag von Tag zu Tage leben ainda chamávamos de Antigüidade está hoje muito mais próximo de nós do que esteve para nossos ancestrais E bastante provável que esse dilema do nãosaber nunca venha a ser resolvido correspondendo como corresponde a outras evidentes limitações inerentes à condição humana que impõe limites definitivos e intransponíveis à nossa sede de conhecimento sabemos por exemplo sobre a imensidão do Universo e no entanto jamais seremos capazes de conhecêlo e o máximo que podemos fazer nesse impasse é apelar para as narrativas lendárias que em nossa tradição auxiliaram gerações passadas a aprender a lidar com os mistérios do No princípio Tratase das lendas fundadoras que claramente tinham a ver com um tempo anterior a qualquer forma de governo e a qualquer princípio particular que desse início a seu movimento Ainda assim o tempo com o qual lidavam era o tempo humano e o começo a que se referiam não era uma criação divina mas um conjunto de ocorrências feitas pelo homem que a memória podia alcançar através de uma interpretação imaginativa das velhas narrativas As duas lendas fundadoras da civilização ocidental a romana e a hebraica a despeito do Timeu de Platão nadaque se comparejamais aconteceu na Antigüidade grega são totalmente diferentes a não ser por terem ambas surgido em meio a um povo que pensava em seu passado como uma história cujo começo era conhecido e podia ser datado Os judeus sabiam o ano da criação do mundo e contam o tempo até hoje a partir desse ano e os romanos em contraste com os gregos que contavam o tempo de Olimpíada em Olimpíada sabiam ou acreditavam saber o ano da fundação de Roma contando o tempo a partir daí Muito mais impressionante e carregado de conseqüências muito mais sérias para a nossa tradição e pensamento político é o fato assombroso de que ambas as lendas em contradição nítida com os conhecidos princípios alegados como inspiração para a ação política em comunidades constituídas sustentem que no caso da fundação o ato supremo pelo qual o Nós se constitui como uma entidade identificável o princípio inspirador para a ação seja o amor pela liberdade e isto tanto no sentido negativo de liberação da opressão quanto no positivo de estabelecimento da Liberdade como realidade estável e tangível Tanto a diferença quanto a conexão entre essas duas a liberdade que advém de ser liberado e a liberdade que surge da espontaneidade de começar algo novo são paradigmaticamente representadas nas duas lendas fundadoras que atuaram como guias para o pensamento político ocidental Temos a narrativa bíblica do êxodo de tribos israelenses do Egito que precedeu a lei mosaica constituidora do povo hebreu e a narrativa de Virgílio sobre as andanças de Enéias que levaram à fundação de Roma dum conderet urberrí como Virgílio define o conteúdo de seu grande poema já nas primeiras linhas Ambas as lendas começam com um ato de liberação a fuga da opressão e da escravidão no Egito e a fuga da Tróia em chamas isto é fuga da aniquilação em ambos os casos esse ato é narrado da perspectiva de uma nova liberdade conquista de uma nova terra prometida que oferece mais que a luxúria do Egito e a fundação de uma nova Cidade que é preparada por uma guerra destinada a acabar com a guerra de Tróia de modo que a ordem dos acontecimentos tal como exposta por Homero pudesse ser revertida A reversão que Vírgilio fez de Homero é completa e deliberada126 Desta vez é Aquiles na forma de Turno Também aqui podes dizer que um Príamo encontrou seu Aquiles quem foge e é morto por Heitor na forma de Enéias no centro a fonte de toda a desgraça é de novo uma mulher só que agora uma noiva Lavínia e não uma adúltera e o fim da guerra não é o triunfo pela vitória e destruição total dos derrotados mas sim um novo corpo político ambas as nações invictas entram em um acordo sob as mesmas leis para sempre Quando lemos estas lendas como narrativas constatamos sem dúvida uma enorme diferença entre as andanças desesperadas e a esmo das tribos israelenses no deserto depois do êxodo e as aventuras maravilhosas e as coloridas histórias de Enéias e seus companheiros troianos mas para os homens de ação de gerações posteriores que reviraram os arquivos da Antigüidade em busca de paradigmas que guiassem suas próprias intenções isso não era o que importava O que importava era que havia um hiatus entre o desastre e a salvação entre a liberação da velha ordem e a nova liberdade corporificada em uma novus ordo seclorum uma nova ordem das eras com cujo nascimento o mundo se modificara estruturalmente O hiato legendário entre um nãomais e um aindanão indicava claramente que a íiberdade não seria um resultado automático da liberação que o fim do velho não é necessariamente o começo do novo que a noção de um contínuo de tempo todopoderoso é uma ilusão Narrativas de um período transitório da servidão à liberdade do desastre à salvação tinham grande apelo porque as lendas se concentravam principalmente nos feitos dos grandes líderes pessoas de significação histórica mundial que apareciam no palco da história precisamente durante tais intervalos de tempo histórico Todos aqueles que pressionados por circunstâncias exteriores ou motivados por linhas de pensamento radicalmente utópicas não estavam satisfeitos em mudar o mundo através de uma reforma gradual de uma antiga ordem esta rejeição do gradual foi precisamente o que transformou os homens de ação do século XVII o primeiro século de uma elite intelectual completamente secularizada nos homens das revoluções estavam quase que logicamente forçados a aceitar a possibilidade de um hiatus no fluxo contínuo da seqüência temporal Lembramos o embaraço de Kant ao lidar com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos isto é com um começo absoluto que em virtude da inquebrável seqüência do contínuo de tempo seguirá entretanto sendo sempre a continuação de uma série precedente127 A palavra revolução supostamente deveria dissolver este embaraço quando durante as últimas décadas do século XVIII mudou de significado deixando seu antigo sentido astronômico e assumindo o sentido de um acontecimento sem precedentes Na França isso chegou a levar a uma revolução de curta duração no calendário em outubro de 1793 decidiuse que a proclamação da República era um novo começo para a história humana e como isso ocorrera em setembro de 1792 o novo calendário declarava que setembro de 1793 era a inauguração do Ano II Essa tentativa de localizar um novo começo absoluto no tempo fracassou e provavelmente não só por causa do forte aspecto anticristão do novo calendário todos os feriados cristãos inclusive o domingo foram abolidos e uma divisão fictícia do mês de trinta dias em unidades de dez dias foi instituída o décimo dia de cada dezena substituiría o domingo como dia de descanso O uso extinguiuse em cerca de 1805 uma data que mal é lembrada mesmo por historiadores profissionais No caso da Revolução norteamericana a antiga e lendária noção de um hiato temporal entre a velha ordem e a nova era parecia muito mais apropriada do que uma revolução no calendário para superar o abismo entre um contínuo de tempo de sucessão ordenada e o começo espontâneo de algo novo De fato seria tentador usar o surgimento dos Estados Unidos da América como exemplo histórico da verdade das velhas lendas como uma verificação do dito de Locke no princípio todo o mundo era América O período colonial seria interpretado como o período de transição entre a servidão e a liberdade o hiato entre a partida da Inglaterra e do Velho Mundo e o estabelecimento da liberdade no Novo O paralelo com as lendas é assombrosamente próximo em ambos os casos o ato de fundação deuse por meio de feitos e sofrimentos de exilados Isso aplicase até mesmo à história bíblica tal como é narrada no Êxodo Canaã a terra prometida não é de forma alguma a morada original dos judeus mas terra da estada anterior dos judeus Êxodo 64 Virgílio insiste com mais veemência ainda no tema do exílio Enéias e seus companheiros foram levados a procurar longínquos exílios e terras desertas chorando ao deixar o porto e os campos onde foi Tróia exilados que não sabiam para onde nos conduziam os nossos destinos e onde nos seria permitido o descanso12 Os fundadores da República norteamericana estavam bem familiarizados com a Antigüidade romana e também com a bíblica e podem ter retirado das velhas lendas a distinção decisiva entre a simples liberação e a verdadeira liberdade nunca utilizam porém o hiato como base possível para explicar o que estavam fazendo Há uma razão simples e factual para isso embora a terra fosse ser no final para muitos um lugar de descanso e um asilo para os exilados eles próprios não haviam chegado lá como exilados mas sim como colonizadores Até o final quando o conflito com a Inglaterra mostrouse inevitável não era problema para eles reconhecer a autoridade da metrópole Orgulharamse de ser indivíduos ingleses até que o momento de sua rebelião contra um governo injusto taxação sem representação os levou a uma revolução verdadeira uma mudança na própria forma de governo e à constituição de uma República como único governo o que agora era sentido por eles como a forma adequada para governar a terra dos homens livres Foi nesse momento que aqueles que tinham começado como homens de ação sendo depois transformados em homens de revolução modificaram o grande verso de Virgílio Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo a grande ordem das eras é renascida assim como era no princípio129 para a Novus ordo seclorum a nova ordem que ainda hoje vemos nas notas do dinheiro americano Para os Patronos Fundadores a variação implicava a admissão de que o grande esforço para reformar e recompor a integridade inicial do corpo político fundar Roma de novo tinha levado à tarefa completamente inesperada e muito diferente de constituir uma coisa totalmente nova fundar uma nova Roma Quando os homens de ação homens que queriam mudar o mundo cons cientizaramse que tal mudança poderia realmente postular uma nova ordem das eras o início de algo sem precedentes começaram a vasculhar a história à procura de ajuda Começaram a repensar coisaspensamento tais como o Pentateuco e a Eneida lendas fundadoras que pudessem dizerlhes como resolver o problema do começo um problema porque a própria natureza do começo é trazer em si um elemento de completa arbitrariedade Foi só então que eles se depararam com o abismo da liberdade sabendo que tudo o que se fizesse agora poderia também deixar de ser feito e tendo também a crença clara e precisa de que uma vez que uma coisa é feita não pode ser desfeita de que a memória humana contando a história sobrevive ao arrependimento e à destruição Isso aplicase apenas ao campo das ações ao muitosemum dos seres humanos130 isto é às comunidades em que o Nós é devidamente estabelecido para sua jornada através do tempo histórico As lendas fundadoras com seu hiato entre a liberação e a constituição da liberdade indicam o problema sem resolvêlo Apontam para o abismo do nada que se abre antes de qualquer ação que não pode ser explicada por uma cadeia segura de causa e efeito e que tampouco se explica pelas categorias aristotélicas de potência e ato No contínuo de tempo normal todo efeito transformase imediatamente em uma causa de futuras ocorrências mas quando a cadeia causai é quebradao que ocorre depois que se alcança a liberação já que a liberação ainda que seja a conditio sine qua non da liberdade jamais é a conditio per quam que causa a liberdade não resta nada em que o iniciante possa se agarrar O pensamento de um começo absoluto creatio ex nihilo elimina a seqüência de temporalidade tanto quanto o pensamento de um fim absoluto que agora se designa corretamente como pensar o impensável Conhecemos a solução hebraica para essa perplexidade Admitese um DeusCriador que cria o tempo juntamente com o Universo e que como legislador mantémse fora de Sua criação e fora do tempo como o Um que é quem ele é a tradução literal de Jeová é Eu sou quem eu sou da eternidade para a eternidade Esse conceito de eternidade forjado por uma criatura temporal é o absoluto de temporalidade É aquilo que resta do tempo quando ele é absolvido liberado de sua relatividade o tempo tal como aparecería para um observador externo não sujeito a suas leis e por definição sem relacionarse a nada em virtude de sua Unicidade A medida que o Universo e tudo nele pode ser remetido à região dessa Unicidade absoluta a Unicidade fundase em algo que pode estar além do raciocínio dos homens temporais mas que ainda assim possui um tipo de racionalidade própria pode explicar dar uma explicação lógica daquilo que é existencialmente inexplicável E a necessidade de uma explicação nunca é mais forte do que na presença de um evento novo desconectado que interrompe o contínuo a seqüência do tempo cronológico Essa parece ser a razão pela qual os homens que eram esclarecidos demais para acreditar no DeusCriador hebraicocristão se voltaram com rara unanimidade para uma linguagem pseudoreligiosa quando tiveram de lidar com o problema da fundação como o começo de uma nova ordem das eras Temos o apelo a Deus no Céu que Locke considerava necessário a todos aqueles que se engajaram na novidade de uma comunidade que emergia do estado de natureza temos as leis da natureza e o Deus da natureza de Jefferson o grande legislador do universo de John Adams e o legislador imortal de Robespierre seu culto a um Ser Supremo As explicações desses homens funcionam claramente por analogia assim como Deus no princípio criou o Céu e a Terra permanecendo fora de sua criação e anterior a ela também o legislador humanocriado à imagem de Deus e portanto capaz de imitáLo quando lança asfundações de uma comunidade humana cria as condições para toda vida política e desenvolvimento histórico futuros Sem dúvida nem os gregos nem os romanos tinham qualquer idéia de um DeusCriador cuja Unicidade sem relações pudesse servir como emblema paradigmático para um começo absoluto Mas os romanos que datavam sua história a partir da fundação de Roma em 753 parecem pelo menos ter sabido que a própria natureza deste assunto requeria um princípio transmundano Se não fosse assim Cícero não poderia ter sustentado que a excelência humana nunca se aproxima tanto dos caminhos dos deuses quanto na fundação de novas comunidades e na preservação de comunidades já fundadas131 Para Cícero assim como para os gregos de quem ele derivou sua filosofia os fundadores não eram deuses mas homens divinos e a grandeza de seus feitos deveria estabelecer uma lei que se tomasse a fonte de autoridade um padrão imutável em relação ao qual todas as leis e decretos positivos aprovados pelos homens poderiam ser avaliados e do qual obtinham sua legitimidade Tomar como modelo as crenças religiosas em plena Idade do Iluminismo poderia ter bastado caso só estivesse em jogo a autoridade de uma nova lei e de fato é impressionante que encontremos referências explícitas a um estado futuro de recompensas e punições inseridas em todas as constituições estaduais norteamericanas apesar de não encontrarmos nenhuma alusão a uma vida eterna na Declaração de Independência ou na Constituição dos Estados Unidos Os motivos para tais tentativas desesperadas de se agarrar a uma fé que em realidade não poderia sobreviver à emancipação contemporânea do domínio secular em relação à Igreja eram completamente pragmáticos e altamente práticos Em seu discurso sobre o Ser Supremo e a imortalidade da alma na Convenção Nacional de 7 de maio de 1794 Robespierre pergunta Quel avantage trouvestu à persuader 1homme qu une force aveugle preside à ses destins et frappe au hasard le crime et la vertu Que vantagem vês em persuadir os homens a acreditar que uma força cega preside seus destinos lançando ao acaso o crime e a virtude e nos Discourses on Davila John Adams fala do mesmo modo curiosamente retórico sobre o mais lamentável de todos os credos aquele de que os homens não passam de pirilampos e que tudo isto falta um pai o que tomaria o próprio assassinato tão indiferente quanto atirar em uma tarântula e o extermínio da nação Rohilla tão inocente quanto engolir ácaros junto com um pedaço de queijo132 Em resumo o que temos aqui é um esforço efêmero da parte do governo secular para manter não a fé hebraicocristã mas sim instrumentos políticos de governo que tinham sido tão eficientes na proteção das comunidades medievais contra a criminalidade Retrospectivamente isso quase pode parecer um expediente engenhoso dos poucos que eram instruídos para persuadir a maioria a não seguir a trilha escorregadia em direção ao Iluminismo De qualquer forma a tentativa fracassou totalmenteno início do nosso século poucos eram os que ainda acreditavam em um futuro estado de recompensas e punições e estava provavelmente fadada a fracassar Entretanto a perda da crença e com ela de uma boa parte do antigo medo aterrador da morte certamente contribuiu para a maciça invasão da criminalidade na vida política de comunidades altamente civilizadas que nosso século testemunhou Há uma estranha e inerente impotência nos sistemas legais de comunidades inteiramente secularizadas sua pena máxima a pena de morte somente data e acelera um destino a que todos os mortais estão sujeitos Seja como for sempre que homens de ação impulsionados pelo próprio momentum do processo de liberação começaram seriamente a se preparar para um começo inteiramente novo a novus ordum seclorum em vez de se voltarem para a Bíblia No princípio Deus criou o Céu e a Terra eles vasculharam os arquivos da Antigüidade romana em busca da prudência antiga para guiálos no estabelecimento de uma República isto é de um governo de leis e não de homens Harrington Eles não só precisavam familiarizarse com uma nova forma de governo como também com uma lição sobre a arte de fundação sobre como superar as perplexidades inerentes a todo começo Estavam bem conscientes é claro da espontaneidade desconcertante de um ato livre Como sabiam um ato somente pode ser chamado de livre se não for afetado ou causado por alguma coisa que o precede exigindo ainda assim à medida que se transforma imediatamente em uma causa do que quer que venha a se seguir uma justificativa que se vier a ter êxito terá que apresentar o ato como a continuação de uma série precedente isto é virá a negar a própria experiência de liberdade e novidade E o que a Antigüidade romana tinha a ensinar a esses respeito era bastante tranqüilizante e consolador Não sabemos por que os romanos no século III aC ou talvez ainda mais cedo decidiram traçar sua ascendência não a partir de Rômulo mas sim de Enéias o homem de Tróia que trouxera Ilio junto com os Penates vencidos para a Itália e que portanto tomouse a origem da raça romana Mas é óbvio que esse fato era de grande importância não só para Virgílio e seus contemporâneos do tempo de Augusto como também para todos aqueles que começando com Maquiavel tinham se dirigido à Antigüidade romana para aprender como conduzir os assuntos humanos sem a ajuda de um Deus transcendente O que os homens de ação estavam aprendendo nos arquivos da Antigüidade romana era o significado original de um fenômeno com o qual curiosamente a civilização ocidental tivera contato desde o fim do Império Romano e o conseqüente triunfo definitivo do cristianismo Longe de ser novo o fenômeno do renascer ou da renascença que se deu dos séculos XV e XVI em diante tinha dominado o desenvolvimento cultural da Europa e fora precedido por toda uma série de renascenças menores que deram fim aos poucos séculos daquilo que realmente foi a Idade das Trevas entre o saque de Roma e a renascença Carolíngia Cada um destes renasceres consistindo em uma Restauração do Saber e centrandose na Antigüidade romana e em menor grau na grega só alterara e revitalizara os meios muito restritos da elite instruída dentro e fora dos monastérios Foi só na Era do Iluminismo isto é em um mundo agora completamente secularizado que a restauração da Antigüidade deixou de ser uma questão de erudição passando a responder a propósitos práticos altamente políticos Nesta empreitada o único predecessor fora uma figura solitária Maquiavel O problema que os homens de ação estavam sendo convidados a resolver era o da perplexidade inerente à tarefa da fundação e uma vez que para eles o exemplo paradigmático de uma fundação bem sucedida tinha que ser Roma era da maior importância descobrir que mesmo a fundação de Roma como os próprios romanos a tinham compreendido não era um começo absolutamente novo Segundo Virgílio era o ressurgimento de Tróia e o restabelecimento de uma CidadeEstado que precedera Roma Portanto a linha de continuidade e tradição exigida pelo próprio contínuo de tempo e pela faculdade da memória este temor inato de que as coisas caiam no esquecimento que parece pertencer à criatura temporal tanto quanto a habilidade de fazer projetos para o futuro nunca tinha sido quebrada Vista sob esse ângulo a fundação de Roma foi o renascer de Tróia a primeira por assim dizer de uma série de renascenças que fizeram a história da cultura e civilização européia Basta que recapitulemos o poema político mais famoso de Vírgilio a Quarta Écloga para compreendermos como foi vital para a visão romana de seu Estado interpretar a constituição e fundação em termos do restabelecimento de um começo o qual como um começo absoluto permanece etemamente envolto em mistério Pois se no reino de Augusto o grande ciclo de períodos nasce de novo como todas as traduções padrão para as línguas modernas apresentam o grande verso de Virgílio Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo é justamente porque esta ordem das eras não é nova mas é somente um retomo a algo anterior Para Augusto que na Eneida tem a tarefa de começar este renascer há inclusive a promessa de que de novo há de trazer ao Lácio séculos de ouro por entre os campos outrora governados por Saturno isto é a terra itálica antes da chegada dos troianos133 Seja como for a ordem invocada na Quarta Ecloga tem sua grandeza ao voltar a um começo anterior sendo por ele inspirada Retoma agora a donzela retoma o reino de Saturno E ainda assim o caminho de volta visto do ângulo daqueles que vivem agora é um verdadeiro começo Agora do alto dos céus uma nova geração é enviada134 Este é sem dúvida um hino ao nascimento uma canção em louvor ao nascimento de uma criança e da chegada de uma nova progenies uma nova geração Foi por muito tempo confundido com uma profecia de salvação através de um Theos soter um Deus salvador ou ao menos com uma expressão de um anseio religioso précristão Porém longe de predizer a chegada de uma criança divina o poema é uma afirmação do caráter divino do nascimento como tal se queremos extrair dele um significado geral este poderia ser a crença do poeta de que a salvação potencial do mundo encontrase justamente no fato de que a espécie humana regenerase sempre e constantemente Mas esse significado não é explícito tudo o que o próprio poeta diz é que toda criança nascida na continuidade da história romana tem que aprender heroum laudes et facta parentis as glórias dos heróis e os feitos dos progenitores de forma que seja capaz de fazer o que todos os meninos romanos deveríam supostamente fazer ajudar a governar o mundo para o qual as virtudes de seus pais tinham trazido a paz135 Em nosso contexto o que importa é que a noção de fundação de contar o tempo ab urbe condita está exatamente no centro da historiografia romana juntamente com a não menos profunda noção romana de que todas essas fundações tendo lugar exclusivamente no campo dos assuntos humanos em que os homens representam uma história para relembrar e preservar são restabelecimentos e reconstituições e não começos absolutos Isso fica ainda mais evidente quando interpretamos a Eneida de Virgílio a história da fundação da cidade de Roma lado a lado com as Geórgicas os quatro poemas em louvor da agricultura do zelo pelos campos e rebanhos e árvores e da terra calma entregue aos cuidados do trabalho cíclico do lavrador renovandose enquanto o ano volta a rolar sobre si seguindo o caminho costumeiro ela permanece impassível e sobrevive a muitos filhos dos filhos vê passar por si muitas gerações de homens Esta é a Itália antes de Roma a terra de Saturno terra de varões aquele que nela vive que conhece os deuses da terra Pan o velho Silvano e as irmãs Ninfas e permanece fiel ao amor das águas e dos bosques perdese da fama A ele os fasces gloriosos do povo e a púrpura dos reis não atingem nem o Estado Romano ou os reinos destinados ao declínio nem pode a misericórdia dos pobres ou a inveja dos ricos causarlhe tormento Que frutos os campos graciosos geram por sua livre e espontânea vontade Estes ele colhe e nada sabe do ferro da justiça ou do Foro louco ou do passado do povo Esta vida em sagrada pureza era a vida de ouro que Saturno levara na terra e o único problema era que neste mundo de maravilhas e abundância de plantas e animais não há lenda das várias raças ou nomes que as designem e nem era o caso de registrar esta lenda Que vá ele saber quantos grãos de areia há no redemoinho do Euro sobre a planície da Líbia ou contar quantas ondas quebram na costa dos mares da Jônia Aqueles que cantam a origem deste mundo prétroiano e pré romano cujos anos circulares não produzem lendas que mereçam ser contadas mas que ao mesmo tempo produzem as maiores maravilhas da natureza que não cessam de deleitar os homens aqueles que em Virgílio louvam o reino de Saturno e os mitos da criação na sexta Ecloga ou no Livro I da Eneida cantam uma terra de contos de fadas e são eles mesmos figuras marginais O bardo de Dido de longos cabelos e Celênio com as veias mais inchadas que nunca do vinho de ontem entretêm uma platéia jovem e vivaz com as velhas histórias das andanças da Lua e das agonias do Sol de onde vêm a raça humana e os brutos de onde vêm a água e o fogo de como em pleno e amplo vazio foram colhidas as sementes da terra e do ar e do mar e além disso a do fogo e de como a partir destes todos os começos das coisas e do jovem mundo esférico cresciam juntos Ainda assim e isto é decisivo esta terra utópica de fazdeconta que fica de fora da história é eterna e sobrevive na indestrutibilidade da natureza os lavradores ou pastores que cuidam dos campos e dos rebanhos são ainda testemunhos em plena história romanotroiana de um passado itálico em que os nativos eram o povo de Saturno e não havia lei que os acorrentasse à justiça virtuosos em sua própria vontade livre e no costume do deus dos velhos136 Assim nenhuma ambição romana era encarregada de governar as nações e ordenar a lei da paz regere império populos pacisque imponere morem e nenhuma moralidade romana era mais necessária para poupar os conquistados e derrotar os soberbos parcere suiectis et debellare superbos Detiveme nos poemas de Virgílio com algum vagar por diferentes razões Resumindo os homens quando se livraram da tutela da Igreja voltaramse para a Antigüidade e seus primeiros passos em um mundo secularizado foram guiados pela revitalização de um saber antigo Confrontados com o enigma da fundação como reiniciar o tempo dentro de um contínuo de tempo inexorável eles naturalmente voltaramse para a história da fundação de Roma e aprenderam com Virgílio que esse ponto de partida da história ocidental já tinha sido um reviver o ressurgimento de Tróia Aquilo só lhes poderia dizer que a esperança de fundar uma nova Roma era uma ilusão o máximo que eles poderíam esperar seria repetir a fundação primitiva e fundar Roma de novo O que quer que fosse anterior a esta primeira fundação ela própria o ressurgimento de algum passado definido estava situado fora da história era a natureza cuja eternidade cíclica poderia fornecer um refúgio contra a marcha para adiante do tempo a direção vertical e retilínea da história um lugar de ócio otium para quando os homens cansassem dos negócios nãoócios da cidadania nec otium por definição mas cuja origem não tinha qualquer interesse porque se encontrava além do alcance da ação Com certeza há algo de enigmático no fato de que os homens de ação cuja única intenção e propósito era modificar toda a estrutura do mundo futuro e criar uma novus ordo seclorum tenham se dirigido àquele passado distante da Antigüidade pois eles não reverteram deliberadamente o eixo do tempo e mandaram os jovens caminhar de volta ao puro resplendor do passado Petrarca137 porque o passado clássico é o verdadeiro futuro Buscavam um paradigma para uma nova forma de governo em sua própria era esclarecida e dificilmente se davam conta do fato de que estavam olhando para trás Ainda mais enigmático a meu ver do que terem vasculhado os arquivos da Antigüidade é não se terem rebelado contra a Antigüidade quando descobriram que a resposta final e certamente mais profunda dos romanos a prudência antiga era que a salvação sempre vem do passado que os ancestrais eram maiores superiores por definição E espantoso além disso que a noção do futuro justamente um futuro prenhe da salvação final que traz de volta uma espécie de Idade do Ouro inicial tenha se tomado popular em um tempo em que o Progresso tomara se o conceito dominante na explicação do movimento da história E o mais impressionante exemplo da persistência daquele sonho muito antigo é obviamente a fantasia marxista de um reino de liberdade sem classes e sem guerras tal como foi prefigurado no comunismo original um reino que tem mais do que uma semelhança superficial com o reino original de Saturno sobre a Itália quando nenhuma lei acorrentava os homens à justiça Em sua forma original antiga como o início da história a Idade do Ouro é um pensamento melancólico É como se há milhares de anos nossos ancestrais houvessem tido um pressentimento da descoberta eventual do princípio da entropia que surgiría em um século XIX embriagado de progresso uma descoberta que se não tivesse sido questionada teria destituído a ação de qualquer significado138 O que fez na verdade o princípio da entropia desaparecer para os homens que realizaram as revoluções dos séculos XIX e XX foi não tanto a refutação científica de Engels mas o retomo de Marx e obviamente também o de Nietzsche ao conceito cíclico de tempo em que a inocência préhistórica do começo finalmente reaparecería tão triunfante quanto a segunda vinda de Jesus à Terra Mas isso não nos interessa aqui Quando dirigimos nossa atenção para os homens de ação esperando encontrar neles uma noção de liberdade purgada das perplexidades causadas nos espíritos humanos pela reflexividade das atividades do espírito a inevitável repercussão do ego volitivo sobre si mesmo esperavamos mais do que finalmente alcançamos O abismo de pura espontaneidade que nas lendas fundadoras é superado pelo hiato entre liberação e constituição da liberdade foi coberto com o mecanismo típico da tradição ocidental a única tradição em que a liberdade sempre foi a raison dêtre de toda política através do qual compreendemos o novo como uma reafirmação melhorada do velho A liberdade só sobreviveu em sua integridade original na teoria política isto é na teoria concebida com a finalidade da ação política apenas nas promessas utópicas e infundadas de um reino de liberdade final que na sua versão marxista em todo caso significaria de fato o fim de todas as coisas uma paz etema na qual todas as atividades especificamente humanas desapareceríam Sem dúvida chegar a uma conclusão como esta é frustrante mas só conheço para ela uma única alternativa possível em toda a história do pensamento político Se como Hegel acreditava a tarefa do filósofo é apreender a mais elusiva de todas as manifestações o espírito de uma era na rede dos conceitos da razão então Santo Agostinho o filósofo cristão do século V dC foi o único filósofo que Roma jamais teve Ele era romano mais por educação do que por nascimento e foi sua educação que o levou aos textos clássicos da Roma republicana do século I aC que mesmo então viviam somente sob a forma da erudição Em sua grande obra A cidade de Deus ele menciona mas não explica algo que poderia terse tomado o alicerce ontológico para uma filosofia da política verdadeiramente romana ou virgiliana Segundo ele como sabemos Deus criou o homem como uma criatura temporal hommo temporalis o tempo e o homem foram criados juntos e essa temporalidade foi afirmada pelo fato de que cada homem devia sua vida não somente à multiplicação das espécies mas ao nascimento à entrada de uma criatura nova que como algo inteiramente novo aparece em meio ao contínuo de tempo do mundo O propósito da criação do homem era tomar possível um começo Para que houvesse um começo o homem foi criado sem que antes dele ninguém o fosse Initium ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit139 A própria capacidade de começar tem raiz na natalidade e de forma alguma na criatividade não em um dom mas no fato de que os seres humanos novos homens continuamente aparecem no mundo em virtude do nascimento Estou bem consciente de que o argumento mesmo na versão agostiniana é um tanto opaco e não nos parece dizer nada além de que estamos condenados a ser livres porque nascemos não importando se apreciamos a liberdade ou abominamos sua arbitrariedade se ela nos apraz ou se preferimos escapar à sua terrível responsabilidade elegendo alguma forma de fatalismo Esse impasse se é que é um impasse só pode ser desfeito ou resolvido pelo apelo a uma outra faculdade do espírito não menos misteriosa do que a faculdade de começar a faculdade do Juízo cuja análise poderia no mínimo nos dizer o que está em jogo em nossos prazeres e desprazeres Notas Capítulo 1 1 Ver Sophist 253254 e Republic 517 2 Hermman Diels e Walther Kranz Die Fragmente der Vorsokratiker Berlim 1960 vol I frag B4 3 Confessions Livro XI cap 13 4 La Pensée et le Mouvant 1934 Paris 1950 p 170 5 Ibid p 26 6 117466 e 1177a20 Ver também as objeções de Aristóteles ao conceito de prazer em Platão 1173al31173b7 7 Op cit p 5 8 Para o que se segue ver Metaphisics Livro VII cap 710 9 De Anima 433a30 10 Bruno Snell The Discovery of the Mind Nova Iorque Evanston 1960 pp 182183 11 The Spirit of Medieval Philosophy Nova Iorque 1940 p 307 12 Tem sido uma questão de debate entre os velhos filósofos muito antes da encarnação de nosso Salvador se tudo o que ocorre vem da necessidade ou se algumas coisas vêm do acaso Mas o terceiro modo de fazer as coisas acontecer isto é a vontade livre é algo que nunca foi mencionado por eles nem pelos cristãos no início do Cristianismo Mas há algum tempo os doutores da Igreja Romana extraíram deste domínio da vontade Deus a vontade do homem e trouxeram a doutrina em que a vontade do homem é livre e determinada pelo próprio poder da vontade The Question Concerning Liberty Necessity and Chance English Work Londres 1841 Vol Vp 1 13 Ver Nicomachean Ethics Livro V cap 8 14 Ibid livro III 1110 al7 15 Gilbert Ryle The Concept of Mind Nova Iorque 1949 p 65 16 Henry Herbert Williams artigo sobre a Vontade in Encyclopaedia Britannica 11 edição 17 De Generatione Livro I cap 3 317b 1618 18 Ibid 318a2527 e 319a2329 The Basic Works of Aristotle Richard McKeon Nova Iorque 1941 p 483 19 Meteorologica 339b27 20 Livro I 1100a33l 100bl8 21 De Caelo 283b2631 22 The Will to Power Walter Kaufmann cd Vintage Books Nova Iorque 1968 n617 23 DeCivitateDei Livro XII cap 20 24 Ibid cap 13 25 Nosso atual calendário que toma o nascimento de Cristo como o ponto decisivo a partir do qual contamos o tempo para frente e para trás foi introduzido no final do século XVIII Os manuais alegam que a reforma era necessária por razões acadêmicas para facilitar a datação dos eventos da Antigüidade sem precisar fazer referência ao emaranhado de diferentes contagens de tempo Hegel ao que eu saiba o único filósofo a ponderar sobre a mudança abrupta e notável viu nela um claro sinal de cronologia verdadeiramente cristã uma vez que o nascimento de Cristo tomavase então o ponto decisivo da história do mundo Parece mais significativo que no novo esquema possamos contar o tempo para frente e para trás de modo que o passado estenda se para um infinito passado e que o futuro do mesmo modo estenda se para um futuro infinito A dupla infinitude elimina todas as noções de começo e de tempo estabelecendo a humanidade por assim dizer em uma realidade potencialmente sempitema na Terra Nem é preciso acrescentar que nada poderia ser mais estranho ao pensamento cristão do que uma imortalidade terrena da humanidade e de seu mundo 26 Ver o artigo sobre a Vontade na Encyclopaedia Britannica mencionado anteriormente na nota 16 27 Ver Dieter Nestle Eleutheria Teil I Studien zum Wesen der Freiheit bei den Griechen und im Nenen Testament Tubingen 1967 pp 6 e s Parece digno de nota que a etimologia moderna se incline a derivar a palavra Eleutheria de uma raiz indogennânica significando Volk or Stamm que tem como resultado apresentar aqueles que pertencem ã mesma unidade étnica como sendo reconhecidos livres por seus companheiros de etnia Este exemplo de erudição não soa desconfortavelmente próximo das noções de cultura alemã dos anos trinta que vinham à tona na época pela primeira vez 28 Critique of Pure Reason B476 Para esta e outras citações ver a tradução de Norman Kemp Smith Immanuel Kants Critique of Pure Reason Nova Iorque 1963 em que a autora freqüentemente se baseou 29 Uber die dsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen 1795 19s carta 30 The World as Wil and Idea 1818 traduzido por R B Haldane e J Kemp vol I pp 39 e 129 Citado aqui da introdução de Konstantin Kolenda ao Essay on the freedom of the Will de Arthur Schopenhauer Library of Liberal Arts Indianapolis Nova Iorque I960 p viii 31 Of Human Freedom 1809 traduzido por James Gutmann Chicago 1936 p 24 32 Beyond Good and Evil 1885 traduzido por Marianne Cowan Chicago 1955 seção 18 33 Also Sprach Zarathustra in Ecce Homo 1889 n 1 34 Ibid n 3 35 Ver Karl Jaspers Nietzsche An Introduction to the Understanding of His Philosophical Activity 1935 traduzido por Charles F Wallraff e Frederick J Schmitz Tucson 1965 e Martin Heidegger Nietzsche dois vols Pfullingen 1961 36 Philosophy 1932 traduzido por E B Ashton Chicago 1970 vol 2 p 167 37 Das primare Phanomen der urspriinglichen und eigentlichen Zeitlichkeit ist die Zukunft In Sein und Zeit 1926 Tubingen 1949 p 329 Gelassenheit Pfullingen 1959 tradução inglesa Discourse on Thinking traduzido por John M Anderson e E Hans Freund Nova Iorque 1966 38 Nota da editora fomos incapazes de encontrar esta referência 39 English Works vol V p 55 40 Carta a G H Schaller datada de outubro de 1674 Ver Espinoza The Chief Works editado porR H M Elwes Nova Iorque 1951 vol II p 390 41 Ethics pt Ill prop II nota in ibid vol II p 134 Carta a Schaller in ibid p392 42 Leviathan editado por Michael Oakeshott Oxford 1948 cap 21 43 Essay on the Freedom of the Will p 43 44 An Examination of Sir William Hamiltons Philosophy 1867 cap XXVI citado de Free Will editado por Sidney Morgenbesser e James Walsh Englewood Cliffs 1962 p 59 45 Ver Martin Kahler Das Gewissen 1878 Darmstadt 1967 pp 46 e ss 46 Ver Laws Livro IX 865e 47 Op cit pp 6364 48 Notebooks 19141916 ed bilíngüe traduzido por G E M Anscombe Nova Iorque 1961 item com a data de 5 de agosto 1916 p 80e também pp 86e88e 49 Santo Agostinho On Free Choice of the Will De libero arbítrio Livro III seção 3 50 Em resposta à Objeção XII à Primeira Meditação que a liberdade da vontade foi pressuposta sem prova Ver The Philosophical Works of Descartes trad Elizabeth Haldane e G T Ross Cambridge 1970 vol II pp 7475 51 Meditação IV in ibid 1972 vol I pp 174175 Tradução da autora 52 Principles of Philosophy in ibid pt 1 prin XL p 235 53 Ibid prin XLI p 235 54 Critique of Pure reason B751 55 Op cit pp 9899 56 Critique of Pure Reason B478 57 Ver Hans Jonas Jewish and Christian Elements in Philosophy in Philosophical essays From Ancient Creed to Technological Man Englewood Cliffs 1974 58 Henri Bergson op cit p 13 59 Ibid p 15 60 Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy 1982 Nova Iorque 1960 p 314 Ele também chama Duns Scotus de o maior dos escolásticos p 425 61 John Duns Scotus Philosophical Writings A Selection Trad Allan Wolter Library of Liberal Arts Indianápolis Nova Iorque 1962 pp 84 e 10 62 Hans Jonas op cit p 29 63 Op cit p 10 64 Ibid p 33 65 Time and Free Will An essay on the immediate data of consciousness 1889 trad F L Pogson Harper Torchbooks Nova lorque 1960 p 142 66 Ibid pp 240 e 167 67 Principles of Philosophy prin XLI in The Philosophical Works of Descartes op cit p 235 68 Resposta a Objeções à Meditação V op cit p 225 69 Duns Scotus op cit p 171 70 Ver sua investigação exaustiva sobre o argumento fatalista Tt was to be in Dilemmas Cambridge 1969 pp 1535 71 Ibid p 28 72 De Fato xiii 3014 31 73 Ibid V 35 74 Como Chrysippus já apontou Ver ibid xx 48 75 Confessio Philosophi ed bilingiie ed Otto Saame Frankfurt 1967 p 66 76 Jenenser Logik MetaphysikundNaturphilosophieCasson ed Leipzig 1923 p 204 in Naturphilosophie I A Begriffder Bewegung 77 Ver Friedrich Nietzsche Thus Spoke Zarathustra pt II On Redemption A vontade não pode querer para trás Que o tempo não anda para trás é esta a sua fúria aquilo que foi é o nome da pedra que não pode se mover in The Portable Nietzsche trad Walter Kaufmann Nova lorque 1954 p 251 78 Ver cap Ill p 142en89 79 Op cit p 110 80 Ibid 122 81 Ibid pp 42 44 76 92 98 100 82 Citado por Walter Lehmann em sua Introdução para uma Antologia de Escritos Alemães Meister Eckhart Gottingen 1919 sentença 15 p 16 83 O ensaio está agora disponível em Etudes dHistoire de la Pensée Philosophique Paris 1961 84 Agora disponível em inglês Introduction to the Readings of Hegel ed Allan Bloom Nova lorque 1969 p 134 85 Op cit p 177 86 Philosophy of Right Preface Encyclopedia n 465 2a edição 87 Op cit loc cit 88 Ibid p 177 e 185 nota 89 Ibid 188 90 Jenenser Logik p 204 91 Koyré op cit p 183 citando Hegel JenenserRealphilosophie ed Johannes Hoffmeister Leipzig 1932 vol II p 10 e ss 92 Koyré op cit p 177 93 Platão Republic 329bc 94 Koyré op cit p 166 95 Ibid p 174 96 Koyré La Terminologie Hégélienne in op cit p 213 97 Martin Heidegger Sein und Zeit n 65 p 326 98 Koyré op cit p 188 citando Phdnomenologie des Geistes 99 Koyré op cit p 183 citando JenenserRealphilosophie 100 Koyré Hegel àléna in op cit p 188 101 Koyré op cit p 185 citando JenenserRealphilosophie 102 A passagem em Plotino é um comentário do Timeu de Platão 37c38b Aparece em Ennead III 711 On Time and Eternity Utilizei uma tradução de A H Armstrong in Loeb Classical Library Londres 1967 e a tradução de Emile Bréhier para o francês na edição bilíngüe das Ennéades Paris 192438 103 Um relato excelente e muito detalhado da literatura sobre Hegel está agora disponível in Michael Theunissen Die Verwirklichung der Vernunft Zur TheoriePraxisDiskussion im Anschluss an Hegel Beiheft 6 da Philosophic Rundschau Tübingen 1970 Os principais trabalhos em nosso contexto são Franz Rosenzweig Hegel und derStaat 2 vols 1920 Aalen 1962 Joachim Ritter Hegel und die franzõsische Revolution Frankfurt 1965 Manfred Riedel Theorie und Praxis im Denkem Hegels Stuttgart 1965 104 The Philosophy of History trad J Sibree Nova lorque 1956 pp 446 447 Philosophic der Weltgeschichte Hãlfte II Die Germanische Welt Lasson Leipzig 1923 p 926 105 Em uma carta a Schelling de 16 de Abril 1795 Briefe Leipzig 1887 vol I p 15 106 Citado de Theunissen op cit 107 The Philosophy of History p 442 108 Ibid p 446 109 Ibid pp 30 e 36 110 Ibid p 442 111 Ibid p 443 Tradução da autora 112 Ibid p 36 113 Ibid p 79 Tradução da autora cf Werke Berlim 1940 vol IX p 98 114 Op cit p 189 115 The Phenomenology of Mind trad J B Baillie 1910 Nova Iorque 1964 p 803 116 Koyré op cit p 164 citando Encyclopedia n 258 117 Hegel The Phenomenology of Mind pp 801 807808 Grifos nossos 118 Ibid p 808 119 Überwindung der Metaphysik in Vortrage und Aufsdtze Pfullingen 1954 vol I set xxii p 89 120 Hegel Science of Logic trad W H Johnston e L G Struthers Londres Nova Iorque 1966 vol I p 118 121 Toward a Genealogy of Morals 1887 n 28 122 Heidegger Uberwindung der Metaphysik op cit set xxiii p 89 123 Science of Logic vol I pp 95 97 85 Capítulo 2 1 Concept of Mind pp 62 e ss 2 Ver o estudo bastante iluminador de E H Gombrich Art and Illusion Nova Iorque 1960 3 De Anima 433a2124 e Nicomachean Ethics 1139a35 4 Para esta citação e para o que se segue ver De Anima Livro III cap 9 e 10 5 Meister Eckhart Franz Pfeiffer ed Gottingen 1914 pp 551552 6 Citado de Werner Jaeger Aristotle Londres 1962 p 249 Jaeger nota também que o terceiro livro Sobre a Alma que citei aqui parece peculiarmente platônico p 332 7 Nicomachean Ethics 1168b6 8 Ibid 1166b525 9 Ver as últimas linhas de Antígona 10 Nicomachean Ethics 1139bl4 11 Citado de Andreas Graeser Plotinus and the Stoics Leiden 1972 p 119 12 NicomacheanEthics 1139a3133 1139b45 13 Ibid 1134a21 14 Ibid 1112bl2 15 Eudemian Ethics 1226al0 16 Ibid 1223b 10 17 Ibid 1224a311224b 15 18 Ibid 1226b 10 19 Ibid 1226b 1 112 Cf Nicomachean Ethics 1 1 12b 1118 20 Para uma excelente discussão sobre Vontade e Liberdade em Kant ver Lewis White Beck A Commentary on Kants Critique of Practical Reason Chicago Londres 1960 cap XL 21 Op cit p 551 22 Hans Jonas Augustin und das paulinische Freiheitsproblem 2a ed Gottingen 1965 ver cspecialmentc cap Ill publicado como Philosophical Meditation on the Seventh Chapter of Pauls Epistle to the Romans in The Future of our Religious Past ed James M Robinson Londres Nova Iorque 1971 pp 333350 23 Metamorphoses Livro VII 11 2021 Video meliora proboque deteriora sequor 24 Chagigah II 1 Citado de Hans Blumenberg Paradigmen zu einer Metaphorologie Bonn 1960 p 26 n 38 25 Livro XI cap xii e xxx 26 Ver Discourses Livro II cap xix 27 Fragments 23 28 The Mammal 23 e 33 29 Discourses Livro II cap 16 30 Todos os trabalhos que temos inclusive os Discourses são aparentemente quase um registro estenográfico de suas conferências e discussões informais anotadas c compiladas por um de seus alunos Arriam Ver Whitney J Oates Introdução Geral para seu The Stoic and Epicurean Philosophers Modern Library Nova Iorque 1940 cuja tradução sigo frequentemente 31 Discourses Livro I cap xv 32 Ibid Livro II cap xviii 33 Ibid Livro I cap xxvii 34 Ibid Livro II cap i 35 Ibid Livro II cap xvi 36 The Manual 23 e 33 37 Discourses Livro II cap xvi 38 Ibid Livro I cap i 39 Ibid 40 Ibid Livro I cap xvii 41 Phisic 188b30 42 Discourses Livro I cap xvii 43 Ibid Livro II cap xi 44 Ibid Livro II cap x 45 Ibid Livro III cap xiv 46 The Manual 1 47 Fragments 1 48 Ibid 8 49 Discourses Livro I cap i 50 The Manual 30 51 Discourses Livro I cap xxv 52 Ibid Livro I cap ix 53 Ibid Livro I cap xxv Grifo nosso 54 Le Mythe de Sisyphe Paris 1942 55 De Trinitate Livro XIII vii 10 56 Ibid viii 11 57 Discourses Livro II cap x 58 Ibid Livro II cap xvii 59 The Manual 8 60 Fragments 8 61 In De Libero Arbítrio Livro III vviii 62 Discourses Livro II cap xviii 63 Ibid Livro II cap viii 64 The Manual 5148 65 Frag 149 Enarrationes in Psalmos Patrologiae Latina JP Migne Paris 185466 vol 37 CXXXIV 16 66 Paul Oskar Kristeller com um pouco mais de cuidado diz que Santo Agostinho é provavelmente o maior filósofo grego da Antigüidade clássica Ver Renaissance Concepts of Man Harper Torchbooks Nova Iorque 1972 p 149 67 On the Trinity Livro 13 iv 7 Bead certe inquit Cicero omnes esse volumus 68 O vitae philosophia dux Tusculanae Disputationes Livro V cap 2 69 Citado com aprovação de um escritor romano Varro em The City of God Livro XIX i 3 Nulla est homini causa philosophandi nisi ut beatus sit 70 Para a importância e profundidade desta questão ver especialmente On the Trinity Livro X caps iii e viii Como o espírito pode buscar a si mesmo e encontrarse é uma questão singular Aonde vai para procurar e donde vem para encontrar 71 Confessions Livro XI especialmente cap xiv e xxii 72 Peter Brown Augustine of Hippo Berkeley e Los Angeles 1967 p 123 73 Ibid 112 74 On Free Choice of the Will Livro I cap i e ii 75 Ibid cap xvi 117 e 118 76 Confessions Livro VIII cap v 77 Ibid cap viii 78 Uma explicação detalhada sobre a derivação de voluntas de velle e potestas de posse aparece em The Spirit and the Letter arts 5258 um trabalho da fase final interessado na questão A fé está ela mesma em nosso poder in Morgenbesser e Walsh op cit p 22 79 On Free Choice of the Will Livro III cap iii 27 cf ibid Livro I cap xii 86 e Retractationes Livro I cap ix 3 80 Epistolae VTl 5 On Free Choice of the Will Livro III cap i 810 cap iii 33 81 Ver Etienne Gilson Jean Duns Scot introduction à ses positions fondamentales Paris 1952 p 657 82 On Free Choice of the Will Livro III cap xxv 83 Ibid cap xvii 84 On Grace and Free Will cap xliv 85 Confessions Livro VIII cap iii 68 86 On Free Choice of the Will Livro III caps viviii Lehmann op cit sentença 14 p 16 87 On Free Choice of the Will Livro III cap v 88 Precious Five Collected Poems Nova Iorque p 450 89 Confessions Livro VIII cap viii 90 Ibid cap ix 91 Ibid caps ix e x 92 Ibid cap x 93 Epistolae 157 2 9 55 10 18 Confissões Livro XIII cap ix 94 In An examination of Sir William Hamiltons Philosophy On the Freedom of the Will 1867 citado de Morgenbesser e Walsh op cit pp 5769 Grifo nosso 95 Confessions Livro III cap vi 11 96 Livro IX cap iv 97 Livro XIII cap xi 98 Livro X cap xi 18 99 Ibid Livro XL cap iii 6 100 Ibid cap ii 2 101 Ibid cap iv 7 102 Ibid cap v 8 103 Ibid Livro XII cap iii 3 104 Efrem Bettoni Duns Scotus The Basic Principles of his Philosophy trad Bemardine Bonansea Washington 1961 p 158 Grifo nosso 105 On the Trinity Livro XV cap xxi 41 106 Ibid Livro VIII cap x 107 Ibid Livro X cap viii 11 108 Ibid Livro XI cap ii 5 109 Ibid Livro X cap v7 Grifo nosso 110 Ibid cap xi 17 111 Ibid Livro XI cap v9 112 Ibid Livro X cap v7 113 Ibid cap viii 11 114 Ibid cap v7 Cf Livro XII cap xii xiv xv 115 Ibid Livro XII cap xiv 23 116 Ibid Livro X cap xi 18 117 Ibid Livro XI cap ix 18 118 The City of God Livro XI cap xxviii 119 William H Davis The Freewill Question The Hague 1971 p 29 120 Em sua forma mais extrema como foi sustentada por Santo Agostinho no final da vida a doutrina afirma que as crianças que não recebem o batismo antes de morrer estão condenadas àdanação eterna Isso não pode se justificar fazendo apelo a São Paulo porque essas crianças não podem ainda ter conhecido a fé Só depois que a graça é materializada em um sacramento realizado pela Igreja só depois que a fé foi institucionalizada essa versão da predestinação pode se justificar A graça institucionalizada não é mais um dado da consciência uma experiência do homem interior e portanto não tem interesse para a filosofia tampouco é a rigor uma questão de fé Certamente este está entre os fatos políticos mais importantes no credo cristão do qual não estamos tratando aqui 121 The City of God Livro XI cap xxi 122 Confessions Livro XI cap xiv 123 Ibid caps xx e xxviii 124 Ibid cap xxi 125 Ibid cap xxiv xxvi xxviii 126 Ver especialmente Livros XIXIII de The City ofGod 127 Ibid Livro XII cap xiv 128 Ibid Livro XI cap vi 129 Ibid Livro XII cap xiv 130 Ibid cap xx e xxi 131 Ibid Livro XI cap xxxii 132 Ibid Livro XII cap xxi e xxii 133 Ibid cap vi 134 Ibid Livro XIII cap x 135 B478 Capítulo 3 1 The Spirit of Medieval Philosophy pp 207 e 70 2 Summa Theologica I questão 82 a 1 3 Ibid questão 81 a 3 e questão 83 a 4 4 Duns Scotus citado por Gilson The Spirit of Medieval Philosophy p 52 5 Gilson The Spirit of Medieval Philosophy p 437 6 Em What Is Authority in Between Past and Future tentei mostrar a importância do passado para uma concepção romana de política Ver especialmente a explicação da tríade romana auctoritas religio traditio 7 De Civitate Dei Livro XII cap xiv 8 Op cit I questão 5 a 4 9 Ibid III questão 15 a 3 10 Ibid I questão 15 a 3 11 Ibid I questão 48 a 3 12 Ibid questão 5 questão 49 a 3 13 Citado em ibid questão 49 a 3 14 History of Christian Philosophy in the Middle Age Nova Iorque 1955 p 375 15 Summa Theologica I questão 75 a 6 16 Ibid questão 81 a 3 17 Ibid questão 82 a 4 18 Gilson History of Christian Philosophy in the Middle Age p 766 19 Summa Theologica I questão 29 a 3 Resp 20 Agostinho De Civitate Dei Livro XII cap xxi 21 Summa Theologica I questão 82 a 4 22 Ibid questão 83 a 3 23 Levantado por São Tomás na Summa contra Gentiles III 26 24 Citado de Wilhelm Kahl Die Lehre vom Primat des Willens bei Augustin Duns Scotus und Descartes Estrasburgo 1886 p 61 nota 25 The Divine Comedy Paraíso Canto xviii 1 109 s trad Laurence Binyon Nova Iorque 1949 Assim vês que o homem celestial se funda Mais no ato de ver a Deus Do que no amor que apenas o secunda Tradução livre NT 26 Citado de Gustav Siewerth Thomas von Aquin die menschliche Willesfreiheit Texte ausgewahltmiteinerEinleitungversechenDüsseldorf 1954 p 62 27 Summa Theologica I questão 79 a 2 28 Ibid III questão 9 a 1 29 NicomacheanEthics Livro X 1178bl821 1177b56 30 Summa Theologica III questão 10 a 2 Summa contra Gentiles loc cit 31 Metaphisics 1072b3 32 SummaTheologicaIII questão 1 la3Cf Commentary onSt Pauls Epistle to the Galatians cap 5 lec3 33 Grundlegung zur Metaphysik des Sitten Akademie Ausgabe vol IV 1911 p 429 34 Ver por exemplo a seção IV da edição bilíngüe de Duns Scotus Philosophical Writtings ed e trad Allan Wolter Edinburgo Londres 1962 pp 83 e ss 35 Citado de Khal op cit pp 97 e 99 36 Ver Efrem Bettoni The Originality of the Scotistic Synthesis in John K Ryan e Bemardine M Bonansea John Duns Scotus 1265 1965 Washington 1965 p 34 37 Duns Scotus p 191 Em um contexto diferente entretanto embora ainda no mesmo livro p 144 Bettoni sustenta que em grande parte a originalidade da demonstração scotiana da existência de Deus reside em ser uma síntese de São Tomás e Santo Anselmo 38 Além das obras citadas acima utilizei principalmente as seguintes Emst Stadler Psychologic und Metaphysik der menschlichen Freiheit Munique Paderborn Viena 1971 Ludwig Walter Das Glaubensverstãndnis bei Johannes Scotus Munique Paderborn Viena 1968 Etienne Gilson Jean Duns Scot Johannes Auer Die menschliche Willensfreiheit im Lehrsystem des Thomas von Aquin und Johannes Duns Scotus Munique 1938 Walter Hoeres Der Wille ais reine Vollkommenheit nach Duns Scotus Munique 1962 Robert Prentice The Voluntarism in Duns Scotus in Franciscan Studies vol 28 Annual VI 1968 Berard Vogt The Metaphysics of Human Liberty in Duns Scotus in Proceedings of the American Catholic Philosophical Association vol XVI 1940 39 Citado de Wolter op cit pp 64 73 e 57 40 Citado de Kristeller op cit p 58 41 Citado de Wolter op cit p 162 Tradução da autora 42 Ibid p 161 Trad da autorS 43 Ibid nota 25 seção V p 184 44 Ibid p 73 45 Ibid p 75 46 Ibid p 72 Gilson sustenta que a própria noção de infinito é de origem cristã Os gregos antes da Era Cristã nunca conceberam a infinitude a não ser como uma imperfeição Ver The Spirit of Medieval Philosophy p 55 47 Ver Walter op cit p 130 48 Citado de Stadter op cit p 315 49 Citado de Auer op cit p 86 50 Citado de Vogt op cit p 34 51 Ibid 52 Citado de Kahl op cit pp 8687 53 Bettoni Duns Scotus p 76 54 Ver Bernardine M Bonansea Duns Scotus Voluntarism in Ryan e Bonansea op cit p 92 Nonpossum velle esse miserum sed ex hoc non sequitur ergo necessário volo beatitudinem quia nullum velle necessário elicitura voluntate p 93 nota 38 55 Ver ibid pp 8990 e nota 28 Bonansea enumera as passagens que parecem indicar a possibilidade de a vontade buscar o mal como mal p 89 nota 25 56 Citado de Vogt op cit p 31 57 Bonansea op cit p 94 nota44 58 Ver Vogt op cit p 29 e Bonansea op cit p 86 nota 13 Voluntas naturalis non est voluntas nec velle naturale est velle 59 Citado de Hoeres op cit pp 113114 60 Ibid p 151 A citação é de Auer op cit p 149 61 Hoeres op cit p 120 Enquanto a edição definitiva das obras de Duns Scotus não estiver completa algumas questões que dizem respeito a seus ensinamentos sobre tais temas permanecerão em aberto 62 Bettoni Duns Scotus p 187 63 Ibid 188 64 Ver Stadter op cit especialmente a seção sobre Petrus Johannes Olivi pp 144167 65 Ver Bettoni Duns Scotus p 193 nota 66 Tais frases ocorrem vez por outra Para uma discussão deste tipo de introspecção ver Béraud de SaintMaurice The Contemporary Significance of Duns Scotus Philosophy in Ryan e Bonansea op cit p 354 e Ephrem Longpré The Psychology of Duns Scotus and its Modernity in The Franciscan Educational Conference vol XII 1931 67 Para a prova da contingência Scotus invoca a autoridade de Avicenna citando de sua Metaphisics Aqueles que negam o primeiro princípio isto é que Algum ser é contingente devem ser açoitados ou queimados até que admitam que não é a mesma coisa ser queimado ou chicoteado e não ser queimado ou chicoteado Ver Arthur Hyman e James J Walsh Philosophy in the Middle Ages Nova lorque 1967 p 92 68 Qualquer um que esteja acostumado com as disputas medievais entre as escolas não deixa de se surpreender com seu espírito contencioso um tipo de saber contencioso Francis Bacon que objetivava acima de tudo uma vitória efêmera As sátiras de Erasmo e Rabelais assim como os ataques de Francis Bacon atestam uma atmosfera nas escolas que deve ter sido bastante desagradável para aqueles que estavam fazendo filosofia de fato Para Scotus ver Saint Maurice in Ryan e Bonsnsea op cit pp 354358 69 Citado de Hyman e Walsh op cit p 597 70 Bonansea op cit p 109 nota 90 71 Hoeres op cit p 121 72 Bonansea op cit p 89 73 Stadter op cit p 193 74 Ibid 75 Wolter op cit p 80 76 Aristóteles Phisics 256b 10 77 Auer op cit p 169 78 Para a teoria das causas concorrentes ver Bonansea op cit pp 109110 As citações são basicamente de P Ch Balie Une question inédite de J Duns Scots sur la volonté in Recherches de théologie ancienne et médiévale vol 3 1931 79 Wolter op cit p 55 80 Cf o insight de Bergson citado no do capítulo 1 do presente volume 81 Citado de Hoeres op cit p Ill que infelizmente não fornece qualquer original em latim para a frase Denn alies Vergangene ist schlechthin notwendig 82 Ver Bonansea op cit p 95 83 Citado de Hyman e Walsh op cit p 596 84 Ver Vogt op cit p 29 85 Auer op cit p 152 86 Bettoni Duns Scotus p 158 87 Wolter op cit pp 57 e 177 88 Hoeres op cit p 191 89 Stadter op cit pp 288289 90 Citado em Heidegger Was Heisst Denken Tübingen 1954 p 41 91 Citado de Vogt op cit p 93 92 Hoeres op cit p 197 93 Bettoni Duns Scotus p 122 94 Bonansea op cit p 120 95 Ibid p 119 96 Ibidp 120 97 On the Trinity Livro X cap viii 11 98 Bettoni Duns Scotus p 40 99 Utilizei para minha interpretação o seguinte texto latino tirado da Opus Oxoniense IV díst 49 questão 4 números 59 Si enim accipiatur quietatio pro consequente operationem perfectam concedo quod illam quietationem praecedit perfecta consecutio finis si autem accipiatur quietatio pro actu quietativo in fine dico quod actus amandi qui naturaliter praecedit delectationem quietat illo modo quia potentia operativa non quietatur in obiecto nisi per operationem perfectam per quam attingit obiectum Proponho a seguinte tradução Pois se a quietude é aceita como algo que se segue a uma operação perfeita admito que uma obtenção perfeita do fim precede esta quietude Se entretanto admito que a quietude está em um ato que reside em seu próprio fim afirmo que o ato de amor que precede o prazer traz a calma de um modo que a faculdade da ação só termina no objeto por meio da operação perfeita com a qual se obtém o objeto 100 B643b645trad Smith pp 515516 Capítulo 4 1 Lewis White Beck op cit p 41 2 Para Pascal ver Pensées n 81 Ed Pantheon n 438 257 Ed Pléiade e Sayings Attributed to Pascal in Pensée Ed Penguin p 356 Para Donne ver An Anatomy of the World The First Anniversary 3 The Will To Power n 487 p 269 4 Ibid n419 p 225 5 Heidegger in Uberwindung der Metaphysik op cit p 83 6 Para esta nota e para o que vem a seguir ver especialmente Edgar Zilsel The Genesis of the Concept of Scientific Progress in Journal of the History of Ideas 1945 vol VI p 3 7 Zilsel encontra portanto a gênese do conceito de Progresso na experiência e na atitude intelectual dos artesãos superiores 8 Préface pour le Traité du Vide Ed Pléiade p 310 9 VII 803c 10 Ver Kant Idea for a Universal History from a Cosmopolitan Point of View 1784 Introdução in Kant on History ed Lewis White Beck Library of Liberal Arts Indianapolis Nova Iorque 1963 pp 1112 11 Ibid Terceira Tese Trad da autora 12 Schelling Of Human Freedom p 351 13 Ibid p 350 14 Trad F D Wieck e J G Gray Nova Iorque Evanston Londres 1968 p 91 15 Vortrdge undAufsatze p 89 16 The Will to Power n 419 pp 225226 17 Critique of Pure Reason B478 18 Human All Too Human n 2 in The Portable Nietzsche p 51 19 The Will to Power n 90 p 55 20 Ibid n 1041 p 536 21 An Anatomy of the World The First Anniversary E a nova filosofia de tudo duvida Ao Elemento fogo estinguelhe a vida O Sol se perdeu e a Terra e a sabedoria humana não há Que na busca destes possa ele guiar Está tudo em pedaços a coerência toda no chão Tudo é só estoque e tudo Relação Príncipe Vassalo Pai Filho são coisas esquecidas tradução livre NT 22 The Will to Power n 95 p 59 23 Ibid n 84 p 52 24 Ibid n 668 p 353 Trad da autora 25 Nietzsche vol I p 70 26 N 19 27 Ibid grifo nosso 28 The Will to Power n 693 p 369 29 èidn417p 224 30 Ver cap Ill p 142 31 In Aufzeichnung zum VI Teil von Also Sprach Zarathustra citado de Heidegger WasHeisst Denken p 46 32 The Will to Power n 667 p 352 Trad da autora 33 The Gay Science trad Walter Kaufmann Vintage Books Nova Iorque 1974 Livro VI n 310 pp 247248 34 Ver O Pensar cap II 35 Toward a Genealogy of Morals n 28 36 The Will to Power n 689 p 368 37 The Gay Science Livro VI n 341 pp 273274 38 The Will to Power n 664 p 350 39 Ibid n 666 pp 351352 Trad da autora 40 Thus Spoke Zarathustra parte II On SelfOvercoming in The Portable Nietzsche p 227 41 The Will to Power n 660 p 349 42 Thus Spoke Zarathustra parte II On Redemption in The Portable Nietzsche p 251 43 The Will to Power n 585A pp 316319 44 The Gay Science Livro IV n 324 Trad da autora 45 Ver cap II pp 7384 46 The Will to Power n 585A p 318 47 Ver Twilight of The Idols especialmente The Four Great Errors in The Portable Nietzsche pp 500501 48 Thus Spoke Zarathustra parte II in The Portable Nietzsche p 252 49 The Will to Power n 708 pp 377378 50 The Gay Science Livro IV n 276 p 223 51 Thus Spoke Zarathustra parte III Before Sunrise também The Seven Seals ou The Yes and Amen Song in The Portable Nietzsche pp 276279 e 340343 52 Ver o excelente Index de toda obra de Heidegger inclusive Wegmarken 1968 por Hildegard Feick 2a ed Tübingen 1968 No item Wille Wollen o Index remete o leitor a Sorge Subjekt e cita uma frase do Sein und Zeit Wollen und Wünschen sind im Dasein als Sorge verwurzelt Mencionei que a ênfase moderna no futuro como o tempo verbal predominante mostrouse na escolha heideggeriana do Cuidado como o existencial dominante em suas análises iniciais da existência humana Se relemos as seções correspondentes em Sein und Zeit especialmente o n 41 fica evidente que mais tarde ele usou certas características do Cuidado em sua análise da Vontade 53 Nova Iorque 1971 p 112 54 Primeira ed Frankfurt 1949 p 17 55 Die Selbstbehauptung der deutschen Universitdt A autoafirmação da Universidade Alemã 56 Mehta op cit p 43 57 Brief uber den Humanismus p 47 Platons Lehre vonder Wahreit Berna 1947 p 57 trad citada de Mehta op cit p 114 58 Brief über den Humanismus p 47 59 Vol II p 468 60 Brief über den Humanismus p 53 trad citada de Mehta op cit p 114 61 Brief über den Humanismus pp 4647 62 Nietzsche vol I p 624 63 The Will to Power n 708 Trad da autora 64 Nietzsche vol II p 272 In Mehta op cit p 179 65 Nietzsche vol I p 6364 66 Ibid p 161 67 Ibid vol II p 462 68 Ibid p 265 69 Ibid p 267 70 Pp 9293 Trad da autora 71 Gelassenheit p 33 Discourse on Thinking p 60 72 Laws I 644 73 The Will to Power n 90 p 55 74 Die Technik und die Kehre Pfulllingen 1962 p 40 75 Citado de Jean Beaufret Dialogue avec Heidegger Paris 1974 vol Ill p 204 76 Valéry Tel Quel in Oeuvres de Paul Valery ed Pléiade Dijon 1960 vol II p 560 77 Sein und Zeit n 57 pp 276277 78 Ibid n 53 p 261 79 Vortrage und Aufsdtze pp 177 e 256 80 N 54 p 267 81 Ibid n 41 p 187en53p 263 82 Bergson Time and Free Will pp 128130 133 83 Ibid 138143 cfp 183 84 Bergson Creative Mind trad MabelleL Andison Nova lorque 1946 pp 27 e22 85 Pp 6364 86 N 34 p 162 87 Pp 329 e 470471 88 N 5459 Ver especialmente pp 268 e ss 89 Ibid n 58 p 287 90 Ibid p 284 91 Ibid n 5960 pp 294295 92 Ibid n 60 p 300 93 Ibid n 34 p 163 94 Ibid n 59 p 294 95 Ibid n 5960 p 295 96 Utilizo e cito muito a tradução de David Farrell Kreil primeiramente publicada in Arion New Series Vol 1 n4 1975 pp 580581 97 A citação completa de que extraí o trecho diz o seguinte em minha própria tradução Wir Leben ais ob wir pochend vor den Toren stãnden die noch geschlossen sind Bis heute geschieht vielleicht im ganz Intimen was so noch keine Welt begründet sondern nur dem Einzelnen sich schenkt was aber vielleicht eine Welt begründen wird wenn es aus der Zerstreuung sich begegnet Suponho que a conferência em Genebra foi publicada na revista Wandlung mas foi utilizada no prefácio a Sechs Essays Heidelberg 1948 uma coleção de ensaios que escrevi durante a década de 40 98 The Anaximander Fragment Arion p 584 99 Ibid p 596 100 Brief über den Humanismus agora in Wegmarken Frankfurt 1967 p 191 101 The Anaximander Fragment Arion p 595 102 Frag 123 103 P 591 104 Ibid p 596 105 Ibid p 591 106 Ibid p 618 107 Ibid p 591 108 Ibid p 592 109 Ibid p 609 110 Ibid p 626 111 Poema inédito escrito por volta de 1950 112 P 611 113 Ibid p 609 114 Para evitar equívocos ambas as citações são tão famosas que já fazem parte da língua alemã Todo falante de alemão pensa geralmente nesses termos sem necessariamente ter sido influenciado por Goethe 115 P 623 116 Heidegger Sein und Zeit n 57 117 Thomas Kuhn The Structure of Scientific Revolutions Chicago 1962 p 172 118 The Lives of a Cell Nova lorque 1974 119 Ver Newsweek 24 de junho de 1974 p 89 120 Ibid 121 Esprit des Lois Livro XII cap 2 122 Ibid Livro XI cap 6 123 Citado da introdução de Franz Neumann a The Spirit of the Laws de Montesquieu trad Thomas Nugent Nova lorque 1949 p xl 124 Esprit des Lois Livro XI cap 3 125 Ibid Livro I cap 1 Livro XXVI cap 1 e 2 126 Ver por exemplo R W B Lewis Homer and Virgil The Double Themes Furioso Primavera 1950 p 24 As repetidas referências explícitas à Ilíada nesses livros da Eneida não aparecem como paralelos mas como reversões 127 Critique of Pure Reason B478 128 Aeneí Livro III 112 in Virgils Works trad William C McDermott Modem Library Nova lorque 1950 p 44 129 A Quarta Écloga 130 Tomei de empréstimo este termo bemachado para comunidades do ensaio altamente instrutivo The Character of the Modem European State in On Human Conduct de Michael Oakeshott Oxford 1975 p 199 131 De Republica I 7 132 Oeuvres ed Laponneraye 1840 vol Ill p 623 The Works of John Adams ed Charles Francis Adams Boston 1850 1856 vol VI 1851 p 281 133 VI 790794 134 A Quarta Écloga 135 Existe uma vasta literatura sobre o assunto bastante instrutiva é Die Aeneis und Homer de Georg Nikolaus Knauer Gottingen 1964 A seguinte passagem de Virgílio Homeraujfassung scheint mir von der spezifisch rômischen Denkform personlicher Verpflichtung gepragt zu sein die dem Romer auferlegte nach dem aus der Vergangenheit iiberkommenem Vorbild der Ahnen Ruhm und Glanz der eigenen Familie und des Staates durch Verwirklichung im Heute fiir die Zukunft der Nachfahren zu bewahren p 357 136 Aeneid Livro VII 206 137 Citado de George Steiner After Babel Nova Iorque e Londres 1975 p 132 138 R J E Clausius 18221888 físico e matemático alemão que enunciou a segunda lei da termodinâmica introduziu o princípio da entropia energia não disponível para trabalho útil em um sistema termodinâmico representada pelo símbolo j Postulando que a entropia do universo está aumentando continuamente ele previu que o universo se extinguiria pela morte do calor quando tudo dentro dele chegasse à mesma temperatura Columbia Encyclopedia 3a ed Ed 139 De Civitate Dei Livro XII cap xx Apêndice O Julgar Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant Sabemos pelo próprio testemunho de Kant que o momento decisivo de sua vida foi a descoberta das faculdades cognitivas do espírito humano e de suas limitações em 1770 algo que lhe ocupou mais de dez anos para ser elaborado e publicado na forma da Crítica da razão pura Sabemos também através de suas cartas o que este labor imenso de tantos anos significou para seus outros planos e idéias Ele escreve sobre este tema principal que detinha e obstruía como uma barragem todos os outros assuntos que esperava abordar e publicar Kant dizia que era como uma pedra em seu caminho que ele só poderia prosseguir depois que fosse removida Antes do acontecimento de 1770 tivera a intenção de escrever e publicar em breve a Metafísica dos Costumes que acabou sendo escrita e publicada aproximadamente trinta anos mais tarde Mas naquele tempo o livro foi anunciado com o título de Crítica do gosto moral Quando Kant chegou finalmente à terceira Crítica ainda a chamava inicialmente de Crítica do Gosto Então duas coisas aconteceram por trás do gosto um tópico popular durante todo o século XVIII ele descobrira uma faculdade humana inteiramente nova a saber o juízo Ao mesmo tempo porém retirou da competência da nova faculdade as proposições morais Em outras palavras algo além do gosto agora decidiría sobre o belo e o feio a questão moral do certo e do errado porém não seria decidida nem pelo gosto nem pelo juízo mas somente pela razão Os elos mantidos entre as duas partes da Crítica do juízo estão mais intimamente relacionados com o político do que com qualquer outra coisa nas demais Críticas Os elos mais importantes são primeiramente o de que em nenhuma das duas partes Kant fala do homem como um ser inteligível ou cognitivo A palavra verdade não aparece A primeira parte fala dos homens no plural assim como vivem em sociedades a segunda fala das espécies humanas A diferença mais decisiva entre a Crítica da razão prática e a Crítica do juízo é que as leis morais da primeira são válidas para todos os seres inteligíveis enquanto as regras da segunda têm a validade rigorosamente limitada aos seres humanos na Terra E o segundo elo reside no fato de que a faculdade do juízo lida com particulares que como tais contêm algo contingente em relação ao universal que é aquilo com que o pensamento normalmente está lidando Esses particulares são de dois tipos a primeira parte da Crítica do juízo lida com objetos do juízo propriamente ditos como por exemplo um objeto que dizemos ser belo sem que sejamos capazes de subsumilo em uma categoria geral Quando dizemos Que rosa bela não chegamos a este juízo dizendo antes todas as rosas são belas esta flor é uma rosa logo ela é bela O outro tipo contemplado na segunda parte é a impossibilidade de derivar qualquer produto particular da natureza de causas gerais Absolutamente nenhuma razão humana na verdade nenhuma razão que seja finita como a nossa em qualidade por mais que venha a ultrapassála em grau pode aspirar a entender sequer uma folha de capim por simples causas mecânicas Causas mecânicas na terminologia de Kant significa causas naturais opõese a causas técnicas com o que ele quer designar causas artificiais isto é aquilo pelo que algo é fabricado com uma finalidade A ênfase aqui recai sobre o entender sobre como posso entender e não só explicar por que razão simplesmente há capim e então por que há esta folha particular de capim O juízo do particular isto é belo isto é feio isto é certo isto é errado não tem lugar na filosofia moral de Kant O juízo não é razão prática a razão prática raciocina e nos diz o que fazer e o que não fazer estabelece a lei e é idêntica à vontade e a vontade profere comandos fala em imperativos O juízo ao contrário surge de um prazer meramente contemplativo ou de um deleite inativo untatiges Wohlgefallen Este sentimento de prazer contemplativo se chama gosto e a Crítica do juízo intitulavase originalmente Crítica do gosto Se é que a filosofia prática fala de prazer contemplativo mencionao somente de passagem e não como se o conceito fosse dela proveniente Isto não soa plausível Como é que prazer contemplativo e deleite inativo poderíam ter qualquer coisa a ver com prática Isto não é uma prova conclusiva de que Kant decidira que sua preocupação com o particular e com o contingente era uma coisa do passado e tinha sido um assunto um tanto marginal E ainda assim veremos que sua posição final sobre a Revolução Francesa um acontecimento que teve um papel central em sua velhice quando esperava todos os dias muito impaciente pelos jornais foi decidida por essa atitude dos meros espectadores daqueles que não entram no jogo apenas o acompanham com uma participação ansiosa passional que surgia do mero prazer contemplativo e do deleite inativo O alargamento do espírito desempenha um papel crucial na Crítica do juízo Ele é alcançado ao compararmos nosso juízo com o juízo possível dos outros e não com seu juízo real e ao nos colocarmos no lugar de qualquer outro homem A faculdade que toma isto possível chamase imaginação O pensamento crítico é possível só onde os pontos de vista dos outros estão abertos à inspeção O pensamento crítico portanto sendo ainda uma atividade solitária não se exclui de todos os outros Por meio da imaginação ele toma os outros presentes movendose assim potencialmente em um espaço que é público aberto a todos os lados em outras palavras adota a posição do cidadão kantiano do mundo Pensar com a mentalidade alargada isto significa treinar nossa imaginação a visitar Devo alertálos aqui sobre um equívoco muito comum e fácil de acontecer O truque do pensamento crítico não consiste em uma empatia imensamente alargada através da qual poderiamos saber o que se passa de fato na cabeça dos outros Pensar segundo o entendimento de Kant significa Selbstdenken pensar por si mesmo que é a máxima de uma razão nunca passiva Estar propenso a tal passividade chamase preconceito e o esclarecimento é antes de mais nada liberarse do preconceito Aceitar o que passa pelos espíritos daqueles cujo ponto de vista na verdade o lugar de onde vêem as condições a que estão sujeitos sempre diferentes de indivíduo para indivíduo de uma classe ou de um grupo comparados a outros não é o meu isto nada mais seria que aceitar passivamente seus pensamentos isto é trocar os preconceitos próprios à minha posição pelos preconceitos deles O pensamento alargado resulta primeiramente de uma abstração das limitações que se juntam contingentemente a nosso próprio juízo da desconsideração de suas condições subjetivas privadas que a tantos impõem limites isto é da desconsideração daquilo que normalmente chamamos de interesse próprio e que segundo Kant não é esclarecido ou capaz de esclarecer mas é na verdade limitador Quanto maior a região em que o indivíduo esclarecido é capaz de moverse de ponto de vista a ponto de vista mais geral será seu pensamento Esta generalidade entretanto não é a generalidade do conceito do conceito casa no qual podemos então subsumir todas as edificações concretas Está ao contrário intimamente ligado aos particulares com as condições particulares dos pontos de vista pelos quais devemos passar para que cheguemos a nosso próprio ponto de vista geral Este ponto de vista geral foi mencionado anteriormente como sendo a imparcialidade é um ponto de vista a partir do qual podemos considerar assistir formar nossos juízos ou como diz o próprio Kant em que podemos refletir sobre os assuntos humanos Não nos diz como agir No próprio Kant esta perplexidade vem para o primeiro plano na atitude aparentemente contraditória em seus últimos anos de uma admiração quase ilimitada pela Revolução Francesa por um lado e de sua igualmente quase ilimitada oposição a qualquer iniciativa revolucionária por parte dos cidadãos por outro A reação de Kant à primeira e mesmo à segunda vista não é de modo algum ambígua Ele nunca hesitou em sua opinião sobre a grandeza daquilo que chamava de evento recente e quase nunca hesitou em sua condenação a todos aqueles que preparam tal evento Este evento não consiste em feitos momentosos ou em malfeitorias cometidas por homens pelos quais o que era grande entre os homens toma se pequeno ou o que era pequeno tomase grande tampouco em esplêndidas estruturas políticas antigas que desaparecem como que em um passe de mágica enquanto outras adiantamse tomando seu lugar como se viessem das profundezas da terra Não nada disso Tratase simplesmente do modo de pensar dos espectadores que se revela publicamente no grande jogo das transformações A revolução de um povo aquinhoado que vimos desabrochar em nosso tempo pode ter êxito ou falhar pode estar tão repleta de miséria e de atrocidades que um homem sensato ousando esperar executála com sucesso pela segunda vez não chegue a resolverse a fazêla com tais custos esta revolução repito encontra nos corações de todos os espectadores que não estão engajados no jogo uma participação ansiosa que beira o entusiasmo com que exaltação o público não envolvido que assiste é solidário sem a menor intenção de ajudar Sem tal participação solidária o significado da ocorrência seria completamente diferente ou simplesmente não existiría Pois essa solidariedade é o que inspira a esperança a esperança de que depois de muitas revoluções com todos os seus efeitos transformadores a finalidade maior da natureza uma existência cosmopolita dentro da qual todas as capacidades originais da raça humana possam ser desenvolvidas seja finalmente alcançada Não se deve concluir disso entretanto que Kant de alguma forma tomasse minimamente o partido dos futuros homens de revolução Esses direitos permanecem sempre como uma idéia que só pode ser executada sob a condição de que os meios empregados para isso sejam compatíveis com a moralidade Essa condição limitadora não deve ser ultrapassada pelas pessoas que não podem portanto perseguir seus direitos através da revolução que é sempre injusta E Se uma revolução violenta causada por uma constituição ruim introduz por meios ilegais uma constituição mais legal não seria permitido que as pessoas voltassem à constituição anterior mas enquanto durasse a revolução toda pessoa que aberta ou secretámente dela tomasse parte incorrería com justiça na punição que cabe aos que se rebelam O que se vê aqui é o conflito entre o princípio segundo o qual se age e o princípio segundo o qual se julga Kant declarou mais de uma vez sua opinião sobre a guerra e nunca de modo tão enfático quanto na Crítica do juízo onde ele discute o tópico de modo bastante característico na seção sobre o Sublime O que vem a seristo que mesmo para os selvagens é um objeto da maior admiração E um homem que não recua diante de nada que nada teme e que portanto não sucumbe frente ao perigo Mesmo no estado mais alto de civilização esta veneração peculiar pelo soldado permanece porque mesmo esses reconhecem que seu espírito não se subjuga ao perigo Portanto na comparação entre um estadista e um general o juízo estético elege este último A própria guerra tem algo de sublime em si Por outro lado uma paz longa geralmente leva à predominância de um espírito comercial e junto com ele do egoísmo vil da covardia e da efeminação aviltando a disposição do povo Este é o juízo do espectador isto é juízo estético Não obstante não só a guerra um empreendimento não intencional provocado pelas paixões desenfreadas dos homens pode realmente servir em virtude de sua própria falta de sentido como uma preparação para a paz cosmopolita final eventualmente a simples exaustão terá de impor aquilo que nem a razão nem a boa vontade terão sido capazes de realizar mas também a despeito das terríveis aflições que traz consigo quando visita a raça humana e das talvez maiores aflições com as quais a preparação constante para ela no tempo de paz oprime esta raça é ainda assim um motivo para desenvolver ao extremo todos os talentos úteis à cultura Estes insights sobre o juízo estético e reflexionante não têm conseqüências práticas para a ação No que diz respeito à ação não há dúvida de que a razão práticamoral pronuncia dentro de nós o seguinte veto irresistível Não deve haver guerra Assim não é mais uma questão de se a paz perpétua é possível ou não ou de se não estaremos talvez equivocados em nosso juízo teórico se pressupomos que ela é possível Pelo contrário temos simplesmente que agir como se ela pudesse realmente ocorrer mesmo se o cumprimento desta intenção pacífica fosse permanecer para sempre uma devotada esperança pois fazer isto é nosso dever Mas essas máximas para a ação não anulam o juízo estético e reflexionante Em outras palavras muito embora Kant sempre agisse pela paz conhecia e tinha em mente o seu juízo Se tivesse agido com base no conhecimento adquirido como espectador teria sido no interior do próprio espírito um criminoso Se tivesse esquecido por causa deste dever moral seus insights como espectador teria se transformado naquilo que tantos homens bons envolvidos e engajados nos assuntos públicos tendem a ser um tolo idealista Uma vez que Kant não escreveu sua filosofia política a melhor maneira de descobrir o que ele pensava sobre este assunto é nos debruçarmos sobre a sua Crítica do juízo estético em que ao discutir a produção de obras de arte em suas relações com o gosto que julga e decide sobre elas ele se depara com um problema análogo semelhante Somos inclinados a pensar que para julgar um espetáculo devese ter em primeiro lugar o espetáculo que o espectador é secundário em relação ao ator sem levar em conta que ninguém em seu juízo perfeito poria em cartaz um espetáculo sem estar seguro de haver espectadores para assistilo Kant está convencido de que o mundo sem o homem seria um deserto e um mundo sem o homem significa sem espectador Na discussão do juízo estético a distinção é que é necessário o gênio para a produção das obras de arte enquanto para julgar e decidir se os objetos são belos ou não não é preciso nada além nós diriamos mas não Kant do gosto Para julgar objetos belos o gosto é necessário para sua produção o gênio é preciso O gênio segundo Kant é uma questão de imaginação produtiva e de originalidade o gosto é uma questão de juízo Ele levanta a questão qual das duas é a faculdade mais nobre qual é a condição sine qua non que devemos observar no julgar da arte como arte bela e o faz pressupondo é claro que embora a maioria dos juizes da beleza não tenham a faculdade de imaginação produtiva a que ele chama gênio aos poucos dotados com o gênio não falta a faculdade do gosto E a resposta é a seguinte A abundância e a originalidade de idéias são menos necessárias à beleza do que o acordo entre a imaginação em sua liberdade e a conformidade à lei do entendimento que se chama gosto Pois toda a abundância das primeiras só produz na liberdade sem lei absurdos por outro lado o juízo é a faculdade pela qual elas são ajustadas ao entendimento O gosto assim como o juízo em geral é a disciplina ou treinamento do gênio cortalhe as asas orienta traz clareza e ordem aos pensamentos do gênio toma as idéias suscetíveis de assentimento permanente e geral tomandoas capazes de ser seguidas por outros e capazes também de uma cultura sempre progressiva Se então no conflito entre essas duas propriedades em um produto algo tem de ser sacrificado há de ser principalmente do lado do gênio sem o qual não existiría nada para o juízo julgar Mas Kant diz explicitamente que para a arte bela imaginação intelecto espírito e gosto são requisitos e acrescenta em uma nota que as três primeiras faculdades estão unidas por meio da quarta isto é pelo gosto ou seja pelo juízo O espírito além disso faculdade especial distinta da razão do intelecto e da imaginação capacita o gênio a encontrar uma expressão para as idéias pela qual o estado de espírito subjetivo por elas ocasionado pode ser comunicado a outros Em outras palavras o espírito ou seja aquilo que inspira o gênio e somente ele e aquilo que nenhuma ciência é capaz de ensinar e que nenhum trabalho árduo permite aprender consiste em expressar o elemento inefável no estado de espírito Gemützustand que certas representações despertam em todos nós mas para o qual não temos palavras e não poderiamos portanto comunicar sem a ajuda do gênio não poderiamos comunicálas uns para os outros é uma tarefa que cabe ao gênio tomar este estado de espírito comunicável em geral A faculdade que guia esta comunicabilidade é o gosto e gosto ou juízo não são privilégio do gênio A condição sine qua non para a existência do objeto belo é sua comunicabilidade o juízo do espectador cria o espaço sem o qual não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos O domínio público é constituído pelos críticos e pelos espectadores e não pelos atores ou artesãos E este crítico e espectador está em cada um dos atores ou artesãos sem esta faculdade de criticar de julgar aquele que faz ou fabrica ficaria tão isolado do espectador que nem sequer seria percebido Ou falando de outro modo ainda em termos kantianos a própria originalidade do artista ou a novidade do ator depende que ele se faça entender por aqueles que não são artistas ou atores E se podemos falar em gênio no singular em virtude de sua originalidade nunca podemos falar desse modo sobre o espectador Espírito neste contexto traduz spirit Gemut Gemützustand NT espectadores existem somente no plural O espectador não se envolve no ato mas está sempre envolvido com seus companheiros espectadores Não tem em comum com aquele que faz a faculdade do gênio a originalidade ou com o ator a faculdade da novidade a faculdade que compartilham é a do juízo No que diz respeito ao fazer o insight é pelo menos tão antigo quanto a Antigüidade latina em oposição à grega Vamos encontrar sua expressão pela primeira vez em Sobre os oradores de Cícero Pois todos discriminam diiudicare distinguem entre o certo e o errado em questões de arte e proporção por meio de algum sentido silencioso sem qualquer conhecimento de arte e proporção e enquanto podem fazêlo no caso de pinturas e estátuas e em outros trabalhos do gênero para cujo entendimento a natureza lhes concedeu menos subsídios mostram muito mais esta discriminação no julgar de ritmos e pronúncias de palavras uma vez que estas enraizamse infixa nos sentidos comuns e no das coisas que a natureza quis que ninguém fosse de todo incapaz de sentir e experimentar expertus E prossegue observando que é verdadeiramente maravilhoso e formidável o modo como é pequena a diferença entre o instruído e o ignorante no julgar enquanto há a maior das diferenças no fazer Kant bem nesse estilo observa em sua Antropologia que a insanidade consiste em haver perdido este senso comum que nos capacita a julgar como espectadores e o oposto disso é um sensus privatus um senso privado que ele também chama de Eingensinn lógico dando a entender que nossa faculdade lógica a faculdade que nos capacita a tirar conclusões a partir de premissas poderia de fato funcionar sem a comunicação só que nesse caso isto é no caso de a insanidade ter causado a perda deste senso comum ela levaria a resultados insanos precisamente por ter se separado da experiência que só pode ser válida e validada na presença de outros O aspecto mais surpreendente desta questão é que o senso comum a faculdade de julgar e discriminar entre o certo e o errado deva basearse no sentido do gosto De nossos cinco sentidos três nos dão claramente objetos do mundo exterior e são portanto facilmente comunicáveis Visão audição e tato lidam direta e de certo modo objetivamente com objetos olfato e gosto nos dão sensações que são inteiramente privadas e incomunicáveis o gosto e o cheiro que sinto não podem absolutamente ser expressos em palavras Parecem ser os sentidos privados por definição Além disso os três sentidos objetivos têm em comum o fato de serem capazes de representação de ter presente algo que está ausente posso lembrarme de um edifício de uma melodia da textura do veludo Esta faculdade chama se em Kant Imaginação disso nem o gosto nem o olfato são capazes Por outro lado são bem claramente estes os sentidos discriminatórios podemos nos furtar a julgar o que vemos e embora isto seja mais difícil podemos nos furtar a julgar o que ouvimos ou tocamos Mas em questões de gosto e cheiro o aprazme ou o não me apraz é imediato e avassalador E o prazer ou o desprazer são por sua vez inteiramente privados Por que então o gosto deveria e não só em Kant mas desde Graciano ser elevado tomandose o veículo da faculdade espiritual de julgar E o juízo por sua vez quer dizer não o juízo simplesmente cognitivo que reside nos sentidos que nos dão os objetos e que temos em comum com todas as coisas vivas que têm o mesmo equipamento sensorial mas o juízo entre certo e errado por que deveria ele basearse neste sentido privado Não é verdade que em questões de gosto podemos comunicar tão pouco que não podemos sequer discutilas de gustibus non disputandum est Mencionamos que o gosto e o olfato são os sentidos mais privados isto é os sentidos em que não é um objeto mas sim uma sensação o que se sente e em que a sensação não se prende ao objeto e não pode ser relembrada Podese reconhecer o cheiro de uma rosa ou de uma comida quando são novamente sentidos mas não é possível têlos presentes do modo como se pode ter presente qualquer visão já vista ou qualquer melodia já ouvida Ao mesmo tempo vimos que o gosto mais do que qualquer dos outros sentidos tornouse o veículo do juízo somente o gosto e o olfato são discriminatórios pela própria natureza e somente estes sentidos se relacionam com o particular enquanto tal todos os objetos dados aos sentidos objetivos compartilham suas propriedades com outros objetos não são únicos Além disso o aprazme ou o não me apraz têm uma presença esmagadora no gosto e no olfato São imediatos e não mediados pelo pensamento ou pela reflexão E o aprazme ou o não me apraz é quase idêntico ao concorda comigo ou discorda de mim O cerne da questão é o seguinte afetame diretamente Justamente por esta razão não se pode discutir aqui o certo e o errado Nenhum argumento pode me persuadir a gostar de ostras se eu não gosto delas Em outras palavras o elemento perturbador em assuntos de gosto é que eles não são comunicáveis A solução para esses enigmas pode ser indicada pelos nomes de duas outras faculdadesimaginação e senso comum 1 A imaginação transformaum objeto em algo com o qual não preciso estar diretamente confrontado mas que de certa maneira internalizei de modo que eu agora possa ser afetado por ele como se me fosse dado por um sentido nãoobjetivo Kant diz E belo aquilo que me apraz no mero ato de julgar Isto é não é importante se apraz ou não na percepção aquilo que apraz simplesmente na percepção é gratificante e não belo Apraz na representação a imaginação preparouo de modo que agora possa refletir sobre ele a operação da reflexão Só aquilo que nos toca que nos afeta na representação quando não se pode mais ser afetado pela presença imediata sem envolverse assim como o espectador não se envolve nas ações reais durante a Revolução Francesa pode então ser julgado como certo ou errado importante ou irrelevante feio ou belo ou algo intermediário Passamos então a chamálo de juízo e não mais de gosto porque embora nos afete ainda como uma questão de gosto estabelecemos agora através da representação a distância adequada o afastamento ou o não envolvimento ou o desinteresse requisito para a aprovação ou desaprovação ou para avaliar algo em seu valor apropriado Removendo o objeto estabelecemos a condição para a imparcialidade E 2 senso comum Kant muito cedo se deu conta de que havia algo de não subjetivo no que parecia ser o sentido mais privado e subjetivo esta cons ciência é expressa da seguinte forma há o fato de que as questões de gosto o belo interessa somente em sociedade Um homem que se deixe abandonar em uma ilha deserta não enfeitaria sua casa ou a si mesmo O homem não se contenta com um objeto se não pode satisfazerse com ele em comum com os outros ao passo que nos desprezamos quando trapaceamos em um jogo mas nos envergonhamos somente quando somos pegos Ou em questões de gosto devemos renunciar a nós mesmos em favor dos outros ou com a finalidade de agradar os outros Wir müssen uns gleichsam anderen zu gefallen entsagen Finalmente e do modo mais radical No gosto superase o egoísmo temos consideração no sentido original da palavra Temos que superar nossas condições subjetivas especiais em proveito dos outros Em outras palavras o elemento não subjetivo nos sentidos não objetivos é a intersubjetividade Devese estar só para se poder pensar é preciso companhia para se desfrutar de uma refeição O juízo e especialmente os juízos de gosto sempre se refletem sobre outros e levam seus possíveis juízos em conta Isso é necessário porque sou humano e não posso viver sem a companhia dos homens O direcionamentoaooutro básico do juízo e do gosto parece estar na maior oposição possível com a própria natureza com a natureza absolutamente idiossincrática do sentido em si Logo podemos ficar tentados a concluir que a faculdade do juízo é erradamente derivada deste sentido Kant muito ciente de todas as implicações desta derivação permanece convencido de que se trata de uma derivação correta E o fenômeno mais plausível a seu favor é sua observação inteiramente correta de que o verdadeiro oposto do Belo não é o Feio mas aquilo que provoca a repugnância E não esqueçam que Kant planejou originalmente escrever uma Crítica do gosto moral A operação da imaginação julgamos objetos que não estão mais presentes e que não mais nos afetam diretamente Ainda assim quando o objeto é removido de nossos sentidos exteriores passa a ser objeto para nossos sentidos interiores Quando representamos para nós mesmos algo ausente fechamos por assim dizer aqueles sentidos pelos quais os objetos nos são dados em sua objetividade O sentido do gosto é um sentido no qual é como se nos sentíssemos a nós mesmos é como um sentido interior Esta operação de imaginação prepara o objeto para a operação de reflexão E esta operação de reflexão é a real atividade de julgar algo Fechando nossos olhos tornamonos espectadores imparciais das coisas visíveis sem sermos afetados diretamente por elas O poeta cego Também fazendo daquilo que os sentidos externos perceberam um objeto para o sentido interior comprimimos e condensamos a multiplicidade do que é dado sensualmente estamos em posição de ver com os olhos do espírito isto é de ver o todo que dá sentido aos particulares A questão que surge agora é a seguinte quais são os padrões da operação de reflexão Chamase gosto o sentido interno porque assim como o gosto ele escolhe Mas essa escolha sujeitase ela mesma mais uma vez a outra escolha podemos aprovar ou desaprovar o simples fato de aprazer ele está sujeito à aprovação e desaprovação Kant dá exemplos A alegria de um homem necessitado mas bem intencionado ao tomarse herdeiro de um pai afetuoso mas avarento ou ao contrário uma dor profunda pode satisfazer a pessoa que a experimenta a angústia de uma viúva na morte de seu excelente marido ou algo que é gratificante pode também aprazer como nas ciências que buscamos ou um pesar por exemplo ódio inveja vingança pode ademais desaprazer Todas essas aprovações e desaprovações são repensamentos enquanto estamos fazendo pesquisa científica podemos estar vagamente conscientes de estarmos felizes nesta atividademas só quando refletirmos sobre isso mais tarde é que seremos capazes de ter esse prazer adicional o prazer de aprovar Neste prazer adicional não é mais o objeto o que apraz mas o fato de que o julgamos prazeroso se relacionamos isto ao todo da natureza ou ao mundo podemos dizer nos apraz o fato de o mundo da natureza nos aprazer O próprio ato de aprovação dá prazer o próprio ato de desaprovação causa desprazer Daí a questão como escolher entre a aprovação e a desaprovação Um critério podemos arriscar considerando os exemplos o critério é a comunicabilidade ou o caráter público Não ficaremos ultraansiosos para anunciar nossa alegria na morte de nosso pai ou nossos sentimentos de ódio e inveja não sentiremos por outro lado remorsos ao dizer que gostamos de fazer o trabalho científico e tampouco ocultaremos nossa dor na morte de um excelente marido O critério é comunicabilidade e o padrão para decidir sobre ele é o Senso Comum Sobre a comunicabilidade de uma sensação É verdade que a sensação dos sentidos é comunicável em geral porque podemos supor que todos têm sentidos semelhantes aos nossos Mas não se pode pressupor isso com relação a qualquer sensação particular Estas sensações são privadas e também não há juízo envolvido somos simplesmente passivos reagimos não somos espontâneos como quando voluntariamente imaginamos algo ou refletimos sobre algo No pólo oposto encontramos os juízos morais estes segundo Kant são necessários são ditados pela razão prática mesmo se não pudessem ser comunicados permaneceríam válidos Temos em terceiro lugar os juízos ou o prazer no belo este prazer acompanha a apreensão ordinária Auffassung não a percepção de um objeto pela imaginação por meio de um procedimento do juízo que ele deve também exercitar em proveito da experiência mais comum Esse tipo de juízo está em toda experiência que temos com o mundo Este juízo se baseia naquele intelecto comum e sólido gemeiner e gesunder Verstand que temos que pressupor em todos Como é que este senso comum se distingue de outros sentidos que também temos em comum e que no entanto não garantem o acordo das sensações O gosto como uma espécie de sensus communis O termo modificouse O primeiro senso comum significava um sentido semelhante a nossos outros sentidos o mesmo para todos em sua própria privacidade Ao usar o termo latino Kant indica que está falando de algo diferente está falando de um sentido extra como uma capacidade mental extra o termo alemão Menschenverstand que nos ajusta a uma comunidade O entendimento comum dos homens é o mínimo que se pode esperar de qualquer um que se diga homem O sensus communis é o sentido especificamente humano porque a comunicação isto é a fala depende dele O único sintoma geral de insanidade é a perda do sensus communis e a teimosia lógica em insistir no seu próprio sensus privatus No sensus communis devemos incluir a idéia de um sentido comum a todos isto é de uma faculdade do juízo que em sua reflexão leva em conta a priori o modo de representação de todos os outros homens em pensamento para de certo modo comparar seu juízo com a razão coletiva da humanidade Isto se faz comparandose nosso juízo com o juízo possível dos outros e não com o real e colocandonos no lugar de qualquer outro homem abstraindonos das limitações que contingentemente se juntam a nosso próprio juízo Agora esta operação talvez pareça artificial demais para ser atribuída a uma faculdade chamada de senso comum mas só tem tal aparência quando expressa em uma formulação abstrata Não há nada mais natural em si do que abstrair do encanto e da emoção se buscamos um juízo que venha a servir como regra universal Depois disso seguemse as máximas deste sensus communis pensar por si mesmo a máxima do esclarecimento colocarmonos no lugar de todos os outros em pensamento a máxima da mentalidade alargada e a máxima da consistência estar de acordo consigo mesmo mit sich selbst einstimming denken Não se trata aqui de questões de cognição a verdade nos compele não precisamos de máximas As máximas aplicamse e são necessárias só para questões de opinião e de juízo E assim como em questões morais nossa máxima de conduta declara a qualidade de nossa vontade também as máximas do juízo atestam nosso tipo de mentalidade Denkungsarf nos assuntos mundanos que são governados pelo senso de comunidade Por menor que seja a área ou o grau de alcance dos talentos naturais do homem ainda assim há indicação de um homem de pensamento alargado se ele desconsidera as condições subjetivas privadas de seu próprio juízo que confinam tantos outros e reflete sobre elas de um ponto de vista geral que ele só pode determinar colocandose no lugar e no ponto de vista dos outros O gosto é este senso de comunidade gemeinshaftlicher Sinn e senso significa aqui o efeito de uma reflexão sobre o espírito Esta reflexão me afeta como se fosse uma sensação Poderiamos até mesmo definir o gosto como a faculdade de julgar aquilo que toma comunicável em geral sem a mediação de um conceito o nosso sentimento como a sensação em uma representação dada não a percepção Se pudéssemos supor que a mera comunicabilidade geral de um sentimento deve trazer em si um interesse para nós com relação a ela deveriamos ser capazes de explicar por que o sentimento no juízo do gosto vem a ser imputado a todos por assim dizer como um dever A validade destes juízos nunca possui a validade das proposições cognitivas ou científicas que não são a rigor juízos Se dizemos que o céu é azul ou que dois e dois são quatro não julgamos dizemos o que é compelidos pela evidência de nossos sentidos ou de nosso espírito Neste sentido nunca podemos compelir alguém a concordar com nossos juízos isto é belo isto é errado Kant não acredita entretanto que juízos morais sejam o produto da reflexão e da imaginação logo não são a rigor juízos podemos somente pretender cortejar o acordo de todos os demais E nesta atividade persuasiva podemos na verdade apelar para o senso de comunidade Quanto menos idiossincrático for o seu gosto melhor poderá ser comunicado a comunicabilidade novamente é a pedra de toque A imparcialidade em Kant é chamada de desinteresse o prazer desinteressado no Belo Se portanto o parágrafo 41 na Crítica do juízo fala de um Interesse no Belo na verdade está falando de terse um interesse no desinteresse Por podermos dizer que algo é belo é que temos um prazer em sua existência e é nisso que consiste todo o interesse Em uma de suas reflexões nos cadernos Kant observa que o Belo nos ensina a amar sem interesse próprio ohne Eigennutz E a característica peculiar deste interesse é que interessa somente em sociedade Kant enfatiza que pelo menos uma de nossas faculdades a faculdade do juízo pressupõe a presença de outros E não só aquilo que terminologicamente chamamos de juízo preso a isto está todo o aparato da alma por assim dizer Comunicando nossos sentimentos nossos prazeres e deleites desinteressados dizemos nossas escolhas e escolhemos nossas companhias Preferiría errar com Platão que acertar com os pitagóricos Cícero Finalmente quanto mais amplo o escopo dos homens aos quais poderiamos comunicar maior o valor do objeto Embora o prazer que todos têm em tal objeto não seja considerável isto é contanto que não se compartilhe dele e não tenha em si qualquer interesse notável ainda assim a idéia de sua comunicabilidade geral aumenta seu valor a um grau quase infinito Neste ponto a Crítica do juízo incorpora sem esforço a deliberação de Kant sobre uma humanidade unida vivendo em uma paz eterna Se todos esperam e exigem de todos os demais esta referência à comunicação geral do prazer do deleite desinteressado então teremos alcançado um ponto em que é como se existisse uma comunidade original ditada pela própria humanidade È em virtude desta idéia de humanidade presente em cada homem particular que os homens são humanos e eles podem se dizer civilizados ou humanos porque esta idéia se tomouse o princípio de suas ações e de seus juízos E neste ponto que o ator e o espectador passam a estar unidos a máxima daquele que age e a máxima o padrão segundo a qual o espectador julga o espetáculo do mundo tomamse uma só O imperativo categórico para a ação poderia enunciar o seguinte aja sempre segundo a máxima que permita que esta unidade original possa ser realizada em uma lei geral Concluindo tentarei esclarecer algumas das dificuldades a dificuldade principal no juízo é ser a faculdade dejulgar o particular mas pensar significa generalizar portanto tratase da faculdade que misteriosamente combina o particular e o geral Isto é relativamente fácil se o geral é dado como uma regra um princípio uma lei de modo que julgar seja simplesmente subsumirlhe um particular A dificuldade cresce se somente o particular é dado e é preciso descobrir o geral relativo a ele Pois o padrão não pode ser importado da experiência e não pode ser derivado do exterior Não posso julgar um particular por outro particular para determinar seu valor preciso de uma tertiumquidou de uma tertiumcomparationis algo que se relacione aos dois particulares e que seja ainda assim distinto de ambos Em Kant encontramos duas soluções completamente diferentes para esta dificuldade Como uma verdadeira tertium comparationis aparecem em Kant duas idéias sobre as quais temos que refletir para chegar a juízos tratase nos escritos políticos e ocasionalmente também na Crítica do juízo da idéia da unidade original da humanidade como um todo e derivada desta idéia a noção de natureza humana aquilo que constitui o humano nos seres humanos que vivem e morrem neste mundo nesta terra que é um globo na qual eles vivem juntos a qual eles dividem juntos na sucessão de gerações Na Crítica do juízo encontrase também a idéia de finalidade todo objeto diz Kant como um particular precisando do fundamento de sua realidade e contendoo em si tem uma finalidade Os únicos objetos que parecem não ter finalidade são os objetos estéticos de um lado e os homens do outro Não podemos perguntar quen ad finem com que finalidade uma vez que eles não servem para nada Mas objetos de arte sem finalidade bem como a aparentemente sem propósito variedade da natureza tem a finalidade de aprazer aos homens fazendo com que se sintam em casa no mundo Isso jamais pode ser provado mas a Finalidade é uma idéia para regular nossas reflexões em seus juízos reflexionantes Ou a segunda idéia de Kant a meu ver uma solução muito mais valiosa é a seguinte E validade exemplar Exemplos são o veículo dos juízos Vejamos o que é isso todo objeto particular por exemplo uma mesa tem um conceito correspondente pelo qual podemos reconhecer uma mesa como uma mesa Isso pode ser concebido como a idéia platônica ou o esquema kantiano isto é temos diante dos olhos do nosso espírito uma mesa esquemática ou simplesmente uma figura de mesa formal com a qual toda mesa deve estar em conformidade Ou se procedermos inversamente partindo das muitas mesas que vimos em nossa vida as despojamos de todas as qualidades secundárias e o que resta é uma mesa em geral contendo as propriedades mínimas comuns a todas as mesas A mesa abstrata Restanos ainda uma possibilidade que entra em juízos e que não são cognições podemos encontrar ou pensar em alguma mesa que julgamos ser a melhor possível e tomar esta mesa como o exemplo de como as mesas deveríam realmente ser a mesa exemplar Exemplo vem de eximere escolher um particular Isto é e continua a ser um particular que em sua própria particularidade revela a generalidade que de outra forma não poderia ser definida A Coragem é como Aquiles Etc Estivemos falando aqui sobre a parcialidade do ator que por estar envolvido nunca vê o significado do todo O mesmo não se aplica ao belo ou a qualquer feito em si O belo é em termos kantianos um fim em si mesmo porque todo seu significado possível está contido em si mesmo sem referência a outros sem conexão por assim dizer com as outras coisas belas No próprio Kant há esta contradição o Progresso Infinito é a lei da espécie humana ao mesmo tempo a dignidade do homens exige que eles sejam vistos cada um deles em sua particularidade refletindo enquanto tais mas sem qualquer comparação e independentemente do tempo a humanidade em geral Em outras palavras a própria idéia de progresso se é mais que uma simples alteração de circunstâncias e uma melhora no mundo contradiz a noção kantiana de dignidade humana Posfácio da editora Mary McCarthy Hannah Arendt morreu subitamente em 4 de dezembro de 1975 Era uma noite de quintafeira ela recebia amigos em casa No sábado anterior havia terminado O Querer a segunda seção de A vida do espírito Assim como A condição humana seu precursor o trabalho fora concebido em três partes Enquanto A condição humana com o subtítulo de A vita activa fora dividida em Labor Trabalho e Ação A vida do espírito tal como foi planejada era dividida em O Pensar O Querer e O Julgar as três atividades básicas no seu modo de ver da vida espiritual A distinção feita na Idade Média entre a vida ativa do homem no mundo e a solitária vita contemplativa estava é claro presente em seu pensamento embora para ela aquele que pensa quer e julga não seja um contemplador isolado por vocação monástica mas sim o homem comum ao exercitar sua capacidade especificamente humana de retirarse de tempos em tempos para a região invisível do espírito Se a vida do espírito é ou não superior à chamada vida ativa assim como foi considerada na Antigüidade e na Idade Média essa é uma questão que Hannah Arendt nunca enunciou claramente Ainda assim podese dizer que os últimos anos de sua vida foram consagrados a este trabalho que ela tratava como uma tarefa que lhe cabia como ser vigorosamente pensante a coisa mais elevada a que estava destinada Em meio aos seus diversos compromissos acadêmicos participação em várias mesasredondas painéis e consultorias era um constante recruta da vita activa do cidadão e da figura pública ainda que raramente fosse uma voluntária ela permanecia imersa em A vida do espírito como se a finalização do livro fosse liberála não tanto de uma obrigação que soaria onerosa demais mas de um pacto que fizera Todos os caminhos por mais secundários que fossem em que o acaso ou a intenção a colocassem em sua existência cotidiana e profissional levavamna de volta àquele trabalho Quando em junho de 1972 chegou um convite para participar como confe rencista das Gifford Lectures na Universidade de Aberdeen Hannah Arendt escolheu utilizar a ocasião para uma espécie de teste dos volumes já em preparação As Gifford Lectures serviram também como estímulo Iniciadas em 1885 por Adam Gifford um importante juiz escocês com a finalidade de estabelecer em cada uma das quatro cidades Edimburgo Glasgow Aberdeen e St Andrews uma cátedra de Teologia Natural no sentido mais amplo do termo as conferências já haviam sido anteriormente proferidas por Josiah Royce William James Bergson J G Frazer Whitehead Eddington John Dewey Werner Jaeger Karl Barth Etienne Gilson Gabriel Marcel entre outros um rol de honra do qual ela teve muito orgulho em participar Sendo normalmente supersticiosa deve ter encarado as conferências também como uma espécie de amuleto obras como The Varieties of Religious Experience Process and Reality de Whitehead The Mistery of Being de Marcel The Spirit of Medieval Philosophy de Gilson tinham vindo à luz pela primeira vez nestas Gifford Lectures Tendo aceito a incumbência ela trabalhou talvez mais arduamente do que deveria para terminar a tarefa no tempo disponível deu a primeira série de conferências sobre O Pensar na primavera de 1973 Na primavera de 1974 voltou para a segunda série sobre O Querer e foi impedida de continuar por um ataque cardíaco depois da primeira conferência Pretendia voltar na primavera de 1976 para terminar a série durante esse tempo dera a maior parte de O Pensar e de O Querer em suas aulas na New School for Social Research em Nova Iorque Ainda não havia começado O Julgar embora tivesse utilizado material sobre o juízo em cursos que miristrou na Universidade de Chicago e na New School sobre a filosofia política de Kant Depois da morte de Hannah Arendt encontrouse em sua máquina de escrever uma folha em branco a não ser pelo título O Julgar e duas epígrafes Em algum momento entre o sábado do término de O Querer e a quintafeira de sua morte ela deve ter sentado para enfrentar a terceira seção O plano de Hannah Arendt era um trabalho em dois volumes O Pensar o maior deveria ocupar o primeiro e o segundo deveria conter O Querer e O Julgar Conforme disse a amigos esperava que O Julgar ficasse muito mais curto do que os outros Costumava dizer também que esperava que fosse este o mais fácil de lidar O mais difícil tinha sido O Querer A razão que deu para esperar que O Julgar fosse ficar curto era a falta de fontes de consulta somente Kant havia escrito sobre esta faculdade que antes dele só tinha sido notada por filósofos no âmbito da estética em que fora nomeada Gosto Para facilitar ela sem dúvida sentia que suas conferências sobre a filosofia política de Kant com a cuidadosa análise da Crítica do juízo já tinham preparado bastante bem o terreno a ser trabalhado Não obstante podese imaginar que O Julgar viesse a surpreendêla e acabasse por tomar só ele um volume inteiro De qualquer forma para dar ao leitor alguma noção sobre o que haveria na seção conclusiva juntamos um apêndice ao segundo volume contendo extratos das conferências de Hannah Arendt em sala de aula Fora o material de seminário não incluído aqui sobre a Imaginação que toca de passagem no papel que esta última desempenha no processo de julgar isto é tudo o que temos sobre os pensamentos da autora acerca desse tema embora ainda possa aparecer algo mais na correspondência quando for editada É uma pena que não haja outras coisas qualquer pessoa familiarizada com seu espírito terá certeza de que o conteúdo do apêndice não é exaustivo com relação às idéias que já deveríam estar se agitando em sua cabeça quando ela colocou a nova folha de papel na máquina Sobre a edição Ao que eu saiba os livros e artigos de Hannah Arendt eram editados antes de chegar à forma de publicação Aqueles escritos em inglês naturalmente O trabalho era feito por profissionais das editoras das revistas William Shawn na The New Yorker Robert Silvers na The New York Review of Books Philip Rahv nos velhos tempos na Partisan Review e também por amigos As vezes muitas mãos que não se conheciam trabalhavam nos manuscritos com seu consentimento e normalmente mas nem sempre com sua colaboração tendia a deixar aqueles em quem aprendera a confiar bem livres para usar o lápis vermelho Ela se referia a tudo isso com humor como o inglesamento pelo qual tinham de passar seus textos Aprendera a escrever sozinha em inglês como exilada já depois dos trinta e cinco anos e nunca se sentiu tão à vontade com esta língua mesmo na fala como já se sentia com o francês Debatia se com a língua inglesa e com suas terríveis e misteriosas restrições Embora tivesse um talento natural que viria a se fazer sentir em sioux e em sânscrito para a expressão eloqüente vigorosa e às vezes pungente seus períodos eram longos à maneira alemã e tinham que ser desenrolados e quebrados em dois ou três Além disso como qualquer um que fala ou escreve em uma língua estrangeira ela tinha problemas com preposições E com aquilo que Fowler chamava de idioma de ferro E para encontrar o lugar natural dos advérbios pois em inglês não há regras apenas uma lei não escrita que parece tirânica e ameaçadora para o estrangeiro por poder ser de resto quebrada sem a menor previsão Ademais ela era impaciente Suas frases podiam ser pesadas não só porque sua língua materna era o alemão com uma tendência para as seqüências de elementos modificadores e de subordinação que atravancam o caminho até o esperado verbo mas também porque tentava obter muito de uma só vez Essa mistura de pressa e generosidade era muito característica dela De qualquer forma o trabalho de Hannah Arendt foi editado Trabalhei em vários de seus textos às vezes depois de um outro editor amador ou profissional que me havia precedido Revisamos juntas Da violência um certo verão no Café Flore e então levei o texto para casa para exame posterior Trabalhamos em Da desobediência civil em uma pensione na Suíça por vários dias e demos toques finais no último artigo que publicou Home to Roost em um apartamento que lhe fora emprestado em Marbach terra natal de Schiller perto do Deutsche Literaturachiv onde ela pesquisava os escritos de Jaspers Trabalhei com ela na seção sobre O Pensar de A vida do espírito em Aberdeen em uma cópia do manuscrito original posso ver minhas alterações a lápis Na primavera seguinte enquanto ela se encontrava em uma ala do hospital de Aberdeen por alguns dias no balão de oxigênio trabalhei em partes de O Querer sozinha a seu pedido Enquanto Hannah Arendt vivia o trabalho era divertido por ser uma colaboração e um intercâmbio No geral ela aceitava correções de bom grado com alívio quando se tratava de preposições por exemplo com interesse quando alguma questão de uso era nova para ela As vezes discutíamos continuando a discussão por correspondência isso aconteceu em sua tradução do termo Verstand de Kant como intelecto eu achava que devia ser entendimento como no padrão das traduções Mas jamais a convencí e cedi Agora acho que ambas estávamos certas porque apontávamos para coisas diferentes ela se apegava ao sentido original do termo e eu estava buscava a compreensão dos leitores No presente texto ficou intelecto A maior parte de nossas discordâncias eram resolvidas por um meio termo ou por um corte Mas no processo sua impaciência natural mais cedo ou mais tarde reafirmavase Ela não gostava de fazer muito alvoroço a respeito de detalhes Você dá um jeito ela diria afinal começando a esconder um bocejo Sendo impaciente era também indulgente supunhame uma perfeccionista e inclinavase a condescender com essa tendência contanto que não se aproximasse do proselitismo Seja como for nunca tivemos diferenças substantivas Se às vezes eu questionava o pensamento em um de seus manuscritos era somente para apontar o que me parecia uma contradição com outro pensamento que ela apresentara páginas atrás Normalmente acabava ficando claro que eu tinha deixado de perceber alguma distinção subjacente ou ao contrário que ela tinha deixado de perceber a necessidade que o leitor teria de distinguo Por mais estranho que possa parecer nossas cabeças estavam sob muitos aspectos bastante próximas um fato que ela freqüentemente observava quando a mesma noção ocorria para cada uma independentemente enquanto um oceano o Atlântico nos separava Ou ela lia algum texto que eu tinha escrito e encontrava ali um pensamento sobre o qual ela vinha ponderando em silêncio Tal convergência de pensamento decidiu havia de ter algo a ver com a minha formação católica que me tinha dado ela acreditava uma aptidão para a filosofia Na verdade minhas notas nos dois cursos de filosofia que fiz na faculdade estão longe de ser brilhantes cursos confusos e de ensino letárgico acrescentese Por outro lado entretanto nossos estudos não se distanciam tanto Na Alemanha ela tinha feito sua tese de doutorado sobre o Conceito de Amor em Santo Agostinho nos Estados Unidos eu havia lido Santo Agostinho em um curso de graduação sobre Latim Medieval e regozijarame com A cidade de Deus meu favorito Possivelmente meus estudos sobre a Idade Média e a Renascença em francês latim inglês além dos anos de latim clássico e mais tarde da leitura da Platão em casa combinaramse à infância católica ficando no lugar de um treinamento formal em filosofia Há também o fato não considerado por Hannah Arendt de que no decorrer dos anos aprendi muito com ela Menciono essas coisas agora para referirme às minhas qualificações para editar A vida do espirito Não foi um trabalho para o qual eu tivesse me candidatado e quando em janeiro de 1974 ela me tomou sua inventariante literária duvido muito que antevisse o que estava para acontecer isto é que não viveria para terminar aqueles volumes e que seria eu sem o benefício de sua assistência que tomaria conta da publicação Se ela de fato anteviu isso no final pelo menos como uma possibilidade clara depois do ataque cardíaco alguns meses depois em Aberdeen devia saber que eu cuidaria do livro com todas as minhas peculiaridades e rigores e aceitou o inevitável por espírito filosófico Conhecendome pode até ter previsto as tentações que me cercariam com a nova liberdade de interferência liberdade para fazer as coisas do meu jeito mas se me conhecesse tão bem sabería também que a resistência diante do simples vislumbre de tais tentações se erguería em minha consciência ainda católica Se adivinhasse em suma que haveria dias em que eu me tomaria um campo de batalha no qual minha lealdade à prosa de meus antepassados lutaria com meu sentimento de dever para com ela provavelmente teria se divertido com a cena de semelhante disputa furiosa a competição entre os escrúpulos e as tentações tão estranha à sua própria natureza Devo supor que êla confiava em meu julgamento tinha fé em que no final não haveria prejuízo que o manuscrito sairía ileso da luta se me faltasse a confiança em sua confiança eu acabaria logo tendo que desistir Mas o que quer que tenha previsto ou deixado de prever o fato é que ela não está aqui agora para ser consultada ou para nos auxiliar Fui forçada a conjecturar sua reação a cada ato de interferência editorial Na maioria dos casos a experiência anterior facilitou a tarefa se Hannah Arendt conhecia me eu também a conhecia Mas surgiram problemas aqui e ali que no passado eu certamente não teria tentado resolver sozinha em um esforço para adivinhar Toda vez que não estava segura salpicava o manuscrito com pontos de interrogação que significavam O que você quer dizer aqui Pode tomar mais claro E a palavra certa Hoje as questões O que será que ela quis dizer com isso A repetição era intencional ou não dirigemse a mim Ainda assim não exatamente à minha pessoa ao invés disso colocome em seu lugar transformome em uma espécie de leitora de pensamento de médium Com os olhos fechados converso com um fantasma bem vivo Ela me assombrou interrompeu o movimento do meu lápis causou o uso repetido da borracha Na prática a nova liberdade descoberta significou que me sentia menos livre com o seu texto datilografado do que quando ela estava viva Vez por outra pegavame mudando de idéia pelo medo de alguma objeção imaginada e tinha de me recompor com a lembrança de que em circunstâncias normais eu jamais permitiría que passassem os longos períodos de uma página ali olhando me Ou ao contrário aconteciame riscar com firmeza uma frase ou expressão cujo significado era opaco para mim substituindo por uma linguagem que para mim fazia mais sentido então em uma segunda leitura desconfiava e voltava a consultar o texto original via que tinha perdido alguma nuance e recompunha o trecho como havia sido escrito ou fazia novo esforço para parafraseálo Qualquer um que já tenha traduzido reconhecerá o processo os esforços repetidos para ler através da linguagem o pensamento do autor que está ausente Aqui o fato de ter há muitos anos e principalmente creio por minha amizade com ela começado a estudar alemão acabou sendo um golpe de sorte do destino Conheço o bastante da língua materna de Hannah Arendt para discernir a estrutura original como o contorno de montanhas distantes por trás de sua expressão em inglês isto tomou traduzíveis muitas passagens problemáticas simplesmente colocavaas em alemão língua em que ficavam claras e então as refazia em inglês Seja como for no meu entender nada que de alguma forma afete o pensamento foi modificado Foram feitos alguns cortes na maioria pequenos normalmente para eliminar repetições nos casos em que concluí que eram acidentais e não deliberadas Em pouquíssimos lugares não mais que dois ou três acrescentei algo em benefício da clareza como por exemplo as palavras Scotus era um franciscano em uma passagem que de outra forma ficaria obscura para um leitor a quem faltasse a informação Mas tirando tais exceções menores o que se fez foi apenas o inglesamento habitual por que passavam todos os seus textos Isto não se aplica ao material das conferências que figura no apêndice Esses extratos aparecem textualmente com exceção de erros óbvios de datilografia que foram corrigidos Pareceume que uma vez que as conferências sobre Kant jamais foram concebidas para publicação mas sim para serem dadas de viva voz a uma turma de estudantes qualquer intromissão editorial seria inadequada Não era minha tarefa interferir na história As conferências de onde foram tirados os extratos junto com outros escritos podem ser consultadas na Biblioteca do Congresso com a permissão dos seus inventariantes testamentários Devo mencionar um outro grupo de modificações Os manuscritos de O Pensar e O Querer estavam ainda em formato de conferência sem alterações em relação ao modo como tinham sido expostos em Aberdeen embora sob outros aspectos tivessem sido muito revistos e ampliados o último capítulo de O Querer era inteiramente novo Se Hannah Arendt tivesse tido tempo obviamente teria alterado esse formato transformando ouvintes em leitores como fazia habitualmente quando algo que tinha sido proferido como conferência saía em algum livro ou revista No presente texto isso foi feito excetuandose o caso da introdução geral com sua agradável alusão às Gifford Lectures Se algo do sabor da palavra falada permanece entretanto isso só faz bem Uma observação final sobre o inglesamento deve ser feita Evidentemente o gosto pessoal intervém nas decisões do editor Minha idéia própria do que seja aceitável em inglês escrito é como a de qualquer um idiossincrática Não faço objeções por exemplo quanto a terminar uma frase com uma preposição na verdade eu até favoreço esse tipo de construção mas chocame encontrar certos substantivos como shower no sentido de showerbath banho de chuveiro e trigger gatilho usados como verbos Assim não podia deixar que Hannah Arendt uma pessoa que eu admirava tanto usasse trigger quando era perfeitamente adequado utilizar cause causar ou set in motion pôr em movimento E When the chips are down Quando as fichas estão na mesa não posso dizer porque a expressão me desagrada principalmente partindo dela que duvido que tenha algum dia segurado uma ficha de pôquer Mas posso vêla o cigarro na piteira contemplando a mesa de roleta ou bacará acabou então ficando O jogo está feito que lhe cai melhor fica mais do seu jeito Será que ela teria se importado com esse pequenos exemplos de interferência em sua liberdade de expressão Será que ela dava muito valor ao seu trigger Tenho esperança de que teria condescendência com meus preconceitos E embora o gosto pessoal tenha entrado ocasionalmente em cena como árbitro em casos que outrora eu havia tentado persuadila tomei durante todo o tempo muito cuidado para respeitarlhe o tom característico Não permiti que meu próprio estilo interferisse não há uma só palavra estilo Mary McCarthy no texto No único caso em que por não encontrar nada melhor utilizei tal palavra sua inadequação saltava aos olhos nas provas de revisão e a palavra teve de ser rapidamente suprimida De modo que o texto é dela é ela espero no sentido de que as incisões e o polimento revelamna assim como o corte do que é supérfluo no mármore põe a nu sua forma intrínseca Miguelângelo disse isso a respeito da escultura em oposição à pintura e aqui de qualquer forma não há qualquer vestígio de exageros ou de embelezamento Foi um trabalho pesado que mantinha ativo um diálogo imaginário com Hannah Arendt diálogo que às vezes beirava o debate Embora em vida nunca tenha se chegado a isso eu agora a censurava e viceversa O trabalho continuava até tarde da noite nos meus sonhos então subitamente desapareciam páginas do manuscrito ou ao contrário novas páginas apareciam inadvertidamente deixando tudo inclusive as notas fora de ordem Mas também foi senão divertido como nos velhos tempos pelo menos compensador Aprendi por exemplo a entender a Crítica da razão pura que anteriormente considerava impenetrável Procurando uma referência que faltava li alguns diálogos inteiros de Platão o Teeteto e o Sofista nos quais jamais mergulhara anteriormente Aprendi a diferença entre uma arraiaelétrica e uma arraialixa Reli partes das Bucólicas e das Geórgicas de Virgílio que não via desde a faculdade Muitos dos meus velhos livros da faculdade desceram das prateleiras e não só os meus mas também os de meu marido ele estudou filosofia em Bowdoin e os do secretário de meu marido ele tinha Rilke algo que nos faltava de Aristóteles e mais Virgílio Foi uma empreitada cooperativa Minha secretária ao datilografar os manuscritos gentilmente intercedeu em favor de algumas vírgulas e de um tratamento mais rigoroso das falhas gramaticais ela era o Escrúpulo em luta com o lado da Tentação O professor assistente de Hannah Arendt na New School Jerome Kohn caçou algumas referências e amiúde atendendo ao apelo dos ansiosos pontos de interrogação pôde me esclarecer ou então pudemos combinando a nossa confusão chegar a algumas certezas razoáveis Ele até mesmo vide pesadelo acima descobriu uma página que tendo passado despercebida para nós faltava na copiado manuscrito Outros amigos inclusive meu professor de alemão ajudaram Em meio a essa agonia houve momentos de exultação uma mistura do reviver dos nossos tempos de estudante aqueles livros as discussões pela madrugada sobre questões filosóficas e o efeito revigorante das idéias de nossa amiga morta idéias vivas e que geravam controvérsias bem como surpresa e assentimento Embora eu tenha sentido a falta de Hannah Arendt no decorrer desses meses de trabalho na verdade mais de um ano agora por mais que tenha ansiado por sua volta para me esclarecer para objetar confirmar elogiar e ser elogiada não acredito que vá sentir sua falta de verdade sentir a dor do membro amputado até que tudo tenha terminado Sei que ela está morta mas sinto ao mesmo tempo sua presença clara e distinta nesta sala escutando minhas palavras enquanto escrevo talvez concordando com seu menear pensativo talvez reprimindo um bocejo Algumas explicações sobre assuntos práticos Uma vez que o manuscrito embora completo em termos de conteúdo não tinha a forma definitiva nem todas as citações e alusões se fazem acompanhar por notas Graças a Jerome Kohn a Roberta Leighton e a seus auxiliares na editora Harcourt Brace Jovanovich muitas delas foram encontradas Mas como estou dizendo outras ainda faltam e se não puderem ser encontradas a tempo a busca terá que prosseguir e o resultado terá que ser incluído em uma futura edição Além disso mesmo quando temos as referências algumas notas ficaram incompletas principalmente quando a página ou o número do volume que são fornecidos parecem estar errados e ainda não fomos capazes de localizar a passagem certa Isto também espero será eventualmente retificado Tivemos a vantagem de ter acesso aos livros da biblioteca de Hannah Arendt utilizados como referência Mas não temos todos os livros a que ela se referiu Fica claro que ela muitas vezes citava de memória Nos casos em que sua memória não correspondia diretamente ao texto citado isso foi corrigido Com exceção das traduções ali às vezes corrigimos às vezes não Também aqui era uma questão de tentar ler seu pensamento Será que quando a tradução clássica de um original grego latino alemão ou francês era diferente da que ela citava Hannah tinha feito propositalmente a alteração Ou se trataria de uma falha de memória Muitas vezes não conseguíamos ter certeza Como nos mostra a comparação ela de fato lançou mão de traduções clássicas Norman Kemp Smith para Kant Walter Kaufmann para Nietzsche McKeon para Aristóteles as diversas traduções de Platão na edição de Edith Hamilton e Huntington Caims Mas ela conhecia todas essas línguas muito bem um fato que a levava a desviarse da versão clássica quando lhe convinha isto é quando considerava Kemp Smith por exemplo ou Kaufmann imprecisos Do ponto de vista editorial isso criou uma situação caótica Damos crédito a Kemp Smith e a Kaufmann nas notas em que ela se baseou muito mas não inteiramente em suas versões Não fazer parece injusto mas em alguns casos o oposto também parecia injusto Kaufmann por exemplo poderia não querer o crédito de expressões e palavras que não são dele Kemp Smith está morto bem como a maioria dos tradutores de Platão mas isso não significa que a consideração por seus sentimentos deva morrer também Deixando de lado os embaraços com a questão do crédito atacamos o problema geral das traduções de um modo que pode ser fragmentário e ad hoc mas que de fato acompanha a realidade das circunstâncias nas quais nenhuma regra geral e consistente parece funcionar Onde foi possível cada passagem foi comparada com a tradução clássica os trechos estavam freqüentemente sublinhados ou marcados de alguma outra forma no livro que pertencia a Hannah Arendt Quando a variação era grande consultávamos a língua original e se Kemp Smith parecia estar mais perto do alemão de Kant nós o utilizávamos Mas quando havia uma nuance de significado que a tradução de Hannah Arendt sugeria e que na tradução clássica não ficava clara utilizávamos a dela mesmo quando o significado era discutível Com a prática logo ia ficando mais fácil discernir os casos em que uma formulação variante correspondia a uma intenção da parte da autora em oposição àqueles em que se tratava de uma inadvertência uma falha de memória ou um erro de cópia diferenças de pontuação por exemplo foram tratados como inadvertências Infelizmente esta solução prática não dá conta de todas as contingências A não ser quando o texto citado estava na biblioteca em inglês não tínhamos a menor idéia de que tradução se é que havia alguma fora utilizada por Hannah Arendt como referência Suporei que ela fazia a própria tradução e que se sentia livre para fazer alterações ligeiras a bem da expressão inglesa ou da gramática assim como eu teria feito com o seu próprio texto De vez em quando eu mesma retraduzi do original Mas faltoume o atrevimento para tentar fazêlo com Heidegger embora tenha ousado fazêlo com Mestre Eckhart No caso dos autores clássicos há tamanha riqueza de traduções para escolher que dificilmente se pode esperar encontrar exatamente aquela que Hannah Arendt estaria consultandouma agulha em um palheiro Uma vez por sorte esbarrei com uma tradução de Virgílio que por um momento ficou claro ela tinha utilizado Meu lápis moveuse Eureka para indicar em nota a editora a data etc então olhei de novo não Aqui como tantas vezes Hannah tinha utilizado a tradução sem contudo manterse fiel a ela E é impossível identificar em uma nota os pontos em que houve divergência e aqueles em que não houve Ao final chegamos a uma política que foi a de citar uma tradução somente quando foi seguida à risca Quando não indicamos o nome do tradutor significa que a versão utilizada é completa ou quase completamente da autora ou que não pudemos encontrar a tradução que ela consultou se é que existe Ainda assim mesmo essa política merece ressalvas O leitor deve saber que algumas traduçõespadrão McKeon Kemp Smith a miscelânea de HamiltonCairns mesmo nos casos em que não foram especificamente mencionadas foram grosso modo as que serviram de guia para a autora A Bíblia foi um problema especial Parecia difícil dizer a princípio se ela estava usando a versão do Rei James a Revised Standard Version a versão Douai uma versão alemã que ela então traduzia para o inglês ou uma mistura de todas essas Eu até me diverti com a hipótese tema de que ela tivesse ido à Vulgata de São Gerônimo e feito sua própria interpretação do latim Minha tendência era usar a versão do Rei James além da preferência pessoal havia o argumento de que o Tu deves Thou shalt na voz da autora que com frequência aparece em O Querer tinha que combinar com as formas pronominais bíblicas Thou Thee da versão mais antiga de outra forma soaria estranho Mas Roberta Leighton me demonstrou que uma comparação cuidadosa revela que o manuscrito fica mais próximo da Revised Standard Version logo ela foi utilizada com algumas exceções quando a beleza da linguagem do Rei James era irresistível para nós assim como evidentemente também para a autora De qualquer forma aterse no geral à Revised Standard Version acabou com uma dificuldade o fato de que a versão antiga traduz amor agape por caridade Uma vez que para os ouvidos modernos a palavra tem uma conotação muito ligada a uma dedução no imposto de renda ou se refere a ter uma visão benevolente em relação a algo teria que ser trocada por amor entre colchetes toda vez que aparecesse o que dificultaria a leitura Tais preocupações com aconsistênciae com a fidelidade máximanas referências pode parecer curiosa ao leitor em geral Elas são a obsessão da atividade dos editores e acadêmicos Ou são as regras do jogo que a escrita acadêmica concorda em seguir e que por seu próprio rigor aumentam o entusiasmo da atividadeum entusiasmo que não pode ser dividido com aqueles que não estão no jogo A brincadeira de esconder que está por trás de uma nota difícil de encontrar deve ser tomada com a maior seriedade como qualquer outro esporte ou jogo que exija concentração Ainda assim se isso tudo importa somente para poucos principalmente para aqueles envolvidos na atividade qual é o sentido de tudo isso Qual diferença faz se Deus é Ele em uma página e ele em outra Talvez a autora tenha simplesmente mudado de idéia o que é seu direito Por que tentar adivinhar sua preferência subjacente e aprisionála um espírito livre em um Ele ou um ele uniforme Bem é Ele E a vontade é Vontade quando é um conceito e vontade quando atua em um sujeito humano Peço desculpas ao leitor comum por mencionar estes detalhes sobre notas letras maiúsculas e minúsculas colchetes etc coisas tão sem interesse para alguém de fora quanto a ponderação que leva o esportista a escolher uma isca sofisticada quando uma minhoca bastaria para pegar o peixe Os especialistas tendem a perder de vista que o que importa é o peixe como Hannah Arendt seria a primeira a concordar Ela preocupavase com o leitor comum que para ela continuava sendo o estudante adulto E por isso que ela gostava especialmente de Sócrates Mesmo assim sendo uma professora e uma erudita ela conhecia as regras do jogo e na maioria das vezes aceitavaas ainda que mais no espírito da tolerância que se tem com os passatempos infantis do que no do zelo de uma verdadeira participante Seja como for no decorrer desses meses com o manuscrito meus lápis bem apontados transformaramse em tocos E agora já falei muito de meu trabalho É hora de devolver o manuscrito a si mesmo Table of Contents 1 A Vida do Espirito 2 Sumário 3 Prefácio à edição brasileira 4 Nota de tradução 5 Nota da editora 6 Volume 1 O Pensar 1 Introdução 2 Capítulo 1 Aparência 1 1 A natureza fenomênica do mundo 2 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos 3 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície 4 4 Corpo e alma alma e espírito 5 5 Aparência e semblância 6 6 O ego pensante e o eu Kant 7 7 Realidade e ego pensante dúvida cartesiana e sensus communis 8 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado 3 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 1 9 Invisibilidade e retirada do mundo 2 10 A luta interna entre pensamento e senso comum 3 110 pensar e o agir o espectador 4 12 Linguagem e metáfora 5 13 A metáfora e o inefável 4 Capítulo 3 O que nos faz pensar 1 14 Os pressupostos filosóficos da filosofia grega 2 15 A resposta de Platão e seus ecos 3 16 A resposta romana 4 17 A resposta de Sócrates 5 18 O doisemum 5 Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 1 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum 2 20 A lacuna entre passado e futuro o nunc stans 3 21 Postscriptum 6 Notas 1 Introdução 2 Capítulo 1 3 Capítulo 2 4 Capítulo 3 5 Capítulo 4 7 Volume 2 O Querer A Vontade 1 Introdução 2 Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 1 Tempo e atividades do espírito 2 2 A Vontade e a Era Moderna 3 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pós medieval 4 4 O problema do novo 5 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito 6 6 A solução de Hegel a filosofia da História 3 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 1 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade 2 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade 3 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade 4 Capítulo 3 O Querer e o Intelecto 1 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto 2 12 Duns Scotus e a primazia da Vontade 5 Capítulo 4 Conclusões 1 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos 2 14 O repúdio nietzscheano da Vontade 3 15 O querernãoquerer de Heidegger 4 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum 6 Notas 1 Capítulo 1 2 Capítulo 2 3 Capítulo 3 4 Capítulo 4 8 Apêndice O Julgar 1 Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant 1 Sobre a comunicabilidade de uma sensação 2 O gosto como uma espécie de sensus communis 2 Posfácio da editora
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Hannah Arendt A Vida do Espirito 4a EDIÇÃO TRADUÇÃO 1 VOLUME Antônio Abranches MESTRE EM FILOSOFIA PUCRJ Cesar Augusto R de Almeida BACHAREL EM FILOSOFIA I PUCRJ 2 VOLUME Helena Martins MESTRE EM LINGUÍSTICA PUCRJ REVISÃO TÉCNICA Antônio Abranches MESTRE EM FILOSOFIA PUCRJ COPIDESQUEE PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS Ângela Ramalho MESTRE EM LITERATURA UFRJ RELUME D U M A R Á Rio de Janeiro 2000 Título original The Life of the Mind Volume 1 Copyright 1971 by Hannah Arendt C Copyright 1978 1979 by Harcourt Brace Jovanovich Inc Volume 2 Copyright 1978 by Harcourt Brace Jovanovich Inc Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich Inc Copyright da edição brasileira 1991 DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA wwwrelumedumaracombr Travessa Juraci 37 Penha Circular 21020220 Rio de Janeiro RJ Tel 21 564 6869 Fax 21 590 0135 Email relumerelumedumaracombr Ia edição 1992 em coedição com a Editora UFRJ 2a edição 1993 3a edição 1995 4a edição 2000 Editoração eletrônica Carlos Alberto Herszterg Impressão e acabamento Marques Saraiva CIPBrasil Catalogação na fonte Sindicato Nacional de Editores de Livros RJ Arendt Hannah 19061975 A727v A vida do espírito o pensar o querer o julgar Hannah Arendt tradução Antônio Abranches Cesar Augusto R de Almeida Helena Martins revisão técnica Antônio Abranches copidesque e preparação de originais Angela Ramalho Rio de Janeiro Relume Dumará 2 v Tradução de The Life of the Mind Apêndice ISBN 8585427140 1 Pensamento 2 Vontade 3 Julgamento Ética 4 Filosofia modema Século XX I Título 920520 CDD 193 CDU 1430 Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação por qualquer meio seja ela total ou parcial constitui violação da lei 5988 Numquam se plus agere quam nihil cum ageret numquam minus solum esse quam cum solus esset Catão Cada um de nós é como um homem que vê as coisas em um sonho e acredita conhecêlas perfeitamente e então desperta para descobrir que não sabe nada Platão Político Sumário Prefácio à edição brasileira xi Nota de tradução xvii Nota da editora xix Volume 10 Pensar Introdução 5 Capítulo 1 Aparência 1 A natureza fenomênica do mundo 17 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos 20 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície 22 4 Corpo e alma alma e espírito 25 5 Aparência e semblância 30 6 O ego pensante e o eu Kant 32 7 A realidade e o ego pensante a dúvida cartesiana e o sensus communis 36 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado 42 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 9 Invisibilidade e retirada do mundo 55 10 A luta interna entre pensamento e senso comum 63 11 O pensar e o agir o espectador 71 12 Linguagem e metáfora 76 13 A metáfora e o inefável 85 Capítulo 30 que nos faz pensar 14 Os pressupostos préfilosóficos da filosofia grega 99 15 A resposta de Platão e seus ecos 108 16 A resposta romana 115 17 A resposta de Sócrates 125 18 O doisemum 135 Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum 149 20 A lacuna entre o passado e futuro o nunc stans 152 21 Postscriptüm 160 Notas 165 Volume 20 Querer A Vontade Introdução 189 Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 Tempo e atividades do espírito 195 2 A Vontade e a Era Moderna 201 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pósmedieval 204 4 O problema do novo 208 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito 212 6 A solução de Hegel a filosofia da História 216 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade 227 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade 233 9 Epiteto e a onipotência da Vontade 240 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade 248 Capítulo 30 Querer e o Intelecto 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto 271 12 Duns Scotus e o primado da Vontade 280 Capítulo 4 Conclusões 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos 299 14 O repúdio nietzscheano da Vontade 305 150 querernãoquerer de Heidegger 316 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum 332 Notas 349 Apêndice O Julgar Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant 369 Posfácio da editora 383 Prefácio à edição brasileira Eduardo Jardim de Moraes O leitor que acompanhou a publicação da obra de Hannah Arendt o público leitor das várias traduções brasileiras dos últimos anos mas também o leitor contemporâneo da primeira edição americana de A vida do espírito de 1978 pode sentirse surpreendido por ser agora convidado a percorrer com a autora um caminho possivelmente mais árduo freqüentado habitualmente pelos especialistas em Filosofia a quem Hannah Arendt gostava de chamar secundando Kant e com a mesma ironia de pensadores profissionais Com efeito desde a publicação na década de 50 de As origens do totalitarismo a obra de Hannah Arendt se afirmara como um empreendimento que visava responder a um desafio o de compreender a novidade radical do nosso século Há em nossa autora o que pode ser considerado como origem e esteio de sua obra uma paixão pela compreensão e a decisão de apostar nessa única possibilidade de reconciliação com a realidade que é assegurada pelo pensamento Podiam seus textos estar tratando de indicar a falência da experiência política nas sociedades totalitárias de sugerir alguma forma de esperança como na reavaliação do legado das experiências revolucionárias modernas podiam eles estar denunciando os impasses em que se encontravam a ciência e a técnica contemporâneas ou ainda manifestar perplexidade diante da situação de banalização dos conceitos de cultura e de educação no mundo atual podiam mesmo pretender a elaboração de uma fenomenologia da vida ativa como em A condição humana ao propor a diferenciação das esferas do labor do trabalho e da ação e ao traçar com firmeza o limite entre os âmbitos público e privado como aquele entre a política e a economia em cada uma destas tantas direções por que avançou a reflexão de Hannah Arendt é possível notar sempre a urgência de tudo pretender julgar e o que para o leitor de A vida do espírito deverá ser ainda mais significativo a percepção clara da instabilidade a que está necessariamente sujeita nos dias de hoje a tarefa judicante O que significava julgar para Hannah Arendt E qual a especificidade da situação atual de quem pretende exercer a atividade de julgar que faz com que seja vivida de forma tão dramaticamente problemática O propósito desta apresentação é o de tentar responder a estas questões indicando a sua articulação com o projeto de elaboração de A vida do espírito O juízo é a faculdade que possibilita que nos pronunciemos sobre coisas ou situações particulares Esta habilidade que nos permite decidir que uma coisa está correta que tal outra não está ou que determinado objeto é ou não belo é o que assegura que podemos nos orientar no mundo em que vivemos Se pudéssemos apreender cada situação particular com que nos deparamos aplicando a ela uma regra de validade geral que já possuíssemos de antemão à maneira do cientista que procede subsumindo os casos particulares a leis já prescritas anteriormente certamente não precisaríamos mencionar as dificuldades que estão em jogo no ato de julgar Mas serão juízos deste tipo os que estão envolvidos no diagnóstico proposto por Hannah Arendt da situação contemporânea Não existirão situações diante das quais nos sentimos como que desprovidos destes critérios gerais prévios a que estamos habituados a recorrer O que dizer sobre a consideração de eventos que não se dão segundo leis como as que regem os fenômenos naturais mas que se apresentam como únicos como aqueles que ocorrem no âmbito das relações que os homens estabelecem entre si Hannah Arendt tentou examinar em muitos passos de sua obra as respostas dadas a estes problemas em diversos momentos da história do pensamento Isto a levou a notar o enorme contraste entre a situação atual e a do passado e a extrair disto uma importante lição O conceito que nossa tradição de pensamento teve da questão dos critérios que estão em jogo na atividade de julgar remonta aos primórdios da Filosofia na antiga Grécia Quando Platão descreve no início do Livro VII de A República na famosa alegoria da caverna o percurso do prisioneiro que se liberta das cadeias que o prendiam ao mundo das sombras no interior da caverna ele pretende descrever o caminho do pensamento em busca da verdade Platão nos ensina que esse percurso apresenta um duplo movimento Há inicialmente um movimento ascendente do pensamento que se eleva passo a passo da precária visão das sombras dos objetos materiais até a consideração desses objetos em si mesmos passando em seguida à percepção do fogo que os ilumina ainda no interior da caverna isto é no mundo sensível Só então é possível ingressar na luz do dia fora da caverna que simboliza o mundo inteligível Ainda aqui novas etapas precisam ser conquistadas Em um primeiro momento dáse a apreensão das realidades matemáticas que são ainda como que as sombras das idéias até poderse mais adiante encarar diretamente a realidade das idéias que constituem a verdadeira realidade Então após esse longo percurso para o alto alcançase finalmente a contemplação do Sol das idéias seu princípio que é a idéia do Bem A interpretação que Hannah Arendt propõe desta passagem da alegoria da caverna explorando uma sugestão de Heidegger consiste em indicar a novidade Tratase do ensaio de Heidegger A doutrina de Platão sobre a verdade publicado em alemão pela primeira vez com o título de Platons Lehre von der Wahreit em Berna 1947 introduzida por Platão em sua conceituação do Bem aquilo que se contempla ao atingirse o ponto mais alto desse percurso de purificação Esta nova conceituação só adquire pleno significado quando considerada a segunda etapa do percurso descrito na alegoria que se faz em sentido descendente com o retomo ao mundo sensível Nesse momento aquilo que aparecia como uma descrição de um movimento feito pelo pensamento ganha uma personificação na figura do filósofo que possuindo agora um conhecimento considerado verdadeiro é representado no mundo do interior da caverna no mundo dos homens como seu governante Que novidade para Hannah Arendt estaria neste momento sendo introduzida por Platão que toma tão central o lugar de A República no pensamento ocidental Ela consiste em ter Platão atribuído então à sua conceituação do Bem um conteúdo normativo A partir de agora o caminho do pensamento ganha uma direção bem determinada ele deve possibilitar o acesso ao Bem concebido como uma verdade que é tomada como um padrão ou uma medida a partir da qual se deve avaliar o âmbito mundano O conceito platônico de verdade tal como comparece em A República traduz a confiança de que podemos apreender se mantivermos abertos os olhos do espírito os critérios com que podemos julgar e logo orientarnos no mundo A substituição de um conceito mais intimamente associado à idéia de beleza como acontecia em diálogos mais antigos de Platão por um novo com o significado de Bem na acepção de bom para ou de adequado traz consigo a tese de que há uma coesão entre pensamento e juízo de que a tarefa do pensamento consiste em possibilitar o acesso aos critérios com que podemos julgar os eventos particulares A tradição do pensamento ocidental que se iniciou com o reconhecimento pelos romanos da autoridade da Grécia e que teve sua continuidade assegurada pelo cristianismo trouxe ao mundo uma forma de estabilidade que se fundava nessa coesão do pensamento e do juízo formulada pela primeira vez na obra de Platão A figura da pirâmide utilizada por Hannah Arendt para descrever o conceito político clássico de autoridade poderia ilustrar de forma ampla a situação de toda a cultura tradicional Neste caso o ponto superior da pirâmide estaria ocupado pela verdade a que o filósofo tem acesso e que se situaria fora do mundo sensível em que vivemos O poder de coesão da verdade espalhase do alto sobre o corpo da pirâmide garantindo a sua forma compacta e resistente A verdade teórica ilumina o contexto da prática nossa moral a vida política e os critérios com que apreciamos cada um dos seres particulares do mundo Tudo isto foi radicalmente alterado quando no início da Era Moderna a nova ciência adotou como atitude básica a desconfiança de que a teoria fosse capaz de se abrir a qualquer forma de verdade A suspeita com relação à possibilidade de nos fiarmos em nossa capacidade receptiva seja através dos sentidos seja através de uma faculdade que embora puramente intelectual como é o caso da imaginada por Platão fora concebida com base no confiável modelo dos sentidos constitui o motivo central da filosofia e da ciência modernas Uma tal desconfiança fundavase no fato de que o aparato de instrumentos mobilizados pela ciência e aqui Hannah Arendt tem em mente as observações feitas por Galileu pelo telescópio no início do século XVII indica que nossa apreensão imediata do mundo pode muito bem ser por eles desmentida não sendo portanto merecedora de crédito Hannah Arendt considerou como cerne da crise da tradição ocidental a descrença no conceito clássico de verdade Este veio a ser substituído por um novo não mais concebido com base em uma perspectiva contemplativa mas na capacidade humana da fabricação Mas antes mesmo que a Era Moderna pudesse elaborar uma nova conceituação da verdade já ruíra por terra a antiga tradição O poder iluminador das idéias sobre o mundo e o universo do modo como o conceberam os filósofos desapareceu e com isto perdeuse a segurança que havia de compreender o mundo e nele se orientar É freqüente encontraremse na obra de Hannah Arendt expressões que buscam dar conta dessas situações de crise Rupturas e descontinuidades são temas recorrentes e sempre explorados em profundidade por nossa autora E aqui possivelmente pode ser localizada a força do pensamento arendtiano ela soube na caracterização dessas situações reconhecer sempre o seu significado complexo Esteve sempre atenta para surpreender no momento em que a trama se parte a possibilidade do surgimento de algo novo e inesperado Assim por um lado o quadro da crise da tradição motivou muitas vezes em Hannah Arendt páginas que expressam angústia diante do desamparo próprio da vida do homem moderno Ela procurou identificar e dar significado a essa experiência recorrendo a autores como Tocqueville que afirma Desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro a mente do homem vagueia nas trevas1 Ou ainda em Platão encontrou a expressiva indicação O início é como um deus que enquanto mora entre os homens salva todas as coisas2 Também em René Char ou em Kafka foi possível encontrar igual sensibilidade na descrição das perplexidades que acompanham a experiência de pensar quando já não existem os parâmetros norteadores da tradição Do mesmo modo ao tomarse o problema a partir de uma ótica política ao considerálo portanto no que se refere à experiência de todos vêse que a apreciação proposta das grandes tragédias do século sublinha o seu imbricamento com a falência dos critérios tradicionais No início de A vida do espírito ao apresentar as motivações que a teriam levado à feitura do livro Hannah Arendt indica em primeiro lugar a hipótese da existência de uma relação entre o mal é aos crimes de Eichmann que se está referindo e a ausência de pensamento Em seu exame do funcionamento das sociedades totalitárias um papel considerável é atribuído às ideologias consideradas como substitutos perversos do pensamento As ideologias suspendem toda abertura para o ser característica da atividade de pensar que sempre se inicia pelo espanto o tháuma dos gregos e a substituem pela afirmação de princípios explicativos totais a raça ou a luta de classes que se desdobram movidos pela força implacável do raciocínio lógico Por outro lado nós que vivemos depois que a ruptura se deu podemos experimentar nossa época como se de alguma forma estivéssemos usufruindo de um privilégio Uma vez que estamos irremediavelmente condenados a considerar as coisas sem o auxílio da tradição temos a oportunidade de ao fazêlo apreendêlas pela primeira vez com os olhos livres Aqui ecoa ainda o apelo fenomenológico de um retorno às coisas mesmas Há portanto alguma coisa de liberador nesta situação O leitor que inicia agora a travessia desta obra incompleta na verdade apenas a primeira parte sobre o pensamento pode ser considerada completa a segunda sobre a vontade apresenta em muitos pontos uma forma inacabada e da terceira sobre o juízo lamentavelmente só dispomos das indicações a respeito do que ela deveria tratar vai poder avaliar por si mesmo o impacto desse efeito liberador de que a elaboração de A vida do espírito é o mais claro resultado Pois ao menos por dois aspectos marcase nesta obra o ponto em que se iniciam duas das tarefas da reflexão em nossos dias que só puderam ser consideradas porque se constituíram como explorações feitas a partir da experiência moderna da perda das referências tradicionais A primeira diz respeito à definição do estatuto do próprio pensamento Se o pensamento não se apresenta mais como a via de acesso à verdade que se toma como padrão a partir do qual são julgados os eventos particulares uma primeira questão logo se apresenta Ela referese à possibilidade que temos de pela primeira vez compreender o modo de ser do pensamento liberado dos encargos normativos que tradicionalmente lhe eram atribuídos Aqui percebemse todas as implicações contidas na exigência feita por Kant de distinguir o conhecimento e o pensamento Ao limitarmos o domínio do conhecimento interessado no estabelecimento da verdade a respeito dos objetos particulares podemos sentir pela primeira vez o que Hannah Arendt chamou referindose à definição socrática de o vento do pensamento Na mesma direção caminha a passagem de Heidegger que serve de epígrafe à primeira parte do livro A definição do que é pensamento vislumbrase quando já não lhe atribuímos alguma função cognitiva ou instrumental ou quando já não esperamos dele uma resposta ou uma norma para a vida prática A primeira parte de A vida do espírito propõese a compor lidando com os elementos fragmentados do legado espiritual da humanidade único modo pelo qual hoje o podemos considerar a figura da mais livre das nossas atividades que é o pensamento Qual a posição do pensamento relativamente ao mundo compreendido como o âmbito das aparências O que nos faz pensar E onde estamos quando pensamos São estas as indagações que orientam neste momento a investigação de Hannah Arendt Há ainda uma outra maneira de considerar o efeito liberador contido na situação de ruptura com a tradição que mais de perto se relaciona com o propósito destas considerações de explorar as pistas que conduzem da reflexão política de Hannah Arendt ao seu esforço final de compreensão da vida do espírito Agora que sabemos que o pensamento já não se impõe como tarefa determinar os critérios com que devemos agir e também com que devemos julgar os eventos que se passam neste mundo e que não podemos mais esperar da teoria normas em que possamos nos fiar para orientarnos estamos em condições de reconhecer também pela primeira vez o estatuto do juízo em sua dignidade própria Então seremos conduzidos a refletir sobre a sua origem em um âmbito especificamente seu marcado pela presença de várias vozes pois que sua forma é plural e não distante do âmbito da política Os que julgam estão apenas situados a uma certa distância dos acontecimentos do mundo já que esta é a condição que permite melhor apreciar Estas são indicações que poderíam servir para descrever uma cena bem diferente possivelmente um contraponto daquela que Platão imaginou em sua alegoria Essa nova cena apresentou um interesse especial para um outro grande pensador Kant que a retratou em seu Conflito das faculdades a das ruas de Paris em que seus habitantes desinteressadamente e ao mesmo tempo com grande entusiasmo assistiam aos eventos da Revolução Esta cena sempre lembrada por Hannah Arendt quando pretendia considerar o tema do juízo é frequentada por um público que não se imaginava ter algum dia ido buscar em um outro mundo como o da teoria as normas que pudessem servir como referência para estabelecer sua opinião sobre os eventos que se desenrolavam A definição do estatuto autônomo do juízo deveria constituir o ponto de chegada da investigação de A vida do espírito Os procedimentos críticos em jogo na obra são o que deve assegurar no aprofundamento das distinções entre cada uma das atividades do espírito o pensamento a vontade e o juízo a compreensão do modo de ser de cada uma delas bem como a indicação da possibilidade de haver entre elas comunicação Uma palavra sobre a tradução que vai ser lida Seus autores contaram para a sua preparação de forma direta ou não com subsídios de um trabalho de alguns anos dedicado à interpretação do pensamento de Hannah Arendt Do ponto de vista da tradução de um texto filosófico isto não é tudo mas constitui um ponto decisivo que motiva a sua recomendação A exigência de precisão conceituai veio somarse em várias revisões o cuidado na apresentação literária do texto Esperase que o público aprecie o resultado destes esforços em concerto 1 Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva p32 2 Idem ibid Nota de tradução Traduzimos mind por espírito buscando evitar qualquer aproximação com algum positivismo mentalismo vulgar ou mesmo com a philosophy of mind vertentes tão distantes do pensamento de Hannah Arendt Mas neste como em outros casos nenhuma solução é plenamente satisfatória e a dificuldade encontrase no peso que as camadas sedimentadas de significado exercem igualmente sobre os termos espírito e mente O problema do tradutor em relação à constituição metafísica e à reação antimetafísica do vocabulário filosófico é semelhante ao da própria autora Quando a ênfase na derivação do termo latino mens foi explicitada tivemos naturalmente que traduzir por mente Já na tradução de semblance por semblância a despeito da inconveniência do neologismo inconveniência mitigada pala relativa difusão do termo e pelos correlates em francês e em espanhol a intenção foi justamente a de aproveitar o despojamento semântico do termo A importância e a positividade do conceito já esboçadas no último capítulo de A condição humana muito embora o termo ainda não apareça aí inviabilizaram a utilização de soluções tradicionais tais como ilusão ou erro perceptivo que se revelariam definitivamente inapropriadas na expressão semblância autêntica Ao traduzir out of order por fora de ordem procuramos acompanhar a dupla intenção da autora de caracterizar a condição de alheamento do ego pensante e indicar a inversão que ele opera em todas as relações ordinárias Embora ela retire o termo de Heidegger cuja tradução brasileira certamente com boas razões adotou a solução extraordinário a versão alemã da própria autora mantém a expressão escandida ausser der Ordnung Na tradução de afterthought encontramos soluções com vantagens relativas Temos por um lado as opções mais literais como pensar depois e póspensamento ou a expressão pensamento posterior que aparece por vezes na versão alemã nachtraglich Gedankef todas essas soluções explicitam a idéia de sucessão no processo do pensamento Por outro lado a solução adotada aqui repensar nachdenken que também aparece na versão alemã e que sem o hífen é o verbo de uso corrente que significa repensar reconsiderar é o termo que a nosso ver melhor traduz a idéia de um retomar de outro modo aquilo que já foi pensado dessensorializado Finalmente optamos por criar na tradução do termo nill o composto não querer O termo original traz em si uma idéia de negação que entretanto não implica anulação do querer designando sim sua própria constituição o neologismo em português mantendo intemamente a idéia de negação tem como núcleo querer permitindo a interpretação positiva e transitiva em que a autora insiste explicitamente De outra parte a dupla hifenação querernãoquerer é tão somente um acompanhamento da hifenação original na expressão willnottowill sem pretender sugerir qualquer extensão de nãoquerer nill Agradecemos a Tito Marques Palmeiro pela generosa disponibilidade e pela ciência com que atendeu às nossas múltiplas solicitações Nota da editora Mary McCarthy Na qualidade de amiga e inventariante literária de Hannah Arendt preparei para publicação A vida do espírito Em 1973 O Pensar foi apresentado sob forma resumida nas Gifford Lectures na Universidade de Aberdeen e em 1974 a parte inicial de O Querer Ambos O Pensar e O Querer novamente sob forma resumida foram expostos em cursos regulares na New School for Social Research em Nova Iorque durante os períodos de 19745 e 19750 segundo volume contém um apêndice sobre O Julgar extraído de aulas expositivas sobre a filosofia política de Kant apresentada em 1970 na New School Da parte de Hannah Arendt agradeço aos professores Archibald Wemham e Robert Cross da Universidade de Aberdeen e às senhoras Wemham e Cross pela gentileza e a hospitalidade que lhe dispensaram durante suas estadas em Aberdeen por ocasião das Gifford Lectures Estes agradecimentos são extensivos também ao Senatus Academicus da universidade responsável pelo convite Meus próprios agradecimentos como editora incluem sobretudo Jerome Kohn professor assistente da dra Arendt na New School por sua permanente solicitude na solução de difíceis problemas relativos ao texto bem como pela diligência e pelo cuidado na busca e verificação das referências Também sou grata a ele e a Larry May pela preparação do índice Agradeço de modo particular a Margo Viscusi pela santa paciência em datilografar um manuscrito bastante revisado com muitos insertos e entrelinhas em caligrafias diversas e pelas pesquisas suscitadas por questões editoriais Agradeço a seu marido Anthony Viscusi por emprestar seus livros de faculdade que facilitaram bastante a verificação de algumas citações inexatas Agradeço a meu próprio marido James West pelo oportunismo de suas anotações filosóficas pela disposição em discutir o manuscrito e pelas suas ocasionais perplexidades e agradeço a ele também por sua determinação no momento de desatar vários nós górdios do plano geral e do esboço destes volumes Sou grata a Lotte Koehler minha co inventariante por franquear aos editores o acesso aos livros relevantes da biblioteca de Hannah Arendt e por sua total solicitude e devoção Sou imensamente grata a Roberta Leighton e sua equipe da Hartcourt Brace Jovanovich pelo enorme esforço e pela inteligência com que se debruçaram sobre o manuscrito ultrapassando sensivelmente a prática editorial comum Agradeço afetuosamente a William Jovanovich pelo interesse pessoal que sempre dedicou a A vida do espírito interesse que já se evidenciava na presença em Aberdeen em três das Gifford Lectures Para ele Hannah Arendt era muito mais do que um autor e ela por sua vez valorizava não apenas a amizade dele mas os comentários e observações críticas sobre seu texto Desde a morte de Arendt ele me incentivou e fortaleceu com a leitura atenta do texto editado e com as sugestões para o tratamento do material que iria constituir O Julgar extraído das conferências sobre Kant Acima de tudo devo notar a disposição com que se prestou a dividir o peso da decisão sobre alguns pontos específicos bem como sobre outros mais gerais Devo agradecer também a meus amigos Stanley Geist e Joseph Frank pela disponibilidade com que atenderam às consultas sobre problemas linguísticos do manuscrito E também a meu amigo Wemer Stemans do Instituto Goethe de Paris pela ajuda com a língua alemã Ao The New Yorker que publicou O Pensar com pequenas alterações o nosso reconhecimento sintome grata ainda a William Shawn por sua entusiasmada resposta ao manuscrito uma reação que teria sido saudada pela autora Finalmente e acima de todos agradeço a Hannah Arendt pelo privilégio de haver trabalhado em seu livro Volume 1 O Pensar Introdução O pensamento não traz conhecimento como as ciências O pensamento não produz sabedoria prática utilizável O pensamento não resolve os enigmas do universo O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir Martin Heidegger O título que dei a esta série de palestras A vida do espírito soa pretensioso e falar sobre O Pensar pareceme tão presunçoso que sinto que devo começar não com uma apologia mas com uma justificativa E claro que o assunto propriamente dispensa qualquer justificativa E dispensa de modo especial no âmbito de excelência inerente às Gifford Lectures O que me perturba é que seja eu a tentar pois não pretendo nem ambiciono ser um filósofo ou estar incluída entre aqueles que Kant não sem ironia chamou de Denker von Gewerbe pensadores profissionais1 A questão pois é se eu não deveria ter deixado tais problemas nas mãos dos especialistas E assim sendo a resposta deverá mostrar o que me levou a abandonar o âmbito relativamente seguro da ciência e da teoria políticas para me aventurar nesses temas espantosos ao invés de deixálos em paz Minha preocupação com as atividades espirituais tem origem em duas fontes bastante distintas O impulso imediato derivou do fato de eu ter assistido ao julgamento de Eichmann em Jerusalém Em meu relato2 mencionei a banalidade do mal Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento literário teológico ou filosófico sobre o fenômeno do mal Aprendemos que o mal é algo demoníaco sua encarnação é Satã um raio caído do céu Lucas 1018 ou Lúcifer o anjo decaído O demônio também é um anjo Unamuno cujo pecado é o orgulho orgulhoso como Lúcifer isto é aquela superbia de que só os melhores são capazes eles não querem servir a Deus mas ser como Ele Dizse que os homens maus agem por inveja e ela pode ser tanto ressentimento pelo insucesso mesmo que não se tenha cometido nenhuma falta Ricardo III quanto propriamente a inveja de Caim que matou Abel porque o Senhor teve estima por Abel e por sua oferenda mas por Caim e sua oferenda ele não teve nenhuma estima Ou podem ter sido movidos pela fraqueza Macbeth Ou ainda ao contrário pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade Odeio o Mouro o que me move é o coração de lago o ódio de Claggart pela bárbara inocência de Billy Budd um ódio que Melville considerou uma depravação com relação à natureza humana ou pela cobiça a raiz de todo o mal Radix omnium malorum cupiditas Aquilo com que me defrontei entretanto era inteiramente diferente e no entanto inegavelmente factual O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tomava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos em suas raízes ou motivos em quaisquer níveis mais profundos Os atos eram monstruosos mas o agente ao menos aquele que estava agora em julgamento era bastante comum banal e não demoníaco ou monstruoso Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más e a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo não era estupidez mas irreflexão No âmbito dos procedimentos da prisão e da corte israelenses ele funcionava como havia funcionado sob o regime nazista mas quando confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina parecia indefeso e seus clichês produziam na tribuna como já haviam evidentemente produzido em sua vida funcional uma espécie de comédia macabra Clichês frases feitas adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade ou seja da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência Se respondéssemos todo o tempo a esta exigência logo estaríamos exaustos Eichmann se distinguia do comum dos homens unicamente porque ele como ficava evidente nunca havia tomado conhc cimento de tal exigência Foi essa ausência de pensamento uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar que despertou meu interesse Será o fazeromal pecados por ação e omissão possível não apenas na ausência de motivos torpes como a lei os denomina mas de quaisquer outros motivos na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição Será que a maldade como quer que se defina este estar determinado a ser vilão não é uma condição necessária para o fazeromal Será possível que o problema do bem e do mal o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado esteja conectado com nossa faculdade de pensar Por certo não no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado como se a virtude pudesse ser ensinada e aprendida somente os hábitos e costumes podem ser ensinados e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento O fato de que habitualmente se trata de assuntos ligados ao problema do bem e do mal em cursos de moral ou de ética pode indicar quão pouco sabemos sobre eles pois moral deriva de mores e ética de ethos respectivamente os termos latino e grego para designar os costumes e os hábitosestando a palavra latina associada a regras de comportamento e a grega sendo derivada de habitação como a nossa palavra hábitos A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos nem da estupidez no sentido de inabilidade para compreender nem mesmo no sentido de insanidade moral pois ela era igualmente notória nos casos que nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de consciência A questão que se impunha era seria possível que a atividade do pensamento como tal o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independentemente de resultados e conteúdo específico estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal ou mesmo que ela realmente os condicione contraele A própria palavra consciência em todo o caso aponta nesta direção uma vez que significa saber comigo e por mim mesmo um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento E não estará esta hipótese reforçada por tudo o que sabemos sobre a consciência isto é que uma boa consciência em geral só é apreciada por pessoas realmente más criminosas e tais ao passo que somente pessoas boas são capazes de ter uma má consciência Dizendo de outra maneira e utilizando uma linguagem kantiana tendo sido aturdida por um fato que queira eu ou não me pôs na posse de um conceito a banalidade do mal não me era possível deixar de levantar a quaestio juris e me perguntar com que direito eu o possuía e utilizava3 Foi portanto o julgamento de Eichmann que despertou meu interesse por esse tema Mas além disto também essas questões morais que têm origem na experiência real e se chocam com a sabedoria de todas as épocas não só com as várias respostas tradicionais que a ética um ramo da filosofia ofereceu para o problema do mal mas também com as respostas muito mais amplas que a filosofia tem prontas para a questão menos urgente O que é o pensar renovaram em mim certas dúvidas De fato tais dúvidas vinham me afligindo desde que terminei um estudo sabiamente intitulado por meu editor A condição humana mas que eu havia proposto mais modestamente como uma investigação sobre A vita activa Desde oprimeiromomento em que me interessei pelo problema da Ação a mais antiga preocupação da teoria política o que me perturbou foi que o próprio termo que adotei para minhas reflexões sobre o assunto a saber vita activa havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam deste ponto de vista para todos os modos de vida Visto a partir daí o modo ativo de vida é laborioso o modo contemplativo é pura quietude o modo de vida ativo dáse em público o contemplativo no deserto o modo ativo é devotado às necessidades do próximo o modo contemplativo à visão de Deus Duae sunt vitae activa et contemplativa Activa est in labore contemplativa in requie Activa in publico contemplativa in deserto Activa in necessitate proximi contemplativa in vjsioni Dei Citei um autor medieval4 do século XII quase aleatoriamente porque a idéia pela qual a contemplação constitui o mais alto estado do espírito é tão antiga quanto a filosofia ocidental A atividade do pensamento segundo Platão o diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo serve apenas para abrir os olhos do espírito e mesmo 0 nous aristotélico é um órgão para ver e contemplar a verdade Em outras palavras o pensamento visa à contemplação e nela termina e a própria contemplação não é uma atividade mas uma passividade é o ponto em que as atividades espirituais entram em repouso Segundo as tradições da Era Cristã quando a filosofia tomouse serva da teologia o pensamento passou a ser meditação e a meditação passou novamente a terminar na contemplação uma espécie de estado abençoado da alma em que o espírito não mais se esforçava para conhecer a verdade mas para antecipar um estado futuro recebendoo temporariamente na intuição Descartes de modo característico ainda influenciado por esta tradição chamou o tratado no qual se dispôs a demonstrar a existência de Deus de Méditations Com o surgimento da Era Moderna o pensamento tomouse principalmente um servo da ciência do conhecimento organizado e ainda que tenha ganho muito em atividade segundo a convicção crucial da modernidade pela qual só posso conhecer o que eu mesmo produzo foi a matemática a ciência nãoempírica por excelência em que o espírito parece lidar apenas consigo mesmo que passou a ser a ciência das ciências fornecendo a chave para as leis da natureza e do universo que se encontram ocultas pelas aparências Se era um axioma para Platão que o olho invisível da alma era o órgão adequado para contemplar a verdade invisível com a certeza do conhecimento tomouse axiomático para Descartes durante a famosa noite de sua revelação que havia um acordo fundamental entre as leis da natureza que estão ocultas pelas aparências e por percepções sensoriais enganosas e as leis da matemática5 ou seja entre as leis do pensamento discursivo em seu nível mais elevado e abstrato e as leis do que quer que se encontre na natureza por trás da mera semblância E ele acreditava realmente que com este tipo de pensamento que Hobbes denominava cálculo de conseqüências podería produzir conhecimento seguro sobre a existência de Deus da natureza da alma e de outros assuntos do gênero O que me interessava no estudo sobre a Vita activa era que a noção de completa quietude da Vita contemplativa era tão avassaladora que em comparação com ela todas as diferenças entre as diversas atividades da Vita activa desapareciam Frente a essa quietude já não era importante a diferença entre laborar e cultivar o solo trabalhar e produzir objetos de uso ou interagir com outros homens em certas empreitadas Mesmo Marx em cuja obra e em cujo pensamento a questão da ação teve um papel tão crucial utiliza a expressão praxis simplesmente no sentido daquilo que o homem faz em oposição àquilo que o homem pensa6 Eu estava todavia ciente de que era possível olhar para esse assunto de um ponto de vista completamente diferente e para deixar registrada a minha dúvida encenei esse estudo da vida ativa com uma curiosa sentença que Cícero atribuiu a Catão Este costumava dizer que nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo Numquam se plus agere quam nihil cum ageret numquam minus solum esse quam cum solus esset1 Supondo que Catão esteja certo as questões que se apresentam são óbvias o que estamos fazendo quando nada fazemos a não ser pensar Onde estamos quando sempre rodeados por outros homens não estamos com ninguém mas apenas em nossa própria companhia E evidente que levantar tais questões apresenta certas dificuldades À primeira vista elas parecem pertencer ao que se costumachamar filosofia ou metafísica dois termos e dois campos de investigação que como todos sabemos caíram em descrédito Se isto se devesse meramente aos ataques do positivismo moderno e do neopositivismo talvez não precisássemos nos preocupar A assertiva de Camap segundo a qual a metafísica deveria ser vista como poesia certamente chocase com as pretensões habituais dos metafísicos mas essas últimas assim como a própria avaliação de Camap podem estar baseadas em uma subestimação da poesia Heidegger que Camap escolheu como alvo privilegiado retorquiu afirmando que a filosofia e a poesia estavam de fato intimamente relacionadas não eram idênticas mas brotavam da mesma fonte o pensamento E Aristóteles que até agora ninguém acusou de escrever mera poesia tinha a mesma opinião poesia e filosofia de alguma forma estão relacionadas O famoso aforismo de Wittgenstein sobre o que não podemos falar devemos nos calar que argumenta pelo lado oposto deveria aplicarse se levado a sério não apenas ao que se encontra além da experiência sensorial mas ainda mais aos próprios objetos dos sentidos Nada do que vemos ouvimos ou tocamos pode ser expresso em palavras que se equiparem ao que é dado aos sentidos Hegel estava certo quando indicou que o Isto dos sentidos não pode ser alcançado pela linguagem8 Não foi precisamente a descoberta de uma discrepância entre as palavras o medium no qual pensamos e o mundo das aparências o medium no qual vivemos que conduziu pela primeira vez à filosofia e à metafísica Com a ressalva de que no começo era o pensamento na forma de logos ou de noesis que tinha a capacidade de alcançar a verdade ou o verdadeiro ser ao passo que no final a ênfase havia se deslocado para o que é dado à percepção e para os instrumentos pelos quais podemos estender e aguçar nossos sentidos corporais Parece bastante natural que o primeiro se volte contra as aparências e o último contra o pensamento Nossas dificuldades com as questões metafísicas são produzidas nem tanto por aqueles para quem essas são questões sem sentido como pela própria parte atacada Pois assim como a crise na teologia atingiu seu clímax quando os teólogos e não aquela velha multidão de incrédulos começaram a discutir a proposição Deus está morto também a crise na filosofia e na metafísica veio à luz quando os próprios filósofos começaram a declarar o fim da filosofia e da metafísica Hoje isso já é uma velha história A atração pela fenomenologia de Husserl derivou das implicações antihistóricas e antimetafísicas do slogan Zu den Sachen selbst e Heidegger que aparentemente permaneceu na trilha metafísica de fato também pretendeu superar a metafísica como ele mesmo proclamou muitas vezes desde 1930 Foi Hegel e não Nietzsche quem pela primeira vez declarou que o sentimento subjacente à religião na Era Moderna é o sentimento Deus está morto10 Sessenta anos atrás a Enciclopédia Britânica já se sentia segura para tratar a metafísica como filosofia sob seu nome mais desacreditado11 E se quisermos retraçar ainda mais esse descrédito encontraremos Kant entre os mais destacados detratores mas não o Kant da Crítica da razão pura que Moses Mendelssohn chamou de destruidor de tudo alies Zermalmer mas o Kant em seus escritos précríticos em que ele espontaneamente admite que era seu destino apaixonarse pela metafísica mas em que fala também de seu abismo sem fundo seu chão escorregadio e sua terra utópica de leite e mel Schlaraffenland onde vivem como em uma aeronave os visionários da razão de tal modo que não existe tolice que não possa servir de argumento para sabedoria sem fundamentos12 Tudo o que se precisa dizer hoje em dia sobre esse assunto foi dito admiravelmente por Richard McKeon na longa e complicada história do pensamento esta ciência espantosa nunca produziu uma convicção generalizada em relação à sua função nem de fato um consenso significativo de opinião em relação ao seu tema13 E bastante surpreendente perante esta história de difamação que o próprio termo metafísica tenha sido capaz de sobreviver Ficase tentado a suspeitar que Kant estava certo quando já muito velho e após ter desferido um golpe fatal na ciência espantosa profetizou que os homens certamente retomariam à metafísica como se retoma à mulher amada depois de uma briga wie zu einer entzweiten Geliebten14 Isso não me parece provável ou mesmo desejável Antes portanto de começarmos aespecular sobre as possíveis vantagens de nossa atual situação seriaprudente refletir sobre o que realmente queremos dizer quando observamos que a teologia a filosofia e a metafísica chegaram a um fim Certamente não é que Deus esteja morto algo sobre o qual o nosso conhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus tão pequeno de fato que mesmo a palavra existência está mal empregada mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente se algo está morto só pode ser o pensamento tradicional sobre Deus E algo semelhante vale também para o fim da filosofia metafísica não que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tomado sem sentido mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o supra sensorial juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides de que o que quer que não seja dado aos sentidos Deus ou o Ser ou os Primeiros Princípios e Causas archaí ou as Idéias é mais real mais verdadeiro mais significativo do que aquilo que aparece que está não apenas além da percepção sensorial mas acima do mundo dos sentidos O que está morto não é apenas a localização de tais verdades eternas mas a própria distinção Enquanto isso os poucos defensores da metafísica em um tom cada vez mais estridente nos alertaram sobre o perigo do niilismo inerente a essa afirmação Embora disponham de um importante argumento a seu favor eles próprios raramente o invocam de fato é verdade que uma vez descartado o domínio suprasensível fica também aniquilado o seu oposto o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à morte do supra sensível Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche que com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus15 tanta confusão produziu sobre esse assunto Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos ele esclarece o que a palavra Deus significava na história anterior Era meramente um símbolo para o domínio suprasensorial tal como foi compreendido pela metafísica agora em vez de Deus utiliza a expressão mundo verdadeiro e diz Abolimos o mundo verdadeiro O que permaneceu Talvez o mundo das aparências Mas não Junto com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo das aparências16 A descoberta de Nietzsche de que a eliminação do suprasensível elimina também o meramente sensível e portanto a diferença entre eles Heidegger17 é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datála historicamente qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si Assim todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito o órgão do suprasensível e os sentidos As percepções sensoriais são ilusões diz o espírito elas mudam segundo as condições de nosso corpo doce amargo cor e assim por diante existem somentenomo por convenção entre os homens e não physei segundo a verdadeira natureza das aparências Ao que os sentidos respondem Espírito infeliz Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência pisteis tudo em que se pode confiar Nossa derrota será a tua ruína18 Em outras palavras uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido não importa se o verdadeiro mundo aboliu o mundo aparente ou se foi o contrário rompese todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a se orientar Nesses termos nada mais parece fazer muito sentido Essas mortes modernas de Deus da metafísica da filosofia e por implicação do positivismo tomaramse eventos com conseqüências históricas consideráveis já que com o início de nosso século deixaram de ser uma preocupação exclusiva das elites intelectuais para ser não tanto a preocupação mas o pressuposto comum irrefletido de quase todo mundo Não nos ocuparemos aqui do aspecto político do assunto Em nosso contexto talvez seja melhor mesmo deixar o tema que na verdade é de competência política fora de nossas considerações e insistir pelo contrário no simples fato de que por mais seriamente que nossos modos de pensar estejam envolvidos nesta crise nossa habilidade para pensar não está em questão somos o que os homens sempre foram seres pensantes Com isto quero dizer apenas que os homens têm uma inclinação talvez uma necessidade de pensar para além dos limites do conhecimento de fazer dessa habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir Falar de niilismo neste contexto talvez seja apenas relutância em abandonar conceitos e seqüências de pensamento que de fato morreram há bastante tempo embora seu passamento só muito recentemente tenha sido reconhecido em público Se ao menos pudéssemos fazer nessa situação o que a Era Moderna fez em seu estágio inicial ou seja tratar cada assunto como se ninguém o tivesse abordado antes de mim como propõe Descartes em suas observações introdutórias a Les passions de l âme Isto tomouse em parte impossível por causa da enorme expansão de nossa consciência histórica mas principalmente porque o único registro que temos sobre o que o pensamento como atividade significou para aqueles que o escolheram como modo de vida é o que hoje chamaríamos de falácias metafísicas Talvez nenhum dos sistemas nenhuma das doutrinas que nos foram transmitidas pelos grandes pensadores seja convincente ou mesmo razoável para os leitores modernos mas nenhum deles tentarei argumentar aqui é arbitrário nem pode ser simplesmente descartado como puro absurdo Ao contrário as falácias metafísicas contêm as únicas pistas que temos para descobrir o que significa o pensamento para aqueles que nele se engajam algo extremamente importante neste momento e sobre o que estranhamente existem poucos depoimentos diretos Assim a possível vantagem de nossa situação subseqüente à morte da metafísica e da filosofia apresenta duas faces Ela nos permitiría olhar o passado cõm novos olhos sem o fardo e a orientação de quaisquer tradições e assim dispor de uma enorme riqueza de experiências brutas sem estarmos limitados por quaisquer prescrições sobre a maneira de lidar com estes tesouros Notre heritage nest précédé daucun testament Nossa herança não foi precedida por nenhum testamento19 A vantagem seria ainda maior não fosse ela acompanhada de modo quase inevitável por uma crescente dificuldade em nos movermos em qualquer nível no domínio do invisível ou para falar de outro modo não tivesse sido ela acompanhada pelo descrédito em que caiu tudo o que não é visível tangível palpável de tal forma que nos encontramos em perigo de perder o próprio passado junto com nossas tradições Pois embora nunca tenha havido muito consenso sobre o tema da metafísica pelo menos um ponto sempre foi tomado como certo o de que esta disciplina seja ela chamada de metafísica ou filosofia lidava com objetos que não eram dados à percepção sensorial e que sua compreensão transcendia o pensamento do senso comum que deriva da experiência sensível e que pode ser validado por meios e testes empíricos De Parmênides até o fim da filosofia todos os pensadores concordaram em que para lidar com estes assuntos o homem precisa separar seu espírito dos seus sentidos isolandoo tanto do mundo tal como é dado por esses sentidos quanto das sensações ou paixões despertadas por objetos sensíveis O filósofo à medida que é um filósofo e não o que naturalmente ele também é um homem como você e eu retirase do mundo das aparências a região em que se move tem sido descrita desde o início da filosofia como o mundo dos poucos Essa antiga distinção entre os muitos e os pensadores profissionais especializados na atividade supostamente mais elevada a que os seres humanos poderiam se dedicar o filósofo de Platão será chamado o amigo dos deuses e se alguma vez é dado ao homem tomarse imortal ninguém mais do que ele o consegue20 perdeu qualquer cabimento esta é a segunda vantagem de nossa atual situação Se como sugeri antes a habilidade de distinguir o certo do errado estiver relacionada com a habilidade de pensar então deveriamos exigir de toda pessoa sã o exercício do pensamento não importando quão erudita ou ignorante inteligente ou estúpida essa pessoa seja Kant nesse ponto praticamente sozinho entre os filósofos aborreciase com a opinião corrente de que a filosofia é apenas para uns poucos precisamente pelas implicações morais dessa idéia e uma vez observou que a estupidez é fruto de um coração perverso21 Isso não é verdade ausência de pensamento não é estupidez ela pode ser comum em pessoas muito inteligentes e a causa disso não é um coração perverso pode ser justo o oposto é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento Seja como for o assunto não pode mais ser deixado aos especialistas como se o pensamento à maneira da alta matemática fosse monopólio de uma disciplina especializada A distinção que Kant faz entre Vernunft e Verstand razão e intelecto e não entendimento o que me parece uma tradução equivocada Kant usava o alemão Verstand para traduzir o latim intellectus e embora Verstand seja o substantivo de verstehen o entendimento das traduções usuais não tem nenhuma das conotações inerentes ao alemão das Verstehen é crucial para nossa empreitada Kant traçou essa distinção entre as duas faculdades espirituais após haver descoberto o escândalo da razão ou seja o fato de que nosso espírito não é capaz de um conhecimento certo e verificável em relação a assuntos e questões sobre os quais no entanto ele mesmo não se pôde impedir de pensar Para ele esses assuntos aqueles dos quais apenas o pensamento se ocupa restringiamse ao que agora chamamos habitualmente de as questões últimas de Deus da liberdade e da imortalidade Mas independentemente do interesse existencial que os homens tomaram por essas questões e embora Kant ainda acreditasse que nunca houve uma alma honesta que tenha suportado pensar que tudo termina com a morte22 ele também estava bastante consciente de que a necessidade urgente da razão não só é diferente mas é mais do que a mera busca e o desejo de conhecimento23 Assim a distinção entre as duas faculdades razão e intelecto coincide com a distinção entre duas atividades espirituais completamente diferentes pensar e conhecer e dois interesses inteiramente distintos o significado no primeiro caso e a cogniçao no segundo Embora houvesse insistido nessa distinção Kant estava ainda tão fortemente tolhido pelo enorme peso da tradição metafísica que não pôde afastarse de seu tema tradicional ou seja daqueles tópicos que se podiam provar incognoscíveis e embora justificasse a necessidade da razão pensar além dos limites do que pode ser conhecido permaneceu inconsciente com relação ao fato de que a necessidade humana de refletir acompanha quase tudo o que acontece ao homem tanto as coisas que conhece como as que nunca poderá conhecer Por têla justificado unicamente em termos dessas questões últimas Kant não se deu conta inteiramente da medida em que havia liberado a razão a habilidade de pensar Afirmava defensivamente que havia achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a fé24 Mas não abriu espaço para a fé e sim para o pensamento assim como não negou o conhecimento mas separou conhecimento de pensamento Nas notas de suas lições sobre a metafísica escreveu O propósito da metafísica é estender embora apenas negativamente nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado aos sentidos isto é eliminar os obstáculos que a razão cria para si própria grifos nossos25 O grande obstáculo que a razão Vernunft põe em seu próprio caminho originase no intelecto Verstand e nos critérios de resto inteiramente justificados que ele estabeleceu para seus propósitos ou seja para saciar nossa sede e fazer face à nossa necessidade de conhecimento e de cognição O motivo pelo qual nem Kant nem seus sucessores prestaram muita atenção ao pensamento como uma atividade e ainda menos às experiências do ego pensante é que apesar de todas as distinções eles estavam exigindo o tipo de resultado e aplicando o tipo de critério para a certeza e a evidência que são os resultados e os critérios da cognição Mas se é verdade que o pensamento e a razão têm justificativa para transcender os limites da cognição e do intelecto e Kant fundou essa justificativa na afirmação de que os assuntos com que lidam embora incognoscíveis são do maior interesse existencial para o homem então o pressuposto deve ser o pensamento e a razão não se ocupam daquilo de que se ocupa o intelecto Para antecipar e resumir a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade mas pela busca do significado E verdade e significado não são a mesma coisa A falácia básica que preside a todas as falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade O último e sob certos aspectos mais chocante exemplo disto ocorre em Ser e tempo de Heidegger que começa levantando novamente a questão do significado do Ser26 O próprio Heidegger em uma interpretação posterior de sua questão inicial diz explicitamente Significado do Ser e Verdade do Ser querem dizer o mesmo27 As tentações para resolver a equação que se reduzem à recusa de aceitar e pensar por meio da distinção que Kant faz entre razão e intelecto entre a necessidade urgente de pensar e o desejo de conhecer são muito fortes e não podem de modo algum ser unicamente tributadas ao peso da tradição As descobertas de Kant tiveram um efeito liberador extraordinário sobre a filosofia alemã desencadeando a ascensão do idealismo alemão Não há dúvida de que abriram espaço para o pensamento especulativo mas esse pensamento voltou a tomarse o campo de um novo tipo de especialistas presos à noção de que o assunto próprio da filosofia é o conhecimento real do que verdadeiramente é28 Libertados por Kant da velha escola dogmáticae de seus exercícios estéreis os especialistas construíram não apenas novos sistemas mas uma nova ciência o título original da maior dentre as suas obras a Fenomenologia do espírito de Hegel era Ciência da Experiência da Consciência29 empalidecendo precipitadamente a distinção que Kant fez entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do intelecto pelo conhecimento Buscando o ideal cartesiano de certeza como se Kant não houvesse existido eles acreditaram com toda honestidade que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos Deus sempre nos julga pelas aparências Suspeito que sim W H Auden Capítulo 1 Aparência 1 A natureza fenomênica do mundo Os homens nasceram em um mundo que contém muitas coisas naturais e artificiais vivas e mortas transitórias e sempiternas E o que há de comum entre elas é que aparecem e portanto são próprias para serem vistas ouvidas tocadas provadas e cheiradas para serem percebidas por criaturas sensíveis dotadas de órgãos sensoriais apropriados Nada poderia aparecer a palavra aparência não faria sentido se não existissem receptores de aparências criaturas vivas capazes de conhecer reconhecer e reagir em imaginação ou desejo aprovação ou reprovação culpa ou prazer não apenas ao que está aí mas ao que para elas aparece e que é destinado à sua percepção Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de lugar nenhum e do qual desaparecemos em lugar nenhum Sere Aparecer coincidem A matéria morta natural e artificial mutável e imutável depende em seu ser isto é em sua qualidade de aparecer da presença de criaturas vivas Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador Em outras palavras nada do que é à medida que aparece existe no singular tudo que é é próprio para ser percebido por alguém Não o Elomem mas os homens é que habitam este planeta A pluralidade é a lei da Terra Já que os seres sensíveis homens e animais para quem as coisas aparecem e que como receptores garantem sua realidade são eles mesmos também aparências próprias para e capazes tanto de ver como de serem vistas ouvir e serem ouvidas tocar e serem tocadas eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal não são menos objetivos do que uma pedra ou uma ponte A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade objetiva O que usualmente chamamos consciência o fato de que estou cônscio de mim mesmo e que portanto em algum sentido posso aparecer para mim mesmo jamais seria o bastante para assegurar a realidade o Cogito me cogitare ergo sum de Descartes é um non sequitur pela simples razão de que esta res cogitans nunca aparece a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores Vista da perspectiva do mundo cada criatura que nasce chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem são criaturas adequadas à existência mundana Os seres vivos homens e animais não estão apenas no mundo eles são do mundo E isso precisamente porque são sujeitos e objetos percebendo e sendo percebidos ao mesmo tempo Talvez nada surpreenda mais neste nosso mundo no entanto do que a infinita diversidade de suas aparências o simples valor de entretenimento de suas visões seus sons e seus odores algo que quase nunca é mencionado por pensadores e filósofos Somente Aristóteles pelo menos incidentalmente incluía a vida de fruição passiva dos prazeres que nossos órgãos corporais proporcionam entre os três modos de vida a serem escolhidos por aqueles que não estando sujeitos à necessidade podem devotarse ao kalon ao que é belo em contraposição ao que é necessário e útil1 Essa diversidade é correspondida por uma igualmente estarrecedora diversidade de órgãos sensoriais entre as espécies animais de tal modo que o que realmente aparece às criaturas vivas assume uma enorme variedade de forma e figura cada espécie animal vive em um mundo próprio Ainda assim todas as criaturas sensorialmente dotadas têm em comum a aparência como tal Em primeiro lugar um mundo que lhes aparece em segundo lugar e talvez ainda mais importante o fato de que elas próprias são criaturas que aparecem e desaparecem o fato de que sempre houve um mundo antes de sua chegada e que sempre haverá um mundo depois de sua partida Estar vivo significa viver em um mundo que precede à própria chegada e que sobreviverá à partida Nesse nível do estar meramente vivo o aparecer e o desaparecer à medida que um segue o outro são os eventos primordiais que como tais demarcam o tempo o intervalo temporal entre o nascimento e a morte O finito intervalo vital de cada criatura determina não só sua expectativa de vida mas também sua experiência do tempo ele fornece o protótipo secreto de todas as medidas temporais não importa quanto essas mensurações transcendam o intervalo em direção ao passado ou ao futuro Assim a experiência vivida da duração de um ano muda radicalmente ao longo de nossa vida Um ano que consiste em um quinto da existência para uma criança de cinco anos deve parecer muito maior do que quando chegar a constituir um vigésimo ou um trigésimo do tempo dessa criatura na Terra Todos sabemos como os anos passam cada vez mais rapidamente àproporção que envelhecemos até que com a proximidade da velhice a velocidade volta a diminuir porque começamos a medilos com referência à data psicológica e somaticamente antecipada de nossa partida Contra esse relógio inerente a seres vivos que nascem e morrem está o tempo objetivo segundo o qual a duração de um ano não muda nunca Esse é o tempo do mundo e seu pressuposto subjacente independente de quaisquer crenças científicas ou religiosas é que o mundo não tem princípio nem fim um pressuposto que só parece natural a seres que sempre chegam em um mundo que os precede e que a eles sobreviverá Em contraste com o estaraí inorgânico da matéria morta os seres vivos são meras aparências Estar vivo significa ser possuído por um impulso de auto exposição que responde à própria qualidade de aparecer de cada um As coisas vivas aparecem em cena como atores em um palco montado para elas O palco é comum a todos os que estão vivos mas parece diferente para cada espécie e também para cada indivíduo da espécie Parecer o pareceme dokei moi é o modo talvez o único possível pelo qual um mundo que aparece é reconhecido e percebido Aparecer significa sempre parecer para outros e esse parecer varia de acordo com o ponto de vista e com a perspectiva dos espectadores Em outras palavras tudo o que aparece adquire em virtude de sua fenomenalidade uma espécie de disfarce que pode de fato embora não necessariamente ocultar ou desfigurar Parecer corresponde à circunstância de que toda aparência independentemente de sua identidade é percebida por uma pluralidade de espectadores O impulso de autoexposição responder apresentandose ao efeito esmagador de ser apresentado parece ser comum a homens e animais E assim como o ator depende do palco dos outros atores e dos espectadores para fazer sua entrada em cena cada coisa viva depende de um mundo que solidamente aparece como a locação de sua própria aparição da aparição de outras criaturas com as quais contracena e de espectadores que reconhecem e certificam sua existência Vista da perspectiva dos espectadores para quem ela aparece e de cuja presença ela finalmente desaparece cada vida individual seu crescimento e declínio é um processo de desenvolvimento no qual uma entidade desdobrase em um movimento ascendente até que todas as suas propriedades estejam plenamente expostas essa fase é seguida por um período de permanência florescência ou epifania por assim dizer que por sua vez é sucedido pelo movimento descendente de desintegração que termina com o completo desaparecimento São muitas as perspectivas segundo as quais esse processo pode ser visto examinado e compreendido mas o critério pelo qual uma coisa viva essencialmente é permanece o mesmo na vida cotidiana assim como na pesquisa científica ela é determinada pelo intervalo de tempo relativamente curto de sua plena aparição de sua epifania A escolha guiada pelo critério único da completude e da perfeição na aparição seria inteiramente arbitrária se a realidade não fosse antes de tudo de uma natureza fenomênica A primazia da aparência para todas as criaturas vivas frente às quais o mundo aparece sob a forma de um pareceme é de grande relevância para o tópico com o qual vamos lidaras atividades espirituais que nos distinguem das outras espécies animais Pois embora haja grandes diferenças entre essas atividades todas elas têm em comum uma retirada do mundo tal como ele nos aparece e um movimento para trás em direção ao eu Isso não causaria maiores problemas se fôssemos meros espectadores criaturas divinas lançadas no mundo para cuidar dele dele tirar proveito e com ele nos entreter mas tendo ainda alguma outra região como hábitat natural Contudo somos do mundo e não apenas estamos nele também somos aparências pela circunstância de que chegamos e partimos aparecemos e desaparecemos e embora vindos de lugar nenhum chegamos bem equipados para lidar com o que nos apareça e para tomar parte no jogo do mundo Tais características não se desvanecem quando nos engajamos em atividades espirituais quando fechamos os olhos do corpo usando a metáfora platônica para poder abrir os olhos do espírito A teoria dos dois mundos é uma das falácias metafísicas mas ela não seria capaz de sobreviver durante tantos séculos se não houvesse correspondido de maneira tão razoável a algumas experiências fundamentais Como certa vez MerleauPonty formulou só posso escapar do ser para o ser2 e já que Ser e Aparecer coincidem para os homens isso quer dizer que só posso escapar da aparência para a aparência Mas o problema não está resolvido pois ele se refere à aptidão que o pensamento tem para aparecer e a questão é se o pensamento e outras atividades espirituais invisíveis e sem som estão destinados a aparecer ou se de fato eles não podem jamais encontrar um lar adequado neste mundo 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos Podemos encontrar uma primeira pista relacionada com esse assunto recorrendo à velha dicotomia metafísica entre o verdadeiro Ser e a mera Aparência pois ela também na verdade se fundamenta na primazia ou pelo menos na prioridade da aparência Para descobrir o que realmente é o filósofo deve deixar o mundo das aparências entre as quais ele natural e originalmente se encontra em casa como fez Parmênides quando foi transportado além dos umbrais da noite e do dia para a estrada divina muito distante dos usuais caminhos humanos3 e como também fez Platão na parábola da Caverna4 O mundo das aparências é anterior a qualquer região que o filósofo possa escolher como sua verdadeira morada mas que no entanto não é o local em que ele cresceu O que sugeriu ao filósofo ou seja ao espírito humano a noção de que deve haver algo que não seja mera aparência sempre foi a qualidade que o mundo tem de aparecer Nas palavras de Kant Nehmen wir die Welt ais Erscheinung so beweiset sie gerade zu das Dasein von Etwas das nicht Erscheinung ist Se olharmos para o mundo como aparência ele demonstra a existência de algo que não é aparência5 Em outras palavras quando o filósofo se retira do mundo dado aos nossos sentidos e faz meiavolta a periagoge de Platão em direção à vida do espírito ele se orienta pelo primeiro em busca de algo que lhe seria revelado e que explicaria sua verdade subjacente Essa verdade aletheia o que é revelado Heidegger pode ser concebida unicamente como outra aparência outro fenômeno originalmente oculto mas de ordem supostamente mais elevada o que indica a predominância última da aparência Embora nosso aparato espiritual possa retirarse das aparências presentes ele permanece atrelado à Aparência Em sua busca o Anstrengung des Begriffs o esforço do conceito de Hegel o espírito não menos do que os sentidos espera que algo lhe apareça Coisa bastante semelhante parece ser verdade para a ciência especialmente para a ciência moderna que de acordo com uma antiga observação de Marx está de tal modo fundada na cisão entre Ser e Aparência que não é mais necessário o esforço individual e particular do filósofo para chegar a alguma verdade por sob as aparências O cientista também está sujeito às aparências já que para descobrir o que está por trás da superfície ele deve abrir o corpo visível e espreitar o seu interior ou surpreender objetos ocultos com a ajuda de todo tipo de equipamento sofisticado que os possa desnudar das propriedades exteriores pelas quais eles se apresentam aos nossos sentidos naturais A noção que orienta esses esforços científicos e filosóficos é sempre a mesma as Aparências como disse Kant devem ter um fundamento que não seja ele próprio uma aparência6 Esta seria realmente uma generalização óbvia da maneira pela qual as coisas naturais crescem e aparecem à luz do dia vindas de um fundo de escuridão caso agora não se estivesse pressupondo que esse fundo tem um grau mais alto de realidade do que aquilo que simplesmente aparece e logo depois volta a desaparecer E assim como os esforços conceituais dos filósofos para encontrar algo além das aparências sempre terminaram com violentas invectivas contra as meras aparências também as notáveis conquistas práticas dos cientistas para pôr a nu o que as aparências por si mesmas jamais revelam sem que haja alguma interferência foram realizadas às custas das aparências A primazia da aparência é um fato da vida cotidiana do qual nem o cientista nem o filósofo podem escapar ao qual têm sempre que voltar em seus laboratórios e em seus estudos e cuja força fica demonstrada pelo fato de nunca ter sido minimamente alterada ou desviada por qualquer coisa que eles tenham descoberto quando dela se afastaram Assim as estranhas noções da nova física surpreendem o senso comum sem mudar nada em suas categorias7 Contra essa inabalável convicção do senso comum há a antiga supremacia teorética do Ser e da Verdade sobre a mera aparência ou seja a supremacia do fundamento que não aparece sob a superfície que aparece Esse fundamento supostamente responde à mais antiga questão tanto da filosofia quanto da ciência como pode alguma coisa ou alguém inclusive eu mesmo simplesmente aparecer e o que faz com que apareça desta e não de outra forma A pergunta referese mais a uma causa do que a uma base ou a um fundamento mas a questão é que a nossa tradição filosófica transformou a base de onde algo surge na causa que a produz e em seguida concedeu a este agente eficaz um grau mais elevado de realidade do que aquele atribuído ao que meramente se apresenta a nossos olhos A crença de que a causa deve ocupar um lugar mais elevado do que o efeito de tal modo que o efeito pode ser facilmente diminuído quando se remonta à sua causa encontrase entre as mais antigas e obstinadas falácias metafísicas Também aqui não lidamos com um erro simplesmente arbitrário a verdade é que não só as aparências nunca revelam espontaneamente o que se encontra por trás delas mas também que genericamente falando elas não revelam apenas elas também ocultam nenhuma coisa nenhum lado de uma coisa mostrase sem que ativamente oculte os demais8 As aparências expõem e também protegem da exposição e exatamente porque se trata do que está por trás delas a proteção pode ser sua mais importante função Em todo caso isso é verdade para as criaturas vivas cuja superfície protege e oculta os órgãos internos que são sua fonte de vida A falácia lógica elementar de todas essas teorias que se apoiam em uma dicotomia entre o Ser e a Aparência é óbvia e foi logo descoberta e resumida pelo sofista Górgias em um fragmento que se conservou de seu desaparecido tratado Sobre o NãoSer ou Sobre a Natureza provavelmente uma refutação da filosofia eleática O Ser não é manifesto já que não aparece para nós dokein o aparecer para nós é fraco já que não consegue ser9 A incessante busca empreendida pela ciência moderna da base subjacente às meras aparências deu força nova ao velho argumento Ela obrigou o fundamento das aparências a se mostrar de tal modo que o homem uma criatura adequada às aparências e delas dependente possa se apoderar desse fundamento Mas ao contrário os resultados foram surpreendentes Ficou evidente que nenhum homem pode viver entre causas ou traduzir de modo integral e em linguagem humana ordinária um Ser cuja verdade pode ser cientificamente demonstrada em laboratório e testada praticamente no mundo real pela tecnologia E como se o Ser uma vez manifesto sujeitasse as aparências mas ninguém até hoje conseguiu viver em um mundo que não se manifeste espontaneamente 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície O mundo cotidiano do senso comum do qual não se podem furtar nem o filósofo nem o cientista conhece tanto o erro quanto a ilusão E no entanto nem a eliminação de erros nem a dissipação de ilusões pode levar a uma região que esteja além da aparência Pois quando se dissipa uma ilusão quando se rompe subitamente uma aparência é sempre em proveito de uma nova aparência que retoma por sua própria conta a função ontológica da primeira A desilusão é a perda de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência não há Schein sem uma Erscheinung toda Schein tem por contrapartida uma Erscheinung10 Para dizer o mínimo é altamente duvidoso que a ciência moderna em sua incansável busca de uma verdade por trás das meras aparências venha a ser capaz de resolver esse impasse quanto mais não seja porque o próprio cientista pertence ao mundo das aparências embora sua perspectiva com relação a esse mundo possa diferir da perspectiva do sensocomum Historicamente falando parece que há desde os primórdios da ciência moderna uma dúvida irremovível inerente a todo o processo A primeira noção inteiramente nova trazida pela Era Moderna a idéia seiscentista de um progresso ilimitado que depois de alguns séculos transformouse no mais precioso dogma de todos os homens que vivem em um mundo cientificamente orientado destinase aparentemente a lidar com o impasse embora se espere um progresso cada vez maior ninguém parece ter acreditado que se pudesse atingir um estágio final e absoluto de verdade É óbvio que a consciência desse impasse deveria ser muito mais aguda nas ciências que lidam diretamente com os homens e a resposta reduzida ao mínimo denominador comum dos vários ramos da biologia da sociologia e da psicologia foi no sentido de interpretar todas as aparências como funções no processo vital A grande vantagem do funcionalismo é que ele nos apresenta novamente uma visão unitária do mundo e mantém intacta embora de modo diferente a velha dicotomia metafísica entre o verdadeiro Ser e a mera Aparência junto com o velho preconceito da supremacia do Ser sobre a aparência O argumento deslocouse as aparências não são mais depreciadas como qualidades secundárias mas compreendidas como condições necessárias dos processos essenciais internos ao organismo vivo Essa hierarquia foi recentemente desafiada de um modo que me parece altamente significativo Em vez das aparências serem funções do processo vital não seria o processo vital função das aparências Já que vivemos em um mundo que aparece não é muito mais plausível que o relevante e o significativo nesse nosso mundo estejam localizados precisamente na superfície Em uma série de publicações sobre as várias formas e figuras da vida animal o zoólogo e biólogo suíço Adolf Portmann mostrou que os fatos falam uma linguagem bastante diferente da simplista hipótese funcional segundo a qual as aparências em seres vivos servem puramente ao duplo propósito da autopreservação e da conservação da espécie De um ponto de vista diferente e por assim dizer mais inocente parece que ao contrário os órgãos internos que não aparecem existem unicamente para produzir sustentar as aparências Antes de todas as funções destinadas à preservação do indivíduo e da espécie está o simples fato de aparecer como uma autoexposição que torna estas funções significativas grifos nossos11 Além do mais Portmann demonstra com enorme variedade de exemplos fascinantes o que deveria ser óbvio a olho nu que a enorme variedade da vida animal e vegetal a própria riqueza de exposição em sua pura superfluidade funcional não testemunham a favor das habituais teorias que compreendem a vida em termos de funcionalidade Assim a plumagem dos pássaros em um primeiro momento considerada pela função de proteção e aquecimento é além disso formada de modo a que suas partes visíveis e apenas estas constituam uma roupagem colorida cujo valor intrínseco reside unicamente em sua aparência visível12 De um modo geral a pura e simples forma funcional tão louvada por alguns como adequada aos fins da natureza é um caso raro e especial13 E um erro portanto levar em conta unicamente o processo funcional que se passa no interior do organismo vivo e olhar tudo o que está do lado de fora e se oferece aos sentidos como uma conseqüência mais ou menos subordinada dos processos reais e centrais estes muito mais essenciais14 De acordo com o equívoco corrente a figura exterior dos animais serve para conservar o essencial o aparato interno através do movimento e da ingestão de alimentos do afastamento dos inimigos e da procura de parceiros sexuais15 Contra essa abordagem Portmann propõe sua morfologia uma ciência nova que invertería as prioridades O problema da pesquisa não é o que uma coisa é mas como ela aparece grifos nossos16 Isto significa que a própria forma de um animal deve scr vista como um órgão especial de referência em relação ao olho que a observa O olho e o que é para ser visto formam uma unidade funcional e adequamse reciprocamente segundo regras tão rígidas quanto as que determinam as relações entre os alimentos e os órgãos digestivos17 E de acordo com essa inversão Portmann distingue aparências autênticas que surgem espontaneamente e aparências inautênticas tais como as raízes de uma planta ou os órgãos internos de um animal que passam a ser visíveis unicamente através da interferência e da violação da aparência autêntica Dois fatos da mesma importância dão maior razoabilidade à essa inversão Em primeiro lugar a impressionante diferença fenomênica entre aparências autênticas e inautênticas entre formas externas e aparatos internos As formas externas são infinitamente diversas e altamente diferenciadas entre os animais mais desenvolvidos podemos em geral distinguir um indivíduo do outro Além do mais as características exteriores das coisas vivas são organizadas de acordo com uma lei de simetria de tal modo que aparecem numa ordem sempre definida e agradável Os órgãos internos ao contrário nunca constituem visão agradável uma vez forçados a aparecer dão a impressão de ter sido construídos por partes e a não ser quando deformados por um doença ou anormalidade particular parecem indiferenciados nem mesmo as várias espécies animais quanto mais os indivíduos são facilmente distinguidos pela simples inspeção das vísceras Quando Portmann define a vida como a aparição externa de um interior18 ele parece estar sendo vítima das opiniões que critica pois o fundamento de suas descobertas é que o que parece extemamente é tão inevitavelmente diferente do interior que dificilmente se pode dizer que o interior de fato apareça O interior o aparato funcional do processo vital é recoberto por um exterior que porque diz respeito àquele processo tem uma única função a saber ocultálo e protegêlo impedir sua exposição à luz de um mundo fenomênico Se esse interior tivesse que aparecer todos nós pareceriamos iguais Há em segundo lugar a evidência igualmente impressionante da existência de um impulso inato não menos coercitivo do que o mero instinto funcional da preservação a que Portmann chama impulso de auto exposição Selbstdarstellung Tal instinto é inteiramente gratuito em termos de preservação da vida ele supera de muito tudo o que se possa julgar necessário para efeito de atração sexual Tais descobertas sugerem que a predominância da aparência externa implica além da pura receptividade de nossos sentidos uma atividade espontânea tudo que pode ver quer ser visto tudo que pode ouvir pede para ser ouvido tudo que pode tocar se apresenta para ser tocado De fato é como se tudo o que está vivo para além do fato de que sua superfície é feita para aparecer é própria para ser vista e destinada a aparecer para os outros possuísse um impulso para aparecer para adequarse a um mundo de aparências apresentando e exibindo não seu eu interno mas a si próprio como indivíduo O termo autoexposição como o alemão Selbstdarstellung é equívoco pode significar que eu ativamente faço minha presença sentida vista e ouvida ou que apresento meu eu sef alguma coisa dentro de mim que de outra forma jamais aparecería ou seja na terminologia de Portmann uma aparência inautêntica Daqui em diante usaremos o termo na primeira acepção É precisamente esta autoexposição tão realçada já nas formas superiores da vida animal que atinge seu clímax na espécie humana A inversão morfológica que Portmann faz das antigasprioridades habituais tem conseqüências de amplo alcance que ele contudo talvez por boas razões não elaborou Ela aponta para o que chamamos valor da superfície ou seja para o fato de que a aparência revela um poder máximo de expressão comparado com o que é interno cujas funções são de uma ordem mais primitiva19 O uso da palavra expressão mostra claramente as dificuldades terminológicas que uma abordagem com tais conseqüências está destinada a enfrentar Pois uma expressão só pode expressar algo e a inevitável questão o que expressa a expressão ou seja o que a pressiona encontrará sempre a resposta algo interior uma idéia um pensamento uma emoção A expressividade de uma aparência entretanto é de uma ordem distinta ela não expressa nada a não ser a si mesma ou sej a ela exibe ou apresenta Das descobertas de Portmann podemos concluir que nossos padrões comuns de julgamento tão firmemente enraizados em pressupostos e preconceitos metafísicos segundo os quais o essencial encontrase sob a superfície e a superfície é o superficial estão errados e a nossa convicção corrente de que o que está dentro de nós nossa vida interior é mais relevante para o que nós somos do que o que aparece exteriormente não passa de uma ilusão mas quando tentamos consertar essas falácias verificamos que nossa linguagem ou ao menos nossa terminologia é falha 4 Corpo e alma alma e espírito As dificuldades são contudo muito mais do que meramente terminológicas Elas estão intimamente ligadas às crenças problemáticas que mantemos com referência à nossa vida psíquica e à relação entre corpo e alma De fato inclinamonos a concordar que nenhuma parte do interior de nosso corpo jamais aparece autenticamente por si mesma mas se falamos de uma vida interior que se expressa em aparências exteriores referimonos à vida da alma a relação interiorexterior verdadeira para nossos corpos não é verdadeira para nossas almas mesmo que falemos de nossa vida psíquica e de sua localização interna a nós por meio de metáforas obviamente retiradas de informações e experiências corporais Além do mais o mesmo emprego de metáforas caracteriza nossa linguagem conceituai própria para tomar manifesta a vida do espírito As palavras que usamos em linguagem estritamente filosófica também são invariavelmente derivadas de expressões originalmente relacionadas com o mundo tal como ele é dado aos nossos cinco sentidos de cuja experiência elas são então como registrou Locke transferidas metapherein transportadas para significações mais abstrusas passando a representar idéias que não chegam ao conhecimento de nossos sentidos Só por meio de tal transferência poderíam os homens conceber aquelas operações que experimentaram em si mesmos e que não aparecem extemamente aos sentidos20 Locke apóiase aqui no velho pressuposto tácito da identidade entre alma e espírito segundo o qual ambos opõemse ao corpo em virtude da invisibilidade que os caracteriza Se olharmos mais de perto entretanto verificamos que o que é verdadeiro para o espírito a saber que a linguagem metafórica é a única maneira que ele tem de aparecer extemamente para os sentidos mesmo essa atividade muda que não aparece já constitui uma espécie de discurso o diálogo silencioso de mim comigo mesmo não é verdadeiro para a vida da alma O discurso metafórico conceituai é de fato adequado para a atividade do pensamento para as operações do nosso espírito mas a vida da alma em sua enorme intensidade é muito melhor expressa em um olhar em um som em um gesto do que em um discurso O que fica manifesto quando falamos de experiências psíquicas nunca é a própria experiência mas o que pensamos dela quando sobre ela refletimos Diversamente dos pensamentos e das idéias os sentimentos as paixões e as emoções têm a mesma dificuldade dos nossos órgãos interiores para se tomar parte essencial do mundo das aparências O que aparece no mundo externo além dos sinais físicos é apenas o que deles fazemos por meio do pensamento Toda demonstração de raiva distinta da raiva que sinto já contém uma reflexão que dá à emoção a forma altamente individualizada significativa para todos os fenômenos de superfície Demonstrar raiva é uma forma de autorepresentação eu decido o que deve aparecer Em outras palavras as emoções que sinto não são mais apropriadas para serem exibidas em seu estado não adulterado do que os órgãos interiores pelos quais vivemos E verdade que eu jamais poderei transformar as emoções em aparências se elas não me impelissem a isto e se eu não as sentisse como sinto outras sensações que me mantêm cônscio do processo vital interior Mas o modo como elas se manifestam sem a intervenção da reflexão e a transferência para a linguagem pelo olhar pelo gesto pelo som inarticuladonão é diferente da maneira pela qual as espécies animais superiores comunicam emoções similares entre si ou para nós Nossas atividades espirituais ao contrário são concebidas em palavras antes mesmo de serem comunicadas mas a fala é própria para ser ouvida e as palavras são próprias para serem compreendidas por outros que também têm a habilidade de falar assim como uma criatura dotada do sentido da visão é própria para ver e ser vista E inconcebível pensamento sem discurso pensamento e discurso antecipam um ao outro Continuamente um toma o lugar do outro21 realmente contam um com o outro E embora a capacidade discursiva possa ser fisicamente localizada com melhor precisão do que muitas emoções amor e ódio vergonha e inveja seu locus não é um órgão e ela não tem nenhuma das propriedades estritamente funcionais tão características de todo o processo orgânico da vida É verdade que todas as atividades espirituais retiramse do mundo das aparências mas essa retirada não se dá em direção a um interior seja ele do eu ou da alma O pensamento e a linguagem conceituai que o acompanha necessitaà medida que ocorre em e é pronunciado por um ser que se sente em casa no mundo das aparências de metáforas que lhe possibilitem preencher a lacuna entre um mundo dado à experiência sensorial e um domínio onde tais apreensões imediatas de evidência não podem existir Mas as nossas experiências psíquicas são de tal modo corporalmente limitadas que falar de uma vida interna da alma é tão pouco metafórico quanto falar de um sentido interno graças ao qual temos claras sensações sobre o funcionamento ou o não funcionamento dos órgãos interiores E óbvio que uma criatura privada de espírito não pode viver nada semelhante a uma experiência de identidade pessoal ela está completamente à mercê de seu processo vital interno de seus humores e emoções cuja mudança contínua não é de modo algum diferente das contínuas transformações de nossos órgãos corporais Toda emoção é uma experiência somática meu coração dói quando estou magoado aquece quando sinto simpatia abrese nos raros momentos em que o amor e a alegria me dominam e sensações físicas similares apoderamse de mim junto com a raiva o ódio a inveja e outros afetos A linguagem da alma em seu estágio meramente expressivo anterior à sua transformação e transfiguração pelo pensamento não é metafórica ela não se afasta dos sentidos nem usa analogias quando fala em termos de sensações físicas MerleauPonty que eu saiba o único filósofo que não só tentou dar conta da estrutura orgânica da existência humana mas que tentou firmemente dar início a uma filosofia da carne confundiuse ainda com a antiga identificação entre espírito e alma quando definiu o espírito como o outro lado do corpo já que há um corpo do espírito e um espírito do corpo e um quiasma entre eles22 Precisamente a ausência de tais quiasmas ou conexões é o enigma principal dos fenômenos espirituais e o próprio MerleauPonty em outro contexto reconheceu essa ausência com bastante clareza O pensamento escreve ele é fundamental porque não está fundado em nada mas nãofundamental porque com ele não chegamos a um fundamento no qual devemos nos basear e ali permanecer Por princípio o pensamento fundamental não tem fundo Ele é se se quiser um abismo23 Mas o que é verdadeiro para o espírito não é verdadeiro para a alma e viceversa A alma embora talvez mais obscura do que qualquer coisa que o espírito possa sonhar ser não é desprovida de fundo ela realmente transborda do corpo ultrapassa seus limites escondese nelee ao mesmo tempo precisa dele termina nele está ancorada nele24 A propósito essas idéias sobre o sempre difícil problema das relações corpoalma são muito antigas O De Anima de Aristóteles está repleto de tantalizadoras referências a fenômenos psíquicos e às suas estritas interconexões com o corpo em contraste com a relação ou melhor a não relação entre corpo e espírito Discutindo tais temas de um modo tentativo e peculiar Aristóteles declara parece que não há caso em que a alma possa atuar ou ser atuada sem o corpo verifiquemse os exemplos de cólera coragem apetite e sensação em geral Estar ativo sem envolver o corpo parece ser antes uma propriedade do espírito noein Mas se o espírito noein é também uma espécie de imaginação phantasia ou não é possível sem a imaginação ele noein também não poderá ser sem o corpo25 E mais adiante resumindo Nada é evidente sobre o espírito nows e a faculdade teórica mas ele parece ser um tipo diferente de alma e só esse tipo pode ser separado do corpo como o eterno é separável do perecível26 E em um dos tratados biológicos sugere que a alma sua parte vegetativa bem como suas partes nutritiva e sensitiva veio a ser no embrião não existindo previamente fora dele mas o nous entrou na alma vindo de fora garantindo assim ao homem um tipo de atividade sem conexão com as atividades do corpo27 Em outras palavras não há sensações que correspondam às atividades espirituais e as sensações da psique da alma são realmente sentimentos que experimentamos como nossos órgãos corporais Além do impulso de autoexposição pelo qual as coisas vivas se acomodam a um mundo de aparências os homens também apresentamse por feitos e palavras e assim indicam como querem aparecer o que em sua opinião deve ser e não deve ser visto Esse elemento de escolha deliberada sobre o que mostrar e o que ocultar parece ser especificamente humano Até certo ponto podemos escolher como aparecer para os outros e essa aparência não é de forma alguma a manifestação exterior de uma disposição interna se fosse todos nós provavelmente agiriamos e falaríamos do mesmo modo Também aqui devemos a Aristóteles as distinções cruciais O que é proferido diz ele são símbolos de afecções da alma e o que é escrito são símbolos de palavras faladas Como a escrita também a fala não é a mesma para todos Entretanto aquilo de que estas a escrita e a fala são símbolos as afecções pathemata da alma são as mesmas para todos Essas afecções são naturalmente expressas por sons inarticulados que também revelam algo como por exemplo o que é produzido pelos animais Distinção e individuação ocorrem no discurso no uso de verbos e substantivos e esses não são produtos ou símbolos da alma mas do espírito Os substantivos e os verbos assemelhamse eoiken aos pensamentos noemasin grifos nossos28 Se o fundamento psíquico interno de nossa aparência individual não fosse sempre o mesmo não poderia haver ciência psicológica que enquanto ciência se apoiasse em um por dentro todos nos parecemos29 de ordem psíquica assim como a fisiologia e a medicina apóiamse na mesmidade de nossos órgãos internos A psicologia a psicologia profunda ou a psicanálise revelam apenas os humores cambiantes os altos e baixos de nossa vida psíquica e seus resultados e descobertas não são particularmente interessantes nem significativos em si mesmos A psicologia individual por outro lado uma prerrogativa da ficção do romance e do drama jamais tomase uma ciência como ciência ela é uma contradição Quando a ciência moderna finalmente começou a iluminar a bíblica escuridão do coração humano sobre a qual disse Santo Agostinho Latet corbonum latet cor malum abyssus est in corde bono et in corde maio Oculto está o bom coração oculto está o mau coração há um abismo no bom coração e no mau coração30 ela revelouse um doloroso depósito multicolorido e tesouro de perversidades como já suspeitara Demócrito31 Ou para expressálo de uma forma mais positiva Das Gefühl ist herrlich wenn es im Grunde bleibt nicht aber wenn es an den Tag tritt sich zum Wesen machen und herrschen will As emoções são gloriosas quando permanecem nas profundezas mas não quando vêm à luz e pretendem tomarse essência e governar32 A monótona mesmice e a feiura penetrante altamente características das descobertas da moderna psicologia em contraste tão óbvio com a enorme variedade e riqueza da conduta humana pública dão testemunho da diferença radical entre o interior e o exterior do corpo humano As paixões e emoções de nossa alma não estão apenas restritas ao corpo mas parecem ter as mesmas funções de sustentação da vida e da preservação de nossos órgãos internos com os quais compartilham a circunstância de que apenas a desordem e a anormalidade podem individualizálos Sem o impulso sexual que se origina em nossos órgãos reprodutivos o amor não seria possível mas enquanto o impulso é sempre o mesmo como é grande a variedade das aparências reais do amor Decerto é possível compreender o amor como a sublimação do sexo mas isso apenas quando se pensa que não há nada a ser compreendido como sexo sem amor e que nem mesmo a seleção de um parceiro sexual seria possível sem a intervenção do espírito ou seja sem uma escolha deliberada entre o que apraz e o que não apraz De forma similar o medo é uma emoção indispensável à sobrevivência ele indica perigo e sem esse sentido de advertência nenhuma coisa viva poderia durar muito tempo O homem corajoso não é aquele cuja alma carece dessa emoção ou que a pode superar de uma vez por todas mas aquele que decidiu que não a quer demonstrar A coragem pode tomarse então uma segunda natureza ou um hábito mas não no sentido do destemor substituir o medo como se também ela pudesse tomarse uma emoção Tais escolhas são determinadas por vários fatores muitas delas são determinadas pela cultura em que nascemos são feitas porque queremos agradar aos outros Mas há também escolhas que não estão inspiradas em nosso ambiente podemos fazêlas porque queremos agradar a nós mesmos ou porque queremos estabelecer um exemplo isto é persuadir os demais a ter prazer com o que nos dá prazer Quaisquer que sejam os motivos o sucesso e o fracasso da iniciativa de autoapresentação dependem da consistência e da duração da imagem assim apresentada ao mundo Já que as aparências sempre apresentaramse na forma do parecer a fraude presumida ou premeditada da parte do ator o erro e a ilusão encontramse inevitavelmente entre as potencialidades inerentes da parte do espectador A autoapresentação distinguese da autoexposição pela escolha ativa e consciente da imagem exibida a autoexposição só pode exibir as características que um ser vivo já tem A autoapresentação não seria possível sem um certo grau de autoconsciência uma capacidade inerente ao caráter reflexivo das atividades espirituais e que transcende visivelmente a simples consciência que provavelmente compartilhamos com os animais superiores Propriamente falando somente a autoapresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento e a única forma de diferenciar fingimento e simulação de realidade e verdade é a incapacidade que os primeiros desses elementos têm para perdurar guardando consistência Já foi dito que a hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude mas isso não é bem verdade Toda virtude começa com um elogio feito a ela pelo qual expresso minha satisfação com relação a ela O elogio implica uma promessa feita ao mundo feita àqueles para os quais agradeço uma promessa de agir de acordo com minha satisfação a quebra dessa promessa implícita é que caracteriza o hipócrita Em outras palavras o hipócrita não é um vilão que se satisfaz com o vício e esconde daqueles que o rodeiam a satisfação O teste que se aplica ao hipócrita é de fato a velha máxima socrática Seja como quer aparecer o que significa apareça sempre como quer aparecer para os outros mesmo quando você estiver sozinho e aparecer apenas para si mesmo Quando tomo uma decisão desse tipo não estou apenas reagindo a quaisquer qualidades que me possam ter sido dadas estou realizando um ato de escolha deliberada entre as várias potencialidades de conduta com as quais o mundo se apresentou a mim De tais atos surge finalmente o que chamamos caráter ou personalidade o conglomerado de um número de qualidades identificáveis reunidas em um identificável todo compreensível e confiável e que estão por assim dizer impressas em um substrato imutável de talentos e defeitos peculiares à nossa estrutura psíquica e corporal Por causa da relevância inegável dessas características escolhidas para nossa aparência e para nosso papel no mundo a filosofia moderna a começar por Hegel sucumbiu à estranha ilusão de que o homem ao contrário das outras coisas criouse a si mesmo Obviamente a auto apresentação e o simples estaraí da existência não são o mesmo 5 Aparência e semblância Uma vez que a escolha como fator decisivo da autoapresentação tem a ver com as aparências e uma vez que as aparências têm a dupla função de ocultar algum interior e revelar alguma superfície por exemplo ocultar o medo e revelar coragem ou seja esconder o medo mostrando coragem há sempre a possibilidade de que o que aparece possa desaparecendo resultar em mera semblância Em função da lacuna entre interno e externo entre base da aparência e aparência ou para pôr as coisas de outro modo por mais diferenciados e individualizados que nós apareçamos e por mais deliberadamente que tenhamos escolhido essa individualidade o que permanece sempre verdadeiro é que por dentro somos todos semelhantes imutáveis anão ser quanto ao funcionamento de nossos órgãos internos psíquicos e corporais ou inversamente quanto a uma intervenção feita com o propósito de remover alguma disfunção Assim há sempre um elemento de semblância em toda aparência a própria base não aparece Daí não resulta que todas as aparências sejam meras semblâncias As semblâncias só são possíveis em meio às aparências elas pressupõem as aparências como o erro pressupõe a verdade O erro é o preço que pagamos pela verdade e a semblância é o preço que pagamos pelo prodígio das aparências Erro e semblância são fenômenos intimamente relacionados correspondemse mutuamente A semblância é inerente em um mundo governado pela dupla lei do aparecer para uma pluralidade de criaturas sensíveis cada uma delas dotada das faculdades de percepção Nada do que aparece manifestase para um único observador capaz de percebêlo sob todos os seus aspectos intrínsecos O mundo aparece no modo do pareceme dependendo de perspectivas particulares determinadas tanto pela posição no mundo quanto pelos órgãos específicos da percepção Esse modo não só produz erro que posso corrigir por uma mudança de posição aproximandome do que aparece ou aguçando meus órgãos perceptivos com o auxílio de instrumentos e implementos ou ainda usando minha imaginação para levar em conta outras perspectivas mas também dá origem a semblâncias verdadeiras ou seja à aparência ilusória que não posso corrigir como corrijo um erro já que é causada por minha permanente posição na Terra e que continua inseparavelmente ligada à minha própria existência como uma das aparências terrenas A semblância dokos de dokei moi disse Xenófanes está inscrita em todas as coisas de tal modo que não há nem haverá nenhum homem que conheça claramente os deuses e tudo sobre o que falo pois mesmo que alguém tentasse dizer o que aparece em sua realidade total ele próprio não conseguiría33 De acordo com a distinção que Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas poderseia falar de semblâncias autênticas e inautênticas Estas últimas miragens como a de alguma fada Morgana dissolvemse espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa as primeiras como o movimento do Sol levantandose pela manhã para pôrse ao entardecer ao contrário não cederão a qualquer volume de informação científica porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia Aqui estamos lidando com aquelas ilusões naturais e inevitáveis de nosso aparelho sensorial a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de natural e inevitável porque era inseparável da razão humana e mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto não deixará de lográla e de atraíla continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções34 O argumento mais plausível senão o mais forte contra o positivismo estreito que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringese aos fatos observáveis à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar Todas as criaturas vivas capazes de perceber aparências através de seus órgãos sensoriais e de exibirse como aparências estão sujeitas a ilusões autênticas que não são as mesmas para todas as espécies mas encontramse vinculadas à forma e à modalidade de seu processo vital específico Os animais também são capazes de produzir semblâncias um número significativo deles pode até mesmo simular uma aparência física e tanto homens quanto animais têm a habilidade inata para manipular as aparências com o propósito de iludir Pôr a descoberto a verdadeira identidade de um animal por trás de sua cor adaptativa temporária não é muito diferente de desmascarar o hipócrita Mas o que aparece então sob a superfície ilusória não é um eu interno uma aparência autêntica imutável e confiável em seu estaraí Pôr a descoberto destrói uma ilusão mas não revela nada que apareça autenticamente Um eu interno se é que ele chega a existir nunca aparece nem para o sentido externo nem para o interno pois nenhum dos dados internos dispõe de características estáveis relativamente permanentes que sendo reconhecíveis e identificáveis particularizam a aparência individual Nenhum eu fixo e durável pode apresentarse nesse fluxo de aparências interiores observou Kant repetidas vezes5 Na verdade é enganoso até mesmo falar de aparências interiores tudo o que conhecemos são sensações cuja inexorável sucessão impede que qualquer uma delas assuma uma forma duradoura e identificável Pois onde quando e como houve alguma vez uma visão do interior O psiquismo é opaco para si mesmo36 Emoções e sensações internas são antimundanas pois carecem da principal característica mundana ficar imóvel e permanecer ao menos o tempo suficiente para ser claramente percebidas e não meramente detectadas intuídas identificadas e reconhecidas mais uma vez de acordo com Kant o tempo a única forma de intuição interna não tem nada de permanente37 Em outras palavras quando Kant fala do tempo como a forma da intuição interna ele fala embora sem o saber metaforicamente e retira sua metáfora de nossas experiências espaciais relacionadas com aparências exteriores E precisamente a ausência de forma e portanto de qualquer possibilidade de intuição que caracteriza nossa experiência das sensações internas Na experiência interna a única coisa a que podemos nos prender para distinguir algo que se assemelhe à realidade dos humores incessantemente cambiantes de nossa psique é a repetição persistente Em casos extremos a repetição pode tomarse tão persistente que resulta na permanência indestrutível de um único humor uma única sensação mas indica invariavelmente uma grave desordem psíquica a euforia do maníaco ou a depressão do melancólico 6 O ego pensante e o eu Kant O conceito de aparência e portanto o de semblância de Erscheinung e de Schein nunca desempenhou um papel tão central e decisivo quanto na obra de Kant A noção kantiana de uma coisaem si algo que é mas que não aparece embora produza aparências pode ser explicada como de fato o foi nos termos de uma tradição teológica Deus c algo Ele não c igual a nada Deus pode ser pensado mas somente como o que não aparece o que não é dado à nossa experiência e portanto como o que é em si mesmo e como Ele não aparece não épara nós Essa interpretação tem suas dificuldades Para Kant Deus é uma idéia de razão e como tal para nós Pensar Deus e especular sobre um além é segundo Kant inerente ao pensamento humano uma vez que a razão a capacidade especulativa do homem transcende necessariamente as faculdades cognitivas de seu intelecto somente o que aparece e no modo do pareceme é dado à experiência pode ser conhecido mas os pensamentos também são e algumas coisaspensamento a que Kant chama idéias embora nunca dadas à experiência e portanto incognoscíveis tais como Deus a liberdade e a imortalidade são para nós no sentido enfático de que a razão não pode se impedir de pensálas e que elas são de grande interesse para os homens e para a vida do espírito Talvez seja pois aconselhável examinar em que medida a noção de uma coisaemsi que não aparece está dada na própria compreensão do mundo como um mundo de aparências independentemente das necessidades e dos pressupostos de um ser pensante e da vida do espírito Há em primeiro lugar a circunstância ordinária ao contrário da conclusão de Kant mencionada anteriormente de que toda coisa viva já que aparece possui uma base que não é aparência mas que pode ser forçada a aparecer e tomarse o que Portmann chama de aparência inautêntica De fato segundo a compreensão de Kant as coisas que não aparecem espontaneamente mas cuja existência pode ser demonstrada órgãos internos raízes de árvores e plantas etc também são aparências Assim sua conclusão de que as próprias aparências devem ter uma base que não é ela mesma uma aparência e portanto devem apoiarse em um objeto transcendente38 que as determina como meras representações39 ou seja devem apoiarse em algo que em princípio é de uma ordem ontológica totalmente distinta essa conclusão parece claramente ter sido retirada de uma analogia com os fenômenos deste mundo um mundo que contém tanto as aparências autênticas quanto as inautênticas e no qual as aparências inautênticas à medida que contêm o próprio aparelho do processo vital parecem causar as aparências autênticas O preconceito teológico no caso de Kant a necessidade de fazer com que os argumentos favoreçam a existência de um mundo inteligível comparece aqui na expressão meras representações como se Kant houvesse esquecido sua própria tese central Afirmamos que as condições de possibilidade da experiência em geral são também condições da possibilidade dos objetos da experiência e que por esta razão elas têm validade objetiva em um juízo sintético a priori A razoabilidade do argumento de Kant o que leva alguma coisa a aparecer deve ser de uma ordem distinta da própria aparência apóiase em nossa experiência desses fenômenos vitais mas a ordem hierárquica entre o objeto transcendente a coisaemsi e as meras representações não e é esta ordem de prioridades que a tese de Portmann inverte Kant perdeuse por causa do seu grande desejo de sustentar cada um e todos os argumentos que mesmo incapazes de chegar a uma prova definitiva pudessem ao menos tornar irresistivelmente plausível a tese de que há indubitavelmente algo distinto do mundo que contém o fundamento da ordem do mundo41 e que por conseguinte esse algo é ele mesmo de uma ordem superior Se confiarmos unicamente em nossas experiências com as coisas que aparecem e que não aparecem e começarmos a especular na mesma direção podemos da mesma maneira e com razoabilidade muito maior concluir que talvez haja de fato uma base fundamental por trás do mundo das aparências mas que o significado principal e talvez o único dessa base está nos seus efeitos ou seja no que eia faz aparecer mais do que em sua pura criatividade Se o que causa as aparências sem chegar mesmo a aparecer é divino então os órgãos internos do homem poderíam tomarse verdadeiramente divindades Em outras palavras a comum compreensão filosófica do Ser como o fundamento da Aparência é verdadeira para o fenômeno da Vida mas o mesmo não pode ser dito sobre a comparação valorati va entre Ser e Aparência que está no fundo de todas as teorias dos dois mundos Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências mas ao contrário da experiência nãoordinária do ego pensante Como veremos mais adiante a experiência transcende não só a Aparência mas o próprio Ser Kant identifica explicitamente o fenômeno que forneceu a base real para sua crença numa coisaemsi por sob as meras aparências o fato de que na consciência que tenho de mim na pura atividade do pensar beim blossen Denken sou a própria coisa das Wesen selbst ou seja das Ding an sich sem que por isso nada de mim seja dado ao pensamento42 Se reflito sobre a relação que estabeleço de mim para comigo na atividade de pensar pode parecer que meus pensamentos seriam meras representações ou manifestações de um ego que se mantém ele próprio para sempre oculto pois naturalmente os pensamentos nunca se parecem com propriedades atribuíveis a um eu ou a uma pessoa O ego pensante é pois a coisaemsi de Kant ele não aparece para os demais e diferentemente do eu da autoconsciência ele não aparece para si mesmo Ainda assim ele não é igual a nada O ego pensante é pura atividade c portanto não tem idade sexo ou qualidades e não tem uma história de vida Quando sugeriram que escrevesse sua autobiografia Etienne Gilson respondeu Um homem de setenta e cinco anos deveria ter muitas coisas a dizer sobre seu passado mas se ele viveu apenas como filósofo percebe imediatamente que não tem nenhum passado43 Pois o ego pensante não é o eu Há uma observação incidental em São Tomás de Aquino uma das que tanto dependemos em nossa pesquisa que soa de forma misteriosa a não ser quando se está consciente dessa distinção entre o ego pensante e o eu Minha alma em São Tomás o órgão do pensamento não sou eu e se apenas as almas forem salvas nem eu nem homem algum estará salvo44 O sentido interno que nos poderia propiciar a apreensão da atividade de pensar em alguma forma de intuição interior não tem em que se prender segundo Kant porque suas manifestações são inteiramente diferentes das manifestações com que se confronta o sentido externo que encontra algo imóvel e permanente ao passo que o tempo a única forma de intuição interna nada tem de permanente45 Assim tenho consciência de mim não de como apareço para mim não de como sou em mim mesmo mas apenas de que sou Essa representação é um pensamento não uma intuição E acrescenta em nota de rodapé O eu penso expressa o ato de determinação de minha existência A existência portanto já está dada mas não está dado o modo como eu sou46 Kant chama repetidas vezes a atenção para esse ponto na Crítica da razão pura nada permanente é dado na intuição interna quando penso em mim mesmo47 Mas faríamos melhor se nos voltássemos para os escritos précríticos de maneira a encontrar uma descrição real das puras experiências do ego pensante No Trãume eines Geistersehers erlautert durch Trüume derMetaphysik 1766 Kant sublinha a imaterialidade do mundus intelligibilis o mundo em que se move o ego pensante em contraste com a inércia e a constância da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências Nesse contexto ele distingue a noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito Geísí por meio de uma intuição imaterial e a consciência através da qual ela se apresenta como homem utilizandose de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais E sempre portanto o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível mas não a mesma pessoa já que o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e ao contrário meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito E em uma estranha nota de rodapé Kant fala de uma certa dupla personalidade que é própria da alma mesmo nesta vida ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo quando os sentidos externos encontramse em total repouso Ele suspeita de que as idéias durante o sono podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as idéias em estado de vigília precisamente porque o homem em tais ocasiões não é sensível ao seu corpo E não recordamos nada dessas idéias quando despertamos Os sonhos são algo ainda diferente eles não são daqui Pois nesse caso o homem não adormece completamente e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores48 Tais idéias de Kant quando compreendidas como constituintes de uma teoria dos sonhos são evidentemente absurdas Mas são interessantes como tentativa um tanto desajeitada de dar conta das experiências espirituais de retirada do mundo real Pois é preciso que se dê alguma explicação sobre uma atividade que ao contrário de qualquer outra atividade ou ação nunca encontra resistência por parte da matéria Ela não é sequer obstaculizada ou retardada quando se manifesta em palavras formadas por órgãos sensoriais A experiência da atividade do pensamento é provavelmente a fonte original de nossa própria noção de espiritualidade independentemente das formas que ela tenha assumido Em termos psicológicos uma das mais notáveis características do pensamento é sua incomparável rapidez rápido como o pensamento disse Homero e Kant em seus primeiros escritos mencionou inúmeras vezes a Hurtigkeit des Gedankens49 Naturalmente o pensamento é veloz porque é imaterial e isso por sua vez acaba por explicar a hostilidade que tantos dos grandes metafísicos tinham em relação a seus próprios corpos Do ponto de vista do ego pensante o corpo é apenas um obstáculo Concluir a partir dessa experiência que existem coisasemsi as quais em sua própria esfera inteligível são como nós somos no mundo das aparências é uma das falácias metafísicas ou ainda uma das semblâncias da razão cuja própria existência Kant foi o primeiro a descobrir esclarecer e dirimir Parece muito apropriado que esta falácia como a maioria das outras que afligiram a tradição filosófica tenha tido origem nas experiências do ego pensante Em todo caso ela apresenta uma semelhança óbvia com outra falácia muito mais simples e mais comum mencionada por PF Strawson em um ensaio sobre Kant Uma antiga crença é a de que a razão é algo essencialmente fora do tempo e mesmo assim em nós Sem dúvida ela tem seu fundamento no fato de que podemos apreender verdades lógicas e matemáticas Mas uma pessoa que apreende verdades intemporais não precisa ela mesma ser intemporal50E típico da escola crítica de Oxford compreender essas falácias como non sequiturs lógicos como se os filósofos ao longo dos séculos e por razões desconhecidas tivessem sido estúpidos demais para perceber as falhas elementares de seus argumentos A verdade é que erros lógicos elementares são muito raros na história da filosofia o que para espíritos que se desembaraçam de questões acriticamente rejeitadas como sem sentido parece ser erro de lógica é geralmente provocado por semblâncias inevitáveis em seres cuja existência é determinada pelas aparências Assim em nosso contexto a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou inautênticas se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que embora parte do mundo das aparências tem uma faculdade a habilidade de pensar que permite ao espírito retirarse do mundo sem jamais poder deixálo ou transcendêlo 7 Realidade e ego pensante dúvida cartesiana e sensus communis A realidade em um mundo de aparências é antes de mais nada caracterizada por ficar imóvel e permanecer a mesma o tempo suficiente para tomarse um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito A descoberta básica e mais importante de Elusserl trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos de consciência ou seja do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto Embora a árvore vista possa ser uma ilusão para o ato de ver ela é um objeto Da mesma forma embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador ela é objeto de seu sonho A objetividade é construída na própria subjetividade da consciência em virtude da intencionalidade Ao contrário e com a mesma justeza podese falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida Exatamente porque todos os objetos implicam um sujeito e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional Nas palavras de Portmann toda aparência é uma emissão para receptores uma Sendungfür Empfangsapparate O que quer que apareça visa a alguém que o perceba um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e por isso sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais tem conseqüências de longo alcance para o que nós seres que aparecem em um mundo de aparências entendemos por realidade tanto a nossa quanto a do mundo Em ambos os casos nossa fé perceptiva51 como designou MerleauPonty nossa certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de perceber depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os outros e de que por eles é reconhecido Sem esse reconhecimento tácito dos outros não seríamos capazes nem mesmo de ter fé no modo pelo qual aparecemos para nós mesmos Eis porque as teorias solipsistas seja quando proclamam radicalmente que só o eu existe seja quando mais moderadamente asseveram que o eu e sua consciência de si são objetos primários do conhecimento verificável estão em desarmonia com os dados mais elementares de nossa existência e de nossa experiência O solipsismo aberto ou velado com ou sem qualificativos foi a mais persistente e talvez a mais perniciosa falácia filosófica mesmo antes de adquirir com Descartes um alto nível de consistência teórica e existencial Quando o filósofo fala do homem ele não tem em mente nem o ser da espécie o Gattungswesen como cavalo ou leão que segundo Marx constitui a existência fundamental do homem nem o mero paradigma do que de seu ponto de vista todos os homens deveríam se esforçar para atingir Para o filósofo falando a partir da experiência do ego pensante o homem é muito naturalmente não apenas verbo mas pensamento feito carne a encarnação sempre misteriosa nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento E o problema desse ser fictício é que ele nem é o produto de um cérebro doentio nem um desses erros do passado facilmente solucionáveis mas a semblância inteiramente autêntica da própria atividade de pensar Pois quando um homem se entrega ao puro pensamento por qualquer razão que seja e independentemente do assunto ele vive completamente no singular ou seja está completamente só como se o Homem e não os homens habitasse o planeta O próprio Descartes explicou e justificou seu subjetivismo radical pela decisiva perda de certezas legada pelas grandes descobertas científicas da Era Moderna em outro contexto procurei acompanhar o pensamento de Descartes52 Entretanto quando assediado no início pelas dúvidas inspiradas pela ciência moderna decidiu à rejeter la terre mouvante et le sable pour trouver le roc ou 1argile rejeitar a areia movediça e o lodo para encontrar a pedra e o barro ele certamente redescobriu um terreno bastante familiar retirandose para um lugar onde podería viver aussi solitaire et retiré que dans les déserts les plus écartés tão só e afastado como nos mais remotos desertos53 Retirarse da bestialidade da multidão para ficar na companhia dos muito poucos54 e também no estarsó absoluto do Um tem sido a principal característica da vida do filósofo desde o1 armênides e Platão descobriram que para aqueles muito poucos o soph a vida do pensamento que não conhece nem dor nem alegria é a mais divin e que o nous o próprio pensamento é o rei da terra e do céu55 Descartes fiel ao subjetivismo radical primeira reação dos filósofos às novas glórias da ciência já não atribuía as satisfações dessa forma de vida aos objetos do pensamento a eternidade do kosmos que nem passa a ser nem deixa de ser e que desse modo confere uma parcela de imortalidade àqueles poucos que decidiram passar a vida contemplandoa A bem moderna suspeita cartesiana com relação ao aparelho sensorial e cognitivo do homem fez com que ele definissecom maior clareza do que qualquer outro filósofo anterior como propriedades da res cogitans certas características que não sendo desconhecidas dos antigos assumiram agora talvez pela primeira vez uma importância suprema Entre essas características destacavamse a autosuficiência ou seja o fato de que esse ego não tem necessidade de nenhum lugar nem depende de qualquer coisa material e também a nãomundanidade isto é que na autoinspecção examinant avec attention ce que jetais seria possível facilmente feindre q1 e je n avais aucun corps et qu il n y avait aucun monde ni aucun lieu ou je fusse fingir que não tinha corpo e que não havia nenhum mundo nem lugar algum onde eu fosse56 De fato nenhuma destas descobertas ou melhor redescobertas foi em si mesma de grande relevância para Descartes Seu interesse principal era encontrar algo o ego pensante ou em suas próprias palavras la chose pensante que ele identificava à alma cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita para além das ilusões da percepção sensorial Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma consciência que abandonou toda a experiência sensível Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão o sonhador quando concorda em não exigir realidade do sonho deve ser real Assim Je pense done je suis Penso logo existo Por um lado era tão forte a experiência da própria atividade de pensar e por outro tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu la terre mouvante a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual pomos de pé que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitado e nenhum cogito me cogitare nenhuma consciência de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais poderia convencêlo de sua própria realidade de que ele teria realmente nascido em um deserto sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas materiais e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas A res cogitans cartesiana essa criatura fictícia sem corpo sem sentidos e abandonada sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal entre o mundo comum da vida consciente e o nãomundo privado de nossos sonhos O que MerleauPonty tinha a dizer contra Descartes disseo de modo brilhante e correto Reduzir a percepção ao pensamento de perceber é fazer um seguro contra a dúvida cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar pois é passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o há do mundo57 Além do mais é precisamente a atividade do pensamento as experiências do ego pensante que gera dúvida sobre a realidade do mundo e de mim mesmo O pensamento pode apoderarse de tudo que é real evento objeto seus próprios pensamentos a realidade disso tudo é a única propriedade que permanece persistentemente além de seu alcance O cogito ergo sum é uma falácia não apenas no sentido observado por Nietzsche de que do cogito só se pode inferir a existência de cogitationes o cogito está sujeito à mesma dúvida que o sum O euexisto está pressuposto no eupenso O pensamento pode agarrarse a esta pressuposição mas não pode demonstrar se ela é falsa ou verdadeira O argumento de Kant contra Descartes também estava inteiramente correto o pensamento eu não sou não pode existir pois se eu não sou conseqüentemente não posso saber que não sou58 A realidade não pode ser derivada O pensamento ou a reflexão podem aceitála ou rejeitála e a dúvida cartesiana partindo da noção de um Dieu trompeur é apenas uma forma velada e sofisticada de rejeição59 Restou a Wittgenstein que planejou investigar quanta verdade há no solipsismo e assim tomouse seu mais destacado representante contemporâneo formular a ilusão existencial subjacente a todas as teorias solipsistas Com a morte o mundo não se altera apenas chega a um fim A morte não é um evento na vida nós não vivemos nossa morte60 Essa é a premissa básica de todo pensamento solipsista Embora tudo o que apareça seja percebido na modalidade do pareceme e assim seja passível de erro e ilusão a aparência como tal traz consigo uma indicação prévia de realidade Todas as experiências sensoriais são normalmente acompanhadas ainda que de forma silenciosa pela sensação adicional de realidade e isto a despeito do fato de que nenhum de nossos sentidos tomados de modo isolado e nenhum objeto sensível retirado de seu contexto possa produzir aquela sensação Portanto a arte que transforma objetos sensíveis em coisaspensamento retiraos antes de mais nada de seu contexto com o propósito de desrealizálos e assim prepará los para sua nova e diferente função Por um lado a realidade do que percebo é garantida por seu contexto mundano que inclui outros seres que percebem como eu por outro lado ela é percebida pelo trabalho conjunto de meus cinco sentidos O que desde São Tomás de Aquino chamamos de sensocomum sensuscommunis é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo toco provo cheiro e ouço é a mesma faculdade que se estende a todos os objetos dos cinco sentidos61 Esse mesmo sentido um sexto sentido misterioso62 porque não pode ser localizado como um órgão corporal adequa as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados tão privados que as sensações em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais são incomunicáveis a um mundo comum compartilhado pelos outros A subjetividade do pareceme é remediada pelo fato de que o mesmo objeto também aparece para os outros ainda que o seu modo de aparecer possa ser diferente É a intersubjeti vidade do mundo muito mais do que a similaridade da aparência física que convence os homens de que eles pertencem à mesma espécie Ainda que cada objeto singular apareça numa perspectiva diferente para cada indivíduo o contexto no qual aparece é o mesmo para toda a espécie Nesse sentido cada espécie animal vive em um mundo que lhe é próprio e cada indivíduo animal não precisa comparar suas próprias características físicas com as de seus semelhantes para conhecêlos como tais Em um mundo de aparências cheio de erros e semblâncias a realidade é garantida por esta tríplice comunhão os cinco sentidos inteiramente distintos uns dos outros têm em comum o mesmo objeto membros da mesma espécie têm em comum o contexto que dota cada objeto singular de seu significado específico e todos os outros seres sensorialmente dotados embora percebam esse objeto a partir de perspectivas inteiramente distintas estão de acordo acerca de sua identidade É dessa tríplice comunhão que surge a sensação de realidade A cada um de nossos cinco sentidos corresponde uma propriedade do mundo específica e sensorialmente perceptível Nosso mundo é visível porque dispomos de visão audível por que dispomos de audição palpável e repleto de gostos e odores porque dispomos de tato paladar e olfato A propriedade mundana que corresponde ao sexto sentido é a realidade realness a dificuldade que ela apresenta é que não pode ser percebida como as demais propriedades sensoriais O sentido de realidade realness não é estritamente falando uma sensação a realidade está lá mesmo que nunca tenhamos certeza de conhecêla Peirce63 pois a sensação de realidade do mero estaraí relacionase ao contexto no qual objetos singulares aparecem assim como ao contexto no qual nós como aparências existimos em meio a outras criaturas que aparecem O contexto como tal nunca aparece completamente ele é evasivo quase como o Ser que como Ser nunca aparece em um mundo repleto de seres de entes singulares Mas o Ser que é desde Parmênides o mais elevado conceito da filosofia ocidental é uma coisapensamento que nós não esperamos que seja percebida pelos sentidos ou que produza uma sensação ao passo que a realidade realness é parente da sensação um sentimento de realidade realness ou irrealidade acompanha de fato todas as sensações de meus sentidos que sem ele não fariam sentido Eis porque São Tomás definia o senso comum seu sensus communis como um sentido interno sensus interior que funcionava como a raiz comum e o princípio dos sentidos exteriores Sensus interior non dicitur communis sicut genus sed sicut communis radix et principium exteriorum sensuum64 E tentador equiparar esse sentido interno que não pode ser fisicamente localizado com a faculdade do pensar porque entre as principais características do pensamento que se dá em um mundo de aparências e é realizado por um ser que aparece está a de que ele próprio é invisível Partindo do fato de que essa invisibilidade é compartilhada pela faculdade de pensar e pelo senso comum Peirce conclui que a realidade tem uma relação com o pensamento humano ignorando que o pensamento não só é ele próprio invisível mas também lida com invisíveis com coisas que não estão presentes aos sentidos embora possam ser e freqüentemente são também objetos sensíveis relembrados e reunidos no depósito da memória e assim preparados para reflexão posterior Thomas Landon Thorson elabora a sugestão de Peirce e chega à conclusão de que a realidade mantém uma relação com o processo do pensamento da mesma forma que o ambiente se relaciona com a evolução biológica65 Essas observações e sugestões estão baseadas no pressuposto tácito de que os processos do pensamento não são sob qualquer aspecto distintos do raciocínio do senso comum o resultado é a velha ilusão cartesiana sob disfarce moderno O que quer que o pensamento possa atingir e conquistar é precisamente a realidade tal como é dada ao senso comum em seu mero estaraí que permanece para sempre além de seu alcance indissolúvel em séries de pensamentos o obstáculo que os alerta e diante do qual eles cedem em afirmação ou negação Os processos do pensamento diferentemente dos processos do senso comum podem ser fisicamente localizados no cérebro e não obstante transcendem quaisquer dados biológicos sejam eles funcionais ou morfológicos no sentido de Portmann O senso comum e o sentido de realidade ao contrário fazem parte de nosso aparelho biológico e o raciocínio do senso comum que a escola filosófica de Oxford confunde com o pensamento poderia certamente manter com a realidade a mesma relação que há entre evolução biológica e ambiente Thorson está certo com referência ao raciocínio do senso comum Podemos estar falando em mais do que uma analogia podemos estar descrevendo dois aspectos do mesmo processo66 E se a linguagem além de seu tesouro de palavras destinadas às coisas dadas aos sentidos não nos oferecesse essas palavraspensamento tecnicamente chamadas conceitos como justiça verdade coragem divindade e assim por diante palavras indispensáveis mesmo na linguagem comum nós certamente perderiamos toda evidência tangível da atividade de pensar e poderiamos encontrar justificativa para concordar com o jovem Wittgenstein Die Sprache ist ein Teil unseres Organismus A linguagem é uma parte de nosso organismo67 O pensamento que submete à dúvida tudo de se que apossa não possui entretanto nenhuma relação desse tipo natural ou prosaica com a realidade Foi o pensamento a reflexão de Descartes acerca do significado de certas descobertas científicas que destruiu sua confiança de senso comum na realidade seu erro foi esperar que pudesse superar a dúvida insistindo em retirarse completamente do mundo eliminando cada realidade múndana de seus pensamentos e concentrandose exclusivamente na própria atividade do pensar Cogito cogitationes ou cogito me cogitare ergo sum é a forma correta da famosa fórmula Mas o pensamento não pode provar nem destruir o sentimento de realidade realness que deriva do sexto sentido e que foi denominada pelos franceses talvez por essa mesma razão de le bon sens o bom senso quando o pensamento se retira do mundo das aparências ele se retira do sensorialmente dado e assim também do sentimento de realidade realness dado pelo senso comum Husserl argumentava que a suspensão epoche deste sentimento era o fundamento metodológico de sua ciência fenomenológica Para o ego pensante essa suspensão é natural não é de modo algum um método especial a ser ensinado e aprendido nós o conhecemos sob o fenômeno muito comum do alheamento que se observa nas pessoas absorvidas por qualquer tipo de pensamento Em outras palavras a perda do senso comum não é nem o direito nem a virtude dos pensadores profissionais de Kant ocorre a todo aquele que pensa em algo ocorre apenas com mais freqüência entre os pensadores profissionais A estes chamamos filósofos e seu modo de vida será sempre o da vida de um estrangeiro bios xenikos como denominou Aristóteles em sua Política1 Essa estranheza e esse alheamento não são mais perigosos de tal forma que todos os pensadores sejam profissionais ou leigos sobrevivem com facilidade à perda do sentido de realidade realness porque o ego pensante afirma se apenas temporariamente Qualquer pensador não importa quão importante seja permanece um homem como você e eu Platão uma aparência entre aparências dotada de senso comum e dispondo de um raciocínio de senso comum suficiente para sobreviver 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado À primeira vista algo muito semelhante parece valer para o cientista moderno que constantemente destrói semblâncias autênticas sem contudo destruir sua própria sensação de realidade Esta lhe diz como nos diz a todos que o Sol nasce pela manhã e se põe à tarde Foi o pensamento que permitiu ao homem penetrar nas aparências e desmascarálas como semblâncias ainda que autênticas o raciocínio do senso comum jamais teria ousado contestar de modo tão radical todas as plausibilidades de nosso aparelho sensorial A famosa querela entre os antigos e os modernos suscita realmente a questão de qual seja o propósito do conhecimento trata se de salvar os fenômenos como acreditavam os antigos ou de descobrir o aparelho funcional oculto que os faz aparecer A dúvida do pensamento a respeito da confiabi lidade da experiência sensorial sua suspeita de que as coisas possam ser distintas da maneira pela qual aparecem aos sentidos humanos não era de modo algum inusitada na Antigüidade Os átomos de Demócrito eram não só indivisíveis mas invisíveis movendose em um vazio infinitos em número e por meio de várias configurações e combinações produziam impressões em nossos sentidos Aristarco no terceiro século antes de Cristo formulou pela primeira vez a hipótese heliocêntrica É interessante notar que as conseqüências de tais ousadias foram bastante desagradáveis Demócrito ficou sob suspeita de insanidade e Aristarco foi ameaçado com uma acusação de impiedade Mas naturalmente o ponto mais relevante é que nenhuma tentativa foi feita para provar essas hipóteses e delas não surgiu ciência alguma O pensamento tem sem dúvida um papel muito grande em toda busca científica mas o papel de um meio em relação a um fim o fim é determinado por uma decisão a respeito do que vale a pena conhecer e essa decisão não pode ser científica Além do mais o fim é o conhecimento ou a cognição que uma vez obtidos pertencem claramente ao mundo das aparências uma vez estabelecidos como verdadeiros tomamse parte integrante do mundo A cognição e a sede de conhecimento nunca abandonam completamente o mundo das aparências se o cientista se retira dele para pensar é apenas com o intuito de encontrar abordagens do mundo melhores e mais promissoras que se chamam métodos Nesse sentido a ciência é apenas um prolongamento muito refinado do raciocínio do senso comum no qual as ilusões dos sentidos são constantemente dissipadas como são corrigidos os erros na ciência O critério em ambos os casos é a evidência que como tal é inerente a um mundo de aparências E já que é da própria natureza das aparências revelar e ocultar cada correção e cada Jesilusão nas palavras de MerleauPonty é a perda de uma evidência unicamente porque é a aquisição de outra evidência69 Ainda que consideremos a compreensão que a ciência tem de seu próprio empreendimento nada garante que a nova evidência seja mais confiável do que a evidência descartada O próprio conceito de um progresso ilimitado que acompanhou o despertar da ciência moderna e permaneceu como seu princípio inspirador dominante é o melhor testemunho de que toda a ciência ainda se move no âmbito da experiência do senso comum sujeita ao erro e à ilusão corrigíveis A generalização da experiência da correção permanente na pesquisa científica conduz ao curioso cada vez melhor cada vez mais verdadeiro ou seja ao progresso ilimitado e à aceitação a ele inerente de que o bom e o verdadeiro são inatingíveis Caso eles pudessem ser alcançados a sede de conhecimento estaria satisfeita e a busca cognitiva chegaria ao fim E evidente que é muito pouco provável que isso aconteça tendo em vista a enorme extensão do que ainda permanece desconhecido mas é bastante provável que as ciências particulares alcancem limites bem definidos para o que é por nós cognoscível A questão entretanto é que a moderna idéia de progresso nega implicitamente tais limites A noção de progresso inquestionavelmente nasceu como produto de enormes avanços do conhecimento científico uma verdadeira avalanche de descobertas ao longo dos séculos XVI e XVII e acho bem provável que depois de invadir as ciências a inexorabilidade inerente ao próprio pensamento cuja necessidade nunca pode ser mitigada tenha levado os cientistas a descobertas renovadas cada qual delas por sua vez dando lugar a uma nova teoria de tal forma que os que foram pegos nesse movimento ficaram sujeitos à ilusão de um processo sem fim o processo do progresso Não devemos nos esquecer aqui que a posterior noção de um aperfeiçoamento infinito da espécie humana tão destacado no Iluminismo oitocentista estava ausente nos séculos XVI e XVII séculos mais pessimistas nas avaliações sobre a natureza humana Pareceme entretanto óbvia e de considerável importância uma das conseqüências desse desenvolvimento A própria noção de verdade que de alguma forma sobreviveu a tantos momentos cruciais de nossa história intelectual sofreu uma mudança decisiva ela foi transformada ou melhor partida em uma enorme corrente de veracidades cada uma das quais a seu tempo reivinvicando validade geral ainda que a própria continuidade da pesquisa implicasse algo meramente provisório Esse é um estranho estado de coisas Pode até sugerir que se uma dada ciência acidentalmente atingisse seu objetivo isso absolutamente não interrompería o trabalho dos pesquisadores naquele campo eles seriam lançados para além de seu objetivo pelo simples momentum da ilusão do progresso infinito uma espécie de semblância derivada de sua própria atividade A transformação da verdade em mera veracidade deriva primeiramente do fato de que o cientista permanece ligado ao senso comum através do qual nos orientamos em um mundo de aparências O pensamento retirase radicalmente e por sua própria conta deste mundo e de sua natureza evidenciai ao passo que a ciência se beneficia de uma possível retirada em função de resultados específicos Em outras palavras nas teorias científicas é o raciocínio do senso comum que em última análise se aventura no âmbito da pura especulação e a principal fraqueza do senso comum nessa esfera sempre foi não possuir as salvaguardas inerentes ao mero pensamento a saber sua capacidade crítica que como veremos guarda em si uma forte tendência autodestrutiva Mas voltando ao pressuposto do progresso ilimitado a falácia básica foi muito cedo descoberta Sabese bem que não foi o progresso per se mas a idéia de sua nãolimitação que teria tornado a ciência moderna inaceitável para os antigos Mas é menos conhecido o fato de que os gregos tinham uma razão para seu preconceito contra o infinito Platão descobriu que tudo o que admite um comparativo é por sua natureza ilimitado e a ausência de limite era para ele como para os demais gregos a causa de todos os males71 Daí sua grande confiança nos números e nas medidas eles põem limite naquilo que por si o prazer por exemplo não contém e nunca conterá e do qual não deriva e nunca derivará nem começo arche nem meio nem fim reos71 O fato da ciência moderna sempre em busca de manifestações do invisível átomos moléculas partículas células genes ter acrescentado ao mundo uma quantidade espetaculare inédita de novos objetos perceptíveis é apenas um aparente paradoxo Para provar ou refutar suas hipóteses seus paradigmas Thomas Kuhn e descobrir o que faz as coisas funcionarem a ciência começou a imitar os processos operativos da natureza Com esse fim produziu os mais incontáveis e complexos instrumentos com que força o que não aparece a aparecer pelo menos como leitura de instrumentos de laboratório pois esse era o único meio de que o cientista dispunha para persuadirse da realidade daquelas coisas A moderna tecnologia nasceu no laboratório mas não porque os cientistas quisessem produzir resultados práticos ou mudar o mundo Não importa quanto suas teorias se distanciem da experiência e do raciocínio do senso comum elas devem no final retomar a eles de alguma forma ou perder todo sentido de realidade do objeto de sua investigação E esse retorno só é possível através do mundo artificial do laboratório um mundo feito pelo homem onde o que não aparece espontaneamente é forçado a aparecer e a desvelarse A tecnologia o trabalho de encanador um tanto desprezado pelo cientista que vê a aplicabilidade prática como um mero subproduto de seus próprios esforços introduz descobertas científicas feitas em um insulamento das exigências da vida laica e cotidiana sem paralelo72 no mundo cotidiano das aparências e tomaas acessíveis à experiência do senso comum Mas isto só é possível porque os próprios cientistas dependem em última instância dessa experiência Visto da perspectiva do mundo real o laboratório é a antecipação de um ambiente alterado e os processos cognitivos que usam as habilidades humanas de pensar e fabricar como meios para seus fins são os modos mais refinados do raciocínio do senso comum A atividade de conhecer não está menos relacionada ao nosso sentido de realidade e é tanto uma atividade de construção do mundo quanto a edificação de casas Entretanto a faculdade de pensar que Kant como vimos chamou Vernunft razão para distinguir de Verstand intelecto a faculdade de cognição é de uma natureza inteiramente diversa A distinção em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant encontrase no fato de que os conceitos da razão nos servem para conceber begreifen compreender assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções Vernunftbegriffe dienen zum Begreifen wie Verstandesbegriffe zum Verstehen der WahrnehmungenV Em outras palavras o intelecto Verstand deseja apreender o que é dado aos sentidos mas a razão Vernunft quer compreender seu significado A cognição cujo critério mais elevado é a verdade deriva esse critério do mundo das aparências no qual nos orientamos através das percepções sensoriais cujo testemunho é autoevidente ou seja inabalável por argumentos e substituível apenas por outra evidência Como tradução alemã da palavra latinaperceptio o termo Wahrnehmung usado por Kant o que me é dado na percepção e deve ser verdadeiro Wahr indica claramente que a verdade está situada na evidência dos sentidos Mas esse não é o caso do significado e da faculdade do pensamento que busca o significado essa faculdade não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe sua existência é sempre tomada como certa mas o que significa para ela ser Essa distinção entre verdade c significado pareceme não só decisiva para qualquer investigação sobre a natureza do pensamento humano mas parece ser também a conseqüência necessária da distinção crucial que Kant faz entre razão e intelecto Devese admitir que Kant jamais desenvolveu essa implicação particular de seu próprio pensamento uma linha clara de demarcação entre essas duas modalidades inteiramente distintas não pode ser encontrada na história da filosofia As exceções observações ocasionais sobre a interpretação não têm importância para a filosofia posterior a Aristóteles Naquele primeiro tratado sobre a linguagem ele escreve Todo logos proposição no contexto é um som significativo phone semantike ele dá um sinal aponta para alguma coisa Mas nem todo logos é revelador apophantikos somente aqueles nos quais tem vigência o discurso verdadeiro ou o discurso falso aletheuein ou pseudesthai Nem sempre é esse o caso Por exemplo uma oração é um logos é significativa mas não é verdadeira nem falsa74 As questões levantadas por nossa sede de conhecimento derivam de nossa curiosidade sobre o mundo nosso desejo de investigar qualquer coisa que seja dada ao nosso aparelho sensorial A primeira e famosa afirmação da Metafísica de Aristóteles Pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei15 Todos os homens por sua natureza desejam conhecer traduzida literalmente diz o seguinte Todos os homens desejam ver e ter visto ou seja conhecer Ao que Aristóteles imediatamente acrescenta Um indício é nosso amor pelos sentidos pois eles são amados por si mesmos independentemente de seu uso As questões despertadas pelo desejo de conhecer podem todas em princípio ser respondidas pela experiência e pelo raciocínio do senso comum estão expostas ao erro e à ilusão corrigíveis da mesma forma que percepções e experiências sensoriais Mesmo a inexorabilidade do Progresso da ciência moderna que constantemente se corrige a si própria descartando respostas e reformulando questões não contradiz o objetivo básico da ciência ver e conhecer o mundo tal como ele é dado aos sentidos e seu conceito de verdade é derivado da experiência que o senso comum faz da evidência irrefutável que dissipa o erro e a ilusão Mas as questões levantadas pelo pensamento porque é da própria natureza da razão formulálas questões de significado são todas elas irrespondíveis pelo senso comum e por sua sofisticada extensão a que chamamos ciência A busca de significado não tem significado para o senso comum e para o raciocínio do senso comum pois é função do sexto sentido adequarnos ao mundo das aparências e deixarnos em casa no mundo dado por nossos cinco sentidos Aí estamos e não fazemos perguntas O que a ciência e a busca de conhecimento procuram é a verdade irrefutável ou seja proposições que os seres humanos não estão livres para refutar são coercitivas Como sabemos desde Leibniz elas podem ser de dois tipos verdades da razão e verdades de fato A principal distinção entre elas está no grau de sua força de coerção as verdades da razão são necessárias e seu contrário é impossível ao passo que as de fato são contingentes e seu contrário é possível76 A distinção é importante embora talvez não no sentido em que o próprio Leibniz a compreende As verdades de fato a despeito de sua contingência são tão coercitivas para quem as testemunha com os próprios olhos quanto a proposição de que dois mais dois são quatro para qualquer pessoa em sã consciência Apenas a questão é que um fato um evento nunca pode ser testemunhado por todos os que estão eventualmente nele interessados ao passo que a verdade racional ou matemática apresentase como autoevidente para qualquer um dotado do mesmo poder cerebral sua natureza coercitiva é universal enquanto a força coercitiva da verdade factual é limitada ela não alcança aqueles que não tendo sido testemunhas têm que confiar no testemunho de outros em quem se pode ou não acreditar O verdadeiro contrário da verdade factual em oposição à racional não é o erro ou a ilusão mas a mentira deliberada A distinção que Leibniz faz entre verdades de fato e verdades da razão cuja forma mais elevada é o raciocínio matemático que lida apenas com coisaspensamento e não precisa nem de testemunhas nem do dado sensível baseiase na antiga distinção entre necessidade e contingência Segundo essa distinção tudo que é necessário e cujo contrário é impossível tem uma dignidade ontológica mais alta do que aquilo que é mas podería também não ser Essa convicção de que o raciocínio matemático deveria servir como paradigma para todo pensamento é provavelmente tão antiga quanto Pitágoras Em todo caso nós a encontramos na recusa platônica de admitir na filosofia alguém que não tenha previamente se exercitado em matemática Está ainda na raiz do dictamen rationis medieval o ditame da razão A verdade compele com a força da necessidade anagke que é muito mais forte que a força da violência bia eis um velho topos da filosofia grega e que ela possa compelir os homens com a irresistível força da Necessidade sempre foi um atributo compreendido como algo que a recomenda hyp autes aletheias anagkasthentes nas palavras de Aristóteles77 Como uma vez observou Mercier de La Rivière Euclide est um veritable despote et les vérités qu il nous a transmises sont des lois véritablement despotiques A mesma idéia levou Grotius à convicção de que nem mesmo Deus pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro uma afirmação muito questionável tanto porque poria Deus sob o ditame da necessidade quanto porque se verdadeira seria igualmente válida para a evidência da percepção sensorial e foi nestes termos que Duns Scotus a questionou A fonte da verdade matemática é o cérebro humano e o poder cerebral não é menos natural nem está menos equipado para nos guiar em um mundo que aparece do que estão nossos sentidos vinculados ao senso comum e à extensão daquilo que Kant denominou intelecto A melhor prova disso pode estar no fato bastante misterioso de que o raciocínio matemático a mais pura atividade de nosso cérebro e à primeira vista em função da abstração que faz de todas as qualidades dadas aos nossos sentidos a mais distanciada do mero raciocínio do senso comum possa assumir um papel tão desmesuradamente liberador na exploração científica do universo O intelecto o órgão do conhecimento e da cognição ainda pertence a esse mundo nas palavras de Duns Scotus ele está sob o domínio da natureza caditsub natura e carrega consigo todas as necessidades a que está sujeito um ser vivo dotado de órgãos sensoriais e poder cerebral O oposto de necessidade não é contingência ou acidente mas liberdade Tudo que aparece aos olhos humanos tudo que ocorre ao espírito humano tudo que acontece de pior ou de melhor aos mortais é contingente inclusive sua própria existência Todos sabemos que Unpredictably decades ago You arrived among that unending cascade of creatures spewed from Natures maw A random event says Science O que não nos impede de responder com o poeta Random my bottom A true miracle say I for who is not certain that he was meant to be79 Mas esse estar destinado a ser não é uma verdade é uma proposição altamente significativa Em outras palavras não há verdades além e acima das verdades factuais todas as verdades científicas são verdades factuais inclusive as engendradas pelo puro poder cerebral e expressas numa linguagem simbólica especialmente feita para esse fim e somente afirmações factuais podem ser verificadas cientificamente Assim a afirmação Um triângulo ri não é falsa mas sem sentido ao passo que a antiga demonstração ontológica da existência de Deus como a de Santo Anselmo de Canterbury não é válida e nesse sentido é falsa mas plena de significado O conhecimento sempre busca a verdade mesmo se essa verdade como nas ciências nunca é permanente mas uma veracidade provisória que esperamos trocar por outras mai s acuradas à medida que o conhecimento progri de Esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar com o impulso de conhecer O pensamento pode e deve ser empregado na busca de conhecimento mas no exercício desta função ele nunca é ele mesmo ele é apenas servo de um empreendimento inteiramente diverso Hegel parece ter sido o primeiro a protestar contra a tendência moderna que busca recolocar a filosofia em uma posição semelhante à que ocupava na Idade Média Esperavase naquela época que a filosofia fosse a serva da teologia aceitando humildemente suas conquistas e a ela se pedia que ordenasse de forma límpida e lógica essas conquistas e as apresentasse em um contexto plausível e conceitualmente demonstrável Agora esperase que a filosofia seja a serva das outras ciências Sua tarefa é demonstrar os métodos das ciências algo que Hegel denuncia como agarrar a sombra das sombras80 A verdade é aquilo que somos compelidos a admitir pela natureza dos nossos sentidos ou do nosso cérebro A proposição de que todos que são estavam destinados a ser pode ser facilmente refutada mas a certeza do eu estava destinado a ser sobreviverá intacta à refutação porque é inerente a toda reflexão em que o pensamento se ocupa do eusou Quando distingo verdade e significado conhecimento e pensamento e quando insisto na importância dessa distinção não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca da verdade do conhecimento Ao formular as irrespondíveis questões de significado os homens afirmamse como seres que interrogam Por trás de todas as questões cognitivas para as quais os homens encontram respostas escondemse as questões irrespondíveis que parecem inteiramente vãs e que desse modo sempre foram denunciadas É bem provável que os homens se viessem a perder o apetite pelo significado que chamamos pensamento e deixassem de formular questões irrespondíveis perdessem não só a habilidade de produzir aquelas coisaspensamento que chamamos obras de arte como também a capacidade de formular todas as questões respondíveis sobre as quais se funda qualquer civilização Nesse sentido a razão é a condição a priori do intelecto e da cognição e porque razão e intelecto estão assim conectados apesar da completa diferença de disposição e propósito é que os filósofos sentiramse sempre tentados a aceitar o critério da verdade tão válido para a ciência e para vida cotidiana como igualmente aplicável ao âmbito bastante extraordinário em que se movem Pois nosso desejo de conhecer quer surja de perplexidades práticas ou puramente teoréticas é saciado quando atinge o objetivo prescrito e enquanto a sede de conhecimento pode ser ela mesma inesgotável em virtude da imensidão do desconhecido a própria atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e armazenado por toda civilização como parte integrante de seu mundo O fracasso dessa acumulação e da especialização técnica necessária para conservála e aumentála tem como conseqüência o fim desse mundo particular A atividade do pensamento ao contrário não deixa nada de tangível em seu rastro e portanto a necessidade de pensar não pode nunca ser exaurida pelos insights dos homens sábios À medida que nos preocupamos com resultados positivos o máximo que podemos esperar da atividade do pensamento é o que Kant finalmente atingiu quando levou a cabo o intuito de estender embora apenas negativamente nosso uso da razão para além dos limites do mundo dado sensorialmente ou seja eliminar os obstáculos com os quais a razão se embaraça81 A famosa distinção kantiana entre Vernunft e Verstand entre a faculdade do pensamento especulativo e a capacidade de conhecer que surge da experiência sensorial onde todo pensamento é apenas um meio para alcançar a intuição Quaisquer que sejam as maneiras e os meios pelos quais um conhecimento esteja relacionado com objetos a intuição é o meio através do qual o conhecimento está em relação imediata com os objetos e para o qual todo pensamento como um meio se dirige82 tem conseqüências de alcance muito mais amplo e por vezes são distintas das conseqüências por ele reconhecidas83 Discutindo Platão Kant certa vez observou que não é nada incomum quando se comparam os pensamentos expressos por um autor com o seu assunto descobrir que compreendemos melhor esse autor do que ele próprio compreendeu a si mesmo À medida que o autor não determinou suficientemente seu conceito pode ser que algumas vezes ele tenha falado ou até pensado em sentido contrário à sua intenção84 Isso naturalmente é aplicável à própria obra de Kant Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento particularmente em relação a Deus à liberdade e à imortalidade para ele os mais elevados objetos do pensamento não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento assim como do conhecimento é a verdade e a cognição é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkenntnis conhecimento derivado da razão pura85 uma noção que para ele deve ter sido uma contradição em termos Kant nunca teve completa consciência de haver liberado a razão e o pensamento de haver justificado essa faculdade e sua atividade mesmo quando elas não se podem gabar de ter produzido quaisquer resultados positivos Como vimos ele afirmou ter achado necessário negar o conhecimento para abrir espaço para a e86 mas o que ele de fato negou foi o conhecimento das coisas incognoscíveis com isso abriu espaço para o pensamento não para a fé Acreditava ter lançado as fundações de uma metafísica sistemática futura como um legado para a posteridade87 e é verdade que sem a liberação do pensamento especulativo realizada por Kant o surgimento do idealismo alemão e de seus sistemas metafísicos dificilmente teria sido possível Mas a nova leva de filósofos Fichte Schelling Hegel não teria agradado Kant Liberados por ele do velho dogmatismo escolástico e de seus exercícios estéreis e encorajados a cultivar o pensamento especulativo eles seguiram na verdade o exemplo de Descartes saíram em busca de certeza apagaram novamente a linha demarcatória entre pensamento e conhecimento e acreditaram honestamente que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos O que minou a grande descoberta de Kant a distinção entre o conhecimento que usa o pensamento como um meio para um fim e o pensamento propriamente dito tal como surge da íntima natureza de nossa razão e se realiza em seu próprio benefício foi a permanente comparação que ele mesmo estabeleceu entre os dois termos Nesse contexto só faz sentido falar de erro ou ilusão quando somente a verdade para Kant a intuição e não o significado é o critério último para as atividades espirituais do homem Kant diz que é impossível que a razão o mais elevado tribunal de todos os direitos e de todas as pretensões de especulação tivesse de ser ela mesma a fonte de erros e ilusões88 Ele está certo mas apenas porque a razão como faculdade do pensamento especulativo não se move no mundo das aparências dessa maneira ela pode gerar absurdos e ausências de significado mas não erros ou ilusões que pertencem propriamente ao âmbito da percepção sensorial e do raciocínio do senso comum Ele mesmo reconhece isso quando chama as idéias da razão pura de meramente heurísticas em oposição aos conceitos ostensivos89 as idéias da razão pura realizam apenas ensaios não provam nem exibem nada Não se deve admitir que elas existam em si mesmas mas que tenham apenas a realidade de um esquema e devem ser vistas somente como análogas a coisas reais não como coisas reais em si mesmas90 Em outras palavras elas não alcançam nem são capazes de apresentar ou representar a realidade Não são apenas as coisas transcendentes do outro mundo que elas nunca atingem a realidade dada pela ação conjunta dos sentidos coordenados pelo senso comum e garantida pela pluralidade também se encontra além do alcance daquelas idéias Mas Kant não insiste nesse aspecto da questão porque teme que suas idéias possam transformarse em coisaspensamento vazias leere Gedankendinge i como invariavelmente acontece quando ousam mostrarse nuas ou seja não transformadas e de certo modo não adulteradas pela linguagem em nosso mundo e em nossa comunicação cotidiana Talvez seja por essa mesma razão que Kant equaciona o que aqui chamamos de significado com fim e até com intenção Zweck e Absicht a mais elevada unidade formal a que repousa unicamente sobre conceitos da razão é a unidade das coisas com relação a um fim O interesse especulativo da razão toma necessário encarar toda a ordem do mundo como se ela tivesse se originado na intenção de uma razão suprema92 Conseqüentemente a razão persegue fins específicos e possui intenções específicas quando se serve de suas idéias é a necessidade da razão humana e seu interesse por Deus pela liberdade e pela imortalidade que fazem os homens pensar Não obstante algumas páginas depois Kant irá admitir que o interesse meramente especulativo da razão com relação aos três objetos principais do pensamento a liberdade da vontade a imortalidade da alma e a existência de Deus é muito pequeno e apenas por causa dele dificilmente nos daríamos ao trabalho das investigações transcendentais já que quaisquer que fossem as descobertas sobre esses temas não seria possível que delas extraíssemos alguma utilidade algum uso in concreto93 Mas não precisamos ir buscar pequenas contradições na obra desse grande pensador Bem no meio das passagens acima citadas está a sentença que apresenta o maior contraste possível com relação à própria equação que ele faz entre razão e fim A razão pura não se ocupa de nada a não ser de si mesma Ela não pode ter qualquer outra vocação94 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 9 Invisibilidade e retirada do mundo Pensar querer e julgar são as três atividades espirituais básicas Não podem ser derivadas umas das outras e embora tenham certas características comuns não podem ser reduzidas a um denominador comum Para a pergunta O que nos faz pensar não há em última instância outra resposta senão a que Kant chamava de a necessidade da razão o impulso interno dessa faculdade para se realizar na especulação Algo semelhante pode ser dito da vontade que não pode ser movida nem pela razão nem pelo desejo Nada além da vontade é a causa total da volição nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate na notável fórmula de Duns Scotus ou voluntas vult se velle a verdade quer quererse como até mesmo São Tomás o menos voluntarista dentre aqueles que refletiram sobre esta faculdade teve que admitir1 Por fim o juízo a misteriosa capacidade do espírito pela qual são reunidos o geral sempre uma construção espiritual e o particular sempre dado à experiência sensível é uma faculdade peculiar e de modo algum inerente ao intelecto nem mesmo no caso dos juízos determinantes em que os particulares são subordinados a regras gerais sob a forma de um silogismo porque não dispomos de nenhuma regra para as aplicações da regra Saber como aplicar o geral ao particular é um dom natural suplementar cuja ausência é comumente chamada de estupidez e para tal falha não há remédio2 A natureza autônoma do juízo é ainda mais óbvia no caso do juízo reflexivo que não desce do geral para o particular mas vai do particular até o universal quando determina sem qualquer regra geral que isto é belo isto é feio isto é certo isto é errado e aqui por um princípio direto o julgar só pode adaptar se como uma lei de si mesmo e para si mesmo3 Denominei essas atividades espirituais de básicas porque elas são autônomas cada uma delas obedece às leis inerentes à própria atividade embora todas elas dependam de uma certa quietude das paixões que movem a alma daquela tranquilidade desapaixonada leidenschaftslose Stille que Hegel atribuiu à cognição meramente pensante4 Uma vez que é sempre a mesma pessoa cujo espírito pensa quer e julga a natureza autônoma dessas atividades produz grandes dificuldades A incapacidade da razão para mobilizar a vontade mais o fato de que o pensamento só pode compreender o que já é passado sem removêlo ou rejuvenecêlo a coruj a de Minerva só começa o seu vôo quando cai o crepúsculo5 deu origem a várias doutrinas que afirmam a impotência do espírito e a força do irracional em suma deu origem ao famoso pronunciamento de Hume segundo o qual a Razão é e deve ser somente a escrava das paixões isto é levou a uma inversão bastante ingênua da noção platônica de reinado incontestável da razão no domínio da alma Cumpre assinalar em todas essas teorias e doutrinas o monismo implícito a suposição de que por trás da óbvia multiplicidade das aparências do mundo e de modo mais pertinente ainda para o nosso contexto por trás da óbvia pluralidade das faculdades e das capacidades humanas deve haver uma unidade o velho hen pan o todo é um uma única origem ou um único soberano A autonomia das atividades espirituais além disso implica também que essas atividades não são condicionadas nenhuma das condições da vida ou do mundo lhes é diretamente correspondente Pois a tranquilidade desapaixonada da alma nãoé propriamente falando umacondição a mera tranqüilidade não apenas jamais produz a atividade espiritual a premência de pensar como também a necessidade da razão na maior parte das vezes silencia as paixões e não o contrário E certo que os objetos do meu pensar querer ou julgar aquilo de que o espírito se ocupa são dados pelo mundo ou surgem da minha vida neste mundo mas eles como atividades não são nem condicionados nem necessitados quer pelo mundo quer pela minha vida no mundo Os homens embora totalmente condicionados existencialmente limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte submetidos ao trabalho para viver levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes podem espiritualmente transcender todas essas condições mas só espiritualmente jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados podem querer o impossível como por exemplo a vida eterna e podem pensar isto é especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade como de fato não há em nosso mundo oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem em última instância da vida do espírito Em suma dependem do desempenho aparentemente não lucrativo dessas empresas espirituais que não produzem resultados e não nos dotam diretamente com o poder de agir Heidegger A ausência de pensamento é um poderoso fator nos assuntos humanos estatisticamente é o mais poderoso deles não apenas na conduta de muitos mas também na conduta de todos A premência a ascholia dos assuntos humanos requer juízos provisórios a confiança no hábito e no costume isto é nos preconceitos Sobre o mundo das aparências que afeta os nossos sentidos bem como a nossa alma e o nosso senso comum Heráclito falou verdadeiramente em palavras ainda não limitadas pela terminologia O espírito é separado de todas as coisas sophon esti panton kechorismenon E foi por causa dessa completa separação que Kant pôde acreditar tão firmemente na existência de outros seres inteligíveis em um ponto diferente do universo a saber criaturas capazes do mesmo tipo de pensamento racional ainda que não dotadas do nosso aparato sensorial e do nosso poder cerebral isto é sem nossos critérios de verdade e de erro e sem nossas condições de experiência e de conhecimento científico Vista da perspectiva do mundo das aparências e das atividades por ele condicionadas a principal característica das atividades espirituais é a sua invisibilidade Propriamente falando elas nunca aparecem embora se manifestem para o ego pensante volitivo ou judicativo que percebe estar ativo embora lhes falte a habilidade ou a urgência para aparecer como tal O lema epicurista lathe biosas viver oculto pode ter sido um conselho prudente é também uma descrição exata pelo menos negativamente do topos do lugar do homem que pensa e é na verdade o oposto do spectemuragendo que nos vejam em ação de John Adams Em outros termos ao invisível que se manifesta para o pensamento corresponde uma faculdade humana que não é apenas como as outras faculdades invisível porque latente uma mera possibilidade mas que permanece não manifesta em plena realidade Se considerarmos toda a escala das atividades humanas do ponto de vista da aparência encontraremos vários graus de manifestação Nem o labor nem a fabricação requerem a exibição da própria atividade somente a ação e a fala necessitam de um espaço da aparência bem como de pessoas que vejam e ouçam para se realizar efetivamente Mas nenhuma dessas atividades é invisível Se seguíssemos o costume lingüístico grego segundo o qual os heróis os homens que agem no sentido mais elevado eram chamados de andres epiphaneis homens completamente manifestos e altamente visíveis deveriamos chamar os pensadores de homens por definição e por profissão nãovisíveis7 Nesse e em outros aspectos o espírito é decisivamente diferente da alma o seu principal competidor ao cargo de legislador do nosso interior de nossa vida nãovisível A alma em que surgem nossas paixões sentimentos e emoções é um torvelinho de acontecimentos mais ou menos caóticos que não encenamos ativamente mas que sofremos pathein e que nos casos de grande intensidade pode nos dominar como a dor ou o prazer sua invisibilidade assemelhase à dos nossos órgãos internos cujo funcionamento ou nãofuncionamento também percebemos sem controlar A vida do espírito ao contrário é pura atividade E essa atividade assim como qualquer outra pode ser iniciada e paralisada à vontade Além disso embora seu lugar seja invisível as paixões têm uma expressividade própria coramos de vergonha ou de constrangimento empalidecemos de medo ou de raiva nos iluminamos de felicidade ou aparentamos tristeza ou desânimo e precisamos de um considerável treino de autocontrole para impedir que as paixões se mostrem e apareçam A única manifestação externa do espírito é o alheamento uma óbvia desatenção em relação ao mundo que nos cerca algo de inteiramente negativo que sequer chega a sugerir o que está de fato se passando intemamente A simples invisibilidade o simples fato de que algo possa ser sem ser manifesto aos olhos deve ter sido sempre surpreendente Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre alma espírito e consciência elementos freqüentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos Desse modo Platão concluiu que a alma é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis E mesmo Kant o mais crítico dos filósofos com relação aos preconceitos metafísicos tradicionais enumera ocasionalmente dois tipos de objetos Eu enquanto pensamento sou um objeto de sentido interno e me chamam alma O objeto dos sentidos externos é chamado corpo8 Isso é evidentemente apenas uma variante da velha teoria metafísica dos dois mundos Fazse uma analogia em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos de modo que um sentido interno a saber a intuição da introspecção é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra intemamente com a mesma segurança que os nossos sentidos externos fazem ao lidar com o mundo exterior No que diz respeito à alma a analogia não é totalmente ilusória Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados mas são paixões provocadas por eventos externos que afetam a alma e produzem certas reações a saber as pathemata da alma seus humores e estados passivos essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis como observou Kant somente com base na suposição da experiência externa9 Ademais a sua própria passividade o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada resulta em uma impressionante semblância de estabilidade Esta semblância produz então certas ilusões da introspecção que por sua vez levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades como também pode governar as paixões da alma como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estóicas do controle da dor e do prazer pelo espírito sua falácia de que é possível sentirse feliz ao ser assado no Touro de Falera repousa em última instância sobre a equação entre espírito e alma isto é reside em atribuir à alma e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito Nenhum ato do espírito muito menos o ato de pensar contentase com o seu objeto tal como lhe é dado Ele sempre transcende a pura imediatez do que quer que tenha despertado sua atenção e transforma isso no que Petrus Iohannis Olivi o filósofo franciscano da Vontade no século XIII10 chamou de experimentam suitatis um experimento do Eu comigo mesmo Uma vez que a pluralidade é uma das condições existenciais básicas da vida humana na Terra de modo que inter homines esse estar entre os homens era para os romanos o sinal de estar vivo ciente da realidade do mundo e do Eu e inter homines esse desinere deixar de estar entre os homens um sinônimo para morrer estar sozinho e estabelecer um relacionamento consigo mesmo é a característica mais marcante da vida do espírito Só podemos dizer que o espírito tem sua vida própria à medida que ele efetiva esse relacionamento no qual existencialmente falando a pluralidade é reduzida à dualidadejá implícita no fato e na palavra consciência ou syneidenaiconhecer comigo mesmo Chamo esse estado existencial no qual faço companhia a mim mesmo de estar só para distinguilo da solidão na qual também me encontro sozinho mas abandonado não apenas de companhia humana mas também de minha própria companhia E somente na solidão que me sinto privado da companhia humana e é somente na aguda consciência de tal privação que os homens podem chegar a existir realmente no singular assim como talvez seja somente nos sonhos ou na loucura que eles percebam completamente o horror impronunciável e insuportável desse estado Todas as atividades do espírito testemunham elas próprias por sua natureza reflexiva uma dualidade inerente à consciência o agente espiritual só pode ser ativo agindo implícita ou explicitamente sobre si mesmo A consciência o eu penso de Kant não somente acompanha todas as outras representações mas todas as minhas atividades nas quais no entanto posso estar inteiramente esquecido do meu eu A consciência como tal antes de se efetivar no estar só chega no máximo a perceber a igualdade uniforme do eusou Tenho consciência de mim não de como apareço para mim nem de como sou eu mesmo mas somente que sou12 que assegura a continuidade idêntica de um eu através das múltiplas representações experiências e memórias de uma vida Como tal ela expressa o ato de determinar a minha existência13 As atividades espirituais e como veremos mais adiante especialmente o pensar o diálogo sem som de mim comigo mesmo podem ser entendidas como a efetivação da dualidade originária ou da cisão entre mim e meu eu intrínseca a toda consciência Mas essa pura consciência de mim da qual estou por assim dizer inconscientemente consciente não é uma atividade porque acompanha todas as outras atividades ela é a garantia de um eusoueu completamente silencioso A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som mas nunca é silenciosa e jamais pode se esquecer completamente de si pela natureza reflexiva de todas as suas atividades Todo cogitare não importa qual seja seu objeto é também um cogito me cogitare toda volição é um volo me velle mesmo o juízo só é possível por um retour secret sur moimême como observou Montesquieu Essa reflexi vidade parece apontar para um lugar de interioridade dos atos do espírito construído sob o princípio do espaço externo no qual os meus atos não espirituais têm lugar Mas a idéia de que essa interioridade diferentemente da interioridade passiva da alma só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta nos primeiros séculos da Era Cristã da Vontade e das experiências do ego volitivo Pois só estou consciente das faculdades do espírito e de sua reflexividade durante sua atividade E como se os próprios órgãos do pensamento da vontade ou do juízo só viessem a existir quando penso quero ou julgo em seu estado latente supondo que tal latência exista anteriormente à sua efetivação não estão abertos à introspecção O ego do pensamento do qual tenho perfeita consciência enquanto dura a atividade do pensamento desaparecerá como se fosse uma simples miragem tão logo o mundo real volte a se impor Uma vez que as atividades do espírito por definição nãoaparentes ocorrem em um mundo de aparências e em um ser que participa dessas aparências através de seus órgãos sensoriais receptivos bem como através de sua própria capacidade e de sua necessidade de aparecer aos outros elas só podem existir por meio de uma retirada deliberada da esfera das aparências Tratase não tanto de uma retirada do mundo somente o pensamento por sua tendência a generalizar isto é por sua preocupação especial com o geral em contraposição ao particular tende a se retirar completamente do mundo mas de uma retirada do mundo que está presente para os sentidos Todo ato espiritual repousa na faculdade do espírito ter presente para si o que se encontra ausente dos sentidos A re presentação o fazer presente o que está de fato ausente é o dom singular do espírito E uma vez que toda a nossa terminologia é baseada em metáforas retiradas da experiência da visão esse dom é chamado de imaginação definida por Kant como a faculdade da intuição mesmo sem a presença do objeto14 A faculdade do espírito ter presente o que está ausente naturalmente não é restrita às imagens espirituais de objetos ausentes a memória quase sempre guarda e mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais e a vontade antecipa o que o futuro poderá trazer mas que ainda não é Somente pela capacidade do espírito tornar presente o que está ausente é que podemos dizer não mais e constituir um passado para nós mesmos ou dizer ainda não e nos preparar para um futuro Mas isso só é possível para o espírito depois de ele ter se retirado do presente e das urgências da vida cotidiana Assim para querer o espírito deve se retirar da imediaticidade do desejo que sem refletir e sem reflexividade estende imediatamente a mão para pegar o objeto desejado pois a vontade não se ocupa de objetos mas de projetos como por exemplo com a futura disponibilidade de um objeto que ela pode ou não desejar no presente A vontade transforma o desejo em uma intenção E por último o juízo seja ele estético legal ou moral pressupõe uma retirada decididamente não natural e deliberada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos tal como são estabelecidos pela minha posição no mundo e pela parte que nele desempenho Pareceme errado tentar estabelecer uma ordem hierárquica entre as atividades do espírito mas também parcccmc inegável que existe uma ordem de prioridades Se o poder da representação e o esforço para dirigir a atenção do espírito para o que escapa da atenção da percepção sensível não se antecipassem e preparassem o espírito para julgar seria impossível pensar como exerceriamos o querer e o julgar isto é como poderiamos lidar com coisas que ainda não são ou que já não são mais Em outras palavras aquilo que geralmente chamamos de pensar embora incapaz de mover a vontade ou de prover o juízo com regras gerais deve preparar os particulares dados aos sentidos de tal modo que o espírito seja capaz de lidar com eles na sua ausência em suma ele deve desensorializálos A melhor descrição que conheço desse processo de preparação é dada por Santo Agostinho A percepção sensível diz ele a visão que era externa quando o sentido era formado por um corpo sensível é seguida por uma visão similar interna a imagem que o representa15 Essa imagem é então guardada na memória pronta para se tomar uma visão em pensamento no momento cm que o espírito a agarra o decisivo é que o que fica na memória a mera imagem daquilo que era real é diferente da visão em pensamento o objeto deliberadamente relembrado O que fica na memória é uma coisa e algo diferente surge quando lembramos16 pois o que é ocultado e mantido na memória é uma coisa e o que é impresso por ela no pensamento daquele que relembra é outra17 Portanto o objeto do pensamento é diferente da imagem assim como a imagem é diferente do objeto sensível e visível do qual é uma simples representação E por causa dessa dupla transformação que o pensamento de fato vai mais longe ainda para além da esfera de toda imaginação possível onde nossa razão proclama a infinidade numérica que nenhuma visão no pensamento de coisas corpóreas jamais alcançou ou nos ensina que até mesmo os corpos mais minúsculos podem ser infinitamente divididos18 A imaginação portanto que transforma um objeto visível em uma imagem invisível apta a ser guardada no espírito é a condição sine qua non para fornecer ao espírito objetosdepensamento adequados mas estes só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente relembra recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha a atrair o seu interesse a ponto de induzir a concentração nessas operações o espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para ir mais além em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes e que não podem ser lembradas porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível Embora essa última classe de objetosdepensamento conceitos idéias categorias e assemelhados tenha se tomado o tema especializado da filosofia profissional não há nada na vida comum do homem que não possa se tornar alimento para o pensamento isto é que não possa estar sujeito à dupla transformação que prepara um objeto sensível tomandoo propriamente objetodepensamento Todas as questões metafísicas que a filosofia escolheu como tópicos especiais vêm das experiências do senso comum a necessidade da razão a busca de significado que faz com que os homens formulem questões não difere em nada da necessidade que os homens têm de contar a história de algum acontecimento de que foram testemunhas ou de escrever poemas a respeito dele Em todas essas atividades reflexivas os homens movemse fora do mundo das aparências e usam uma linguagem cheia de palavras abstratas que é claro são parte integrante da fala cotidiana bem antes de se tomarem moedacorrente da filosofia A retirada do mundo das aparências é então a única condição anterior essencial para o pensamento embora não para a filosofia tecnicamente falando Para pensarmos em alguém este alguém deve ser afastado da nossa presença enquanto estivermos com ele não pensaremos nele ou sobre ele o pensamento sempre implica lembrança todo pensar é estritamente falando um repensar É claro que acontece de começarmos a pensar em alguém ou em algo ainda presente nesse caso teremos nos retirado secretamente do ambiente que nos cerca passando a nos portar como se já estivéssemos ausentes Essas observações podem indicar por que o pensar a busca de significado oposta a sede de conhecimento e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento foi tão freqüentemente considerada antinatural como se os homens sempre que refletissem sem propósito específico ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estaraí do mundo e pela sua própria existência estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana O pensar enquanto tal e não apenas como o levantamento das questões últimas irrespondíveis mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos está como observou Heidegger fora de ordem grifo nosso19 Ela interrompe qualquer fazer qualquer atividade comum seja ela qual for Todo pensar exige um pareepense As teorias dos dois mundos quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante E uma vez que qualquer coisa que impede o pensar de pertencer ao mundo das aparências e às experiências do sensocomum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade realness que tenho do meu próprio ser é como se de fato o pensar me paralisasse do mesmo modo que o excesso de consciência pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais Taccomplissement dun acte qui doit être réflexe ou ne peut être como sentenciou Valéry Identificando o estado de consciência com o estado de pensar ele acrescenta on en pourrait tirer toute une philosophic que je résumerais ainsi tantôtje pense et tantôt je suis ora penso e ora sou20 Essa observação extraordinária totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias a saber que a mera consciência de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão que somente o corpo do filósofo isto é o que o faz aparecer entre as outras aparências ainda habita a cidade dos homens como se pensando os homens se retirassem do mundo dos vivos A noção bastante curiosa de uma afinidade entre a filosofia e a morte persistiu ao longo da história da filosofia Por muitos séculos esperavase que a filosofia ensinasse os homens a morrer foi nesse espírito que os romanos decidiram que o estudo da filosofia era uma ocupação adequada somente aos velhos ao passo que os gregos sustentavam que ela deveria ser estudada pelos jovens Foi Platão contudo o primeiro a observar que o filósofo aparece para os que não fazem filosofia como se estivesse perseguindo a morte21 Assim como foi Zenão o fundador do estoicismo quem relatou no mesmo século que o oráculo de Delfos ao ser indagado sobre o que fazer para chegar à melhor vida havia respondido Tome a cor dos mortos22 Em tempos modernos não é incomum encontrar quem defenda como Schopenhauer que a nossa mortalidade é a fonte eterna da filosofia que a morte é de fato o gênio inspirador da filosofia e que sem a morte sequer haveria qualquer atividade filosófica2 E mesmo o jovem Heidegger de Sein und Zeit ainda encarava a antecipação da morte como a experiência decisiva pela qual o homem poderia alcançar o seu eu autêntico e se libertar da inautenticidade do Eles sem perceber que essa doutrina de fato originavase como indicara Platão da opinião de muita gente 10 A luta interna entre pensamento e senso comum Tome a cor dos mortos deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas aparece para o senso comum dos homens já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer O próprio fato de sempre ter havido homens ao menos desde Parmênides que escolheram deliberadamente este modo de vida sem serem candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante E muito mais o próprio senso comum do filósofo o fato de ser ele um homem como você e eu que o toma consciente de estar fora de ordem quando se empenha em pensar Ele não está imune à opinião comum pois afinal compartilha da qualidade do ser comum commonness a todos os homens e é seu próprio senso de realidade realness que o faz suspeitar da atividade de pensar Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do sensocomum e contra a insistência na falta de sentido de sua busca por significado o filósofo sentese inclinado a responder nos termos do senso comum termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a morte é o maior dentre todos os males o filósofo da época de Platão quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo é tentado a dizer pelo contrário a morte é uma divindade uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo24 Desse modo ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades da mesma forma que a consciência impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente25 Toda a história da filosofiaque nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante encontrase atravessada por uma luta interna entre o senso comum este sexto sentido que adequa nossos cinco sentidos a um mundo comum e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão que obrigam o homem a afastarse por períodos consideráveis deste mundo Os filósofos interpretaram essa luta interna como a hostilidade natural da multidão e de suas opiniões com relação aos poucos e à sua verdade mas são bastante escassos os fatos históricos capazes de sustentar essa interpretação Há o julgamento de Sócrates que provavelmente levou Platão a declarar no final da parábola da Caverna quando o filósofo retoma de seu vôo solitário ao céu das idéias para a escuridão da caverna e para a companhia de seus semelhantes que tivesse a multidão uma única chance poria suas mãos sobre os poucos e os mataria Essa interpretação do julgamento de Sócrates ecoa através da história da filosofia até Hegel Deixando de lado algumas dúvidas muito justificadas sobre a versão de Platão para o fato26 não existem exemplos de relatos em que a multidão por sua própria iniciativa tenha declarado guerra aos filósofos No que diz respeito aos muitos e aos poucos tem ocorrido justo o contrário Foi o filósofo que espontaneamente abandonou a Cidade dos homens e dirigiuse àqueles que deixou para trás dizendo que no melhor dos casos eles haviam sido enganados pela confiança que depositaram em seus sentidos pela sua disposição em acreditar nos poetas e a se deixar instruir pela gentalha em lugar de usar os seus espíritos No pior dos casos contentavamse em viver apenas para o prazer sensorial e para se fartar como o gado27 É óbvio que a multidão nunca se parece com um filósofo Mas isso não significa como afirmou Platão que os que fazem filosofia são necessariamente amaldiçoados e perseguidos pela multidão como um homem caído entre feras selvagens28 O modo de vida do filósofo é solitário mas esse estar só é livremente escolhido O próprio Platão quando enumera as condições naturais que favorecem o desenvolvimento do dom filosófico nas mais nobres naturezas não menciona a hostilidade da multidão Ao invés ele fala de exílios de um grande espírito nascido em um pequeno estado cujos assuntos políticos passam despercebidos e de outras circunstâncias tais como a saúde precária que afasta essas naturezas dos negócios públicos do povo29 Mas essa inversão de posições tomar a luta entre pensamento e senso comum o resultado dos poucos voltandose contra os muitos embora ligeiramente mais razoável e melhor documentada a saber na pretensão que o filósofo tem de governar do que a mania persecutória tradicional do filósofo não está provavelmente mais próxima da verdade A explicação mais verossímil para a disputa entre o senso comum e o pensamento profissional ainda é o ponto já mencionado o de que estamos aqui lidando com uma luta interna visto que foram seguramente os próprios filósofos os primeiros a tomar consciência de todas as objeções que o senso comum podería levantar contra a filosofia E o próprio Platão em um contexto diferente em que ele não está se ocupando de uma política digna da natureza filosófica desfaz com risos a pergunta a respeito da possibilidade de um homem que se ocupa das coisas divinas estar também apto ao trato das coisas humanas30 O riso e não a hostilidade é a reação natural da multidão diante das preocupações do filósofo e da aparente inutilidade daquilo de que ele se ocupa Esse riso é inocente e muito diferente do ridículo com que freqüentemente se ataca um adversário em discussões sérias em que ele pode vir a converterse em uma temível arma Mas Platão que argumentou nas Leis em favor da proibição explícita de qualquer escrito que ridicularizasse qualquer cidadão31 temia o ridículo que há em todo riso O que é decisivo aqui não são as passagens dos diálogos políticos as Leis ou a República contra a poesia e especialmente contra os comediantes mas a maneira totalmente séria que conta a história da camponesa trácia explodindo às gargalhadas quando vê Tales cair no poço enquanto observava os movimentos dos corpos celestes declarando que ele estava ansioso para conhecer as coisas dos céus enquanto lhe escapavam as que se encontravam aos seus pés E Platão acrescenta Qualquer pessoa que dedique sua vida à filosofia está vulnerável a esse tipo de escárnio Toda a ralé se juntará à camponesa rindo dele pois em seu desamparo ele parece um tolo32 É estranho que na longa história da filosofia tenha ocorrido exatamente a Kant que se encontrava tão singularmente livre de todos os vícios especificamente filosóficos que o dom para o pensamento especulativo poderia ser como aquele dom com que Juno honrou Tirésias a quem cegou para concederlhe o dom da profecia Kant suspeitava que a familiaridade com outro mundo podia ser obtida aqui somente privandose de algum dos sentidos necessários no mundo presente Seja como for Kant parece ter sido um caso único entre os filósofos revelouse suficientemente seguro para juntarse ao riso do homem comum Provavelmente sem ter em mente a história de Platão sobre a camponesa trácia ele conta com indiscutível bom humor uma história virtualmente idêntica envolvendo Tycho de Brahe e seu cocheiro o astrônomo havia proposto durante uma viagem noturna que se orientassem pelas estrelas de modo a encontrar o caminho mais curto ao que lhe responde o cocheiro Caro senhor é possível que conheças muito sobre os corpos celestes mas aqui na Terra és um tolo33 Sob o pressuposto de que o filósofo não necessita da ralé para informálo sobre sua tolice o senso comum que ele compartilha com todos os homens deve alertálo a tempo de prever o riso de que será objeto em resumo sob o pressuposto de que aquilo com o que estamos lidando é uma luta interna entre o raciocínio do senso comum e o pensamento especulativo luta que se passa no próprio espírito do filósofo examinemos mais de perto a afinidade entre a morte e a filosofia Do ponto de vista do mundo das aparências o mundo comum no qual aparecemos pelo nascimento e do qual desaparecemos pela morte é natural o desejo de conhecer nosso hábitat comum e de reunir todo tipo de conhecimento a seu respeito Em função da necessidade que o pensamento tem de transcender o mundo dele nos afastamos Metaforicamente desaparecemos deste mundo e isso pode ser compreendido do ponto de vista do que é natural e do nosso raciocínio de senso comum como a antecipação de nossa partida final ou seja de nossa morte Foi assim que Platão descreveu a situação no Fedon da perspectiva da multidão os filósofos só fazem buscar a morte A multidão poderia concluir caso os filósofos não se preocupassem com isso que o melhor para eles seria morrer34 E Platão não está muito seguro de que a multidão não esteja certa a não ser pelo fato de que eles não sabem em que sentido isso deve se realizar O verdadeiro filósofo o que passa a vida inteira imerso em pensamentos tem dois desejos O primeiro é que possa estar livre de todo tipo de ocupação especialmente livre de seu corpo que sempre exige cuidados e se interpõe em nosso caminho a cada passo e que provoca confusão gera problemas e pânico35 O segundo é que ele possa vir a viver em um além onde essas coisas com que o pensamento está envolvido tais como a verdade a justiça e a beleza não estarão menos acessíveis nem serão menos reais do que tudo o que agora podemos perceber com os sentidos corporais36 Mesmo Aristóteles em um de seus escritos mais populares lembra aos seus leitores aquelas ilhas dos bem aventurados que são bemaventurados porque lá os homens não necessitariam de nada e nada teria para eles utilidade de tal modo que só restariam pensamento e contemplação theorem ou seja o que agora mesmo chamávamos de uma vida livre37 Em resumo a reviravolta inerente ao pensamento não é de modo algum uma empreitada inofensiva No Fedon ela inverte todas as relações os homens que naturalmente se esquivam da morte como o maior de todos os males voltamse agora para ela como o maior de todos os bens Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia ou mais academicamente está posto em linguagem metafórica Os filósofos não são famosos por seus suicídios nem mesmo quando afirmam com Aristóteles em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikosx que os que querem se divertir deveríam filosofar ou deixar a vida pois tudo o mais parece tolo e sem sentido Mas a metáfora da morte ou melhor a inversão metafórica da vida e da morte o que usualmente chamamos vida é morte o que habitualmente chamamos morte é vida não é arbitrária embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático Se o pensamento estabelece suas próprias condições se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado quando remove tudo que está à mão isso acontece para que o distante se tome manifesto Formulando de uma maneira simples no alheamento proverbial do filósofo todo o presente está ausente porque algo realmente ausente está presente em seu espírito e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo Tanto a hostilidade do filósofo com relação à política os pequenos assuntos humanos39 quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais Elas são inerentes à própria experiência Enquanto pensa a pessoa não tem consciência de sua corporalidade Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo e foi isso também que fez Descartes concluir que a alma pode pensar sem o corpo com a ressalva de que enquanto ela estiver ligada ao corpo pode ser importunada em suas operações pela má disposição dos órgãos corporais40 Mnemosyne Memória é a mãe das Musas e a lembrança a mais freqüente e também a mais básica experiência do pensamento está relacionada às coisas ausentes que desapareceram dos meus sentidos Entretanto o ausente que é reunido e feito presente no meu espírito uma pessoa um evento um monumento não pode aparecer do mesmo modo que apareceu aos meus sentidos como se a lembrança fosse uma espécie de feitiçaria Para aparecer ao meu espírito a lembrança deve primeiramente ser dessensorializada e a capacidade para transformar objetos sensíveis em imagens é chamada imaginação Sem essa faculdade que toma presente o que está ausente em uma forma dessensorializada não se processa nenhum pensamento e seria impossível haver qualquer série de pensamento O pensamento portanto é fora de ordem não só porque interrompe todas as demais atividades necessárias para os assuntos vitais e para a manutenção da vida mas também porque inverte todas as relações habituais O que está perto e aparece diretamente aos nossos sentidos agora está distante e o que se encontra distante está realmente presente Quando estou pensando não me encontro onde realmente estou estou cercado não por objetos sensíveis mas por imagens invisíveis para os outros E como se eu tivesse me retirado para uma terra imaginária a terra dos invisíveis da qual nada poderia saber não fosse esta faculdade que tenho de lembrar e de imaginar O pensamento anula distâncias temporais e espaciais Posso antecipar o futuro pensálo como se já fosse presente e lembrar do passado como se ele não tivesse desaparecido Já que o tempo e o espaço da experiência comum não podem nem mesmo ser pensados sem um contínuo que se estende do próximo ao distante do agora ao passado ou ao futuro do aqui a qualquer ponto do espaço esquerda e direita à frente e atrás acima e abaixo eu poderia dizer com alguma razão que não apenas as distâncias mas também o tempo e o espaço são abolidos no processo do pensamento No que diz respeito ao espaço não conheço nenhum conceito filosófico ou metafísico que pudesse estar razoavelmente relacionado a esta experiência Mas tenho certeza de que o nunc stans o agora permanente tomouse o símbolo da eternidade o nunc aeternitatis Duns Scotus para a filosofia medieval porque era uma descrição convincente de experiências que ocorriam na meditação bem como na contemplação os dois modos de pensamento conhecidos pelo cristianismo Acabei de me referir aos objetos sensíveis dessensorializados isto é aos invisíveis que pertencendo ao mundo das aparências desapareceríam temporariamente ou ainda não teriam alcançado nosso campo de percepção e que são trazidos à nossa presença pela lembrança ou pela antecipação O que realmente ocorre nesses casos foi eternizado na história de Orfeu e Eurídice Orfeu desceu ao Hades para resgatar sua esposa morta e lhe disseram que a poderia ter de volta sob a condição de que não se voltasse para vêla enquanto ela o seguia Mas quando se aproximaram do mundo dos vivos Orfeu olhou para trás e Eurídice imediatamente desapareceu De modo mais preciso do que qualquer linguagem terminológica faria o velho mito conta o que acontece no momento em que o processo do pensamento chega ao fim no mundo da vida ordinária todos os invisíveis tomam a sumir Também convém que o mito se refira à lembrança e não à antecipação A faculdade de antecipar o futuro em pensamento deriva da faculdade de lembrar o passado que por sua vez enraízase na habilidade ainda mais elementar de dessensorializar e de ter presente diante e não apenas em do seu espírito o que está fisicamente ausente A habilidade de criar entidades fictícias no espírito tais como o unicórnio e o centauro ou os personagens fictícios de uma história uma habilidade usualmente denominada imaginação produtiva é inteiramente dependente da assim chamada imaginação reprodutiva Na imaginação produtiva os elementos do mundo visível são rearranjados isto é possível porque os elementos agora livremente manejados já atravessaram o processo de dessensorialização do pensamento Não é a percepção sensorial na qual experimentamos as coisas que estão diretamente à mão mas a imaginação que vem depois dela que prepara os objetos de nosso pensamento Antes de levantarmos questões tais como o que é a felicidade o que é a justiça o que é o conhecimento e assim por diante é preciso que tenhamos visto gente feliz e infeliz que tenhamos testemunhado atos justos e injustos experimentado o desejo de conhecer sua boa realização ou sua frustração Além do mais temos que repetir a experiência direta cm nossos espíritos depois de ter abandonado a cena em que ela ocorreu Repetindo todo pensar é um repensar Ao repetir na imaginação nós dessensorializainos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos Somente nessa forma imaterial é que nossa faculdade de pensar pode começar a se ocupar com esses dados Essa operação precede todos os processos de pensamento tanto o pensamento cognitivo quanto o pensamento sobre significados apenas o raciocínio lógico em que o espírito em estreita coerência com suas próprias leis produz uma cadeia dedutiva a partir de uma dada premissa cortou definitivamente todos os vínculos com a experiência vivida Ele pode operar dessa forma porque supõese que a premissa seja fato ou hipótese é autoevidente e portanto não está sujeita ao exame do pensamento Mesmo simplesmente contar o que aconteceu quer a história seja bem ou mal sucedida é uma operação precedida pela dessensorialização A língua grega contém esse elemento temporal em seu próprio vocabulário a palavra conhecer como já fiz notar anteriormente é derivada da palavra ver Ver é idein conhecer é eidenai ou seja ter visto Primeiro você vê depois conhece Em outras palavras todo pensamento deriva da experiência mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento Do ponto de vista do pensamento a vida em seu puro estaraí é sem sentido Do ponto de vista da imediaticidade da vida e do mundo dado aos sentidos o pensamento é como Platão indicou uma morte em vida O filósofo que vive na terra do pensamento Kant41 será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida Como não coincide com o eu real o ego pensante não tem consciência de sua própria retirada do mundo comum das aparências Visto de sua perspectiva é como se o invisível viesse primeiro como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências que por sua própria presença distraem o espírito e i mpedem sua atividade estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito Dito de outra maneira o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito cm relação ao mundo aparece na perspectiva do próprio espírito como uma retirada do Ser ou um esquecimento do Ser Seinsentzug e Seinsvergessenheit Heidegger E é verdade que a vida cotidiana a vida dos Eles é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é visível para o espírito A busca de significado não só está ausente e é inteiramente inútil no curso rotineiro dos negócios humanos como ao mesmo tempo seus resultados permanecem incertos e não verificáveis O pensamento c de alguma forma autodestrutivo Na privacidade das notas postumamente publicadas Kant escreveu Não concordo com a regra segundo a qual algo que ficou provado pelo uso da razão pura não está mais sujeito à dúvida como se isso fosse um sólido axioma ou ainda não compartilho da opinião segundo a qual depois que se está convencido de alguma coisa não se pode duvidar dela Na filosofia pura isto é impossível Nosso espírito tem uma aversão natural a isto grifo nossos42 Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope desfazse toda manhã o que se terminou de fazer na noite anterior43 Pois a necessidade de pensar jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de homens sábios Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento e os pensamentos que ontem tive irão satisfazer essa necessidade hoje apenas porque quero e porque sou capaz de pensálos novamente Estivemos considerando as principais características da atividade de pensar Sua retirada do mundo das aparências do mundo do senso comum sua tendência autodestruti va em relação a seus próprios resultados sua reflexi vidade e a consciência da pura atividade que a acompanha Além disso tudo há o estranho fato de que só percebo minhas faculdades espirituais enquanto a atividade perdura o que significa que o pensamento não pode jamais se estabelecer solidamente como uma das ou mesmo a mais elevada propriedade da espécie humana o homem pode ser definido como o animal que fala no sentido aristotélico de logon echon dotado de fala mas não como o animal que pensa o animal rationale Nenhuma dessas características escapou à atenção dos filósofos O que há de curioso entretanto é que quanto mais profissionais eram os pensadores quanto mais eles cresciam em nossa tradição filosófica mais inclinavamse a encontrar maneiras e meios de reinterpretar esses traços inerentes do pensamento de forma a armaremse contra as objeções do raciocínio do senso comum com relação às inutilidades e à irrealidade de todo o empreendimento filosófico A incursão por que os filósofos avançam nessas reinterpretações bem como aqualidade de sua argumentação seria inexplicável se eles se dirigissem mais à famosa multidão que nunca se importou com eles e permaneceu alegremente ignorante com relação à argumentação filosófica em vez de serem primordialmente estimulados por seu próprio senso comum e pela autodesconfiança que inevitavelmente acompanha a suspensão do pensamento O mesmo Kant que confiou suas verdadeiras experiências de pensamento à privacidade de suas anotações anunciou publicamente que havia lançado as fundações de todo sistema metafísico futuro Hegel o último e o mais engenhoso dentre os construtores de sistemas transformou o ato característico que o pensamento tem de desfazer seus próprios resultados no enorme poder de negação sem o qual seria impossível qualquer movimento ou desenvolvimento Para Hegel a mesma cadeia inexorável de conseqüências em desenvolvimento que regula a natureza orgânica da passagem da semente ao fruto na qual cada fase sempre nega e cancela a precedente regulamenta a negação do processo pensante do espírito exceção feita no caso do pensamento que é mediatizado pela consciência e pela vontade através das atividades espirituais ao fato de que ele pode ser visto como produzindose a si mesmo O espírito é apenas aquilo que ele faz de si mesmo e a si mesmo realmente realizando o que potencialmente ele é Para começar isso deixa incidentalmente sem resposta a questão de quem fez a potencialidade do espírito Mencionei Hegel porque grandes partes de sua obra especialmente o prefácio da Fenomenologia do espírito podem ser lidas como uma polêmica desenvolvida contra o senso comum Desde muito cedo 1801 ele havia afirmado com humor truculento obviamente ainda incomodado pela camponesa trácia de Platão e seu riso inocente que realmente o mundo da filosofia é para o senso comum um mundo virado de cabeça para baixo44 Assim como Kant havia começado a tratar o escândalo da Razão isto é quando a razão queria conhecer viase às voltas com suas próprias antinomias também Hegel pôsse a tratar da impotência da razão kantiana pois ela só poderia alcançar um Ideal e um Dever e declarou que pelo contrário a razão por causa da Idéia é das schlechthin Màchtige o poder como tal45 A importância de Hegel em nosso contexto está no fato de que ele talvez mais do que qualquer outro filósofo atesta a luta interna entre a filosofia e o senso comum porque ele por natureza é igualmente bem dotado como historiador e pensador Ele sabia que a intensidade das experiências do ego pensante devese ao fato de elas serem pura atividade a própria essência do espírito é ação Ele faz de si mesmo o que essencialmente ele é ele é seu próprio produto sua própria obra E Hegel conhecia a reflexividade do espírito Nesta ânsia de atividade ele apenas lida consigo mesmo46 Até admitia a seu modo a tendência do espírito para destruir seus próprios resultados Assim o espírito está em guerra consigo mesmo Deve superar a si mesmo como seu próprio inimigo e formidável obstáculo47 Mas esses insights da razão especulativa sobre o que ela está realmente fazendo quando do ponto de vista das aparências não está fazendo nada ele transformouos em peças de conhecimento dogmático tratandoos como resultados da cognição Dessa maneira foi possível adequálos a um sistema abrangente onde então teriam a mesma realidade que os resultados das demais ciências resultados que por outro lado ele denunciou como produtos essencialmente desimportantes do raciocínio do senso comum ou conhecimento ilusório E de fato o sistema com sua organização estritamente arquitetônica pode dar pelo menos uma impressão da realidade aos fugazes insights da razão especulativa Se a verdade é tomada como o mais elevado objeto do pensamento então o verdadeiro é real apenas como sistema Apenas como um artefato mental desse tipo ele tem alguma chance de aparecer e adquirir aquele mínimo de durabilidade que exigimos de qualquer real como mera proposição ele dificilmente sobreviverá à batalha de opiniões Para ter certeza de que eliminou a noção de senso comum segundo a qual o pensamento lida com abstrações e irrelevâncias o que de fato ele não faz Hegel afirmou sempre no mesmo tom polêmico que o Ser é Pensamento dass das Sein Denken ist que apenas o espiritual é real e que apenas aquelas generalidades com as quais lidamos no pensamento realmente são48 Ninguém lutou com mais determinação contra o particular o eterno obstáculo do pensamento o irrecusável estaraí dos objetos que nenhum pensamento pode alcançar ou explicar A mais elevada função da filosofia segundo Hegel é eliminar o contingente e todos os particulares Tudo o que existe é contingente por definição A filosofia lida com particulares como partes de um todo e o todo é o sistema um produto do pensamento especulativo Esse todo cientificamente falando nunca pode ser mais do que uma hipótese possível que integrando cada particular em um pensamento abrangente os transforma em coisaspensamento e assim elimina sua propriedade mais escandalosa sua realidade junto com sua contingência Foi Hegel quem declarou que chegou o tempo de elevar a filosofia à categoria de ciência e queria transformar a filosofia o mero amor à sabedoria em sabedoria sophia Dessa maneira ele estava convencido de que pensar é agir exatamente o que essa ocupação eminentemente solitária nunca pode fazer já que só podemos agir em conjunto em companhia de e em concordância com nossos pares e portanto em uma situação existencial que efetivamente impede o pensamento Em agudo contraste com todas essas teorias formuladas como um tipo de apologia do pensamento especulativo encontrase a famosa estranhamente desconhecida e sempre mal traduzida observação que está no mesmo prefácio à Fenomenologia e que expressa diretamente de modo não sistemático as experiências originais de Hegel com o pensamento especulativo O verdadeiro é sempre a festa báquica onde nenhum participante ou seja nenhum pensamento particular deixa de estar bêbado e já que cada participante cada pensamento não se separa da linha de pensamento da qual ele é mera parte sem se dissolver imediatamente a festa é por isto mesmo um estado de quietude transparente e inquebrantável Para Hegel essa é a maneira pela qual a própria vida da verdade verdade que se tomou viva no processo do pensamento manifestase para o ego pensante Esse ego pode não saber se homem e mundo são reais ou vejase especialmente a filosofia hindu pura miragem ele só sabe estar vivo em uma exaltação que sempre beira a intoxicação como disse uma vez Nietzsche Podese avaliar como esse sentimento marca profundamente todo o sistema quando o reencontramos no fim da Fenomenologia lá ele aparece em contraste com o sem vida a ênfase é sempre na vida e se expressa através dos versos de Schiller citados erroneamente Do cálice deste reino espiritual espuma a infinitude do espírito Aus dem Kelche dieses Geisterreichesschãumt ihm seine Unendlichkeit 110 pensar e o agir o espectador Estive falando sobre as características especiais do pensamento que podem ser atribuídas ao radicalismo de sua retirada do mundo Em contrapartida nem a vontade nem o juízo embora dependentes da reflexão preliminar que o pensamento faz sobre os seus objetos ficam presos a essa reflexão seus objetos são particulares têm seu lar estabelecido no mundo das aparências do qual o espírito volitivo ou judicante se retira apenas temporariamente e com a intenção de uma volta posterior Isto aplicase particularmente à vontade cuja fase de retirada é caracterizada pela forma mais forte de reflexividade uma ação sobre si mesma o vollo me velle é muito mais característico da vontade do que o cogito me cogitare é característico do pensamento Contudo o que todas essas atividades têm em comum é uma peculiar quietude uma ausência de qualquer ação ou perturbação a retirada do envolvimento e da parcialidade dos interesses imediatos que de um modo ou de outro fazem de mim parte do mundo real uma retirada aque me referi anteriormente como condição e prérequisito de todo juízo Historicamente esse tipo de retirada do agir é a mais antiga condição postulada para a vida do espírito Em sua forma original fundase na descoberta de que somente o espectador e nunca o ator pode conhecer e compreender o que quer que se ofereça como espetáculo Essa descoberta contribuiu muito para a convicção que os filósofos gregos tinham da superioridade do modo de vida contemplativo que meramente assiste e presencia e cuja condição mais elementar segundo Aristóteles que foi o primeiro a elaborála49 era a schole Schole não é o tempo para o lazer tal como o entendemos hoje o tempo de inatividade que sobra depois do trabalho diário usado para cumprir as exigências da existência5 mas o ato deliberado de se abster de se conter scheiri e de não participar das atividades comuns determinadas pelas nossas necessidades cotidianas he ton anagkaion schole com a finalidade de ativar o lazer scholen agein que era por sua vez o verdadeiro objetivo de todas as outras atividades assim como a paz era o verdadeiro objetivo da guerra para Aristóteles A recreação e o jogo que são no nosso entendimento as atividades naturais do lazer ainda pertenciam ao contrário à ascholia ao estado de privação do lazer uma vez que o jogo e a recreação são necessários à restauração da força do labor humano encarregado de cuidar das necessidades da vida Encontramos esse ato de nãoparticipação ativa e deliberada nas atividades da vida cotidiana em sua forma provavelmente mais antiga e certamente mais simples em uma parábola atribuída a Pitágoras e relatada por Diógenes Laércio A Vida é como um festival assim como alguns vêm ao festival para competir e alguns para exercer os seus negócios mas os melhores vêm como espectadores theatai assim também na vida os homens servis saem à caça da fama dosa ou do lucro e os filósofos à caça da verdade51 O que é enfatizado aqui como mais nobre do que a competição pela fama e pelo lucro não é certamente uma verdade invisível e inacessível ao homem comum tampouco o lugar para onde os espectadores se retiram pertence a alguma região mais elevada tal como foi posteriormente figurada por Parmênides e por Platão seu lugar está no mundo e a sua nobreza está somente em não participar do que está ocorrendo em observálo como a um mero espetáculo O termo filosófico teoria deriva da palavra grega que designa espectadores theatai a palavra teórico até há alguns séculos significava contemplando observando do exterior de uma posição que implica a visão de algo oculto para aqueles que tomam parte no espetáculo e o realizam É óbvia a inferência que se pode fazer a partir dessa antiga distinção entre agir e compreender como espectador podese compreender a verdade sobre o espetáculo mas o preço a ser pago é a retirada da participação no espetáculo O primeiro dado que sustenta essa apreciação é o fato de que somente o espectador ocupa uma posição que lhe permite ver o jogo a cena toda assim como o filósofo é capaz de ver o kosmos como um todo harmoniosamente ordenado O ator parcela do todo deve encenar o seu papel ele não somente é por definição uma parte como também está preso à circunstância de que encontra seu significado último e a justificativa de sua existência unicamente como constituinte de um todo Assim a retirada do envolvimento direto para uma posição fora do jogo o festival da vida não apenas é a condição do julgar para ser o árbitro final na competição que se desenrola como também é a condição para compreender o significado do jogo Em segundo lugar o que interessa essencialmente ao ator é a doxa uma palavra que significa tanto fama quanto opinião pois é através da opinião da audiência e do juiz que a fama vem a se consolidar Para o ator mas não para o espectador a maneira pela qual ele aparece para os outros é decisiva ele depende do pareceme do espectador o seu dokei moi que dá ao ator a sua doxa ele não é o seu próprio senhor não é o que Kant chamaria posteriormente autônomo ele deve se portar de acordo com o que os espectadores esperam dele e o veredito final de sucesso ou fracasso está nas mãos desses espectadores Evidentemente a retirada do juízo é muito diferente da retirada do filósofo Este não abandona o mundo das aparências mas se retira do envolvimento ativo neste mundo para uma posição privilegiada que tem como finalidade contemplar o todo Além disso e talvez mais significativamente os espectadores de Pitágoras são membros de uma audiência e portanto são bem diferentes do filósofo que inicia o seu bios theoretikos deixando a companhia dos seus semelhantes e as opiniões incertas as suas doxai que só podem expressar um pareceme Assim o veredito do espectador ainda que imparcial e livre dos interesses do lucro ou da fama não é independente do ponto de vista dos outros ao contrário segundo Kant uma mentalidade alargada tem que os levar em conta Os espectadores embora livres da particularidade característica do ator não estão solitários Tampouco são autosuficientes como o deus mais elevado que o filósofo tenta imitar pelo pensamento e que segundo Platão é etemamente solitário em razão de sua excelência sempre capaz de estar junto a si mesmo não precisando de mais ninguém amigo ou conhecido e bastando a si mesmo52 Essa distinção entre pensar e julgar só veio a merecer destaque com a filosofia política de Kant o que não é de se estranhar já que Kant foi o primeiro e permaneceu sendo o último dos grandes filósofos a lidar com o juízo como uma das atividades espirituais básicas Pois o que importa é que nos vários tratados e ensaios que Kant escreveu tardiamente o ponto de vista do espectador não é determinado pelos imperativos categóricos da razão prática isto é pela resposta da razão à pergunta O que devo fazer Essa resposta é moral e diz respeito ao indivíduo como indivíduo em plena independência autônoma da razão Como tal ele jamais pode de um modo moralprático reclamar para si o direito de rebelarse Ainda assim o mesmo indivíduo não quando age mas quando é um mero espectador tem o direito de julgar e de emitir o veredito final sobre a Revolução Francesa unicamente com base em sua ansiosa participação beirando o entusiasmo em seu desejo de compartilhar da exaltação do público não envolvido baseandose em outras palavras no juízo dos espectadores seus semelhantes que também não tinham a menor intenção de participar dos eventos E foi o veredito deles em última análise e não o desempenho dos atores que persuadiu Kant a chamar a Revolução Francesa de um fenômeno na história humana que não deve ser esquecido53 Nesse choque entre a ação participante e conjunta sem a qual afinal os eventos a serem julgados jamais teriam chegado a existir e o juízo observador e reflexivo Kant não tem dúvidas sobre qual deles deve ter a última palavra Supondo que a história seja apenas a história miserável dos eternos altos e baixos da humanidade o espetáculo de som e fúria poderá talvez ser comovente por algum tempo mas a cortina eventualmente deve cair Pois ao cabo de certo tempo o espetáculo tornase uma farsa E mesmo que os atores não se cansem dele pois eles são tolos o espectador se cansará pois um único ato será para ele suficiente se puder dele concluir que a peça interminavelmente encenada será etemamente a mesma grifos nossos54 Esta é de fato uma passagem reveladora Se a ela acrescentamos a convicção kantiana de que os assuntos humanos são guiados pelo ardil da natureza que conduz a espécie humana por trás dos homens de ação em um perpétuo progresso assim como a astúcia da razão de Hegel leva os homens à revelação do Espírito Absoluto poderemos encontrar justificativa para a questão ou nem todos os atores são tolos ou o espetáculo ao revelarse somente ao espectador não poderia também estar a serviço dos tolos Com qualificações mais ou menos sofisticadas essa sempre foi a suposição secreta dos filósofos da história isto é daqueles pensadores da era moderna que pela primeira vez decidiram levar a sério o bastante a esfera dos assuntos humanos os ta ton anthroponpragmata de Platão para chegar a refletir sobre ela E não estariam certos Não é verdade que das ações dos homens resulta algo diferente do que eles tencionavam e do que chegam a realizar algo diferente do que conhecem ou do que querem Para fazer uma analogia um homem pode incendiar a casa de outro por vingança A ação imediata é a de aproximar uma pequena chama de uma pequena parte de uma viga de madeira O que se segue é uma vasta conflagração Esse resultado não foi parte do ato primeiro nem a intenção daquele que o iniciou Esse exemplo apenas mostra que na ação imediata pode estar envolvido algo diferente daquilo que é conscientemente desejado pelo ator55 Estas são palavras de Hegel mas poderíam ter sido escritas por Kant Em ambos os casos não é por meio da ação mas da contemplação que o algo diferente a saber o significado do todo é revelado O espectador e não o ator tem a chave do significado dos negócios humanos apenas e isto é decisivo os espectadores de Kant existem no plural e é esta a razão pela qual ele pôde chegar a uma filosofia política O espectador de Hegel existe estritamente no singular o filósofo tomase o órgão do Espírito Absoluto e o filósofo é o próprio Hegel Mas mesmo Kant mais consciente da pluralidade humana do que qualquer outro filósofo pôde esquecer convenientemente que se o espetáculo fosse sempre o mesmo e portanto fosse cansativo as audiências mudariam de geração para geração e que seria pouco provável que uma nova audiência chegasse às mesmas conclusões legadas pela tradição sobre o que teria a dizer uma peça imutável Dificilmente poderemos evitar a questão do lugar ou da região para onde se dirige o movimento de subtração do mundo quando falamos na retirada do espírito como condição necessária a todas as atividades espirituais Tratei de modo prematuro ainda que um tanto longo da retirada do juízo para a posição do espectador porque minha intenção era a de levantar a questão primeiramente em sua forma mais simples e mais óbvia apontando casos em que a região da retirada estivesse localizada em nosso mundo comum sem contar a reflexividade Lá estão eles em Olímpia nas filas de degraus que se elevam a partir do palco ou do estádio cuidadosamente separados das encenações em curso e o público não envolvido de Kant que acompanhava os eventos em Paris com um prazer desinteressado e uma simpatia beirando o entusiasmo estava presente em todos os círculos intelectuais da Europa durante os primeiros anos da década de noventa do século XVIII embora o próprio Kant provavelmente estivesse pensando nas multidões das ruas de Paris Mas o problema está em que não podemos encontrar tal localidade incontestável quando nos perguntamos onde estamos quando pensamos ou quando exercemos a vontade cercados por assim dizer por coisas que não são mais ou que ainda não existem ou finalmente por coisaspensamento usadas cotidianamente tais como justiça liberdade coragem e que no entanto se encontram totalmente fora da experiência sensível E bem verdade que o ego volitivo cedo encontrou uma residência uma região que era propriamente sua tão logo essa faculdade foi descoberta nos primeiros séculos da Era Cristã ela foi localizada em nosso interior e caso alguém se pusesse a escrever a história da interioridade em termos de uma vida interna esse alguém logo percebería que essa história coincide com a história da Vontade Mas a interioridade como já indicamos tem seus próprios problemas mesmo quando concordamos que a alma e o espírito não são a mesma coisa Além disso a peculiar natureza reflexiva da vontade às vezes identificada com o coração e quase sempre considerada como o órgão do nosso eu mais profundo tomou essa região ainda mais difícil de ser isolada Quanto ao pensamento a questão de saber onde estamos quando pensamos parece ter sido levantada apenas por Platão no Sofista56 lá depois de ter determinado o lugar do sofista ele promete determinar também o lugar do próprio filósofo o topos noetos mencionado nos primeiros diálogos57 mas jamais cumpriu a promessa Pode ser que simplesmente tenha fracassado na tarefa de completar a trilogia do SofistaPolíticoFilósofo ou que tenha chegado a acreditar que a resposta estivesse dada implicitamente no Sofista em que retrata o sofista como estando em casa na escuridão do Nãoser o que o torna tão difícil de ser percebido ao passo que o filósofo é difícil de ser visto porque sua região é tão luminosa pois o olho da multidão não pode manter o olhar fixo no divino58 Essa resposta era de fato esperável por parte do autor da República e da parábola da Caverna 12 Linguagem e metáfora As atividades mentais invisíveis e ocupadas com o invisível tomamse manifestas somente através da palavra Assim como os seres que aparecem e habitam o mundo de aparências têm em si o ímpeto de se mostrarem os seres pensantes ainda que pertencentes ao mundo das aparências mesmo depois de haverem dele se retirado mentalmente têm em si o ímpeto de falar e assim tornar manifesto aquilo que de outra forma não podería absoiutamente pertencer ao mundo das aparências Mas enquanto o aparecer pressupõe e exige em si a presença de espectadores o pensar em sua necessidade de discurso não exige ou pressupõe ouvintes a linguagem humana com uma intrincada complexidade gramatical e sintática não seria necessária na comunicação entre semelhantes A linguagem dos animais sons sinais gestos serviría bastante bem para as nossas necessidades imediatas não só de autopreservação e preservação da espécie como também para tornar evidentes as disposições da alma Não é nossa alma mas nosso espírito que exige o discurso Referime a Aristóteles quando estabelecí uma distinção entre espírito e alma os pensamentos de nossa razão e as paixões de nosso aparato emocional e chamei a atenção sobre como é reforçada essa distinçãochave em De anima por uma passagem na introdução do pequeno tratado sobre a linguagem De interpretatione Voltarei a esse tratado já que seu ponto mais interessante é a afirmação de que o critério do Logos do discurso coerente não é a verdade ou a falsidade mas sim o significado As palavras em si não são nem verdadeiras nem falsas A palavra centauro por exemplo Aristóteles usa o exemplo de veadobode um animal que é metade veado metade bode significa algo embora não signifique nada que seja falso ou verdadeiro a não ser que se acrescente não ser ou ser a essa palavra O Logos é o discurso no qual as palavras são reunidas para formar uma sentença que seja totalmente significativa em virtude da síntese synthekef Palavras significativas em si mesmas e pensamentos noematà assemelhamse eiokeri Disso se depreende que o discurso ainda que sempre som com significado phone semantike não é necessariamente apophantikos um enunciado ou uma proposição em que aletheuein e pseudesthai verdade e falsidade ser e nãoser estão em jogo Não é sempre esse o caso uma prece como vimos é um logos mas não é falsa nem verdadeira61 Assim implícita no ímpeto da fala está a busca do significado e não necessariamente a busca da verdade É interessante notar também que em nenhum momento da discussão da relação que a linguagem mantém com o pensamento Aristóteles levanta a questão da prioridade não decide se o pensamento é a origem da fala tomado o discurso como mero instrumento de comunicação de nossos pensamentos ou se o pensamento é uma conseqüência do fato de que o homem é um animal falante De qualquer forma uma vez que palavras portadoras de significados e pensamentos assemelhamse seres pensantes têm o ímpeto de falar seres falantes têm o ímpeto de pensar De todas as necessidades humanas a necessidade da razão é a únicaque jamais poderia ser adequadamente satisfeita sem o pensamento discursivo e o pensamento discursivo é inconcebível sem palavras já significativas antes que um espírito viaje por assim dizer através delas poreuesthai dia logon Platão A linguagem sem dúvida serve também para a comunicação entre os homens mas aí sua necessidade vem simplesmente do fato de que os homens seres pensantes que são têm a necessidade de comunicar seus pensamentos os pensamentos para acontecer não precisam ser comunicados mas não podem ocorrer sem ser falados silenciosa ou sonoramente em um diálogo conforme o caso Como o pensar embora sempre proceda por palavras não necessita de ouvintes Hegel pôde de acordo com o testemunho da maioria dos filósofos dizer que a filosofia é algo solitário E a razão não porque o homem seja um ser pensante mas porque ele só existe no plural também quer a comunicação e tende a perderse caso dela tenha que se privar pois a razão como observou Kant não é de fato talhada para isolarse mas para comunicarse61 A função desse discurso silencioso tacite secum rationare raciocinar silenciosamente consigo mesmo nas palavras de Santo Anselmo de Canterbury62 é entrar em acordo com o que quer que possa ser dado aos nossos sentidos nas aparências do diaadia a necessidade da razão é dar conta logon didonai como a chamavam os gregos com grande precisão de qualquer coisa que possa ser ou ter sido Isso é proporcionado não pela sede do conhecimento a necessidade pode surgir em conexão com fenômenos bastante conhecidos e inteiramente familiares mas pela busca do significado O puro nomear das coisas a criação de palavras é a maneira humana de apropriação e por assim dizer de desalienação do mundo no qual afinal cada um de nós nasce como um recémchegado como um estranho Essas observações sobre a interconexão de linguagem e pensamento que nos fazem suspeitar de que não há possibilidade de existir um pensamento nãodiscursivo obviamente não se aplicam a civilizações em que o signo escrito em lugar da palavra falada é decisivo e em que consequentemente o pensamento em si não é discurso silencioso mas sim um lidar mental com imagens Isso vale claramente para a China cuja filosofia pode muito bem equipararse à filosofia do Ocidente Lá o poder das palavras é sustentado pelo poder do signo escrito da imagem e não como ocorre com as linguagens alfabéticas em que a escrita é considerada secundária nada além de que um conjunto convencional de símbolos63 Para os chineses todo signo toma visível aquilo a que chamaríamos um conceito ou uma essência contase que Confúcio disse uma vez que o signo chinês para cachorro é a imagem perfeita do cachorro em si enquanto que para nosso entendimento não há imagem que se possa adequar ao conceito de cachorro em geral Essa imagem jamais conteria aquela universalidade do conceito que o toma válido para todos os cachorros64 O conceito cachorro segundo Kant que no capítulo sobre Esquematismo na Crítica da razão pura esclarece uma das hipóteses básicas de todo o pensamento ocidental significa a regra de acordo com a qual minha imaginação é capaz de delinear a figura de um animal de quatro patas de uma maneira geral sem limitarse por qualquer figura determinada que possa de fato ser apresentada pela experiência ou por qualquer imagem que eu possa representar in concreto E acrescenta esse esquematismo de nosso intelecto é uma arte escondida nas profundezas da alma humana é pouquíssimo provável que a natureza venha algum dia a permitir que descubramos os modos reais de atividade dessa arte que eles se desvelem ao nosso olhar65 Em nosso contexto a passagem tomase relevante porque evidencia que nossa faculdade espiritual de lidar com invisíveis se faz necessária até em experiências sensíveis ordinárias mesmo para que reconheçamos um cachorro como um cachorro qualquer que seja a forma com que o animal de quatro patas se apresente Conseqüentemente deveriamos ser capazes de intuir no sentido kantiano o caráter geral de um objeto que jamais se apresenta aos nossos sentidos Para esses esquemas puras abstrações Kant usou a palavra monograma e a escrita chinesa pode por assim dizer ser melhor entendida como monogramática Em outras palavras aquilo que para nós é abstrato e invisível para os chineses é emblematicamente concreto e dado visivelmente em sua escrita como acontece por exemplo quando a imagem de duas mãos unidas serve para designar o conceito de amizade Os chineses pensam com imagens e não com palavras E esse pensar com imagens permanece sempre concreto e não pode ser discursivo passando por uma seqüência ordenada de pensamento nem pode dar conta de si mesmo logon didonai a resposta para a questão socrática típica O que é amizade está visivelmente presente e evidente no emblema das duas mãos unidas e o emblema libera toda uma cadeia de representações pictóricas por meio de associações possíveis pelas quais as imagens são reunidas Isso pode ser visto melhor na enorme variedade de signos compostos por exemplo o signo para frio combina todas aquelas noções que se associam ao pensamento de um tempo frio às atividades que servem para dele proteger o homem A poesia portanto mesmo quando lida em voz alta afetará o ouvinte opticamente ele não se aterá à palavra que ouve mas ao signo de que se lembra e com ele às visões para as quais o signo claramente aponta Tais diferenças entre o pensamento concreto em imagens e nosso lidar abstrato com conceitos verbais são fascinantes e inquietantes não tenho competência para lidar com elas adequadamente São talvez até mais inquietantes porque entre elas podemos perceber uma hipótese que compartilhamos com os chineses a prioridade inquestionável da visão para as atividades mentais Tal prioridade como veremos rapidamente permanece absolutamente decisiva através da história da metafísica ocidental e de sua noção de verdade O que nos distingue deles não é o nous mas sim o logos nossa necessidade de explicar e de justificar com palavras Todos os processos estritamente lógicos tais como a dedução de inferências do geral para o particular ou como o raciocínio indutivo de particulares para alguma regra geral representam tais justificativas e isso só se pode fazer com palavras Wittgenstein ao que eu saiba foi o único a conscientizarse do fato de que a escrita hieroglífica correspondia à noção de verdade compreendida segundo a metáfora da visão Ele escreve Para entender a essência de uma proposição devemos considerar a escrita hieroglífica que retrata os fatos que descreve E a escrita alfabética dela se desenvolveu sem perder o que era essencial de ser retratado66 Essa observação final é por certo altamente duvidosa Menos duvidoso é que a filosofia tal como a conhecemos dificilmente teria chegado a existir sem a recepção e a adaptação iniciais do alfabeto feitas pelos gregos a partir de fontes fenícias Ainda assim a linguagem o único meio pelo qual é possível tornar manifestas as atividades espirituais não só para o mundo exterior como também para o próprio eu espiritual não é de modo algum tão evidentemente adequada à atividade do pensamento quanto a visão o é para sua tarefa de ver Nenhuma língua tem um vocabulário já pronto para as necessidades da atividade espiritual todas tomam seu vocabulário de empréstimo às palavras originalmente concebidas para corresponder ou a experiências dos sentidos ou a outras experiências da vida comum Tal empréstimo entretanto jamais se dá ao acaso ou é arbitrariamente simbólico como os símbolos matemáticos ou emblemático toda a linguagem filosófica e a maior parte da linguagem poética é metafórica não no sentido simples do Dicionário Oxford que define Metáfora como a figura de linguagem na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um objeto diferente de mas análogo àquele ao qual é adequadamente aplicável Não há analogia entre digamos um pôrdosol e a velhice e quando o poeta em uma metáfora gasta fala da velhice como o poente da vida ele pensa que o poente se relaciona com o dia que o precede da mesma forma que a velhice se relaciona com a vida Se portanto como diz Shelley a linguagem do poeta é vitalmente metafórica ela o é enquanto marca relações de coisas anteriormente não apreendidas perpetuando sua apreensão grifo nosso67 Toda metáfora descobre uma percepção intuitiva de similaridades em dessemelhantes e segundo Aristóteles é exatamente por isso que ela é um sinal de gênio de longe a maior de todas as coisas68 Mas essa similaridade também para Aristóteles não está presente em objetos diferentes sob outros aspectos mas é uma similaridade de relações como numa analogia que sempre necessita de quatro termos e pode ser representada pela fórmula B A DC Desse modo uma taça está para Dionísio assim como um escudo está para Ares A taça será por conseguinte descrita metaforicamente como o escudo de Dionísio69 E essa fala por analogia em linguagem metafórica é segundo Kant o único modo pelo qual a razão especulativa que aqui chamamos pensamento pode se manifestar A metáfora fornece ao pensamento abstrato e sem imagens uma intuição colhida do mundo das aparências cuja função é a de estabelecer a realidade de nossos conceitos7 como que desfazendo a retirada do mundo précondição para as atividades do espírito Isso é relativamente fácil desde que nosso pensamento simplesmente responda aos apelos de nossa necessidade de conhecer e compreender o que é dado no mundo de aparências isto é desde que permaneçamos dentro das limitações do raciocínio do sensocomum o que precisamos para o pensamento do sensocomum é de exemplos que ilustrem nossos conceitos tais exemplos são adequados porque nossos conceitos são extraídos das aparências são meras abstrações E completamente diferente quando a necessidade da razão transcende os limites de um dado mundo e nos leva ao mar incerto da especulação em que não pode ser dada nenhuma intuição adequada a idéias da razão71 Nesse ponto entra a metáfora A metáfora realiza a transferência metapherein de uma genuína e aparentemente impossível metabasis eis allo genos a transição de um estado existencial aquele do pensar para outro aquele do ser uma aparência entre aparências e isso só pode ser feito através de analogias Kant dá como exemplo de metáfora bem sucedida a descrição do estado despótico como uma simples máquina como um moedor manual porque é governado por uma vontade individual absoluta Pois entre um estado despótico e um moedor manual não há decerto qualquer semelhança mas há semelhança nas regras segundo as quais refletimos sobre essas duas coisas e sobre sua causalidade E acrescenta Nossa linguagem está cheia de apresentações indiretas desse tipo um assunto que não foi suficientemente analisado até agora e que merece uma investigação mais profunda72 As percepções da metafísica são alcançadas por analogia não no sentido habitual de semelhança imperfeita entre duas coisas mas de uma semelhança perfeita entre duas relações entre coisas completamente diferentes13 Na linguagem muitas vezes menos precisa da Crítica do juízo Kant chama também de simbólicas essas representações de acordo com uma simples analogia74 Todos os termos filosóficos são metáforas analogias congeladas por assim dizer cujo verdadeiro significado se desvela quando dissolvemos o termo em seu contexto original que estava muito nítido no espírito do primeiro filósofo a utilizálo Quando Platão introduziu as palavras cotidianas alma e idéia na linguagem filosófica conectando um órgão invisível no homem a alma com algo invisível no mundo dos invisíveis as idéias ele ainda deve ter ouvido as palavras no sentido em que eram utilizadas na linguagem ordinária e préfilosófica Psyche é o sopro da vida que os moribundos expiram e idéia ou eidos é a forma ou esboço que está no olho espiritual do artesão antes de iniciar seu trabalho uma imagem que sobrevive tanto ao processo de fabricação quanto ao objeto fabricado adquirindo assim uma perenidade que a prepara para a eternidade no céu das idéias A analogia subjacente à doutrina da alma de Platão desenvolve se da seguinte maneira assim como o sopro de vida está relacionado com o corpo que ele abandona is to é ao cadáver a alma daí em diante está em princípio relacionada com o corpo que vive A analogia subjacente à sua doutrina das idéias pode ser reconstruída de maneira semelhante assim como a imagem espiritual do artesão guia sua mão na fabricação e é a medida do sucesso ou do fracasso do objeto a totalidade dos dados sensíveis e materiais no mundo das aparências relacionase a e é avaliada de acordo com um padrão invisível situado no céu das idéias Sabemos que a palavra noeomai foi primeiramente utilizada no sentido de percepção visual e em seguida transferida para percepções do espírito com o sentido de apreensão acabou finalmente tomandose uma palavra para designar a mais alta forma de pensamento E razoável supor que ninguém pensou que o olho o órgão da visão e o nous o órgão do pensamento fossem o mesmo mas a própria palavra indicou que a relação entre o olho e o objeto visto era semelhante à relação entre o espírito e seu objetodepensamento isto é forneceu o mesmo tipo de evidência Sabemos que ninguém antes de Platão usara essa palavra própria para designar tanto a forma como o esboço do artesão na linguagem filosófica assim como ninguém antes de Aristóteles usara a palavra energos um adjetivo que designa aquele que é ativo que está trabalhando ocupado para formular o termo energeia atualidade em oposição a dynamis simples potencialidade E o mesmo se dá com termos tão clássicos quanto substância e acidente derivados do latim hypokeimenon e kata symbebekos aquilo que subjaz distinto daquilo que acidentalmente acompanha Ninguém antes de Aristóteles usara a palavra Kategoria categoria cujo significado era aquilo que se afirmava em um julgamento a respeito do réu em outro sentido que não fosse o de acusação75 No sentido aristotélico essa palavra acabou tomandose algo como predicado a partir da seguinte analogia assim como fazer uma acusação katagoreuein ti tinos é atribuir ao réu algo de que ele é culpado e portanto algo que pertence a ele predicar é atribuir ao sujeito a qualidade apropriada Esses exemplos são todos familiares e poderíam se multiplicar Acrescentarei apenas mais um a meu ver especialmente expressivo dada a grande importância que tem na terminologia filosófica nossa palavra para o grego nous é ou mente do latim mens indicando algo como o alemão Gemüt ou razão Interessome aqui por esta última acepção Razão vem do latim ratio derivado do verbo rear ratus sum que significa calcular e também raciocinar A tradução latina tem um conteúdo metafórico inteiramente distinto que se aproxima muito mais da palavra grega logos do que de nous Para aqueles que têm um preconceito compreensível contra argumentos etimológicos gostaria de lembrar a famosa expressão de Cícero ratio et oratio que não faria qualquer sentido em grego A metáfora servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e conseqüentemente à filosofia mas a metáfora em si é na origem poética e não filosófica Não é de espantar portanto que poetas e escritores afinados com a poesia e não com a filosofia conhecessem sua função essencial Daí lermos em um ensaio pouco conhecido de Emest Fenollosa publicado por Ezra Pound e ao que eu saiba jamais mencionado na literatura sobre metáfora A metáfora é a própria substância da poesia sem ela não haveria ponte que permitisse a travessia da verdade menor do que é visto para a verdade maior do que não se vê76 O descobridor desse instrumento originalmente poético foi Homero cujos dois poemas estão cheios de todos os tipos de expressões metafóricas Escolho em um embarras de richesses a passagem da Ilíada em que o poeta compara o açoite violento do medo c da dor do coração dos homens com o açoite dos ventos que chegam de várias direções nas águas do mar77 Pensem nessas tempestades já tão conhecidas parece nos dizer o poeta e compreenderão a dor e o medo E bastante significativo que a coisa não funcione ao contrário Podese pensar à vontade acerca da dor e do medo sem que se chegue a descobrir qualquer coisa sobre os ventos e o mar a comparação tem a intenção clara de contar o que o medo e a dor podem fazer ao coração humano isto é tem a intenção de iluminar uma experiência que não aparece A irreversibilidade da análise distinguea nitidamente do símbolo matemático utilizado por Aristóteles na tentativa de descrever a mecânica da metáfora Por mais feliz que seja o achado de uma metáfora na expressão de uma semelhança perfeita de relação entre duas coisas completamente diferentes e por maior perfeição já que A não é obviamente o mesmo que C e B não é o mesmo D que a fórmula BD DC possa ter na expressão dessa semelhança a equação de Aristóteles implica reversibilidade se BA DC CD AB O que se perde no cálculo matemático é a função real da metáfora a volta ao mundo sensível que ela proporciona ao espírito com a finalidade de iluminar suas experiências nãosensíveis e para as quais não há palavras em qualquer língua A fórmula aristotélica funcionou porque lidou apenas com coisas visíveis e na verdade foi aplicada não à metáfora e a seu transporte de um domínio para outro mas sim a emblemas e os emblemas são já ilustrações visíveis de algo invisível a taça de Dionísio um ideograma da disposição festiva associada com o vinho o escudo de Ares um ideograma da fúria da guerra a balança da justiça nas mãos da deusa cega um ideograma da Justiça pesando as ações sem considerar os agentes O mesmo se dá com analogias esgotadas transformadas em expressões idiomáticas como no caso do segundo exemplo de Aristóteles A velhice D está para a vida C assim como o anoitecer B está para o dia A É claro que há na linguagem comum uma enorme variedade de expressões figurativas que se assemelham às metáforas sem que venham a exercer a verdadeira função delas78 São simples figuras de linguagem mesmo quando usadas por poetas branco como marfim para ficar com Homero e são também muitas vezes caracterizadas por uma transferência quando algum termo pertencente a uma classe de objetos é remetido a outra classe é assim que falamos no pé de uma mesa como se fosse parte de um homem ou de um animal Aqui a transferência se dá em um mesmo domínio dentro do gênero dos visíveis e aqui a analogia é de fato reversível Mas não é sempre o caso mesmo quando se trata de metáforas que não apontam diretamente para algo invisível Homero nos dá um outro tipo mais complexo de metáfora estendida ou símile a qual deslocandose entre os visíveis aponta para uma história oculta Por exemplo o famoso diálogo entre Ulisses e Penélope logo antes da cena do reconhecimento em que Ulisses disfarçado de mendigo e contando muitas coisas falsas diz a Penélope que hospedara seu marido em Creta Relatase a maneira como as lágrimas corriam enquanto Penélope ouvia e seu corpo se ia derretendo como a neve derrete nas altas montanhas quando ali sopram o Zéfiro espalhando a e quando é derretida pelo Euro fazendo transbordar os rios Assim corriam as lágrimas pelas belas faces de Penélope enquanto chorava por um marido que ali estava sentado junto dela79 Aqui a metáfora parece combinar apenas os visíveis as lágrimas nas faces não são menos visíveis do que a neve que derrete O invisível que se faz visível na metáfora é o longo inverno da ausência de Ulisses a indiferença sem vida e a dureza oculta daqueles anos que agora aos primeiros sinais de esperança por uma vida renovada começa a abrandarse As lágrimas em si expressam apenas o pesar seu significado os pensamentos que produziam essas lágrimas manifestase na metáfora da neve derretendo e amaciando a terra antes da primavera Kurt Riezler o primeiro a associar o símile homérico com o início da filosofia insiste na tertium comparationis necessária a qualquer comparação que permite ao poeta perceber e tomar conhecida a alma como mundo e o mundo como alma8 Por trás da oposição entre mundo e alma deve haver uma unidade que tome possível a correspondência uma lei ignorada com diz Riezler citando Goethe presente tanto no mundo dos sentidos quanto no domínio da alma E a mesma unidade que reúne todos os opostos dia e noite luz e escuridão frio e calor cada um dos quais inconcebíveis em separado impensáveis a não ser quando misteriosamente relacionados à sua antítese Tal unidade oculta tornase segundo Riezler o tópico dos filósofos a koinos logos de Heráclito a hen pan de Parmênides a percepção dessa unidade distingue a verdade do filósofo das opiniões dos homens comuns E a título de reforço Riezler cita Heráclito O deus é dianoite invemoverão guerrapaz saciedadefome todos os opostos ele é o nous ele se modifica assim como o fogo quando misturado aos aromas é nomeado pelo perfume que a ele se mistura81 A filosofia é razoável admitir foi à escola de Homero para imitarlhe o exemplo E a tendência para admitir isto é ainda mais reforçada pelas duas primeiras mais famosas e influentes parábolas do pensamento a viagem de Parmênides aos portões do dia e da noite e a parábola da caverna de Platão sendo que a primeira é um poema e a segunda é essencialmente poética impregnada pela linguagem homérica Isso no mínimo sugere que Heidegger estava certo quando chamou a poesia e o pensamento de vizinhos próximos82 Tentando agora examinar mais de perto as várias formas de que a linguagem dispõe para estabelecer uma ponte sobre o abismo entre o domínio do invisível e o mundo das aparências podemos oferecer provisoriamente a seguinte descrição geral da sugestiva definição aristotélica da linguagem como emissão sonora e significativa de palavras que já em si são sons com significado que se assemelham a pensamentos podese concluir que pensar é a atividade do espírito que dá realidade àqueles produtos do espírito inerentes ao discurso e para os quais a linguagem sem qualquer esforço especial já encontrou uma morada adequada ainda que provisória no mundo audível Se falar e pensar nascem da mesma fonte então o próprio dom da linguagem poderia ser tomado como uma espécie de prova ou talvez mais como um sinal de que o homem é naturalmente dotado de um instrumento capaz de transformar o invisível em uma aparência A terra do pensamento de Kant Land des Denkens pode nunca aparecer ou se manifestar aos olhos do corpo manifestase com todo tipo de distorção não só para nosso espírito mas também para os ouvidos do corpo E é nesse contexto que a linguagem do espírito através da metáfora retoma ao mundo das visibilidades para iluminar e elaborar melhor aquilo que não pode ser visto mas que pode ser dito Analogias metáforas e emblemas são fios com que o espírito se prende ao mundo mesmo nos momentos em que desatento perde o contato direto com ele são eles também que garantem a unidade da experiência humana Além disso servem como modelos no próprio processo de pensamento dandonos orientação quando tememos cambalear às cegas entre experiências nas quais nossos sentidos corporais com sua relativa certeza de conhecimento não nos podem guiar O simples fato de que nosso espírito é capaz de encontrar tais analogias que o mundo das aparências nos lembra coisas nãoaparentes pode ser visto como uma espécie de prova de que corpo e espírito pensamento e experiência sensível visível e invisível se pertencem são por assim dizer feitos um para o outro Em outras palavras se a rocha no mar que resiste à rota veloz dos ventos que silvam às ondas que se elevam e nela rebentam pode tomarse uma metáfora para resistência em combate não é correto dizer que a rocha é vista antropomorficamente a não ser que acrescentemos que nossa compreensão da rocha é antropomórfica pela mesma razão que essa compreensão pode permitir que nos vejamos petromorfícamente3 Há finaímente a irreversibilidade da relação expressa na metáfora ela indica à sua maneira a absoluta primazia do mundo das aparências fornecendo assim mais uma evidência dessa extraordinária qualidade que o pensamento tem de estar sempre fora de ordem Esse último ponto é de especial importância Se a linguagem do pensamento é essencialmentc metafórica o mundo das aparências inserese no pensamento independentemente das necessidades de nosso corpo e das reivindicações de nossos semelhantes que de algum modo nos fazem retroceder Por mais perto que estejamos em pensamento daquilo que está longe por mais ausentes que estejamos em relação ao que está à mão obviamente o ego pensante jamais abandona de todo o mundo das aparências A teoria dos dois mundos como já disse é uma falácia metafísica mas não é absolutamente arbitrária ou acidental E a falácia mais razoável que atormenta a experiência do pensamento A linguagem prestandose ao uso metafórico tornanos capazes de pensar isto é de ter trânsito em assuntos não sensíveis pois permite uma transferência metapherein de nossas experiências sensíveis Não há dois mundos pois a metáfora os une 13 A metáfora e o inefável As atividades do espírito trazidas à linguagem como único meio de sua manifestação retiram cada uma de suas metáforas de um sentido corporal diferente sua plausibilidade depende de uma afinidade inata entre certos dados mentais e certos dados sensíveis Assim desde o início da filosofia formal o pensamento foi concebido em termos de visão E como o pensamento é a mais fundamental e a mais radical das atividades espirituais a visão tendeu a servir de modelo para a percepção em geral e portanto de medida para os outros sentidos84 A predominância da visão impregna tão profundamente o discurso grego e portanto nossa linguagem conceituai que raramente se encontra qualquer consideração a seu respeito como se ela pertencesse às coisas óbvias demais para serem notadas Uma breve observação de Heráclito Os olhos são testemunhas mais exatas que os ouvidos85 é uma exceção de resto não das mais úteis Pelo contrário quando levamos em conta como é fácil para a visão diferentemente dos outros sentidos deixar de fora o mundo exterior e quando examinamos a antiga noção de bardo cego cujas histórias são ouvidas podemos nos indagar por que não foi a audição a metáfora do pensamento86 Não é de todo verdade contudo que nas palavras de Hans Jonas o espírito foi onde a visão apontou87 As metáforas utilizadas pelos teóricos da Vontade raramente são extraídas da esfera da visão seu modelo ou é o desejo como propriedade quintessencial de todos os nossos sentidos já que servem ao apetite geral de um ser que precisa e que quer ou é extraída da audição na linha da tradição judaica de um Deus que se ouve mas não se vê As metáforas retiradas da audição são muito raras na história da filosofia a mais notável exceção moderna são os últimos escritos de Heidegger onde o ego pensante ouve o chamado do Ser Os esforços medievais para reconciliar o ensino bíblico com a filosofia grega atestam a completa vitória da intuição e da contemplação sobre toda forma de audição tal vitória foi por assim dizer pressagiada pela antiga tentativa de Fílon de Alexandria de afinar seu credo judaico com uma filosofia platonizante Ele estava todavia ciente da distinção entre uma verdade hebraica que era escutada e a visão grega do verdadeiro Transformou a primeira em simples preparação para a segunda alcançada pela intervenção divina que transformara os ouvidos do homem em olhos permitindo a maior perfeição da cognição humana88 Finalmente o juízo que é em termos de descoberta a última de nossas habilidades espirituais retira como tão bem sabia Kant sua linguagem metafórica do sentido do gosto A crítica do juízo foi originalmente concebida como Crítica do gosto o mais íntimo privado e indiossincrático dos sentidos de certo modo oposto à visão com sua nobre distância O principal problema da Crítica do juízo tomouse portanto a questão de como proposições de juízo poderíam chegar a pretender como é o caso uma concordância geral Jonas enumera todas as vantagens da visão como metáforaguia e como modelo para o espírito pensante Há em primeiro lugar o fato indiscutível de que nenhum outro sentido estabelece distância tão segura entre sujeito e objeto a distância é a condição mais básica para o funcionamento da visão O ganho é o conceito de objetividade da coisa como ela é em si diferentemente da coisa como ela me afeta dessa distinção surge toda a idéia de theoria e de verdade teórica Além disso a visão nos fornece um múltiplo cotemporâneo enquanto todos os outros sentidos especialmente a audição constroem suas unidades de percepção de um múltiplo a partir de uma seqüência temporal de sensações A visão permite liberdade de escolha em função do fato de que vendo ainda não estou capturado pelo objeto visto O objeto visto deixame estar assim como eu o deixo estar enquanto os outros sentidos me afetam diretamente Isso vale especialmente para a audição a única concorrente possível para a visão em termos de primazia mas que se vê desqualificada pelo fato de que invade um sujeito passivo Na audição aquele que percebe está à mercê de algo ou de alguém A propósito esta pode ser a razão pela qual a língua alemã tenha feito derivar uma enorme série de palavras indicadoras da posição de nãoliberdade do verbo hõren ouvir gehorchen hõrig gehõren obedecer servir pertencer O mais importante em nosso contexto é o fato trazido à tona por Jonas de que a visão necessariamente introduz o observador e para o observador em contraste com o ouvinte o presente não é a experiência pontual do agora que passa mas é transformado em uma dimensão dentro da qual as coisas podem ser observadas como uma permanência do mesmo Somente a visão fornece a base sensível na qual o espírito pode conceber a idéia do eterno aquilo que jamais se modifica e está sempre presente89 Mencionei anteriormente que a linguagem o único meio no qual o invisível pode tomarse manifesto em um mundo de aparências não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível Sugeri que a metáfora pode a seu modo curar o defeito A cura tem os seus perigos e jamais chega tampouco a ser completamente adequada O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível As metáforas podem portanto ser usadas pela razão especulativa que na verdade não as pode evitar mas quando elas invadem como é sua tendência o raciocínio científico são usadas e abusadas para fornecer evidência plausível para teorias que na realidade são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos Hans Blumenberg em seu Paradigemenzu einerMetaphorologie investigou certas figuras de retórica bastante comuns tais como a metáfora do iceberg ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental e então quase por acidente descobriu em que medida as pseudo ciências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora que substitui a falta de evidência dos dados O melhor exemplo é a teoria da consciência da psicanálise em que a consciência é vista como a ponta de um iceberg uma simples indicação da massa flutuante de inconsciência que está submersa90 Não só essa teoriajamais foi demonstrada como é indemonstrável em seus próprios termos no momento em que um fragmento de inconsciência alcança a ponta do iceberg ele terá se tomado consciente e terá perdido todas as propriedades de sua alegada origem Ainda assim a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus O único problema é que cada uma dessas especulações traz em si um constructo espiritual em cuja ordem sistemática cada dado pode encontrar seu lugar hermenêutico com uma consistência ainda mais rigorosa do que a fornecida por uma teoria científica bem sucedida uma vez que sendo um constructo exclusivamente espiritual sem necessidade de qualquer experiência real não tem de lidar com as exceções à regra Seria tentador acreditar que o pensamento metafórico é um perigo somente quando é utilizado pelas pseudociências e que o pensamento filosófico se não tem pretensão à verdade demonstrável está a salvo na utilização de metáforas apropriadas Infelizmente não é esse o caso Os sistemasde pensamento dos grandes filósofos e metafísicos do passado apresentam uma desconfortável semelhança com os constructos espirituais das pseudo ciências exceto pelo fato de que os grandes filósofos em contraste com a convicção absoluta de seus confrades inferiores insistiram quase que unanimemente em algo inefável por detrás das palavras escritas algo de que quando pensavam c não escreviam tinham clara ciência e que entretanto resistia a ser definido e transmitido para os outros os filósofos insistiram em resumo em que havia algo que se recusava a passar por uma transformação que fizesse com que esse algo aparecesse e tomasse seu lugar entre as aparências do mundo Retrospectivamente somos tentados a ver essas sempre recorrentes declarações como tentativas de advertir o leitor de que ele estaria correndo o risco de cometer um erro fatal de compreensão o que se oferecia a ele eram pensamentos não cognições não pedaços sólidos de conhecimento que uma vez adquiridos dissipariam a ignorância como filósofos estiveram inicialmente interessados em assuntos que escapavam ao conhecimento humano sem que por isso escapassem à razão humana vendose inclusive atormentados por ela E uma vez que na busca dessas questões os filósofos inevitavelmente descobriram um grande número de coisas de fato cognoscíveis a saber todas as leis e axiomas do pensar correto e as várias teorias do conhecimento eles próprios bem cedo acabaram por empalidecer a distinção entre pensar e conhecer Enquanto Platão continuou mantendo que a verdadeira arche início e princípio da filosofia é o espanto91 Aristóteles nos parágrafos iniciais da Metafísica2 interpretou e foi o primeiro a fazêlo este mesmo espanto como pura perplexidade ou desorientação aporem através da perplexidade os homens conscientizamse de sua ignorância a respeito das coisas que se deixam conhecer começando pelas coisas que estão à mão e avançando em direção a grandes assuntos como o Sol a Lua as estrelas e a gênese de todas as coisas Os homens disse ele filosofaram para escapar à ignorância e o espanto platônico foi entendido não mais como um princípio mas como um mero começo todos os homens começam por espantarse mas é preciso terminar com o oposto do espanto e com o que é melhor do que espantarse como é o caso quando eles aprendem93 Assim Aristóteles embora também ele em um contexto diferente tenha falado de uma verdade aneu logou uma verdade que resistia à expressão discursiva94 não teria dito com Platão dos assuntos que abordo nada é conhecido já que não existe nada escrito sobre eles nem jamais haverá qualquer coisa a ser escrita no futuro Quem escreve sobre tais coisas nada sabe sequer conhecese a si mesmo Pois não há jeito de colocar tais coisas em palavras assim como há outras coisas que podem ser aprendidas Por conseguinte ninguém que possua a verdadeira faculdade do pensamento nous e que portanto perceba a debilidade das palavras jamais arriscará a modelar pensamentos em discurso e muito menos a ajustar os pensamentos a uma forma inflexível quanto a das letras escritas95 O mesmo será ouvido quase que com as mesmas palavras ao final de todo este desenvolvimento É desse modo que Nietzsche que certamente não era um platonista escreve a seu amigo Overbeck Minha filosofia não pode mais ser comunicada pelo menos não pode ser impressa96 e em Além do bem e do mal Não se pode mais amar suficientemente um insight quando o comunicamos97 E Heidegger escreve não sobre Nietszche mas sobre si mesmo O limite interno de todo pensamento é que o pensador jamais pode dizer aquilo que é mais seu porque a palavra falada recebe sua determinação do inefável98 Ao que podemos acrescentar breves observações de Wittgenstein cujas investigações filosóficas centramse no inefável em um esforço incansável para dizer o que pode ser Os resultados da filosofia são a descoberta de galos que o intelecto ganhou quando bateu com a cabeça nos limites da linguagem Esses galos são o que designamos aqui como falácias metafísicas são aquilo que nos faz ver o valor da descoberta Ou Os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias wenn die Sprache feiert No alemão isto é ambíguo pode significar tirar férias isto é a linguagem pára de funcionar ou pode significar celebrar o que teria um significado quase oposto Ou A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento de nossa inteligência pela linguagem O problema claro é que novamente tal batalha só pode ser travada com a linguagem99 Voltemos a Platão já que ele é ao que eu saiba o único filósofo de peso a nos deixar mais do que observações ocasionais sobre o assunto A principal parte da Sétima carta não se dirige contra a fala mas contra a escrita Ela repete de forma abreviada as objeções já levantadas contra a escrita no Fedro Há em primeiro lugar o fato de que a escrita implanta o esquecimento fiandose na palavra escrita os homens cessam de exercitar a memória Há em segundo lugar o silêncio majestoso da palavra escrita que não pode nem explicar a si mesma nem responder a questões Em terceiro lugar ela não pode escolher o destinatário cai em mãos erradas e se espalha por toda parte malbaratada e abusada é incapaz de defenderse dela o melhor que se pode dizer é que é um passatempo inofensivo um armazém de mantimentos para quando a era do esquecimento chegar ou um abandono à recreação como as pessoas regalamse com bebida festas e coisas do gênero100 Mas na Sétima carta Platão vai além não menciona suas agrapha dogmata das quais tomamos conhecimento através de um comentário de Aristóteles101 mas também negaas implicitamente quando explicitamente afirma que não há jeito de colocar tais coisas em palavras assim como há outras coisas que podem ser aprendidas Isso é muito diferente do que se lê nos diálogos platônicos embora não seja motivo para considerar a Sétima carta espúria Lêse no Político portanto algo sobre semelhanças entre o visível e o invisível Semelhanças que os sentidos podem apreender estão disponíveis na natureza para aqueles seres reais de modo que quando alguém reivindica uma explicação sobre esses seres não há qualquer problema é só indicar as semelhanças sensíveis e dispensar qualquer indicação com palavras Mas para a maior e mais importante classe de seres não há semelhanças correspondentes visíveis Nesses casos nada de visível pode ser apontado que satisfaça o espírito interrogador Portanto devemos nos treinar para dar uma explicação em palavras para cada ser Porque os seres que não possuem um corpo visível os seres que têm o maior valor e a importância principal são demonstráveis somente pela fala logos e não devem ser apreendidos por qualquer outro meio102 No Fedrotm Platão contrasta a palavra escrita com a palavra falada usada na arte de discorrer sobre as coisas techne dialektike a fala viva o original do qual o discurso escrito pode bem ser chamado de uma espécie de imagem A arte do discurso vivo é exaltada porque ele sabe como selecionar seus ouvintes ele não é estéril akarpoi mas contém um sêmen a partir do qual diferentes logoi palavras e argumentos crescem em diferentes ouvintes de modo que a semente se tome imortal Mas se quando pensamos levamos a cabo esse diálogo interior é como se estivéssemos escrevendo palavras em nossas almas em momentos como esses nossa alma é como um livro mas um livro que já não contém mais palavras104 Depois do escritor um segundo artesão intervém quando pensamos tratase de um pintor que pinta em nossa alma aquelas imagens correspondentes às palavras escritas Isso acontece quando afastamos essas opiniões e afirmações faladas da visão ou de qualquer outro tipo de percepção de modo que então passamos de alguma maneira a ver as imagens daquilo sobre o que inicialmente opinamos e falamos105 Na Sétima carta Platão nos diz brevemente como essa dupla transformação pode chegar a acontecer como é que se pode falar sobre nossa percepção sensível e como esse falar sobre dialegesthai é em seguida transformado em uma imagem visível somente para a alma Temos nomes para o que vemos como por exemplo o nome círculo para algo redondo esse nome pode ser explicado em discurso logos em sentenças compostas de nomes e verbos e dizemos que o círculo é uma coisa cujas distâncias entre o centro e as extremidades são sempre iguais Tais sentenças podem levar à confecção de círculos de imagens eidolon que podem ser desenhadas e apagadas viradas e destruídas processos que obviamente não afetam o círculo em si que é diferente de todos esses círculos O conhecimento e o espírito nous apreendem o círculo essencial isto é aquilo que todos os círculos têm em comum algo que não reside nem nos sons da fala nem nas formas dos corpos mas na alma e tal círculo é claramente diferente do círculo real percebido primeiramente na natureza pelos olhos do corpo e diferente também dos círculos desenhados de acordo com uma explicação verbal Esse círculo na alma é percebido pelo espírito nous que está mais próximo dele por afinidade e semelhança E essa intuição interna pode em si ser chamada de verdade106 À verdade do tipo evidenciai construída conforme o princípio das coisas percebidas pelos nossos olhos do corpo podese chegar através da orientação diagoge de palavras na dialegesthai o fio discursivo de pensamento que pode ser silencioso ou falado entre mestre e discípulo movendose para cima e para baixo interrogando sobre o que é verdadeiro e o que é falso Mas o resultado que se supõe ser uma intuição e não uma conclusão virá de súbito depois de uma longa série de perguntas e respostas quando um instante de insight phronesis geral fulgura e o espírito é inundado de luz107 Essa própria verdade está além das palavras os nomes a partir dos quais se inicia o processo de pensamento não são confiáveis nada impede que as coisas que agora são chamadas de redondas passem a ser chamadas de retas e as retas de redondas08 e as palavras o discurso argumentado da fala que busca explicar são débeis não oferecem mais do que uma pequena orientação para reavivar a luz na alma como a de uma centelha tremulante a qual uma vez gerada tomase autosustentável109 Citei essas poucas páginas da Sétima carta com algum vagar porque oferecem como em nenhum outro lugar uma visão sobre a incompatibilidade entre a intuição a metáforaguia para a verdade filosófica e o discurso o meio pelo qual o pensamento se manifesta a primeira sempre nos apresenta um múltiplo cotemporâneo enquanto o último necessariamente revelase em uma sequência de palavras e sentenças A idéia de que o discurso era um simples instrumento para a intuição foi uma axioma até mesmo para Platão e assim permaneceu ao longo da história da filosofia Desse modo Kant ainda nos diz worauf alies Denken ais Mittel abzweckt íst die Anschauung todo pensamento é um meio de alcançar a intuição110 E Heidegger A dialegesthai traz em si a tendência em direção a uma nova noein uma visão Faltalhe o meio adequado da própria theorem Isso é o sentido básico da dialética platônica que tende para uma visão para um desvelamento que prepara a intuição original através dos discursos O logos permanece atado à visão se a fala se afasta da evidência dada na intuição ela degenera em um palavrório que impede a visão Leigen se enraiza em visão horani A interpretação de Heidegger é confirmada por uma passagem no Filebo2 de Platão em que o diálogo interior de mim comigo mesmo é mais uma vez mencionado sendo que agora em seu nível mais elementar um homem vê um objeto à distância e já que por acaso está sozinho pergunta a si mesmot O que é isso que aparece lá Responde à sua própria pergunta É um homem Se ele estivesse com alguém teria de fato falado aquilo que disse a si mesmo teria se dirigido a seu companheiro teria pronunciado de forma audível os mesmos pensamentos enquanto que sozinho continua a pensar o mesmo consigo próprio A verdade aqui é a evidência vista e falar bem como pensar será autêntico se acompanhado pela evidência vista que se aproprie da verdade traduzindoa em palavras no momento em que essa fala se afasta da evidência vista como por exemplo quando se repetem as opiniões ou pensamentos de outras pessoas ela ganha a mesma inautenticidade que era para Platão característica da imagem quando comparada ao original Dentre as peculiaridades mais destacadas de nossos sentidos está o fato de que não podem ser traduzidos entre si nenhum som pode ser visto nenhuma imagem pode ser ouvida e assim por diante embora estejam interligados pelo senso comum que por essa simples razão é o maior de todos os sentidos Sobre esse tema citei São Tomás de Aquino a única faculdade que se estende a todos os objetos dos cinco sentidos3 A linguagem correspondendo ou acompanhando o senso comum dá a um objeto seu nome comum esse aspecto comum não só é fator decisivo para a comunicação intersubjetiva o mesmo objeto sendo percebido por diferentes pessoas e comum a elas como também serve para identificar um dado que aparece de forma totalmente diferente para cada um dos cinco sentidos áspero ou macio ao tato amargo ou doce ao paladar brilhante ou escuro à visão soando em tons diferentes para a audição Nenhuma dessas sensações pode ser adequadamente descrita em palavras Nossos sentidos cognitivos visão e audição têm muito pouco mais em comum com as palavras do que os sentidos inferiores do olfato do paladar e do tato O máximo que podemos dizer de alguma coisa é que cheira como uma rosa que o gosto é como o de sopa de ervilha que a textura é como a do veludo Uma rosa é uma rosa é uma rosa Obviamente tudo isso é apenas mais uma maneira de dizer que a verdade na tradição metafísica entendida nos termos da metáfora da visão é inefável por definição Sabemos pela tradição hebraica o que acontece com a verdade quando a metáforaguia não é a visão mas a audição em muitos aspectos é mais parecida com o pensamento do que a visão pela habilidade que tem de acompanhar seqüências O Deus hebraico pode ser ouvido mas não visto e a verdade tornase portanto invisível Não farás para ti escultura ou imagem semelhante a nada do que há nos céus ou abaixo da terra A invisibilidade da verdade é na religião hebraica tão axiomática quanto sua inefabilidade na filosofia grega da qual toda filosofia posterior derivou suas hipóteses axiomáticas E enquanto a verdade entendida em termos de audição exige obediência a verdade em termos de visão apóiase no mesmo tipo de autoevidência poderosa que nos força a admitir a identidade de um objeto no momento em que está diante de nossos olhos A metafísica a ciência assombrosa que contempla aquilo que é enquanto é episteme he theorei to on he on poderia descobrir uma verdade que constrangesse os homens pela força da necessidade hyp autes tes aletheias anagkazomenoi115 porque ela apóia se na mesma impermeabilidade à contradição que conhecemos tão bem pelas experiências visuais Porque nenhum discurso seja ele dialético no sentido socráticoplatônico seja lógico que use regras estabelecidas para tirar conclusões a partir de premissas aceitas seja retóricopersuasivo jamais pode equipararse à simples inquestionada e inquestionável certeza da evidência visível O que é aquilo que lá aparece É um homem Essa é uma perfeita adequado rei et intellectus6 o acordo entre o conhecimento e seu objeto que até para Kant era ainda a definitiva definição de verdade Kant entretanto estava ciente de que para tal verdade não se pode exigir qualquer critério geral Seria autocontraditório117 A verdade como autoevidência não demanda um critério ela é o critério o árbitro final de tudo o que possa vir Assim Heidegger ao discutir o conceito tradicional de verdade em Sein und Zeit ilustraa da seguinte maneira Suponhamos que alguém de costas para a parede faz a afirmação correta de que o quadro pendurado na parede está torto A afirmação é confirmada quando quem que a faz virase e percebe o quadro torto na parede118 Talvez todas as dificuldades que a ciência assombrosa a metafísica levantou desde o seu surgimento pudessem ser resumidas na tensão natural entre theoria e logos entre ver e raciocinar com palavras seja na forma de dialética dialegesthai ou ao contrário na de silogismo syl logizesthaiy isto é ao separar as coisas especialmente as opiniões por meio de palavras ou ao reunilas em um discurso que depende para seu conteúdo de verdade de uma premissa inicial percebida pela intuição pelo nous que não está sujeito ao erro por não ser meta logou por não ser uma seqüência de palavras119 Se a filosofia é a mãe de todas as ciências ela é em si a ciência dos começos e dos princípios da ciência dos archai e esses archai que se tomam então o tópico da metafísica aristotélica não podem mais ser derivados são dados ao espírito em intuição autoevidente O que recomenda a visão como metáforaguia na filosofiae juntamente com a visão a intuição como ideal de verdade é não somente a nobreza desse nosso sentido mais cognitivo como também a própria noção inicial de que a busca filosófica pelo significado era idêntica à busca do cientista pelo conhecimento Vale a pena recolocar aqui a estranha volta que Aristóteles dá no primeiro capítulo da Metafísica à proposição de Platão pela qual thaumazeüi o espanto é o começo de toda filosofia Mas a identificação da verdade com o significado foi feita é claro em momento ainda anterior Porque o conhecimento vem da busca daquilo que nos acostumamos a chamar de verdade e a forma mais alta mais definitiva da verdade cognitiva é a intuição Todo conhecimento começa na investigação das aparências tais como nos são dadas aos sentidos E se o cientista quiser então prosseguir e descobrir as causas dos efeitos visíveis seu objetivo final será fazer aparecer o que possa estar escondido por trás das simples superfícies Isso é verdade até mesmo para os mais complicados instrumentos mecânicos projetados para capturar o que se esconde à inspeção a olho nu Em última análise a confirmação da teoria de qualquer cientista surge pela evidência dos sentidos exatamente como no modelo simplista que tomei de Heidegger A tensão a que aludi entre a visão e a fala não entra aqui nesse nível como no exemplo citado a fala traduz a visão de maneira bastante adequada seria diferente se o conteúdo do quadro e não somente sua posição na parede tivesse que ser expresso em palavras O simples fato de que os símbolos matemáticos possam ser substituídos por palavras reais e que possam mesmo ser o mais expressivo dos fenômenos subjacentes forçados a aparecer pelos instrumentos contra sua própria inclinação demonstra a eficácia superior das metáforas da visão para tomar manifesta qualquer coisa que dispense a fala como condutora O pensamento entretanto em contraste com as atividades cognitivas que o podem utilizar como um de seus instrumentos precisa do discurso não só para ter realidade sonora e para tornarse manifesto precisa dele até mesmo para poder ser ativado E uma vez que o discurso é realizado em sequências de sentenças o final do pensamento não pode jamais ser uma intuição nem pode ser confirmado por algum pedaço de autoevidência observado através da contemplação muda Se o pensamento guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo mal a si mesmo e à sua própria função espera verdade de sua atividade tal verdade não é só inefável por definição Como as crianças que tentam agarrar a fumaça com as mãos os filósofos vêem muitas vezes o objeto que estava ao seu alcance escapulir diante deles Bergson o último filósofo a acreditar firmemente em intuição descreveu muito precisamente o que de fato aconteceu com os filósofos daquela escola120 E o motivo do fracasso é simplesmente que nada expresso em palavras pode jamais se ater à imobilidade de um objeto de simples contemplação Comparado com um oojeto de contemplação o significado sobre o qual se pode falar é fugidio se o filósofo quer vêlo e capturálo ele foge121 Desde Bergson o uso da metáfora da visão na filosofia vem não sem surpresa diminuindo à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala de nous para logos Com essa mudança o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto a adequatio rei et intellectus entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto à simples forma do pensamento cuja regra básica é o axioma da nãocontradição da consistência interna isto é passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples pedra de toque negativa da verdade Além da esfera do conhecimento analítico ela não tem como um critério suficiente de verdade qualquer autoridade ou campo de aplicação122 Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais por mais tênues e duvidosas que sejam para Heidegger e para Walter Benjamin a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo mas por assim dizer encolheu em Benjamin a verdade passa despercebida huscht vorübery em Heidegger o momento de iluminação é concebido como relâmpago Blitz e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente das Gelaüt der Stille o som ressonante do silêncio Em matéria de tradição esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação nãodiscursiva Pois embora a metáfora seja agora no fim e no ápice do processo de pensamento extraída do sentido da audição ela não corresponde em nada à escuta de uma seqüência articulada de sons como uma melodia mas novamente a um estado mental imóvel de pura receptividade E uma vez que o pensamento um diálogo silencioso de mim comigo mesmo é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma Catão as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão Bergson ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição falando sobre o ideal de verdade referese ao caráter essencialmente ativo eu quase diria violento da intuição metafísica sem ter consciência da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade muito menos uma atividade violenta123 E Aristóteles fala de energeia filosófica como a atividade perfeita e desembaraçada que justamente por essa razão abriga em si o mais doce de todos os prazeres Alla men he ge teleia energeia kai akolytos en heaute echei to chairein hoste an eie he theoretike energeia pason hediste24 Em outras palavras a principal dificuldade parece aqui ser que para o próprio pensamento cuja linguagem é inteiramente metafórica e cujo arcabouço conceituai depende inteiramente do dom da metáfora que estabelece uma ponte no abismo entre o visível e o invisível o mundo das aparências e o ego pensante não existe uma metáfora capaz de iluminar de forma razoável essa atividade especial do espírito na qual algo invisível dentro de nós lida com os invisíveis do mundo Todas as metáforas extraídas dos sentidos irão desembocar em dificuldades pela simples razão de que todos os nossos sentidos são essencialmente cognitivos portanto concebidas como atividades essas metáforas têm uma finalidade exterior elas não são energeia um fim em si mesmas mas instrumentos que nos possibilitam conhecer e lidar com o mundo O pensamento está fora de ordem porque a busca do significado não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim Em outras palavras o prazer de que fala Aristóteles apesar de manifesto para o ego pensante é inefável por definição A única metáfora que se pode conceber para a vida do espírito é a sensação de estar vivo Sem o sopro de vida o corpo humano é um cadáver sem pensamento o espírito humano está morto De fato é esta a metáfora posta à prova por Aristóteles no famoso capítulo sétimo do livro Lambda da Metafísica A atividade do pensamento energeia que tem seu fim em si mesma é vida125 A lei a ela inerente que somente um deus pode tolerar para sempre e o homem só vez por outra nos momentos em que ele se diviniza é um movimento incessante que é um movimento circular126 o único movimento ou seja o movimento que não tem fim ou que nunca resulta em produto final Surpreende que essa estranhíssima noção do autêntico processo de pensamento isto é a noesis noeseos como um girar em círculos a mais gloriosa justificativa para o argumento circular na filosofiajamais tenha preocupado nem aos filósofos nem aos intérpretes de Aristóteles em parte talvez por causa das freqüentes más traduções de nous e theoria por conhecimento ou seja o que sempre alcança um fim e o que sempre produz um resultado final127 Se o pensar fosse um empreendimento cognitivo ele teria que seguir um movimento retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição O movimento circular aristotélico tomado em conjunto com a metáfora da vida sugere uma busca do significado que para o homem enquanto ser pensante acompanha a vida e termina somente com a morte O movimento circular é uma metáfora retirada do processo vital o qual embora indo do nascimento à morte também gira em círculos enquanto o homem vive A simples experiência do ego pensante mostrouse impressionante a ponto de a noção de movimento circular ser repetida por outros pensadores ainda que ela estivesse em flagrante contradição com suas hipóteses tradicionais de que a verdade é o resultado do pensar de que existe algo como a cognição especulativa de Hegel128 Vemos Hegel dizer sem qualquer referência a Aristóteles A filosofia forma um círculo ela é uma seqüência que não está solta no ar ela não é algo que comece a partir de absolutamente nada pelo contrário ela retoma a si mesma em círculos grifo nosso129 Encontramos a mesma noção no final de O que é a Metafísica de Heidegger onde ele define a questão básica da metafísica como Por que existe algo e não o nada de certo modo a primeira questão do pensar mas ao mesmo tempo o pensamento no qual ela sempre volta a mergulhar130 Ainda assim tais metáforas embora correspondam ao modo especulativo e nãocognitivo de pensar e permaneçam leais às experiências do ego pensante uma vez que não se relacionam com qualquer capacidade cognitiva permanecem singularmente vazias e o próprio Aristóteles não as utilizou em lugar algum a não ser quando afirma que estar vivo é energein isto é estar ativo para o seu próprio bem131 Além disso a metáfora obviamente resiste a responder à questão inevitável Por que pensamos uma vez que não existe resposta para a questão Por que vivemos Nas Investigações filosóficas de Wittgenstein escritas depois de ter ele se convencido da insustentabilidade de sua tentativa anterior no Tractatus de compreender a linguagem e portanto o pensamento como uma figuração da realidade Uma proposição é uma figuração da realidade Uma proposição é um modelo da realidade tal como a concebemos132 há um interessante jogo de pensamento que pode ajudar a ilustrar essa dificuldade Ele pergunta Para que o homem pensa Será que pensa porque descobriu que pensar funciona Por que pensa que é vantajoso pensar Isso seria perguntar Será que ele cria seus filhos porque descobriu que isso funciona Ainda assim temos que admitir que às vezes pensamos porque descobrimos que funciona indicando com o grifo que esse é o caso somente às vezes Portanto Como podemos descobrir por que o homem pensa Ao que responde É freqüente tomarmonos conscientes àos fatos importantes somente quando suprimimos a questão Por queT e então no curso de nossas investigações tais fatos nos levam a uma resposta133 E em um esforço deliberado para suprimir a questão Por que pensamos que eu tratarei da questão O que nos faz pensar Capítulo 3 O que nos faz pensar 14 Os pressupostos filosóficos da filosofia grega Nossa questão O que nos faz pensar não procura nem causas nem objetivos Sem questionar a necessidade humana de pensar ela parte da suposição de que a atividade de pensar está incluída entre as energeiai aqueles atos que como o de tocar flauta têm o seu fim em si mesmos e não deixam nenhum produto externo e tangível no mundo que habitamos Não podemos datar o momento em que essa necessidade começou a ser sentida mas simplesmente a linguagem e tudo aquilo que conhecemos sobre épocas préhistóricas e sobre as mitologias cujos autores não podemos identificar nos dão certo direito de supor que essa necessidade é contemporânea ao aparecimento do homem sobre a terra Podemos sem dúvida datar o começo da metafísica e da filosofia e podemos identificar as respostas dadas à nossa pergunta em diferentes períodos de nossa história Parte da resposta grega pode ser atribuída à convicção que todos os pensadores gregos tinham de que a filosofia toma os mortais capazes de habitar a vizinhança das coisas imortais e assim de adquirir ou alimentar a imortalidade em sua mais alta medida dentro dos limites da natureza humana1 Durante o curto espaço de tempo em que os mortais podem suportála a atividade de filosofar transformaos em criaturas semelhantes a deuses deuses mortais como diz Cícero E seguindo essa direção que a etimologia antiga várias vezes derivou a palavrachave theorem e até mesmo theatron de theos A dificuldade da resposta grega é sua inconsistência com relação à própria palavra filosofia o amor ou desejo da sabedoria que não pode propriamente ser atribuído aos deuses nas palavras de Platão nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio pois ele já o é3 Gostaria de comentar primeiro a estranha noção de athanatizein imortalizar cuja influência sobre o tema legítimo da nossa metafísica tradicional é quase impossível superestimar Em um capítulo anterior como vocês lembrarão interpretei a parábola pitagórica em termos do juízo O juízo como uma faculdade distinta foi descoberto já perto do fim da Idade Moderna quando Kant dando continuidade ao interesse do século XVIII pelo fenômeno do gosto e de seu papel tanto na estética como nas relações sociais escreveu a Crítica do juízo Historicamente falando minha interpretação foi bastante inadequada A concepção pitagórica do papel do espectador teve significado diferente e bem mais abrangente para o surgimento da filosofia no Ocidente A noção grega do divino está intimamente relacionada com o ponto principal da parábola a supremacia do theorem do contemplar sobre o fazer Segundo a religião homérica os deuses não eram transcendentes seu lar não era um além infinito mas o céu bronzeo sua fortaleza para sempre segura4 Homens e deuses eram semelhantes ambos do mesmo gênero hen andron hen theon genos ambos devendo a vida à mesma mãe Os deuses gregos como nos dias de Heródoto tinham a mesma physis que os homens5 Mas embora fossem anthropophysis do mesmo gênero que os homens os deuses tinham evidentemente certos privilégios sobre os mortais eles eram imortais e levavam uma vida fácil Livres das necessidades da vida mortal podiam se dedicar à observação olhando do alto do Olimpo as coisas humanas que para eles não eram mais do que um espetáculo a serviço de sua distração O sentimento dos deuses olímpicos em relação ao caráter de espetáculo do mundo uma noção tão diferente da que tinham outros povos a respeito das ocupações divinas tais como criar e promulgar leis fundar e governar comunidades era uma inclinação partilhada com seus irmãos menos afortunados da terra A paixão de ver como já observamos precede na língua grega até mesmo gramaticalmente a sede de conhecimento Que ela tenha caracterizado a atitude grega básica diante do mundo pareceme algo óbvio demais para exigir documentação O que quer que aparecesse estava lá antes de tudo para ser olhado e admirado a natureza e a ordem harmoniosa do cosmos as coisas que vieram a ser por si mesmas e as que as mãos humanas trouxeram ao ser agein eis ten ousian é a definição de Platão da fabricação to poiein bem como qualquer excelência humana arete apresentada no âmbito das coisas humanas6 O que induziu os homens à mera contemplação foi o kalon a simples beleza das aparências de tal forma que a mais alta idéia do bem encontravase no que mais brilhava tou ontos phanotaton1 A virtude humana o kalon kagathon não era avaliada nem através da intenção ou da qualidade inata do ator nem pela conseqüência de seus atos mas apenas pela execução como ele aparecería enquanto estava fazendo A virtude era o que nós chamaríamos de virtuosismo Assim como nas artes os feitos humanos tinham que brilhar por seus méritos intrínsecos para usar uma expressão de Maquiavel8 Tudo o que existia deveria ser em primeiro lugar um espetáculo digno dos deuses do qual os homens evidentemente como parentes pobres dos habitantes do Olimpo desejavam aproveitar uma parte Assim Aristóteles atribuiu aos gregos a faculdade do logos da fala racional como traço distintivo frente aos bárbaros Mas atribuiu o desejo de ver a todos os homens Desse modo os habitantes da caverna de Platão contentaramse em olhar para os eidola que estavam diante deles na tela sem proferir uma única palavra sem poder nem mesmo dirigirse uns aos outros e comunicarse já que estavam em seus lugares acorrentados pelas pernas e pelo pescoço A multidão compartilha da divina paixão de ver Era algo de divino o que estava implicado na posição do espectador pitagórico divorciado de qualquer coisa humana Quanto menos tempo um homem precisasse para cuidar de seu corpo quanto mais tempo dedicasse à ocupação divina mais ele se aproximaria do modo de vida dos deuses Além disso já que deuses e homens eram do mesmo gênero mesmo a imortalidade divina não parecería estar totalmente fora do alcance dos mortais Embora seja constante fonte de inveja o grande nome a recompensa preciosa por grandes feitos e grandes palavras Homero conferia uma imortalidade potencial um substituto inferior é bem verdade Por outro lado cabia ao espectador conceder essa recompensa ao ator Pois os poetas ocupavamse com o que aparece e desaparece da visibilidade do mundo no curso do tempo antes que os filósofos se ocupassem com o que permanecerá para sempre invisível e com o que não é apenas imortal mas de fato eterno ageneton com o que não apenas não tem fim mas tampouco começo isto é nascimento os deuses gregos como sabemos a partir da Teogonia de Hesíodo eram imortais mas não incriados O que estava em jogo portanto na idéia de uma posição externa ao âmbito dos assuntos humanos antes mesmo do surgimento da filosofia pode ser melhor esclarecido quando examinamos brevemente a noção que os gregos tinham da função poética e da posição do bardo Existe o relato de um poema perdido de Píndaro Ele descrevia o banquete de casamento de Zeus em que esse deus perguntou aos deuses reunidos se faltava algo à sua alegre bemaventurança Ao ouvir isso os deuses lhe imploraram que criasse alguns novos seres divinos que soubessem embelezar suas grandes obras com palavras e música Os novos seres de qualidades divinas a que Píndaro se referia eram os poetas e os bardos que ajudavam os homens a atingir a imortalidade9 Isto porque a história das coisas feitas sobreviveu aos atos e o que é dito tomase imortal se foi bem dito10Os bardos também à maneira de Homero endireitavam a história com palavras mágicas para encantar os homens daí por diante11 Eles não noticiavam simplesmente eles também endireitavam a história orthosas Ajax matouse por vergonha mas Homero mais sábio honrouo entre todos os homens Fazse aqui uma distinção entre uma coisa feita e uma coisa pensada e esta coisapensamento é acessível apenas ao espectador ao nãoagente Essa concepção do bardo vem diretamente de Homero Os versos cruciais são aqueles que contam como Ulisses chega à corte dos Feácios e por ordem do rei é entretido pelo bardo que canta a história de uma passagem da própria vida de Ulisses sua luta com Aquiles Ao ouvila Ulisses esconde sua face e chora apesar de nunca ter chorado antes nem sequer quando os fatos que ele agora ouve ocorreram Só quando ouve a história é que se toma totalmente consciente do seu significado E o próprio Homero diz o bardo canta para deuses e homens o que a musa Mnemosyne que cuida da lembrança pôs em seu espírito A musa deulhe coisas boas e más ela privouo do sentido da visão e deulhe o dom do canto harmonioso Píndaro no poema perdido sobre Zeus deve ter esclarecido tanto o aspecto subjetivo como o objetivo dessas primeiras experiências de pensamento se o homem e o mundo não receberem louvores sua beleza não poderá ser reconhecida Já que os homens aparecem em um mundo de aparências eles precisam de espectadores os que comparecem como espectadores ao festival da vida são tomados por pensamentos de admiração que são então postos em palavras Sem espectadores o mundo seria imperfeito O participante absorvido em coisas específicas e pressionado por afazeres urgentes não pode ver como todas as coisas particulares do mundo e como todos os feitos particulares ajustamse uns aos outros e produzem uma harmonia que não é ela mesma dada à percepção sensorial Esse invisível no visível permanecería para sempre oculto se não houvesse um espectador para cuidar dele admirálo endireitar as histórias e pôlas em palavras Em termos conceituais o significado daquilo que realmente acontece e aparece enquanto está acontecendo só é revelado quando desaparece A lembrança por meio da qual tomamos presente para o nosso espírito o que de fato está ausente e pertence ao passado revela o significado na forma de uma história O homem que faz a revelação não está envolvido com as aparências ele é cego protegido contra o visível para poder ver o invisível E o que ele vê com os olhos cegos e põe em palavras é a história não é nem o próprio ato nem o agente embora a fama do agente venha a atingir grandes alturas Daí surge a pergunta tipicamente grega quem se toma imortal o agente ou o narrador Ou quem está na dependência de quem O agente depende do poeta já que este toma aquele famoso ou o poeta depende do agente pois ele precisa realizar coisas que mereçam ser lembradas Basta lermos a oração fúnebre de Péricles no livro de Tucídides para perceber que a questão permanece sem solução sua resposta depende de quem a responde o homem de ação ou o espectador Péricles estadista e amigo dos filósofos considerava que a grandeza de Atenas a cidade que se tomara uma escola para Hélade assim como Homero se tomara o professor de todos os gregos deviase ao fato de não precisar de nenhum Homero ou de qualquer outro com o seu ofício para tomarse imortal Os atenienses teriam deixado atrás de si pelo simples poder de sua audácia monumentos imorredouros em terras e mares12 O traço distintivo da filosofia grega é que ela rompeu inteiramente com a avaliação de Péricles sobre o modo de vida mais alto e mais divino para os mortais Para citar apenas um dos contemporâneos de Péricles que era também seu amigo vejamos a resposta de Anaxágoras a uma pergunta que aliás parece ter preocupado o povo grego e não apenas os filósofos e os poetas por que ter nascido é melhor do que não ter nascido Anaxágoras responde Para olhar o céu e as coisas que lá estão as estrelas a Lua e o Sol como se nada além disso valesse a pena E Aristóteles concorda com ele Devemos filosofar ou deixar a vida e ir embora daqui13 O que havia de comum entre Péricles e os filósofos era a noção grega geral de que todos os mortais deviam esforçarse para atingir a imortalidade e isso era possível por causa da afinidade entre deuses e homens Comparados com as outras criaturas vivas o homem é um deus14 Ele é como um deus mortal quasi mortalem deum para citar novamente a frase de Cícero cuja tarefa principal portanto consiste em uma atividade que possa remediar sua mortalidade e assim aproximálo ainda mais dos deuses seus parentes mais próximos15 A alternativa a isto é submergir no nível da vida animal Os melhores escolhem uma coisa antes de tudo a fama imortal entre os mortais mas a multidão fartase como o gado16 Aqui o mais importante é que na Grécia préfilosófica tornouse axioma o fato de que o único incentivo digno do homem como homem era a busca da imortalidade o grande feito é belo e louvável não porque sirva a um país ou a um povo mas exclusivamente porque merecerá menção eterna no rol imortal da fama17 Como Diotima faz notar a Sócrates Você acha que Alçaste teria morrido para salvar Admetro ou Aquiles para vingar Pátroclo se eles não acreditassem que sua excelência arete viveria para sempre na memória dos homens como de fato ela vive na nossalí E os vários tipos de amor de acordo com o Banquete de Platão estão em última instância unidos pelo esforço que todas as coisas mortais realizam em direção à imortalidade Não sei quem foi o primeiro grego a tomarse consciente da falha decisiva dessa louvada e invejada imortalidade divina Os deuses eram imortais a thanatoi aqueles que eram para sempre aien eontes mas não eram eternos Como a Teogonia nos informa com alguma riqueza de detalhes todos eles tiveram um nascimento sua duração vital tinha um começo temporal São os filósofos que introduzem uma arche absoluta ou começo ele mesmo sem começo uma fonte nãogeradade geração permanente O iniciador aqui é provavelmente Anaximandro19 Podemos ver o resultado mais claramente no entanto no poema de Parmênides20 O seu ser épara sempre em sentido forte ele é tanto nãogerado aganeton quanto imperecível anolethrori Não limitada nem pelo nascimento nem pela morte a duração do que é substitui e transcende a sobrevivência infinita que caracterizava os deuses Olímpicos21 Em outras palavras para os filósofos o Ser sem nascimento e sem morte substitui a mera imortalidade dos deuses olímpicos O ser tomouse a verdadeira divindade da filosofia porque nas famosas palavras de Heráclito ele não foi feito por nenhum dos deuses ou homens mas foi e sempre será um fogo sempre vivo com medidas permanentes reavivandose e apagandose22 A imortalidade dos deuses não era confiável o que tinha vindo a ser poderia muito bem deixar de ser os deuses préolímpicos não tinham morrido e desaparecido Essa falha a meu ver muito mais do que a sua conduta freqüentemente imoral é que tomou os deuses olímpicos vulneráveis aos ferozes ataques de Platão A religião homérica nunca foi um credo que pudesse ser trocado por um outro credo os deuses olímpicos foram derrubados pela filosofia23 A nova e eterna divindade que Heráclito no fragmento acima citado ainda chama de kosmos não o mundo ou o universo mas sua ordem e harmonia finalmente recebeu de Parmênides o nome de Ser Como sugere Charles Kahn isto parece deverse às conotações de durabilidade que a palavra teve desde o início Sem dúvida é verdade embora não seja nem um pouco óbvio que o aspecto de durabilidade do verbo inseparável da raiz tinge qualquer uso que dele se faça inclusive o uso filosófico24 Se o Ser substituiu os deuses olímpicos a filosofia substituiu a religião Filosofar tomouse o único caminho possível da piedade e a característica mais recente desse novo deus é que ele era Um Tomase evidente que este Um era um deus e ainda inquestionavelmente diferente do que nós entendemos por ser quando vemos que Aristóteles chamou a sua Primeira Filosofia de Teologia que ele não entendia como uma teoria sobre os deuses mas o que passou a chamarse muito mais tarde no século XVIII Ontologia A grande vantagem da nova disciplina é que o homem não precisava mais confiar nos caminhos incertos da posteridade para fazer jus à sua cota de imortalidade Ele poderia realizála em vida sem recorrer à ajuda de seus semelhantes ou dos poetas que teriam podido tomar seu nome imortal ao concederlhe fama A via para a nova imortalidade era ocuparse totalmente e estabelecerse próximo das coisas eternas e a nova faculdade que tornava isto possível era chamadanows ou espírito O termo foi tomado de empréstimo a Homero onde nous abrange todas as atividades espirituais além de designar especificamente a inteligência de uma pessoa E o nous que corresponde ao Ser e quando Parmênides diz to gar auto noein estin te kai einai25 ser e pensar noein a atividade do nous são a mesma coisa ele já está dizendo implicitamente o que Platão e Aristóteles depois dele disseram explicitamente existe algo no homem que corresponde exatamente ao divino porque o capacita para viver por assim dizer na vizinhança do divino E esse caráter divino que faz com que Pensamento e Ser sejam a mesma coisa Usando o nous e retirandose espiritualmente de todas as coisas perecíveis o homem assimilase ao divino E essa assimilação é tomada em sentido literal Pois do mesmo modo que o Ser é um deus de acordo com Aristóteles que cita Ermótimos ou Anaxágoras é o deus em nós e toda vida mortal possui uma parte de algum deus26 O nous como concordam todos os homens sábios diz Platão é rei dos céus e da terra27 está portanto acima do universo inteiro do mesmo modo que o Ser ocupa uma posição mais alta do que todo o resto O filósofo portanto que ousou viajar além dos umbrais do Dia e da Noite Parmênides além do mundo dos mortais será chamado o amigo de deus e se é dado ao homem o privilégio de alcançar a imortalidade esse é um privilégio que lhe foi concedido28 Resumindo engajarse no que Aristóteles chamou theoretike energeia que é a mesma atividade da divindade he tou theou energeia significa imortalizarse athanatizeiri engajarse em uma atividade que em si mesma nos toma imortais na medida do possível e fazer o máximo para viver de acordo com o que em nós é mais elevado29 Para nós é importante notar que a parte imortal e divina dentro do homem só existe se for realizada e concentrada sobre o divino que permanece do lado de fora Em outras palavras o objeto dos nossos pensamentos concede imortalidade à própria atividade do pensamento O objeto é invariavelmente o eterno o que foi é e será e que portanto nem pode ser diferente do que é e nem pode não ser Esse objeto é primariamente as revoluções do universo que podemos acompanhar espiritualmente provando assim que não somos planta de raízes terrenas porém celestes criaturas que têm sua afinidade original não com a terra mas com o céu30 Por trás dessa convicção podemos facilmente detectar o mais antigo e originário espanto filosófico É o espanto que impele o cientista a dissipar a ignorância e que fez Einstein dizer O eterno mistério do mundo isto é do uni verso ésuacompreensibilidade Portanto todo o desenvolvimento subsequente de teorias que correspondam à compreensibilidade do universo é numa certa medida uma fuga contínua do assombro31 Estaríamos tentados a dizer que o Deus dos cientistas criou o homem à sua própria imagem e o pôs no mundo apenas com um Mandamento agora trate de descobrir por si mesmo como tudo isto foi feito e como funciona Em todo caso para os gregos a filosofia era a obtenção da imortalidade32 e como tal realizavase em dois estágios O primeiro era a atividade do nous que consistia na contemplação do eterno e era em si mesma aneu logou não discursiva em seguida vinha a tentativa de traduzir a visão em palavras Isso era chamado por Aristóteles aletheuein e significa não apenas dizer as coisas como elas realmente são sem esconder nada mas além disso aplicase exclusivamente às proposições sobre coisas que sempre e necessariamente são e que não podem ser de outro modo O homem como homem distinto de outras espécies animais é um composto de nous e logos sua essência é ordenada de acordo com o nous e o logos ho anthropos kai kata logon kai kata noun tetaktai autou he ousia33 Dos dois apenas o nous habilita o homem a tomar parte no etemo e no divino enquanto o logos que se destina a dizer o que é legein ta eonta Heródoto é a habilidade singular e especificamente humana que se aplica também ao mero pensamento mortal opiniões ou dogmata a habilidade que ocorre no âmbito dos assuntos humanos e do que meramente parece mas não é O logos ao contrário do nous não é divino e a tradução da visão do filósofo em palavras aletheuein no sentido estrito do filósofo criou dificuldades consideráveis O critério da fala filosófica é a homoiosis em oposição à doxa ou opinião fazer um similar ou assimilar em palavras o mais fielmente possível a visão fornecida pelo nous em si mesma sem palavras e que vê diretamente sem nenhum processo de raciocínio discursivo34 O critério para a faculdade da visão não é a verdade como sugere o verbo aletheuein derivado do termo homérico alethes verídico Em Homero esse verbo é usado para as verba dicendi no sentido de diga me sem esconder lanthanaí nada dentro de você ou seja não me engane como se a função comum da fala aqui implicada no alpha privativum fosse precisamente a de enganar A verdade permanece como critério da fala embora mude de caráter à medida que ela tem que se assimilar e seguir as indicações da visão do nous O critério para a visão é somente a qualidade de eternidade no objeto visto O espírito pode diretamente tomar parte nessa eternidade mas se um homem abandonase aos apetites e às ambições e só com eles ocupase ele não deixará de tomarse totalmente mortal pois só alimenta sua parte mortal Mas se ele empenhouse ardentemente na contemplação dos objetos eternos não poderá deixar de possuir a imortalidade no mais alto grau que a natureza humana admite35 Admitese em geral que a filosofia que a partir de Aristóteles é a área de investigações sobre as coisas que ultrapassavam os objetos físicos e os transcendiam ton meta ta physika sobre o que vem depois do físico tem uma origem grega E tendo origem grega ela coloca para si mesma o objetivo original grego a imortalidade que parecia até mesmo lingüisticamente o propósito mais natural para homens que se compreendiam corho mortais thnetoi ou brotoi Os mortais para quem segundo Aristóteles a morte era o maior dos males eram parentes de sangue pertenciam ao mesmo clã que os deuses imortais como se diz devendo a vida à mesma mãe A filosofia nada fez para mudar esse objeto natural apenas propôs um novo caminho para alcançálo Dito de uma maneira sucinta esse objetivo desapareceu com o declínio e a queda do povo grego e desapareceu totalmente da filosofia com o advento do cristianismo que anunciou a boa nova dizendo aos homens que eles não eram mortais Ao contrário das crenças pagãs o mundo estaria condenado ao fim mas os homens ressuscitariam encarnados após a morte O último traço da busca grega de eternidade pode ser visto no nunc stans o agora permanente da contemplação dos místicos medievais Essa fórmula é impressionante e veremos mais adiante que ela sem dúvida corresponde a uma experiência altamente característica do ego pensante Embora houvesse desaparecido o poderoso incentivo para o filosofar os temas da metafísica permanecem os mesmos e continuaram a prejulgar através dos séculos quais as coisas que valem a pena ser pensadas quais não O que para Platão era evidente que o conhecimento puro diz respeito às coisas que são sempre as mesmas sem mudança nem mistura ou pelo menos as que mais se aproximam delas36 permaneceu sendo com múltiplas variantes a pressuposição principal da filosofia até os últimos estágios da Era Moderna Por definição estavam excluídos todos os assuntos relativos aos negócios humanos porque contingentes podiam sempre ser diferentes do que realmente são Desse modo o próprio Hegel sob a influência da Revolução Francesa na qual segundo ele princípios eternos como liberdade e justiça foram realizados incluiu a história em seu campo de investigação Mas só pôde fazer isso supondo que não apenas as revoluções celestes além das simples coisas do pensamento números e coisas afins mas também o desenrolar dos negócios humanos na Terra seguiam as leis férreas da necessidade as leis da encarnação do Espírito Absoluto Daí por diante o objetivo do filosofar não era a imortalidade mas a necessidade acontemplaçãofilosóficanãotemoutro propósito senão o de eliminar o acidental37 Os assuntos metafísicos originalmente divinos o eterno e o necessário sobreviveram à necessidade de imortalizar por meio do esforço do espírito para ficar e permanecer na presença do divino esforço tomado inútil com a ascensão do Cristianismo quando a fé substituiu o pensamento no papel de condutor da imortalidade E permaneceu também de maneira diferente a avaliação da posição do espectador como o melhor e mais essencialmente filosófico modo de vida Em tempos précristãos essa noção divina estava presente nas escolas filosóficas da Antigüidade tardia quando a vida no mundo não era mais considerada uma graça e quando o envolvimento com os assuntos humanos não era mais visto como uma distração em relação a uma atividade mais divina mas como atitude perigosa e insípida em si mesma Manterse distante do envolvimento político significava ocupar uma posição externa ao turbilhão e à miséria dos assuntos mundanos e de suas mudanças inevitáveis Os espectadores romanos não estavam mais situados nas últimas filas de um teatro de onde eles como deuses poderíam olhar lá embaixo o jogo do mundo Agora o seu lugar era a costa ou o porto seguro de onde poderíam observar sem correr riscos a agitação selvagem e imprevisível do mar varrido pela tempestade Essas são as palavras de Lucrécio louvando as vantagens da posição de mero espectador que prazer quando sobre o mar aberto os ventos revolvem as águas contemplar da costa o penoso trabalho de outrem Não porque as aflições de alguém sejam em si mesmas uma fonte de prazer mas considerar que estás livre de tais males sem dúvida é um prazer38 Aqui evidentemente perdeuse completamente a relevância filosófica da posição de espectador uma perda imposta a todas as noções gregas que passavam para mãos romanas O que se perdeu não foi apenas o privilégio que o espectador tinha de julgar como encontramos em Kant nem o contraste fundamental entre pensar e fazer mas a percepção ainda mais fundamental de que tudo aquilo que aparece está lá para ser visto a percepção de que o conceito mesmo de aparência exige um espectador o que tomava a visão e a contemplação atividades de estatuto o mais elevado Coube a Voltaire tirar conclusões sobre a afirmação de Lucrécio Para ele o desejo de ver não é mais do que curiosidade vulgar ela atrai gente para assistir ao espetáculo de um navio prestes a ser afundado ela leva pessoas a subir em árvores a olhar para os massacres de uma batalha ou a comparecer a execuções públicas E segundo Voltaire essa paixão humana é partilhada com os macacos e filhotes de cachorro Em outras palavras se Lucrécio tem razão e a paixão que o homem tem de assistir aos espetáculos pode ser creditada unicamente ao seu senso de segurança então o simples prazer de ver pode ser atribuído apenas a um impulso imaturo e irracional que põe em perigo nossa própria existência O filósofo a quem Lucrécio se dirige não precisa ver o naufrágio para se prevenir de arriscar sua segurança na ferocidade do mar Infelizmente foi deste modo um tanto superficial que a distância nobre e vantajosa entre o espectador e seu objeto nos chegou pela tradição se aqui deixarmos de fora o alto posto ocupado pela contemplação na filosofia medieval com suas conotações totalmente distintas É curioso notar como Lucrécio é muitas vezes a referência implícita ou explícita Assim escreveu Herder sobre a Revolução Francesa Podemos olhar a Revolução Francesa a partir de um porto seguro como se estivéssemos olhando um naufrágio em mar aberto e estranho a menos que a má sorte nos lance nele contra nossa vontade E Goethe quando indagado sobre como tinha se saído na batalha de Jena respondeu com a mesma imagem Não posso me queixar Eu era como um homem que observa de uma sólida rocha o mar furioso lá embaixo e que embora impotente para prestar socorro não pode ser atingido pela arrebentação De acordo com um autor antigo este deve ser um sentimento reconfortante39 Quando chegamos à Idade Moderna quanto mais nos aproximamos da nossa época menos resta não nos manuais mas na experiência real dos pressupostos préfilosóficos que de fato foram as parteiras da ciência assombrosa McKeon chamada metafísica 15 A resposta de Platão e seus ecos Existe na filosofia grega contudo uma resposta à questão sobre O que nos faz pensar que nada tem a ver com esses pressupostos préfilosóficos tão importantes para a história da metafísica e que provavelmente já há muito tempo perderam a relevância Em minha opinião uma resposta que não perdeu nada de sua piausibilidade é a já citada afirmação de Platão a saber a de que a origem da filosofia é o espanto Pois esse espanto não tem nenhuma ligação com a busca de imortalidade Mesmo na famosa interpretação de Aristóteles do espanto como aporein o estar perplexo devido à própria ignorância que pode ser descartada pelo conhecimento não se encontra nenhuma menção ao athanatizein à atividade imortalizante que conhecemos da Ética a Nicômaco e que é sem dúvida inteiramente platônica40 A observação de Platão sobre o espanto ocorre antes abruptamente durante uma discussão sobre a relatividade das percepções sensoriais e ao que eu saiba não se repete em lugar algum de sua obra Ao falar de algo fora de ordem a própria passagem está um tanto fora de ordem como freqüentemente acontece em Platão onde sentenças mais eloqüentes podem facilmente ser isoladas e soam fora do contexto Isso ocorre especialmente quando depois de ter se envolvido em perplexidades lógicas e de outros tipos próprias de seu século e das quais poderiamos corretamente dizer que são datadas ele subitamente interrompe a discussão Ali Teeteto acabara de dizer que estava espantado no sentido comum de estar perplexo pelo que Sócrates o elogia Esta é a verdadeira marca do filósofo Mas Platão nunca volta à questão que estava sendo até então discutida A curta passagem é a seguinte Pois essa é a principal paixão pathos do filósofo espantarse thaumazeiri Não há outro começo ou princípio arche da filosofia senão esse Penso que não era mau genealogista aquele ou seja Hesíodo que fez de íris o arcoíris um mensageiro dos deuses filha de Thaumas aquele que espanta41 À primeira vista isso parece apenas dizer que a filosofia para a escola jônica tinha nascido da astronomia tinha surgido do maravilhamento com os milagres do céu Assim como o arcoíris ao ligar o céu com a terra traz sua mensagem aos homens o pensamento ou a filosofia correspondendo no espanto à filha daquele que espanta ligam a terra ao céu Em um exame mais detalhado essas poucas palavras indicam muito mais A palavra íris arcoíris aparece também no Crátilo42 em que Platão a deriva do verbo dizer eireiri porque ela era uma mensageira ao passo que a palavra para designar espanto thaumazein que ele ali despoja do sentido ordinário em que Teeteto a havia empregado quando traça sua genealogia aparece regularmente em Homero e é derivada de um dos muitos verbos gregos que designam ver no sentido de olhar para theasthai encontramos antes a mesma raiz nos theatai de Pitágoras os espectadores Em Homero esse olhar suscitado pelo espanto está em geral reservado para homens a quem um deus aparece Ele também é usado como adjetivo para homens admiráveis a saber homens dignos do espanto admirativo que costumamos reservar para os deuses para homens semelhantes a deuses Além disso os deuses que apareciam aos homens tinham essa peculiaridade apareciam sob um disfarce humano familiar e eram reconhecidos apenas por aqueles que se aproximavam O espanto como resposta não é algo portanto que os homens possam evocar por si mesmos O espanto é um pathos algo sofrido e não produzido Em Homero é o deus quem age enquanto os homens têm que suportar sua aparição e não dela fugir Em outras palavras o que deixa os homens espantados é algo familiar e ainda assim normalmente invisível que eles são forçados a admirar Aquele espanto que é o ponto de partida do pensamento não é nem a confusão nem a surpresa nem a perplexidade é um espanto de admiração Aquilo que nos maravilha é afirmado e confirmado pela admiração que irrompe na fala o dom de íris o arcoíris a mensageira das alturas A fala então toma a forma de louvor de glorificação não de uma aparência particularmente surpreendente nem da soma total das coisas no mundo mas da ordem harmoniosa por trás delas que em si mesma é invisível e da qual não obstante o mundo das aparências oferece um vislumbre Pois as aparências são um vislumbre do nãorevelado opsis gar ton adelon ta phainomena nas palavras de Anaxágoras43 A filosofia começa com a consciência dessa ordem harmônica invisível do kosmos que se manifesta em meio às visibilidades familiares como se estas se tivessem tomado transparentes O filósofo maravilhase com a harmonia nãovisível que segundo Heráclito é melhor do que a visível harmonie aphanes phaneres kreitton44 Outra palavra que desde cedo designou o invisível em meio às aparências é physis natureza a qual de acordo com os gregos era a totalidade das coisas que não eram feitas pelo homem nem criadas por um artífice divino mas que tinham vindo a ser por si mesmas Heráclito diz dessaphysis que ela gosta de se esconder45 por trás das aparências Introduzí Heráclito à guisa de explicação já que o próprio Platão não especifica a que se dirige esse espanto admirativo Ele também não diz como esse maravilhamento original transformase no diálogo do pensamento Em Heráclito a importância do logos é ao menos sugerida no seguinte contexto Apoio diz ele o mestre do oráculo de Delfos e podemos acrescentar o deus dos poetas não fala nem esconde mas indica oute legei oute kryptei alia semainei4 Isto é ele ambiguamente insinua algo para ser entendido apenas por aqueles que compreendem simples insinuações o deus winkt acena na tradução de Heidegger De uma sugestão ainda mais tantalizante é outro fragmento Olhos e ouvidos são más testemunhas para os homens quando eles têm almas bárbaras47 isto é quando não possuem logos Para os gregos o logos não era apenas a fala mas o dom do argumento racional que os distinguia dos bárbaros Em resumo o espanto levou a pensar em palavras a experiência do espanto diante do invisível manifesto nas aparências foi apropriada pela fala que ao mesmo tempo é forte o suficiente para dissipar os erros e as ilusões a que nossos órgãos para o visível olhos e ouvidos estão sujeitos quando o pensamento não vem em seu socorro Daí parece óbvio que o espanto que acomete o filósofo jamais pode dizer respeito a qualquer coisa em particular mas é sempre evocado pelo todo que ao contrário da soma total dos entes jamais se manifesta A harmonia de Heráclito realizase através do ressoar em conjunto dos contrários um efeito que jamais pode ser atingido por nenhum som particular Essa harmonia de certo modo é separada kechorismenori dos sons que a produzem do mesmo modo que o sophon que pode ser e não ser chamado pelo nome de Zeus48 está separado de todas as coisas49 Nos termos da parábola pitagórica é a beleza do jogo do mundo o significado e a significação de todos os particulares agindo juntos que como tal se manifesta apenas para um espectador em cujo espírito instâncias particulares e seqüências estão invisivelmente unidas Desde Parmênides a palavrachave para esse todo invisível e imperceptível implicitamente manifesto em tudo aquilo que aparece tem sido Ser aparentemente a palavra mais vazia e geral a mais desprovida de sentido em nosso vocabulário Descreveuse com grande precisão milhares de anos depois de ter sido pela primeira vez descoberto pela filosofia grega aquilo que ocorre a um homem normal que subitamente interrompe seu caminho normal quando se dá conta da presença absolutamente penetrante do Ser no mundo das aparências A passagem é relativamente moderna e portanto mais enfática a respeito de emoções pessoais e subjetivas do que seria qualquer outro texto grego e talvez por esta razão ela é mais persuasiva para os ouvidos psicologicamente treinados Coleridge escreve Algum dia já elevastes teu espírito para considerar a existência em si e por si do mero ato de existir Algum dia já dissestes pensativo É Sem te importar nesse momento se havia diante de ti um homem uma flor ou um grão de areia em uma palavra sem referência a este ou àquele modo ou forma particular da existência Se tiveres alcançado isto fará sentido a presença de um mistério que fixou teu espírito no espanto e na admiração As próprias palavras Não há nada ou Houve um tempo em que não havia nada são contraditórias Algo em nós repele essa proposição com uma luz tão repleta e instantânea que é como se recebesse sua evidência em nome da própria eternidade Não ser portanto é impossível ser incompreensível Se dominaste essa intuição da existência absoluta terá também apreendido que foi essa e não outra a intuição que nos primeiros tempos apoderouse dos espíritos mais nobres dos eleitos entre os homens com uma espécie de horror sagrado Foi ela que primeiro os levou a sentir dentro de si algo inefavelmente maior do que a sua própria natureza individual50 O espanto platônico o choque inicial que põe o filósofo em seu caminho foi revivido em nossa própria época quando Heidegger em 1922 concluiu uma conferência intitulada O que é metafísica com as palavras já citadas Porque existe afinal algo e não antes o nada Heidegger dizia que era esta a questão básica da metafísica51 A mesma pergunta expressando o choque do filósofo em termos modernos foi formulada antes de Heidegger Ela aparece nos Príncipes de la nature et de la grâce de Leibniz Pourquoi il y a plutôt quelque chose que rien Pois uma vez que le rien est plus simple et plus facile que quelque chose 52 esta coisa tem que ter uma causa suficiente para sua existência e esta causa por sua vez precisa ter sido produzida por outra coisa Seguindo essa linha de pensamento ele finalmente chega à causa sui a algo que é causa de si mesmo de tal modo que a resposta de Leibniz chega à causa última chamada Deus o deus dos filósofos uma resposta que já se encontrava no motor imóvel aristotélico Foi Kant é claro quem aplicou o golpe de misericórdia nesse deus e em suas palavras sobre o tema podemos claramente reconhecer aquilo que Platão apenas insinuara a necessidade incausada e incondicionada que o nosso pensamento de causaeefeito exige de maneira tão indispensável como suporte definitivo de todas as coisas é o verdadeiro abismo para a razão humana Não podemos evitar o pensamento que entretanto não podemos suportar de que um ser que nos representamos como um ser supremo entre todos os seres possíveis devesse dizer para si mesmo Eu sou desde a eternidade até a eternidade fora de mim nada existe que não tenha sido pela minha simples vontade mas então de onde souT Aqui tudo rui sob nossos pés e nem a maior e nem a menor perfeição é substantiva ou fundamentada para a razão especulativa que não faz nenhum esforço para reter uma ou outra e não sente perda alguma em deixar ambas desvanesceremse53 O que nos impressiona aqui em seu aspecto especificamente moderno é que confirmando a antiga intuição de Parmênides de que o nada é inconcebível e impensável a ênfase deslocouse do nada para o Ser Kant em lugar algum diz que o abismo do nada não é porque é inconcebível e embora possa ter dito que as antinomias da razão fizeramno pensar despertandoo do sono dogmático da razão ele não diz em lugar algum que a experiência desse abismo o outro lado do espanto platônico produziu o mesmo efeito Schelling citou enfaticamente as palavras de Kant e provavelmente foi dessa passagem e não da observação mais superficial de Leibniz que ele derivou sua própria e repetida insistência nessa questão última de todo pensamento por que existe algo por que não existe nada54 Schelling diz que é esta a mais desesperadoradas questões55 A referência ao puro desespero que surge do próprio pensamento aparece nos escritos tardios de Schelling e isto é significativo porque o mesmo pensamento já o havia assombrado antes em sua juventude quando ele ainda acreditava que para banir o nada bastava a afirmação absoluta que ele chamava a essência da nossa alma Por meio dessa afirmação reconhecemos que o nãoser é para sempre impossível incognoscível e incompreensível E para o jovem Schelling essa questão última porque não há o nada porque há algo colocada pelo intelecto tomado de vertigem à beira do abismo é para sempre suprimida pela percepção de que o Ser é necessário feito de tal forma que ele é pela afirmação absoluta do Ser na cognição56 Tudo isso sugeriría um simples retomo à posição de Parmênides se Schelling não tivesse sentido que somente a posição absoluta da idéia de Deus poderia garantir essa afirmação que segundo ele é a negação absoluta do nada é tão certo que a razão para sempre nega o nada e que o nada não é coisa nenhuma quanto é certo que a razão afirma o Todo e que Deus é eterno Portanto a única resposta completamente válida à questão Por que o nada não existe por que existe algo em geral não é alguma coisa mas o Todo ou Deus51 A razão sem a ajuda da idéia de Deus e segundo a sua simples natureza pode postular um Ser que é para sempre mas então ao confrontarse com esse pensamento que é da sua própria natureza postular ela permanece atônita quasi attonitd paralisada incapaz de se mover58 Nenhum mensageiro semelhante a íris trazendo o dom da fala e com ele o dom do argumento racional e o da resposta argumentada acompanha o choque filosófico e a afirmação do Ser em clara correspondência com o elemento de admiração no espanto de Platão necessita da fé em um DeusCriador que sal ve a razão humana de seu olhar de relance mudo e vertiginoso sobre o abismo do nada Uma vez que essa fé tenha sido resolutamente rejeitada e que a razão humana tenha ficado completamente só com as suas próprias capacidades o que sucede à questão última do pensamento pode ser detectado em  náusea de Sartre de longe sua mais importante obra filosófica Ao olhar para a raiz de um castanheiro o herói do romance foi repentinamente tomado por aquilo que significava existir a existência costuma se esconder Ela está aí à nossa volta em nós ela é nós não podemos dizer duas palavras sem mencionála mas nunca se pode tocála Mas agora a existência tinha se desvelado subitamente Tinha perdido a aparência inofensiva de uma categoria abstrata ela era a verdadeira pasta das coisas Ou melhor a raiz os portões do parque o banco a grama esparsa tudo se tinha esvanecido a diversidade de coisas sua individualidade eram apenas uma aparência um verniz A reação do herói de Sartre não é de admiração sequer de espanto mas de náusea diante da opacidade da simples existência do puro estaraí despojado do que é dado factualmente que sem dúvida nenhum pensamento jamais conseguiu apreender e muito menos iluminar e tomar transparente Não se poderia sequer perguntar de onde tudo isso surgiu ou como o mundo veio a existir em lugar de nada Agora que todo maravilhamento foi eliminado tornouse o escândalo de Ser que o nada seja impensável Nada havia antes Nada Isso era o que me irritava é claro que não havia nenhuma razão para a existência desse fluxo de lava Mas era impossível para ele não existir Ele era impensável para imaginar o nada é preciso já ser no meio do mundo vivo com os olhos bem abertos Percebi com tédio que eu não tinha nenhum meio de entender Nenhum meio E no entanto ele estava lá à espera como que espreitando E esse estaraí completamente sem sentido que faz o herói exclamar Imundície Quanta imundice mas ela estava lá firme e era tanta tons e mais tons de existência infinitamente59 Seria muito tentador ver o fim da filosofia ao menos daquela cujo início Platão fixou nesse deslocamento progressivo do Ser para o Nada causado não pela perda do espanto ou da perplexidade mas pela perda da admiração e da disposição para afirmar o Ser no pensamento Sem dúvida a mudança de direção da afirmação para a negação é até fácil de entender não porque tenha sido ocasionada por qualquer evento tangível ou pensamento mas porque como Kant já tinha observado à razão especulativa não custa nada e tampouco ganha ela alguma coisa ao se voltar para qualquer um dos aspectos da questão Assim a noção de que pensar significa dizer sim e confirmar a factualidade da simples existência encontrase em muitas variantes através da história da filosofia na Idade Moderna Nós a encontramos notadamente na aquiescência de Espinoza ao processo em meio ao qual tudo o que existe oscila e onde os tubarões sempre devoram os peixes pequenos Ela aparece nos escritos précríticos de Kant quando ele diz ao metafísico que ele deveria em primeiro lugar perguntar E possível que nada exista O que então o levaria à conclusão de que se absolutamente nenhuma existência fosse dada tampouco haveria sobre o quê pensar um pensamento que por sua vez levao a um conceito de um ser absolutamente necessário61 uma conclusão que Kant dificilmente teria endossado no período crítico Mais interessante é uma observação feita por ele um pouco antes sobre a vida no melhor dos mundos possíveis Ele repete o velho e reconfortante pensamento de que o todo é o melhor e tudo é bom em vista do todo mas ele mesmo não parece estar nem um pouco convencido desse antigo topos da metafísica pois subitamente exclama rz rufe aliem Geschõpfe zu Heil uns wir sind Conclamo todas as criaturas Viva para nós porque nós somos61 Essa afirmação ou melhor a necessidade de reconciliar pensamento e realidade é um dos motivos condutores da obra de Hegel Ela inspira o amorfati de Nietzsche e sua noção de eterno retomo a mais alta forma de afirmação que pode ser alcançada62 precisamente porque é ao mesmo tempo o peso mais pesado E se um demônio te dissesse essa vida tal como agora tu a vives terás que vivêla inúmeras vezes ainda e não haverá nada de novo nela ao contrário cada dor e cada alegria e cada pensamento e cada suspiro voltarão na mesma ordem e seqüência A ampulheta da existência será virada sempre de novo e tu com ela mísero grão de poeira Tu não te atirarias ao chão e não amaldiçoarias o demônio que o tivesse dito A menos que tu tenhas vivido um momento formidável quando lhe terias respondido Es um deus e jamais ouvi nada mais divino Quão bem disposto deverías tornarte para ti mesmo e a paz a vida de modo a não desejar nada deforma mais fervorosa do que essa eterna e definitiva confirmação e selo63 O ponto relevante dessa passagem é que a noção nietzscheana do eterno retorno não é uma idéia no sentido kantiano que regula nossas especulações nem obviamente é nada que lembre uma teoria uma recaída por assim dizer do antigo conceito de tempo e de seu movimento cíclico Ela é um mero pensamento ou melhor um experimento de pensamento e sua pungência reside na conexão íntima que junta o pensamento do Ser ao pensamento do nada Aqui a necessidade de confirmação não surge da admiração grega pela beleza e pela harmonia invisível que reúne a diversidade infinita de coisas particulares mas do simples fato de que ninguém pode pensar o Ser sem ao mesmo tempo pensar o nada ou pensar no significado sem pensar na futilidade na vaidade e na ausência de significado A saída para essa perplexidade parece estar indicada no velho argumento de que sem uma confirmação original do Ser não haveria nada sobre que pensar nem ninguém que pensasse Em outras palavras a própria atividade de pensar não importa que tipo ela tenha jápressupõe aexistência Mas tais soluções meramente lógicas são sempre traiçoeiras Uma pessoa que se agarre à noção de que não há verdade jamais se deixará dissuadir mesmo quando lhe for demonstrado que a proposição se destrói a si mesma Uma solução existencial e metalógica da perplexidade pode ser encontrada em Heidegger que como vimos exibiu algo semelhante ao espanto platônico quando reiterou a pergunta por que afinal há alguma coisa e não antes o nada Segundo Heidegger pensar think e agradecer thank são essencialmente a mesma coisa até os nomes são derivados da mesma raiz etimológica Essa resposta sem dúvida está mais próxima do espanto admirativo de Platão do que qualquer uma das outras anteriormente discutidas A dificuldade não reside na derivação etimológica nem na falta de demonstração argumentativa E ainda a velha dificuldade característica de Platão da qual ele mesmo parece ter estado bastante consciente e que é discutida no Parmênides O espanto admirativo concebido como ponto de partida da filosofia não deixa lugar para a existência factual da desarmonia da feiúra e enfim do mal Nenhum diálogo de Platão trata da questão do mal apenas no Parmênides ele demonstra um real interesse pelas conseqüências da inegável existência das coisas hediondas e dos atos vis sobre a doutrina das Idéias Se tudo o que aparece toma parte de uma Idéia visível apenas aos olhos do espírito e se deriva dessa forma qualquer que seja a realidade que possa ter na caverna dos assuntos humanos o mundo da percepção sensorial ordinária então tudo o que aparece e não apenas as coisas admiráveis deve sua aparição a um ente suprasensível que explica sua presença no mundo Nesse caso pergunta Parmênides o que dizer a respeito dos objetos corriqueiros e baixos como o cabelo a lama e a sujeira que jamais despertaram admiração em ninguém Platão falando por meio da figura de Sócrates não usa a justificativa comum surgida mais tarde do mal e da feiúra como partes necessárias do todo que apenas da perspectiva limitada do homem aparecem como mal e como feio Ao contrário Sócrates responde que seria simplesmente absurdo atribuir Idéias a tais coisas nesses casos as coisas são exatamente as que vemos e sugere que é melhor recuar por medo de cair em um poço sem fundo de contrasensos Parmênides contudo já um velho no diálogo aponta Isto é porque você ainda é jovem Sócrates e a filosofia ainda não se apoderou de você de uma maneira tão firme como penso que ela um dia o fará Então você não desprezará nenhuma dessas coisas mas hoje sua juventude ainda o faz considerar o que o mundo vai pensar64 Mas a dificuldade não se resolve e Platão nunca mais levanta a questão Só estamos interessados aqui na doutrina das Idéias à medida que se puder demonstrar que a noção de Idéia ocorreu a Platão por causa das coisas belas e que jamais lhe ocorrería se ele estivesse cercado apenas por objetos corriqueiros e baixos Existe evidentemente uma diferença decisiva entre a investigação sobre os assuntos divinos empreendida por Platão e Parmênides e as tentativas de Sólon e Sócrates aparentemente mais humildes de definir as medidas que não se vêem que ligam e determinam os negócios humanos E é enorme a relevância dessa diferença para a história da filosofia que não é a história do pensamento Importa em nosso contexto que nos dois casos o pensamento ocupase com as coisas invisíveis para as quais não obstante as aparências apontam o céu estrelado acima de nós ou os feitos e destinos dos homens coisas invisíveis que estão presentes no mundo visível da mesma maneira que os deuses homéricos que eram visíveis apenas para aqueles de quem de aproximavam 16 A resposta romana Em minha tentativa de isolar e examinar uma das fontes básicas do pensamento nãocognitivo enfatizei os elementos de admiração confirmação e afirmação que encontramos tão poderosos no pensamento filosófico e préfilosófico gregos Podemos reencontrálos através dos séculos não como uma influência mas muitas vezes como uma experiência de primeira mão Não estou de modo algum segura de que tudo o que venho descrevendo contraria as atuais experiências de pensamento mas estou totalmente certa de que contraria a opinião que hoje em dia se tem sobre o assunto A opinião comum sobre a filosofia foi formada pelos romanos que se tomaram os herdeiros da Grécia Ela traz a marca não da experiência romana original que foi exclusivamente política e que encontramos em sua forma mais pura em Virgílio mas do último século da República romana quando a respublica a coisa pública já estava se perdendo até finalmente tomarse propriedade privada da família imperial após a tentativa de restauração empreendida por Augusto A filosofia bem como as artes e as letras como a poesia e a historiografia tinha sido importada da Grécia Em Roma enquanto a coisa pública permaneceu intacta a cultura foi encarada com alguma suspeita Mas foi também tolerada e até admirada como um passatempo nobre para as pessoas de boa educação e como uma maneira de embelezar a Cidade Eterna Apenas nos séculos de declínio e queda primeiro da República depois do Império essas atividades tomaramse sérias e a filosofia por sua vez e apesar do legado grego tornouse uma ciência a animi medicina de Cícero o oposto do que tinha sido na Grécia65 Sua utilidade era ensinar aos homens como curar seus espíritos desesperados escapando do mundo através do pensamento Sua famosa divisaque quase parece ter sido formulada em oposição ao espanto admirativo platônico tornouse nil admirari não surpreenderse com nada nada admirar66 Mas não é apenas a imagem popular da figura do filósofo o homem sábio a quem nada perturba que devemos à herança romana O famoso dito de Hegel sobre a relação da filosofia com a realidade A coruja de Minerva só levanta vôo depois de começado o crepúsculo traz mais a marca da experiência romana do que da grega67 Para Hegel a coruja de Minerva representava Platão e Aristóteles surgindo por assim dizer dos desastres da guerra do Peloponeso Não a filosofia mas a filosofiapoZírica de Platão e de Aristóteles nasceu do declínio da polis uma forma de vida que havia envelhecido Em relação a essa filosofia política a observação brilhantemente impertinente de Pascal em Pensées é de uma adequação evidente Só conseguimos imaginar Platão e Aristóteles vestindo as grandes túnicas de acadêmicos Eles eram pessoas de bem e como as outras riam com seus amigos e quando quiseram se divertir escreveram as Leis e a Política Essa parte de suas vidas foi a menos filosófica e a menos séria Se escreveram sobre política foi como que para pôr ordem em um hospício e se deram a impressão de estar falando sobre uma grande coisa é porque sabiam que os loucos a que falavam pensavam ser reis e imperadores Adotaram seus princípios para tomar a loucura deles o mais inofensiva possível61 De qualquer modo é patente a profunda influência romana mesmo sobre um filósofo tão metafísico como Hegel no primeiro livro que publicou em que discute a relação entre filosofia e realidade A necessidade da filosofia surge quando o poder unificador desapareceu da vida dos homens quando os opostos perderam a tensão viva de sua relação e sua dependência mútua para se tomarem autônomos É da desunião da desavença que nasce o pensamento ou seja a necessidade de reconciliação Entzweiung ist der Quell des Bedürfnisses der Philosophicw O que há de romano na noção hegeliana de filosofia é que o pensamento não surge de uma necessidade da razão mas tem uma raiz existencial na infelicidade Hegel com seu grande sentido histórico reconheceu muito claramente o caráter tipicamente romano dessa raiz no seu tratamento do mundo romano em suas conferências tardias publicadas sob o título de Filosofia da história O estoicismo o epicurismo e o ceticismo embora opostos um ao outro tinham o mesmo propósito a saber tomar a alma absolutamente indiferente a tudo o que o mundo real tinha a oferecer70 O que ele aparentemente não reconheceu contudo é até que ponto generalizou a experiência romana A História do Mundo não é o teatro da felicidade Os períodos de felicidade são as suas páginas em branco pois esses são períodos de harmonia71 O pensamento então surge da desintegração da realidade e da resultante des união entre homem e mundo da qual surge a necessidade de um outro mundo mais harmonioso e significativo Tudo isso soa bastante coerente Frequentemente sem dúvida o primeiro impulso do pensamento coincidiu com o impulso para escapar de um mundo que se tinha tornado insuportável E improvável que esse impulso para escapar seja menos antigo do que o espanto admirativo Não o encontramos expresso entretanto em uma linguagem conceituai durante todo o período anterior aos longos séculos de declínio que começaram a partir do momento em que Lucrécio e Cícero transformaram a filosofia grega em algo essencialmente romano o que significou entre outras coisas algo essencialmente prático72 E após esses precursores que do desastre tinham apenas o pressentimento tudo está decaindo gradualmente e se aproximando do fim exaurido pela velhice nas palavras de Lucrécio foi necessário mais de um século para que essas linhas de pensamento se desenvolvessem em uma espécie de sistema filosófico consistente73 Isso ocorreu com Epiteto o escravo grego e possivelmente o espírito mais penetrante dentre os estóicos tardios De acordo com ele o que precisa ser aprendido para tomar a vida suportável não é realmente o pensamento mas o uso correto da imaginação a única coisa que está inteiramente em nosso poder Ele ainda usa um vocabulário grego enganosamente familiar mas o que ele chama de faculdade do raciocínio dynamis logike tem tão pouco a ver com o logos e o nous gregos quanto o que chama de vontade tem a ver com a proairesis aristotélica A faculdade de pensar é para ele em si estéril akarpa Para ele o tema da filosofia é a própria vida de cada um E o que a filosofia ensina é uma arte de viver de como lidar com a vida do mesmo modo que a carpintaria ensina a lidar com a madeira75 O que conta não é a teoria abstratamente mas seu uso e sua aplicação chresis ton theorematon Pensar e compreender são uma mera preparação para a ação admirar o mero poder da exposição o logos o argumento racional e o próprio curso do pensamento pode acabar por fazer do homem um gramático em vez de um filósofo76 Em outras palavras o pensamento tornouse uma techne um tipo particular de artesania talvez merecedor da mais alta estima certamente a mais urgentemente requerida uma vez que o seu produto acabado é a conduta de nossa própria vida O que se tinha em mente não era uma forma de vida no sentido de um bios theoretikos ou politikos uma vida dedicada a uma atividade particular mas o que Epiteto chamava de ação uma ação em que não se age em uníssono com nenhuma outra pessoa da qual se espera que não mude nada além do próprio eu e que se podería tornar manifesta apenas na apatheia e na ataraxia do homem sábio isto é na sua recusa de agir não importando o que de bom ou de ruim lhe pudesse ocorrer Tenho que morrer mas preciso fazêlo suspirando Não posso evitar o acorrentamento mas não posso evitar as lágrimas Você começa a algemarme são as minhas mãos que você algema Você começa a decapitarme mas quando foi que eu disse que a minha cabeça não podería ser cortada fora77 Evidentemente esses não são apenas exercícios de pensamento mas exercícios de poder da vontade Não peça que os eventos ocorram como você quer mas faça com que sua vontade seja a de que eles ocorram como de fato ocorrem e então você terá paz Essa é a quintessência da sabedoria de Epiteto pois é impossível que o que acontece seja diferente do que de fato é78 Isso irá nos interessar quando lidarmos com o fenômeno da vontade uma faculdade espiritual totalmente distinta cuja característica principal comparada com a habilidade de pensar é que não fala na voz reflexiva nem usa de argumentos mas apenas de imperativos mesmo quando não comanda nada além do pensamento ou melhor da imaginação Pois para obter a retirada radical da realidade exigida por Epiteto a ênfase na habilidade que o pensamento tem de tomar presente o que está ausente deslocase da reflexão para a imaginação e isso não para imaginar utopicamente um mundo diferente ou melhor O objetivo é muito mais reforçar o alheamento original que caracteriza o pensamento a tal ponto que a realidade desapareça completamente O pensamento é normalmente a faculdade de tomar presente o que está ausente ao passo que a faculdade de lidar com as impressões corretamente mencionada por Epiteto consiste em esconjurar e banir o que de fato está presente Tudo o que nos diz respeito existencialmente enquanto vivemos em um mundo de aparências são as impressões por meio das quais somos afetados Se aquilo que nos afeta existe ou é mera ilusão depende de nossa decisão de reconhecêlo ou não como real Sempre que a filosofia é compreendida como a ciência que lida com o espírito tomado como mera consciência e portanto sempre que a questão da realidade é totalmente suspensa posta entre parênteses reencontramos a velha posição estóica Falta apenas o motivo original que faz do pensamento um mero instrumento que trabalha a serviço da vontade Em nosso contexto a questão é que essa suspensão da realidade é possível não por causa da força da vontade mas em virtude da própria natureza do pensamento Se Epiteto pode estar entre os filósofos é por ter descoberto que a consciência possibilita que as atividades mentais voltemse sobre si mesmas Se quando percebo um objeto fora de mim decido concentrarme sobre a minha percepção sobre o ato de ver em vez de concentrarme sobre o objeto visto é como se eu tivesse perdido o objeto original porque ele perdeu seu impacto sobre mim Eu mudei o tema por assim dizerem vez de lidar com a árvore agora lido apenas com a árvore percebida isto é com o que Epiteto chama de impressão A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido algo externo a mim a árvore percebida está dentro de mim invisível ao mundo exterior como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos O que importa aqui é que a árvore da vida não é uma coisapensamento mas uma impressão Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento e que é sempre precedido pela experiência em um mundo de aparências A árvore está dentro de mim na sua total presença sensorial ela é a própria árvore apenas privada de realidade realness uma imagem e não um re pensar sobre árvores O truque descoberto pela filosofia estóica foi usar o espírito de tal modo que a realidade não pudesse atingir o seu possuidor mesmo que ele não tenha se retirado dela Em vez de ter se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão o espírito carregou para dentro de si as aparências E sua consciência tornouse um substituto completo para o mundo exterior apresentado como impressão ou imagem E nesse momento sem dúvida que a consciência sofre uma mudança decisiva ela não é mais a autoconsciência que acompanha todos os meus atos e pensamentos e assegura a minha identidade o simples eu sou eu e nem se trata aqui da estranha diferença que se insere no âmago dessa identidade a qual veremos mais tarde uma inserção peculiar às atividades espirituais pois elas voltamse sobre si mesmas Eu mesma tomandome como pura consciência surjo como um ente totalmente novo uma vez que não estou mais absorvida por um objeto dado aos meus sentidos mesmo se esse objeto intacto na sua estrutura essencial continue presente como um objeto da consciência o que Husserl chamou de objeto intencional Esse novo ente pode existir no mundo em completa independência e soberania e além disso aparentemente ainda na posse desse mundo a sabes da sua simples essência despojado de seu caráter existencial de sua realidade realness que me podería tocar e ameaçar minha integridade Com isso tomeime eu para mim mesma de uma maneira enfática encontrando em mim tudo o que originalmente me foi dado como uma realidade estranha Não é tanto o espírito mas antes essa consciência monstruosamente alargada que oferece um refúgio sempre presente e aparentemente seguro da realidade Essa suspensão da realidade esse desvencilharse da realidade tratandoa como nada mais do que uma impressão permaneceu sendo uma das grandes tentações dos pensadores profissionais até que um dos maiores dentre eles Hegel foi ainda adiante e construiu sua filosofia do Espírito do Mundo a partir de experiências do ego pensante Ao reinterpretar esse ego no modelo da consciência ele trouxe para dentro da consciência o mundo todo como se este fosse essencialmente um simples fenômeno do espírito Para o filósofo a eficácia desse procedimento que consiste em virar as costas para o mundo e caminhar em direção ao eu está acima de qualquer suspeita Existencialmente falando Parmênides estava errado quando disse que apenas o Ser manifestase no pensamento e é a ele idêntico Se é a vontade que comanda o espírito então o nãoSer também é pensável A força que ele tem de retirarse é então pervertida em um poder aniquilador e o nada tomase um substituto completo para a realidade porque o nada traz alívio O alívio é sem dúvida irreal ele é meramente psicológico um sedativo para a ansiedade e para o medo Eu ainda duvido de que tenha havido alguém a continuar senhor das suas impressões enquanto estava sendo assado no Touro de Falera Como Sêneca Epiteto viveu sob o regime de Nero isto é sob condições de muito desespero embora ele ao contrário de Sêneca não tenha sido muito perseguido Mais de cem anos antes contudo durante o último século da República Cícero tinha descoberto as linhas de pensamento pelas quais era possível encontrar o caminho para fora deste mundo Bastante versado em filosofia grega descobriu que tais pensamentos de modo algum tão extrema e cuidadosamente elaborados como em Epiteto provavelmente ofereceríam conforto e ajuda neste mundo tal como ele era então e que evidentemente é mais ou menos o que sempre é Os homens que ensinavam esse modo de pensar eram altamente estimados nos círculos literários romanos Lucrécio diz que Epicuro que mais de dois séculos depois de sua morte finalmente encontrou um discípulo digno de si é um deus porque foi o primeiro a inventar um modo de vida que hoje é chamado sabedoria e porque através de sua arte resgatou a vida de tais tormentas e de tamanha escuridão79 Para os nossos propósitos no entanto Lucrécio não é o melhor exemplo ele não insiste no pensamento mas apenas no conhecimento O conhecimento adquirido pela razão pode dissipar a ignorância e assim destruir o maior dos males o medo cuja fonte é a superstição Um exemplo mais apropriado seria o famoso Sonho de Cipião de Cícero Para compreender quão extraordinário é sem dúvida esse capítulo exclusivo da República de Cícero e quão estranhos os pensamentos aí expressos devem ter parecido aos romanos temos que lembrar em poucas palavras o pano de fundo sobre o qual ele foi escrito A filosofia tinha encontrado na Roma do último século antes de Cristo uma espécie de lar adotivo Naquela sociedade totalmente política ela tinha que provar antes de mais nada que era útil Nas TusculananDisputationes encontramos a primeira resposta de Cícero tratavase de tomar Roma mais bonita e civilizada A filosofia era uma ocupação própria de homens bem educados que se haviam retirado da vida pública e não tinham nada de mais importante com o que se preocupar Filosofar não se relacionava com nada que fosse de suma importância Tampouco tinha algo a ver com o divino para os romanos fundar e conservar comunidades políticas eram as atividades que mais se pareciam com as dos deuses A filosofia tampouco tinha conexão com a imortalidade A imortalidade era concedida tanto aos deuses como aos homens mas nunca era propriedade de homens individuais para os quais a morte não era apenas necessária mas muitas vezes desejável Em contrapartida ela era decididamente a propriedade potencial das comunidades humanas Se um estado civitas é destruído e extinguese é como se comparando coisas pequenas com coisas grandes todo o mundo se arruinasse e perecesse80 Para as comunidades a morte não é nem necessária nem desejável Ela sobrevêm apenas como uma punição pois uma comunidade deve ser constituída de tal modo que dure para sempre81 Toda essa citação foi tirada do tratado que termina com o Sonho de Cipião Cícero embora velho e desapontado não tinha portanto mudado de opinião Na verdade nada nem mesmo na própria República preparanos para o Sonho de Cipião no final exceto as lamentações do livro 5 Apenas em palavras e por causa de nossos vícios e por nenhum outro motivo ainda mantemos a coisa pública a res publica o tema do tratado a própria coisa foi há muito tempo perdida82 E então vem o sonho83 Cipião o africano conquistador de Cartago relata um sonho que teve pouco antes de destruir a cidade No sonho apresentou se a ele um alémmundo onde encontrou um ancestral que lhe contou que ele destruiría a cidade e o prevenia de que depois da destruição ele teria de restaurar a coisa pública em Roma assumindo a autoridade suprema de Ditador se conseguisse escapar de ser assassinado coisa em que ele mais tarde fracassou Cícero quis dizer que Cipião poderia ter sido capaz de salvar a República Para cumprir essa tarefa para reunir a coragem necessária é dito a Cipião que ele deveria ter sic habeto a seguinte crença de que os homens que preservaram a pátria certamente irão encontrar seu lugar no céu e serão abençoados com a eternidade Pois o deus supremo que governa o mundo preza acima de tudo as assembléias e as relações humanas a que chamamos Estados os governantes e aqueles que os conservam voltam ao céu depois de terem deixado este mundo Seu trabalho na Terra é guardar a Terra Evidentemente isso não implica uma promessa cristã de ressurreição em um outro mundo e embora a citação das vontades divinas ainda tenha o tom das tradições romanas ela traz uma nuance sinistra é como se os homens não quisessem fazer o que a coisa pública deles exige a não ser que houvesse a promessa de uma recompensa Como diz o ancestral de Cipião e isto é essencial as recompensas deste mundo não são de modo algum suficientes para premiar o esforço de uma pessoa Elas são vazias e irreais quando as vemos da perspectiva correta do alto do céu Cipião é convidado a olhar para a Terra e ela aparece tão pequena que ele sofreu ao ver que o nosso Império era apenas um ponto Ao que lhe respondem se a Terra daqui lhe parece tão pequena olhe sempre para o alto de modo a poder desprezar os assuntos humanos Pois que fama você pode atingir nas conversas dos homens e que tipo de glória você pode conquistar entre eles Não vê como é estreito o espaço onde residem glória e fama Aqueles que hoje falam de nós por quanto tempo ainda falarão E ainda que pudéssemos confiar na tradição e na memória das gerações futuras as catástrofes naturais inundações e incêndios nos impedirão de conquistar uma fama duradoura para não falar da fama eterna Se você levantar os olhos verá o quanto tudo isso é fútil A fama nunca foi eterna e o esquecimento da eternidade a destrói Transcrevi extensamente o ponto principal da passagem para deixar claro o quanto essas linhas de pensamento estão em franca contradição com aquilo em que Cícero como outros romanos bem educados sempre acreditou e que expressou até naquele mesmo livro No nosso contexto quis dar um exemplo um exemplo famoso talvez o primeiro registrado em nossa história intelectual de como certas linhas de pensamento realmente pretendem levar uma pessoa a pensarse fora do mundo por meio de uma relativização Em relação ao universo a Terra é um ponto que importa o que nela acontece Em relação à imensidão do tempo os séculos são apenas instantes e o esquecimento recobriría tudo e todos que importa o que os homens fazem No que se refere à morte que é igual para todos tudo o que é específico e distinto perde seu peso se não existe nenhum além e a vida após a morte para Cícero não é um artigo de fé mas uma hipótese moral não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos Aqui pensar significa seguir uma seqüência de raciocínio que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências c à sua própria vida A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e de uma maneira geral da própria vida Esse é apenas o começo de uma tradição que culminou filosoficamente em Epiteto e que atingiu o clímax de intensidade aproximadamente cinco séculos mais tarde no final do Império Romano Sobre a consolação dafilosofia de Boécio um dos livros mais populares de toda a Idade Média e hoje praticamente ignorado foi escrito em condições tão extremas que Cícero jamais poderia ter dele alguma premonição Boécio um nobre romano de alta posição caído em desgraça encontravase na prisão aguardando a execução Em vista da situação o livro foi comparado ao Fedon uma analogia bastante estranha de um lado Sócrates cercado de amigos depois de um julgamento em que teve permissão para falar longamente em sua defesa aguardando uma morte tranqüila e indolor do outro lado Boécio encarcerado sem ser ouvido absolutamente só depois que a sentença de morte foi pronunciada em uma farsa de julgamento no qual ele não esteve presente e em que muito menos teve oportunidade de se defender e que agora aguardava a execução por meio de lentas e abomináveis torturas Embora cristão foi a Filosofia que veio consolálo e não Deus ou o Cristo E embora seu lazer secreto na época em que desempenhava altas funções fosse a leitura e tradução de Platão e Aristóteles Boécio consolouse com raciocínios tipicamente ciceronianos e também estóicos A diferença é que o que era no sonho de Cipião uma mera relativização agora irá tomarse violenta aniquilação Os imensos espaços de eternidade para onde o espírito quando coagido deve se dirigir aniquilam a realidade tal como ela existe para os mortais o caráter instável da Fortuna aniquila todos os prazeres pois embora tudo o que ela nos dá riqueza honra fama seja fonte de prazer vivemos sempre com medo de perdêlo O medo aniquila toda felicidade Tudo em que você acredita impensadamente desaparece assim que você começa a pensar isso é o que a Filosofia a deusa da consolação diz a ele E aqui surge a questão do mal em que Cícero pouco havia tocado A linha geral de pensamento sobre o mal ainda bastante primitiva em Boécio já contém todos os elementos que iremos encontrar mais tarde em uma forma muito mais sofisticada e complexa ao longo de toda a Idade Média É a seguinte Deus é a causa final de tudo o que é Deus como bem supremo não pode ser a causa do mal tudo o que é tem que ter uma causa uma vez que há apenas causas aparentes do mal mas não uma causa última o mal não existe Os maus diz a Filosofia não apenas são impotentes eles não são O que você impensadamente considera mau tem seu lugar na ordem do universo E nessa medida é necessariamente bom Seus aspectos maus são uma ilusão dos sentidos da qual você pode livrarse pelo pensamento E um antigo conselho estóico o que negamos pelo pensamento e o pensamento está em nosso poder não pode nos afetar O pensamento torna irreal E claro que imediatamente lembramonos da glorificação que Epiteto faz daquilo que hoje chamamos de força de vontade Há inegavelmente um elemento de vontade nesse tipo de pensamento Pensar assim significa agir sobre si mesmo a única ação que resta em um mundo onde todo agir tornouse fútil O que mais impressiona nesse modo de pensar da Antigüidade tardia é que ele é centrado exclusivamente no eu John Adams vivendo em um mundo ainda não completamente fora dos trilhos tinha uma resposta Um leito de morte dizem mostra a vacuidade de todas as honrarias Pode ser No entanto as leis e o governo que regulam as coisas sublunares deveríam ser negligenciados por parecerem quinquilharias na hora da morte84 Até aqui abordei duas fontes das quais o pensamento tal como o conhecemos historicamente surgiu Uma fonte é grega a outra romana e elas são diferentes a ponto de serem opostas De um lado o espanto admirativo diante do espetáculo em meio a que o homem nasceu e para cuja apreciação ele está tão bem equipado de corpo e espírito Do outro lado o extremo terrível de ter sido jogado em um mundo cuja hostilidade é arrasadora onde o medo prodomina e de onde o homem tenta escapar ao máximo Há numerosas indicações de que essa última experiência não era completamente estranha para os gregos A frase de Sófocles não ter nascido é superior a todo logos o segundo maior bem sem dúvida é voltar o mais rápido possível para o lugar de onde viemos85 parece ter sido a variante poética de um dito proverbial O fato notável é que dentro do meu conhecimento essa disposição de ânimo não é mencionada em lugar algum como uma fonte grega de pensamento O mais impressionante talvez é que ela nunca produziu nenhuma grande filosofia a menos que queiramos incluir Schopenhauer entre os grandes pensadores Mas embora as mentalidades gregae romana constituíssem mundos separados e embora a maior falha da história da filosofia tal como ela se encontra nos manuais seja a de aplainar distinções tão agudas até parecer que todo mundo disse vagamente a mesma coisa também é verdade que as duas mentalidades têm coisas em comum Em ambos os casos o pensamento deixa o mundo das aparências Apenas porque o pensamento implica retirada é que ele pode ser usado como um instrumento para escapar Além disso como já foi enfatizado o pensamento implica uma inconsciência do corpo e do eu e põe em seu lugar a experiência da pura atividade mais gratificante segundo Aristóteles do que a satisfação de qualquer outro desejo já que dependemos de algo ou de alguém para obter todos os outros prazeres86 O pensamento é a única atividade que não precisa de nada além de si mesmo para seu exercício Um homem generoso precisa de dinheiro para praticar atos generosos e um homem moderado precisa da oportunidade da tentação87 Qualquer outra atividade de nível baixo ou elevado tem que vencer algo fora de si Isso aplicase até mesmo às artes performativas como tocar flauta cujo fim e propósito residem na própria realização e mais ainda ao trabalho de produzir coisas que é feito tendo como objetivo seus resultados e não por si mesmo e onde a alegria e a satisfação por uma obra bem feita vêm depois que a própria atividade chegou ao fim A frugalidade dos filósofos sempre foi proverbial e Aristóteles mencionaa Um homem engajado na atividade teórica não tem nenhuma necessidade e muitas coisas são apenas obstáculos àquela atividade Apenas pelo simples fato de que é um humano ele vai precisar dessas coisas que estão implicadas na própria condição de ser humano anthropeuesthai ter um corpo vi ver junto com outros homens etc No mesmo sentido Demócrito recomenda abstinência ao pensamento ele ensina como o logos deriva o seu prazer de si mesmo auton ex heautou A inconsciência do corpo durante a experiência do pensamento combinada com o simples prazer da atividade é o que melhor explica não apenas os efeitos sedativos e consoladores que tais linhas de pensamento tiveram sobre os homens da Antigüidade tardia mas explica também suas teorias curiosamente radicais a respeito do poder do espírito sobre o corpo teorias claramente refutadas pela experiência comum Gibbon escreve em seu comentário sobre Boécio Tais tópicos sobre consolação tão óbvios tão vagos ou tão abstrusos são impotentes para subjugar os sentimentos da natureza humana e a vitória final do Cristianismo que oferecia esses tópicos da filosofia como fatos reais e promessas seguras prova como Gibbon tinha razão89 E acrescentou de qualquer modo o sentimento de infortúnio pode ser distraído pelo labor do pensamento e ao menos indica o que de fato ocorre isto é o temor pelo corpo desaparece enquanto dura o labor do pensamento não porque os conteúdos do pensamento possam vencer o medo mas porque a atividade de pensar tornanos inconscientes do corpo e pode até superar as sensações de pequenos desconfortos A força excessiva dessa experiência pode elucidar o estranho fato histórico de que a antiga dicotomia entre corpo e espírito acentuadamente hostil com relação ao corpo possa ter sido adotada quase inalterada pelo credo cristão Afinal de contas este credo baseavase no dogma da encarnação o Verbo feito Came e na crença na ressurreição do corpo ou seja doutrinas que deveríam ter representado o fim da dicotomia corpoespírito e de seus enigmas insolúveis Antes de voltar a Sócrates quero mencionar brevemente o curioso contexto em que o termo filosofar não o substantivo mas o verbo apareceu pela primeira vez Heródoto conta que Sólon após ter promulgado as leis de Atenas partiu em viagem durante dez anos em parte por razões políticas mas também para ver o mundo theorem Chegou a Sárdia onde Creso estava no auge do seu poder Creso depois de mostrar a Sólon todas as suas riquezas perguntalhe Estrangeiro as notícias sobre sua sabedoria e suas andanças chegaram até nós dizendo que você percorreu muitos países da Terra filosofando sobre os espetáculos que yiu Daí ocorreume perguntar se você conheceu um homem que se considerasse o mais feliz do mundo9 O resto da história é conhecido Creso que esperava ser considerado o homem mais feliz do mundo ouve de Sólon que de nenhum homem por mais afortunado que seja podese dizer que seja feliz antes da sua morte Creso consulta Sólon não porque ele viu tantos países mas porque ele é famoso por filosofar por refletir sobre o que vê e a resposta de Sólon embora baseada na experiência encontrase claramente além da experiência Ele substituiu a pergunta quem é o mais feliz dos mortais pela pergunta o que é a felicidade para os mortais E a resposta à pergunta foi um philosophoumenon uma reflexão sobre os assuntos humanos anthropeion pragmaton e sobre a duração da vida humana na qual nenhum dia é igual ao outro de tal modo que o homem é pura sorte Sob tais condições é prudente esperar e prestar atenção ao fim pois a vida humana é uma história em que apenas o fim da história quando tudo está completo pode dizer o que ela foi91 Como a vida humana tem começo e fim como ela compõe um todo um ente em si pode ser julgado quando a vida termina na morte A morte não é apenas o fim da vida mas também concede a ela em silêncio uma completude que é assim subtraída do arriscado fluxo a que todas as coisas humanas estão sujeitas Este é o ápice do que mais tarde se tornou um topos proverbial da Antigüidade grega e latina nemo ante mortem beatus dici potest92 O próprio Sólon estava bem consciente das dificuldades envolvidas nessas proposições enganosamente simples Em um fragmento que se encaixa muito bem na história de Heródoto são a ele atribuídas as palavras o mais difícil de tudo é perceber a medida oculta aphanes do juízo que embora não apareça no entanto circunscreve os limites de todas as coisas93 Aqui Sólon parece um precursor de Sócrates que também como disseram depois quis trazer a filosofia do céu para a terra começando então por examinar as medidas ocultas por meio das quais julgamos as coisas humanas Quando perguntaram a Sólon quem era o mais feliz dos homens ele responde com a questão mas digame por favor o que é a felicidade como você pode medila Do mesmo modo como Sócrates levantou as questões o que é a coragem a piedade a amizade a sophrosyne o conhecimento a justiça etc Mas Sólon dá uma espécie de resposta positiva que contém até mesmo o que se chamaria hoje de uma filosofia total no sentido de uma Weltanschauung quando corretamente compreendida em suas implicações A incerteza do futuro torna a vida humana miserável o perigo é inerente a todos os atos e feitos ninguém sabe como vai terminar aquilo que começou aquele que se conduz bem não pode prever a má sorte que sobre ele pode se abater enquanto um deus em tudo favorece o perverso94 Portanto a frase nenhum homem pode ser considerado feliz enquanto vive de fato significa nenhum homem é feliz todos os mortais iluminados pelo Sol são miseráveis95 Isso já é mais do que uma reflexão é uma espécie de doutrina e como tal nãosocrática Pois Sócrates confrontado com tais questões conclui quase todo diálogo estritamente socratico dizendo Fracassei completamente em descobrir o que é96 E esse caráter aporético do pensamento socratico signi fica que o assombro admirativo diante de atos justos ou corajosos vistos pelos olhos do corpo dão origem a perguntas do tipo o que é a coragem ou o que é a justiça A existência da coragem ou da justiça foi indicada aos meus sentidos pelo que vi embora elas mesmas não façam parte da percepção sensorial e portanto não sejam dadas como realidade autoevidente A pergunta básica de Sócrates surge dessa experiência o que temos em mente quando usamos essa classe de palavras mais tarde chamadas conceitos Mas não apenas o espanto original não é resolvido portais perguntas uma vez que elas continuam sem resposta como ainda por cima é reforçado O que começa como espanto termina com perplexidade e portanto leva de volta ao espanto Não é maravilhoso que os homens possam executar atos corajosos ou justos mesmo que não conheçam e não possam explicar o que são coragem e justiça 17 A resposta de Sócrates A pergunta o que nos faz pensar apresentei respostas historicamente representativas oferecidas por filósofos profissionais exceto por Sólon Pela mesma razão essas são respostas dúbias A pergunta quando levantada pelo profissional não surge das suas próprias experiências enquanto está pensando Ela é formulada de fora seja esse lado de fora constituído pelos seus interesses profissionais como pensador seja o seu próprio senso comum questionando uma atividade fora de ordem na vida normal E as respostas que recebemos são sempre muito gerais e vagas para fazer sentido na vida cotidiana onde o pensamento afinal constantemente ocorre interrompendo os processos comuns da vida do mesmo modo como a vida cotidiana constantemente interrompe o pensamento Se despojamos essas respostas de seu conteúdo doutrinário que sem dúvida varia enormemente tudo o que obtemos são confissões de uma necessidade de concretizar as implicações do espanto platônico a necessidade em Kant que a faculdade da razão tem de transcender os limites do cognoscível a necessidade de reconciliarse com o que de fato é e com o curso dos acontecimentos no mundo a necessidade da filosofia em Hegel que pode transformar as ocorrências externas nos nossos próprios pensamentos ou enfim a necessidade de buscar o significado de tudo o que é ou ocorre como eu mesma disse de modo não menos vago e geral É essa impotência do ego pensante para explicarse que fez dos filósofos dos pensadores profissionais uma tribo tão difícil de lidar Porque o problema é que o ego pensante como vimosà diferença do eu que evidentemente coabita em todo pensador não tem qualquer impulso próprio para aparecer em um mundo de aparências Ele é um personagem escorregadio invisível não apenas para os outros mas também para o próprio eu impalpável e impossível de ser apreendido Isto em parte se dá porque ele é pura atividade e em parte porque como disse Hegel uma vez como ego abstrato ele está liberado da particularidade de todas as outras propriedades disposições etc e é ativo apenas com relação ao geral ao que é o mesmo para todos os indivíduos97 Em todo caso visto a partir do mundo das aparências da praça do mercado o ego pensante vive escondido lathe biosas E nossa questão o que nos faz pensar de fato pergunta pela maneira como podemos trazêlo à luz do dia como provocá lo por assim dizer a manifestarse O melhor e na verdade o único modo que me ocorre para dar conta da pergunta é procurar um modelo um exemplo de pensador nãoprofissional que unifique em sua pessoa duas paixões aparentemente contraditórias a de pensar e a de agir Essa união não deve ser entendida como a ânsia de aplicar seus pensamentos ou estabelecer padrões teóricos para a ação mas tem o sentido muito mais relevante do estar à vontade nas duas esferas e ser capaz de passar de uma à outra aparentemente com a maior facilidade do mesmo modo como nós avançamos e recuamos constantemente entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir sobre ele Melhor talhado para esse papel deve ser um homem que não se inclua nem entre os muitos nem entre os poucos uma distinção que remonta no mínimo a Pitágoras que não tenha nenhuma pretensão a ser um governante de homens nem mesmo a de estar melhor preparado para aconselhar pela sua sabedoria superior os que estão no poder mas tampouco que se submeta docilmente às regras em resumo um pensador que tenha permanecido sempre um homem entre homens que nunca tenha evitado a praça pública que tenha sido um cidadão entre cidadãos que não tenha feito nem reivindicado nada além do que em sua opinião qualquer cidadão poderia e deveria reivindicar Não deve ser fácil encontrar esse homem Caso ele possa representar para nós a real atividade de pensar então não terá deixado atras de si nenhum corpo doutrinário Não se terá dado ao trabalho de escrever seus pensamentos mesmo que deles restasse algum resíduo tangível pronto para ser registrado depois que ele tivesse acabado de pensar Vocês já terão percebido que estou pensando em Sócrates Não saberiamos quase nada sobre ele pelo menos nada que pudesse nos impressionar muito se ele não tivesse causado uma enorme impressão sobre Platão Talvez não soubéssemos nada sobre ele nem mesmo através de Platão se ele não tivesse decidido dar a vida não por um credo ou uma doutrina específica ele não tinha nenhum dos dois mas simplesmente pelo direito de examinar as opiniões alheias pensar sobre elas e pedir a seus interlocutores que fizessem o mesmo Espero que o leitor não pense que escolhi Sócrates por acaso Mas é necessário prevenir há muitas controvérsias em torno do Sócrates histórico e embora este seja um dos temas mais fascinantes do debate erudito vou ignorálo98 para apenas mencionar de passagem o que é provavelmente o principal motivo de discórdia a saber minha crença de que existe uma linha divisória nítida entre o que é autenticamente socrático e a filosofia ensinada por Platão O maior obstáculo aqui é o fato de que Platão usou Sócrates como o filósofo não apenas nos primeiros diálogos claramente socráticos como também mais tarde quando muitas vezes fez de Sócrates o portavoz de teorias e doutrinas inteiramente nãosocráticas Em muitos momentos o próprio Platão marcou as diferenças No Banquete por exemplo o famoso discurso de Diotima nos diz que Sócrates não sabe nada a respeito dos grandes mistérios e talvez não os possa compreender Em outros momentos porém as fronteiras tomamse indistintas decerto porque Platão ainda podia contar com um público leitor que percebesse algumas enormes inconsistências como quando ele deixa Sócrates dizer no Teeteto que os grandes filósofos desde a juventude ignoraram o caminho da praça pública uma palavra de ordem antisocrática se é que algum dia ele chegou a proferila E contudo para piorar a situação isso de modo algum significa que o mesmo diálogo não possa fornecer informações totalmente autênticas sobre o Sócrates real1 Ninguém penso eu contestará a sério que minha escolha seja historicamente justificável O que é mais difícil de justificar é talvez a transformação da figura histórica em um modelo pois não há dúvida de que alguma transformação se faz necessária quando a figura em questão deve desempenhar a função que lhe designamos Etienne Gilson em seu grande livro sobre Dante escreveu na Divina Comédia um personagem conserva tanto de sua realidade histórica quanto a função representativa que Dante lhe atribui e que dele exige101 E fácil conceder esse tipo de liberdade aos poetas e chamála de licença poética mas não é tão fácil concedêla quando nãopoetas aventuramse a dela se servir Com ou sem justificativas no entanto é precisamente o que fazemos quando construímos tipos ideais não a partir do nada como nas alegorias e abstrações personificadas tão caras aos maus poetas e a alguns eruditos mas a partir da multidão dos seres vivos passados ou presentes que parecem ter um significado representativo E Gilson ao menos indica a verdadeira justificativa desse método ou técnica quando discute o papel representativo que Dante atribui a São Tomás de Aquino o Tomás real aponta Gilson não teria feito o que Dante o fez fazer o elogio de Siger de Brabante Mas a única razão pela qual o verdadeiro São Tomás teria se recusado a fazer esse elogio seria uma certa fraqueza humana um defeito de caráter como diria Gilson a parte de sua constituição que ele teria que ter deixado na porta do Paraíso para poder entrar102 Há vários traços no Sócrates de Xenofonte cuja credibilidade histórica está acima de dúvidas que Sócrates teria que deixar na porta do Paraíso A primeira coisa a chamar nossa atenção nos diálogos socráticos de Platão é que eles são todos aporcticos A argumentação não leva a lugar nenhum ou gira em círculos Para saber o que é a justiça é preciso saber o que é o conhecimento E para saber isso c preciso ter uma noção prévia não examinada do conhecimento103 Por isso um homem não pode tentar descobrir o que sabe ou o que não sabe Se ele já sabe não há necessidade de investigação Se ele não sabe sequer sabe o que é para ser buscado114 Ou no Eutífron para ser pio é preciso saber o que é a piedade As coisas que agradam aos deuses são pias mas elas são pias porque agradam aos deuses ou agradam aos deuses porque são pias Nenhum dos logoi dos argumentos fica sempre no mesmo lugar eles dão voltas Sócrates fazendo perguntas para as quais ele não conhece a resposta colocaos em movimento e quando as afirmações voltam ao ponto de partida em geral é ele quem alegremente propõe começar tudo de novo e investigar o que são a justiça a piedade ou a coragem105 Pois os tópicos desses primeiros diálogos lidam com conceitos muito simples e cotidianos tais como surgem toda vez que as pessoas abrem a boca e começam a falar A introdução em geral é a seguinte sem dúvida há pessoas felizes atos justos homens corajosos belas coisas para ver e admirar como todos sabem o problema reside em nossos substantivos que são provavelmente derivados dos adjetivos que aplicamos a casos particulares tais como nos aparecem nós vemos um homem feliz percebemos o ato corajoso ou a decisão justa Em resumo o problema começa com palavras como felicidade justiça coragem c outras que hoje em dia chamamos de conceitos a medida nãoaparente de Sólon aphanes metroií a mais difícil de compreender para o espírito e contudo a que circunscreve os limites de todas as coisas10 e que Platão um pouco mais tarde chamou de idéias perceptíveis apenas para os olhos do espírito Essas palavras fazem parte da nossa fala cotidiana e mesmo assim não podemos delas dar conta Quando tentamos definilas tornamse escorregadias quando começamos a discutir seu significado nada mais fica no lugar tudo começa a moverse Assim em vez de repetir o que aprendemos com Aristóteles a saber que Sócrates foi o homem que descobriu o conceito perguntaremos o que Sócrates fez ao descobrilo Pois certamente essas palavras faziam parte da língua grega antes que ele tentasse fazer com que os atenienses e ele próprio se dessem conta do que eles todos tinham em mente na firme convicção é claro de que nenhum discurso seria possível sem elas Hoje isso já não é tão certo Nosso conhecimento das línguas ditas primitivas mostra que o procedimento que agrupa diversos particulares sob um nome comum a todos não é de modo algum evidente ou natural Essas línguas cujo vocabulário é muitas vezes impressionantemente rico carecem daqueles substantivos abstratos mesmo com relação a objetos claramente visíveis Para simplificar a questão tomemos um substantivo que já não nos parece mais abstrato Podemos usar a palavra casa para um grande número de objetos para a cabana de barro de uma tribo para o palácio de um rei para a casa de campo de um citadino para o chalé na aldeia para o apartamento na cidade mas dificilmente a empregamos para as tendas de alguns nômades A casa em si e por si auto kathauto que nos faz usar a palavra para todos esses edifícios particulares e muito diferentes entre si nunca é vista seja pelos olhos do corpo seja pelos olhos do espírito Toda casa imaginada por mais abstrata que seja e por mínimos que sejam os traços que a tomam reconhecível já é uma casa particular Essa outra casa invisível da qual já precisamos ter uma noção para reconhecer edifícios particulares como casas foi explicada de diferentes modos e chamada por diferentes nomes na história da filosofia isso não nos interessa aqui embora possamos achar a casa menos difícil de definir do que palavras como felicidade ou justiça A questão aqui é que casa implica algo consideravelmente menos tangível do que a estrutura percebida por nossos olhos Ela significa que alguém é por ela abrigado e que nela alguém habita como não poderia fazer em nenhuma tenda montada hoje e desmontada amanhã A palavra casa é a medida oculta que circunscreve os limites de todas as coisas relacionadas ao habitar É uma palavra que não existiría sem o pressuposto do que se pensa sobre ser abrigado habitar ter um lar Como palavra casa é uma abreviatura para todas essas coisas o tipo de abreviatura sem a qual o pensamento e sua rapidez característica seriam absolutamente impossíveis A palavra casa é como um pensamento congelado que o ato de pensar tem que degelar sempre que pretende encontrar o seu significado original Na filosofia medieval esse tipo de pensamento era chamado meditação e a palavra era entendida como diferente e até mesmo oposta à contemplação Em todo caso esse tipo de reflexão ponderativa não produz definições e neste sentido não produz nenhum resultado embora alguém que tivesse ponderado sobre o significado de casa pudesse ter tornado sua própria casa mais agradável Mesmo assim dizse que Sócrates acreditava que a virtude pudesse ser ensinada E parece que ele realmente achava que falar e pensar sobre a piedade a justiça a coragem e coisas do gênero poderíam tomar os homens mais pios justos e corajosos embora nem definições nem valores lhes fossem dados para que pudessem orientar sua conduta futura As convicções reais de Sócrates sobre tais assuntos podem ser melhor ilustradas pelas comparações que ele fazia a respeito de si mesmo Autodenominavase um moscardo e uma parteira Segundo Platão alguém chamouo de arraiaelétrica um peixe que ao contato paralisa e entorpece e Sócrates admite a semelhança desde que seus ouvintes reconheçam que a arraiaelétrica paralisa os outros apenas por estar ela mesma paralisada Não é que eu deixe os outros perplexos já conhecendo as respostas A verdade é que eu lhes transmito a minha própria perplexidade1117 Esta é evidentemente a expressão concisa do único modo como o pensamento pode ser ensinado embora Sócrates como ele repetidamente dizia não ensinasse nada pela simples razão de que nada tinha a ensinar ele seria estéril como as parteiras na Grécia mulheres que já tinham passado da idade de dar à luz Já que ele não tinha nada para ensinar nenhuma verdade para divulgar foi acusado de nunca revelar seu próprio ponto de vista gnome como nos informa Xenofonte que o defende desta acusação108 É como se ao contrário dos filósofos profissionais ele sentisse a necessidade de verificar com seus semelhantes se suas perplexidades também eram por eles compartilhadas e isso é totalmente diferente da propensão a encontrar soluções para enigmas e então demonstrálas aos outros Examinemos rapidamente as três comparações Na primeira Sócrates é um moscardo ele sabe como ferroar os cidadãos que sem ele vão continuar a dormir pelo resto de suas vidas a menos que alguém venha despertálos E para que os desperta Para o pensamento e para 0 investigação uma atividade sem a qual a seu ver a vida não vali a a pena e nem sequer era totalmente vivida Sobre esse assunto não apenas na Apologia como em outras ocasiões Sócrates diz quase o contrário do que Platão o faz dizer na apologia melhorada do Fedon NaApologia Sócrates diz a seus pares cidadãos por que ele deveria continuar vivo e por que embora a vida lhe fosse muito cara ele não tem medo de morrer No Fedon ele explica aos amigos como é difícil suportar a vida e por que alegrase em morrer Na segunda comparação Sócrates é uma parteira no Teeteto diz que sabe trazer à luz os pensamentos alheios porque ele mesmo é estéril mais ainda graças a essa esterilidade ele tem a perícia da parteira e pode decidir se está lidando com uma gravidez real ou ilusória da qual a genitora deve ser aliviada Mas nos diálogos praticamente nenhum dos interlocutores de Sócrates jamais produziu um pensamento que não fosse um falso feto que Sócrates considerasse merecedor da vida De fato ele fazia o que Platão disse aos sofistas no Sofista certamente pensando em Sócrates ele purgava as pessoas de suas opiniões isto é daqueles preconceitos não examinados que os impediríam de pensarajudandoos como disse Platão a livrarse do que neles há de mau as opiniões sem no entanto tomálos bons mostrandolhes a verdade109 Em terceiro lugar Sócrates sabendo que não sabemos recusase contudo a deixar tudo por isso mesmo e desistir de suas próprias perplexidades e como a arraiaelétrica permanece paralisado e paralisa os que com ele entram em contato A arraiaelétrica à primeira vista parece ser o contrário do moscardo ela paralisa enquanto o moscardo desperta No entanto aquilo que do lado de fora é visto como paralisia do ponto de vista dos negócios humanos comuns é sentido como o mais alto grau de atividade e de vida Isso pode ser confirmado a despeito das raras evidências documentadas sobre a experiência do pensamento por um certo número de afirmações dos filósofos através dos séculos Sócrates o moscardo a parteira a arraiaelétrica não é portanto um filósofo ele nada ensina e nada tem a ensinar nem um sofista pois não pretende tomar os homens sábios Quer apenas mostrarlhes que eles não são sábios e que ninguém é sábio uma busca que o mantém tão ocupado que sequer deixa tempo para os negócios públicos ou privados110 E mesmo quando se defende vigorosamente contra a acusação de corromper os jovens em momento nenhum afirma tomálos melhores Não obstante sustenta que o aparecimento da atividade de pensar e investigar em Atenas representa em si mesma o maior bem algum dia concedido à cidade111 Desse modo ele preocupase com a utilidade do pensamento embora não tivesse neste como em todos os outros assuntos uma resposta bem definida Podemos ter certeza de que um diálogo sobre a pergunta para que serve o pensamento terminaria com as mesmas perplexidades que todos os outros diálogos Se tivesse havido uma tradição socrática no pensamento ocidental se nas palavras de Whitehead a história da filosofia fosse uma coleção de notas de pé de página não para Platão mas para Sócrates o que sem dúvida teria sido impossível não encontraríamos nela nenhuma resposta para nossa pergunta mas sem dúvida muitas variantes da própria pergunta Sócrates mesmo consciente de que estava lidando com invisíveis em sua investigação usou uma metáfora para explicar a atividade de pensar a metáfora do vento os ventos são eles mesmos invisíveis mas o que eles fazem mostrase a nós e de certa maneira sentimos quando eles se aproximam112 Encontramos a mesma metáfora em Sófocles que na Antígona relaciona o pensamento rápido como o vento dentre as coisas dúbias assombrosas deina com que os homens são abençoados ou amaldiçoados113 Em nossos dias Heidegger às vezes fala do tufão do pensamento e usa explicitamente a metáfora no único lugar de sua obra em que fala diretamente de Sócrates Durante toda a sua vida e até a hora da morte Sócrates não fez mais do que se colocar no meio desta correnteza desta ventania do pensamento e nela manterse Eis porque ele é o pensador mais puro do Ocidente Eis porque ele não escreveu nada Pois quem sai do pensamento e começa a escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam em um abrigo de um vento muito forte para elas Todos os pensadores posteriores a Sócrates apesar de sua grandeza são como estes refugiados O pensamento tomouse literatura Em uma nota explicativa posteriorele acrescenta que ser o pensador mais puro não significa ser o maior114 No contexto em que Xenofonte sempre ansioso para defenderseu mestre com seus próprios argumentos vulgares contra acusações igualmente vulgares menciona a metáfora ela não faz muito sentido Mesmo assim até ele indica que o vento invisível do pensamento se manifestava nos conceitos virtudes e valores com que Sócrates lidava em suas investigações O problema é que este mesmo vento sempre que surge tem a peculiaridade de varrer para longe todas as suas manifestações anteriores eis porque o mesmo homem pode ser entendido e entender a si mesmo ao mesmo tempo como um moscardo e como uma arraiaelétrica E da natureza deste elemento invisível desfazer e por assim dizer degelar o que a linguagem o veículo do pensamento congelou como pensamentos palavras conceitos frases definições doutrinas cuja impotência e inflexibilidade Platão tão brilhantemente denuncia na Sétima carta A conseqüência é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corrosivo sobre todos os critérios estabelecidos valores padrões para o bem e para o mal em suma sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e ética Estes pensamentos congelados Sócrates parece dizer ocorrem tão facilmente que até dormindo podemos fazer uso deles mas se o vento do pensamento que agora provoquei sacudiu você do seu sono e deixouo totalmente desperto e vivo você verá que pode dispor apenas de perplexidades e o melhor que se pode fazer com elas é partilhá las com os outros Assim a paralisia induzida pelo pensamento é dupla ela é inerente ao parar para pensar à interrupção de todas as atividades psicologicamente podemos definir um problema como uma situação que por alguma razão retém em grande medida um organismo em seus esforços para atingir um objetivo115 e pode ter também um efeito atordoante depois que a deixamos nos sentindo inseguros sobre o que parecia acima de qualquer dúvida enquanto estávamos impensadamente engajados em fazer alguma coisa Se o que estamos fazendo é aplicar regras gerais de conduta a casos particulares tal como eles ocorrem na vida cotidiana encontramonos paralisados porque esse tipo de regra não resiste ao vento do pensamento Tomando de novo o exemplo do pensamento congelado inerente à palavra casa uma vez que pensamos em seu significado implícito habitar ter um lar abrigarse não estaremos mais tão dispostos a aceitar tudo o que a moda do dia prescreve para nossa própria casa mas isso não é uma garantia de que se vai encontrar uma solução aceitável para o que se tomou problemático Isso nos leva ao último e talvez maior perigo deste empreendimento perigoso e sem resultados No círculo de Sócrates havia homens como Alcebíades e Crítias e Deus sabe que eles não eram de modo algum os piores entre os seus autodenominados discípulos que se revelaram uma verdadeira ameaça àpolis e isto não porque tivessem sido paralisados pela arraiaelétrica mas ao contrário porque foram despertados pelo moscardo Foi para a licenciosidade e o cinismo que foram despertados Não satisfeitos em terem aprendido como pensar sem ter uma doutrina transformaram os nãoresultados da investigação socrática sobre o pensamento em um resultado negativo se não podemos definir o que é a piedade sejamos ímpios o que é quase o contrário do que Sócrates esperava atingir quando falava de piedade A busca de significado que implacavelmente dissolve e reexamina todas as doutrinas e regras aceitas pode a qualquer momento voltarse contra si mesma produzir uma reversão dos antigos valores e declarar que estes contrários são novos valores Em certa medida isto é o que Nietzsche fez quando inverteu o platonismo esquecendo que um Platão ao contrário ainda é Platão ou o que Marx fez quando virou Hegel de cabeça para baixo produzindo neste processo um sistema de História estritamente hegeliano Tais resultados negativos do pensamento entrarão na mesma rotina impensada de antes no momento em que forem aplicados ao domínio dos negócios humanos é como se nunca tivessem sido submetidos ao processo do pensamento O que nós geralmente chamamos de niilismo que somos tentados a datar historicamente deplorar politicamente e atribuir a pensadores que segundo se diz tiveram pensamentos perigosos é um perigo inerente à própria atividade de pensar Não há pensamentos perigosos o próprio pensamento é perigoso mas o niilismo não é o seu produto O niilismo é antes o reverso do convencionalismo o seu credo consiste em negações dos atuais valores ditos positivos aos quais ele permanece aprisionado Todo exame crítico tem que passar pelo menos hipoteticamente pelo estágio de negação de opiniões e valores aceitos quando busca seus pressupostos e implicações tácitas Neste sentido o niilismo pode ser visto como um perigo sempre presente para o pensamento Mas este perigo não surge da convicção socrática de que uma vida não submetida a questionamento não vale a pena ser vivida Ao contrário ele surge do desejo de encontrar resultados que dispensariam o pensar O pensamento é igualmente perigoso para todos os credos e por si mesmo não dá origem a nenhum novo credo Seu aspecto mais perigoso do ponto de vista do senso comum é que o que era significativo durante a atividade do pensamento dissolvese no momento em que se tenta aplicálo à vida de todos os dias Quando o ponto de vista da opinião cotidiana se apodera dos conceitos isto é das manifestações do pensamento na fala comum e começa a tratálos como se fossem resultados cognitivos a única conclusão só pode ser a de que nenhum homem é sábio Na prática pensar significa que temos que tomar novas decisões cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade A ausência do pensamento contudo que parece tão recomendável em assuntos políticos ou morais também apresenta perigos Ao proteger contra os perigos da investigação ela ensina a aderir rapidamente a tudo o que as regras de conduta possam prescrever em uma determinada época para uma determinada sociedade As pessoas acostumamse com mais facilidade à posse de regras que subsumem particulares do que propriamente ao seu conteúdo cujo exame inevitavelmente as levaria à perplexidade Se aparecer alguém não importa com que propósitos que queira abolir os velhos valores ou virtudes esse alguém encontrará um caminho aberto desde que ofereça um novo código Precisará de relativamente pouca força e nenhuma persuasão isto é de provas de que os novos valores são melhores do que os velhos para impor o novo código Quanto maior é a firmeza com que os homens aderem ao velho código maior a facilidade com que assimilarão o novo Na prática isso significa que os mais dispostos a obedecer serão os que foram os mais respeitáveis pilares da sociedade os menos dispostos a se abandonarem aos pensamentos perigosos ou de qualquer outro tipo ao passo que aqueles que aparentemente eram os elementos menos confiáveis da velha ordem serão os menos dóceis Se as questões da ética e da moral fossem realmente o que a etimologia destas palavras indica não seria mais difícil mudar os costumes e hábitos de um povo do que suas maneiras à mesa E a facilidade com que tais mudanças ocorrem sob certas circunstâncias sugere realmente que todo mundo estava dormindo profundamente quando elas ocorreram Estou me referindo é claro ao que houve na Alemanha nazista e em certa medida também na Rússia stalinista quando subitamente os mandamentos básicos da moralidade ocidental foram invertidos no primeiro caso o mandamento não matarás e no segundo não levantarás falso testemunho E tampouco o que veio depois poderia nos consolar isto é a inversão da inversão o fato de ter sido tão surpreendentemente fácil reeducar os alemães após o colapso do Terceiro Reich tão fácil mesmo que se poderia dizer que a reeducação foi automática Na verdade nos dois casos tratase do mesmo fenômeno Voltando a Sócrates os atenienses lhe disseram que o pensamento era subversivo que o vento do pensamento era um furacão a varrer do mapa os sinais estabelecidos pelos quais os homens se orientavam trazendo desordem às cidades e confundindo os cidadãos E embora Sócrates negue que o pensamento corrompa ele tampouco alega que aperfeiçoe alguém O pensamento apenas desperta e isto lhe parece um grande bem para a cidade Mesmo assim Sócrates não diz que empreendeu todas estas investigações para se tomar um grande benfeitor No que diz respeito a ele mesmo a única coisa que se pode dizer é que uma vida sem pensamento seria sem sentido embora o pensamento jamais tome alguém sábio ou dê respostas às perguntas que ele mesmo levanta O significado do que Sócrates fazia repousava nesta simples atividade Ou em outras palavras pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa e isto implica que o pensamento tem sempre que começar de novo é uma atividade que acompanha a vida e tem a ver com os conceitos como justiça felicidade e virtude que nos são oferecidos pela própria linguagem expressando o significado de tudo o que acontece na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos O que chamei de busca do significado aparece na linguagem socrática como o amor no sentido grego de Eros não no sentido cristão de agape O amor como Eros é antes de tudo uma falta deseja o que não tem Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios Amam a beleza e fazem o belo por assim dizer philokaloumen como disse Péricles na Oração fúnebre6 porque eles não são belos O amor é o único assunto sobre o qual Sócrates se diz conhecedor e esta habilidade guiao também na escolha de companheiros e amigos embora eu seja inútil para todas as outras coisas este dom eu tenho reconheço imediatamente o amante e o amado117 Ao desejar o que não tem o amor estabelece uma relação com o que não está presente Para trazer à luz e fazer aparecer esta relação os homens procuram falar dela assim como o amante procura falar do amado E porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amorbeleza sabedoria justiça etc O mal e afeiúra quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento Eles podem apresentarse como deficiências consistindo a feiura na ausência da beleza e o mal kakia na ausência de bem Em si não têm raízes próprias nem essências onde o pensamento possa se firmar Se o pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original então o mesmo processo tem que dissolver estes conceitos negativos até a sua ausência de significado original isto é até o nada do ponto de vista do ego pensante Eis porque Sócrates acreditava que ninguém pudesse fazer o mat voluntariamente o mal como diriamos nós não tem estatuto ontológico ele consiste em uma ausência um algo que não é Demócrito que compreendia o logos a palavra como acompanhamento da ação da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais distinguindoas assim da mera semblância por isso mesmo desaconselhava que se falasse dos maus atos ao ignorarmos o mal privandoo de qualquer manifestação na fala ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra118 Quando abordamos o espanto admirativo e afirmativo de Platão encontramos a mesma exclusão do mal tab como ele se desdobra em pensamento e a encontramos em quase todos os filósofos ocidentais Ao que parece a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o mal e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar enquanto que reciprocamente aqueles que amam a investigação e assim fazem filosofia são incapazes de fazer o mal 18 O doisemum Onde chegamos com relação a um dos nossos principais problemas a saber com relação à possível conexão entre a ausência de pensamento e o mal Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socrático o amor da sabedoria da beleza e da justiça são capazes de pensamento e dignas de confiança Em outras palavras chegamos às naturezas nobres de Platão às poucas a respeito das quais se pode dizer que não fazem o mal voluntariamente No entanto nem mesmo em seu caso é verdadeira a conclusão implícita e perigosa de que todo mundo quer fazer o bem A triste verdade é que na maioria dos casos o mal é praticado por pessoas que jamais se decidiram a fazer o bem ou o mal Sócrates que diferentemente de Platão considerava todos os assuntos e conversava com todas as pessoas não pode ter acreditado que só os poucos são capazes de pensamento nem que só alguns objetos de pensamento visíveis aos olhos da mente bem treinada mas inefáveis no discurso conferem dignidade e relevância à atividade de pensar Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade independentemente dos seus objetos Sócrates este amante das perplexidades fez poucas afirmações positivas Entre elas há duas intimamente ligadas que tratam do assunto Ambas ocorrem em Górgias o diálogo sobre a retórica a arte de dirigir e convencer os muitos O Górgias não faz parte dos diálogos socráticos da juventude foi escrito pouco antes de Platão tomarse diretor da Academia Além disso o próprio tema do diálogo é uma arte ou uma forma de discurso que parecería perder todo sentido se fosse aporético E apesar disso ele é aporético exceto pelo fato de que Platão concluiuo com um daqueles mitos sobre o alémmundo de recompensas e punições que aparentemente isto é ironicamente resolvem todas as dificuldades A gravidade desses mitos é puramente política e consiste no fato de eles se dirigirem à multidão Os mitos do Górgias certamente não são socráticos mas mesmo assim são importantes porque revelam embora de uma forma não filosófica o reconhecimento platônico de que os homens voluntariamente cometem atos maus Isso acarreta a admissão suplementar de que Platão assim como Sócrates não sabia como tratar filosoficamente esse fato perturbador Podemos não saber se Sócrates acreditava realmente que a ignorância causasse o mal ou que a virtude pudesse ser ensinada no entanto é certo que Platão achava mais prudente fiarse em ameaças As duas sentenças afirmativas de Sócrates são as seguintes a primeira é melhor sofrer o mal do que o cometer Ao que Cálicles o interlocutor no diálogo responde o que todo grego teria respondido Sofrer o mal não é digno de um homem mas de um escravo para quem é melhor morrer do que viver para quem não é capaz de socorrer nem a si mesmo nem àqueles que para ele são importantes119 A segunda afirmação é Eu preferirira que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico e preferiría que multidões de homens discordassem de mim do que eu sendo um viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizerme1211 Ao ouvir isso Cálicles responde que Sócrates está enlouquecido pela eloqüência e que seria melhor para ele e para todos se ele deixasse a filosofia121 E nisso ele tem suas razões Foi sem dúvida a filosofia ou antes a experiência do pensamento que levou Sócrates a tais afirmações embora é claro ele não tenha se lançado em sua empresa com o objetivo de chegar a elas assim como não foi para serem felizes que outros filósofos se lançaram às suas próprias investigações122 Seria um grave engano penso eu compreender essas afirmações como o resultado de reflexões sobre a moralidade elas são insights é verdade mas da experiência e no que diz respeito ao próprio processo do pensamento elas são no máximo subprodutos incidentais Para nós é difícil compreender como deve ter soado paradoxal a primeira afirmação na sua época após milhares de anos de uso e abuso ela soa como moralismo barato E a melhor demonstração de como é difícil para leitores modernos apreender a força da segunda afirmação é o fato de que as palavraschave sendo um que precedem seria pior para mim estar em desacordo comigo mesmo do que com multidões inteiras freqüentemente são ignoradas pelos tradutores A primeira é uma afirmação subjetiva que significa é melhor para mim sofrer o mal do que o cometer E no diálogo em que ocorre ela é contestada simplesmente por outra afirmação igualmente subjetiva que evidentemente soa muito mais plausível O que fica claro é que Cálicles e Sócrates estão falando de eus diferentes o que é bom para um é mau para outro Mas se por outro lado encaramos essa proposição do ponto de vista do mundo que é distinto daquele dos dois falantes teríamos que dizer o que conta é que o mal foi feito e aí é irrelevante saber quem se saiu melhor o autor ou a vítima Na qualidade de cidadãos nós devemos evitar que o mal seja cometido porque está em jogo o mundo em que todos nós o malfeitor a vítima e o espectador vivemos A cidade foi injuriada Nossos códigos legais levam isso em consideração ao distinguir crimes em que a acusação é obrigatória e transgressões que pertencem ao domínio privado dos indivíduos que podem querer ou não mover uma ação Poderiamos quase definir um crime como aquela transgressão da lei que exige punição não importando quem foi injuriado a vítima pode estar disposta a perdoar e a esquecer e se houver a suspeita de que o malfeitor certamente não voltará a fazer o mal pode não haver perigo para as outras pessoas No entanto a lei da terra não permite essa escolha porque a comunidade como um todo foi violada Em outras palavras Sócrates não está falando aqui na pessoa do cidadão de quem se supõe preocuparse mais com o mundo do que consigo mesmo ele fala aqui como um homem devotado principalmente ao pensamento E como se ele dissesse a Cálicles se você estivesse como eu apaixonado pela sabedoria e se sentisse a necessidade de pensar sobre tudo e examinar tudo você saberia que é melhor sofrer o mal do que o praticar caso não haja alternativa caso o mundo seja como você o descreve dividido entre fortes e fracos onde os fortes fazem o que está em seu poder e os fracos sofrem o que têm que sofrer Tucídides Mas é claro que o pressuposto aqui é se você está apaixonado pela sabedoria e pelo filosofar se você sabe o que significa investigar Ao que eu saiba há apenas uma outra passagem na literatura grega que diz o mesmo que Sócrates quase com as mesmas palavras Mais desgraçado kakodaimonesteros do que o injuriado é o malfeitor lemos em um dos fragmentos de Demócrito o grande adversário de Parmenides que provavelmente por esta mesma razão nunca é mencionado por Platão123 A coincidência parece notável porque Demócrito ao contrário de Sócrates não estava particularmente interessado em assuntos humanos mas parece antes ter estado bastante interessado na experiência do pensamento Chega a parecer que aquilo que somos tentados a compreender como uma proposição puramente moral na verdade tem origem na experiência do pensar enquanto tal E isto nos leva à segunda afirmação que é de fato o prérequisito para a primeira Ela também é altamente paradoxal Sócrates afirma ser um e por isso mesmo não querer correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo Mas nada do que é idêntico a si mesmo verdadeira e absolutamente Um assim como A é A pode estar em harmonia ou desarmonia consigo mesmo no mínimo dois tons sempre são necessários para produzir um som harmonioso Certamente quando apareço e sou visto pelos outros sou um de outro modo seria irreconhecível E enquanto estou junto a outras pessoas pouco consciente de mim mesmo sou tal como apareço para os outros Chamamos de consciência literalmente conhecer comigo mesmo como vimos o fato curioso de que em certo sentido eu também sou para mim mesmo embora quase não apareça para mim o que indica que o sendo um socrático não é tão pouco problemático como parece eu não sou apenas para os outros mas também para mim mesmo e nesse último caso claramente eu não sou apenas um Uma diferença se instala na minha Unicidade Conhecemos essa diferença sob outros aspectos Tudo o que existe em meio a uma pluralidade de coisas não é simplesmente o que é em sua identidade mas também é diferente de outras coisas esse ser diferente pertence à sua própria natureza Quando tentamos apreendêlo em pensamento querendo definilo devemos levar em conta essa alteridade altereitas ou diferença Quando dizemos o que uma coisa é temos que dizer o que ela não é sob pena de falarmos apenas por tautologias toda determinação é uma negação como diz Espinoza Há uma curiosa passagem do Sofista de Platão para a qual Heidegger chamou a atenção e que trata do problema da identidade e da diferença O Estrangeiro afirma que no diálogo de duas coisas por exemplo repouso e movimento cada uma é diferente da outra mas para si mesma é a mesma hekaston heauto tauton2i Ao interpretar a sentença Heidegger dá ênfase ao dativo heauto pois Platão não diz como seria de se esperar hekaston auto tauton cada uma em si tomada fora de contexto é a mesma coisa no sentido tautológico em que A é A onde a diferença surge da pluralidade de coisas Segundo Heidegger esse dativo significa que cada coisa é restituída a si mesma cada uma em si é a mesma para si porque ela é consigo mesma A mesmidade implica a relação de com isto é uma mediação uma conexão uma síntese a unificação em uma unidade125 A passagem examinada por Heidegger localizase na parte final do Sofista sobre a koinonia a comunidade a qualidade que as idéias têm de ajustaremse e misturaremse umas às outras e especialmente sobre a possível comunidade de Diferença e Identidade que parecem ser contrárias O diferente é sempre dito com referência a outras coisas pros alia121 mas seus contrários as coisas que são o que são em si mesmas kathhauta participam da Idéia da diferença à medida que se referem de novo a si mesmas Elas são as mesmas para si ou consigo mesmas de tal forma que cada eidos é diferente do resto não em virtude da sua própria natureza mas porque participa do caráter da Diferença127 isto é não porque tenha uma relação com outra coisa da qual ele é diferente pros ti mas porque ele existe em meio a uma pluralidade de Idéias e todo ente enquanto ente encena a possibilidade de ser considerado diferente de alguma coisa128 Em nossos termos onde quer que haja uma pluralidade de seres vivos de coisas de idéias há diferença e essa diferença não vem do lado de fora mas é inerente a cada ente sob a forma da dualidade da qual surge a unidade como unificação Esta construção a implicação de Platão bem como a interpretação de Heideggerpareceme errônea Ti rar uma simples coisa do seu contexto do meio das outras coisas e olhála apenas na sua relação consigo mesma kathhauto isto é na sua identidade não revela nenhuma diferença nenhuma alteridade quando elaperde a relação com algo que ela não é perde também a própria realidade e adquire um bizarro caráter de fantasmagoria É o que ocorre freqüentemente nas obras de arte especialmente nos trechos em prosa do primeiro Kafka ou em algumas pinturas de Van Gogh onde um objeto singular uma cadeira ou um par de sapatos é representado Mas essas obras de arte são coisaspensamento e o que lhes confere o seu significado como se elas não fossem apenas elas mesmas mas para elas mesmas é precisamente a transformação sofrida quando o pensamento delas se apropriou Em outras palavras é a experiência do ego pensante que está sendo transferida para as coisas Pois nada pode ao mesmo tempo ser em si e para si mesmo senão o doisemum que Sócrates descobriu ser a essência do pensamento e que Platão traduziu em linguagem conceituai como o diálogo sem som eme emauto de mim comigo mesmo129 Mas novamente não é a atividade de pensar que constitui a unidade que unifica o doisem um ao contrário o doisemum tomase novamente Um quando o mundo exterior impõese ao pensador e interrompe bruscamente o processo do pensamento Quando o pensador é chamado de volta ao mundo das aparências onde ele sempre é Um é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse violentamente voltando de novo à unidade Existencialmente falando o pensamento é um estarsó mas não é solidão o estarsó é a situação em que me faço companhia A solidão ocorre quando estou sozinho mas incapaz de dividirme no doisemum incapaz de fazerme companhia quando como Jaspers dizia eu falto a mim mesmo ici bleibe mir aus ou em outras palavras quando sou um e sem companhia O fato de que o estarsó enquanto dura a atividade de pensar transforma a mera consciência de si que provavelmente compartilhamos com os animais superiores em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta e quem responde O pensamento pode se tomar dialético e crítico porque ele se submete a esse processo de perguntas e respostas ao diálogo do dialegesthai o qual é na verdade uma viagem através das palavras poreuesthai dia ton logon30 em que constantemente levantamos a pergunta socrática básica o que você entende por 1 Só que este legein este dizer é sem som e portanto é tão rápido que sua estrutura dialógica tomase um tanto difícil de detectar O critério do diálogo espiritual não é mais a verdade que exigiría respostas para as perguntas que me coloco esteja ela sob a forma da Intuição que compele com a força da evidência sensorial ou sob a forma das conclusões necessárias de um cálculo de conseqüências como o raciocínio matemático ou lógico cuja força de coerção repousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural O único critério de pensamento socrático é a conformidade o ser consistente consigo mesmo homologein autos heauto3 O seu oposto o estar em contradição consigo mesmo enantia legein autos heauto33 de fato significa tomarse seu próprio adversário Eis porque Aristóteles em sua primeira formulação do famoso princípio da nãocontradição afirma explicitamente que ele é um axioma temos que acreditar nele porque ele não se dirige à palavra externa exo logos isto é à palavra falada e endereçada a outra pessoa amiga ou adversária mas ao discurso interno à alma e embora possamos sempre levantar objeções contra a palavra externa nem sempre podemos fazêlo contra o discurso interior porque o parceiro é a própria pessoa e é impossível que eu queira tomarme meu próprio adversário133 Podemos observar neste caso como um insight feito a partir da experiência factual do ego pensante perdese quando é generalizado em uma doutrina filosófica como A não pode ser B e A sob as mesmas condições e ao mesmo tempo uma transformação realizada pelo próprio Aristóteles quando discute o mesmo assunto em sua Metafísica Uma leitura minuciosa do Organon do Instrumento nome dado a partir do século VI dC ao conjunto dos primeiros tratados lógicos de Aristóteles mostra claramente que o que hoje chamamos lógica não era originalmente compreendido como um instrumento do pensamento do diálogo interior empreendido dentro da alma Ao contrário lógica designa a ciência de falar e argumentar corretamente quando estamos tentando convencer os outros ou explicar o que afirmamos partindo sempre como Sócrates de premissas mais fáceis de serem aceitas pela maioria dos homens ou pela maioria dos considerados geralmente como os mais sábios entre estes O axioma da nãocontradição nos primeiros tratados apenas decisivos para o diálogo interno do pensamento ainda não tinha sido estabelecido como a regra mais básica para o discurso em geral Só depois que esse caso particular tomouse o exemplo condutor para todo pensamento é que Kant que na Antropologia tinha definido pensar como conversar consigo mesmo e portanto também escutar interiormente135 pôde relacionar a prescrição de pensar sempre consistentemente e de acordo consigo mesmo OJederzeit mit sich selbst einstimmig denken entre as máximas que devem ser consideradas mandamentos imutáveis para a classe dos pensadores136 Em poucas palavras a realização especificamente humana da consciência no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas são também as mesmas condições da existência do ego mental do homem já que ele só existe na dualidade E esse ego o eusoueu faz a experiência da diferença na identidade precisamente quando ele não está relacionado às coisas que aparecem mas apenas a si mesmo Essa dualidade original aliás explica a futilidade da busca de identidade tão em voga Nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida se nunca ficássemos a sós e nunca tentássemos pensar Sem aquela lição original a afirmação de Sócrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparências é Um não teria sentido A consciência não é o mesmo que o pensamento os atos de consciência têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos intencionais e portanto cognitivos ao passo que o ego pensante não pensa alguma coisa mas sobre alguma coisa e este ato é dialético ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso Sem a consciência no sentido da consciência de si mesmo o pensamento seria impossível O que o pensamento toma real no meio desse processo infinito é a diferença na consciência diferença dada como um simples fato bruto factum brutumf é apenas sob essa forma humanizada que a consciência tomase a característica notória de um homem e não de um deus ou de um animal Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele o doisem um socrático cura o estar só do pensamento sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra Para Sócrates a dualidade do doisemum significava apenas que quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os parceiros do diálogo estejam em bons termos para que eles sejam amigos O parceiro que desperta novamente quando estamos alertas e sós é o único do qual nunca podemos nos livrar exceto parando de pensar E melhor sofrer uma injustiça do que cometêla quem gostaria de ser amigo e ter que conviver com um assassino Nem mesmo outro assassino No fundo é a essa consideração bastante simples sobre a importância do acordo de uma pessoa consigo mesma que o Imperativo Categórico de Kant recorre Subjacente ao imperativo aja apenas segundo uma máxima tal que você possa ao mesmo tempo querer que ela se tome uma lei universal está a ordem não se contradiga137 Um assassino ou um ladrão não podem querer que mandamentos como tu matarás ou tu roubarás se tomem leis válidas para todos já que eles temem evidentemente pela própria vida e pela propriedade Quem abre uma exceção para si mesmo se contradiz Em um dos diálogos contestados o Hípias Maior que pode ainda assim oferecer um testemunho autêntico sobre Sócrates mesmo que não tenha sido escrito por Platão Sócrates descreve essa situação de maneira simples e precisa no fim do diálogo Na hora de voltar para casa Sócrates diz a Hípias como ditosamente afortunado era ele que tinha se revelado um parceiro singularmente estúpido em comparação com o pobre Sócrates que é aguardado em casa por um sujeito muito irritante que vive a interrogálo Ele é meu parente próximo e vive na mesma casa No momento em que esse sujeito ouvir Sócrates concordar com as opiniões de Hípias ele perguntará se Sócrates não se envergonha de discorrer sobre um belo modo de vida quando a série de interrogações já evidencia que ele sequer conhece o significado da palavra beleza13S Quando Hípias volta para casa ele permanece um pois embora viva só não busca fazerse companhia Não é certamente que ele perca a consciência só que ele não costuma exercitála Quando Sócrates vai para casa ele não está solitário está junto a si mesmo Evidentemente Sócrates tem que entrar em alguma espécie de acordo com o sujeito que o espera já que eles vivem sob o mesmo teto E melhor se desaver com o mundo todo do que com aquela única pessoa com quem se é forçado a viver após terse despedido de todas as companhias O que Sócrates descobriu é que podemos ter interação conosco mesmos bem como com os outros e os dois tipos de interação estão de alguma maneira relacionados Aristóteles falando da amizade observou o amigo é um outro eu139 Isso significa podese com ele empreender o diálogo de pensamento como se faz consigo mesmo A observação faz parte da tradição socrática mas Sócrates diria também o eu é uma espécie de amigo A experiência condutora nesses assuntos é evidentemente a amizade e não a individualidade antes de conversar comigo mesmo converso com os outros examinando qualquer que seja o assunto da conversa e então descubro que eu posso conduzir um diálogo não apenas com os outros mas também comigo mesmo No entanto o ponto em comum é que o diálogo do pensamento só pode ser levado adiante entre amigos e seu critério básico sua lei suprema diz não se contradiga É característico das pessoas moralmente baixas estarem em discordância consigo mesmas diapherontai heautois e dos homens maus evitar a própria companhia sua alma se rebela contra si mesma stasiazei11 Que diálogo se pode ter consigo mesmo quando a alma não está em harmonia mas em guerra consigo mesma É este o diálogo que se subentende quando Ricardo III de Shakespeare está só What do I fear Myself Theres none else by Richard loves Richard that is I am I Is there a murderer here No Yes I am Then fly what from myself Great reason why Lest I revenge What myself upon myself Alack I love myself Wherefore For any good That I myself have done unto my self Oh no alas I rather hate myself For rateful deeds committed by myself I am a villain Yet I lie I am not Fool of thyself speak well fool do not flatter 1 No entanto as coisas mudam depois de meianoite e Ricardo escapa da própria companhia para juntarse a seus pares Então Conscience is but a word that cowards use Devisd at first to keep the strong in awe 2 Até o próprio Sócrates tão apaixonado pela praça pública tem que voltar para casa onde estará só para encontrar o outro indivíduo Chamei a atenção para a passagem do Hípias Maior em sua absoluta simplicidade porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar sob o risco de simplificar em demasiaassuntos difíceis e que portanto sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados Épocas posteriores deram ao sujeito que espera Sócrates em casa o nome de consciência moral Perante o tribunal para adotar a linguagem kantiana temos que comparecer e explicarnos E escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare embora use a palavra consciência moral não a usa aqui no sentido costumeiro Muito tempo se passou antes que a língua separasse a palavra consciência consciousness da consciência moral conscience e em algumas línguas como o francês essa separação nunca foi feita A consciência moral tal como a entendemos em assuntos morais ou legais está supostamente sempre presente em nós assim como a mera consciência E essa consciência moral supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender antes de se tornar o lumen naturale ou a razão prática de Kant ela era a voz de Deus Ao contrário dessa consciência sempre presente o sujeito de quem Sócrates fala foi deixado em casa ele o teme do mesmo modo como os assassinos de Ricardo III temem a consciência moral como algo ausente Aqui a consciência moral aparece como um repensar despertada ou por um crime no caso do próprio Ricardo ou por opiniões não submetidas a exame como no caso de Sócrates Ela pode também ser o medo antecipado de tais atos de repensar como no caso dos assassinos contratados de Ricardo Essa consciência moral diferentemente da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale não oferece nenhuma prescrição positiva mesmo o daimon a voz divina ouvida por Sócrates só lhe diz o que não fazer nas palavras de Shakespeare ela deixa um homem repleto de embaraços O que faz um homem temêla é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa O assassino de Shakespeare diz todo homem que pretende viver bem se esforça por viver sem ela Isso é fácil de conseguir pois tudo o que ele tem a fazer é nunca iniciar o diálogo isolado e sem som a que chamamos de pensar nunca voltar para casa e examinar as coisas Não se trata aqui de perversidade ou bondade como também não se trata de inteligência ou estupidez Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa na qual examinamos o que dizemos e fazemos não se importa em contradizerse e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz nem se importará em cometer um crime já que pode estar certa de esquecêlo no momento seguinte As pessoas más não obstante a opinião em contrário de Aristóteles não são cheias de remorsos O pensamento em seu sentido nãocognitivo e nãoespecializado como uma necessidade natural da vida humana como a realização da diferença dada na consciência não é umaprerrogativa de poucos mas uma f acuidade sempre presente em todo mundo do mesmo modo a inabilidade de pensar não é uma imperfeição daqueles muitos a quem falta inteligência mas uma possibilidade sempre presente para todos incluindo aí os cientistas os eruditos e outros especialistas em tarefas do espírito Todos podemos vir a nos esquivar daquela interação conosco mesmos cuja possibilidade concreta e cuja importância Sócrates foi o primeiro a descobrir O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo E uma vez que a vida é um processo sua quintessência só pode residir no processo real do pensamento e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos específicos Uma vida sem pensamento é totalmente possível mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência ela não é apenas sem sentido ela não é totalmente viva Homens que não pensam são como sonâmbulos Para o ego pensante e para sua experiência a consciência moral que deixa o homem cheio de embaraços é um efeito colateral acessório Não importa em que séries de pensamentos o ego pensante se engage para o eu que nós todos somos importa cuidar de não fazer nada que tome impossível para os doisemum serem amigos e viverem em harmonia E isto o que Espinoza entende por aquiescência do próprio eu acquiescentia in seipso ela pode brotar da razão raciocínio e este contentamento é a maior alegria possível141 Seu critério de ação não será o das regras usuais reconhecidas pelas multidões e acordadas pela sociedade mas a possibilidade de eu viver ou não em paz comigo mesmo quando chegar a hora de pensar sobre meus atos e palavras A consciência moral é a antecipação do sujeito que aguarda quando eu voltar para casa Esse efeito moral colateral é para o pensador um tanto marginal E o pensamento como tal traz bem poucos benefícios à sociedade muito menores do que a sede de conhecimento que usa o pensamento como um instrumento para outros fins Ele não cria valores ele não encontrará o que é o bem de uma vez por todas ele não confirma regras de conduta ao contrário dissolveas E ele não tem relevância política a não ser em situações de emergência A consideração de que eu tenho que poder conviver comigo mesmo não tem nenhum aspecto político exceto em situações limite Esta expressão foi cunhada por Jaspers para designar a condição humana geral e imutável não posso viver sem ter que lutar e sofrer não posso evitar a culpa tenho que morrer um dia para indicar a experiência de algo imanente que já oferece um vislumbre de transcendência e que quando a ela correspondemos tornarmonos a Existenz que potencialmente somos142 Em Jaspers a expressão ganha plausibilidade sugestiva menos das experiências específicas do que do simples fato de que a própria vida limitada pelo nascimento e pela morte é um caso limite no sentido de que a minha existência mundana sempre força a que eu me dê conta do passado quando eu ainda não era e de um futuro quando não mais serei O ponto é que sempre que transcendo os limites do próprio tempo de vida e começo a refletir sobre esse passado julgandoo e sobre esse futuro formando projetos da vontade o pensamento deixa de ser uma atividade politicamente marginal E tais reflexões surgem inevitavelmente em emergências políticas Quando todos estão deixandose levar impensadamente pelo que os outros fazem e por aquilo em que crêem aqueles que pensam são forçados a mostrarse pois a sua recusa em aderir tomase patente e tomase portanto um tipo de ação Em tais emergências resulta que o componente depurador do pensamento a maiêutica de Sócrates que traz à tona as implicações das opiniões nãoexaminadas e portanto as destrói valores doutrinas teorias e até mesmo convicções é necessariamente político Pois essa destruição tem um efeito liberador sobre outra faculdade a faculdade do juízo que podemos chamar com alguma propriedade de a mais política das capacidades espirituais humanas E a faculdade que julga particulares sem subsumilos a regras gerais que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tomem hábitos capazes de serem substituídos por outros hábitos e regras A faculdade de julgar particulares tal como foi revelada por Kant a habilidade de dizer isto é errado isto é belo e por aí afora não é igual à faculdade de pensar O pensamento lida com invisíveis com representações de coisas que estão ausentes O juízo sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos Mas as duas faculdades estão interrelacionadas do mesmo modo como a consciência moral e a consciência Se o pensamento o doisemum do diálogo sem som realiza a diferença inerente à nossa identidade tal como é dada à consciência resultando assim na consciência moral como seu derivado então o juízo o derivado do efeito liberador do pensamento realiza o próprio pensamento tomandoo manifesto no mundo das aparências onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento é a habilidade de distinguir o certo do errado o belo do feio E isso nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa pode sem dúvida prevenir catástrofes ao menos para o eu Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum Vou me aproximando do fim dessas considerações na esperança de que nenhum leitor esteja na expectativa de um sumário conclusivo Esforçarme neste sentido estaria em flagrante contradição com o que aqui foi descrito Se o pensamento é uma atividade que tem seu fim em si mesma e se a única metáfora da nossa experiência sensorial comum que a ele se adequa é a sensação de estar vivo disso resulta que todas as perguntas sobre o objetivo ou propósito do pensamento são tão irrespondíveis quanto as perguntas sobre o objetivo ou propósito da vida Estou levantando a questão onde estamos quando pensamos ao fim da nossa investigação não porque a sua resposta pudesse ser conclusiva mas porque a própria pergunta e as considerações a que ela dá lugar só podem fazer sentido diante do conjunto dessa abordagem Como o que vem a seguir apóiase fundamentalmente em minhas reflexões anteriores eu as resumirei brevemente no que podem parecer mas não são proposições dogmáticas Em primeiro lugar o pensamento está sempre fora de ordem interrompendo todas as atividades ordinárias e sendo por elas interrompido A melhor ilustração disso pode ser ainda como conta a velha história o hábito socrático de subitamente voltar seu espírito para si mesmo deixando de lado toda companhia permanecendo onde se está surdo a todas as súplicas para que se retorne ao que se vinha até então fazendo1 Xepofonte relata como permaneceu vinte e quatro horas em completa imobilidade em um campo de batalha mergulhado em pensamentos como diriamos Em segundo lugar as manifestações das experiências autênticas do ego pensante são múltiplas Entre elas encontramse as falácias metafísicas como a teoria dos dois mundos e as ainda mais interessantes descrições nãoteóricas do pensamento como uma espécie de morrer ou inversamente a noção de que enquanto pensamos somos membros de um outro mundo numênico que se nos insinua mesmo na obscuridade do aquieagora real ou ainda a definição de Aristóteles do bias theoretikos como um bios xenikos como a vida do estrangeiro As mesmas experiências refletemse na dúvida cartesiana sobre a realidade do mundo no às vezes sou às vezes penso de Valéry como se ser real e pensar fossem opostos nas palavras de MerleauPonty Só estamos realmente sós quando não o sabemos é essa ignorância mesma que é o nosso estarsó o do filósofo2 E bem verdade que o ego pensante quaisquer que sejam as suas realizações jamais poderá alcançar a realidade enquanto tal ou convencer a si mesmo de que algo realmente existe e de que a vida a vida humana é mais do que um sonho A suspeita de que a vida seja apenas um sonho é evidentemente um dos traços mais característicos da filosofia asiática inúmeros exemplos podem ser tirados da filosofia indiana Escolhi um exemplo chinês bastante eloqüente por sua concisão Ele conta uma história sobre o filósofo taoísta isto é anticonfuciano Chuang Chou Ele uma vez sonhou que era uma borboleta esvoaçando alegremente de um lado para o outro satisfeita consigo mesma fazendo o que lhe aprazia Ele não sabia que era Chuang Chou Subitamente despertou e lá estava sólida e inequivocamente Chuang Chou Mas ele não sabia se Chuang Chou tinha sonhado ser uma borboleta ou se uma borboleta estava sonhando ser Chuang Chou Entre Chuang Chou e uma borboleta deve haver alguma distinção3 A intensidade da experiência do pensamento por outro lado manifestase na facilidade com que a oposição entre pensamento e realidade pode ser invertida de tal modo que apenas o pensamento parece ser real enquanto tudo o que simplesmente é parece ser tão transitório que é como se não fosse o que é pensado é e o que é é apenas à medida que é pensado Was gedacht ist ist und was ist ist nur insofern es Gedanke isffi O ponto decisivo contudo é que todas essas dúvidas desaparecem assim que o estarsó do pensador é interrompido e o chamado do mundo exterior e dos seus semelhantes transforma de novo a dualidade do doisemum em uma unidade A idéia de que tudo aquilo que é poderia bem ser um sonho ou é o pesadelo que surge da experiência do pensamento ou o consolo para o qual se apela não quando eu me retirei do mundo mas quando o mundo se retirou e tomouse irreal Em terceiro lugar estas curiosas características ligadas à atividade de pensar surgem da retirada inerente a todas as atividades do espírito o pensamento sempre lida com ausências e abandona o que está presente e ao alcance da mão Isso evidentemente não prova a existência de um mundo diferente daquele do qual fazemos parte na vida cotidiana mas quer dizer que a realidade e a existência que só podemos conceber em termos espaço temporais podem ser temporariamente suspensas Elas podem ser despojadas de seu peso e deste modo também do seu significado para o ego pensante Durante a atividade de pensar o que se toma significativo são extratos produtos da dessensorialização e tais extratos não são meros conceitos abstratos eles eram outrora chamados de essências As essências não podem ser localizadas O pensamento humano ao apossarse delas deixa o mundo dos particulares e dá início à busca de algo significativo de uma maneira geral embora não necessariamente universalmente válido O pensamento sempre generaliza comprime os muitos particulares os quais graças ao processo dessensorializante ele pode compactar para uma rápida manipulação para encontrar o significado que possam ter A generalização é inerente a todo pensamento mesmo que este ou aquele pensamento insista na primazia universal do particular Em outras palavras o essencial é o que se aplica em toda parte e esse em toda parte que confere ao pensamento seu peso específico é espacialmente falando um lugar nenhum O ego pensante movendose entre universais e essências invisíveis não se encontra em sentido estrito em lugar algum Ele não tem lar no sentido forte da expressão o que talvez explique o surgimento precoce de um espírito cosmopolita entre os filósofos O único grande filósofo ao que eu saiba explicitamente cônscio desta condição de não ter lar como própria à atividade de pensar foi Aristóteles talvez porque conhecesse e declarasse tão bem a diferença entre ação e pensamento a distinção decisiva entre o modo de vida filosófico e o político e tirando a óbvia conclusão se recusasse a compartilhar da sina de Sócrates e a deixar os atenienses pecarem duas vezes contra a filosofia Quando uma acusação de impiedade foi contra ele lançada deixou Atenas e retirouse para Khalkis um baluarte sob a influência macedônia5 Entre as vantagens do modo de vida do filósofo ele relacionava a de não ter um lar como declarou no Protreptikos uma das obras de juventude ainda bem conhecida na Antigüidade mas que só chegou até nós em fragmentos Nela Aristóteles louvava o bios theoretikos porque ele não precisa de quaisquer implementos ou lugares especiais para se realizar em qualquer lugar da terra onde alguém se devota ao pensamento ele atingirá a verdade onde quer que esteja como se ela estivesse presente Os filósofos amam esse lugar nenhum como se fosse um país philochoreiri e desejam abandonar todas as atividades em favor do scholazein o não fazer nada como nós diriamos em vista da doçura inerente ao próprio pensar ou filosofar6 A razão para essa abençoada independência é que a filosofia a cognição kata logon não se ocupa com particulares nem com coisas dadas aos sentidos mas com universais kathholou com coisas que não podem ser localizadas7 Seria um grande erro procurar tais universais em assuntos políticopráticos em que sempre se trata de particulares Nesse domínio as afirmações gerais aplicáveis igualmente em toda parte se degeneram imediatamente em generalidades vazias A ação se exerce sobre particulares e apenas afirmações particulares podem ser válidas no campo da ética ou da política8 Em outras palavras quando perguntávamos pelo lugar do ego pensante podíamos bem estar colocando uma pergunta errada e imprópria O em toda parte do ego pensante chamando à sua presença de qualquer ponto do tempo ou do espaço tudo o que lhe apraz com velocidade maior do que a da luz considerado da perspectiva do mundo cotidiano das aparências é um lugar nenhum E uma vez que este lugar nenhum não é de modo algum idêntico ao duplo lugar nenhum de onde subitamente aparecemos ao nascer e no qual quase tão subitamente desaparecemos ao morrer ele só pode ser concebido como o Vazio E o vazio absoluto pode ser um conceito limite embora não inconcebível ele é impensável Obviamente se não existe absolutamente nada nada há sobre o que pensar O fato de que tenhamos estes conceitoslimites que encerram nosso pensamento dentro de muros intransponíveis entre eles as noções de começo e fim absoluto nos diz apenas que somos realmente seres finitos Supor que essas limitações pudessem servir para demarcar uma região onde o ego pensante pudesse ser localizado seria apenas dar uma outra variante para a teoria dos dois mundos A finitude humana irrevogavelmente determinada por nosso curto tempo de vida compreendido em uma infinidade de tempo que se estende para o passado e para o futuro constitui por assim dizer a infra estrutura de todas as atividades do espírito A finitude manifestase como a única realidade da qual o pensamento enquanto tal está côncio mesmo quando o ego pensante retirouse do mundo das aparências e perdeu o sentido de realidade realness inerente ao sensus communis que nos orienta nesse mundo Dito de outra maneira a observação de Valéry quando pensamos não somos estaria correta se nosso sentido de realidade realness fosse inteiramente determinado por nossa existência espacial O emtodaparte do pensamento é de fato uma região do lugar nenhum Mas nós não existimos apenas no espaço existimos também no tempo lembrando coletando e recolhendo o que não está mais presente fora do ventre da memória Santo Agostinho antecipando e planejando na forma da vontade o que ainda não é Talvez a pergunta onde estamos quando pensamos estivesse errada porque ao perguntar pelo topos dessa atividade nós estivéssemos orientados exclusivamente pelo sentido espacial como se tivéssemos esquecido o famoso insight de Kant de que o tempo nada mais é do que a forma do sentido interno isto é da intuição de nós mesmos e de nosso estado interno Para Kant isso significa que o tempo nada tem a ver com as aparências enquanto tais nem com a figura nem com a posição como estão dadas aos nossos sentidos mas apenas com as aparências enquanto afetam nosso estado interno no qual o tempo determina a relação das representações9 E essas representações através das quais tomamos presente o que fenomenicamente está ausente são sem dúvida coisaspensamento isto é experiências ou noções sobre as quais se efetuou uma operação de desmaterialização Através dela o espírito espera preparar seus próprios objetos e ao generalizálos privaos igualmente de suas propriedades espaciais O tempo determina o modo como essas representações estão relacionadas umas às outras forçandoas a entrar em uma sequência e esta seqüência é o que chamamos seqüências de pensamentos Todo pensamento é discursivo e à medida que acompanha uma seqüência de pensamento poderia ser descrito por analogia como uma linha avançando na direção do infinito o que corresponde ao modo como usualmente representamos para nós mesmos a natureza seqüencial do tempo Mas para criar uma tal linha de pensamento precisamos transformar a justaposição na qual as experiências nos são dadas em umawmcvvúo de palavras proferidas sem som o único meio que podemos usar para pensar oque significa que nós não apenas dessensorializamos mas também desespacializamos a experiência original 20 A lacuna entre passado e futuro o nunc stans Na esperança de descobrir onde o ego pensante está temporalmente situado e se a sua incansável atividade pode ser temporalmente determinada recorrerei a uma parábola da Kafka que em minha opinião trata especificamente desse tema A parábola faz parte de uma coleção de aforismos intitulada ELE10 Ele tem dois antagonistas o primeiro empurrao de trás a partir da origem O segundo veda o caminho à frente Ele luta com ambos Na verdade o primeiro lhe dá apoio na luta contra o segundo pois ele quer empurrálo para frente e da mesma forma o segundo apóiao na luta contra o primeiro pois ele empurrao para trás Mas isso é assim apenas teoricamente Pois não são somente os dois antagonistas que estão lá mas também ele e quem conhece realmente suas intenções Todavia o seu sonho é que em um momento de desatenção e isto é preciso admitir exigiría uma noite tão escura como nenhuma já foi ele pulasse para fora da linha de batalha e graças à sua experiência em lutar fosse promovido à posição de árbitro da luta de seus adversários entre si Para mim essa parábola descreve a sensação temporal do ego pensante Ela analisa poeticamente nosso estado interno em relação ao tempo do qual nos damos conta quando nos retiramos das aparências e encontramos nossas atividades espirituais voltandose de modo característico sobre si mesmas cogito me cogitares volo me velle etc A sensação interna do tempo surge não quando estamos inteiramente absorvidos pelos invisíveis ausentes sobre os quais pensamos mas quando começamos a dirigir nossa atenção para a atividade ela mesma Nessa situação passado e futuro estão igualmente presentes precisamente porque estão igualmente ausentes da nossa percepção Assim o nãomais do passado é transformado graças à metáfora espacial em algo que se encontra atrás de nós e o aindanão do futuro em algo que se aproxima pela frente a palavra alemã Zukunft bem como a francesa avenir significam literalmente o que vem Em Kafka esse cenário é um campo de batalha onde as forças do passado e do futuro chocamse uma contra a outra Entre elas encontramos o homem que Kafka chama Ele que se pretende manter sua posição tem que enfrentar ambas as forças Elas são seus antagonistas elas não são apenas opostas e dificilmente entrariam em luta se ele não estivesse no meio delas opondo resistência Mesmo que tal antagonismo fosse de alguma forma inerente às duas e elas pudessem lutar uma contra a outra sem ele há muito tempo elas já teriam se neutralizado e destruído reciprocamente já que como forças são claramente equipotentes Em outras palavras o continuum a mudança incessante é partida nos tempos passado presente e futuro de modo que o passado e o futuro só se antagonizam sob a forma do nãomais e do aindanão em virtude da presença do homem que tem ele mesmo uma origem seu nascimento e um fim sua morte e portanto encontrase em todos os momentos entre o passado e o futuro esse intervalo chamase presente E a inserção do homem com seu limitado período de vida que transforma em tempo tal como o conhecemos o fluxo contínuo da pura mudança um fluxo que podemos conceber tanto ciclicamente quanto como movimento linear sem jamais poder conceber um começo ou um fim absolutos A parábola em que os dois tempos modais passado e futuro são entendidos como forças antagônicas que colidem no Agora presente parecenos bastante estranha A extrema parcimônia da linguagem kafkiana que em consideração ao realismo da fábula elimina toda realidade factual que pudesse engendrar o mundo do pensamento pode fazêla soar ainda mais estranha do que exigiría o próprio pensamento que ela contém Assim utilizarei uma história de Nietzsche escrita no estilo pesadamente alegórico de Assim falou Zaratustra e curiosamente aparentada com esse pensamento Essa história é muito mais fácil de ser compreendida porque conta simplesmente como diz o título uma Visão ou um Enigma11 A alegoria começa com a chegada de Zaratustra a um pórtico O pórtico como qualquer outro tem uma entrada e uma saída ou seja pode ser visto como o ponto de encontro entre os dois caminhos Dois caminhos aqui encontramse ninguém ainda os seguiu até o fim Esse longo caminho estendese uma eternidade para trás E o outro longo caminho adiante é outra eternidade Eles se contradizem estes caminhos e se afrontam e é aqui ao pé desse pórtico que eles se encontram O nome do pórtico está escrito lá em cima Agora Augenblick Observem esse Agora Para trás desse pórtico estendese um caminho longo e eterno atrás de nós jaz uma eternidade e outro caminho conduz adiante para um eterno futuro Heidegger que interpreta essa passagem em seu Nietzsche2 observa que este não é o ponto de vista do espectador mas apenas daquele que está sob o pórtico para aquele que observa o tempo passa da maneira como habitualmente o pensamos como uma sucessão de agoras em que uma coisa sempre sucede a outra Não há aí ponto de encontro não há dois caminhos ou duas estradas só uma A colisão se produz apenas para aquele que é ele mesmo o agora Quem está no agora voltase para as duas direções para ele Passado e Futuro correm um contra o outro E resumindo no contexto da doutrina do Eterno Retomo de Nietzsche Heidegger diz este é o autêntico conteúdo da doutrina do Eterno Retomo isto é que a Eternidade é no Agora que o Momento não é o Agora fútii que é apenas para o observador mas a colisão de Passado e Futuro Encontramos o mesmo pensamento em Blake Segura o infinito na palma da sua mão E a eternidade em uma hora Para voltar a Kafka é preciso lembrar que nenhum desses exemplos tematiza uma doutrina ou teoria mas pensamentos ligados às experiências do ego pensante Vista da perspectiva de um fluxo etemo e constante a inserção do homem lutando em ambas as direções produz uma ruptura que por ser defendida em duas direções abre uma lacuna o presente definido como um campo de batalha Esse campo de batalha é para Kafka uma metáfora do lar do homem sobre a Terra Visto da perspectiva do homem a cada momento capturado e encerrado entre seu passado e seu futuro onde passado e futuro dirigemse àquele que está criando o seu presente o campo de batalha é um intervalo um Agora prolongado onde ele passa sua vida O presente que na vida cotidiana é o mais fútii e escorregadio dos tempos modais quando eu digo agora e o aponto ele já não é mais é apenas o choque entre o passado que não é mais e o futuro que vem se aproximando e no entanto ainda não é O homem vive nesse intervalo e o que ele chama de presente é uma luta que dura toda a vida contra o peso morto do passado que o impulsiona com a esperança e contra o medo do futuro cuja única certeza é a morte que o empurra para trás para a serenidade do passado com a nostalgia e a lembrança da única realidade de que o homem pode ter certeza O fato de que essa imagem do tempo seja totalmente distinta da seqüência temporal da vida cotidiana onde os três tempos se sucedem sem rupturas e o próprio tempo pode ser entendido fazendose uma analogia com a seqüência numérica fixada pelo calendário de acordo com a qual o presente é hoje o passado começa ontem e o futuro amanhã não deveria nos assustar em demasia Aqui também o presente está rodeado pelo passado e pelo futuro à medida que ele permanece o ponto fixo a partir do qual nos orientamos olhamos para trás ou para frente Devemos não ao próprio tempo mas à continuidade de nossas ocupações e atividades no mundo e ao fato de que continuamos o que ontem começamos e que esperamos terminar amanhã a possibilidade de dar ao fluxo eterno da pura mudança a forma de um continuum temporal Em outras palavras o continuum do tempo depende da continuidade de nossa vida cotidiana e o conjunto das ocupações que formam a vida cotidiana é sempre espacialmente condicionado e determinado ao contrário da atividade do ego pensante sempre independente das circunstâncias espaciais que o cercam Graças a essa penetrante especialidade da nossa vida cotidiana é que podemos falar com plausibilidade do tempo usando categorias espaciais é que o passado pode aparecer como algo que se encontra atrás de nós e o futuro como algo que se encontra à frente A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas mas apenas ao ego pensante à medida que ele se retirou da rotina diária A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão cujo tema é aquilo mesmo que está ausente ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu A reflexão traz essas regiões ausentes à presença do espírito dessa perspectiva a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo E apenas porque ele pensa e portanto deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparências que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que ele pode tomar consciência de um nãomais que o empurra para frente e de um aindanão que o empurra para trás O conto de Kafka está evidentemente redigido em linguagem metafórica E suas imagens tiradas da vida cotidiana são tomadas como analogias sem as quais como foi dito os fenômenos do espírito não podem de modo algum ser descritos E isso sempre apresenta dificuldades para a interpretação A dificuldade específica aqui é que o leitor tem que estar consciente de que o ego pensante não é o eu que aparece e se move no mundo recordando o próprio passado biográfico como se ele estivesse à la recherche du temps perdu ou planejando o futuro Porque o ego pensante não tem idade nem localização o passado e o futuro podem tomarse como tais manifestos para ele esvaziados por assim dizer de seu conteúdo concreto e liberados de todas as categorias espaciais O que o ego pensante vê como os seus dois antagonistas são o próprio tempo e a mudança constante que ele implica o movimento inexorável que transforma todo Ser em Devir em vez de deixálo ser destruindo assim incessantemente seu estar presente Como tal o tempo é o maior inimigo do ego pensante porque o tempo pela encarnação do espírito em um corpo cujos movimentos internos nunca podem ser imobilizados regular e implacavelmente interrompe a quietude imóvel na qual o espírito está ativo sem nada fazer Esse significado final da parábola fica claro na sentença conclusiva quando ele situado na lacuna temporal no presente imóvel que é um nunc stans sonha com um movimento de desatenção quando o tempo tenha exaurido as suas forças A calmaria então descería sobre o mundo Não uma eterna calmaria mas apenas o tempo necessário para dar a ele a chance de pular para fora da linha de combate e ser promovido à posição de árbitro juiz e espectador de fora do jogo da vida para quem o significado deste lapso de tempo entre o nascimento e a morte pode ser endereçado porque ele não está envolvido nisso O que são este sonho e esta região senão o velho sonho da metafísica ocidental de Parmênides a Hegel o sonho com uma região fora do tempo uma presença eterna em total quietude completamente além dos calendários e relógios humanos em uma palavra a própria região do pensamento E o que é esta posição de árbitro o desejo que impulsiona o sonho senão o lugar dos espectadores de Pitágoras dos melhores porque não participam da luta pela fama e pelo ganho porque são desinteressados descomprometidos imperturbáveis absorvidos apenas pelo próprio espetáculo São eles que podem encontrar o seu significado e julgar o desempenho Sem violentar muito a magnífica história de Kafka talvez possamos dar um passo adiante O problema com a metáfora de Kafka é que ao pular fora da linha de combate ele pula totalmente fora deste mundo e o julga de fora embora não necessariamente do alto Além disso se é a inserção do homem que interrompe o fluxo indiferente da eterna mudança atribuindo a esse fluxo um objetivo isto é ele mesmo o ser que combate o fluxo e se através dessa inserção o curso indiferente do tempo articulase com o que ficou para trás o passado com o que está adiante o futuro e com o próprio homem o presente em luta então essa presença humana produz um desvio do fluxo temporal com relação a qualquer direção original ou supondose um movimento cíclico com relação a qualquer nãodireção final O desvio parece inevitável porque não se trata apenas de um objeto passivo colocado no meio da corrente carregado por ondas que passam por cima dele mas de um lutador que defende sua própria presença e assim define o que de outro modo poderia serlhe indiferente como seus antagonistas o passado que ele pode enfrentar com a ajuda do futuro o futuro que ele enfrenta apoiado pelo passado Sem ele não havería nenhuma diferença entre passado e futuro mas apenas uma eterna mudança Ou então essas forças bateríam de frente e se aniquilariam mutuamente Mas graças à entrada de uma presença combativa elas formam um ângulo e a imagem correta teria que ser então o que os físicos chamam de paralelogramo de forças A vantagem dessa imagem é que a região do pensamento não teria mais que situarse além e acima do mundo e do tempo humano o lutador não teria mais que pular da linha de combate para encontrar a calmaria e a quietude necessárias para o pensamento Ele reconhecería que sua luta não foi em vão já que o próprio campo de batalha oferece a região onde ele pode descansar quando está exausto Em outras palavras a localização do ego pensante no tempo seria o intervalo entre passado e futuro ou seja o presente agora misterioso e fugidio uma mera lacuna no tempo em direção ao qual não obstante passado e futuro se dirigem à medida que indicam o que não é mais e o que ainda não é O fato de que eles de alguma forma sejam deve se obviamente ao homem que instalou sua presença entre eles Uma vez tendo corrigido a imagem permitamme acompanhar sucintamente as suas implicações Falando em termos ideais a ação das duas forças que formam nosso paralelogramo deveria produzir uma terceira força a diagonal resultante cuja origem seria o ponto em que as duas forças se encontram e sobre o qual elas agem A diagonal permanecería no mesmo plano e não pularia para fora da dimensão das forças que formam o tempo mas diferiría delas sob o aspecto importante As duas forças antagônicas passado e futuro são indefinidas quanto à sua origem Observadas da perspectiva do presente que se encontra no meio delas uma vem de um passado infinito e a outra vai para um futuro infinito Mas embora o começo seja desconhecido elas têm um fim o ponto em que elas se encontram e colidem que é o presente A força diagonal ao contrário tem uma origem definida como o ponto de colisão das duas outras forças mas terminaria no infinito por ser a resultante da ação conjunta de suas forças que têm sua origem no infinito Essa força diagonal cuja origem é conhecida e cuja direção é determinada pelo passado e pelo futuro mas que se exerce na direção de um fim indeterminado como se pudesse estenderse ao infinito pareceme uma metáfora perfeita para a atividade do pensamento Se o ele de Kafka pudesse caminhar sobre essa diagonal perfeitamente eqüidistante das forças prementes do passado e do futuro ele não pularia para fora da linha de batalha como exige a parábola nem acima e além da confusão Pois essa diagonal embora aponte na direção de algum infinito é limitada encerrada por assim dizer pelas forças do passado e do futuro estando assim protegida contra o vazio Ela tem sua raiz no presente e permanece ligada a ele um presente inteiramente humano embora só realizado completamente no processo do pensamento e não durando além dele Ela é a quietude do Agora na existência humana pressionada e agitada pelo tempo Para mudar a metáfora ela é a calmaria que reina no centro do furacão que ainda pertence a ele embora dele seja totalmente diferente Nessa lacuna entre o passado e o futuro encontramos o nosso lugar no tempo quando pensamos isto é quando estamos distantes o suficiente do passado e do futuro Estamos aí em posição de descobrir o seu significado de assumir o lugar do árbitro das múltiplas e incessantes ocupações da existência humana no mundo do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas mas respostas sempre novas à pergunta que está realmente em questão Para evitar malentendidos as imagens que estou usando para indicar metafórica e experimentalmente a localização do pensamento só podem ser válidas no domínio dos fenômenos espirituais Aplicadas ao tempo histórico e biográfico essas metáforas não podem fazer nenhum sentido aí não ocorrem lacunas no tempo E apenas na medida em que pensa e portanto que não é nas palavras de Valéry que o homem um Ele como Kafka tão precisamente o chama e não um alguém na realização total do seu ser concreto vive nessa lacuna entre passado e futuro nesse presente atemporal Embora tenhamos ouvido falar dessa lacuna pela primeira vez como um nunc stans o agora permanente da filosofia medieval tornada modelo e metáfora para a eternidade divina sob a forma do nunc aeternitatis ela não é historicamente datável mas parece ser contemporânea à própria existência do homem sobre a Terra13 Usando uma metáfora diferente podemos chamála a região do espírito mas talvez ela seja muito mais a trilha aberta pelo pensamento a pequena e inconspícua trilha de nãotempo traçada pela atividade de pensar no espaçotempo concedido a homens que nascem e morrem Ao seguir esse caminho as seqüências de pensamento recordação e antecipação salvam tudo aquilo que tocam da ruína do tempo histórico e biográfico Esse pequeno espaço nãotemporal no âmago do tempo ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos não pode ser herdado nem transmitido pela tradição embora cada grande livro de pensamento deixeo entrever e como que o decifracom diz Heráclito a respeito do Oráculo de Delfos notoriamente críptico e indigno de confiança onte legei oute krytei alia semainei ele não diz nem oculta ele insinua Cada nova geração cada novo ser humano quando se toma consciente de estar inserido entre um passado infinito e um futuro infinito tem que descobrir e traçar diligentemente desde o começo a trilha do pensamento E é afinal possível e na minha opinião provável que a estranha sobrevivência das grande obras sua permanência relativa através de milênios devase ao fato de terem nascido na pequena e inconspícua trilha de nãotempo que o pensamento de seus autores percorreu por entre um passado e um futuro infinitos Por terem aceito passado e futuro como dirigidos e apontados por assim dizer para eles mesmos como aquilo que os antecede e os sucede como seu passado e seu futuro eles conquistaram para si mesmos um presente uma espécie de tempo sem tempo no qual os homens podem criar obras atemporais com que transcendam sua própria finitude Essa atemporalidade não é certamente a eternidade ela brota por assim dizer do choque entre passado e futuro ao passo que eternidade é o conceito limite impensável porque assinala o colapso de todas as dimensões temporais A dimensão temporal do nunc stans experimentada na atividade de pensar reúne junto a si os tempos ausentes o aindanão e o nãomais É o que Kant chama dc terra do puro intelecto Land des reinen Verstandes uma ilha encerrada dentro de limites inalteráveis pela própria natureza e rodeada por um vasto e tempestuoso oceano o mar da vida cotidiana14 E embora não acredite que esta é a terra da verdade ela é certamente o único domínio onde o conjunto de uma vida humana e seu significado de resto inacessível a homens mortais nemo ante mortem beatus esse dici potest cuja existência ao contrário de todas as outras coisas que só começam a ser em sentido enfático quando estão terminadas termina quando não é mais onde esse conjunto inapreensível pode se manifestar como a pura continuidade do eusou uma presença que permanece em meio à transitoriedade sempre mutável do mundo E por causa dessa experiência do ego pensante que o primado do presente no mundo das aparências o mais transitório dos tempos tomouse quase um alvo dogmático da especulação filosófica Ao fim dessas reflexões gostaria de chamar a atenção não para o meu método nem para os meus critérios ou ainda pior para os meus valores todos estes numa tal incursão permanecem caridosamente ocultos ao próprio autor embora possam ser ou melhor parecer manifestos ao leitor e ouvinte mas para o que na minha opinião é a pressuposição básica desta investigação Já que me detive nas falácias metafísicas que como vimos contêm indicações importantes sobre essa atividade curiosa e fora de ordem chamada pensamento Em outras palavras junteime claramente às fileiras daqueles que já há algum tempo vêm tentando desmontar a metafísica e a filosofia com todas as suas categorias do modo como as conhecemos desde o seu começo na Grécia até hoje Tal desmontagem só é possível se aceitarmos que o fio da tradição está rompido e que não podemos reatálo Historicamente falando o que de fato se partiu foi a trindade romana que por milhares de anos uniu religião autoridade e tradição A perda dessa trindade não destrói o passado e o processo de desmontagem em si mesmo não é destrutivo ele apenas tira conclusões a respeito de uma perda que é um fato e como tal não mais pertence à história das idéias mas à nossa história política à história do nosso mundo O que se perdeu foi a continuidade do passado tal como ela parecia passar de geração em geração desenvolvendose no processo de sua própria consistência O processo de desmontagem tem sua própria técnica e não pretendí tocar aqui no assunto a não ser perifericamente Aquilo com o que se fica então é ainda o passado mas um passado fragmentado que perdeu sua certeza de julgamento Para ser breve vou citar umas poucas linhas que falam melhor e de modo mais denso do que eu poderia fazêlo Full fathom five thy father lies Of his bones are coral made Those are pearls that were his eyes Nothing of him that doth fade But doth suffer a seachange Into something rich and strange 3 A tempestade Ato I Cena 2 Lidei aqui com estes fragmentos do passado após a transformação marinha por que passaram Devemos à trilha intemporal que o pensamento vai pavimentando no mundo do espaço e do tempo o fato de podermos usar esses fragmentos Se alguns de meus ouvintes ou leitores se dispuserem a tentar a sorte com a técnica de desmontagem que sejam cuidadosos para não destruir o rico e estranho o coral e as pérolas que provavelmente só poderão ser salvos como fragmentos O plunge your hands in water Plunge them in up to the wrist Stare stare in the basin And wonder what youve missed The glacier knocks in the cupboard The desert sighs in the bed And the crack in the teacup opens A lane to the land of the dead 4 W H Auden15 Ou para dizer o mesmo em prosa Alguns livros são imerecidamente esquecidos nenhum é imerecidamente lembrado 6 21 Postscriptum No segundo volume desta obra irei tratar da vontade e do juízo as duas outras atividades do espírito Vistas da perspectiva dessas especulações temporais elas dizem respeito às coisas que estão ausentes seja porque ainda não existem seja porque já não existem mais distintamente da atividade do pensamento no entanto que lida com os invisíveis em toda experiência e tende sempre a generalizar essas atividades lidam sempre com particulares e sob esse aspecto estão bem mais próximas do mundo das aparências Se desejarmos aplacar o nosso senso comum tão inevitavelmente ofendido pela necessidade que a razão tem de sempre avançar em sua busca sem fim de significado é tentador justificar essa necessidade unicamente com base no fato de o pensamento ser uma preparação indispensável na decisão do que será e na avaliação do que não é mais Uma vez que o passado como passado fica sujeito ao nosso juízo este por sua vez seria uma mera preparação para a vontade Esta é inegavelmente a perspectiva legítima dentro de certos limites do homem à medida que ele é um ser que age Mas esta última tentativa de defender a atividade de pensar da acusação que lhe dirigem de não ser prática nem útil não funciona A decisão à que chega a vontade não poderá jamais ser derivada da mecânica do desejo ou das deliberações do intelecto que podem vir a precedêla Ou bem a vontade é um órgão da livre espontaneidade que interrompe cada cadeia causai da motivação que a prende ou bem ela nada mais é que uma ilusão Com relação ao desejo por um lado e à razão por outro a vontade age como uma espécie de coup détat como disse Bergson e isso obviamente significa que os atos livres são excepcionais embora sejamos livres sempre que queremos voltar a nós mesmos raramente acontece de querermos isso grifos nossos17 Em outras palavras é impossível lidar com a atividade volitiva sem tocar no problema da liberdade Proponhome a levar a sério a evidência interna nos termos de Bergson o dado imediato da consciência e de vez que concordo juntamente com vários outros escritores que se ocuparam desse assunto com o fato de que este dado e todos os problemas a ele ligados eram desconhecidos da Antigüidade grega devo aceitar que essa faculdade foi descoberta que podemos datar a descoberta historicamente e que ao fazêlo chegaremos à conclusão de que ela coincide com a descoberta da interioridade humana como uma região especial da nossa vida Em suma proponhome a analisar a faculdade da vontade em termos de sua história Acompanharemos as experiências que os homens tiveram com essa faculdade paradoxal e autocontraditória toda volição produz a suaprópriacontravolição uma vez que se dirige a si mesma através de imperativos começando pela descoberta original da impotência da vontade feita por São Paulo Apóstolo Eu não faço o que quero faço exatamente o que odeio18 Examinaremos a seguir o testemunho que nos foi legado pela Idade Média começando com a compreensão por Agostinho de que não são o espírito e a carne que estão em guerra mas o espírito como vontade consigo mesmo o eu mais profundo do homem consigo mesmo Passaremos então à Era Moderna que com o surgimento da noção de progresso substituiu a antiga primazia filosófica do presente sobre os outros modos temporais pela primazi a do futuro uma força nas palavras de Hegel à que o Agora não pode resistir de modo que o pensamento é compreendido como essencialmente a negação de algo imediatamente presente in der Tat ist das Denken wesentlich die Negation eines unmittelbar Vorhandeneriw Ou nas palavras de Schelling Em últimae máxima instância não háoutro Ser senão a Vontade211uma atitude que encontrou o seu climático e malogrado final na Vontade de Potência de Nietzsche Iremos ao mesmo tempo acompanhar um desenvolvimento paralelo na história da Vontade segundo o qual a volição é a capacidade interna pela qual os homens decidem sempre quem eles vão ser sob que forma desejam se mostrar no mundo das aparências Em outras palavras é a vontade cujo tema é sempre um projeto e não um objeto que cm certo sentido cria a pessoa que pode ser reprovada ou elogiada ou de qualquer modo que pode ser responsabilizada não somente por suas ações mas por todo o seu Ser o seu caráter As noções marxistas e existencialistas que desempenham um papel tão destacado no pensamento do século XX e que fazem crer que o homem é o seu próprio produtor e criador baseiam se nessas experiências embora seja claro que ninguém jamais tenha criado a si mesmo ou produzido a sua existência esta penso eu é a última das falácias metafísicas que corresponde à ênfase que a Era Moderna faz recair sobre a vontade como substituta do pensamento Concluiremos o segundo volume com uma análise da faculdade do juízo Aqui a principal dificuldade será a curiosa escassez de fontes que possam fornecer um testemunho insuspeito Esta faculdade só se tornou um grande tópico de um grande pensador com o advento da Crítica do juízo de Kant Procurarei mostrar que minha hipótese principal ao isolar o juízo como uma capacidade distinta de nossos espíritos foi a de que os juízos não são alcançados por dedução ou por indução em suma eles não têm nada em comum com as operações lógicas como é o caso quando dizemos todos os homens são mortais Sócrates é um homem logo Sócrates é mortal Estaremos à procura do sentido silencioso que quando chegou a ser tratado foi sempre pensado mesmo em Kant como gosto c portanto como pertencente ao campo da estética Nas questões práticas e morais o juízo foi chamado de consciência e a consciência não julgava ela dizia como voz divina de Deus ou da Razão o que fazer o que não fazer e do que se arrepender O que quer que seja a voz da consciência não se pode dizer que ela seja silenciosa e sua validez depende totalmente de uma autoridade que está acima e além de todas as leis e regras meramente humanas Em Kant o juízo emerge como um talento peculiar que somente pode ser praticado e não ensinado O juízo lida com particulares e quando o ego pensante que se move entre generalidades emerge da sua retirada e volta ao mundo das aparências particulares o espírito necessita de um novo dom para lidar com elas Kant acreditava que uma pessoa tacanha ou obtusa pode de fato ser treinada pelo estudo até mesmo chegar ao ponto de se tornar erudita Mas como geralmente ainda falta o exercício do juízo a tais pessoas é comum encontrarse homens cultos que na aplicação do seu conhecimento científico traemse e revelam aquela falta original que jamai s pode ser compensada21 Em Kant é a razão com as suas idéias regulativas que vem em socorro do juízo Mas se a faculdade é uma faculdade do espírito separada das outras então teremos que lhe atribuir o seu próprio modus operandi a sua própria maneira de proceder Isso tem certa relevância para todo um conjunto de problemas que assombra o pensamento moderno e em especial para o problema da teoria e da prática bem como para qualquer tentativa de chegar a uma teoria razoavelmente plausível da ética Desde Hegel e Marx essas questões têm sido tratadas na perspectiva da história e sob a hipótese de que existe realmente isso a que se chama Progresso da raça humana Finalmente ficaremos com a única alternativa possível para essas questões ou bem dizemos com Hegel Die Weltgeschichte istdas Weltgericht deixando ao Sucesso o juízo final ou bem mantemos com Kant a autonomia dos espíritos humanos e sua possível independência das coisas tais como são ou como vieram a ser Aqui teremos de nos ocupar e não pela primeira vez do conceito de história Mas talvez possamos refletir sobre o significado mais arcaico dessa palavra que como tantos outros termos da nossa linguagem política e filosófica é de origem grega e derivada de historein inquirir para poder contar como foilegein ta eonta em Heródoto Mas a origem desse verbo é uma vez mais Homero Uliada XVIII onde aparece o substantivo histor historiador por assim dizer e o historiador homérico é o juiz Se o juízo é a nossa faculdade para lidar com o passado o historiador é o homem que indaga sobre esse passado e que ao relatálo preside ao seu julgamento Se assim for poderemos reclamar para nós nossa dignidade humana resgatá la por assim dizer da pseudodivindade chamada História na Era Moderna sem negar a importância da história mas negandolhe o direito de ser o último juiz O velho Catão com quem dei início a estas reflexões nunca estou menos só do que quando a sós comigo mesmo nunca estou mais ativo do que quando nada faço deixounos uma frase curiosa que resume adequadamente o princípio político implícito na empresa de recuperação Disse ele Victrix causa deis placuit sed victa Catoni A causa vitoriosa agradou aos deuses mas a derrotada agrada a Catão 1 De que estou com medo De mim mesmo Não há mais ninguém aqui Ricardo ama Ricardo isto é eu sou eu Há um assassino aqui Não Sim eu Então fujamos Como De mim mesmo Boa razão essa Por medo de que me vingue Como Eu de mim mesmo Ora Eu me amo Por que Por algum bem Que possa ter feito a mim mesmo Mas não ai de mim Eu deveria me odiar Pelos atos execráveis cometidos por mim Sou um canalha Não minto eu não sou Idiota falas bem de ti mesmo idiota não te adules tradução livre NT 2 Consciência é apenas uma palavra que os covardes usam Inventada antes de mais nada para infundir temor nos fortes tradução livre NT 3 A cinco braças jaz teu pai De seus ossos se fez coral Aquelas pérolas foram seus olhos Nada dele desaparece Mas sofre uma transformação marinha Em algo rico e estranho tradução livre NT 4 Mergulha tuas mãos na água Mergulhaas até os pulsos Olha olha bem na bacia E pensa no que perdeste A geleira bate no guardalouças O deserto suspira na cama E a rachadura na xícara de chá abre Uma trilha para a terra dos mortos tradução livre NT Notas Introdução 1 Critique of Pure Reason B871 Para esta citação e as seguintes veja a tradução de Norman Kemp Smith Immanuel Kants Critique of Pure Reason Nova Iorque 1963 da qual a autora freqüentemente se valeu 2 Eichmann in Jerusalem Nova Iorque 1963 3 Notas sobre metafísica Kants handschriftlicher Nachlass vol V in Kants gesammelte Schriften Akademie Ausgabe Berlim Leipzig 1928 vol XVIII 5636 4 Hugh de St Victor 5 André Bridoux Descartes Oeuvres etLettres Pléiade Paris 1937 Introduction p viii Cf Galileu les mathématiques sont la langue dans laquelle est écrit Iunivers p xiii 6 Nicholas Lobkowicz Theory and Practice History of a Concept from Aristotle to Marx Notre Dame 1967 p 419 7 De Republica I 17 8 The Phenomenology of Mind trad J B Baillie 1910 Nova Iorque 1964 SenseCertainty p 159 9 Veja anotaem Vom Wesen der Wahrheit uma conferência pronunciada em 1930 Agora em Wegmarken Frankfurt 1967 p 97 10 Veja Glauben und Wissen 1802 Werke Frankfurt 1970 vol 2 p 432 111 Ia edição 12 Werke Darmstadt 1963 vol I pp 982 621 630 968 952 959 974 13 Introdução a The Basic Works of Aristotle Nova Iorque 1941 p xviii Nas citações de Aristóteles foi ocasionalmente utilizada a tradução de McKeon 14 Critique of Pure Reason B878 A frase surpreendente ocorre na última seção da Crítica da razão pura em que Kant pretende haver estabelecido a metafísica como ciência cuja idéia é tão antiga quanto a razão especulativa humana e sobre o que não especula o ser humano racional seja em forma escolástica ou popular B871 Esta ciência caiu agora em descrédito geral porque mais se esperou da metafísica do que aquilo que razoavelmente dela se poderia exigir B877 Cf também as seções 59 e 60 dos Prolegomena to Any Future Metaphysics 15 The Gay Science livro III n 125 The madman 16 How the True World finally became a fable 6 17 Nietzsches Wort Gott ist tot in Holzwege Frankfurt 1962 p 193 18 B125eB9 19 René Char Feuillets dHypnos Paris 1946 n 62 20 Symposium 212a 21 Kants handschriftlicher Nachlass vol VI Akademie Ausgabe vol XVIII 6900 22 Werke vol I p 989 23 Prolegomena Werke vol Ill p 245 24 Critique of Pure Reason Bxxx 25 Kants handschriftlicher Nachlass vol V Akademie Ausgabe vol XVIII 4849 26 Tradução de John Macquarrie e Edward Robison Londres 1962 p 1 Cf pp 151e324 27 Einleitung zu Was ist MetaphysikT in Wegmarken p 206 28 Hegel The Phenomenology of Mind tradução de Baillie Introdução p 131 29 Ibid p 144 Capítulo 1 1 Os três modos de vida são enumerados na Nicomachean Ethics I 5 e na Eudemian Ethics 1215a35 ss Para a oposição entre o belo o necessário e o útil veja Politics 1333a30 ss É interessante comparar os três modos aristotélicos de vida com a enumeração de Platão no Philebus o modo do prazer o modo do pensamento phronesis e um modo misto 22 contra o modo do prazer Platão defende que o prazer é em si mesmo ilimitado no tempo e na intensidade ele não se contém em si e dele não deriva começo meio ou fim 31a E embora concorde com todos os sábios sophoif em que o nous faculdade do pensamento e da verdade é para nós o rei do céu e da terra 28c ele também pensa que para meros mortais uma vida que não conhece nem alegrias nem sofrimentos embora a mais divina das vidas 33a b seria insuportável e portanto a fonte de toda beleza é uma mistura do ilimitado com o que estabelece limites 26b 2 Thomas Langan MerleauPontys Critique of Reason New Haven Londres 1966 p 93 3 Frag 1 4 Republic VII 514a521b The Collected Dialogues of Plato Edith Hamilton e Huntington Cairns ed Republic tradução de Paul Shorey Nova Iorque 1961 algumas vezes próxima à de Francis MacDonald Comford The Republic of Plato Nova Iorque Londres 1941 5 Kant Opus Postumum ed Erich Adickes Berlim 1920 p 44 A data provável desta observação é 1788 6 Critique of Pure Reason B565 7 Maurice MerleauPonty The Visible and the Invisible Evanston 1968 p 17 8 Maurice MerleauPonty Signs Evanston 1964 Introdução p 20 9 Hermann Diels e Walther Kranz Die Fragmente der Vorsokratiker Berlim 1959 vol II B26 10 The Visible and the Invisible pp 4041 11 Das Tier als soziales Wesen Zurique 1953 p 252 12 Animal Forms and Patterns tradução de Hella Czech Nova Iorque 1967 p 19 13 Ibid p 34 14 Das Tier als soziales Wesen p 232 15 Ibid 16 Ibidp 127 17 Animal Forms and Patterns pp 112 113 18 Das tier als soziales Wesen p 64 19 Biologie und Geist Zurique 1956 p 24 20 Of Human Understanding livro III cap 1 n 5 21 MerleauPonty Signs Introdução p 17 22 The Visible and the Invisible p 259 23 Signs p 21 24 The Visible and the Invisible p 259 25 De Anima 403a510 26 Ibid 413b24 e ss 27 De generatione animalium II 3736b529 citado em Lobkowicz op cit p 24 28 De Interpretatione 16a313 29 Mary McCarthy Hanging by a Thread The Writing on the Wall Nova lorque 1970 30 Enarrationes in Psalmos Patrologiae Latina J P Migne Paris 185466 vol 37 CXXXIV 16 31 Frag 149 32 Schelling Of Human Freedom 1809 414 tradução de James Gutmann Chicago 1936 p 96 33 Frag 34 34 Critique of Pure Reason B354B355 35 Ibid A107 Cf também B413 Na intuição interna não há nada permanente e B420 Nada de permanente é dado na intuição enquanto penso a mim mesmo 36 The Visible and the Invisible pp 1819 37 Critique of Pure Reason A381 38 Critique of Pure Reason B565B566 Kant escreve aqui transcendental mas quer dizer transcendente Esta não é a única passagem em que ele se confunde com aquilo que é uma das armadilhas montadas pela sua obra para o leitor A mais clara e mais simples explicação sobre o uso das duas palavras pode ser encontrada nos Prolegomena em que ele responde a um crítico na nota da página 252 Werke vol Ill onde está escrito o seguinte Meu lugar é o fértil bathos da experiência e a palavra transcendental não significa algo que transcenda a experiência mas o que a priori a precede de forma a tomála possível Se esses conceitos transcendessem a experiência eu denominaria seu uso transcendente O objeto que determina as aparências distinto da experiência claramente transcendeas como experiências 39 Critique of Pure Reason B566 40 tóB197 41 ftídB724 42 Ibid B429 43 The Philosopher and Theology Nova Iorque 1962 p 7 No mesmo espírito Heidegger costumava contar na sala de aula a biografia de Aristóteles Aristóteles ele dizia nasceu trabalhou passou a vida pensando e morreu 44 Em seu Commentary ao I Corinthians 15 45 Critique of Pure Reason A381 46 ZZrâf B157B158 47 Ibid B420 48 A última e supostamente a melhor tradução para o inglês feita por John Manolesco apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer and Other Writings Nova Iorque 1969 Eu mesma traduzi a passagem do alemão in Werke volI pp 946951 49 Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels Werke vol I p 384 Tradução para o inglês Universal Natural History and Theory of the Heavens por W Hastie Ann Arbor 1969 50 The Bounds of Sense An Essay on Kants Critique of Pure Reason Londres 1966 p 249 51 The Visible and the Invisible pp 28 e ss 52 The Human Condition pp 252 e ss 53 Le Discours de la Méthode 3a parte in Descartes Oeuvres et Lettres pp Ill 112 veja para a primeira citação The Philosophical Works of Descartes traduzido por Elizabeth S Haldane e G R T Ross Cambridge 1972 vol I p 99 54 Platão Philebus 67b 52b 55 Ibid 33b 28c 56 Le Discours de la Methode 4a parte in Descartes Oeuvres et Lettres p 114 The Philosophical Works vol I p 101 57 The Visible and the Invisible pp 3637 58 Antropologie n 24 Werke vol VI p 465 59 Heidegger assinala com razão O próprio Descartes enfatiza que a sentença cogito ergo sum não é um silogismo O eusou não é conseqüência do eupenso mas ao contrário o fundamentum a sua base Heidegger menciona a forma que o silogismo deveria ter Id quod cogitat est cogito ergo sum Die Frage nach dem Ding Tübingen 1962 p 81 60 Tractatus 562 6431 64311 Cf Notebooks 19141916 Novalorque 1969 p 75e 61 Tomás de Aquino Summa Theologica parte I questões 1 3 an 2 62 Parece que foi Gottsched o primeiro a falar em senso comum sensus communis como um sexto sentido In Versuch einer Kritischen Dichtkunst für die Deutschen 1730 Cf Cícero De Oratore III 50 63 Citado de Thomas Landon Thorson Biopolitics Nova Iorque 1970 p 91 64 Summa Theologica parte I questão 78 4 an 1 65 Op cit loc cit 66 Ibid 67 Notebooks 19141916 pp 48 48e 68 Politics 1324al6 69 The Visible and the Invisible p 40 70 Philebus 2526 71 Ibid 31a 72 Thomas S Kuhn The Structure of Scientific Revolutions Chicago 1962 p 163 73 Critique of Pure Reason B367 74 De Interpretatione 17al4 75 980a22 e ss 76 Monadology n 33 77 Phisics 188b30 Tomás de Aquino faz eco à sentença de Aristóteles quasi ab ipsa veritate coacti como se fora forçado pelo própria verdade em seu comentário ao De Anima I 2 43 780 Dictionnaire de I Academic disse no mesmo espírito La force de la vérité pour dire le pouvoir que la vérité a sur Iesprit des homines 79 Décadas atrás subitamente você chegou em meio à infinita cascata de criaturas vomitadas das entranhas da Natureza Um evento aleatório diz a Ciência O que não nos impede de responder com o poeta Aleatório uma ova Um verdadeiro milagre digo eu pois quem duvida de que ele estava destinado a ser W H Auden Talking to Myself Collected Poems Nova Iorque 1976 p 653 tradução livre 80 Philosophic der Weltgeschichte Lasson Leipzig 1920 parte I pp 6162 81 Notes on Metaphisics Akademie Ausgabe vol XVIII 4849 82 Critique of Pure Reason A19 B33 83 Que eu conheça a única interpretação de Kant que poderia ser citada em apoio à minha própria compreensão da distinção kantiana entre razão e intelecto é a excelente análise de Crítica da razão pura feita por Eric Weil Penser et Connàitre la Foi et la Choseensoi in Problèmes Kantiens T ed Paris 1970 Segundo Weil é inevitável daffirmer que Kant qui dénie à la raison pure la possibilité de connàitre et de développer une science lui reconnait en revanche celle dacquerir un savoir qui au lieu de connàitre pense p 23 Devese admitir entretanto que as conclusões de Weil permanecem próximas da compreensão que Kant tinha de si mesmo Weil está interessado principalmente na interconexão entre as razões Pura e Prática desse modo afirma que le fondement de la philosophic kantienne doit être cherché dans sa theórie de Ihomme dans Ianthropologicphilosophique non dans une théorie de la connaissance p33 Por outro lado minhas principais reservas em relação à filosofia de Kant dizem respeito precisamente à sua filosofia moral ou seja à Crítica da razão prática embora eu concorde naturalmente que aqueles que leram a Crítica da razão pura como uma espécie de epistemologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do livro p 34 Os quatro ensaios do livro de Weil de longe os mais importantes artigos da literatura sobre Kant nos últimos anos estão baseados na descoberta simples mas crucial de que Lopposition connàitre et penser est fondamentale pour la compréhension de la pensée kantienne p 112 n 2 84 Critique of Pure Reason A314 85 Ibid B868 86 Ibid Bxxx 87 Ibid 88 Ibid B697 89 Ibid B699 90 Ibid B702 91 WB698 92 WdB714 93 Ibid B826 94 Ibid B708 Capítulo 2 1 De Veritate questão XXII art 12 2 Critique of Pure Reason B171 B174 3 Critique of Judgement trad J H Bernard Nova Iorque 1951 Introdução IV 4 Science of Logic Prefácio à 2a edição 5 Philosophy of Right Prefácio 6 Frag 108 7 Tucídides II 43 8 Critique of Pure Reason B400 9 Ibid B275 10 Ver Ernest Stadter Psychologic und Metaphysik der menschlichen Freiheit Munique Paderborn Viena 1971 p 195 11 Ver a magnífica descrição como a de um sonho da completa solidão em Observations on the Feeling of the Beautful and Sublime trad John T Goldthwait Berkley Los Angeles 1960 pp 4849 12 Critique of Pure Reason Bl 57 Cf cap I do presente volume 13 WJB158n 14 Anthropologie n 28 Werke vol VI p 466 15 The Trinity livro XI cap 3 Trad ingl séries Fathers of the Church Washington D C 1963 vol 45 16 Ibid 17 Ibid cap 8 18 Ibid cap 10 19 An Introduction to Methaphysics trad Ralph Manhein New Haven 1959 p 12 20 Discours aux chirurgiens in Variété Paris 1957 vol I p 916 21 Phaedo 64 22 Diogenes Laércio VII 2 23 Sammtliche Werke Leipzig sd Über den Tod vol II p 1240 24 Phaedo 6467 25 Cf Valéry op cit loc cit 26 Ver a análise de NA Greenberg Socrates choise in the Crito in Howard Studies in Classical Philology vol 70 n 1 1965 27 Heráclito frag 104 29 28 Republic 494a e 496d 29 Ibid 496a e ss Comford The Republic of Plato pp 203204 30 Philebus 62b 31 Laws 935 Nas disputas todos estão habituados a fazer os oponentes caírem no ridículo É impossível ofender sem cair no ridículo Daí todo escritor de comédia ou de poemas iâmbicos ou líricos deve ser rigorosamente proibido de ridicularizar qualquer cidadão e se ele desobedecer deve ser banido do país Para as passagens da República contudo em que o medo do ridículo dificilmente desempenha qualquer papel ver 394 ss e 606 ss 32 Theaetetus 174ad 33 Trãurne eines Geistersehers Werke vol I p 951 34 Phaedo 64 35 Ibid 66 36 Ibid 65 37 Protreptikos B43 Ingemar Diking Ed Frankfurt 1969 38 Ibid Bl 10 39 Republic 500c 40 Cartas de março de 1638 Descartes Oeuvres etLettres p 780 41 Nota da editora não fomos capazes de encontrar esta referência 42 Akademie Ausgabe vol XVIII 5019 e 5036 43 Platão em Phaedo 84a menciona a teia de Penélope mas no sentido oposto A alma do filósofo liberada do cativeiro do prazer e da dor não deve agir como Penélope desmanchando sua própria teia Uma vez desembaraçada por meio de logismos do prazer e da dor que cravam a alma no corpo a alma o ego pensante de Platão muda sua natureza e até mesmo suas razões logizesthai mas estima theasthai a verdade e o divino e aí permanece para sempre 44 Über das Wesen der Philosophischen Kritik Hegel Studienausgabe Frankfurt 1968 vol Ip 103 45 Philosophic der Weltgeschichte ed Lasson Leipzig 1917 parte II pp 45 46 Reason in History trad Robert S Hartman Indianápolis Nova Iorque 1953 p 89 47 Reason in History Tradução do autor 48 Prefácio à Phenomenology of Mind 49 Politics 1269a35 1334al5 ver livro VII cap 15 50 Paul Weiss A Philosophical Definition of Leisure in Leisure in America Blessing or Curse J C Charlesworth ed Filadélfia 1964 p 21 51 VIII 8 Sigo a tradução de Kirk e Raven frag 278 52 Timaeus 34b 53 Der Streit der Fakultaten parte II 6 e 7 Werke vol VI pp 357 362 54 Uber den Gemeinspruch Werke vol VI pp 166167 55 Hegel Philosophic der Weltgeschichte Introdução 56 Sophist 254 57 Republic 517b e Phaedrus 247c 58 Sophist 254ab 59 Ver cap I do presente volume No início de De Interpretatione Aristóteles referese ao seu De Anima como tratando de alguns dos mesmos pontos mas nada no De Anima parece corresponder aos pontos levantados no De Interpretatione Se minha leitura do texto é correta Aristóteles deve ter pensado na passagem por mim usada no cap I e que é De Anima 403a510 60 De Interpretatione 16a417a9 61 Reflexionen zur Anthropologie n 897 Akademie Ausgabe vol XV p 392 62 Monologion 63 Para o que aqui segue baseeime rigorosamente no primeiro capítulo sobre Language and Script o grande livro de Marcei Granet La Pensée Chinoise Paris 1934 Usei a nova edição alemã que foi recémpublicada por Manfred Porkert Das chinesische Denkenlnhalt Form Charakter Munique 1971 64 Kant Critique of Pure Reason Bl 80 65 B180181 66 Tractatus 4016 tw das Wesen des Satzes zu verstehen denken wiran die Hieroglyphenschrift welche die Tatsachen die sie beschreibt abbildet Und aus ihr wurde die Buchstabenschrift ohne das Wesentliche der Abbildung zu verlieren 67 A Defense of Poetry 68 Poetics 1459 69 Ibid 1457b 17 e ss 70 Critique of Judgment n 59 71 Ibid ll Ibid 73 Prolegomena to Every Future Metaphysics n 58 trad Carl J Friedrich Modem Library Nova Iorque sd O próprio Kant estava ciente dessa peculiaridade da linguagem filosófica na época pré crítica Nossos mais altos conceitos racionais amiúde usam uma roupagem física de modo a obter clareza Trãume eines Geistersehers p 948 74 N 59 Seria interessante examinar a noção kantiana de analogia nos antigos escritos de Opus Postumurm é notável como cedo ocorreu a Kant que o pensamento metafórico isto é o pensamento por analogias poderia livrar o pensamento especulativo de sua peculiar irrealidade Já em Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels publicado em 1755 escreve ele a respeito da probabilidade da existência de Deus Não estou assim tão devotado às conseqüências de minhas teorias que não possa reconhecer que elas são indemonstráveis Espero contudo que como um mapa do infinito compreendendo como compreende um tema que parecia estar para sempre oculto ao entendimento humano isso não signifique que essas considerações sejam a um só tempo vistas como uma quimera quando o recurso empregado foi o da analogia grifos meus Trad inglesa por W Hastie citada do Kant s Cosmogony Glasgow 1900 pp 146147 75 Ver Francis MacDonald Cornford Platos Theory of Knowledge Nova Iorque 1957 p 275 76 O ensaio The Chinese Written Character as a Medium for Poetry editado por Ezra Pound em Instigations Freeport Nova Iorque 1967 contém um curioso pedido em favor dos documentos chineses Sua etimologia é constantemente visível Uma palavra fonética não carrega sua metáfora na face Esquecemos que personalidade já significou não a alma mas a máscara da alma por meio da qual a alma soava como era personare Esse é o tipo de coisa de que não podemos esquecer quando usamos o símbolo chinês Para nós o poeta é aquele para quem os tesouros acumulados da raçapalavras são reais e ativos p 25 77 IX 18 78 O infelizmente inédito manuscrito de Marshall Cohen The Concept of Metaphor que pude consultar por permissão régia tem muitos exemplos acompanhados por uma excelente revisão da literatura sobre o tema 79 The Odyssey of Homer livro XIX 11 203209 trad Richamond Lattimore Nova Iorque 1967 p 287 80 Das Homerische Gleichnis und der Anfang der Philosophic in Die Antike vol XII 1936 81 Diels e Kranz frag B67 82 Aus der Erfahrung des Denkens Bema 1947 83 Bruno Snell From Myth to Logic The Role of The Comparison in The Discovery of the Mind Harper Torchbooks Novalorque Evanston 1960 p 201 84 Hans Jonas The Phenomenon of Life Nova Iorque 1966 p135 Seu estudo The Nobility of Sight é a única ajuda no esclarecimento da história do pensamento Ocidental 85 Diels e Kranz frag 101a 86 Aristóteles parece ter pensado nessas linhas em um de seus tratados científicos Dessas faculdades o olhar é a mais importante simplesmente pelas necessidades da vida mas para o espírito nous e indiretamente kata symbebekos a mais importante é o ouvido É ele que mais contribui para a sabedoria O discurso que é a causa do aprendizado só o é porque é audível mas não é audível em si mas indiretamente porque a fala é composta por palavras e cada palavra é um símbolo racional Por conseguinte para aqueles que estão privados de um sentido ou outro desde o nascimento a cegueira é mais inteligente do que a surdez ou o mutismo O caso é que ele parece nunca ter lembrado dessa observação quando escreveu filosofia Aristóteles On Sense and Sensible Objects 437a417 87 Op cit p 152 88 Ver Hans Jonas cap 3 sobre Filo da Alexandria especialmente pp 9497 do Vos der Mythologie zur mystischen Philosophic Gottingen 1954 que é a segunda parte de Gnosis undspatantiker Geist Gottingen 1934 89 The Phenomenon of Life pp 136147 Cf Von der Mythologie pp 138152 90 Bonn 1960 p 200 s 91 Theaetetus 155d 92 982bll22 93 983a 1420 94 Ver por exemplo Nicomachean Ethics VI 8 em que o nous é a percepção mental aisthesis do primário imutável ou termoslimites para o qual não existe logos 1142a2527 Cf 1143b5 95 Seventh Letter 341b343a paráfrase 96 2 de julho de 1885 97 N 160 98 Nietzsche Pfullingen 1961 vol II p 484 99 Philosophical Investigations trad G E Anscombe Nova Iorque 1953 n 119 19 109 100 Phaedrus 274e277c 101 Phisics 209b 15 102 286a b 103 275d277a 104 Philebus 38e39b 105 Ibid 39bc 106 342 107 Ibid 344b 108 Ibid 343b 109 Ibid 34le 110 Critique of Pure Reason B33 Para Nicht dadurch dass ich bloss denke erkenne ich irgend ein Objekt sondern nur dadurch dass ich eine gegebene Anschauung hestimme kann ich irgendeinen Gegenstanderkennen Não conheço um objeto apenas pelo que penso mas apenas à medida que determino uma dada intuição posso conhecer um objeto B406 111 Faço uma citação do antigo curso de Heidegger sobre o Sofista de Platão 19241925 de acordo com uma transcrição literal pp 8 e 155 160 Ver também o comentário de Comford sobre o Sofista em Platos Theory of Knowledge p 189 e n 1 onde noein significa o ato de intuição noesis que vê diretamente sem razão discursiva 112 38ce 113 Cap I do presente volume 114 Aristóteles Metaphisics 1003a21 115 Ibid 984b 10 116 São Tomás de Aquino De Veritate questão I art 1 117 Critique of Pure Reason B82 B83 118 Sein und Zeit Tubingen 1949 n 44a p 217 119 Ver Aristóteles Posterior Analytics 100b517 120 An Introduction to Metaphisics 1903 trad T E Hulme Indianápolis Nova Iorque 1955 p 45 121 Ibid 122 Critique of Pure Reason B84 e B189B191 123 An Introduction to Metaphisics p 45 124 Protreptikos During ed B87 1251072b27 126 1072a21 127 Essa má tradução estraga o Aristotle de W D Ross Meridian Books Nova Iorque 1959 mas está misericordiosamente ausente de sua tradução de Metaphisics em The Basic Works ofAristolle de Richard McKeon 128 Philosophy of History Introdução p 9 129 Hegels Philosophy of Right trad T M Knox Londres Oxford Nova Iorque 1967 acréscimo ao parágrafo 2 p 225 130 Wegmarken p 19 131 Nicomachean Ethics 1175a 12 132 Tractatus 401 Pareceme óbvio que a primeira teoria da linguagem de Wittgenstein está solidamente enraizada no velho axioma metafísico da verdade como adequatio rei et intellectus a dificuldade sempre apresentada por tal definição é que essa equação só é possível como intuição isto é como uma imagem interna que copia os objetos visíveis sensorialmente dados A figura lógica de um fato que de acordo com Wittgenstein é um pensamento sigo a Introdução ao Tractatus de Bertrand Russell na edição bilíngüe Londres p xii é uma contradição em termos a não ser que se tome a figura como expressão metafórica Certamente existe uma relação que une linguagem e mundo mas embora tal relação seja possível ela certamente não é uma figura Se houvesse uma relação figurativa toda proposição seria verdadeira a não ser que capitulasse e repetisse um erro acidental na percepção sensorial algo parece uma árvore mas para um exame rigoroso acaba sendo um homem posso fazer contudo uma enormidade de proposições sobre um fato elas serão inteiramente significativas sem que sejam necessariamente verdadeiras o sol gira em torno da Terra ou em setembro de 1939 a Polônia invadiu a Alemanha uma está errada e a outra é mentira Mas há por outro lado proposições que são inerentemente inaceitáveis como por exemplo o triângulo ri citado no texto que nem c uma verdade nem uma falsa afirmação mas uma coisa sem sentido O único critério lingüístico interno às proposições é ter ou não sentido Em vista dessas dificuldades bastante óbvias e do fato de que o próprio Wittgenstein tenha posteriormente rejeitado sua teoria figurativa das proposições é mais interessante descobrir como isso chegou a acontecer Creio que há duas versões da coisa Ele estivera lendo uma revista na qual havia uma figura esquemática que representava a seqüência possível de acontecimentos em um acidente automobilístico A figura então serviu como uma proposição ela era como uma descrição de um estado de coisas possível Tinha essa função de realizar uma correspondência entre as partes da figura e as coisas da realidade Ocorreu então a Wittgenstein que se podia inverter a analogia e dizer que uma proposição funciona como uma figura em razão de uma correspondência similar entre suas partes O modo pelo qual as partes da proposição estão combinadas a estrutura da proposição representa uma possível combinação de elementos na realidade Ver Biographical Sketch de G H von Wright in Norman Malcolm Ludwig Wittgenstein A Memoir Londres 1958 pp 78 O que parece decisivo aqui é que ele não partiu da realidade mas de uma reconstrução esquemática de um evento que ele mesmo foi submetido a um processo de pensamento ou seja ele partiu da ilustração de um pensamento Em Philosophical Investigations 663 há uma observação que parece ser a refutação dessa teoria Se digo Eu represento ele algo muito próximo de uma figura vem à minha mente mas é uma figura apenas como uma ilustração para uma história Seria impossível concluir qualquer coisa somente partindo dela apenas quando se conhece a história podese saber o significado da figura A segunda versão da origem da teoria figurativa das proposições pode ser encontrada no próprio Tractatus 40311 e parece mais razoável Wittgenstein que substituiu sua antiga teoria da linguagemjogo parece ter sido influenciado por outro jogo que muitas vezes animava a seriedade de seu tempo o jogo dos tableaux vivants as regras determinam que alguém deve adivinhar qual a proposição expressa pelo quadrovivo encenado por certo número de pessoas Uma palavra é representada por uma coisa outra palavra por outra coisa e elas são combinadas com uma outra coisa Nesse caso o grupo todo como um quadro vivo apresenta um estado de coisas supõese que isso realmente explique uma proposição Menciono isso tudo para indicar o estilo de pensamento de Wittgenstein Ajuda a explicar o caráter enigmático de sua filosofia posterior que é tão fragmentada e não tem plano diretor Ver a excelente apresentação de David Pears Ludwig Wittgenstein Nova lorque 1970 pp 4 e ss O Tractatus dá início a uma observação casual a partir da qual contudo seu autor estaria apto a desenvolver uma teoria consistente que o teria livrado de futuras observações episódicas e o teria capacitado para escrever um trabalho contínuo A despeito de sua freqüente brusquidão o Tractatus é totalmente consistente Philosophical Investigations mostra como esse espírito incessantemente ativo funcionava de fato se não de todo pelo menos quase acidentalmente guiado por uma única pressuposição como por exemplo a tese de que deve haver algo em comum entre a estrutura da sentença e a estrutura do fato Russell op cit por exemplo chama corretamente essa de a tese mais fundamental da teoria de Wittgenstein A propriedade mais destacada de Philosophical Investigations é seu ritmo é como pensar que alguém realizou a parada inerente ao pensamento no ponto em que todo processo de pensamento se deteve e todó o encadeamento interrompeuse recolhendose nele mesmo A tradução inglesa mitiga isso um pouco ao fazer o sempre repetido Denk dir corresponder a uma variedade de palavras tais como suponha imagine 133 Philosophical Investigations nos 466471 Capítulo 3 1 Timaeus 90c ver nota 35 abaixo 2 Ver o muito instrutivo Theory and Practice de Nicholas Lobkowicz 3 Symposium 204a 4 Píndaro Nemea 6 The Odes of Pindar trad Richmond Lattmore Chicago 1947 p 111 51 131 6 Sophist 219b 7 Republic 518c 8 The Discourses livro II Introdução Esta expressão não se encontra no lugar aqui assinalado pela autora N T 9 Bruno Snell Pindars Hymn to Zeus op cit pp 7779 10 Nemea 4 Isthmia 4 ambos na tradução de Lattimore 11 Isthmia 4 trad de Lattimore 12 Tucídides II 41 13 Protreptikos ed Diking B19 e Bl 10 Cf Eudemian Ethics 1216al 1 14 Protreptikos ed Diiring B109 15 De Finibus Bonorum et Malorum II 13 16 Heráclito B29 17 Symposium 208c 18 Ibid 208á 19 Anaximandro parece ter sido o primeiro a equacionar o divino como o apeiron o nãolimitado cuja natureza deveria ser eterna atemporal imortal e imperecível 20 Frag 8 21 Charles H Kahn em seu fascinante estudo The Greek Verb to be and the Concept of Being examina o uso préfilosófico do verbo que serve para expressar o conceito de Ser em grego p 245 In Foundations of Language vol 2 1966 p 255 22 B30 23 Snell op cit p 40 24 Kalhm op cit p 260 25 Frag 3 26 Protreptikos ed Diiring Bl 10 27 Philebus 28c 28 Symposium 212a 29 Nicomachean Ethics 1178b3 1178b22 1177b33 o último trecho segue a trad de Martim Ostwald Indianápolis Nova Iorque 1962 30 Timaeus 90d a 31 Citado de The Secrets of the Old OneII de Jeremy Bernstein The New Yorker 17março 1973 32 Francis MacDonald Comford Plato and Parmenides Nova Iorque 1957 Introdução p 27 33 Protreptikos ed Diiring B65 34 Cornford Platos Theory of Knowledge p 189 35 Timaeus 90c 36 Philebus 59b c 37 Philosophic der Weltgeschichte Hegel Studienausgabe vol I p 291 38 De Rerum Natura livro II primeiras linhas On the Nature of the Universe trad Ronald Latham Penguin Harmondsworth 1951 p 60 39 Devo as citações de Herder e Goethe ao interessante estudo de Hans Blumenberg sobre a navegação o naufrágio e o espectador como metáforas existenciais intitulado Beobachtungen an Metaphem in Archiv für Begriffsgeschichte vol XV Heft 2 1971 pp 171 e ss Sobre Voltaire ver o artigo Curiosité in Dictionnaire Philosophique Sobre Herder ver também Briefe zur Befórderung der Humanitat 1972 17a carta sobre Goethe Goethes Gesprdche Artemis Zurique 1949 vol22 n 725 p 454 40 1177b2733 41 Theaetetus 155d 42 Cratylus 408b 43 B21a 50 The Friend III 192 citado por Herbert Read in Coleridge as Critic Londres 1949 p 30 51 Agora com duas explicações posteriores uma Introdução e um Epílogo in Wegmarken pp 19 e 210 52 1714 n 7 53 Critique of Pure Reason B641 54 Werke 6 Ergãnzungsband ed M Schrõter Munique 1954 p 242 55 Ibid p 7 56 Ver o System der gesammten Philosophic 1804 publicado postumamente in Samtliche Werke I Stuttgart e Augsburg 1860 vol VI p 155 57 Samtliche Werke I vol VII p 174 58 Ibid II vol Ill p 163 Cf também Karl Jaspers Schelling Munique 1955 pp 124130 59 Paris 1958 pp 161171 60 Ver Preisschrift Über die Deutlichkeit der Grundsãtze dernatiirlichen Theologie und der Moral 1964 4a Consideração n 1 Werke vol I pp 768769 61 Über die Optimismus Werke vol I p 594 62 Ecce Homo Thus Spoke Zarathustra 1 63 The Gay Science livro IV n 341 64 130d e 65 Tusculanae Dispntationes III iii 6 66 Ibid Ill xiv 30 Cf Horácio Epistolae I vi 1 Plutarco em seu De recta Ratione 13 menciona a máxima estóica e a atribui na tradução grega me thaumazein a Pitágoras Dizse de Demócrito que ele louvou a athaumastia e a athambia como sabedoria estóica mas ele parece ter tido em mente apenas a imperturbabilidade e o destemor do homem sábio 67 Hegel Philosophy of Right p 13 68 LOeuvre de Pascal ed Pléiade Bruxelas 1950 294 p 901 69 Dijferenz des Fichte schen und Schelling schen Systems der Philosophic 1801 ed Meiner 1962 p 12 ss 70 Trad de J Sibree Nova Iorque 1956 p 318 71 Ibid 26 72 Essa transformação é mais impressionante sempre onde o empréstimo tomado à filosofia grega c mais óbvio como quando Cícero diz que o homem é destinado ad mundum contemplandum e acrescenta imediatamente et imitandum De Natura Deorum II xiv 37 Ele compreende o homem estritamente no sentido moralpolitico e não científico como séculos mais tarde compreendia Bacon Para comandar a natureza é preciso conhecêla e o que na contemplação é como se fosse a causa na operação é como se fosse a regra Novum Organon ed Oxford 1889 p 192 73 De Rerum Natura livro II 1174 On the Nature of the Universe trad Latham p 95 74 Discourses 11 cap 17 75 Ibid livro I cap 15 76 The Manual 49 The Stoic and Epicurean Philosophers ed Whitney Oates Nova Iorque 1940 p 482 77 Discourses I cap 1 78 The Manual 8 ed Oates p 470 Fragments 8 ed Oates p 460 79 Op cit V 7 ss Tradução da autora 80 De Republica I 7 81 Ibid Ill 23 82 Ibid V 1 83 Baseado evidentemente no mito do Er que conclui a República de Platão Para as diferenças importantes ver a análise de Richard Harder o eminente filólogo alemão Über Ciceros Somnium Scipionis in Kleine Schriften Munique 1960 pp 354395 84 Discourses on Davila The Works of John Adams ed Charles Francis Adams Boston 18501856 vol VI p 242 85 Oedipus at Colunnus 86 Politics 1267a 12 87 Nicomachean Ethics 1178a2930 88 Frag 146 89 The Decline and Fall of the Roman Empire Modem Library Nova Iorque sd vol II p 471 90 130 Tradução da autora para hos philosopheon gen pollen theories heineken epelelythas 91 I 32 92 O conteúdo de pensamento desse dito foi totalmente explicado apenas nas análises heideggerianas da morte em Ser e tempo que se orientam metodologicamente pelo fato de que a vida humana distinta das coisas que só começam sua existência quando estão completas e terminadas só se completa quando não é mais Portanto é apenas na antecipação da própria morte que ela aparece completa e pode ser submetida à análise 93 Anthologia Lyrica Graeca ed E Diehl Leipzig 1936 frag 16 94 Ibid frag 13 linhas 6370 95 Ibid frag 14 96 Charmides 175b 97 Hegel Encyclopadie der philosophischen Wissenschaften ed Lasson Leipzig 1923 23 Das Denken sich als abstraktes Ich als von aller Partikularitãt sonstiger Eigenschaften Zustande usf befreites verhalt und nur das Allgemeine tut in welchem es mit alien Individuen identisch ist 98 Examinando a literatura muitas vezes bastante erudita supreendemonos ao ver o pouco que essa erudição contribuiu para a compreensão do homem A única exceção que consegui desenterrar é uma espécie de perfil inspirado de autoria do classicista e filósofo Gregory Vlastos The Paradox of Socrates Ver a Introduction ao The Philosophy of Socrates a Collection of Critical Essays por ele cuidadosamente selecionado Nova Iorque Anchor Books 1977 99 173d 100 Sobre o problema socrático ver o curto e sensato relato de Laszlo Varsényi em apêndice ao seu Socratic Humanism Londres New Haven 1963 101 Dante and Philosophy trad David Moore Harper Torchbooks Nova Iorque Evanston Londres 1963 p 267 102 Ibid p 273 103 Como no Teeteto e no Charmides 104 Meno 80e 105 A idéia muito frequente segundo a qual Sócrates conduz seu interlocutor com suas perguntas para certos resultados dos quais o próprio Sócrates está de antemão convencido como um professor esperto faz com seus alunos pareceme totalmente enganosa mesmo quando é engenhosamente qualificada como no ensaio de Lazlo acima mencionado no qual ele sugere p 13 que Sócrates precisa do outro para descobrir por si mesmo como no Meno que não é todavia aporético O melhor que se pode dizer é que Sócrates queria que seus parceiros ficassem tão perplexos como ele estava E era sincero quando dizia que não ensinava nada Assim diz ele a Crítias no Cármides Crítias tua atitude comigo parece atribuirme a pretensão de conhecer as respostas para as perguntas que te faço e de poder dá las se quisesse Não é nada disso Examino com você porque eu mesmo não tenho esse conhecimento 165b cf 166cd 106 Diehl frag 16 107 Meno 80c cf passagem anteriormente mencionada na nota 105 108 Memorabilia IV vi 15 e IV iv 9 109 Sophist 226231 110 Apology 23b 111 Ibid 30a 112 Xenofonte Memorabilia IV iii 14 113 Antigone 353 1140 texto alemão de Was Heisst Denkeríl Tübingen 1954 p 52 diz o seguinte Sokrates hat zeit seines Lebens bis in seinen Tod hinein nichts anderes getan ais sich in den Zugwinddieses Zuges zu stellen und darin sich zu halten Darum ist er der reinste Denker des Abendlandes Deshalb hat er nichts geschrieben Denn wer aus dem Denken zu schreiben beginnt muss unweigerlich den Menschen gleichen die vor allzu starkem Zugwind in den Windschatten flüchten Es hleibt das Geheimnis einer noch verborgenen Geschichte dass alle Denker des Abendlandes nach Sokrates unbeschadet ihrer Grosse solche Fliichtlinge sein mussten Das Denken ging in die Literatur ein 115 G Humphrey Thinking An Introduction to its Experimental Psychology Londres e Nova Iorque 1951 p 312 116 Tucídedes II 40 117 Lysis 204bc 118 Frags 145 190 119 Gorgias 474b 483a b 120 Ibid 482c 121 Ibid 482c 484c d 122 Aristóteles muitas vezes insistia que pensar produz felicidade mas se produz não é como a medicina produz saúde mas como a saúde toma um homem saudável Nicomachean Ethics 1144a 123 Diels e Kranz B45 124 254d 125 Identity and Difference trad Joan Stambaugh Nova Iorque Evanston Londres 1969 pp 2425 126 255d 127 Sophist 255e Comford Platos Theory of Knowledge p 282 128 Heidegger transcrição da palestra Sophist p 382 129 Theaetetus 189e Sophist 263e 130 Sophist 253b 131 Protagoras 339c 132 Ibid 339b 340b 133 Posterior Analytics 76b2225 134 1005b231008a2 135 N 36 Werke vol VI p 500 136 N 56 ibid p 549 137 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Werke vol 4 pp 51 55 138 304d 139 Nicomachean Ethics 1166a30 140 Ibid 1166b525 141 Ethics IN 52 III 25 142 Philosophy 1932 trad E B Ashton Chicago Londres 1970 vol 2 pp 178179 Capítulo 4 1 Symposium 174175 2 MerleauPonty Signs The Philosopher and His Shadow p 174 3 Citado de Sebastian de Grazia About Chuang Tzu Dalhousie Review Verão 1974 4 Hegel Encyclopadie derphilosophischen Wissenschaften 465n 5 Ross Aristotle p 14 6 Protreptikos ed Düring B56 7 Physics VI viii 189a5 8 Nicomachean Ethics 1141b24l 142a30 Cf 1147al10 9 Critique of Pure Reason B49 B50 10 Gesammelte Schriften Nova Iorque 1946 vol V p 289 Trad inglesa por Willa e Edwin Muir The Great Wall of China Nova Iorque 1946 p 276277 11 Parte III On the Vision and the Riddle seção 2 12 VolI pp 311 e s 13 Duns Scotus Opux Oxoniense I 40 questão 1 nota 3 Citado de Walter Hoeres Der Wille als reine Vollkommenheit nach Duns Scotus Munique 1962 p 111 n 72 14 Critique of Pure Reason B294 s 15 As I Walked Out One Evening Collected Poems p 115 16 W H Auden The Dyers Hand and Other Essays Vintage Books Nova Iorque 1968 17 Time and Free Will 1910 trad F L Pogson Harper Torchbooks Nova Iorque Evanston 1960 pp 158 167 240 18 Romans 715 19 Encyclopadie 12 20 Of Human Freedom trad Gutmann p8 21 Critique of Pure Reason B172B173 Volume 2 O Querer A Vontade Introdução O segundo volume de A Vida do espírito será dedicado à faculdade da Vontade e por conseguinte ao problema da Liberdade o qual como disse Bergson foi para os modernos o que os paradoxos dos Eleatas foram para os antigos Os fenômenos com os quais temos de lidar estão em grande parte encobertos por uma camada de argumentos que não são de modo algum arbitrários e que por isso não devem ser desprezados mas que acabam se desvinculando das experiências reais do ego volitivo favorecendo doutrinas e teorias não necessariamente interessadas em salvar os fenômenos Uma razão para estas dificuldades é bem simples a faculdade da Vontade era ignorada na Antiguidade grega e sua descoberta resultou de experiências sobre as quais quase não ouvimos falar antes do primeiro século da Era Cristã O problema para os séculos posteriores era conciliar essa faculdade com as principais doutrinas da filosofia grega Os pensadores não estavam mais dispostos a abandonar totalmente a filosofia e dizer com São Paulo pregamos a Cristo crucificado que é um escândalo para judeus e uma loucura para os gentios dando a questão por encerrada Para isso como veremos somente o próprio São Paulo estavapreparado Mas o fim da Era Cristã não significa absolutamente o fim dessas dificuldades A principal dificuldade estritamente cristã isto é como conciliar a fé em um Deus todopoderoso e onisciente com as alegações de uma vontade livre sobrevive profundamente e de várias maneiras na Era Moderna na qual muitas vezes nos deparamos com quase o mesmo tipo de argumentação anterior Ou encontrase a vontade livre em choque com a lei da causalidade ou mais tarde fica difícil conciliála com as leis da História cuja significação depende do progresso ou de um desenvolvimento necessário do Espírito do Mundo Tais dificuldades persistem até mesmo quando todos os interesses estritamente tradicionais metafísicos ou teológicosperdem a força John Stuart Mill por exemplo sintetiza um raciocínio muito recorrente quando diz Nossa consciência interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência aparente da raça humana nos diz que jamais utilizamos Ou para usar o exemplo mais extremo Nietzsche chama toda a doutrina da Vontade a mais fatídica falsificação feita em psicologia até hoje inventada essencialmente para o castigo A maior dificuldade enfrentada em qualquer discussão sobre a Vontade é o simples fato de que não há qualquer outra capacidade do espírito cuja própria existência tenha sido questionada e refutada de forma tão consistente e por uma sucessão de filósofos tão eminentes quanto esta O mais recente é Gilbert Ryle para quern a Vontade é um conceito artificial que não corresponde a nada que jamais existiu e que cria enigmas inúteis como tantas das falácias metafísicas Desconhecendo aparentemente seus ilustres predecessores ele parte para refutar a doutrina de que há uma Faculdade da Vontade e que portanto ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como volições Ryle não ignora o fato de que Platão e Aristóteles nunca mencionaram volições em suas freqüentes e elaboradas discussões acerca da natureza da alma e das origens da conduta porque não estavam familiarizados então com a hipótese especial de tempos posteriores cuja aceitação baseiase não na descoberta mas na postulação de certas verdades fantasmagóricas Faz parte da natureza de todo exame crítico da faculdade da Vontade ser empreendido por pensadores profissionais os Denker von Gewerbe de Kant isso levanta a suspeita de que as denúncias da Vontade como uma mera ilusão da consciência e as refutações da existência da faculdade que vemos sustentadas por argumentos quase idênticos em filósofos que partem de pressupostos bastante diferentes podem deverse a um conflito básico entre as experiências do ego pensante e as do ego volitivo Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo e o mesmo eu una corpo alma e espírito está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável permanecendo imparcial e objetiva quando se trata de outras atividades do espírito Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis mas é também um dado imediato da consciência nas palavras de Bergson tanto quanto o eupenso de Kant ou o cogito em Descartes cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional Para antecipar o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade Se devo necessariamente querer por que então preciso falar da vontade no dizer de Santo Agostinho A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa consciência de que poderiamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites em que as necessidades corporais as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobreporse a quaisquer considerações seja da Vontade seja da Razão A Vontade ao que parece tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento que mesmo em sua forma mais livre mais especulativa não pode escapar ao princípio de não contradição Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma benção Os pensadores muitas vezes consideraramno uma maldição Tomarei a seguir a evidência interna de um euquero como testemunho suficiente da existência do fenômeno e uma vez que concordo com Ryle e muitos outros que esse fenômeno e todos os problemas a ele relacionados eram ignorados na Antigüidade grega tenho que aceitar o que Ryle rejeita a saber que essa faculdade foi de fato descoberta e que pode ser datada Em resumo analisarei brevemente a Vontade em termos de sua história coisa que em si tem as suas dificuldades As faculdades humanas não são ao contrario das condições e circunstâncias da vida humana contemporâneas ao aparecimento do homem na Terra Se não fosse este o caso como poderiamos chegar a compreender a literatura e o pensamento de tempos passados Há decerto uma história das idéias e seria bem fácil traçar a história da idéia de Liberdade como deixou de ser uma palavra indicativa de um status político aquele do cidadão livre e não o do escravo e de uma circunstância física factual aquela de um homem saudável cujo corpo não estivesse paralisado e fosse capaz de obedecer ao espírito e passou a ser uma palavra indicativa de uma disposição interior através da qual um homem podia sentirse livre quando era na verdade um escravo ou quando não era capaz de mover seus membros As idéias são artefatos do espírito e sua história pressupõe a identidade imutável do homem o artífice Voltaremos mais adiante a esse problema De qualquer forma o fato é que antes do surgimento do cristianismo jamais encontramos qualquer noção de uma faculdade do espírito correspondente à idéia de Liberdade assim como a faculdade do Intelecto correspondia à verdade e a faculdade da Razão a coisas que estão além do conhecimento humano ou como dissemos aqui ao Significado Começaremos nosso exame da natureza da capacidade da Vontade e de sua função na vida do espírito investigando a literatura pósclássica e pré moderna que atesta as experiências do espírito causadoras da descoberta dessa faculdade bem como as experiências que a própria descoberta causou uma literatura que cobre o periodo entre a Epístola de São Paulo aos romanos e o questionamento de Duns Scotus à posição de São Tomás de Aquino Mas antes irei tratar de maneira breve de Aristóteles em parte pela influência decisiva que O filósofo exerceu sobre o pensamento medieval em parte porque sua noção deproairesis em minha opinião uma espécie de precursora da Vontade pode servir como exemplo paradigmático de como certas questões da alma foram levantadas e respondidas antes da descoberta da Vontade Essa seção entretanto que abarca os capítulos II e III será precedida de uma consideração preliminar bastante longa sobre argumentos e teorias que desde o reflorescimento da filosofia no século XVII encobriram mas também reinterpretaram muitas dessas experiências autênticas Afinal é com essas teorias doutrinas e argumentos em mente que abordamos nosso tema A seção final começa com um exame da conversão de Nietzsche e de Heidegger à filosofia da Antigüidade como conseqüência de sua reavaliação e de seu repúdio à faculdade da Vontade Iremos nos perguntar então se os homens de ação não estariam talvez em melhorposição para aprendera lidarcomos problemas da Vontade do que os pensadores contemplados no primeiro volume deste estudo O que estará em jogo aqui é a Vontade como fonte da ação isto é como um poder para começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos Kant Sem dúvida todo homem pelo fato de ter nascido é um novo começo e seu poder de começar pode muito bem corresponder a este fato da condição humana E na linha dessas reflexões agostinianas que a Vontade foi às vezes e não só por Santo Agostinho considerada uma atualização doprincipium individual ionis A questão é como essa faculdade de ser capaz de ocasionar algo novo e assim mudar o mundo pode funcionar no mundo das aparências isto é em um ambiente de factualidade que é velho por definição e que transforma inexoravelmente toda espontaneidade de seus recémchegados no foi dos fatos fieri factus sum Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 Tempo e atividades do espírito Concluí o primeiro volume de A vida do espírito com certas especulações sobre o tempo Foi uma tentativa de esclarecer uma questão bastante antiga levantada primeiramente por Platão sem jamais ter sido por ele respondida onde fica o topos noetos a região do espírito na qual habita o filósofo1 Reformulei a questão no decorrer da investigação onde estamos quando pensamos Para onde nos retiramos quando nos retiramos do mundo das aparências interrompemos todas as atividades habituais e iniciamos aquilo a que Parmênides no começo de nossa tradição filosófica nos encorajou tão enfaticamente Olhe para aquilo que embora ausente para os sentidos está tão firmemente presente em nosso espírito2 Formulada em termos espaciais a questão recebeu uma resposta negativa Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir o ego pensante invisível não está a rigor em Lugar Nenhum Retirouse do mundo das aparências inclusive de seu próprio corpo e portanto também do êu do qual não mais tem consciência E isso aponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte e de Valéry poder dizer Tantôtje pense et tantôtje suis dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real aparente não pensa Seguese daí que nossa pergunta onde estamos quando pensamos foi feita de fora da experiência de pensamento e foi portanto imprópria Quando então resolvemos investigar a experiência temporal do ego pensante deixamos de julgar que nossa questão estava mal colocada A memória o poder que o espírito possui de ter presente aquilo que irrevogavelmente já passou e que está portanto ausente dos sentidos foi sempre o exemplo paradigmático mais plausível do poder que o espírito tem de tomar presentes os invisíveis Porque tem esse poder o espírito parece ser até mais forte que a realidade opõe sua força à futilidade inerente a tudo o que está sujeito à mudança recupera e relembra o que de outra forma estaria condenado à ruína e ao esquecimento A região temporal em que se dá esse salvamento é o Presente do ego pensante uma espécie de hoje todayness duradouro hodiernos do dia de hoje era como Santo Agostinho chamava a eternidade de Deus3 o agora permanente mine stans da meditação medieval um presente que dura oprésent qui dure de Bergson4 a lacuna entre o passado e o futuro conforme a designação que demos ao explicar a parábola kafkiana do tempo Mas é somente quando aceitamos a interpretação medieval dessa experiência temporal como um indício da eternidade divina que somos forçados a concluir que não só a espacialidade mas também a temporalidade é provisoriamente suspensa nas atividades do espírito Tal interpretação envolve toda a nossa vida espiritual em uma aura de misticismo e estranhamente desconsidera exatamente o que há de comum na experiência em si A constituição de um presente que dura é o ato habitual normal banal do nosso intelecto5 realizado em qualquer tipo de reflexão seja quando ela tem como objeto as ocorrências comuns do diaa dia seja quando a atenção se concentra em coisas etemamente invisíveis que ficam de fora da esfera do poder humano A atividade do espírito sempre cria para si mesma un présent qui dure uma lacuna entre o passado e o futuro Aristóteles ao que parece foi o primeiro a mencionar essa suspensão do movimento do tempo em um presente que dura e isso é interessante notar em sua discussão sobre prazer hedone no livro X da Ética a Nicômaco O prazer ele diz não está no tempo Pois o que se dá em um Agora é um todo não há movimento E uma vez que segundo ele a atividade de pensar maravilhosa em pureza e certeza era a mais prazerosa de todas as atividades fica claro que ele estava falando do Agora imóvel6 que viria a ser mais tarde o nunc starts Para ele o mais sensato de todos os grandes pensadores este parecia ser um momento de êxtase tão grande quanto o dos místicos medievais só que Aristóteles seria é claro o último a se deixar levar por extravagâncias histéricas Disse anteriormente que as atividades do espírito e especialmente a atividade do pensamento sempre estão fora de ordem quando vistas da perspectiva da continuidade incólume de nossos negócios no mundo das aparências A cadeia de agoras aí desenrolase inexoravelmente fazendo com que se compreenda o presente como unindo precariamente passado e futuro no momento em que tentamos definilo ele já é ou um não mais ou um ainda não Desse ângulo o presente que dura se parece com um agora prolongado uma contradição em termos como se o ego pensante fosse capaz de esticar o momento produzindo assim uma espécie de hábitat espacial para si Mas essa aparente espacialidade de um fenômeno temporal é um erro causado pelas metáforas que usamos habitualmente na terminologia que trata do fenômeno do Tempo Como nos diz Bergson que descobriu isso são todos termos tomados de empréstimo à linguagem espacial Se desejamos refletir sobre o tempo é o espaço que responde Assim a duração é sempre expressa como extensão7 e o passado é entendido como algo que fica atrás de nós o futuro fica em algum lugar à nossa frente A razão para preferir a metáfora espacial é óbvia para nossas atividades cotidianas no mundo sobre as quais o ego pensante pode refletir mas nas quais ele não está envolvido precisamos de medidas de tempo e só podemos medir o tempo medindo distâncias espaciais Mesmo a distinção comum entre justaposição espacial e sucessão temporal pressupõe um espaço estendido no qual a sucessão se deve dar Estas considerações preliminares e de modo algum satisfatórias sobre o conceito de tempo parecemme necessárias em nossa discussão sobre o ego volitivo porque a Vontade se é que ela existe e uma quantidade desconfortável de grandes filósofos que nunca duvidaram da razão ou do pensamento sustentaram que a Vontade não passa de uma ilusão é obviamente o nosso órgão espiritual para o futuro do mesmo modo que a memória é o nosso órgão espiritual para o passado A estranha ambivalência da língua inglesa na qual will como auxiliar designa o futuro enquanto o verbo to will indica volições atesta em realidade nossas in certezas quanto a esses assuntos Em nosso contexto o problema básico com a Vontade é que ela não lida simplesmente com coisas que estão ausentes de nossos sentidos e que precisam se fazer presentes através do poder de representação do espírito mas lida também com coisas visíveis e invisíveis que absolutamente nunca existiram No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro não estamos mais preocupados com objetos mas sim com projetos e não importa se eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras E assim como o passado apresentase ao espírito sempre com o aspecto de certeza a característica principal do futuro é sua incerteza básica por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão Em outras palavras estamos lidando com coisas que nunca foram que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser Nosso Testamento nossa Última Vontade preparado para o único futuro sobre o qual podemos estar seguros com razão a saber nossa própria morte mostra que a necessidade da Vontade de querer não é menos forte do que a necessidade que a Razão tem de pensar em ambos os casos o espírito transcende suas próprias limitações naturais seja por fazer perguntas irrespondíveis seja por projetarse em um futuro que para o sujeito volitivo jamais será Aristóteles lançou as bases para uma tomada de posição da filosofia em relação à Vontade e através dos séculos a solidez dessas bases resistiu a testes e desafios da maior importância Segundo Aristóteles8 todas as coisas que podem ser ou não ser que aconteceram mas que poderíam não ter acontecido são por acaso kata symbebekos ou na tradução latina são por acidente ou contingência em contraposição àquilo que necessariamente é como é que é e não pode não ser A isto Aristóteles chamou hypokeimenori é o que subjaz a tudo que é acrescentado por acaso isto é a tudo o que não pertença à própria essência como a cor é acrescentada a objetos cuja essência é independente de tais qualidades secundárias Os atributos que podem ou não se juntar ao que subjaz a eles seu substrato ou substância as traduções latinas para hypokeimenori são acidentais Pouca coisa é mais contingente do que atos voluntários os quais pressupondose uma vontade livre poderíam todos ser definidos como atos que sei muito bem que podería ter deixado de fazer Uma vontade que não é livre é uma contradição em termos a não ser que se entenda a faculdade da volição como um órgão executivo meramente auxiliar para o que quer que o desejo ou a razão tenham proposto No quadro dessas categorias tudo o que acontece no campo dos assuntos humanos é acidental ou contingente prakton desti to endechomenon kai allos echein o que vem a ser através de uma ação é aquilo que podería também ser outro9 as próprias palavras de Aristóteles já indicam o status ontológico baixo deste campo um status que nunca foi seriamente ameaçado até a descoberta de Hegel do Sentido e da Necessidade na História Na esfera das atividades humanas Aristóteles admitiu uma exceção importante a esta regra a saber a feitura ou fabricação poiein diferente de prattein ação ou praxis Para usar o exemplo de Aristóteles o artesão que faz uma esfera de bronze reúne matéria e forma bronze e esfera ambos com existência anterior ao começo de seu trabalho e produz um objeto novo a ser acrescentado a um mundo que consiste de coisas feitas pelo homem e de coisas que ganharam existência independentemente dos atos humanos O produto humano esse composto de matéria e forma por exemplo uma casa de madeira feita segundo uma forma préexistente no espírito nous do artesão claramente não foi feito do nada e assim Aristóteles compreendia que ele préexistia potencialmente antes de ser atualizado por mãos humanas Essa noção foi derivada do modo de ser particular da natureza das coisas vivas em que tudo o que aparece cresce de alguma coisa que contém potencialmente o produto final como o carvalho existe potencialmente na semente e o animal no sêmen A visão de que tudo o que é real deve ser precedido de uma potencialidade como uma de suas causas nega implicitamente o futuro como um tempo verbal autêntico o futuro nada mais é que uma conseqüência do passado e a diferença entre as coisas naturais e as feitas pelos homens reside simplesmente na distinção entre aquelas cujas potencialidades necessariamente transformamse em atualidades e aquelas que podem ou não se atualizar Nessas circunstâncias qualquer idéia da Vontade como órgão para o futuro do mesmo modo que a memória é um órgão para o passado era completa mente supérflua Aristóteles não precisava ter consciência da existência da Vontade os gregos sequer têm uma palavra para o que consideramos a fonte principal da ação Thelein significa estar pronto estar preparado para algo boulesthai é ver algo como mais desejável e a própria palavra nova inventada por Aristóteles que se aproxima mais do que essas da nossa idéia de algum estado espiritual que tenha que preceder a ação é proairesis a escolha entre duas possibilidades ou melhor a preferência que me faz escolher uma ação ao invés de outra10 Autores que conhecem bem a literatura grega sempre souberam desta lacuna Assim Gilson aponta o fato notório de que Aristóteles não fala de liberdade nem de vontade livre o próprio termo falta11 e já em Hobbes temos este ponto bastante explícito12 A lacuna fica ainda um tanto difícil de identificar pois é claro que a língua grega conhece a diferença entre atos intencionais e não intencionais entre o voluntário hekon e o involuntário akori isto é em termos legais entre assassinato e homicídio culposo e Aristóteles tem o cuidado de observar que só os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou à exaltação13 Mas o que ele entende por voluntário significa somente que o ato não foi casual mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física a fonte do movimento estava no agente14 e a distinção engloba apenas danos cometidos por ignorância ou infortúnio Um ato no qual estou sob a ameaça de violência mas a que não sou forçado fisicamente como no caso em que dou meu dinheiro com minhas próprias mãos ao homem que me ameaça com uma arma seria qualificado como voluntário É de alguma importância notar que essa curiosa lacuna na filosofia grega o fato de que Platão e Aristóteles nunca tenham mencionado volições em suas freqüentes e elaboradas discussões sobre a natureza da alma e das origens da conduta15 e portanto de que não é possível sustentar a sério que o problema da liberdade tenha algum dia se tomado objeto de debate na filosofia de Sócrates Platão e Aristóteles16 está em perfeita harmonia com o conceito de tempo vigente na Antigüidade que identificava a temporalidade com os movimentos circulares dos corpos celestiais e com a não menos cíclica natureza da vida na Terra a recorrente transformação de dia e noite verão e inverno a renovação constante de espécies animais através do nascimento e da morte Quando Aristóteles sustenta que vira ser necessariamente implica a préexistência de algo que é em potência mas não em ato17 ele está aplicando ao campo dos assuntos humanos o movimento cíclico que afeta tudo o que vive em que de fato todo fim é um começo e todo começo um fim de maneira que o viraser continue embora as coisas estejam constantemente sendo destruídas18 Isso a ponto de poder dizer que não só eventos mas até mesmo opiniões doxai ocorrendo entre os homens repetemse não só uma ou poucas vezes mas com infinita freqüência19 Essa estranha visão dos assuntos humanos não era específica da especulação filosófica A pretensão que Tucídides tinha de deixar para a posteridade um ktema es aei um paradigma eternamente útil para o modo de investigação do futuro através de um conhecimento claro do maior evento já conhecido na história baseavase implicitamente na mesma convicção de um movimento recorrente dos assuntos humanos Para nós que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo com sua ênfase na unicidade do momento histórico a exaltação grega pré filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida seja para o mal ou para o bem Tucídides para além de todas as considerações morais ele merece ser salvo do esquecimento primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores parece ser incompatível com o conceito cíclico de tempo dos antigos Mas até que os filósofos descobrissem a perenidade do Ser que não tem nascimento e morte o tempo e a mudança no tempo não constituíam problema Os anos circulares de Homero forneciam apenas o pano de fundo em que a notável história aparecera e era narrada Podese encontrar indícios dessa visão não especulativa mais antiga em toda a literatura grega assim o próprio Aristóteles em sua discussão sobre a eudaimonia na Ética a Nicômaco está pensando em termos homéricos quando aponta os altos e baixos as circunstâncias acidentais tychai que voltam muitas vezes na vida de uma pessoa ao passo que sua eudaimonia é mais durável porque reside em certas atividades energeiai kat areten que vale a pena lembrar por sua excelência e em torno das quais portanto o esquecimento não cresce genesthai1 Quaisquer que sejam as origens e as influências históricas que possamos atribuir ao conceito cíclico de tempo babilônicas persas egípcias seu aparecimento foi do ponto de vista lógico quase inevitável uma vez que os filósofos tinham descoberto um Ser perene sem nascimento e sem morte dentro de cuja estrutura eles precisavam explicar o movimento a mudança o constante ir e vir dos seres vivos Aristóteles foi bastante explícito com relação à primazia do pressuposto de que o todo celestial não foi gerado e não pode ser destruído como alegam alguns mas é único e eterno não tendo começo ou fim em sua existência total contendo e abrangendo em si tempo infinito21 Que tudo retoma é de fato como observou Nietzsche a maior aproximação possível entre um mundo de Devir e um mundo de Ser22 Não é portanto de se estranhar que os gregos não tivessem noção da faculdade da Vontade nosso órgão espiritual para o futuro em princípio indeterminado sendo portanto um possível anunciador de novidade Estranho mesmo é verificar que uma tendência tão forte para denunciar a Vontade como uma ilusão ou como uma hipótese inteiramente supérflua depois da crença hebraicocristã em um início divino No princípio Deus criou os céus e a terra tenha se tomado um pressuposto dogmático em filosofia Especialmente quando esse novo credo também estabelecia que o homem era a única criatura feita à imagem do próprio Deus dotada portanto de uma faculdade semelhante de começar Ainda assim de todos os pensadores cristãos somente Santo Agostinho ao que parece tirou a conclusão Initium ut esset creatus est homo Para que um começo fosse feito o homem foi criado23 A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta autônoma esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã que iremos examinar adiante em mais detalhe Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega em especial para com Aristóteles ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antigüidade e sua noção de eterna recorrência A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a morte e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos que não se podem repetir Cristo um dia morreu por nossos pecados e levantando se dos mortos Ele não mais morreu24 A seqüência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo tem um início definido um ponto decisivo o ano Um de nosso calendário25 e um fim definido E foi uma história da máxima importância para os cristãos embora mal tenha tocado no curso de acontecimentos seculares ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem como no passado Além do mais a vida após a morte do cristão era decidida enquanto ele ainda era um peregrino na terra ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua Liberdade necessária foram em toda a sua complexidade descobertas primeiramente por São Paulo Uma das dificuldades de nosso tópico portanto é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua origem histórica na teologia mais do que em uma tradição contínua de pensamento filosófico26 Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pósantigos sobre a localização da liberdade humana no euquero claro está que no esquema do pensamento précristão a liberdade localizavase no euposso liberdade era um estado objetivo do corpo não um dado da consciência ou do espírito Liberdade significava poder fazer o que se quer sem ser forçado pela ordem de um senhor nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo nem por algum defeito somático tal como saúde má ou paralisia de um dos membros Segundo a etimologia grega isto é segundo a autointerpretação grega a raiz da palavra liberdade eleutheria é eleuthein hopos ero ir conforme eu queira27 e não resta dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento Uma pessoa era livre se pudesse locomoverse como quisesse o euposso não o euquero era o critério 2 A Vontade e a Era Moderna No contexto dessas considerações preliminares podemos nos permitir saltar as complexidades da Era Medieval e tentar uma rápida olhada no próximo ponto crítico importante em nossa história intelectual o surgimento da Era Moderna Aqui é de se esperar que haja um interesse ainda mais forte do que no período medieval em um órgão espiritual próprio para o futuro uma vez que o conceito principal e completamente novo da Era Moderna a noção de Progresso como força que governa a história humanacolocou uma ênfase sem precedentes no futuro Ainda assim as especulações medievais sobre o assunto ainda exerciam grande influência pelo menos durante os séculos XVI e XVII E era tão forte a suspeita em relação à faculdade da Vontade tão aguda a relutância em conceder aos seres humanos desprotegidos por qualquer Providência ou orientação divina um poder absoluto sobre seus próprios destinos oprimindoos assim com uma responsabilidade formidável por coisas cuja própria existência dependería só deles tão grande nas palavras de Kant era o embaraço da razão especulativa ao lidar com a questão da liberdade da vontade a saber com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas sucessivas ou estados28 distinto da faculdade de escolha entre dois ou mais objetos dados o liberum arbitrium no sentido estrito que foi somente na última fase da Era Moderna que a Vontade começou a substituir a Razão como a mais alta faculdade do espírito Isso coincidiu com a última era de autêntico pensamento metafísico na virada do século XIX ainda no estilo da metafísica que começou com o equacionamento de Parmênides entre Ser e Pensar to gar auto esti noein te kai einai de repente logo depois de Kant passou a ser comum equacionar Querer e Ser Assim Schiller declarou que não há outro poder no homem a não ser a sua Vontade e que a Vontade como o fundamento da realidade tem poder sobre a Razão e a Sensualidade cuja oposição a oposição de duas necessidades Verdade e Paixão provê a origem da liberdade29 Assim Schopenhauer concluiu que a coisaemsi kantiana o Ser por trás das aparências a natureza mais interna do mundo seu cerne do qual o mundo objetivo é simplesmente o lado de fora é a Vontade30 enquanto Schelling em um nível muito mais alto de especulação declarou apoditicamente Na instância final e mais alta não há outro Ser além da vontade31 Esse desenvolvimento contudo alcançou o ápice com a filosofia da história de Hegel a qual por esta razão prefiro tratar em separado e chegou a um final surpreendentemente rápido no final do mesmo século A filosofia de Nietzsche centrada na Vontade de Potência parece à primeira vista constituir o clímax da ascendência da Vontade na reflexão teórica Penso que essa interpretação de Nietzsche é um equívoco em parte causado pelas circunstâncias bastantes infelizes que cercaram as primeiras edições não críticas de suas publicações póstumas Devemos a Nietzsche muitos insights decisivos a respeito da natureza da faculdade da Vontade e do ego volitivo aos quais voltaremos mais tarde em seus trabalhos contudo a maior parte das passagens sobre a Vontade dá testemunho de uma declarada hostilidade com relação à teoria da liberdade da Vontade refutada centenas de vezes teoria que deve sua permanência precisamente ao fato de ser refutável Sempre aparece alguém que se sente forte o suficiente para refutála uma vez mais32 A refutação final do próprio Nietzsche está contida em seu pensamento do Eterno Retomo o conceito básico do Zaratustra que expressa a mais alta fórmula de afirmação possível33 Como tal ele se localiza historicamente na série de teodicéias essas estranhas justificativas de Deus e do Ser de que os filósofos desde o século XVII sentiram necessidade para reconciliar o espírito do homem com o mundo no qual ele deveria passar sua vida O pensamento do Eterno Retomo implica uma negação incondicional do conceito retilíneo moderno de tempo e de seu curso progressivo e nada mais é do que uma volta explícita ao conceito cíclico de tempo da Antigüidade O que o toma moderno é o tom trágico no qual é expresso indicando a proporção de veemência deliberada de que o homem moderno precisa para recuperar o simples espanto admirativo e afirmador thaumazein que foi um dia para Platão o começo da filosofia A filosofia moderna ao contrário originarase na dúvida cartesiana e leibniziana de que o Ser Por que há algo e não antes o nada pudesse absolutamente ser justificado Nietzsche fala do Eterno Retomo no tom de uma conversão religiosa e foi uma conversão que o levou a este pensamento ainda que ela não tivesse sido religiosa Com este pensamento Nietzsche tentou converterse ao antigo conceito de Ser e negar todo o credo filosófico da Era Moderna a qual ele foi o primeiro a diagnosticar como a Era da suspeita Atribuindo seu pensamento a uma inspiração ele não tem dúvidas de que seria preciso voltar milhares de anos no tempo para encontrar alguém que tivesse o direito de dizer a ele esta é também a minha experiência34 Embora Nietzsche nas primeiras décadas de nosso século tenha sido lido e mal interpretado por quase todo mundo na comunidade intelectual européia sua influência na filosofia a rigor foi mínima hoje em dia não há nietzscheanos no mesmo sentido em que há ainda kantianos e hegelianos Seu primeiro reconhecimento como filósofo veio com a revolta bastante destacada dos pensadores contra a filosofia acadêmica que leva o infeliz título de existencialismo Não houve estudo sério sobre o pensamento de Nietzsche antes dos livros de Jaspers e de Heidegger35 e ainda assim isso não quer dizer que Jaspers ou Heidegger possam ser concebidos como fundadores tardios de uma escola nietzscheana Mais importante neste contexto é que nem Jaspers nem Heidegger põem em sua própria filosofia a Vontade como o centro das faculdades humanas Para Jaspers a liberdade humana é assegurada por não termos a verdade a verdade compele e o homem pode ser livre somente porque não sabe a resposta para as perguntas finais Preciso querer porque não sei O Ser que é inacessível ao conhecimento pode ser revelado somente à minha volição Nãosaber é a raiz de ter que querer36 Heidegger compartilhara na fase mais inicial de seu trabalho da ênfase da Era Moderna no futuro como entidade temporal decisiva o futuro é o fenômeno primário de uma temporalidade original e autêntica e introduzira Sorge uma palavra alemã que apareceu pela primeira vez como termo filosófico em Ser e tempo e que significa um cuidado com e também preocupação com o futuro como o fato existencial básico da existência humana Dez anos mais tarde ele rompeu com toda a fi losofia da Era Moderna no segundo volume de seu li vro sobre Nietzsche precisamente porque descobrira até que ponto a própria Era e não somente seus produtos teóricos baseavase na dominação da Vontade Concluiu sua filosofia da fase final com a proposição aparentemente paradoxal do querernãoquerer37 E certo que em sua filosofia inicial Heidegger não compartilhou da crença moderna no Progresso e que sua proposição querernãoquerer nada tem a ver com a superação nietzscheana da Vontade através de sua restrição ao querer que tudo que aconteça continue acontecendo repetidas vezes Mas o famoso Kehre de Heidegger a grande reviravolta em sua filosofia da fase final é no entanto algo semelhante à conversão de Nietzsche em primeiro lugar foi uma espécie de conversão e em segundo teve a conseqüência idêntica de leválo de volta aos primeiros pensadores gregos É como se no final das contas os pensadores da Era Moderna escapassem para uma terra do pensamento Kant38 na qual as suas próprias preocupações especificamente modernas com o futuro com a Vontade como seu órgão espiritual para o futuro e com a liberdade como um problema não existissem na qual em outras palavras não houvesse qualquer noção de uma faculdade do espírito que pudesse corresponder à liberdade do mesmo modo que a faculdade do pensamento correspondeu à verdade 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pósmedieval O propósito dessas observações preliminares é facilitar nossa abordagem das complexidades do ego volitivo nessa nossa preocupação metodológica dificilmente podemos nos permitir desconsiderar o fato simples de que toda filosofia da Vontade é produto do ego pensante e não do ego volitivo Embora é claro seja sempre o mesmo espírito que pensa e quer vimos que não se pode confiar em que a avaliação das outras faculdades do espírito pelo ego pensante permaneça imparcial com certeza ficamos desconfiados quando encontramos pensadores com filosofias gerais bastante diferentes levantando argumentos idênticos contra a Vontade Esboçarei brevemente as principais objeções assim como elas aparecem na filosofia pósmedieval antes de entrar em uma discussão sobre a posição de Hegel Há em primeiro lugar a descrença sempre recorrente na própria existência da faculdade de querer Suspeitase que a Vontade seja uma mera ilusão um fantasma da consciência uma espécie de engano inerente à própria estrutura da consciência Um pião de madeira nas palavras de Hobbes impulsionado pelos meninos às vezes rodando às vezes atingindo os homens na canela se fosse sensível ao próprio movimento pensaria que este procedia de sua própria vontade a não ser que sentisse o que o estava pondo em movimento39 E Espinoza seguia a mesma linha de pensamento uma pedra posta em movimento por alguma força externa acreditaria ser completamente livre e pensaria permanecer em movimento somente por sua própria vontade contanto que estivesse consciente de seu esforço e fosse capaz de pensar411 Em outras palavras os homens acreditam ser livres simplesmente porque são conscientes de suas ações sem ter consciência das causas pelas quais estas ações são determinadas Assim os homens são subjetivamente livres e objetivamente assujeitados As correlações de Espinoza levantam a objeção óbvia Se isto nos fosse dado toda maldade seria desculpável o que não o perturba nem um pouco Ele responde Os homens maus não devem ser menos temidos e não são menos nocivos quando são maus por necessidade41 Hobbes e Espinoza admitem a existência da Vontade como uma faculdade sentida subjetivamente negando somente sua liberdade Reconheço essa liberdade de que posso fazer se quiser mas tomo como um discurso absurdo dizer que posso querer se quiser Pois a Liberdade significa a rigor a ausência de impedimentos externos para o movimento Mas quando esse impedimento do movimento está na constituição da coisa em si não costumamos dizer dela que quer a liberdade mas sim que quer o poder de moverse como no caso de uma pedra imóvel ou de um homem que está preso à cama por enfermidade Tais reflexões estão em perfeita harmonia com a posição grega a esse respeito O que já não se alinha com a filosofia clássica é a conclusão de Hobbes de que Liberdade e necessidade são congruentes como no caso da água que tem não só a liberdade mas também uma necessidade de descer pelo canal Assim como ocorre nas ações que os homens realizam voluntariamente porque essas ações procedem de sua vontade elas procedem da liberdade ainda assim porque todo ato da vontade do homem procede de alguma causa e esta de uma outra causa em uma cadeia contínua todo ato da vontade do homem procede da necessidade De modo que para aquele que pudesse enxergar a conexão dessas causas ficaria evidente a necessidade de todas as ações voluntárias do homem42 Tanto em Hobbes quanto em Espinoza a negação da Vontade está muito bem fundada em suas respectivas filosofias Mas encontramos praticamente o mesmo argumento em Schopenhauer cuja filosofia geral era quase o oposto e para quem a consciência ou a subjetividade eram a própria essência do Ser como Hobbes ele não nega a Vontade mas nega que a Vontade seja livre há um sentimento ilusório de liberdade quando tenho a experiência da volição quando delibero sobre o que farei em seguida e depois de rejeitar várias possibilidades chego finalmente a alguma decisão determinada isto é feito com uma vontade tão livre quanto a da água se dissesse para si mesma posso fazer grandes ondas Posso descer montanha abaixoPosso cair espumando e jorrandoPosso erguerme livremente como uma corrente de água no ar numa fonte mas não estou fazendo nada disso agora e por vontade própria permaneço água quieta e clara no lago espelhado43 Esse tipo de argumento está melhor resumido por John Stuart Mill no trecho já citado Nossa consciência interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos grifo nosso44 O que impressiona nessas objeções contra a própria existência da faculdade de querer é em primeiro lugar o fato de que elas são levantadas invariavelmente nos termos da idéia moderna de consciência uma noção tão ignorada pela filosofia antiga quanto a noção de Vontade A synesis grega poder compartilhar um conhecimento comigo mesmo syniemi sobre coisas que ninguém mais pode testemunhar é mais uma precursora da consciência moral do que da consciência45 como se pode ver quando Platão menciona o modo como a memória do feito sangrento atormenta o homicida46 No mais as mesmas objeções poderíam facilmente ser levantadas mas quase nunca foram contra a existência da faculdade do pensamento Sem dúvida o cálculo das conseqüências de Hobbes quando entendido como pensamento não dará margem a tais suspeitas mas esse poder de imaginar e fazer cálculos futuros coincide em vez disso com as deliberações do ego volitivo sobre os meios para alcançar um fim ou com a capacidade usada na resolução de enigmas e problemas matemáticos Um equacionamento do gênero está claramente por trás da refutação que Ryle faz da doutrina de que existe uma Faculdade da Vontade e que portanto ocorram processos ou operações correspondentes ao que ela descreve como volições Nas palavras do próprio Ryle Ninguém diz jamais coisas como ele desempenhou cinco volições rápidas e fáceis e duas volições lentas e difíceis entre o meiodia e a hora do lanche47 Não se pode sustentar a sério que produtosdepensamento duráveis tais como A crítica da razão pura de Kant ou a Fenomenologia do espírito de Hegel pudessem algum dia ser compreendidos nesses termos Os únicos filósofos que conheço que ousaram duvidar da faculdade do pensamento foram Nietzsche e Wittgenstein Este em seus primeiros experimentos de pensamento sustentava que o ego pensante o que ele chamava de vorstellendes Subjekt derivando sua teoria de Schopenhauer poderia em última instância ser mera superstição provavelmente uma ilusão vazia mas o sujeito volitivo existe Justificando sua tese Wittgenstein reitera os argumentos co mumente levantados no século XVII contra a negação da Vontade de Espinoza a saber se a Vontade não existisse tampouco existiría o portador da ética48 Quanto a Nietzsche é preciso dizer que tinha suas dúvidas tanto com relação à vontade quanto ao pensamento O fato perturbador de que entre os filósofos até mesmo os chamados voluntaristas aqueles inteiramente convencidos como Hobbes do poder da vontade pudessem resvalar tão facilmente para a dúvida quanto à própria existência da faculdade de querer pode ser de certa forma esclarecido examinandose a segunda de nossas dificuldades sempre recorrentes O que despertou a desconfiança dos filósofos foi precisamente a conexão inevitável com a Liberdade repetindo a noção de uma vontade nãolivre é uma contradição em termos Se devo necessariamente querer por que então preciso falar da vontade Nossa vontade não seria vontade se não estivesse em nosso poder Por estar em nosso poder é livre49 Para citar Descartes que se pode contar entre os voluntaristas Ninguém levando em consideração somente a si mesmo deixa de experimentar o fato de que a vontade e a liberdade são uma só50 Como já disse mais de uma vez a pedra de toque de um ato livre desde a decisão de sair da cama de manhã ou de dar um passeio à tarde até as mais altas resoluções com as quais nos comprometemos para o futuro é que sempre sabemos que poderiamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos A Vontade ao que parece é caracterizada por uma liberdade infinitamente maior que o pensamento e para repetir mais uma vez este fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção Assim ouvimos de Descartes Sou consciente de uma vontade tão vasta que não se pode submeter a limites E somente a vontade livre que encontro tão grande em mim que não consigo conceber qualquer outra idéia como maior do que ela é essa vontade que me faz saber que trago comigo a imagem e semelhança de Deus c acrescenta imediatamente que essa experiência consiste unicamente no fato de que agimos de tal modo que não estamos minimamente conscientes de que qualquer força externa nos limite a capacidade de escolher o que vamos ou o que não vamos fazer51 Falando assim Descartes deixa uma porta bem aberta por um lado para as dúvidas de seus sucessores e por outro para as tentativas contemporâneas de fazer com que os desígnios de Deus se harmonizem com a liberdade de nossa vontade52 O próprio Descartes pouco disposto a envolverse nas grandes dificuldades que resultariam se nos comprometéssemos a conciliar previdência e onipotência de Deus com liberdade humana apela explicitamente para as benéficas limitações de nosso pensamento o qual é finito e portanto sujeito a certas regras como por exemplo o axioma da nãocontradição e as convincentes necessidades da verdade auto evidente53 E é precisamente a liberdade sem lei de que a vontade parece gozar que fez com que até mesmo Kant falasse ocasionalmente de liberdade como mais que uma simples entidade do pensamento um fantasma do cérebro54 Outros como Schopenhauer acharam mais fácil conciliar Liberdade e Necessidade escapando assim do dilema inerente ao simples fato de que o homem é ao mesmo tempo um ser que pensa e que quer uma coincidência carregada das mais sérias conseqüências declarando simplesmente o homem faz o tempo todo somente o que quer e ainda assim o faz necessariamente Mas isso é porque ele é o que quer Subjetivamente todos sentem que fazem sempre apenas aquilo que querem Mas isso significaria simplesmente que sua atividade é uma pura expressão de seu próprio ser Todo ser natural mesmo o mais inferior sentiría o mesmo se pudesse sentir55 Nossa terceira dificuldade está ligada a esse dilema Aos olhos dos filósofos que advogaram o ego pensante foi sempre a maldição da contingência o que condenou o campo dos assuntos meramente humanos a um status bastante baixo na hierarquia ontológica Mas antes da Era Moderna existiram não muitas mas algumas vias de escape bastante trilhadas pelo menos pelos filósofos Na Antigüidade havia o bios theoretikost o pensador habitava a vizinhança das coisas necessárias e perenes tomando parte em seu Ser até o ponto em que isso é possível para os mortais Na era da filosofia cristã havia a vita contemplativa dos monastérios e das universidades mas também o pensamento consolador da divina Providência conjugado à expectativa de uma vida após a morte quando aquilo que parecera contingente e sem sentido neste mundo se tornaria muito claro a alma vendo cara a cara ao invés de por espelho obscuramente não mais conhecendo só em parte pois ela conhecerá tanto quanto é conhecida Sem tal esperança de um Além até mesmo Kant julgava a vida infeliz demais por demais destituída de sentido para ser suportada E óbvio que a progressiva secularização ou melhor descristianização do mundo moderno ligada como estava a uma ênfase inteiramente nova no futuro no progresso e portanto nas coisas que não são nem necessárias nem eternas acabaria por expor os pensadores à contingência de todas as coisas humanas de uma maneira mais radical e impiedosa do que nunca O que desde o fim da Antigüidade fora o problema da liberdade agora estava incorporado por assim dizer ao acaso da história cheia de som e de fúria uma história narrada por um idiota significando nada a que correspondia o caráter fortuito das decisões pessoais que se originam em uma vontade livre que não foi guiada nem pela razão nem pelo desejo Este velho problema reaparecendo na roupagem de uma nova era a Era do Progresso que só agora em nosso próprio tempo está alcançando o fim à medida que o Progresso aproximase rapidamente dos limites dados pela condição humana na Terra encontrou sua pseudosolução na filosofia da história do século XIX cujo maior representante produziu uma teoria engenhosa de uma Razão e de um Significado escondidos no curso dos acontecimentos do mundo guiando as vontades dos homens em toda sua contingência na direção de um objetivo final que eles jamais pretenderam alcançar Uma vez que se complete esta história e Hegel parece ter acreditado que o início do fim da história era contemporâneo à Revolução Francesa o olhar retrospectivo do filósofo pelo puro esforço do ego pensante pode internalizar e relembrar ex innerri a falta de sentido e a necessidade do movimento que se desenrola de modo que possa novamente morar com o que é e não pode nãoser Afinal em outras palavras o processo do pensamento mais uma vez coincide com o autêntico Ser o pensamento depurou a realidade daquilo que é meramente acidental 4 O problema do novo Se reconsideramos as objeções levantadas pelos filósofos contra a Vontade contra a existência da faculdade contra a noção de liberdade humana nela implícita e contra a contingência que adere a uma vontade livre isto é a um ato que por definição podese deixar de realizar tomase óbvio que elas se aplicam muito menos ao que a tradição conhece como liberum arbitrium a liberdade de escolha entre dois ou mais objetos desejados ou entre dois modos de conduta do que à Vontade como um órgão para o futuro idêntica ao poder de começar algo novo O liberum arbitrium decide entre coisas igualmente possíveis e dadas a nós por assim dizer em statu nascendi como simples potencialidades enquanto o poder de começar algo realmente novo não poderia propriamente ser precedido por qualquer potencialidade que figuraria nesse caso como uma das causas do ato realizado Mencionei anteriormente o embaraço de Kant para lidar com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos por exemplo se neste momento levantome de minha cadeira uma nova série tem seu começo absoluto com este acontecimento embora acrescenta ele no que diz respeito ao tempo este acontecimento seja apenas a continuação de uma série precedente56 Bastante problemática é a noção de um começo absoluto pois uma série começando no mundo pode apenas relativamente ter um primeiro começo sendo sempre precedida de algum outro estado de coisas e isso naturalmente também se aplica à pessoa do pensador visto que eu que penso jamais deixo de ser uma aparência entre aparências por mais que consiga retirarme dessas aparências espiritualmente Sem dúvida a própria hipótese de um começo absoluto remonta à doutrina bíblica da Criação em contraposição às teorias orientais de emanação segundo as quais forças préexistentes desenvolveramse e expandiramse em um mundo Mas essa doutrina é uma razão suficiente em nosso contexto somente se acrescentarmos que a criação de Deus é ex nihilo e que uma criação desse tipo é desconhecida pela Bíblia hebraica tratase de um acréscimo feito em especulações posteriores57 Essas especulações surgiram quando os padres da Igreja já tinham começado a explicar a fé cristã em termos da filosofia grega isto é quando foram confrontados com o Ser para o qual a língua hebraica não tem uma palavra Parece bastante óbvio pela lógica que um equacionamento do Universo e do Ser deve implicar o nada como seu oposto ainda assim a transição de Nada para Algo é logicamente tão difícil que se pode suspeitar que foi o novo ego volitivo que a despeito de doutrinas ou credos considerou a idéia de um começo absoluto apropriada para a sua experiência de fazer projetos Pois há algo de fundamentalmente errado no exemplo de Kant Somente quando ele ao levantarse da cadeira tem em mente algo que deseja fazer é que este acontecimento começa uma nova série se não é esse o caso se ele habitualmente se levanta a essa hora ou se se levanta para pegar alguma coisa de que precisa para sua ocupação do momento este acontecimento é ele mesmo a continuação de uma série precedente Mas suponhamos que esta tenha sido uma omissão e que Kant tivesse muito claro em mente o poder de espontaneamente começar e que portanto estivesse preocupado com uma possível reconciliação entre uma nova série de atos e estados e o contínuo de tempo que essa nova série interrompe a solução tradicional para o problema mesmo naquele tempo teria sido ainda a distinção aristotélica entre potência e ato salvandose a unidade do conceito de tempo e assumindose que a nova série estava contida na série precedente Mas a insuficiência da explicação aristotélica é evidente pode alguém sustentar a sério que a sinfonia produzida por um compositor era possível antes de ser real58 A não ser que o que se entenda por possível seja apenas a idéia de que a sinfonia não era claramente impossível o que naturalmente é bem diferente de a sinfonia haver existido em um estado de potencialidade à espera de algum músico que se desse ao trabalho de tornála real Apesar disso como Bergson sabia muito bem há um outro lado da questão Do ponto de vista da memória isto é olhandose retrospectivamente um ato levado a cabo de forma livre perde seu ar de contingência sob o impacto de ser agora um fato realizado de ter se tornado parte inseparável da realidade em que vivemos O impacto da realidade é esmagador a ponto de sermos incapazes de removêla do pensamento o ato agora aparece para nós com aspecto de necessidade uma necessidade que não é absolutamente uma simples ilusão da consciência ou que se deve só à limitação de nossa habilidade para imaginar alternativas possíveis Isso é bastante óbvio no campo da ação em que nenhum feito pode ser desfeito com segurança mas aplicase também embora de maneira menos coercitiva aos incontáveis objetos que a fabricação humana constantemente acrescenta ao mundo e à sua civilização objetos de arte bem como objetos de uso é quase impossível remover do pensamento as grandes obras de arte de nossa herança cultural a deflagração das duas Guerras Mundiais ou qualquer outro acontecimento que tenha decidido a própria estrutura de nossa realidade Nas palavras do próprio Bergson Pela simples razão de ser factual a realidade lança a sua sombra atrás de si em um passado infinitamente distante assim parece ter existido em estado de potencialidade anteriormente à sua própria realização Par le seulfaitde s accomplir la réalité projette derrière son ombre dans le passé indéfiniment lointain elle parrait ainsi avoir préexisté sous forme de possible à sa propre réalization59 Visto por este ângulo que é o ângulo do ego volitivo não é a liberdade mas a necessidade que parece ser uma ilusão da consciência O insight de Bergson pareceme ao mesmo tempo elementar e altamente significativo mas não será também significativo o fato de que esta observação apesar de sua plausibilidade simples nunca tenha tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus liberdade Ao que eu saiba o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson Tratase de Duns Scotus o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e mais que isto do fator contingência em tudo o que é Se há algo como uma filosofia cristã então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como o mais importante pensador da Idade Média cristã60 mas talvez também como o único que não buscou um meio termo entre a fé cristã e a filosofia grega c que ousou portanto tomar um símbolo dos verdadeiros cristãos dizer que Deus age contingentemente Aqueles que negam que algum ser é contingente disse Scotus deveríam ser expostos a tormentos até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados61 Se a contingência que para a filosofia clássica era o máximo da falta de sentido irrompeu como realidade nos primeiros séculos da Era Cristã por causa da doutrina bíblica que opunha a contingência à necessidade a particularidade à universalidade a vontade ao intelecto assegurando assim um lugar para o contingente dentro da filosofia contra o preconceito original desta última62 ou se as abaladoras experiências políticas dos primeiros séculos daquela Era deixaram à mostra os truísmos e plausibilidades do pensamento antigo essa é uma questão que pode ficar em aberto Não resta dúvidas porém de que o preconceito original contra a contingência a particularidade e a Vontade e a predominância correspondente da necessidade da universalidade e do Intelecto sobreviveu profundamente ao desafio até a Era Moderna A filosofia religiosa e medieval bem como a secular e moderna encontraram diversas maneiras de assimilar a Vontade o órgão da liberdade e do futuro à ordem mais antiga das coisas Pois como quer que enxerguemos esses assuntos factualmente Bergson está bastante certo quando diz A maioria dos filósofos é incapaz de conceber a novidade radical e a imprevisibilidade Mesmo os poucos que acreditaram no liberum arbitrium reduziramno a uma simples escolha entre duas ou mais opções como se estas opções fossem possibilidades e a Vontade ficou restrita a realizar uma delas Logo eles ainda aceitavam que tudo é dado Parecem nunca ter tido a menor noção de uma atividade inteiramente nova E esse tipo de atividade é afinal a ação livre63 Até mesmo hoje em dia quando ouvimos uma discussão entre dois filósofos em que um deles defende o determinismo e o outro a liberdade será sempre o determinista que parecerá estar com a razão Os ouvintes sempre concordarão que ele é simples claro e verdadeiro64 Do ponto de vista teórico o problema sempre foi que a vontade livre quer concebida como liberdade de escolha ou como liberdade de começar algo novo parece ser absolutamente incompatível não só com a divina Providência mas também com a lei da causalidade a liberdade da Vontade pode ser pressuposta pela força ou melhor pela fraqueza da experiência interior mas não pode ser provada A não plausibilidade do pressuposto ou Postulado da Liberdade devese às nossas experiências externas no mundo das aparências onde na verdade a despeito do que disse Kant raramente começamos uma nova série Mesmo Bergson cuja filosofia inteira baseia se na convicção de que cada um de nós tem o conhecimento imediato de sua espontaneidade livre65 admite que embora sejamos livres quando queremos nos voltar para nós mesmos raramente queremos fazer isto E Os atos livres são excepcionais66 Os hábitos tomam conta da maioria dos nossos atos do mesmo modo como os preconceitos são responsáveis pela maioria de nossos juízos cotidianos O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser pela própria natureza incompreensível67 Pois estas coisas são tais que cada um deve experimentálas em si mesmo em vez de persuadirse delas pelo raciocínio mas vós pareceis não cuidar e não notar a maneira pela qual o espírito age no interior de si mesmo Não sejais então livres se esta liberdade não vos apraz grifo nosso68 Pode ser tentador aqui retorquir que o Cogito cartesiano certamente nada mais é do que uma ação do espírito no interior de si mesmo mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova como um mero dado da consciência O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o volo me velle mesmo em Descartes que era um voluntarista Será que aprazia menos aos pensadores profissionais ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante a liberdade do que a necessidade Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade dentro de nós ou enfraquecer a liberdade conciliandoa com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente especulativas já que não podem apelar para qualquer experiência A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal Desse modo Santo Agostinho inicia seu tratado De libero arbítrio voluntatis O livrearbítrio da vontade com a seguinte questão Digame por favor se não é Deus o autor do mal Tratase de uma questão primeiramente levantada em toda sua complexidade por São Paulo na Epístola aos romanos e em seguida generalizada para qual é a causa do mal com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem Todo esse problema atormentou os filósofos e suas tentativas de resolvêlo nunca tiveram muito sucesso via de regra seus argumentos fogem ao assunto em sua gritante simplicidade Ou negase que o mal é verdadeiramente real ele existe apenas como modalidade deficiente do bem ou se descarta o mal com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica o problema está em nosso intelecto limitado que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que somente o todo é na verdade real nur das Ganze hat eigentliche Wirklichkeif nas palavras de Hegel O mal não sendo nisso diferente da liberdade parece pertencer àquelas coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada69 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito Se olharmos para esse registro com olhos não embaçados por teorias e tradições religiosas ou seculares é certamente difícil escapar à conclusão de que os filósofos parecem geneticamente incapazes de aprender a lidar com certos fenômenos do espírito e com sua posição no mundo de que os pensadores não são mais confiáveis para chegar a uma avaliação razoável da Vontade do que foram para chegar a uma avaliação razoável do corpo Mas a hostilidade dos filósofos contra o corpo é muito conhecida e pode ser registrada pelo menos desde Platão Ela não é primordialmente motivada pela falibilidade da experiência sensorial pois esses erros podem ser corrigidos ou pela notória ingovemabilidade das paixões pois estas podem ser domadas pela razão mas sim pela simples e incorrigível natureza de nossas necessidades e desejos corporais O corpo como enfatiza corretamente Platão sempre quer ser cuidado e até mesmo nas melhores condições saúde e prazer por um lado e uma comunidade equilibrada por outro ele interromperá com suas repetidas exigências as atividades do ego pensante nos termos da alegoria da Caverna o corpo forçará o filósofo a retomar do céu das idéias para a Caverna dos assuntos humanos E comum atribuir essa hostilidade ao antagonismo cristão cm relação à came Mas não só essa hostilidade é muito mais antiga como também se pode até argumentar que um dos dogmas cristãos fundamentais a ressurreição da carne diferentemente de especulações mais antigas sobre a imortalidade da alma mantevese em um nítido contraste não só com as crenças gnósticas comuns mas também com as noções da filosofia clássica E claro que o antagonismo do ego pensante com relação à Vontade é de uma espécie bem diferente O conflito aqui se dá entre duas atividades espirituais que parecem incapazes de coexistir Quando produzimos uma volição isto é quando nos concentramos em um projeto futuro não nos retiramos menos do mundo das aparências do que quando estamos seguindo uma linha de pensamento Pensamento e Vontade antagonizamse somente no que afetam nossos estados psíquicos ambos é verdade tomam presente para o nosso espírito o que na realidade está ausente mas o pensamento traz para seu presente duradouro aquilo que ou é ou pelo menos foi enquanto a Vontade estendendose para o futuro movese em uma região em que tais certezas não existem Nosso aparato psíquico a alma em contraposição ao espírito está equipado para lidar com o que vem da região do desconhecido em sua direção por meio da expectativa cujas modalidades principais são esperança e medo Essas duas maneiras de sentir estão intimamente relacionadas uma vez que ambas estão propensas a dar uma guinada em direção a seu aparente oposto e dadas as incertezas desta região tais mudanças são quase automáticas Toda esperança traz consigo um medo e todo medo curase ao tomarse a esperança correspondente Foi por sua natureza mutável instável e inquieta que esses sentimentos foram incluídos pela Antigüidade Clássica entre os males da caixa de Pandora O que a alma exige do espírito nessa situação desconfortável não é tanto um dom profético para prever o futuro e assim confirmar a esperança ou o medo Bem mais tranqüilizadora que as brincadeiras fraudulentas dos adivinhos profetas astrólogos e similaresé a não menos fraudulenta teoria que alega provar que tudo o que é ou vem a ser era para ser na feliz expressão de Gibert Ryle70 O fatalismo que na verdade nenhum filósofo de primeiro ou segundo nível defendeu ou fez muito esforço para atacar realizou no entanto uma carreira assombrosamente bem sucedida no pensamento popular através dos séculos temos de fato nossos momentos de fatalismo como diz Ryle7 e a razão é que não há outra teoria que possa acalmar com tanta eficácia qualquer ímpeto de ação qualquer impulso para fazer um projeto em suma qualquer forma de eu quero Essas vantagens existenciais do fatalismo estão visivelmente esboçadas no tratado de Cícero Sobre o destino que é ainda hoje a argumentação clássica sobre a questão Para a proposição tudo está predestinado ele usa o seguinte exemplo quando adoecemos já está predestinado se vamos ou não nos recuperar quer chamemos um médico quer não72 e é claro que também estaria predestinado se iremos ou não chamar um médico Por conseguinte o argumento leva a um infinito regresso73 Designado como argumento vão ele é rejeitado porque obviamente levaria à completa extinção de toda a ação na vida Seu grande atrativo é que por meio dele o espírito liberase de toda necessidade de movimento74 Em nosso contexto o interesse da proposição reside no fato de que ela consegue extinguir totalmente o tempo verbal futuro assimilandoo ao passado O que será ou poderá ser era para ser pois tudo o que será se vai mesmo ser não pode ser concebido como se fosse para não ser quicquidfuturum est id intelligi non potest si futurum sit nonfuturum esse como disse Leibniz75 O caráter tranqüilizador da formulação vem do que Hegel chamou de a calma do passado die Ruhe der Vergangenheif16 uma calma assegurada pelo fato de que o que passou não pode ser desfeito e que a Vontade não pode querer retroativamente77 Não é o futuro enquanto tal mas o futuro como projeto da Vontade que nega o que é dado Em Hegel e Marx o poder da negação cujo motor faz avançar a História deriva da habilidade que a Vontade pode ter para realizar um projeto o projeto nega o agora e o passado ameaçando assim o presente duradouro do ego pensante Uma vez que o espírito retirado do mundo das aparências traz para sua própria presença aquilo que está ausente o que já não é mais assim como o que não é ainda é como se o passado e o futuro pudessem unirse em um denominador comum podendo assim ser salvos juntos do fluxo do tempo Mas o nunc starts a lacuna entre o passado e o futuro em que localizamos o ego pensante embora possa absorver aquilo que não é mais sem qualquer perturbação do mundo exterior já não pode responder com a mesma serenidade a projetos que a vontade produz para o futuro Toda volição ainda que seja uma atividade do espírito relacionase com o mundo das aparências no qual seu projeto deve realizarse em contraste flagrante com o pensamento nenhum querer jamais se faz por si mesmo ou encontra satisfação na própria atividade Qualquer volição não só envolve particulares como também e isto é de grande importância anseia por seu próprio fim o momento em que o querer algo terá se transformado no fazêlo Em outras palavras o humor habitual do ego volitivo é a impaciência a inquietude e a preocupação Sorge não somente porque a alma reage ao futuro com esperança e medo mas também porque o projeto da vontade pressupõe um euposso que não está absolutamente garantido A inquietação preocupada da Vontade só pode ser apaziguada por um euqueroefaço isto é por uma interrupção de sua própria atividade e liberação do espírito de sua dominação Em resumo a Vontade sempre quer fazer algo menosprezando assim implicitamente o pensamento puro cuja atividade depende totalmente de não fazer nada Veremos quando examinarmos a história da Vontade que nunca um teólogo ou filósofo exaltou a doçura da experiência do ego volitivo doçura que os filósofos costumavam exaltar na experiência do ego pensante Há duas exceções importantes Duns Scotus e Nietzsche que entendiam a Vontade como uma espécie de poder voluntas estpotentia quia ipsa aliquidpotest Ou seja o ego volitivo comprazse consigo mesmo condelectari sibi a ponto de o euquero antecipar um euposso o euqueroeeuposso é o prazer da Vontade78 Quanto a este aspecto que vamos chamar de tonalidade das atividades do espírito a habilidade que a vontade tem de tomar presente o ainda não é exatamente oposta à lembrança A lembrança tem uma afinidade natural com o pensamento todo pensamento como dissemos é um re pensar Cadeias de pensamento surgem naturalmente da atividade de relembrar quase de forma automática sem que haja qualquer interrupção Essa é a razão pela qual a anamnesis em Platão pôde tornarse uma hipótese tão plausível para a capacidade humana de aprender e a razão pela qual Santo Agostinho pôde equacionar de maneira tão convincente espírito e memória A lembrança pode afetar a alma com um anseio pelo passado mas essa nostalgia embora possa conter dor e pesar não perturba a serenidade do espírito pois envolve coisas que estão além de nosso poder de mudar O ego volitivo ao contrário olhando para frente e não para trás lida com coisas que estão em nosso poder mas cuja realização não está absolutamente assegurada A tensão daí resultante em contraposição à excitação bastante estimulante que pode acompanhar as atividades de resolução de problemas causa uma espécie de inquietação na alma que beira facilmente a confusão uma mistura de medo e esperança que se toma insuportável quando se descobre que na formulação de Santo Agostinho querer e ser capaz de realizar velle e posse não são a mesma coisa A tensão pode ser superada somente pelo fazer isto é pela desistência da atividade espiritual como um todo uma mudança do querer para o pensar produz apenas uma paralisação temporária da vontade exatamente como uma mudança do pensar para o querer é sentida pelo ego pensante como uma paralisação temporária da atividade do pensamento Para falar em termos de tonalidade isto é em termos do modo como o espírito afeta a alma e produz seus humores independentemente dos acontecimentos externos criando assim uma espécie de vida do espírito o humor predominante do ego pensante é a serenidade o simples prazer de uma atividade que nunca tem que superar a resistência da matéria A medida que essa atividade está intimamente ligada à lembrança seu humor inclinase para a melancolia segundo Kant e Aristóteles o humor característico do filósofo O humor predominante da Vontade é a tensão que arruina a tranqüilidade do espírito a animi tranquilitas de Leibniz na qual segundo ele todos os filósofos sérios insistem79 e que foi por ele mesmo encontrada em cadeias de pensamento que provavam ser este o melhor dos mundos possíveis Desse ângulo a única tarefa que resta à Vontade é na verdade querer não querer uma vez que todo ato voluntário só pode interferir na harmonia universal do mundo em que tudo o que é visto da perspectiva do Todo é o melhor80 Assim Leibniz com uma consistência admirável chega à conclusão de que o pecado de Judas não está em sua traição a Jesus mas em seu suicídio ao condenarse ele condenou implicitamente o todo da criação de Deus ao odiarse ele odiou o Criador81 Encontramos o mesmo pensamento na sua versão mais radical em uma das sentenças condenadas do Mestre Eckhart Tenha um homem cometido mil pecados mortais se teve uma intenção correta não deve desejar não os ter cometido Wenn jemand tausend Todsünden begangen hãtte dilrfte er ware es recht um ihn bestellt nicht wollen sie nicht begangen zu haben2 Podemos nos permitir conjecturar que esta rejeição surpreendente do arrependimento por parte de dois pensadores cristãos em Eckhart foi motivada por uma superabundância de fé que exigia à maneira de Jesus que o pecador perdoasse a si mesmo assim como se esperava que perdoasse aos outros sete vezes ao dia porque a alternativa seria declarar que teria sido melhor não só para ele como também para toda a Criação nunca ter nascido Que uma mó fosse pendurada em seu pescoço e que fosse lançado ao mar enquanto que em Leibhiz podemos vêla como uma vitória final do ego pensante sobre o ego volitivo porque a vã tentativa que este último faz de querer retroativamente quando bem sucedida poderia apenas resultar na aniquilação de tudo o que é 6 A solução de Hegel a filosofia da História Nenhum filósofo descreveu o ego volitivo em seu confronto com o ego pensante com maior simpatia insight e significação para a história do pensamento do que Hegel Temos aqui um assunto um tanto complexo não somente pela terminologia esotérica e altamente idiossincrática de Hegel mas também porque ele trata o problema todo no decorrer de suas especulações sobre o tempo e não nas escassas embora de modo algum insignificantes passagens na Fenomenologia do Espírito na Filosofia do Direito e na Filosofia da História que lidam diretamente com a Vontade Tais passagens foram reunidas e interpretadas por Alexandre Koyré em um ensaio pouco conhecido e muito importante publicado em 1934 sob o título enganador Hegel à léna63 dedicado aos textos fundamentais de Hegel sobre o tempo do Jenenser Logik e Jenenser Realphilosophie da fase inicial à Fenomenologia à Enciclopédia e aos vários manuscritos pertencentes à Filosofia da História A tradução e os comentários de Koyré tornaramse a fonte e a base da interpretação altamente influente da Fenomenologia feita por Alexandre Kojève84 Acompanharei de perto a seguir a argumentação de Koyré A tese central é de que a maior originalidade de Hegel está em sua insistência no futuro na primazia atribuída ao futuro em relação ao passado85 Isso não nos surpreendería se não se referisse a Hegel Por que um pensador do século XIX tendo em comum com seus predecessores dos séculos XVII e XVIII e com seus contemporâneos a confiança no progresso não haveria de chegar também à conclusão apropriada atribuindo ao futuro a primazia sobre o passado Afinal o próprio Hegel disse que todo mundo é filho de seu próprio tempo e portanto a filosofia é seu tempo compreendido em pensamento Mas ele também disse no mesmo contexto que entender o que existe é a tarefa da filosofia pois o que existe é razão ou o que épensadoé e o que é existe somente à medida que é pensamento gedacht ist ist und was ist ist nur insofern es Gedanke ist16 E é nessa premissa que está baseada a mais importante e decisiva contribuição de Hegel Pois Hegel é acima de tudo o primeiro pensador a conceber uma filosofia da história isto é do passado reunido pelo olhar retrospectivo do ego pensante e rememorativo ele é internalizado er innert tomase parte inseparável do espírito através do esforço do conceito dieAnstrengung desBegriffs e desta maneira intemalizadora alcança a reconciliação entre Espírito e Mundo Já houve maior triunfo do ego pensante do que o representado neste panorama Nessa retirada do mundo das aparências o ego pensante não tem mais que pagar o preço da falta de atenção e da alienação do mundo Segundo Hegel o espírito por simples força de reflexão pode assimilar para si sugar para si por assim dizer certamente não todas as aparências mas qualquer coisa que nelas tenha tido significado considerando tudo o que não é assimilável como acidente irrelevante sem significação para o curso da História ou para a linha do pensamento discursivo A primazia do passado entretanto como Koyré descobriu desaparece inteiramente quando Hegel passa a discutir o Tempo para ele acima de tudo o tempo humano87 cujo fluxo o homem inicialmente por assim dizer experimenta sem pensar como puro movimento até que acontece de ele refletir sobre os acontecimentos exteriores A atenção do espírito fica então dirigida essencialmente para o futuro isto é para o tempo que está no processo de vir em nossa direção como indica conforme já foi dito o termo alemão Zukunft vindo de zu kommen semelhante ao francês avenir cuja origem é à venir e esse futuro antecipado nega o presente permanente do espírito transformandoo em um nãomais antecipado Nesse contexto a dimensão dominante do tempo é o futuro que ganha prioridade sobre o passado O Tempo encontra sua verdade no futuro já que é o futuro que terminará e realizará o Ser Mas o Ser terminado e realizado pertence como tal ao Passado88 Essa reversão da seqüência de tempo mais comum passadopresentefuturo é causada pela negação que o homem faz de seu presente ele diz não ao seu Agora criando assim seu próprio futuro89 O próprio Hegel não menciona a Vontade nesse contexto nem tampouco Koyré mas parece óbvio que a faculdade que está por trás do espírito que nega não é o pensar mas o querer e que a descrição de Hegel do tempo experimentado humanamente relacionase à seqüência de tempo adequada ao ego volitivo E adequada porque o ego volitivo quando produz seus projetos vive de fato para o futuro Nas famosas palavras de Hegel a razão pela qual o presente o Agora não pode resistir ao futuro não é absolutamente a inexorabilidade com a qual cada hoje é seguido por um amanhã pois esse amanhã quando não projetado e dominado pela Vontade poderia ser simplesmente uma repetição do que se passou antes coisa que de fato acontece com freqüência o hoje é na própria essência ameaçado somente pela interferência do espírito que o nega e através da Vontade convoca o aindanão que está ausente cancelando espiritualmente o presente ou melhor considerando o presente como aquele espaço de tempo efêmero cuja essência é não ser O Agora é vazio ele se preenche no futuro O futuro é sua realidade91 Do ponto de vista do ego volitivo o futuro está diretamente dentro do presente pois nele está contido como seu fato negativo O Agora é tanto o ser que desaparece quanto o nãoser que se converte em Ser91 A medida que o eu se identifica com o ego volitivo e veremos que esta identificação é proposta por alguns dos voluntaristas que derivam o principium individuationis da faculdade da vontade ele existe em uma transformação contínua de seu próprio futuro em um Agora e pára de ser no dia em que não há mais futuro quando não há mais nada por vir le jour ou ilny a plus davenir ou rien nest plus à venir quando tudo chegou e tudo está realizado92 Vista da perspectiva da Vontade a velhice consiste no encolhimento da dimensão de futuro e a morte do homem significa menos o seu desaparecimento do mundo das aparências do que sua perda final de um futuro Essa perda no entanto coincide com a realização máxima da vida do indivíduo que em seu fim tendo escapado à mudança incessante do tempo e à incerteza de seu próprio futuro abrese para a tranqiiilidade do passado e deste modo para o exame para a reflexão e para o olhar retrospectivo do ego pensante em sua busca de significado Assim do ponto de vista do ego pensante a velhice nas palavras de Heidegger é o tempo da meditação ou nas palavras de Sófocles é o tempo de paz e liberdade93 libertação do estado de sujeição não só às paixões do corpo como também à paixão devoradora que o espírito impõe à alma à paixão da vontade chamada ambição Em outras palavras o passado começa com o desaparecimento do futuro em tal tranquilidade o ego pensante afirmase Mas isso só acontece quando tudo chega ao seu final quando o Devir em cujo processo o Ser se desdobra e desenvolve é interrompido Pois a inexorabilidade é a base do Ser94 é o preço pago pela Vida assim como a morte ou melhor a antecipação da morte é o preço pago pela tranqüilidade E a inexorabilidade daquilo que vive não vem da contemplação do cosmos ou da história não é o efeito de movimento externo o movimento incessante das coisas naturais ou os altos e baixos incessantes dos destinos humanos está localizada e é engendrada no espírito do homem Aquilo que em um pensamento existencial posterior transformouse na noção de autoprodução do espírito humano pode ser encontrado em Hegel como a autoconstituição do Tempo95 o homem não é só temporal ele é o Tempo Sem o homem poderia haver movimentação e movimento mas não haveria Tempo Nem poderia haver se o espírito humano fosse equipado somente para pensar para refletir sobre o que é dado sobre aquilo que é e não poderia ser outro se fosse assim o homem viveria espiritualmente em um eterno presente Seria incapaz de se dar conta de que ele mesmo um dia não foi e de que um dia não será mais isto é ele seria incapaz de compreender o que significa para ele existir E pela visão que Hegel tem do espírito humano como produtor do tempo que tem lugar a sua outra e mais óbvia identificação entre lógica e história e esta identificação é na verdade como apontou há muito tempo Léon Brunschvicg um dos pilares essenciais de seu sistema96 Mas em Hegel o espírito produz o tempo somente em virtude da Vontade seu órgão para o futuro e o futuro nesta perspectiva é também a fonte do passado já que o futuro é engendrado espiritualmente pela antecipação feita pelo espírito de um segundo futuro em que o euserei imediato terá se transformado em eutereisido Nesse esquema o passado é produzido pelo futuro e o pensamento que contempla o passado é o resultado da Vontade Porque a vontade em última instância antecipa a frustração final dos projetos da vontade que é a morte tais projetos também um dia terão sido Pode ser interessante notar que Heidegger também diz Die Gewesenheit entspringt in gewisser Weise der Zukunft o passado o tersido em um certo sentido tem sua origem no futuro97 Em Hegel o homem não se distingue das outras espécies animais por ser um animal rationale mas por ser a única criatura viva que sabe de sua própria morte E nesse ponto máximo da antecipação feita pelo ego volitivo que o ego pensante se constitui Na antecipação da morte os projetos da vontade tomam a aparência de um passado antecipado e sendo assim podem tomarse objeto de reflexão e é neste sentido que Hegel sustenta que somente o espírito que não ignora a morte capacita o homem para dominar a morte resistir a ela e preservarse dentro dela98 Para usar as palavras de Koyré no momento em que o espírito se depara com o próprio fim o movimento incessante da dialética temporal é interrompido e o tempo se preenche este tempo preenchido cai natural e inteiramente no passado o que significa que o futuro perdeu seu poder sobre ele e ficou pronto para o presente permanente do ego pensante Assim ocorre que o verdadeiro Ser do futuro deve ser o Agora99 Mas em Hegel este nunc stans não é mais temporal é um nunc aeternitatis já que a eternidade para Hegel é também a natureza quintessencial do Tempo a imagem de eternidade platônica vista como o eterno movimento do espírito100 O próprio tempo é eterno na união entre Presente Futuro e Passado101 Para simplificar ao máximo se existe algo como a vida do espírito isto devese ao órgão do espírito próprio para o futuro e à inquietude daí resultante se existe algo como a vida do espírito isto devese à morte que prevista como um fim absoluto paralisa a vontade e transforma o futuro em um passado antecipado os projetos da vontade em objetos de pensamento a expectativa da alma em uma lembrança antecipada Assim resumida e supersimplificada a doutrina de Hegel soa bem moderna o primado do futuro em suas especulações sobre o tempo parece estar tão bem sintonizado com a fé dogmática que seu século tinha no Progresso sua mudança do pensamento para a vontade e depois de volta para o pensamento parece uma solução tão engenhosa para o problema que os filósofos modernos tinham para entrar em acordo com a tradição de uma maneira aceitável para a Idade Moderna que é tentador encerrar as considerações sobre o constructo hegeliano encarandoo como contribuição autêntica aos problemas do ego volitivo Apesar disso em suas especulações sobre o tempo Hegel tem um predecessor estranho para quem nada poderia ser mais alheio do que a noção de progresso para quem nada poderia apresentar menos interesse do que descobrir uma lei que governasse os acontecimentos históricos Tratase de Plotino Também ele sustenta que o espírito humano a alma humana psyche é que dá origem ao tempo O tempo é gerado pela natureza hiperativa da alma polypragmon um termo que sugere intensa atividade corporal ansiando por sua própria imortalidade futura a alma busca algo além do seu estado presente e assim movese sempre para um próximo e um depois e para algo que não é o mesmo mas é outra coisa e depois outra mais uma vez Movendonos assim percorremos um bom pedaço de nosso caminho em direção à nossa eternidade futura e construímos o tempo a imagem da eternidade Assim o tempo é a vida da alma uma vez que a propagação da vida envolve o tempo a alma produz a sucessão de tempo juntamente com sua atividade na forma de um pensamento discursivo cuja discursividade corresponde ao movimento que a alma faz ao passar de um modo de ser para outro conseqiientemente o tempo énãoum acompanhamento da alma mas algo que está nelae com elal02Em outras palavras para Plotino assim como para Hegel o tempo é gerado pela inquietude inata do espírito seu estenderse para o futuro seus projetos e sua negação do estado presente E em ambos os casos o preenchimento do tempo é a eternidade ou em termos seculares existencialmente falando a mudança do espírito do querer para o pensar Seja como for há muitas passagens em Hegel que indicam que sua filosofia é menos inspirada nas obras de seus predecessores menos uma reação às opiniões deles menos uma tentativa de resolver problemas de metafísica menos livresca enfim do que os sistemas de quase todos os filósofos pós antigos não apenas os que vieram antes dele mas também os que vieram depois Nos tempos atuais esta peculiaridade foi amiúde reconhecida103 Foi Hegel quem ao construir uma história seqüencial da filosofia que correspondesse à história factual e política algo que antes dele era bastante desconhecido rompeu realmente com a tradição porque ele foi o primeiro grande pensador a levar a história a sério isto é a tomála como geradora de verdade O campo dos assuntos humanos no qual tudo o que é veio a ser através do homem ou dos homens nunca tinha sido levado em tanta consideração por um filósofo E a mudança deveuse a um acontecimento a Revolução Francesa A Revolução admite Hegel pode ter tomado seu primeiro impulso com a filosofia mas a sua significação histórica mundial consiste no fato de que pela primeira vez o homem ousou virarse de cabeça para baixo apoiarse sobre a cabeça e o pensamento e construir a realidade de acordo com ele Nunca desde que o Sol se ergueu no firmamento e os planetas giraram em tomo dele se percebera que a existência do homem está centrada em sua cabeça isto é no pensamento Este foi um glorioso amanhecer espiritual Todos os seres pensantes compartilharam o júbilo dessa época um entusiasmo espiritual vibrou pelo mundo como se a reconciliação entre o Divino e o Secular estivesse sendo então alcançada pela primeira vez104 O que o acontecimento histórico da Revolução mostrou equivaleu para o homem à aquisição a uma nova dignidade tornar públicas as idéias de como uma coisa deve ser feita causará a supressão da letargia da gente presunçosamente ponderada die gesetzten Leute que sempre aceita as coisas como elas são105 Hegel jamais esqueceu essa experiência dos primeiros tempos Ainda dizia em 182930 aos seus alunos Nestes dias de reviravoltas políticas a filosofia encontra seu lugar é aí que o pensamento precede e molda a realidade Pois quando uma forma do Espírito não traz mais satisfação a filosofia presta rapidamente atenção e procura compreender o descontentamento106 Em resumo ele contradiz quase explicitamente seu famoso enunciado sobre a coruja de Minerva no prefácio da Filosofia do Direito O glorioso amanhecer espiritual de sua juventude inspirou e informou toda sua obra do início ao fim Na Revolução Francesa os princípios e pensamentos tinham sido percebidos uma reconciliação ocorrera entre o Divino com que o homem passa o tempo enquanto pensa e o secular os assuntos dos homens Tal reconciliação está no centro de todo o sistema hegeliano Se fosse possível entender a História do Mundo e não somente as histórias de épocas e nações particulares como uma única sucessão de acontecimentos cujo resultado final seria o momento em que o Reino Espiritual se manifestasse extemamente fosse corporificado na vida secular107 então o curso da história não seria mais acidental e o campo dos assuntos humanos não estaria mais destituído de significado A Revolução Francesa provara que a verdade em sua forma viva podia mostrarse nos assuntos do mundo108 Poderseia então considerar cada momento na seqüência histórica do mundo como um era para ser e atribuir à filosofia a tarefa de compreender este plano desde o seu início de sua fonte oculta ou princípio nascente no útero do tempo até sua existência fenomênica presente109 Hegel identifica esse Reino Espiritual com o reino da Vontade110 porque as vontades dos homens são necessárias para trazer à tona o campo espiritual e por esta razão afirma que a Liberdade da Vontade per se isto é a liberdade que a Vontade necessariamente quer é ela mesma absoluta é aquilo por meio de que o Homem se torna Homem e é portanto o princípio fundamental do Espírito111 Na verdade a única segurança se é que se trata de uma segurançade que o objetivo final do desenvolvimento do Espírito do Mundo nos assuntos mundanos deve ser a Liberdade está implícita na liberdade que está implícita na Vontade O insight a que a filosofia deve nos levar então é o de que o mundo real é como deveria ser112 E uma vez que para Hegel a filosofia diz respeito ao que é verdadeiro etemamente nem o Ontem nem o Amanhã mas o Presente enquanto tal o Agora no sentido de uma presença absoluta113 uma vez que o espírito assim como é percebido pelo ego pensante é o Agora enquanto tal a filosofia tem que apaziguar o conflito entre o ego pensante e o ego volitivo Tem que unir as especulações sobre o tempo que fazem parte da perspectiva da Vontade e sua concentração no futuro com o Pensamento e sua perspectiva de um presente que dura A tentativa está longe de ser bem sucedida Como observa Koyré nas frases que concluem seu ensaio a noção hegeliana de um sistema chocase com a primazia que Hegel confere ao futuro Este exige que o tempo nunca termine enquanto haja o homem sobre a Terra ao passo que a filosofia no sentido hegeliano a coruja de Minerva que inicia seu vôo no crepúsculo exige uma interrupção no tempo real e não simplesmente a suspensão do tempo durante a atividade do ego pensante Em outras palavras a filosofia de Hegel poderia reivindicar a verdade objetiva somente sob a condição de que a história estivesse factualmente no fim que a humanidade não tivesse mais futuro que nada que trouxesse algo de novo pudesse ainda ocorrer E Koyré acrescenta É possível que Hegel acreditasse nisso até mesmo que acreditasse que essa condição essencial para uma filosofia da história já fosse uma realidade e que esta fosse a razão pela qual ele próprio foi capaz fora capaz de completála114 Esta é de fato a convicção de Kojève para quem o sistema hegeliano é a verdade e portanto o fim definitivo da filosofia bem como da história O fracasso final de Hegel em conciliar as duas atividades do espírito pensar e querer com os seus conceitos de tempo opostos pareceme evidente mas ele próprio teria discordado o pensamento especulativo é precisamente a unidade de pensamento e tempo115 não lida com o Ser mas com o Devir e o objeto do espírito pensante não é o Ser mas um Devir intuído6 O único movimento que pode ser intuído é um movimento que gira em um círculo que forma um ciclo que retoma sobre si mesmo que pressupõe o seu começo e chega ao seu começo somente no fim Este conceito cíclico de tempo como vimos está em perfeita harmonia com a filosofia grega clássica enquanto a filosofia pósclássica seguida da descoberta da Vontade como a fonte principal do espírito para a ação exige um tempo retilíneo sem o qual o Progresso seria impensável Hegel encontra a solução para esse problema isto é descobre como transformar os círculos em uma linha progressiva admitindo que existe algo por trás de todos os membros individuais da espécie humana e que este algo chamado Humanidade é na verdade uma espécie de alguém que ele chamou de Espírito do Mundo para ele não uma simples coisapensamento mas uma presença corporificada encarnada na Humanidade assim como o espírito de um homem está encarnado em seu corpo Esse Espírito do Mundo corporificado na Humanidade em contraposição a diferentes indivíduos e a nações particulares leva a cabo um movimento retilíneo inerente à sucessão de gerações Cada geração nova forma uma nova fase de existência um novo mundo e assim tem que começar tudo outra vez mas começa em um nível mais alto porque sendo humana e dotada de espírito ou seja de Lembrança conservou a experiência anterior grifo nosso117 Tal movimento no qual as noções retilínea e cíclica de tempo são conciliadas ou unidas formando uma Espiral não se baseia nem nas experiências do ego pensante nem nas do ego volitivo é o movimento não experienciado do Espírito do Mundo que constitui o Geisterreich o domínio dos espíritos assumindo forma definida na existência por meio de uma seqüência em que um se desprende do outro soltandoo e em que cada um toma de seu predecessor o império do mundo espiritual1 IS Esta é sem dúvida uma solução muito engenhosa para o problema da Vontade e é sua reconciliação com o pensamento puro Mas tal solução é alcançada com prejuízo de ambos da experiência do ego pensante de um presente duradouro e da insistência do ego volitivo na primazia do futuro Em outras palavras não é mais do que uma hipótese Além do mais a plausibilidade da hipótese depende inteiramente da pressuposição da existência de um Espírito do Mundo a governar a pluralidade das vontades humanas e a orientálas na direção de uma significação que surja da necessidade da razão ou seja falando em termos psicológicos do desejo bastante humano de viver em um mundo que é como deveria ser Encontramos uma solução semelhante em Heidegger cujos insights sobre a natureza da vontade são incomparavelmente mais profundos e cuja antipatia por essa faculdade é ostensiva e constitui a verdadeira reviravolta Kehre do último Heidegger não é a vontade humana a origem da vontade de querer mas a Vontade quer que o homem queira sem experimentar o que a Vontade é119 É apropriado que se façam algumas observações técnicas tendo em vista a renovação do interesse por Hegel nas últimas décadas renovação em que tiveram seu papel alguns pensadores altamente qualificados O engenho do movimento dialético triádico de Tese para Antítese para Síntese impressiona especialmente quando aplicado à noção moderna de Progresso Embora o próprio Hegel acreditasse em uma interrupção no tempo em um fim da história que permitisse ao espírito intuir e conceituar todo o ciclo do Devir este movimento dialético visto em si mesmo parece assegurar um progresso infinito à medida que o primeiro movimento de Tese para Antítese resulta em uma Síntese a qual imediatamente estabelece uma nova Tese Embora o movimento original não seja de forma alguma progressivo mas gire para trás e retorne sobre si o movimento de Tese para Tese se estabelece por trás desses ciclos e constitui um linha retilínea de progresso Querendo visualizar o tipo de movimento teremos como resultado a seguinte figura Progresso Infinito Síntese Tese Síntese Tese Antítese Síntese Tese Antítese Síntese Tese Tese Antítese Antítese A vantagem desse esquema como um todo é que ele assegura o progresso e sem quebrar o contínuo do tempo pode ainda dar conta do inegável fato histórico da ascensão e queda das civilizações A vantagem do elemento cíclico em particular é que ele nos permite ver cada fim como um novo começo Ser e Nada são a mesma coisa a saber Devir Uma direção é a Dissipação o Ser passa a Nada mas o Nada é do mesmo modo o seu próprio oposto uma transição para o Ser isto é Surgimento120 Além disso a própria infinitude do movimento embora de alguma forma em conflito com outras passagens hegelianas está em perfeita harmonia com o conceito de tempo do ego volitivo e com a primazia que ele dá ao futuro sobre o presente e o passado A Vontade que não se subjuga à Razão e à sua necessidade de pensar nega o presente e o passado mesmo quando o presente a confronta com a realização de seus próprios projetos Isolada a Vontade do homem preferiría querer o Nada a não querer como observou Nietzsche121 e a noção de um progresso infinito implicitamente nega todo objetivo e admite fins somente como meios para burlarse a si mesma 122 Em outras palavras o famoso poder de negação inerente à Vontade e concebido como o motor da História não somente em Marx mas portanto já em Hegel é uma força aniquilante que poderia resultar tanto em um processo de aniquilação permanente quanto em um Progresso Infinito O motivo pelo qual Hegel pôde construir o movimento Histórico Mundial em termos de uma linha ascendente traçada pela astúcia da Razão que atua por trás dos homens de ação encontrase em minha opinião em seu pressuposto jamais questionado de que o próprio processo dialético começa do Ser supõe o Ser em contraposição àcreatio exnihilo em sua marcha em direção ao NãoSer e ao Devir O Ser inicial empresta a todas as outras transições a sua realidade seu caráter existencial e impede que elas caiam no abismo do NãoSer É somente porque sucede no Ser que o NãoSer contém sua relação com o Ser tanto o Ser quanto sua negação são simultaneamente afirmados e essa afirmação é o Nada tal como existe no Tornarse Hegel justifica seu ponto de partida invocando Parmênides e o início da filosofia isto é identificando lógica e história rejeitando tacitamente desse modo a Metafísica Cristã mas basta fazer uma experiência com o pensamento de um movimento dialético que comece do NãoSer para se perceber que nenhum Devir jamais poderia surgir daí o NãoSer no início aniquilaria tudo o que foi gerado Hegel tem bastante consciência disso sabe que sua proposição apodítica de que não há no céu ou na terra qualquer coisa que não contenha tanto Ser quanto Nada baseia se no pressuposto sólido da primazia do Ser que por sua vez simplesmente corresponde no fato de que o puro nada isto é uma negação que não nega algo específico e particular é impensável Só o que podemos pensar é em um Nada do qual Algo está para se originar de modo que o Ser esteja já contido no Começo123 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade Em minha discussão sobre o Pensamento utilizei o termo falácias metafísicas mas sem tentar refutálas como se fossem o simples resultado de erro lógico ou científico Ao invés disso procurei demonstrar sua autenticidade derivandoas das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o mundo das aparências Como vimos o ego pensante retirase temporariamente deste mundo sem nunca chegar a deixálo de todo porque está incorporado a um eu corpóreo a uma aparência entre aparências As dificuldades que cercam qualquer discussão sobre a Vontade têm uma semelhança óbvia com aquilo que consideramos verdadeiro nessas falácias isto é com o fato de que provavelmente são causadas pela natureza dessa própria faculdade Enquanto a descoberta da razão e de suas peculiaridades coincidiu com a descoberta do espírito e com o início da filosofia a faculdade da Vontade só se tomou manifesta muito mais tarde A questão que irá nos orientar será portanto a seguinte que experiências fizeram com que os homens tomassem consciência de que eram capazes de constituir volições A investigação da história de uma faculdade pode facilmente ser confundida com um esforço para acompanhar a história de uma idéia como se nós aqui por exemplo estivéssemos interessados na história da Liberdade ou confundíssemos a Vontade com uma mera idéia que poderia então ser tomada como um conceito artificial Ryle inventado para resolver problemas artificiais1 As idéias são coisaspensamento artefatos do espírito que pressupõem a identidade de um artífice e supor que exista uma história das faculdades do espírito distintas dos produtos do espírito parece o mesmo que supor que o corpo humano que é um corpo que fabrica e usa ferramentas sendo a ferramenta primordial a mão humana está tão sujeito a mudanças produzidas pela invenção de novas ferramentas e utensílios quanto o ambiente que nossas mãos não param de remodelar Sabemos que não é esse o caso Poderia ser diferente com nossas faculdades do espírito Poderia o espírito adquirir novas faculdades no curso da história A falácia que subjaz a essas questões reside em uma identificação quase automática do espírito com o cérebro É o espírito que determina a existência tanto dos objetos de uso quanto das coisaspensamento e assim como o espírito daquele que faz objetos de uso é um espírito de ferramenteiro isto é o espírito de um corpo cjptado de mãos também o espírito que origina pensamentos e os reifica em coisaspensamento ou idéias é o espírito de uma criatura dotada de um cérebro humano e de potência cerebral O cérebro a ferramenta do espírito não está mais sujeito a mudanças operadas pelo desenvolvimento de novas faculdades espirituais do que a mão humana pela invenção de novas ferramentas ou pela mudança enorme e tangível que realizam em nosso meio ambiente Mas o espírito do homem seus interesses e suas faculdades é afetado tanto pelas mudanças no mundo cuja significação ele examina quanto e talvez de forma até mais decisiva por suas próprias atividades Todas estas têm natureza reflexiva maior como veremos no caso das atividades do ego volitivo e contudo jamais poderíam funcionar bem sem a ferramenta imutável da potência cerebral o mais precioso talento de que o corpo dotou o animal humano O problema que está diante de nós é bastante conhecido em história da arte em que ele é chamado de enigma do estilo isto é o simples fato de que diferentes épocas e diferentes nações tenham representado o mundo visível de modos tão diferentes E surpreendente que isso possa ter acontecido na ausência de quaisquer diferenças físicas e é talvez ainda mais surpreendente que não tenhamos a menor dificuldade em reconhecer as realidades para as quais apontam mesmo quando as convenções de representação que adotamos são completamente diferentes2 Em outras palavras o que muda através dos séculos é o espírito humano e embora essas mudanças sejam muito acentuadas tanto que podemos datar os produtos de acordo com o estilo e a origem nacional com grande precisão elas também se limitam rigorosamente pela natureza imutável dos instrumentos de que o corpo humano é dotado Na linha dessas reflexões começaremos por nos perguntar como a filosofia grega lidou com fenômenos e dados da experiência humana que nossas convenções pósclássicas acostumaramse a atribuir à Vontade como fonte principal da ação Para tal voltamonos para Aristóteles e isso por duas razões Há em primeiro lugar o simples fato histórico da influência decisiva que a análise aristotélica da alma exerceu sobre todas as filosofias da Vontade exceto no caso de São Paulo que como veremos contentavase com simples descrições e recusavase a filosofar sobre suas experiências Há em segundo lugar o fato não menos indubitável de que nenhum outro filósofo grego chegou tão perto de reconhecer a estranha lacuna de que falamos na língua e no pensamento grego e pode portanto servir como um primeiro exemplo de como certos problemas psicológicos podiam ser resolvidos antes de a Vontade ser descoberta como uma faculdade autônoma do espírito O ponto de partida das reflexões de Aristóteles sobre o assunto é o insight antiplatônico de que a razão por si só não move coisa alguma3 A questão portanto que orienta sua investigação é a seguinte O que é que na alma origina o movimento4 Aristóteles admite a noção platônica de que a razão dá ordens keleuei porque sabe o que se deve buscar e o que se deve evitar mas nega que essas ordens sejam necessariamente obedecidas O homem incontinente seu exemplo paradigmático ao longo de toda essa investigação segue seus desejos independentemente das ordens da razão Por outro lado por recomendação da razão podese resistir a esses desejos Logo tampouco os desejos têm uma força inerente em si por si sós não originam movimento Aqui Aristóteles está lidando com um fenômeno que mais tarde depois da descoberta da Vontade aparece como a distinção entre vontade e inclinação A distinção vem a tomarse a pedra angular da ética kantiana mas aparece primeiramente na filosofia medievalpor exemplo na distinção de Mestre Eckhart entre a inclinação para pecar e a vontade de pecar não sendo a inclinação um pecado o que deixa a própria questão dos atos maus completamente sem explicação Se nunca fiz o mal mas apenas tive a vontade do mal tratase de um pecado tão grande quanto matar todos os homens embora eu não tenha feito nada5 Ainda assim em Aristóteles o desejo guarda uma prioridade na origem do movimento que se dá por um jogo entre a razão e o desejo E o desejo de um objeto ausente que estimula a entrada em cena da razão calculando as melhores formas e meios de obter o objeto Aristóteles chama essa razão que calcula de nouspratikos razão prática diferente da nous theoretikos razão especulativa ou pura a primeira está interessada somente no que depende exclusivamente dos homens eph hemin em coisas que estão em seu poder e que são portanto contingentes enquanto a razão pura interessase somente pelas coisas cuja modificação está além do poder humano A razão prática é necessária para vir em auxílio do desejo sob certas condições O desejo é influenciado pelo que está bem à mão sendo portanto facilmente alcançável uma sugestão contida na própria palavra usada para apetite ou desejo orexis cujo significado primário vindo de orego indica a ação de esticar a mão para pegar alguma coisa próxima Somente quando a satisfação de um desejo reside no futuro e tem que levar em conta o fator tempo é que a razão prática fazse necessária e é estimulada por este desejo No caso da incontinência o que leva a ela é a força do desejo pelo que está perto e aqui a razão prática irá intervir por interesse nas conseqüências futuras Mas os homens não desejam somente o que está à mão são capazes de imaginar objetos de desejo que para serem obtidos tomam necessário o cálculo dos meios apropriados E esse objeto futuro imaginado que estimula a razão prática no que diz respeito ao movimento daí resultante ao ato em si o objeto desejado é o início enquanto para o processo de cálculo esse mesmo objeto é o fim do movimento Parece que o próprio Aristóteles considerou esse esboço de relação entre a razão e o desejo insatisfatório para explicar adequadamente a ação humana Porque ela se baseia ainda embora com modificações na dicotomia platônica entre razão e desejo No primeiro Protreptikos Aristóteles dera a seguinte interpretação Uma parte da alma é a Razão É ela a soberana e juíza natural das coisas que nos dizem respeito A natureza da outra parte é seguila e submeterse a seu jugo6 Veremos mais adiante que dar ordens está entre as características principais da Vontade Em Platão a razão podia assumir essa função por causa do pressuposto de que a razão diz respeito à verdade e a verdade de fato compele Mas a razão em si à medida que leva à verdade é persuasiva e não imperativa no diálogo sem som do pensamento de mim comigo mesmo somente aqueles que não são capazes de pensar precisam ser constrangidos Dentro da alma humana a razão só se toma um princípio governante e comandante por causa dos desejos que são cegos e destituídos de razão e que devem supostamente portanto obedecer cegamente Essa obediência é necessária para a tranqüilidade do espírito a harmonia imperturbável do doisemum que é assegurada pelo princípio da nãocontradição não se contradiga permaneça amigo de si mesmo todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma7 Quando o desejo não se submete às ordens da razão o resultado em Aristóteles é o homemvil que se contradiz e está em desacordo consigo mesmo diapherein Os homens maus esquivamse à própria vida destruindo a si mesmos incapazes de suportar a própria companhia ou buscam a companhia de outras pessoas com quem possam passar seus dias mas evitam a própria companhia Pois quando estão sozinhos lembramse de muitos acontecimentos que causam desassossego mas enquanto estão com outros podem esquecer Não têm nenhuma amizade por si mesmos sua alma é dividida por forças contrárias uma parte arrastaos para um lado a outra para outro como se quisessem esquartejar o indivíduo Os homens maus estão repletos de arrependimentos8 Essa descrição do conflito interno um conflito entre razão e apetites pode funcionar na explicação da conduta nesse caso a conduta ou melhor a máconduta do homem incontinente Não explica a ação o tópico da ética aristotélica pois a ação não é a simples execução das ordens da razão ela é em si uma atividade da razão embora não seja uma atividade da razão teórica mas daquilo que no tratado Sobre a alma chamase nous praktikos razão prática Nos tratados éticos ela é chamada phronesis uma espécie de insight e entendimento das coisas que são boas ou ruins para os homens um tipo de sagacidade nem sabedoria nem inteligência necessária nos assuntos humanos que Sófocles seguindo o que era de costume atribuiu à velhice9 e que Aristóteles transformou em conceito Phronesis é uma exigência em qualquer atividade que envolva coisas cujo alcance está no poder do homem Tal sentido prático orienta também a produção e as artes mas estas têm outro fim que não elas mesmas enquanto a ação é em si mesma um fim11 A distinção é a diferença entre o flautista para quem tocar é um fim em si e quem faz a flauta cuja atividade é somente um meio e tem de chegar a um fim quando a flauta é produzida Há então algo que se chama eupraxia a ação bem feita e consideravase que fazer alguma coisa bem independentemente de suas consequências é fazer uma coisa entre as aretai as excelências ou virtudes aristotélicas As ações desse tipo também são movidas não pela razão mas pelo desejo não se trata contudo de desejo de um objeto de um o que que posso pegar compreender e usar de novo como um meio para outro fim o desejo é de um como um modo de desempenhar uma excelência de aparência na comunidade a região que é própria dos assuntos humanos Muito mais tarde mas bem dentro do espírito aristotélico Plotino diria o seguinte conforme a paráfrase de um intérprete recente O que está realmente em poder do homem no sentido de ser aquilo que depende inteiramente dele é a qualidade de sua conduta to kalos o homem obrigado a lutar ainda está livre para lutar com bravura ou com covardia11 A ação no sentido do modo como os homens querem aparecer exige um plano anterior deliberado para o qual Aristóteles inventa um novo termo proairesis escolha no sentido de preferência entre alternativas uma em vez da outra Os archai começos e princípios dessa escolha são desejo e logos o logos fornecenos o propósito pelo qual agimos a escolha tomase o ponto de partida das próprias ações12 A escolha é uma faculdade intermediária inserida por assim dizer na dicotomia mais antiga entre razão e desejo e suaprincipal função é mediar a relação entre os dois O oposto da escolha deliberada ou da preferência é o pathos paixão ou emoção como diriamos no sentido de sermos motivados por algo que sofremos Assim um homem pode cometer o adultério por paixão e não porque deliberadamente preferiu o adultério à castidade pode ter roubado sem ser um ladrão13 A faculdade da escolha é necessária sempre que os homens agem com um propósito heneka tinos à medida que os meios têm que ser escolhidos mas o propósito em si a finalidade última do ato em razão da qual ele foi iniciado não se abre à escolha A finalidade última dos atos humanos é eudaimonia a felicidade no sentido de bemviver que todos os homens desejam todos os atos não passam de meios diferentes escolhidos para se chegar a isso A relação entre os meios e os fins quer na ação quer na fabricação é que todos os meios são igualmente justificáveis por seus fins o problema moral específico na relação meiofim se todos os fins justificam os meiosjamais é mencionado por Aristóteles O elemento de razão na escolha é chamado deliberação e nunca deliberamos a respeito de fins mas somente sobre os meios de obtêlos14 Ninguém escolhe ser feliz escolhe sim ganhar dinheiro ou correr riscos com o propósito de ser feliz15 É na Ética a Eudemio que Aristóteles explica de uma maneira mais concreta por que achou necessário inserir uma nova faculdade em meio à velha dicotomia resolvendo assim a antiga disputa entre a razão e o desejo Ele dá o exemplo da incontinência todos os homens concordam que a incontinência é algo ruim e que não se deve desejar a moderação ou so phrosyne aquilo que salva sozeiri a razão prática phronesis é o critério naturalmente dado de todos os atos Se um homem segue seus desejos cego para as conseqüências futuras cultivando então a incontinência é como se o mesmo homem devesse agir a um só tempo voluntária isto é intencional e involuntariamente isto é contrariamente às suas intenções e isso observa Aristóteles é impossível16 A proairesis é a saída para a contradição Se razão e desejo permanecessem sem uma mediação em seu antagonismo natural e bruto teríamos de concluir que o homem assediado pelos impulsos conflitantes de ambas as faculdades obrigase a afastarse de seu desejo quando permanece moderado e obrigase a afastarse de sua razão quando o desejo o domina Mas nada semelhante a um serobrigado ocorre em qualquer dos dois casos ambos os atos são realizados intencionalmente e quando o princípio vem de dentro não há força17 O que de fato ocorre é que estando a razão e o desejo em conflito decidir entre eles é uma questão de preferência ou escolha deliberada O que intervém é a razão não o nous que diz respeito às coisas que são para sempre e não podem ser diferentes do que são mas dianoia ou phronesis que lidam com as coisas que estão em nosso poder diferentes dos desejos e das imaginações que se podem estender às coisas que jamais podemos alcançar por exemplo quando queremos ser deuses ou imortais É tentadora a conclusão de que a proairesis a faculdade da escolha é a precursora da Vontade Ela abre um primeiro espaço pequeno e bastante restrito para o espírito humano que sem ela estava entregue a duas forças poderosas por um lado a força da autoevidência em relação à qual não somos livres para concordar ou discordar e por outro a força das paixões e dos apetites na qual é como se a natureza nos dominasse a menos que a razão nos obrigasse a dela nos afastar Mas o espaço deixado para a Liberdade é bastante pequeno Deliberamos somente sobre os meios para alcançar um fim que tomamos como certo que não podemos escolher Ninguém escolhe felicidade ou saúde como seu objetivo embora possamos pensar sobre essas duas coisas os fins são inerentes à natureza humana e são os mesmos para todos1S Quanto aos meios ora temos de descobrir quais são ora como devem ser utilizados ora por meio de quem eles podem ser adquiridos19 Conseqüentemente os meios e não somente os fins são dados e nossa livre escolha consiste apenas em uma seleção racional entre proairesis é o árbitro entre as diversas possibilidades Em latim a faculdade de escolha em Aristóteles é liberum arbitrium Toda vez que com ela nos deparamos nas discussões medievais sobre a Vontade não estamos lidando com o poder espontâneo de começar algo novo e nem com uma faculdade autônoma determinada por sua própria natureza e obediente a suas próprias leis O exemplo mais grotesco é o do asno de Buridan o pobre animal teria morrido de fome entre dois montes de feno equidistantes cheirando igualmente bem já que não há processo deliberativo que pudesse lhe dar uma razão para preferir um ao outro e ele só sobreviveu porque foi suficientemente esperto para renunciar à livre escolha confiar em seu desejo e apossarse de qualquer dos montes ao seu alcance O liberum arbitrium não é nem espontâneo nem autônomo encontramos os últimos vestígios de um árbitro entre razão e desejo ainda em Kant cuja boa vontade acaba por verse em um estranho impasse ou é boa sem restrições caso em que goza de completa autonomia mas não tem escolha ou recebe sua lei o imperativo categórico da razão prática que diz à Vontade o que fazer e acrescenta não faça de si mesmo uma exceção obedeça ao axioma da nãocontradição que desde Sócrates governa o diálogo sem som do pensamento A Vontade em Kant é na verdade razão prática20 muito no sentido do nouspraktikos de Aristóteles ela retira seu poder de imposição da coerção que a verdade autoevidente ou o raciocínio lógico exercem sobre o espírito Essa é a razão pela qual Kant afirmou inúmeras vezes que todo tu deves que não vem de fora mas surge no próprio espírito implica um tu podes O que está em jogo é claramente a convicção de que tudo o que depende de nós e diz respeito somente a nós mesmos está em nosso poder é essa convicção que Aristóteles e Kant têm basicamente em comum embora suas avaliações sobre a importância do campo dos assuntos humanos sejam bem diferentes A Liberdade tornase um problema e a Vontade como faculdade autônoma é descoberta somente quando os homens começam a duvidar da coincidência entre o tudeves e o euposso quando surge a questão As coisas que só a mim dizem respeito estão em meu poder 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade A primeira e mais fundamental resposta para a questão que levantei no início deste capítulo que experiências fizeram com que o homem tomasse consciência de sua capacidade de constituir volições é que essas experiências hebraicas na origem não foram políticas e não se relacionaram com o mundo seja com o mundo das aparências e a posição que nele o homem ocupa seja com o campo dos assuntos humanos cuja existência depende de feitos e ações mas localizaramse exclusivamente dentro do próprio homem Ao lidarmos com experiências relevantes para a Vontade estamos lidando com experiências que os homens têm não só consigo mesmos mas também dentro de si mesmos Tais experiências não eram de modo algum ignoradas na Antigüidade grega No volume anterior falei com algum detalhe sobre a descoberta socrática do doisemum a que daríamos hoje o nome de consciência e que tinha originalmente a função do que hoje chamamos de consciência moral Vimos como esse doisemum um simples fato da consciência realizavase e articulavase no diálogo sem som que desde Platão temos chamado de pensamento Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estarsó em uma retirada do mundo das aparências em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos bem como para os outros Mas a interioridade do diálogo em pensamento que faz da filosofia a atividade solitária de Hegel embora tenha ciência de si o cogito me cogitare de Descartes o Ich denke de Kant acompanhando silenciosamente tudo o que faço não se refere tematicamente ao eu mas sim às experiências e às questões que esse eu uma aparência entre aparências elegem para serem investigadas Esse exame meditativo de tudo o que é dado pode ser perturbado pelas necessidades da vida pela presença de outros por todos os tipos de assuntos urgentes Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito pois os doisemum são amigos e parceiros e manter essa harmonia intacta está acima de tudo para o ego pensante A descoberta do apóstolo Paulo que ele descreve com muitos detalhes na Epístola aos romanos escrita entre 54 e 58 DC envolve novamente um doisemum mas esses dois não são amigos ou parceiros estão em permanente luta Precisamente quando ele quer fazer o correto to kalon descobre que o mal está ali à mão 721 pois ele não conhecería a concupiscência se a lei não dissesse Não cobiçarás Portanto foi a ordem da lei que ocasionou toda a concupiscência Porque sem a lei o pecado estava morto 778 A função da lei é ambígua é boa para que o pecado se mostrasse pecado 713 mas já que fala no tom de uma ordem desperta as paixões e revive o pecado O próprio mandamento que prometia a vida foi para mim a morte 7910 O resultado é que não entendo o que faço Tomei me uma questão para mim mesmo Pois não faço o que quero mas o que odeio isso é o que faço 715 E o ponto central do problema é que esse conflito interno jamais pode ser solucionado seja em favor da obediência à lei seja da submissão ao pecado essa miséria interna segundo São Paulo pode ser curada somente através da graça gratuitamente Foi essa a percepção que veio como um lampejo para o homem de Tarso chamado Saulo que fora como ele disse um fariseu extremamente zeloso Gálatas 114 conforme a mais severa seita de nossa religião Atos 264 O que ele queria era a justiça dikaiosyne mas a justiça isto é permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei para fazêlas Gálatas 310 é impossível tal é a maldição da lei e se a justiça vem da lei Cristo morreu em vão Gálatas 221 Este é no entanto somente um lado do problema São Paulo tomouse o fundador da religião cristã não só porque por sua própria declaração fora lhe confiado o evangelho para os não circuncisados Gálatas 27 mas também porque pregava por onde quer que andasse a ressurreição dos mortos Atos 2421 O centro de sua preocupação que é nítida e obviamente distinta daquela dos evangelhos não é Jesus de Nazaré sua pregação e seus feitos mas Cristo crucificado e ressuscitado Dessa fonte ele colheu sua nova doutrina que veio a tomarse escândalo para os judeus e loucura para os gentios I Coríntios 123 E a preocupação com da vida eterna onipresente no Império Rotnano na época que separa tão nitidamente a Nova Era da Antigüidade e que se toma o iaç0 comum que uniu sincreticamente os vários cultos orientais novos Não é que a preocupação de São Paulo com a ressurreição individual tivesse origem judaica para os hebreus a imortalidade era tida como necessária somente para o povo como um todo e somente para ele era garantida o indivíduo satisfaziase em sobreviver em sua prole contentandose também em morrer velho e farto dos anos E no mundo antigo romano ou grego a única imortalidade que se desejava ou se buscava era o nãoesquecimento do grande nome ou do grande feito e portanto das instituições a polis ou civitas que podiam assegurar uma continuidade de lembrança Quando São Paulo disse o salário do pecado é a morte Romanos 623 poderia estar lembrando as palavras de Cícero que dissera que embora os homens devam morrer as comunidades civitae devem ser eternas e perecer somente em conseqüência de seus pecados Por trás das inúmeras crenças novas está claramente a experiência comum de um mundo em declínio talvez moribundo e a boa nova do Cristianismo em seus aspectos escatológicos era suficientemente clara a você que acreditou que os homens morrem mas o mundo é perene basta converterse à fé de que o mundo chega a um fim mas você mesmo terá vida eterna Assim é claro a questão da justiça isto é de merecer essa vida eterna ganha uma importância pessoal completamente nova O interesse pela imortalidade individual pessoal aparece também nos evangelhos todos eles escritos no último terço do primeiro século Perguntase comumente a Jesus Que farei para herdar a vida eterna por exemplo Lucas 1025 Jesus porém parece não ter pregado a ressurreição Ao invés disso disse que se as pessoas fizessem o que ele dizia vai e faze tu o mesmo ou vem e segueme então o Reino de Deus está entre vós Lucas 1721 ou é chegado a vós Mateus 1228 Se o pressionavam mais sua resposta era sempre a mesma Cumpre a lei como sabes e vende tudo quanto tens reparteo entre os pobres Lucas 1822 O ponto mais importante do ensinamento de Jesus está contido neste e que levou a lei conhecida e bem aceita ao seu extremo inerente Isto é o que ele provavelmente quis expressar quando disse Não vim para destruir a lei mas para cumprila Mateus 517 Logo não o Amar ao próximo mas sim o Amai aos vossos inimigos ao que te ferir uma face oferecelhe também a outra ao que te tirar a capa não o impeças de levar a túnica Em resumo não o Não faças com os outros o que não queres que façam contigo mas sim o O que quereis que vos façam os homens fazeio vós também a eles Lucas 62731 certamente a versão mais radical possível do Ama ao próximo como a ti mesmo São Paulo certamente não ignorava a mudança radical que a velha exigência de se cumprir a lei sofrerá no ensinamento de Jesus de Nazaré E é bem possível que tenha subitamente entendido que nisso reside o único cumprimento verdadeiro da lei tendo então descoberto que um tal cumprimento estava além do poder humano levava a um euqueromas nãoposso muito embora o próprio Jesus nunca tivesse dito a seus seguidores que não poderíam fazer o que quisessem Já existe em Jesus contudo uma nova ênfase na vida interior Ele não teria ido tão longe quanto Eckhart mais de mil anos depois afirmando que ter vontade de fazer era suficiente para herdar a vida eterna pois diante de Deus querer fazer conforme minha capacidade e ter feito são a mesma coisa Ainda assim a ênfase de Jesus no Não cobiçarás o único dos Dez Mandamentos que se relaciona com a vida interior aponta naquela direção todo o que olhar para uma mulher cobiçandoa já cometeu adultério no seu coração Mateus 528 Analogamente em Eckhart o homem que tem a vontade de matar sem nunca ter matado ninguém não cometeu pecado menor do que se tivesse assassinado toda a raça humana21 De relevância talvez ainda maior são as pregações de Jesus contra a hipocrisia como o pecado dos fariseus e sua suspeita das aparências Por que olhas para o argueiro que está no olho de teu irmão e não descobres a trave que está no teu Lucas 641 E eles gostam de andar com ricos mantos de ser cumprimentados nas praças Lucas 2046 o que coloca um problema que deve ter sido familiar para homens da Lei A questão é que tudo o que se faça de bom justamente pelo fato de aparecer para os outros ou para si fica sujeito ao autoquestionamento22 Jesus sabia disso Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita Mateus 63 isto é vive à sombra até mesmo à sombra de ti mesmo e não te preocupes em ser bom Ninguém há de bom senão um que é Deus Lucas 1819 A despeito disso esse adorável descuidarse dificilmente poderia ser mantido em um tempo em que fazer o bem e ser bom tinham se transformado em um requisito para superar a morte e herdar a vida eterna Assim quando se trata de São Paulo a ênfase muda inteiramente do fazer para o crer do homem exterior que vive no mundo das aparências ele mesmo uma aparência entre aparências sujeito portanto à semblância e à ilusão para uma interioridade que por definição jamais se manifesta inequivocamente e que só pode ser examinada por um Deus que também jamais se mostra de maneira inequívoca Os desígnios desse Deus são impenetráveis Para os gentios Sua principal propriedade é a invisibilidade para São Paulo o mais impenetrável é que Até antes da lei existia o pecado no mundo mas o pecado não é imputado se não houver lei Romanos 513 de modo que era inteiramente possível que os gentios que não andavam no encalço da justiça tivessem alcançado a justiça ao passo que Israel que seguia uma lei de justiça não conseguiu obtêla Romanos 93031 Que a lei não pode ser cumprida que a vontade de cumprir a lei ativa uma nova vontade a vontade de pecar e que uma vontade jamais existe sem a outra este é o tema de que São Paulo trata na Epístola aos Romanos E verdade que São Paulo não discute o tema em termos de duas vontades mas em termos de duas leis a lei do espírito que o deixa desfrutar da lei de Deus em seu eu mais íntimo e a lei de seus membros que lhe diz para fazer o que no seu eu mais íntimo ele odeia A própria lei é entendida como a voz de um senhor exigindo obediência o tudeves da lei exige e espera um ato voluntário de submissão um euquero de assentimento A Velha Lei dizia não farás A Nova Lei diz não quererás O que levou à descoberta da Vontade foi a experiência de um imperativo que exigia submissão voluntária E era inerente a essa experiência o fato admirável de uma liberdade que nenhum dos povos antigos grego romano ou hebreu conhecera ou seja o fato de que há uma faculdade no homem em virtude da qual ele pode independentemente de necessidade e coação dizer Sim ou Não concordar ou discordar daquilo que é dado factualmente inclusive seu próprio eu e sua existência e também que uma tal faculdade pode vir a determinar o que ele irá fazer Mas essa faculdade tem uma natureza curiosamente paradoxal Realizase por um imperativo que não diz simplesmente tu deves como no caso em que o espírito fala ao corpo conforme colocou Santo Agostinho mais tarde e o corpo imediata e por assim dizer impensadamente obedece mas diz também tu deves querer o que já implica que seja o que for que eu acabe fazendo de fato posso responder quero ou não quero O próprio mandamento o tu deves colocame diante de uma escolha entre o eu quero e o eu não quero ou seja em termos teológicos entre a obediência e a desobediência A desobediência lembramos vem a tomar se mais tarde o pecado mortal par excellence e a obediência a própria base da ética cristã a virtude das virtudes Ekhart A propósito uma virtude que diferentemente da pobreza e da castidade dificilmente pode ser tirada dos ensinamentos e das pregações de Jesus de Nazaré Se a vontade não tivesse a opção de dizer Não ela não seria mais uma vontade e se não houvesse uma contravontade em mim despertada pelo próprio conteúdo do mandamento do tu deves se para usar os termos de São Paulo o pecado não habitasse em mim Romanos 720 eu não precisaria absolutamente de uma vontade Falei anteriormente da natureza reflexiva das atividades do espírito o cogito me cogitare o volo me velle mesmo o juízo a faculdade menos reflexiva das três repercute atua sobre si mesma Veremos depois que essa reflexividade fica mais forte do que nunca no ego volitivo a questão é que todo euquero surge de uma inclinação natural para a liberdade isto é de uma reação natural dos homens livres quando subjugados A vontade sempre se dirige a si mesma quando a lei diz tu deves a vontade responde tu deves querer o que diz a ordem e não a executar inadvertidamente É então que tem início a disputa interna pois a contra vontade despertada tem semelhante poder de ordem Logo a razão pela qual os que observam a Lei estão sob o peso da maldição Gálatas 310 não é somente o euqueroenãoposso mas é também o fato de que o quero é inevitavelmente rebatido por um nãoquero de modo que até mesmo quando a lei é obedecida e cumprida ainda reste uma resistência interna Na luta entre o querer e o nãoquerer o resultado só pode depender de um ato se ações não contam mais a Vontade nada pode E uma vez que o conflito se dá entre velle e nolle a persuasão não tem lugar como tinha no velho conflito entre a razão e os desejos Quanto ao fenômeno em si Não faço o bem que quero mas o mal que não quero esse eu faço Romanos 719 ele não é obviamente uma novidade Encontramos quase as mesmas palavras em Ovídio Vejo o que é melhor e aprovo sigo o que é pior23 e esta é provavelmente uma tradução da famosa passagem da Medéia de Euripides linhas 107880 Sei muito bem o mal que desejo fazer mais forte porém do que minhas deliberações boulemata é o meu thymos o que faz com que eu me mova a causa dos maiores males entre os mortais Euripides e Ovídio podem ter lamentado a fraqueza da razão quando confrontada com o impulso passional dos desejos e Aristóteles pode ter dado um passo à frente quando detectou a autocontradição na escolha do pior um ato que lhe forneceu a definição do homemvil mas nenhum deles teria atribuído esse fenômeno à livre escolha da Vontade A Vontade que se divide produzindo automaticamente sua própria contra vontade precisa ser curada para tornarse de novo uma só Como o pensamento a vontade dividiu o um em doisemum só que no caso do ego pensante curarse da divisão seria a pior coisa que poderia acontecer poria fim completo ao pensamento Ora seria bastante tentador concluir que a misericórdia divina a solução de São Paulo para a desgraça da Vontade na verdade elimina a Vontade destituindoa por milagre de sua contravontade Mas não se trata mais de volições já que a misericórdia não pode ser almejada a salvação não depende do querer ou do esforço do homem mas da misericórdia de Deus e Ele usa de misericórdia com quem quer e endurece o coração de quem quer Romanos 91618 Além disso assim como veio a lei não somente para tomar o pecado identificável mas para aumentar a perdição também a graça abundou onde o pecado cresceu tratase de fato defelix culpa pois como poderíam os homens conhecer a glória se não tivessem contato com a desgraça Como conheceriamos o dia se não houvesse noite Em suma a vontade é impotente não por causa de algo externo que a impeça de ter êxito mas porque se toma um obstáculo para si mesma E onde não é um obstáculo como em Jesus ela ainda não existe Para São Paulo a explicação é relativamente simples o conflito se dá entre carne e espírito e o problema é que o homem é tanto carnal quanto espiritual A came vai morrer e portanto viver de acordo com a carne significa uma espécie de morte A tarefa principal do espírito não é só governar os desejos e fazer com que a carne obedeça mas também causar sua mortificação crucificála com suas paixões e desejos Gálatas 524 coisa que na verdade está além do poder humano Vimos que do ponto de vista do ego pensante era bastante natural uma certa suspeita em relação ao corpo A carnalidade do homem embora não necessariamente origem do pecado interrompe a atividade pensante do espírito e oferece uma resistência ao diálogo sem som e veloz que o espírito mantém consigo mesmo um intercâmbio cuja própria doçura está em uma espiritualidade na qual nenhum fator material interfere Isso está muito longe da hostilidade agressiva ao corpo que encontramos em São Paulo uma hostilidade que além disso sem falar nos preconceitos contra a carne surge da própria essência da Vontade A despeito de sua origem espiritual a vontade toma ciência de si somente quando supera a resistência e a carne no raciocínio de São Paulo mesmo posteriormente quando é disfarçada em inclinação tomase a metáfora para a resistência interna Assim até mesmo nesse esquema simplista a descoberta da Vontade já terá aberto a autêntica caixa de Pandora das questões irrespondíveis que o próprio São Paulo de modo algum ignorava e que a partir daí viriam a infestar de absurdos qualquer filosofia rigorosamente cristã São Paulo sabia como seria fácil deduzir de suas indicações que devemos permanecer no pecado para que haja abundância de graça Romanos 61 Por que então não praticamos o mal do qual vem o bemcomo alguns injuriosamente dizem que ensinamos Romanos 38 embora dificilmente pudesse prever quanta disciplina e rigidez de dogma seriam necessárias para proteger a Igreja contra o peccafortiter Ele também sabia bastante bem qual era o maior obstáculo para uma filosofia cristã a contradição óbvia entre um Deus onisciente e onipotente e aquilo que Santo Agostinho chamou mais tarde de monstruosidade da Vontade Como Deus pode permitir a desgraça humana Acima de tudo como pode Ele ainda se queixar uma vez que ninguém consegue resistir à Sua vontade Romanos 919 São Paulo era um cidadão romano falava e escrevia em grego koine e estava bem claramente familiarizado com a lei romana e com o pensamento grego Não obstante o fundador da religião cristã senão da Igreja permaneceu sendo judeu talvez não possa haver prova mais contundente disso do que sua resposta para as questões irrespondíveis levantadas pela sua nova fé e pelas novas descobertas de seu próprio interior Essa prova equivale quase palavra por palavra à resposta que Jó deu quando foi levado a questionar os desígnios impenetráveis do Deus hebreu A resposta de São Paulo como a de Jó é muito simples e completamente nãofilosófica Mas quem és tu um homem para retrucar a Deus Porventura a coisa formada dirá ao que a formou Por que me fizestes assim Não tem o oleiro poder sobre o barro para da mesma massa fazer um vaso para a beleza e outro para ser usado E que dirás se Deus querendo dar a conhecer o seu poder suportou os vasos da ira feitos para a destruição de modo a tomar conhecidas também as riquezas de sua glória nos vasos da misericórdia que já havia feito para a glória Romanos 92023 Jó 10 No mesmo estilo Deus encerrando todas as perguntas dissera a Jó que Lhe ousara interrogar Vou interrogarte e tu me responderás Onde estavas quando estabelecí os princípios da terra Deve um maldizente questionar o Todopoderoso E para esta pergunta existe de fato apenas a resposta de Jó Relatei o que não entendi coisas que para mim eram maravilhosas e eu não as entendia Jó 423 Ao contrário de sua doutrina da ressurreição dos mortos o argumentum ad hominem de São Paulo cortando todas as indagações com um Quemé vocêparaperguntar acabou não sobrevivendo às primeiras fases da fé cristã Isso para falar em termos históricos uma vez que obviamente não podemos saber quantos cristãos durante os longos séculos de um imitatio Christi permaneceram fora do alcance das recorrentes tentativas de conciliar a fé hebraica absoluta no DeusCriador com a filosofia grega As comunidades judaicas de qualquer forma foram alertadas contra quaisquer especulações o Talmude provocado pelo gnosticismo disselhes Melhor seria para o homem que pensa em quatro coisas que nunca tivesse nascido o que está acima o que está abaixo o que era antes e o que será depois24 Como um eco débil desse temor fiel diante do mistério de todo o Ser séculos mais tarde ouvimos Santo Agostinho repetir o que deve ter sido um chiste conhecido na época Respondo ao homem que diz Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra Preparava o inferno para aqueles que perscrutam mistérios tão profundos Mas Santo Agostinho não parou por aí Muitos capítulos adiante nas Confissões depois de denunciar seriamente os que fazem tais perguntas como homens acometidos por uma enfermidade criminosa que os faz ter mais sede do que permite a sua capacidade dá a resposta logicamente correta e existencialmente insatisfatória de que uma vez que o DeusCriador é eterno Ele tem que ter criado o tempo quando criou o Céu e a Terra de modo que não pudesse haver um antes prévio à Criação Que eles vejam que não poderia haver tempo sem um ser criado25 9 Epiteto e a onipotência da Vontade Na Epístola aos Romanos São Paulo descreve uma experiência interna a experiência do euqueroenãoposso Essa experiência seguida de uma experiência da misericórdia de Deus é avassaladora Ele explica o que lhe aconteceu e nos conta por que as duas ocorrências estão interligadas Ao longo da explicação desenvolve a primeira teoria abrangente da história uma teoria sobre aquilo a que a história diz respeito além de lançar as bases da doutrina cristã Faz isso contudo em termos de fatos não argumenta e é isto o que o distingue muito nitidamente de Epiteto com quem sob outros aspectos ele tinha muito em comum Os dois eram quase contemporâneos oriundos mais ou menos da mesma região do Oriente Próximo viveram no Império Romano helenizado e falavam a mesma língua koine embora um fosse cidadão romano e o outro fosse homem alforriado um exescravo e um fosse judeu e o outro estóico Têm também em comum uma certa rigidez moral que os distinguia em seus ambientes Ambos declaram que cobiçar a mulher do próximo é cometer adultério Atacam quase com as mesmas palavras o establishment intelectual de sua época os fariseus no caso de São Paulo e os filósofos os estóicos e os acadêmicos no de Epiteto acusandoo de hipócrita que não se comporta conforme seus próprios ensinamentos Mostrame um estóico se fores capaz exclama Epiteto Mostrame alguém que está doente e que ainda assim seja feliz que está em perigo e ainda assim feliz morrendo e ainda assim feliz no exílio e feliz em desgraça e feliz Pelos deuses de bom grado eu enxergaria aí um estóico26 Esse menosprezo é mais declarado e desempenha papel ainda mais importante em Epiteto do que em São Paulo Finalmente eles têm em comum um desprezo quase instintivo pelo corpo este saco nas palavras de Epiteto que dia após dia eu preencho para em seguida esvaziar Poderia haver algo mais cansativo27 e a insistência na distinção entre um eu interno e as coisas exteriores28 O conteúdo efetivo da interioridade é descrito em cada um deles exclusivamente em termos das incitações da Vontade que São Paulo acreditava ser impotente ao passo que Epiteto declarava ser todapoderosa Onde está o bem Na vontade Onde está o mal Na vontade Onde não estão nem um nem outro No que não está sob o controle da vontade29 A princípio parece que temos aí a antiga doutrina estóica só que sem qualquer dos suportes filosóficos do estoicismo antigo não ouvimos de Epiteto nada sobre a bondade intrínseca da natureza de acordo com a qual Jcata physin o homem deve viver e pensaristo é tirar do pensamento todo o mal aparente entendendoo como um componente necessário de um bem completo Em nosso contexto o interessante em Epiteto é justamente a ausência em seus ensinamentos de tais doutrinas metafísicas Epiteto foi fundamentalmente um professor E uma vez que ensinava e não escrevia30 consideravase aparentemente um seguidor de Sócrates esquecendose como a maioria dos chamados seguidores de Sócrates de que Sócrates nada tinha a ensinar De qualquer forma Epiteto considerava se um filósofo e definia o assunto da filosofia como a arte de viver a própria vida 31 Essa arte consistia principalmente em ter um argumento pronto para qualquer emergência para cada situação de sofrimento agudo Seu ponto de partida era o omnes homines beati esse volunt da Antigüidade todos os homens desejam ser felizes e a única questão para a filosofia era descobrir como alcançar esse objetivo patente Só que Epiteto de acordo com a inclinação da época e em contraste com a da Era précristã estava convencido de que a vida assim como ela é dada na Terra tendo a morte como fim inevitável e sendo portanto acossada por medos e temores era incapaz de trazer a verdadeira felicidade sem que houvesse um esforço especial da vontade do homem Assim felicidade muda de significado não é mais entendida como eudaimonia a atividade de eu zen viver bem mas como euroia biou uma metáfora estóica indicativa de uma vida que flui livremente sem perturbarse com os vendavais as tempestades ou os obstáculos As características dessa felicidade eram serenidade galene a bonança depois da tempestade e tranqüilidade eudia o tempo bom32 metáforas que a Antigüidade clássica desconhecia Todas elas relacionam se com uma disposição da alma que é melhor descrita em termos negativos como ataraxia e que consiste em algo totalmente negativo ser feliz agora significava fundamentalmente não ser desgraçado A filosofia podia ensinar o processo da razão os argumentos como armas brilhantes e prontas para o uso33 a serem dirigidos contra o infortúnio da vida real A razão descobre que o que traz a desgraça não é a ameaça externa da morte mas o medo interior da morte não a dor mas sim o medo da dor não é a morte ou a dor que aterroriza mas o medo da dor ou da morte34 A única coisa certa a se temer é portanto o próprio medo e se os homens não podem escapar à dor ou à morte podem por outro lado dissuadirse do medo dentro de si eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos se guardamos nosso medo não para a morte ou para o exílio mas para o próprio medo então deveriamos nos treinar para evitar o que pensamos de mal35 Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado na morada da alma por um medo avassalador de ter medo ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança a impressão de Epiteto basta isso para compreendermos o valor psicológico terraaterra dessas teorias aparentemente improváveis Uma vez que a razão descobre essa região interna em que o homem enfrenta somente as impressões que as coisas externas deixam em seu espírito em vez de enfrentar sua existência factual sua tarefa está cumprida O filósofo não é mais o pensador que examina qualquer coisa que lhe apareça no caminho mas sim o homem que se educou para jamais se voltar para as coisas externas onde quer que ele esteja Epiteto dá um exemplo esclarecedor desta atitude Não impede seu filósofo de ir aos jogos como qualquer um mas ao contrário da multidão vulgar dos outros espectadores ele está ali interessado somente em si mesmo e em sua própria felicidade forçase portanto a querer que aconteça somente o que acontece de fato e que só ganhe aquele que de fato ganha36 Esse afastamento da realidade enquanto ainda se está em meio a ela em contraste com a retirada do ego pensante para o estarsó do diálogo sem som de mim comigo mesmo em que todo pensamento é um repensar por definição tem conseqüências muito importantes Significa por exemplo que quando alguém vai a algum lugar não presta atenção a seu objetivo mas só se interessa pela própria atividade de caminhar ou quando a deliberação está unicamente interessada no ato de deliberar e não em obter aquilo que se planeja37 Nos termos da parábola do jogo é como se esses espectadores olhando com olhos que não vêem fossem meras aparições fantasmagóricas no mundo das aparências Pode ser úti 1 comparar essa atitude com a do filósofo na velha parábola pitagórica sobre os Jogos Olímpicos os melhores eram os que não participavam da luta pela fama ou pelo lucro mas que eram simples espectadores interessados nos jogos pelos jogos Não sobra aqui nenhum vestígio deste interesse desinteressado Somente o eu tem interesse e o soberano indisputável do eu é a razão argumentativa não o velho nous o órgão interno para a verdade o olho invisível do espírito dirigido para o que é invisível no mundo visível mas sim uma dynamis logike cuja maior distinção é tomar conhecimento de si mesma e de todas as outras coisas e que tem o poder de aprovar ou desaprovar sua própria ação38 A primeira vista isso pode se assemelhar ao doisemum socrático realizandose no processo pensante mas na verdade está muito mais próximo daquilo que hoje chamamos de consciência A descoberta de Epiteto foi de que o espírito conseguindo reter as impressões externas phantaisiai era capaz de lidar com as coisas exteriores como simples dados da consciência como diriamos A dynamis logike examina tanto a si mesma quanto as impressões deixadas no espírito A filosofia nos ensina a lidar com as impressões corretamente ela testaas e distingueas sem fazer uso de uma sequer que não tenha sido testada Olhar para uma mesa não nos capacita para decidir se a mesa é boa ou ruim a visão não nos informa nem qualquer outro dos nossos sentidos Somente o espírito que lida não com as mesas reais mas com impressões de mesas pode nos informar O que nos informa que o ouro é uma coisa bela Pois não é o ouro que nos informa Claramente é a faculdade que lida com impressões39 O importante é que não é preciso sair de si mesmo se o interesse concentrase integralmente no eu As coisas só têm valor à medida que o espírito pode envolvêlas de dentro de si Uma vez que o espírito se retira das coisas exteriores para a interioridade de suas próprias impressões descobre ser em um certo nível completamente independente de todas as influências externas Pode alguém impedirte de concordar com o que é verdade Ninguém Pode alguém obrigarte a aceitar o falso Ninguém Vês que nessa esfera tua faculdade está livre de qualquer empecilho e limite ou coerção40 Faz parte da natureza da verdade compelir isto é um insight antigo hosper hip antes tes aletheias anagkasthentes compelidas pela própria verdade como diz Aristóteles quando fala das teorias autoevidentes que não exigem qualquer raciocínio especial41 Mas em Epiteto esta verdade e sua dynamis logike não têm absolutamente nada a ver com o conhecimento ou com a cognição para os quais os processos da lógica são infrutíferos42 não prestam literalmente para nada akarpa O conhecimento e a cognição envolvem as coisas externas independentes do homem e além de seu poder portanto não são ou pelo menos não deveríam ser de interesse O início da filosofia é uma percepção synaisthesis da própria fraqueza no que diz respeito às coisas necessárias Não temos uma concepção inata das coisas que devemos conhecer tais como um triângulo retângulo mas podemos aprender com as pessoas que sabem e aqueles que ainda não sabem sabem que não sabem Algo bem diferente disso ocorre com coisas que de fato nos dizem respeito das quais a vida que levamos depende Nesse nível todo mundo nasce com um pareceme que dokei moi uma opinião e é aí que começa a nossa dificuldade na descoberta do conflito nos espíritos dos homens entre si e na tentativa de descobrir um padrão assim como descobrimos a balança para lidar com pesos e a régua para lidar com coisas retas e curvas Este é o começo da filosofia43 A filosofia estabelece então os padrões e as normas e ensina o homem a usar suas faculdades sensoriais a lidar corretamente com as impressões e a testálas e calcular seus valores O critério de toda filosofia é pois sua utilidade na tarefa de levar uma vida sem dor Mais especificamente ela ensina certas linhas de pensamento capazes de derrotar a impotência inata do homem Neste quadro filosófico geral teria de ser a razão o raciocínio argumentativo a receber a primazia sobre todas as outras faculdades do espírito mas isso não acontece Em seu violento ataque aos homens que foram filósofos somente da boca para fora Epiteto aponta a lacuna aterradora entre os ensinamentos de um homem e sua conduta real aludindo portanto ao velho insight de que a razão por si só nem move nem realiza nada A grande realizadora não é a razão mas a Vontade Em considere quem tu és temos uma exortação dirigida ao que parece à razão mas o que se descobre então é que o homem não tem nada de mais soberano kyrioteros do que a vontade proairesis tudo o mais está sujeito a ela e a vontade em si é livre da escravidão e do jugo É verdade que a razão logos distingue o homem dos animais que estão portanto marcados para servir ao passo que o homem é talhado para o comando44 apesar disso o órgão que tem capacidade de comando não é a razão mas a Vontade Se a filosofia lida com a arte de se viver a própria vida e se o seu maior critério é a utilidade neste âmbito então a filosofia significa muito pouco além do seguinte procurar saber como é viável exercitar a vontade de obter e a vontade de evitar sem obstáculos45 A primeira coisa que a razão pode ensinar à vontade é a distinção entre as coisas que dependem do homem aquelas que estão em seu poder o eph hemin aristotélico e aquelas que não estão O poder da vontade reside em sua decisão soberana de interessarse somente pelas coisas que estão em poder do homem e estas coisas residem cxclusivamente na interioridade humana46 Logo a primeira decisão da vontade é não querer o que não pode obter e deixar de não querer o que não pode evitar em suma não se interessar por qualquer coisa sobre a qual não tenha poder Que importa se o mundo é composto de átomos ou de partes infinitas ou se é composto de fogo e de terra Não é suficiente conhecer os limites entre a vontade de obter e a vontade de evitar e desconsiderar as coisas que estão além de nós47 E uma vez que é impossível que o que acontece viesse a ser diferente do que é4S uma vez que o homem em outras palavras não tem absolutamente nenhum poder no mundo real foramlhe concedidas as faculdades surpreendentes da razão e da vontade que lhe permitem reproduzir o exterior completo mas destituído de sua realidade dentro de seu espírito no qual ele é inegavelmente o senhor e o soberano Ali ele reina sobre si e sobre os objetos de seu interesse já que só a vontade pode ser obstáculo para si mesma Tudo o que parece ser real o mundo das aparências precisa na verdade de meu consentimento para poder ser real para mim E tal consentimento não pode ser impingido a mim se recusome a consentir a realidade do mundo desaparece como se fosse uma mera aparição Essa faculdade de afastamento do que é exterior em direção a um interior invencível obviamente requer treino gymnazeiri e constante discussão já que não só o homem vive sua vida diária no mundo como ele é mas também seu eu interior enquanto vive localizase dentro de algo externo um corpo que não está em seu poder mas pertence às coisas exteriores A questão constante é se sua vontade é suficientemente forte não simplesmente para desviar sua atenção do exterior ameaçando as coisas mas sim para concentrar sua imaginação em impressões diferentes na presença real de dor e infortúnio A recusa do consentimento ou colocar a realidade entre parênteses não é de modo algum um exercício de puro pensamento tem que dar provas de si Tenho que morrer Tenho que ser aprisionado Tenho que sofrer um exílio Mas tenho que morrer gemendo Tenho também que me lastimar Alguém pode impedirme de ir para o exílio com um sorriso O senhor ameaça acorrentarme Que dizes Acorrentarme Vais acorrentar minha perna sim mas não a minha vontade não nem mesmo Zeus pode conquistála49 Epiteto dá inúmeros exemplos que não preciso enumerar aqui constituiríam leitura tediosa como exercícios em um livro escolar O desfecho é sempre o mesmo O que incomoda os homens não é o que realmente acontece a eles mas seu próprio julgamento dogma no sentido de crença ou opinião Serás prejudicado somente quando achares que foste prejudicado Ninguém pode te prejudicar sem teu consentimento51 Por exemplo o que significa ser difamado Aproximate de uma pedra e difamaa que efeito isso terá51 Seja como uma pedra e serás invulnerável A ataraxia invulnerabilidade é tudo o que você precisa purasentirse livre uma vez que descubra que a própria realidade depende do seu consentimento para ser reconhecida como tal Como a maioria dos estóicos Epiteto reconhecia que a vulnerabilidade do corpo impõe certos limites a essa liberdade interior Incapazes de negar que não são as simples aspirações ou os desejos que nos impedem de ser livres mas os grilhões a nós presos na forma de um corpo52 eles tinham que provar portanto que os grilhões não eram indestrutíveis Uma resposta para a pergunta O que nos impede de cometer o suicídio passa a ser um tópico necessário nos escritos dessa escola Epiteto de qualquer forma parece claramente terse dado conta de que esse tipo de liberdade interna ilimitada pressupõe na verdade que é preciso lembrar e fixar a idéia de que a porta está aberta53 Para uma filosofia de total alienação do mundo há muita verdade na frase extraordinária com que Camus começou seu primeiro livro II nyaqu un problème philosophique vraiment sérieux c est le suicide 54 A primeira vista essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença apatheia como se proteger da realidade como perder sua habi lidade de ser por ela afetado para o bem ou para o mal na alegria ou na tristeza parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental Encontramos em Santo Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível Os estóicos diz ele descobriram o truque de como fingir que estão felizes Não podendo ter o que quer o homem quer o que pode ter Ideo igitur id vult quod potest quoniam quod vult nom potest55 Além disso prossegue os estóicos pressupõem que todo homem deseja por natureza ser feliz sem contudo acreditar em imortalidade pelo menos não em ressurreição do corpo isto é em uma vida futura sem morte e aí temos uma contradição em termos Pois se todo homem deseja de fato ser feliz deve necessariamente também querer ser imortal Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo Cum ergo beati esse omnes homines velint si vere volunt profecto et esse immortales volunt Ut enim homo beate vivat oportet ut vivat56 Em outras palavras os mortais não podem ser felizes e a insistência dos estóicos no medo da morte como a maior fonte de infelicidade atesta isso o máximo que podem conseguir é ficar indiferentes deixar de ser afetados pela vida ou pela morte Essa refutação entretanto tão razoável nesse nível de argumentação deixa escapar alguns pontos importantes Há em primeiro lugar a questão de por que deveria ser necessário um querer com a finalidade de não querer por que não seria possível simplesmente perder a faculdade sob o domínio dos insights superiores do raciocínio correto Afinal não sabemos todos como é relativamente fácil perder pelo menos o hábito senão a faculdade de pensar Basta viver em constante estado de distração e jamais deixar a companhia de outros Podese argumentar que é mais difícil quebrar o hábito que os homens têm de querer o que está fora de seu poder do que quebrar o hábito de pensar mas para um homem suficientemente treinado não deve ser necessário ficar repetindo mil vezes o não querer já que o me thele o não querer onde não se pode evitar c no mínimo tão importante para esse aprendizado quanto o simples apelo à força de vontade Muito relacionado ao que foi dito anteriormente e ainda mais enigmático é o fato de que Epiteto não fica absolutamente satisfeito com o poder da vontade de deixar de querer Ele não prega simplesmente a indiferença a tudo o que não está em nosso poder ele exige com insistência que o homem queira o que de qualquer maneira acontece Já citei a parábola do jogo na qual o homem cujo único interesse é o bemestar do eu é exortado a querer que aconteça somente o que acontece e que ganhe somente quem ganha Em um outro contexto Epiteto vai muito além e exalta sem citar nomes filósofos que disseram que se o homem bom soubesse de antemão dos acontecimentos vindouros ele ajudaria a natureza mesmo que isso significasse lidar com a doença com a morte com a mutilação57 Certamente ele recai em seu argumento na velha noção estóica de heimarmene a doutrina do destino segundo a qual tudo acontece em harmonia com a natureza do universo e cada coisa particular homem ou animal planta ou pedra tem sua tarefa designada pelo todo sendo por ele justificada Mas não só Epiteto demonstra explicitamente não estar interessado em qualquer questão relativa à natureza ou ao universo como também não há nada na antiga doutrina que indique que a vontade do homem totalmente infrutífera por definição tenha algum valor na ordenação do universo Epiteto se interessa pelo que acontece a ele Quero uma coisa e ela não acontece quem é mais desgraçado do que eu Não aquero e ela acontece quem é mais desgraçado do que eu58 Em resumo para viver bem não é suficiente deixar de pedir para que os eventos aconteçam como se quer devese deixar a vontade ser tal que os eventos devam acontecer como acontecem59 Somente quando o poder da vontade chega a esse ponto de clímax em que consegue querer o que é nunca estando portanto em desavença com as coisas exteriores é que ele se pode dizer onipotente Subjacente a todos os argumentos para tal onipotência está a patente pressuposição de que a realidade para mim obtém seu grau de realidade por consentimento meu e subjacente a essa pressuposição garantindo sua eficácia prática está o fato simples de que posso cometer o suicídio quando achar a vida verdadeiramente insuportável a porta está sempre aberta E aqui a solução não implica como é o caso por exemplo em Camus uma espécie de rebelião cósmica contra a condição humana para Epiteto tal rebelião não teria nenhum sentido já que é impossível que aquilo que acontece seja diferente do que é60 Isso é impensável porque mesmo uma negação absoluta depende do puro e inexplicável estaraí thereness de tudo o que é inclusive eu mesmo e Epiteto jamais exige uma explicação ou uma justificativa para o inexplicável Logo como Santo Agostinho vem a argumentar mais tarde61 aqueles que acreditam escolher não ser quando cometem suicídio estão errados escolhem uma forma de ser que acabará por vir algum dia de todo modo e escolhem a paz que é naturalmente apenas uma forma de ser A única força que pode obstruir esse consentimento básico e ativo dado pela vontade é ela mesma Assim o critério para a conduta correta é o seguinte Queira estar satisfeito tu contigo mesmo theleson aresai autos seauto E Epiteto acrescenta Queira aparecer nobre diante do deus Theleson kalos phanenai to theoa sendo que o adendo é na verdade redundante já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente mas sustenta que a alma é semelhante a Deus e que o deus está dentro de ti tu és um fragmento dele63 O ego volitivo acaba então não sendo menos dividido em dois do que o doisemum socrático do diálogo de pensamento de Platão Mas como vimos em São Paulo os dois no ego volitivo estão longe de manter entre si um relacionamento harmonioso e amigável embora em Epiteto sua relação francamente antagônica não submeta o eu aos extremos de desespero que tanto ouvimos na lamentação de São Paulo Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente luta agon uma competição olímpica que exige uma suspeita semprealerta de mim para comigo Em uma palavra o filósofo que sempre olha para si para o bem ou para o mal mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo hos echthron heautou quando está à sua espera64 Basta relembrarmos o insight de Aristóteles todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma para reavaliarmos a distância percorrida pelo espírito humano desde a Antigüidade O eu do filósofo governado pelo ego volitivo que lhe diz que só a própria vontade pode obstruirlhe o caminho ou servirlhe de limite engajase em uma luta sem fim com a contravontade engendrada precisamente por sua própria vontade O preço pago pela onipotência da Vontade é muito alto o pior que poderia acontecer ao doisemum do ponto de vista do ego pensante a saber estar em desacordo consigo mesmo tomase parte inseparável da condição humana E o fato de que esse destino não é mais atribuído ao homemvil de Aristóteles mas ao contrário ao homem bom e sábio que aprendeu a arte de conduzir a própria vida quaisquer que sejam as circunstâncias externas pode levantar uma indagação se a cura da desgraça humana não será pior do que a doença A despeito disso há nessa empreitada lamentável somente uma descoberta que nenhum argumento pode eliminar e que no mínimo explica porque o sentimento de onipotência bem como o de liberdade humana puderam se originar das experiências do ego volitivo Um assunto que abordamos marginalmente na discussão sobre São Paulo a saber o de que toda obediência presume o poder de desobedecer está bem no centro das considerações de Epiteto O cerne da questão aí é o poder da Vontade para assentir ou dissentir dizer Sim ou Não pelo menos no que me diz respeito Eis porque as coisas que em sua existência pura isto é impressões de coisas exteriores dependem somente de mim estão também em meu poder não só posso ter vontade de mudar o mundo embora essa proposta seja de interesse duvidável para alguém totalmente alienado do mundo em que se encontra como posso também negar realidade a tudo e qualquer coisa através de um deixodequerer Esse poder deve ter tido algo de muito terrível de realmente esmagador para o espírito humano pois nunca houve um filósofo ou teólogo que depois de ter prestado a devida atenção ao Não implícito em cada Sim não tenha imediatamente exigido um consentimento enfático aconselhando o homem como fez Sêneca em frase citada com grande aprovação pelo Mestre Eckhart a aceitar todas as ocorrências como se ele mesmo as tivesse desejado e tivesse rogado por elas Certamente se enxergamos nesse acordo universal somente o último e mais profundo ressentimento do ego volitivo em relação à sua impotência existencial no mundo como ele é factualmente veremos aqui também apenas mais um argumento para o caráter ilusório da faculdade uma confirmação final de que ela é um conceito artificial Ao homem nesse caso teria sido dada uma faculdade realmente monstruosa Santo Agostinho compelida por sua natureza a exigir um poder que é capaz de exercer somente na região dominada pela ilusão da mera fantasia na interioridade de um espírito que conseguiu separarse de toda aparência exterior em sua busca incansável pela tranqüilidade absoluta E como recompensa final e irônica para tanto esforço terá obtido um relacionamento desconfortavelmente íntimo com o depósito das dores e o tesouro dos males nas palavras de Demócrito ou com o abismo que segundo Santo Agostinho escondese no coração bom e no coração mau65 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade Se é devido às Escrituras que há uma filosofia que é cristã é devido à tradição grega que o cristianismo possui uma filosofia Etienne Gilson Santo Agostinho o primeiro filósofo cristão e é tentador acrescentar o único filósofo que os romanos jamais tiveram66 foi também o primeiro pensador que se voltou para a religião em função de perplexidades filosóficas Como muitas das pessoas cultas de sua época fora educado como cristão a despeito disso o que ele mesmo descreveu como uma conversão o tema das Confissões foi completamente diferente da experiência que transformou o fariseu extremamente zeloso Saulo em São Paulo o apóstolo cristão e seguidor de Jesus de Nazaré Nas Confissões Santo Agostinho contanos como seu coração pela primeira vez foi posto em chamas pelo Hortênsius de Cícero um livro hoje perdido que continha uma exortação à filosofia Citou essa obra até o fim da vida Tomouse o primeiro filósofo cristão porque se manteve preso à filosofia ao longo de toda a vida Seu tratado Sobre a Trindade uma defesa do dogma fundamental da Igreja Cristã é ao mesmo tempo o desenvolvimento mais profundo e mais articulado de sua posição filosófica própria c muito original O ponto de partida porém era ainda a busca romana e estóica da felicidade E certo disse Cícero que todos queremos ser felizes67 Na juventude ele tinhase voltado para a filosofia por miséria interior e na idade adulta voltouse para a religião porque a filosofia não lhe ajudara Esta atitude pragmática exigir da filosofia que seja a guia da vida Cícero68 é tipicamente romana teve uma influência mais duradoura na formação do pensamento de Santo Agostinho do que Plotino e os neoplatônicos a quem ele devia tudo o que sabia sobre filosofia grega Não é que a aspiração humana genérica à felicidade tivesse escapado à atenção dos gregos a máxima romana parece ter sido uma tradução do grego mas não foi esse desejo que os fez fazer filosofia Somente os romanos estavam convencidos de que não há razão para o homem filosofar a não ser com o intuito de ser feliz69 Encontramos esse interesse pragmático na felicidade privada durante toda a Idade Média ele subjaz à esperança da salvação eterna e ao medo da danação eterna e esclarece muitas especulações que de outra forma seriam incompreensíveis e cujas origens romanas fica difícil detectar O fato deque a Igreja Católica Romana a despeito da influência decisiva da filosofia grega tenha permanecido tão profundamente romana deveuse muito à estranha coincidência de que seu primeiro e mais influente filósofo tenha sido também o primeiro pensador a ir buscar inspiração mais profunda em fontes e experiências latinas Em Santo Agostinho a luta pela vida eterna como o summum bonum e a interpretação da morte eterna como o siiminum malum alcançaram o mais alto grau de articulação porque ele as combinou com a descoberta da nova era da vida interior Entendia que o interesse exclusivo por esse eu interior significava que torneime uma questão para mim mesmo fquaestio mihi factus sum uma questão que a filosofia assim como era ensinada e aprendida então nem levantava nem respondia70 As famosas análises do conceito de Tempo no Livro XI das Confissões constituem um exemplo paradigmático do desafio do que era novo e problemático o tempo é algo bastante familiar e comum até que alguém pergunte O que é o Tempo momento em que se transforma em um enigma intrincado cujo desafio é ser tanto inteiramente comum quanto inteiramente misterioso71 Não há dúvida de que Santo Agostinho está entre os maiores c mais originais pensadores não era porém um pensador sistemático e é verdade que o corpo principal de sua obra está repleto de linhas de pensamento que não vão até as últimas conseqüências e de empreitadas literárias abandonadas7 além de estar cheio de repetições Nestas condições cumpre notar a continuidade dos tópicos principais que ele no fim da vida submeteu a um exame minucioso intitulado Retractationes ou Retratações como se o Bispo e Príncipe da Igreja fosse o seu próprio Inquisidor Talvez o mais fundamental desses tópicos sempre recorrentes tenha sido o Li vrearbítrio da Vontade o Liberum arbitrium voluntatis como faculdade distinta do desejo e da razão embora Santo Agostinho tenha dedicado a ele apenas um tratado inteiro com esse título Foi um trabalho dos primeiros tempos cuja parte inicial está ainda totalmente no estilo de suas outras primeiras obras filosóficas embora tenha sido escrita depois do dramático acontecimento da conversão e do batismo Acho que é muito expressivo da qualidade do homem e do pensador o fato de ele ter levado dez anos para escrever com os mínimos detalhes aquilo que para ele havia sido o mais grave e importante momento de sua vida e isto não apenas em prol da lembrança ou da misericórdia mas em função de suas implicações espirituais O mais recente biógrafo de Santo Agostinho Peter Brown expressa isso de maneira um pouco simplista dizendo que ele definitivamente não era um type croyant como era comum entre os homens instruídos no mundo latino antes de seu tempo73 para Santo Agostinho não se tratava de abandonar as incertezas da filosofia em favor da Verdade revelada mas de descobrir as implicações filosóficas de sua nova fé Nesse esforço imenso fiouse sobretudo nas Epístolas do Apóstolo Paulo a dimensão do seu sucesso pode ser avaliada pelo fato de que sua autoridade através dos séculos subseqüentes da filosofia cristã tornouse equivalente à de Aristóteles para a Idade Média o filósofo Comecemos pelo interesse inicial de Santo Agostinho pela Vontade tal como é exposto na primeira parte do tratado escrita nos primeiros tempos as duas partes finais foram escritas quase dez anos depois mais ou menos ao mesmo tempo que as Confissões A questão principal aí é uma investigação sobre a causa do mal pois sem alguma causa ele não poderia existir e Deus não pode ser a causa do mal porque Deus é bom A questão comum mesmo naquela época tinhao atormentado em excesso desde sua mocidade impelindoo à heresia isto é a aderir aos ensinamentos de Maniqueu74 Daí em diante o que temos estritamente é um raciocínio argumentative embora em forma de diálogo assim como em Epiteto e a esta altura os pontos significativos soam como um resumo com propósitos didáticos até que chegamos à conclusão em que o discípulo é levado a dizer Pergunto se o livrearbítrio nos deveria ter sido dado por Aquele que nos fez Pois parece que não poderiamos pecar se não tivéssemos um livrearbítrio E é de se temer que dessa maneira Deus também possa ser considerado a causa de nossos maus atos Nesse ponto Santo Agostinho tranqüiliza o indagador e adia a discussão75 Trinta anos mais tarde de uma forma diferente em Cidade de Deus ele retoma a questão do propósito da Vontade como a do Propósito do Homem A questão cuja resposta adiou por tantos anos é o ponto de partida para uma filosofia da Vontade própria de Santo Agostinho Mas foi em uma interpretação minuciosa da Epístola de São Paulo aos Romanos que ele a concebeu originalmente Nas Confissões bem como nas duas seções finais de O livrearbítrio tira conclusões filosóficas e enuncia as conseqüências do estranho fenômeno o de que é possível querer e na ausência de qualquer empecilho externo ser ainda assim incapaz de realizar que São Paulo descrevera em termos de leis antagônicas Santo Agostinho porém não fala de duas leis mas de duas vontades uma nova e a outra antiga uma carnal e a outra espiritual e descreve em detalhe assim como São Paulo a maneira como essas vontades lutaram dentro dele e como a discórdia entre elas lhe dilacerou a alma76 Em outras palavras toma cuidado para evitar sua própria heresia maniqueísta inicial que ensina que dois princípios antagônicos governam o mundo um bom e um mau um carnal e um espiritual Para ele agora há somente uma lei e o primeiro insight portanto é o mais óbvio e também o mais surpreendente Non hoc velle quod posse querer e poder não são o mesmo77 O que surpreende é estarem as duas faculdades querer e poder realizar tão intimamente ligadas A vontade deve estar presente para que o poder seja produtivo e nem é preciso dizer que o poder deve estar presente para que a vontade possa dele fazer uso Se agimos isso jamais pode ser sem vontade mesmo quando fazemos uma coisa a contragosto sob coação Quando não agimos o motivo pode ser a falta de vontade ou a falta de poder78 Surpreende ainda mais que Santo Agostinho concorde com o argumento principal dos estóicos para explicara predominância da Vontade isto é nada está tanto em nosso poder como a própria vontade pois não há intervalo no momento em que queremos lá está79 Mas ele não acredita que a Vontade seja suficiente A lei não comandaria se não houvesse vontade nem a graça ajudaria se a vontade fosse suficiente O que importa aqui é que a Lei não se dirige ao espírito caso em que simplesmente se revelaria e não ordenaria dirigese sim à Vontade porque o espírito não se move até que queira ser movido E esse é o motivo pelo qual somente a Vontade nem a razão nem os apetites ou desejos está em nossas mãos é livre80 Essa prova da liberdade da Vontade fundase exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que nada tem a ver com qualquer posse ou potestas real a faculdade necessária para se executar os comandos da Vontade A prova retira sua plausibilidade de uma comparação da vontade com a razão por um lado e com os desejos por outro e não é possível para nenhum dos dois dizerse livre Vimos que Aristóteles introduziu suaproairesis para evitar o dilema de dizer que o homem bom obrigase a desviarse de seus apetites ou que o homem vil obrigase a desviarse de sua razão Qualquer coisa que a razão me diga é forçosa no que diz respeito à razão Posso ser capaz de dizerNão para uma verdade a mim revelada mas não posso de modo algum fazêlo em termos racionais Os apetites surgem automaticamente em meu corpo e meus desejos são despertados por objetos que estão fora de mim posso dizer Não a eles aconselhado pela razão ou pela lei de Deus mas a razão em si não me leva à resistência Duns Scotus muito influenciado por Santo Agostinho elabora mais tarde esse argumento Sem dúvida o homem cantai no sentido em que São Paulo o entendia não pode ser livre mas o homem espiritual tampouco é livre Qualquer poder que o intelecto possa ter sobre o espírito será um poder de forçar o que o intelecto jamais pode provar ao espírito é que este não deve simplesmente sujeitarse a ele mas deve também querer fazêlo81 A faculdade da Escolha tão decisiva para o liberum arbitrium aplicase aqui não à seleção deliberativa de meios para um fim mas principalmente e em Santo Agostinho exclusivamente à escolha entre velle e nolle entre querer e nãoquerer Este nolle nada tem a ver com o querernão querer e não pode ser traduzido como eudeixodequerer porque isso sugere ausência de vontade Nolle não é menos ativamente transitivo do que velle e não é menos uma faculdade de vontade se quero o que não desejo tratase de nãoquerer meus desejos e posso do mesmo jeito nãoquerer o que a razão me diz estar certo Em todo ato de vontade há um euquero e um nãoquero envolvidos São essas as duas vontades cuja discórdia Santo Agostinho disse que lhe dilacerou a alma Seguramente aquele que quer quer alguma coisa e este algo lhe é apresentado exteriormente através dos sentidos do corpo ou vem ao espírito por meios ocultos mas o que importa é que nenhum destes objetos determina a vontade82 O que é então que faz a vontade querer O que põe a vontade em movimento A questão é inevitável mas a resposta acaba levando a um regresso ao infinito Pois se a pergunta fosse respondida não irias perguntar também sobre a causa daquela causa caso a descobrisses Não desejarias saber a causa da vontade anterior à vontade Não poderia ser inerente à Vontade nesse sentido não ter uma causa Pois ou a Vontade é a sua própria causa ou não é uma Vontade83 A Vontade é um fato que em sua factualidade puramente contingente não pode ser explicado em termos de causalidade Ou para antecipar uma sugestão do último Heidegger já que a Vontade se experimenta como causadora do acontecimento de coisas que de outra forma não teriam acontecido não poderia ocorrer que aquilo que se esconde por trás da nossa busca de causas não é nem o intelecto nem nossa sede de saber que poderia ser saciada com a informação direta mas precisamente a Vontade como se por trás de cada por que existisse um desejo latente não só de aprender e de conhecer mas também de saber como Finalmente ainda no rastro das dificuldades descritas porém não explicadas na Epístola aos Romanos Santo Agostinho vem a interpretar o lado escandaloso da doutrina da graça de São Paulo Veio a Lei para que crescesse a perdição mas onde o pecado cresceu a graça abundou ainda mais Partindose daí fica difícil não chegar à seguinte conclusão Façamos o mal para que o bem frutifique Ou de forma mais amena valeu ter sido incapaz de fazer o bem em virtude da alegria irresistível da graça como disse uma vez o próprio Santo Agostinho84 Sua resposta nas Confissões aponta para os estranhos caminhos da alma até mesmo na falta de qualquer experiência especificamente religiosa A alma deleitase mais com as coisas encontradas ou reavidas que ama do que se as tivesse possuído sempre O general vitorioso triunfa e quanto maior o perigo no combate maior gozo no triunfo Um amigo está doente Melhora E embora não tenha recuperado a força anterior já há tanto júbilo que é como se não existisse o tempo em que ele caminhava com mais força e vigor E é assim com todas as coisas a vida humana está repleta de testemunhos disso A alegria maior é precedida de uma dor maior este é o modo de ser que cabe a todas coisas vivas do anjo ao menor verme Até Deus uma vez que Ele é um deus vivo sente mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove que não precisam arrependerse85 Esse modo de ser modus é igualmente válido para as coisas vis e para as nobres para as mortais e para as divinas Isto certamente é a quintessência do que São Paulo tinha a dizer mas expresso de uma maneira conceituai não descritiva sem apelar para qualquer interpretação puramente teológica ele oblitera a mordacidade das lamentações e acusações latentes de São Paulo das quais somente o argumentun ad hominem a pergunta no estilo de Jó Quem é você para perguntar tais coisas e levantar tais objeções poderia salválo Na refutação de Santo Agostinho ao estoicismo podemos ver uma transformação e uma solidificação semelhantes ocasionadas por meio de pensamento conceituai O verdadeiramente escandaloso na doutrina não era que o homem pudesse querer dizer Não à realidade mas que este Não fosse insuficiente diziam ao homem que para ele encontrar a tranqüilidade deveria treinar sua vontade a dizer Sim e a deixar sua vontade ser a de que os eventos aconteçam como acontecem Santo Agostinho entende que esta submissão voluntária pressupõe uma limitação rigorosa da própria capacidade da vontade Embora em sua visão a todo velle corresponda um nolle a liberdade da faculdade é limitada porque nenhum ser criado pode querer contra a criação pois isso seriamesmo no caso do suicídio um querer dirigido não só contra uma contravontade mas também contra o próprio sujeito que quer e que nãoquer A vontade a faculdade de um ser vivo não pode dizer preferiría não ser ou preferiría o nada per se Quem disser preferiría não existir a ser infeliz não merece crédito já que enquanto está dizendo isso ainda está vivo Não obstante isso só pode acontecer porque estar vivo sempre implica um desejo de continuar vivendo por essa razão a maior parte das pessoas prefere ser infeliz a não ser absolutamente nada Mas e quanto àqueles que dizem se eu tivesse sido consultado antes de existir teria preferido não existir a ser infeliz Esses não levaram em conta que até mesmo essa proposição é feita com base firme no Ser se considerassem devidamente o assunto veriam que sua própria infelicidade faz com que eles existam menos do que desejam ela lhes toma um pouco da existência O grau de sua infelicidade é proporcional à distância que mantêm daquilo que existe no grau supremo quod summe esí e portanto fora da ordem temporal que está cheia de nãoexistência pois as coisas temporais antes de existir não têm existência enquanto existem passam tendo passado jamais existirão novamente Todos os homens temem a morte e este sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião que nos leve a pensar que deveriamos querer não existir pois o fato é que começar a existir é o mesmo que caminhar para a nãoexistência Em suma todas as coisas pelo simples fato de que são são boas inclusive o mal e o pecado e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus Criador mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a nãoexistência absoluta Nesse contexto é importante observar que Santo Agostinho embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis em nenhum lugar exige como Eckhart fez mais tarde que um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina de modo a querer aquilo que Deus quer portanto se Deus quis que eu pecasse não devo querer não ter cometido meu pecado é este o meu verdadeiro arrependimento86 O que Santo Agostinho infere dessa teoria do Ser não é a Vontade mas a Louvação Agradece por existir louva a todas as coisas pelo simples fato de que existem Evite não somente dizer Seria melhor se os pecadores não existissem mas também Eles devem ter sido constituídos de outra maneira E o mesmo se dá com tudo já que todas as coisas foram criadas dentro da ordem correspondente e se ousares depreciar um deserto fazeo somente porque pode comparálo com o que é melhor E como se alguém que apreendesse pela razão a esfericidade perfeita se indignasse por não poder encontrála na natureza Deveria ficar grato por ter a idéia da esfericidade87 No volume anterior falei da antiga noção grega de que todas as aparências porque aparecem não só implicam a presença de criaturas sensíveis capazes de percebêlas mas também requerem reconhecimento e louvor Esta noção era uma espécie de justificação filosófica da poesia e das artes a alienação do mundo que precedeu o surgimento do pensamento estóico e do cristão conseguiu eliminála de nossa tradição embora nunca a tenha apagado totalmente das reflexões dos poetas Ainda se pode encontrála expressa com muita ênfase em W H Auden que fala sobre Aquele singular comando Não o entendo Agradeça ao que há por existirIA que devo obedecer pois Para que mais sou feito para concordar ou divergir88 no poeta russo Osip Mandelstam e é claro na poesia de Rainer Maria Rilke Quando se encontra essa noção em um contexto estritamente cristão ela já tem um sabor argumentativo desconfortável como se fosse simplesmente uma conclusão necessária da fé incontestada no DeusCriador como se os cristãos tivessem a obrigação de repetir as palavras de Deus após a Criação E Deus viu tudo e isto era muito bom De todo modo as observações de Santo Agostinho sobre a impossibilidade de um nãoquerer completo já que não se pode nãoquerer a própria existência enquanto se está nãoquerendo é impossível portanto nãoquerer absolutamente até mesmo no suicídio configuram uma refutação efetiva das artimanhas espirituais que os filósofos estóicos recomendaram para habilitar os homens a retirarse do mundo continuando a viver nele Voltamos à questão da Vontade nas Confissões que são quase totalmente nãoargumentativas e ricas no que hoje chamamos de descrições fenomenológicas Pois embora Santo Agostinho comece por conceituar a posição de São Paulo ele vai muito além além até de suas próprias primeiras conclusões conceituais de que querer e estar apto a executar não são a mesma coisa de que a lei não poderia mandar se não houvesse vontade nem a graça poderia ajudar se a vontade fosse suficiente de que o modo de perceber de nosso espírito é um modo que procede apenas por uma sucessão de opostos o dia tomandose noite e a noite tomadose dia e que aprendemos sobre a justiça somente tendo a experiência da injustiça sobre a coragem somente através da covardia e assim por diante Refletindo sobre o que de fato acontecera durante o combate ardoroso que travara consigo mesmo antes de sua conversão Santo Agostinho descobriu que a interpretação que São Paulo fazia de uma luta entre carne e espírito estava errada Pois meu corpo obedecia mais facilmente à mais fraca das vontades de minha alma movendo seus membros a um mínimo sinal do que minha alma obedecia a si mesma para efetuar essa grande vontade que só na vontade pode ser realizada89 Assim o problema não estava na natureza dual do homem metade carne e metade espírito encontravase na própria faculdade da Vontade De onde vem tal monstruosidade E por que motivo O espírito ordena ao corpo e este imediatamente lhe obedece o espírito dá uma ordem a si mesmo ele resiste Unde hoc monstrum et quare istud Imperat ainimus corpori et paretur statin imperate animus sibi et resistitur O corpo não tem vontade própria e obedece ao espírito embora ele seja diferente do corpo Mas quando o espírito ordena ao espírito que ele queira ainda que seja o mesmo espírito ele não obedece De onde provém esta monstruosidade Qual a razão Repito o espírito ordena a si que queira algo e se não quisesse não ordenaria e não executa o que lhe manda Talvez prossegue Santo Agostinho isso possa ser explicado por uma certa fraqueza da vontade uma falta de compromisso talvez o espírito não queira totalmente portanto tampouco ordena terminantemente e portanto não é o que manda Mas quem manda aqui o espírito ou a vontade Porventura o espírito animus ordena à vontade e então hesita de modo que a vontade não receba uma ordem clara A resposta é não pois é a vontade que ordena que haja vontade não uma outra vontade como ocorrería se o espírito se dividisse entre vontades conflitantes mas exatamente a mesma vontade90 A cisão dáse na própria vontade o conflito não surge de uma cisão entre o espírito e a vontade e tampouco de uma cisão entre a carne e o espírito Isso comprovase pelo simples fato de que a Vontade fala sempre no modo imperativo Tu Deves Querer diz a Vontade a si mesma Somente a própria Vontade tem poder para emitir semelhantes ordens e se a vontade fosse plena não ordenaria que fosse vontade É da natureza da Vontade duplicarse e neste sentido onde quer que haja uma vontade há sempre duas vontades nenhuma das quais é plena tota e o que falta a uma está presente na outra Por essa razão são sempre necessárias duas vontades antagônicas para se chegar a ter vontade não é portanto monstruoso querer em parte e em parte nãoquerer Et ideo sunt duae voluntates quia una earun tota non est Non igitur monstrum partim velle partim nolle O problema é que é o mesmo ego volitivo que simultaneamente quer e não quer Era eu o que queria era eu o que não queria eu mesmo Não era um querer total e tampouco um nãoquerer completo e isso não significa que eu tivesse dois espíritos um bom e o outro mau mas que o tumulto das duas vontades em um só espírito dilaceravame91 Os maniqueístas explicavam o conflito assumindo a existência de duas naturezas contrárias uma boa e a outra má Mas se houvesse tantas naturezas contrárias quantas vontades em luta dentro de nós não haveria só duas mas sim muitas naturezas Pois encontramos o mesmo conflito de vontades onde nenhuma escolha entre o bem e o mal está em jogo onde ambas as vontades devem ser ditas más ou ambas ditas boas Sempre que um homem tenta chegar a uma decisão encontrase um espírito oscilando entre muitas vontades Suponha que alguém tente se decidir entre ir ao circo ou ao teatro se ambos forem no mesmo dia ou a um terceiro lugar roubar a casa de alguém ou a um quarto lugar cometer adultério e todas estas vontades se realizassem no mesmo momento todas igualmente desejadas sendo coisas que não podem acontecer ao mesmo tempo Temos aqui quatro vontades todas más e todas em conflito dilacerando o ego volitivo E o mesmo se dá com vontades que são boas92 Santo Agostinho não nos informa nesse ponto como tais conflitos se resolvem apenas admite que em um dado momento escolhese um objetivo para onde a vontade única e plena antes multiplamente dividida pode ser conduzida Mas a cura da vontade e este é um ponto decisivo não advém da graça divina No final das Confissões ele volta mais uma vez ao problema e com base em certas considerações bastante diferentes explicitamente demonstradas em Sobre a Trindade obra que levou quinze anos para escrever de 400 a 416 dá seu diagnóstico a vontade final e unificadora que por fim decide a conduta de um homem é o Amor O Amor é o peso da alma sua lei da gravidade aquilo que leva o movimento da alma ao repouso Um tanto influenciado pela física aristotélica Santo Agostinho sustenta que o fim de todo movimento é o repouso compreendendo agora as emoções movimentos da alma em uma analogia com os movimentos do mundo físico Pois os corpos nada mais desejam por seu peso do que a alma deseja por seu amor Assim nas Confissões Meu peso é o meu amor é ele que me leva onde quer eu vá93 Devemos reter o seguinte primeiro a cisão dentro da Vontade é um conflito não um diálogo e independe do conteúdo daquilo que se quer Uma vontade ruim não é menos dividida do que uma boa e viceversa Segundo a vontade comandando o corpo não passa de um órgão executivo do espírito e como tal não apresenta maiores problemas O corpo obedece ao espírito porque não possui qualquer órgão que torne possível a desobediência A vontade ao dirigirse a si mesma desperta a contra vontade porque o intercâmbio se dá completamente no espírito uma competição só é possível entre iguais Uma vontade que fosse plena sem uma contravontade já não poderia ser adequadamente chamada de vontade Terceiro uma vez que está na natureza da vontade ordenar e exigir obediência está também na natureza da vontade resistir a si mesma Finalmente no quadro das Confissões não se dá qualquer solução ao enigma dessa faculdade monstruosa permanece um mistério a explicação de como a vontade dividida contra si mesma chega finalmente ao momento em que se toma plena Se é esse o modo como a vontade funciona como é que ela pode chegar a nos fazer agir a preferir por exemplo o roubo ao adultério Pois as flutuações da alma de Santo Agostinho flutuações entre muitos fins igualmente desejáveis são muito diferentes das deliberações de Aristóteles que envolvem não os fins mas os meios para um fim que é dado pela natureza humana Nas principais análises de Santo Agostinho semelhante árbitro final nunca aparece a não ser no término das Confissões quando ele subitamente começa a falar da Vontade como uma espécie de Amor o peso de nossa alma sem dar entretanto qualquer explicação para essa estranha identificação Essa solução é evidentemente uma exigência uma vez que sabemos que tais conflitos do ego volitivo são resolvidos no final Na verdade como irei demonstrar adiante aquilo que parece um deus ex machina nas Confissões deriva de uma teoria diferente da Vontade Mas antes de nos voltarmos para Sobre a Trindade pode ser útil uma interrupção para vermos como o mesmo problema é tratado em termos de consciência por um pensador moderno John Stuart Mill ao examinar a questão da vontade livre sugere que a confusão de idéias comum nessa área da filosofia tem de ser muito natural para o espírito humano e descreve de maneira menos vivida e também menos precisa mas com palavras estranhamente semelhantes àquelas que acabamos de ouvir os conflitos a que está sujeito o ego volitivo É errado insiste descrevêlos como se ocorressem entre mim e alguma força estranha a qual conquisto ou pela qual sou sobrepujado Pois é óbvio que eu sou ambas as partes nesta disputa o conflito se dá de mim para comigo mesmo O que faz com que eu ou se preferir minha Vontade me identifique com um dos lados ao invés do outro é que um dos eus representa um estado mais permanente dos meus sentimentos do que o outro Mill precisou desta permanência porque era inteiramente contrário à idéia de que temos consciência de sermos capazes de nos contrapor ao mais forte desejo ou aversão tinha portanto que explicar o fenômeno do arrependimento O que descobriu então foi que depois de se cair em tentação isto é no maior desejo do momento o eu desejante termina mas o eu que tem a consciência pesada pode perdurar até o fim da vida Embora este persistente eu da consciência pesada não tenha qualquer importância nas considerações posteriores de Mill ele sugere aqui a intervenção de algo chamado consciência moral ou caráter que sobrevive a todas as volições ou desejos temporalmente limitados De acordo com Mill o eu que perdura e que se manifesta somente quando uma volição chega a seu fim deveria assemelharse a qualquer coisa que tenha impedido o asno de Buridan de morrer de fome na dúvida entre dois montes de feno com o mesmo cheiro bom Por simples cansaço misturado à sensação de fome o animal acabariapor deixar completamente de pensar nos objetos rivais Mas isto Mill dificilmente poderia admitir já que o eu que perdura é claramente uma das partes na disputa e quando ele diz que o objeto da educação moral é a educação da vontade está pressupondo que é possível ensinar uma das partes a vencer A educação entra aqui como um deus ex machina a proposição de Mill baseiase em um pressuposto não examinado semelhante aos que os filósofos da moral adotam com uma confiança enorme e que não podem ser provados ou refutados94 Não se pode esperar de Santo Agostinho esse mesmo tipo estranho de confiança ela surgiu muito mais tarde para neutralizar pelo menos na esfera da ética e de certo modo por decreto a dúvida universal que caracteriza a Era Moderna a que Nietzsche corretamente a meu ver chamou de era da suspeita Quando os homens não podiam mais louvar voltaram seus maiores esforços conceituais para justificar Deus e sua Criação em teodicéias Mas é claro que Santo Agostinho também precisava de alguma forma de redenção da Vontade A graça divina não poderia servir uma vez que ele descobrira que a fragmentação da Vontade era a mesma tanto para a má quanto para a boa vontade é um tanto difícil imaginar a graça de Deus decidindo se devo ir ao teatro ou cometer adultério Santo Agostinho vai encontrar sua solução em uma abordagem totalmente nova do problema Passa a investigar a Vontade não isolada das outras faculdades do espírito mas em sua interrelação com elas a questão principal agora é a seguinte qual a função da vontade na Vida do espírito como um todo Ainda assim o dado fenomênico que sugeriu a resposta antes mesmo que ela fosse encontrada e devidamente delineada é curiosamente algo semelhante ao eu que perdura de Mill Nas palavras de Santo Agostinho este dado seria que há alguém em mim que é mais eu do que eu mesmo95 O insight que mais se destaca no tratado Sobre a Trindade provém do mistério da trindade cristã Pai Filho e Espírito Santo três substâncias quando cada uma está em relação consigo mesma podem ao mesmo tempo formar uma Unidade assegurando assim que o dogma não significa uma quebra do monoteísmo A unidade se dá porque todas as três substâncias são mutuamente predicadas em relação umas com as outras sem que com isso percam a existência em suaprópria substância não é esse o caso por exemplo quando uma core um objeto colorido são mutuamente predicados na relação que mantêm pois a cor não tem substância própria uma vez que o corpo colorido é uma substância mas a cor está em uma substância96 O paradigma de uma relação mutuamente predicada entre substâncias independentes é a amizade podese dizer de dois homens amigos que são substâncias independentes enquanto relacionados a si mesmos são amigos somente na relação que mantêm entre si Um par de amigos só forma uma unidade só forma Um à medida que e enquanto são amigos no momento em que a amizade acaba eles são novamente duas substâncias independentes Isso demonstra que alguém ou algo pode ser uma Unidade na relação que mantém somente consigo e ainda assim ser tão relacionado a um outro estar a ele tão intimamente ligado que os dois podem aparecer como uma Unidade sem modificar sua substância sem perder sua independência substancial e sua identidade E assim com a Santíssima Trindade Deus permanece Um quando relacionado somente a Si mesmo mas é três na unidade com o Filho e o Espírito Santo O importante aqui é que uma tal relação mutuamente predicada pode ocorrer apenas entre iguais portanto não se pode aplicála à relação entre o corpo e a alma entre o homem carnal e o espiritual embora eles sempre apareçam juntos porque aqui a alma é obviamente o princípio governante Para Santo Agostinho no entanto o misterioso trêsemum tem que ser encontrado em algum lugar na natureza humana uma vez que Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança e uma vez que é precisamente o espírito humano que distingue o homem de todas as outras criaturas o trêsemum será provavelmente encontrado na estrutura do espírito Encontramos as primeiras mostras dessa nova linha de investigação no final das Confissões a obra anterior mais próxima de Sobre a trindade Ali ocorre pela primeira vez a Santo Agostinho utilizar o dogma teológico do trêsemum como um princípio filosófico geral Insta o leitor a considerar essas três coisas que existem em si mesmas e são bem diferentes da Trindade as três coisas de que falo são Ser Conhecer e Querer As três estão interligadas Pois eu Sou Conhecendo e Querendo e tenho Conhecimento de que Sou e de que Quero e Quero Ser e Conhecer Repare quem puder nesses três quão inseparável é uma vida um espírito uma essência enfim como é difícil a distinção que ainda assim existe97 A analogia não significa é claro que o Ser é análogo ao Pai o Conhecer ao Filho e o Querer ao Espírito Santo O que interessa a Santo Agostinho é simplesmente que o Eu espiritual contém três coisas totalmente diferentes que são inseparáveis e ainda assim distintas A tríade Ser Querer e Conhecer aparece somente na formulação um tanto incerta das Confissões é óbvio que o Ser aqui não está em seu lugar já que não é uma faculdade do espírito Em Sobre a Trindade a mais importante tríade do espírito é Memória Intelecto e Vontade Essas três faculdades não são três espíritos mas um só Referemse mutuamente sendo que cada uma é compreendida pelas outras duas e que também mantêm relação consigo mesmas Lembrome de que tenho memória intelecto e vontade entendo que entendo quero e me lembro e quero querer lembrarme e entender98 Essas três faculdades são iguais em peso mas sua Unidade devese à Vontade A Vontade diz à Memória o que reter e o que esquecer diz ao Intelecto o que escolher para o entendimento A Memória e o Intelecto são contemplativos e sendo assim são passivos é a Vontade que os faz trabalhar e que ao final os reúne Somente quando através de uma destas faculdades a saber a Vontade as três são forçadas a tomarse uma unidade estamos falando de pensamento o cogitado que Santo Agostinho jogando com a etimologia deriva de cogere coactum obrigar a junção unir à força Atque ita fit ilia trinitas ex memória et interna visione et quae utrumque copulat voluntate Quia tria in unum coguntur ab ipso coactu cogitado diciturw A força unificadora da Vontade não funciona só na atividade puramente espiritual manifestase também na percepção sensorial É esse elemento do espírito que dá significado à sensação Em todo ato de visão diz Santo Agostinho temos que distinguir as três seguintes coisas o objeto que vemos e esse pode naturalmente existir antes de ser visto em segundo lugar a visão que não estava lá antes de percebermos o objeto e em terceiro lugar a força que fixa o sentido da visão no objeto a saber a atenção do espírito Sem esta última uma função da Vontade temos apenas impressões sensoriais sem que realmente as percebamos um objeto é visto somente quando concentramos nosso espírito na percepção Podemos ver sem perceber e ouvir sem escutar como acontece amiúde quando estamos distraídos A atenção do espírito é necessária para transformar a sensação em percepção a Vontade que fixa o sentido na coisa vista estabelecendo um nexo entre os dois é essencialmente diferente do olho que vê e do objeto visível é espírito e não corpo Além disso ao fixar nosso espírito no que vemos ou ouvimos estamos dizendo à nossa memória o que é para ser lembrado e ao nosso intelecto o que é para ser entendido que objetos se deve tentar alcançar na busca de conhecimento A memória e o intelecto retiraramse das aparências exteriores e não é com essas aparências em si a árvore real que lidam mas com imagens a árvore vista que estão claramente dentro de nós Em outras palavras a Vontade por meio da atenção primeiro une os nossos órgãos dos sentidos ao mundo real de uma forma significativa e então arrasta esse mundo exterior para dentro nós preparandoo para operações posteriores do espírito para ser lembrado para ser entendido par ser afirmado ou negado Pois as imagens internas não são absolutamente meras ilusões Ao nos concentrarmos com exclusividade nas imaginações internas e ao voltarmos por completo o olho do espírito para longe dos corpos que cercam os nossos sentidos deparamos com uma semelhança tão surpreendente das espécies corpóreas expressadas pela memória que é difícil dizer se estamos vendo ou simplesmente imaginando Tão grande é o poder do espírito sobre o seu corpo que a pura imaginação pode despertar os órgãos genitais101 Esse poderão espírito devese não ao Intelecto tampouco à Memória mas somente à Vontade que une a interioridade do espírito ao mundo exterior A posição privilegiada do homem dentro da Criação no mundo exterior se deve ao espírito que imagina de dentro e ainda assim imagina coisas que são de fora Pois ninguém poderia usar tais coisas do mundo exterior a não ser que as imagens das coisas sensíveis ficassem retidas na memória e a não ser que a mesma vontade fosse adaptada tanto aos corpos de fora quanto às suas imagens de dentro102 Essa Vontade como a força que unifica e liga o aparato sensorial humano ao mundo exterior e é então aquilo que reúne as diferentes faculdades espirituais do homem apresenta duas características que estiveram completamente ausentes das várias descrições de vontade que examinamos até aqui Essa Vontade poderia ser entendida como a fonte da ação ao orientar a atenção dos sentidos controlando as imagens impressas na memória e fornecendo ao intelecto o material para a compreensão a Vontade prepara o terreno no qual a ação se pode dar Ficase tentado a afirmar que essa Vontade está tão ocupada preparando a ação que sequer tem tempo de se envolver na controvérsia com suaprópria contravontade E assim como no homem e na mulher há uma só carne de dois também a natureza única do espírito a Vontade abarca nosso intelecto e nossa ação ou nosso conselho e nossa execução Assim como foi dito daqueles homem e mulher Devem ser dois em uma só carne podese também dizer destes do homem interior e do exterior Dois em um só espírito103 Eis aqui um primeiro indício de certas conseqüências que muito mais tarde Duns Scotus viria a extrair do voluntarismo agostiniano a redenção da vontade não pode ser espiritual e tampouco advém de intervenção divina a redenção vem do ato que com frequência na forma de um coup détat na expressão bemachada de Bergson interrompe o conflito entre o velle e o nolle E o preço da redenção é como veremos a liberdade Assim como expressou Duns Scotus seguindo o resumo de um comentador moderno é possível para mim estar escrevendo neste momento assim como me é possível não estar a escrever Ainda sou completamente livre e pago por essa liberdade pelo fato curioso de que a Vontade sempre quer e nãoquer ao mesmo tempo a atividade do espírito no caso da vontade não exclui o seu oposto Ainda assim meu ato de escrever exclui o seu oposto Por um ato de vontade posso me determinar a escrever e por outro posso decidir não escrever mas minha ação com relação às duas coisas não pode ser simultânea104 Em outras palavras a Vontade é redimida cessando de querer e começando a agir e a interrupção não pode se originar de um ato de querernãoquerer pois isso já seria uma nova volição Em Santo Agostinho assim como mais tarde em Duns Scotus a solução do conflito interno da Vontade surge por uma transformação na própria Vontade por sua transformação em Amor A Vontade vista em seu aspecto operatório e funcional como um agente de união de ligação pode também ser definida como Amor voluntas amor seu dilectio105 pois o Amor é obviamente o agente de ligação de maior êxito No Amor há novamente três coisas aquele que ama aquilo que é amado e o Amor O Amor é uma certa vida que liga duas coisas aquele que ama e aquilo que é amado106 Do mesmo modo a Vontade como atenção era necessária para efetuar a percepção ligando aquele que tem olhos para ver àquilo que é visível só que a força unificadora do Amor é mais forte Pois aquilo que o Amor liga está maravilhosamente unido de forma que haja uma coesão entre o que ama e o que é amado cohaerunt enim mirabiliter glutino amorism A grande vantagem da transformação é não só a maior força do Amor na unificação do que está separado quando a Vontade ligando a forma do corpo que se vê e a imagem que aparece ao sentido isto é ao sentido da visão é tão violenta que mantém o sentidocra na visão uma vez que ela tenha se formado esta vontade pode também ser chamada de amor ou desejo ou paixão108 mas vem também do fato de que o amor ao contrário da vontade e do desejo não se extingue quando alcança seu objetivo mas sim possibilita ao espírito permanecer imóvel para poder desfrutálo O que a vontade não é capaz de realizar é esse desfrutar imóvel a vontade é dada como uma faculdade do espírito porque o espírito não se basta e em virtude de sua necessidade e do seu querer tomase excessivamente atento às suas próprias ações109 A vontade decide como usar a memória e o intelecto isto é remete estas faculdades a alguma outra coisa mas não sabe como usálas com o júbilo não da esperança mas do que é realmente o melhor110 E este o motivo pelo qual a vontade não está jamais satisfeita pois satisfação significa que a vontade está em repouso111 e nada e certamente nunca a esperança pode apaziguar a inquietação de vontade a não ser a resignação o desfrutar calmo e duradouro de algo presente somente a força do amor é tão grande que faz com que o espírito envolva em si mesmo as coisas sobre as quais refletiu longamente com amor112 Todo o espírito está nas coisas sobre as quais pensa com amor e são essas as coisas sem as quais ele não pode pensar em si mesmo113 A ênfase aqui recai sobre o pensar do espírito em si mesmo e o amor que acalma o tumulto e a inquietação da vontade não é o amor das coisas tangíveis mas as pegadas deixadas pelas coisas sensíveis no interior do espírito Ao longo de todo o tratado Santo Agostinho é cuidadoso em estabelecer a distinção entre pensar e conhecer ou entre sabedoria e conhecimento Uma coisa é não se ter conhecimento de si outra é não se pensar em si114 No caso do Amor a pegada duradoura que o espírito transforma em coisa inteligível não seria nem o que ama e nem o amado mas o terceiro elemento a saber o próprio Amor o amor com o qual os amantes se amam A dificuldade nessas coisas inteligíveis é que embora estejam tão presentes à mirada do espírito quanto as coisas tangíveis estão presentes aos sentidos corporais alguém que chega a elas não se detém nelas e criase assim um pensamento transitório de uma coisa que não é transitória E este pensamento transitório é memorizado de modo que haja um lugar para onde o pensamento possa de novo retomar O exemplo que ele dá de durabilidade em meio à transitoriedade humana é retirado da música E como se alguém fosse querer apreender uma melodia passando por intervalos de tempo enquanto ela está à parte do tempo em uma espécie de silêncio secreto e sublime sem a memória para registrar a seqüência de sons não seria possível sequer conceber a melodia ainda que se pudesse ouvir o canto115 O que o Amor produz é a duração uma permanência da qual o espírito seria de outra forma incapaz Santo Agostinho conceituou as palavras de São Paulo na Epístola aos Coríntios O amor não acaba nunca permanecem estes três a fé a esperança e o amor porém o maior destes o mais durável por assim dizer é o amor I Coríntios 138 Para resumir a Vontade de Santo Agostinho que não é concebida como uma faculdade isolada mas em sua função dentro do espírito como um todo em que todas as faculdades individuais memória intelecto e vontade referemse mutuamente116 encontra redenção ao transformar se em Amor O Amor como uma espécie de vontade duradoura e livre de conflitos apresenta uma semelhança óbvia com o eu que perdura de Mill que prevalece finalmente nas decisões da vontade O Amor de Santo Agostinho exerce sua influência pelo peso a vontade assemelhase a um peso117 juntase à alma interrompendo assim suas flutuações Os homens não vêm a ser justos por saber o que é justo mas por amar a justiça O amor é a gravidade da alma ou o contrário a gravidade específica dos corpos é por assim dizer seu amor118 No mais o que se salva nessa transformação da concepção mais antiga de Santo Agostinho é o poder que a Vontade tem de afirmar ou negar não há maior afirmação de algo ou de alguém do que amar este algo ou alguém isto é do que dizer quero que tu sejas Amo Volo ut sis Até aqui deixamos de lado todas as questões estritamente teológicas e junto com elas o maior problema que a vontade livre apresenta para toda a filosofia estritamente cristã Nos primeiros séculos depois de Cristo a existência do Universo podia ser explicada como emanação o fluxo de forças divinas e antidivinas sem necessidade da pessoa de um Deus por trás de tudo Ou seguindo a tradição hebraica podia ser explicada como criação tendo a figura de um Deus como seu autor O autor divino criou o mundo por Sua própria vontade livre e criouo do nada E criou o homem à Sua imagem isto é dotouo também de uma vontade livre A partir daí as teorias da emanação corresponderam às teorias fatalistas ou deterministas da necessidade as teorias da criação tinham que lidar teologicamente com a Vontade Livre de Deus que foi Quem decidiu criar o mundo e conciliar esta Liberdade com a liberdade da criatura o homem Porque Deus é onipotente Ele pode sobreporse à vontade do homem e tem conhecimento prévio a liberdade humana parece ficar duplamente neutralizada O argumento padrão então é o seguinte Deus apenas prevê Ele não compele Encontrase o argumento também em Santo Agostinho mas ele propõe no mínimo uma linha de pensamento muito diferente Retomamos anteriormente os argumentos básicos dados para explicar a enorme importância que tiveram fatalismo e determinismo na mentalidade do mundo clássico especialmente na Antiguidade romana E vimos com Cícero como este raciocínio sempre acabava em contradições e paradoxos Todos lembramse do chamado argumento vão quando adoecemos já está predestinado se vamos ou não vamos nos recuperar quer chamemos um médico quer não Em outras palavras todas as nossas faculdades tomamse vãs quando seguimos esta linha de pensamento sem trapacear O raciocínio baseiase em causas anteriores isto é baseiase no passado Mas é claro que é no futuro que estamos realmente interessados Queremos que o futuro seja previsível era para ser mas basta começar a argumentar nesta linha para deparar com outro paradoxo Se posso prever que vou morrer amanhã em um desastre de avião então não sairei da cama amanhã Mas desse modo não morro Mas então não terei previsto corretamente o futuro119 A falha dos dois argumentos tanto no relacionado com o passado quanto no relacionado com o futuro é a mesma o primeiro extrapola o presente para o passado e o segundo extrapolao para o futuro e ambos assumem que o agente da extrapolação fica de fora da esfera em que o acontecimento se dá e que ele o observador externo não tem qualquer poder para agir ele mesmo não é uma causa Em outras palavras uma vez que o próprio homem é parte inseparável do processo temporal que é um ser com um passado e uma faculdade especial para o passado chamada memória uma vez que vive no presente e anseia pelo futuro ele não pode saltar para fora da ordem temporal Acentuei anteriormente o fato de que o argumento do determinismo só alcança agudeza real quando se introduz Alguém que tudo prevê que se situa fora da ordem temporal e vê o que acontece da perspectiva da eternidade Ao introduzir este Alguém Santo Agostinho foi capaz de chegar ao seu ensinamento mais dúbio e também mais terrível a doutrina da predestinação Não estamos interessados aqui nessa doutrina uma radicalização perversa da doutrina de São Paulo segundo o qual a salvação não está nas ações mas na fé e é dada pela graça de Deus de modo que nem mesmo a fé está em poder dos homens Essa doutrina encontrase em um dos últimos tratados On grace and free will escrito contra os seguidores do pelagianismo os quais referindose precisamente às doutrinas agostinianas iniciais da vontade enfatizaram os méritos da boa vontade antecedente para se receber a graça cujo concedimento só era completamente gratuito no perdão aos pecados120 Os argumentos filosóficos não para a predestinação mas para a co existência da vontade livre do homem e da onisciência de Deus ocorrem em uma discussão do Timeu de Platão O conhecimento humano é de vários tipos os homens conhecem de maneiras diferentes coisas que ainda não são coisas que são e coisas que foram Mas não é do nosso modo que Ele olha à frente para o que é futuro nem para o que é presente ou para trás para o que é passado é de uma maneira completa e profundamente diferente do nosso modo de pensar Pois Ele não passa disso àquilo seguindo em pensamento aquilo que se modificou do passado para o presente para o futuro mas vê na totalidade de maneira imutável de modo que todas as coisas que para nós se erguem temporalmente o futuro que ainda não é bem como o presente que já é e o passado que não é mais são por Ele compreendidas em presença estável e perpétua tampouco Ele enxerga de modo diverso com os olhos do corpo e com os olhos do espírito pois Ele não é composto de espírito e corpo nem Ele vê de modo diferente o agora o antes e o depois pois seu conhecimento ao contrário do nosso não é um conhecimento de três tempos presente passado e futuro através de cuja variação nosso conhecimento é afetado Nem há qualquer intenção que passe de pensamento em pensamento em cuja intuição incorpórea todas as coisas que Ele conhece estão presentes de uma só vez Pois Ele conhece todos os tempos sem noções temporais exatamente como Ele move todas as coisas temporais sem movimentos temporais121 Nesse contexto não se pode mais falar do conhecimento prévio de Deus para Ele o passado e o futuro não existem A Eternidade entendida em termos humanos é um presente perpétuo Se o presente fosse sempre presente já não seria tempo mas sim eternidade122 Citei de forma um tanto extensa esse argumento porque se é possível supor que há uma pessoa para quem a ordem temporal não existe a coexistência da vontade livre do homem e da consciência de Deus deixa de ser um problema insolúvel No mínimo ela pode ser abordada como parte do problema da temporalidade do homem isto é em uma consideração de todas as nossas faculdades relacionadas ao tempo Encontrase uma preparação para esse novo pontodevista que é explicado em A cidade de Deus no famoso Livro XI das Confissões para o qual agora iremos nos voltar de maneira breve Considerados em termos de categorias temporais o presente das coisas passadas está na memória o presente das coisas presentes está em uma intuição do espírito contuitus uma visão que reúne as coisas e presta atenção a elas e o presente das coisas futuras está na expectativa121 Mas esses triplos presentes do espírito não constituem em si o tempo constituem o tempo somente porque passam de um para o outro do futuro atravessando o presente pelo qual se vai ao passado e o presente é o menos durável dos três uma vez que não tem espaço próprio Portanto o tempo passa daquilo que ainda não existe por aquilo que não tem espaço para aquilo que já não existe124 O Tempo portanto não pode absolutamente ser constituído pelos movimentos dos corpos celestiais os movimentos dos corpos estão no tempo somente à medida que têm um início e um fim e o tempo que pode ser medido está no próprio espírito isto é do tempo em que comecei a ver ao tempo em que deixei de ver Pois medimos na verdade o intervalo entre algo que começa até ter algum tipo de fim e isso só é possível porque o espírito retém em seu próprio presente a expectativa daquilo que ainda não é a que presta atenção e relembra quando passa O espírito desempenha essa ação temporalizante em cada ato cotidiano Estou prestes a recitar um salmo A vida deste meu ato se divide em memória pelo que já recitei e em expectativa pelo que estou para recitar A atenção está presente e através dela o que era futuro é levado traiiciatur a tomarse passado A atenção como vimos é uma das maiores funções da Vontade o grande elemento unificador que aqui naquilo que Santo Agostinho chama de distensão do espírito reúne os tempos verbais do tempo no presente do espírito A atenção perdura e através dela aquilo que será presente sucede para tornarse algo ausente a saber o passado E o mesmo dáse em toda a vida do homem que jamais seria um todo sem a distensão do espírito o mesmo dáse também em toda a era dos filhos dos homens da qual as vidas dos homens são apenas partes isto é à medida que esta era possa ser recontada como uma história coerente e contínua125 Partindo da perspectiva da temporalidade das faculdades humanas Santo Agostinho retoma mais uma vez então no último dos grandes tratados A cidade de Deus ao problema da Vontade126 Enuncia ali a principal dificuldade Deus embora seja Ele mesmo eterno e sem começo fez com que o tempo tivesse um começo e o homem que Ele previamente não havia feito Ele o fez no tempo127 A criação do mundo e do tempo coincidem o mundo foi feito não no tempo mas junto com o tempo não só porque a própria criação implica um começo mas também porque as criaturas vivas foram feitas antes de ser feito o homem Onde não há criatura cujo movimento de transformação permita a sucessão não é absolutamente possível haver tempo sendo o tempo impossível sem a criatura128 Mas qual foi então o propósito de Deus ao criar o homem indaga Santo Agostinho por que Ele quis fazêlo no tempo este que Ele nunca fizera antes Diz que essa questão é algo com efeito profundo e fala da profundidade imperscrutável deste propósito de criar o homem temporal hominem temporalem que jamais existira antes isto é uma criatura que não vive simplesmente no tempo mas que é essencialmente temporal que é de certo modo a essência do tempo129 Para responder a esta questão dificílima da criação de coisas novas por um Deus eterno Santo Agostinho vê primeiramente a necessidade de refutar o conceito cíclico de tempo dos filósofos uma vez que a novidade não poderia ocorrer em ciclos Dá então uma resposta bastante surpreendente à questão de por que teria sido necessário criar o Homem separado de todas as outras criaturas e acima delas Para que possa haver novidade ele diz há de haver um começo e esse começo jamais existira antes isto é nunca antes da criação do Homem Portanto para que um tal começo pudesse ser foi o homem criado sem que ninguém o fosse antes dele quod initium eo modo antea nunquam fuit Hoc ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit130 E Santo Agostinho distingue este começo do começo da criação usando a palavra initium para a criação do Homem mas principium para a criação dos Céus e da Terra131 Quanto às criaturas vivas feitas antes do Homem elas foram criadas no plural como começos de espécies ao contrário do Homem que foi criado no singular e continuou a propagarse a partir de indivíduos132 E o caráter de individualidade do Homem que explica o fato de Santo Agostinho dizer que não havia ninguém antes dele isto é ninguém que se pudesse chamar de pessoa esta individualidade manifestase na Vontade Santo Agostinho propõe o caso dos gêmeos idênticos ambos com temperamentos semelhantes do corpo e da alma Como podemos distingui los O único dom que permite a distinção entre os dois é sua vontade se ambos são igualmente tentados e um cai na tentação enquanto o outro permanece impassível o que mais pode causar isso senão suas próprias vontades nos casos em que o temperamento é idêntico133 Em outras palavras e elaborando um pouco essas especulações temos o seguinte o Homem é posto em um mundo de mudança e de movimento como um novo começo porque sabe que tem um começo e que terá um fim sabe até mesmo que este começo é o começo de seu fim toda a nossa vida nada mais é do que uma corrida em direção à morte134 Nenhum animal de nenhuma espécie tem neste sentido um começo ou um fim Com o homem criado à imagem do próprio Deus veio ao mundo um ser que por ser um começo correndo para um fim pôde ser dotado da capacidade de querer ou não querer Nesse aspecto ele foi a imagem de um DeusCriador mas uma vez que era temporal e não eterno a capacidade foi completamente dirigida para o futuro Sempre que Santo Agostinho fala dos três tempos verbais enfatiza a primazia do futuro de modo semelhante a Hegel como vimos O primado da Vontade entre as faculdades do espírito exige a primazia do futuro nas especulações sobre o tempo Todo homem sendo criado no singular é um novo começo em virtude de ter nascido se Santo Agostinho tivesse levado essas especulações às suas consequências teria definido os homens não à maneira dos gregos como mortais mas como natais e teria definido a liberdade da Vontade não como o liberum arbitrium a escolha livre entre querer e não querer mas como a liberdade de que fala Kant na Crítica da razão pura A faculdade do homem de começar espontaneamente uma série no tempo a qual ao ocorrer no mundo pode ter um primeiro começo apenas relativo e que ainda assim é um começo absolutamente primeiro não no tempo mas na causalidade deve ser novamente invocada Se por exemplo levantome agora da cadeira em completa liberdade uma nova série com todas as suas conseqüências naturais in infinitum tem seu começo absoluto neste acontecimento135 A distinção entre um começo absoluto e um relativo aponta para o mesmo fenômeno que enxergamos na distinção que Santo Agostinho fez entre oprincipium do Céu e da Terra e o initium do Homem E se Kant tivesse conhecido a filosofia da natalidade de Santo Agostinho provavelmente teria concordado que a liberdade da espontaneidade relativamente absoluta não é mais embaraçosa para a razão humana do que o fato de os homens nascerem continuamente recém chegados a um mundo que os precede no tempo A liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana Seu órgão espiritual é a Vontade Capítulo 3 O Querer e o Intelecto 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto Há mais de quarenta anos Etienne Gilson o grande revigorador da filosofia cristã falando em Aberdeen na posição de Gifford Lecturer discursou sobre o reflorescimento magnífico da filosofia grega no século XIII o resultado foi uma formulação clássica e a meu ver duradoura O Espírito da filosofia medieval do princípio básico de toda a especulação medieval Referiuse afides quaerens intellectum a fé pedindo auxílio ao intelecto de Santo Anselmo fazendo assim da filosofia ancilla theologiae a serva da fé Havia sempre o perigo de a serva tomarse ama conforme a advertência do Papa Gregório IX na Universidade de Paris que antecipava em mais de duzentos anos os fulminantes ataques de Lutero a esta stultitia a esta loucura Menciono o nome de Gilson certamente não para sugerir comparações que seriam fatais para mim mesma mas ao invés disso por um sentimento de gratidão e também com a finalidade de explicar por que daqui por diante evitarei discutir assuntos que foram há muito tempo tratados de maneira tão magistral e com um resultado que está disponível até mesmo em brochura Oitocentos anos separam São Tomás de Santo Agostinho tempo suficiente não só para fazer do Bispo de Hipona um santo e um Padre da Igreja mas também para conferirlhe uma autoridade igual à de Aristóteles e quase igual à de São Paulo o Apóstolo Na Idade Média tal autoridade era da maior importância nada poderia ser mais nocivo a uma nova doutrina do que se declarar abertamente nova nunca houve maior predomínio daquilo que Gilson chamou de ipsedixitismo Mesmo quando São Tomás discorda completamente de uma opinião precisa citar alguém de autoridade para estabelecer a doutrina contra a qual irá então argumentar Sem dúvida isso tinha algo a ver com a autoridade absoluta da palavra de Deus registrada em livros no Velho e no Novo Testamento mas o que importa aqui é que quase todo autor conhecido cristão judeu muçulmano era citado como uma autoridade seja para a verdade seja para alguma inverdade importante Em outras palavras quando estudamos tais obras medievais precisamos nos lembrar que seus autores viveram em monastérios sem os quais não existiría nada semelhante a uma história das idéias no mundo ocidental e isto significa que esses escritos saíram de um mundo de livros Em contrapartida as reflexões de Santo Agostinho estiveram intimamente relacionadas com suas experiências foi importante para ele descrevêlas em detalhe e mesmo quando tratava de assuntos especulativos tais como a origem do mal no diálogo O livrearbítrio da vontade da fase inicial nem sequer lhe ocorreu citar as opiniões de um sem número de homens eruditos e conceituados no assunto Os autores escolásticos usam a experiência somente para dar um exemplo que sustente seus argumentos a experiência em si não inspira o argumento O que na verdade surge dos exemplos é uma espécie curiosa de casuística uma técnica de forçar princípios gerais a envolver casos particulares O último autor que ainda escreveu claramente sobre as perturbações de sua alma ou espírito totalmente alheio a interesses livrescos foi Santo Anselmo e isso duzentos anos antes de São Tomás Isso não significa dizer é claro que os autores escolásticos não estivessem interessados nas questões reais e que buscassem inspiração simplesmente em argumentos mas sim que estamos agora entrando em uma era de comentadores Gilson cujos pensamentos sempre se guiavam por alguma autoridade escrita e seria um grave erro acreditar que tal autoridade tivesse necessária ou mesmo primordialmente que ser escolástica ou bíblica A despeito disso Gilson cuja mentalidade harmonizavase de forma tão admirável com as exigências de seu grande tema e que reconhecia que é por causa das Escrituras que há uma filosofia que é cristã assim como é por causa da tradição grega que o cristianismo possui uma filosofia pôde sugerir a sério que a razão pela qual Platão e Aristóteles não conseguiram penetrar na verdade final residia na infelicidade de não terem tido a vantagem de ler as primeiras linhas do Gênese se eles as tivessem lido toda a história da filosofia poderia ter sido diferente1 A grande obraprima interminada de São Tomás a Summa Theologica pretendia originalmente servir para objetivos pedagógicos como manual para as novas universidades Ela enumera de maneira rigorosamente sistemática todas as questões e todos os argumentos possíveis e pretende dar respostas finais a cada um deles Nenhum sistema posterior que eu conheça pode rivalizar com esta codificação de verdades supostamente estabelecidas com esta soma de conhecimento coerente Todo sistema filosófico visa a oferecer ao espírito inquieto uma espécie de hábitat espiritual uma casa segura nenhum deles porém jamais teve tanto êxito quanto este e nenhum acho eu esteve tão livre de contradições Qualquer um que estivesse disposto a fazer o considerável esforço espiritual para entrar nessa casa era recompensado com a segurança de que em seus inúmeros cômodos jamais se veria desorientado ou desamparado Ler São Tomás é aprender como tais domicílios são construídos Primeiro levantamse as Questões do modo mais abstrato possível ainda que não de modo especulativo então os pontos de investigação para cada questão são ordenados seguindose as Objeções que podem ser feitas para cada resposta possível depois disso um Ao contrário introduz a posição oposta e é somente depois de o terreno ter sido preparado que a resposta do próprio São Tomás é dada completa e com respostas específicas às Objeções Esta ordem esquemática jamais se altera e o leitor com paciência suficiente para seguir a longa seqüência de questões e de respostas levando em conta cada objeção e cada posição contrária ficará fascinado com a imensidão de um intelecto que parece tudo saber Em cada caso apelase para alguma autoridade e isso é particularmente impressionante quando os argumentos que estão sendo refutados foram antes expostos com a citação de uma autoridade a apoiálos Não que a referência a uma autoridade seja o único modo ou mesmo o modo predominante de argumentação Ela vem sempre acompanhada de uma espécie de demonstração racional pura normal mente protegida por uma couraça Jamais utiliza retórica ou qualquer tipo de persuasão o leitor é compelido como só a verdade pode compelir A confiança na verdade coercitiva tão generalizada na filosofia medieval não tem limites em São Tomás Ele distingue três tipos de necessidade a necessidade absoluta que é racional por exemplo a de que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos a necessidade relativa que é aquela da utilidade por exemplo a de que a comida é necessária à vida ou a de que um cavalo é necessário para uma viagem e a coerção é imposta por um agente externo E entre elas somente a última é contrária à vontade2 A verdade compele ela não ordena como a vontade ordena e não coage Ela é o que Scotus chamou mais tarde de dictamem rationis o ditame da razão isto é um poder que prescreve em forma de discurso diceré e cuja força tem o seu limite nas limitações do intercâmbio racional Com clareza insuperável São Tomás estabelece a distinção entre duas faculdades de apreensão o intelecto e a razão as duas têm suas correspondentes faculdades intelectualmente apetitivas vontade e liberum arbitrium ou livre escolha O intelecto e a razão lidam com a verdade O intelecto também chamado de razão universal lida com a verdade matemática ou autoevidente com os primeiros princípios que dispensam demonstração para serem admitidos enquanto a razão ou razão particular é a faculdade através da qual retiramos conclusões particulares de proposições universais como nos silogismos A razão universal é por natureza contemplativa ao passo que a tarefa da razão particular é passar do conhecimento de uma coisa ao conhecimento de outra e assim raciocinamos sobre conclusões a que se chega por meio de princípios3 Esse processo de raciocínio discursi vo domina todas as obras de São Tomás A época do Iluminismo foi chamada de Idade da Razão o que pode ou não ser uma descrição adequada esses séculos da Idade Média certamente são melhor nomeados como Idade do Raciocínio A distinção seria que a verdade percebida apenas pelo intelecto revelase ao espírito e a ele se impõe sem que haja qualquer atividade da parte do espírito enquanto que no processo do raciocínio discursivo o espírito compele a si mesmo O processo de raciocínio argumentative é ativado pela fé de uma criatura racional cujo intelecto voltase naturalmente para o Criador em busca de ajuda para atingir um tal conhecimento do ser verdadeiro que é Ele tal como pode ser encontrado dentro dos limites da razão natural4 O que se revelou à fé nas Escrituras não estava sujeito a dúvidas assim como não se duvidava da autoevidência dos primeiros princípios na filosofia grega A verdade compele O que distingue em São Tomás esse poder de compelir da coerção pela aletheia grega não é o fato de que a revelação decisiva venha de fora mas sim de que a verdade que a revelação promulgava de fora respondia de dentro a luz da razão A fé ex auditu por exemplo Moisés escutando a voz divina despertou de imediato uma voz em resposta5 A mudança mais impressionante que se observa quando se passa de Santo Agostinho para São Tomás e Duns Scotus é que nenhum dos dois últimos está interessado na problemática da estrutura da Vontade vista como faculdade isolada o que está em jogo para eles é a relação entre a Vontade e a Razão ou o Intelecto e a questão dominante é qual dessas faculdades é a mais nobre e portanto qual delas tem o direito de primazia sobre a outra Mais significativo ainda especialmente em vista da enorme influência de Santo Agostinho sobre os dois pensadores pode ser o fato de que das três faculdades de Santo Agostinho Memória Intelecto e Vontade uma delas tenha se perdido a saber a Memória a faculdade mais especificamente romana a que liga o homem ao passado Tal perda acabou sendo definitiva nunca mais se vê em nossa tradição filosófica a Memória na mesma posição do Intelecto e da Vontade Sem falar nas conseqüências desta perda para toda a nossa filosofia estritamente política6 é óbvio que o que se foi junto com a memória sedes animi est in memória foi uma compreensão do caráter profundamente temporal da natureza e da existência humana manifesto no homo temporalis de Santo Agostinho7 O Intelecto que em Santo Agostinho se relacionava a tudo o que estivesse presente no espírito em São Tomás volta a relacionarse com os primeiros princípios isto é com o que é logicamente anterior a qualquer outra coisa é a partir deles que tem início o processo de raciocínio que lida com particulares8 O objeto próprio da Vontade é o fim e ainda assim este fim não é o futuro assim como o primeiro princípio não é o passado princípio e fim são categorias lógicas e não temporais No que diz respeito à Vontade São Tomás seguindo de perto a Ética a Nicômaco insiste principalmente na categoria meiosfim e como em Aristóteles o fim embora seja objeto da Vontade é dado à Vontade pelas faculdades de apreensão isto é pelo Intelecto A ordem de ação adequada é portanto a seguinte Dáse primeiro a apreensão do fim depois o conselho deliberação sobre os meios e finalmente o desejo pelos meios9 A cada passo o poder de apreensão precede tem primazia sobre o movimento apetitivo O fundamento conceituai de todas essas distinções é que o bem e o Ser diferem somente em pensamento são a mesma realiter e isso a ponto de se poder dizer que são conversíveis O homem tem de bondade tanto quanto tem de Ser e faltandolhe plenitude de seu Ser faltalhe bondade o que é chamado de mal10 Nenhum ser à medida que é pode ser dito mau mas somente à medida que lhe falte Ser Tudo isso é claro nada mais é do que uma elaboração da posição de Santo Agostinho mas a posição é ampliada e conceitualmente mais aguda Do ponto de vista das faculdades da apreensão o Ser aparece sob o aspecto de verdade do ponto de vista da Vontade em que o fim é o bem aparece sob o aspecto de algo desejável que o Ser não expressa O mal não é um princípio porque é pura ausência e a ausência pode ser enunciada em um sentido privativo e em um sentido negativo A ausência do bem tomada negativamente não é o mal como por exemplo no caso de faltar a um homem a rapidez do cavalo o mal é uma ausência em que uma coisa é privada de um bem que a ela pertence de forma essencial por exemplo o homem cego privado da visão11 Por esse caráter de privação o mal radical ou absoluto não pode existir Não há mal em que se possa detectar a ausência total do bem Pois se pudesse haver o mal pleno ele destruiría a si mesmo12 São Tomás não foi o primeiro a considerar o mal como nada mais do que privação uma espécie de ilusão de ótica causada quando o todo do qual o mal é apenas uma parte não é levado em conta Já Aristóteles tivera a noção de um Universo no qual toda parte tem seu lugar perfeitamente ordenado de modo que o bem inerente ao fogo causa mal à água por acidente13 E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do mal nem mesmo Kant que inventou o conceito de mal radical acreditava que alguém que não possa demonstrarse um amante deva por isso estar fadado a demonstrarse um vilão que usando a linguagem de Santo Agostinho velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre querer e não querer Ainda assim é verdade que este velho topos da filosofia faz mais sentido em São Tomás do que na maior parte dos outros sistemas porque o centro do sistema de São Tomás seu primeiro princípio é o Ser No contexto de sua filosofia dizer que Deus criou não só o mundo mas também criou nele o mal seria dizer que Deus criou o nada como apontou Gilson14 Todas as coisas criadas cuja distinção maior é a de que são aspiram a Ser cada uma do seu próprio modo mas somente o Intelecto tem conhecimento do Ser como um todo os sentidos não conhecem o Ser exceto sob as circunstâncias do aqui e do agora15 O Intelecto apreende o Ser absolutamente e para todo o sempre e o homem dotado desta faculdade só pode desejar sempre existir Tal é a inclinação natural da Vontade cujo objetivo final é para ela tão necessário quanto a verdade é coercitiva para o Intelecto A bem dizer a vontade é livre apenas no que diz respeito a bens particulares pelos quais ela não é necessariamente movida embora os apetites possam ser por eles movidos O objetivo final o desejo que o Intelecto tem de existir para sempre mantém os apetites sob controle de modo que a distinção concreta entre os homens e os animais manifestese no fato de que o homem não é movido de imediato por seus apetites que ele têm em comum com todas as coisas vivas mas aguarda a ordem da Vontade que é o apetite superior e assim o apetite inferior não basta para causar movimento a não ser que o apetite mais alto consinta16 E óbvio que o Ser o primeiro princípio de São Tomás é simplesmente uma conceituação da Vida e do instinto vital do fato de que todas as coisas vivas por instinto preservam a vida e evitam a morte Isto também é uma elaboração dos pensamentos que encontramos em estado mais provisório em Santo Agostinho mas cuja conseqüência intrínseca um equacionamento entre a Vontade e o instinto de vida sem qualquer relação com a vida eterna é extraída comumente só no século XIX Em Schopenhauer ela é enunciada de forma explícita e na vontade de potência de Nietzsche a própria verdade é entendida como uma função do processo vital o que nós chamamos verdade são aquelas proposições sem as quais não poderiamos continuar vivendo Não é a razão mas a nossa vontade de viver o que toma forçosa a verdade Agora iremos nos voltar para a questão de qual dos dois poderes do espírito quando comparados será absolutamente mais alto e mais nobre A primeira vista a questão não parece fazer muito sentido já que o objeto final é o mesmo é o Ser que aparece como bom e desejável para a vontade e verdadeiro para o intelecto E São Tomás concorda esses dois poderes estão incluídos um no outro em seus atos porque o Intelecto entende que a Vontade quer e a Vontade quer que o Intelecto entenda17 Mesmo quando estabelecemos uma distinção entre o bom e o verdadeiro considerandoos correspondentes a diferentes faculdades do espírito eles acabam sendo muito parecidos porque ambos são universais no que diz respeito a seu alcance Assim como o Intelecto apreende o ser universal e a verdade também a Vontade deseja o bem universal e assim como o Intelecto tem o raciocínio como seu poder subordinado para lidar com os particulares também a Vontade tem como subordinada a faculdade do livrearbítrio liberum arbitrium um auxiliar subserviente na escolha dos meios particulares adequados para se alcançar um fim universal Além disso já que ambas as faculdades têm o Ser como objetivo final seja sob o aspecto do que é Verdadeiro ou do que é Bom elas parecem iguais dispondo cada uma dos serviços de seu próprio criado para lidar com os meros particulares A linha que na verdade separa as faculdades mais altas das mais baixas portando parece ser a mesma que divide as faculdades superiores das subservientes e esta distinção jamais é questionada Para São Tomás assim como para quase todos os seus sucessores em filosofia que são em maior número do que os tomistas declarados era evidente na verdade era a própria pedra de toque da filosofia como disciplina isolada o fato de que o universal é mais nobre e ocupa posição mais alta que o particular e a única prova necessária disso continuava a ser o velho enunciado aristotélico de que o todo é sempre maior do que a soma de suas partes O que distingue única e enormemente Duns Scotus é o fato de ter questionado e desafiado esse pressuposto o Ser em sua universalidade não é mais do que um pensamento o que falta a ele é realidade somente das coisas particulares res que são caracterizadas pelo seristo Thiness hecceidade podese dizer que são reais para o homem Assim Scotus estabeleceu um nítido contraste entre cognição intuitiva cujo objeto próprio é o singular existente percebido como existente e cognição abstrativa cujo objeto próprio é a qüididade ou essência da coisa conhecida18 Desse modo e isto é decisivo a imagem espiritual a árvore vista por ter perdido sua existência real tem estatura ontológica menor do que a árvore concreta embora o conhecimento daquilo que uma coisa é não fosse possível sem as imagens espirituais A conseqüência dessa inversão é que este homem particular por exemplo em sua existência viva ocupa um lugar mais alto do que a espécie ou o simples pensamento de humanidade e os precede Kierkegaard levantou mais tarde um argumento bastante semelhante contra Hegel A inversão parece uma conclusão bastante óbvia para uma filosofia que foi buscar sua maior inspiração na Bíblia isto é em um DeusCriador que certamente era uma pessoa que criou os homens à Sua própria imagem isto é necessariamente como pessoas E São Tomás é cristão o suficiente para sustentar que persona significai id quod est perfectissimum in tota natura a pessoa significa o que há de mais perfeito em toda a natureza19 A base da Bíblia como nos mostrou Santo Agostinho está no Gênese em que todas as espécies naturais foram criadas no plural plura simul iussit exsistere Ele ordenou que fossem muitas de uma vez Somente o homem foi criado no singular de forma que a espécie humana tomada como espécie animal se multiplicasse a partir do Um exuno multiplicavit genus humanum 21Em Santo Agostinho e em Scotus mas não em São Tomás a Vontade é o órgão espiritual que realiza esta singularidade é o principium individuationis Voltando a São Tomás ele insiste Se Intelecto e Vontade forem comparados de acordo com a universalidade de seus respectivos objetos então o Intelecto é absolutamente mais alto e mais nobre do que a Vontade Essa proposição é bastante significativa porque ela não vem de sua filosofia geral do Ser O próprio São Tomás de certa forma admite isso Para ele a primazia do Intelecto sobre a Vontade não está tanto na relação de primazia de seus respectivos objetos a Verdade sobre o Bem mas sim no modo como as duas faculdades concorrem dentro do espírito humano todo movimento da vontade é precedido de uma compreensão ninguém pode querer o que não conhece enquanto que a compreensão não é precedida de um ato da vontade21 Aqui naturalmente ele se afasta de Santo Agostinho que sustentava a primazia da Vontade como atenção mesmo para atos de percepção sensorial Tal precedência mostrase em cada volição Na livre escolha por exemplo em que se elegem os meios para um fim os dois poderes concorrem na eleição o poder cognitivo através do qual julgamos que uma coisa é preferível a outra e o poder apetitivo por meio do qual exigese que o apetite aceite o julgamento do conselho22 Se encaramos as posições agostinianas e tomísticas em termos puramente psicológicos como seus autores costumavam com freqüência qualificálas temos que admitir que a oposição entre elas é algo espúria já que ambas são igualmente plausíveis Quem poderia negar que ninguém pode querer o que não conhece de alguma forma ou ao contrário que alguma volição precede e decide a direção que queremos dar a nosso conhecimento ou à nossa busca de conhecimento A verdadeira razão de São Tomás para sustentar a primazia do Intelecto assim como a razão final de Santo Agostinho para decidir sobre o primado da Vontade está na resposta indemonstrável para a questão decisiva de todos os pensadores medievais em que consiste o fim e a felicidade última do homem23 Sabemos que a resposta de Santo Agostinho foi amor ele pretendia passar sua vida eterna em uma união livre de desejos e inseparável da criatura com seu criador Já São Tomás em óbvia resposta a Santo Agostinho e aos agostinianos embora sem mencionálos diz que embora se possa pensar que a felicidade e o fim último do homem consistam não em conhecer Deus mas em amáLo ou em algum outro ato de vontade em direção a Ele ele São Tomás sustenta que uma coisa é possuir o bem que é o nosso fim e outra é amálo pois o amor era imperfeito antes de possuirmos o fim e perfeito depois de dele termos tomado posse Para ele um amor sem desejo é impensável e portanto a resposta é categórica A felicidade última do homem é essencialmente conhecer Deus pelo Intelecto não é um ato da Vontade Aqui São Tomás segue seu mestre Alberto Magnus que declarou que o júbilo supremo se dá quando o Intelecto encontrase em estado de contemplação24 A concordância absoluta de Dante merece menção Hence may be seen how the celestial bliss Is founded on the act that seeth god Not that which loves which comes after this25 Quando iniciei essas considerações tentei enfatizar a distinção entre Vontade e desejo e conseqüentemente entre o conceito de Amor na filosofia da Vontade de Santo Agostinho e o eros platônico no Symposium em que se indica uma deficiência no amante e um desejo de possuir qualquer coisa que possa faltar O que acabei de citar de São Tomás mostra a meu ver até que ponto seu conceito das faculdades apetitivas devese ainda à noção de um desejo de possuir em um Além tudo o que possa faltar à vida terrena Pois a Vontade entendida basicamente como desejo termina quando se toma posse do objeto desejado e a noção de que a Vontade é exaltada quando está de posse daquilo que quer26 é simplesmente uma inverdade este é precisamente o momento em que a Vontade deixa de querer O Intelecto que segundo São Tomás é um poder passivo27 tem garantida a primazia sobre a Vontade não só porque apresenta um objeto ao apetite sendo assim anterior a ele mas também porque sobrevive à Vontade que se extingue de certo modo quando se alcança o objeto A transformação da Vontade em Amor em Santo Agostinho bem como em Duns Scotus era pelo menos em parte inspirada por uma separação mais radical entre a Vontade e os apetites e desejos e por uma noção diferente da felicidade e do fim último do homem Mesmo no Além o homem continua sendo homem e sua felicidade última não pode ser a simples passividade O Amor pôde ser invocado para redimir a vontade porque ainda é ativo embora sem inquietude sem perseguir um fim ou ter medo de perdêlo Uma atividade que tivesse seu fim em si mesma e que portanto pudesse ser compreendida fora da categoria meiosfim jamais fez parte das considerações de São Tomás Para ele todo agente atua segundo um fim o princípio de tal movimento está no fim Logo é esta a arte interessada no fim cujo comando move a arte interessada nos meios assim como a arte de velejar comanda a arte de construir embarcações 2S Sem dúvida isso vem diretamente da Ética a Nicômaco só que em Aristóteles se aplica a um tipo de atividade a saber poiesis as artes produtivas em oposição às artes performativas em que o fim está na atividade em si tocar flauta quando comparado a fazer uma flauta ou simplesmente sair para um passeio comparado a caminhar para alcançar uma destinação predeterminada Em Aristóteles fica bastante claro que a praxis deve ser entendida em analogia com as artes performativas e não em termos da categoria meiosfim é bastante impressionante que São Tomás que dependia tanto dos ensinamentos do filósofo especi almente os da Ética a Nicômaco pudesse ter desconsiderado a distinção entre poiesis e praxis Quaisquer que sejam as vantagens dessa distinção e a meu ver elas são cruciais para qualquer teoria da ação elas têm pouca relevância para a noção que São Tomás tem de felicidade última Ele opõe a contemplação a qualquer tipo de fazer aqui em grande harmonia com Aristóteles para quem a energeia tou theou é contemplativa enquanto a ação como a produção são insignificantes e indignas dos deuses Se tiramos a ação de um ser vivo sem mencionar a produção o que sobra senão a contemplação Logo humanamente falando a contemplação é o nada fazer exaltado pela intuição pura venturosamente em repouso A felicidade diz Aristóteles depende do descanso pois nosso propósito ao nos ocuparmos seja agindo seja fazendo é ter descanso e promovemos a guerra para termos paz29 Para São Tomás somente este fim último a ventura da contemplação move a vontade necessariamente a vontade não pode deixar de querêla Logo a Vontade move o Intelecto para que ele seja ativo do mesmo modo que se diz que um agente move mas o Intelecto move a Vontade do modo como o fim move30isto é do modo como o motor imóvel de Aristóteles devia moverse e como poderia moverse senão em virtude de ser amado assim como o amante é movido pelo amado31 Aquilo que em Aristóteles era o mais contínuo dos prazeres é agora esperado como ventura eterna não um prazer que possa atender às volições mas um deleite que põe em repouso a vontade de modo que o fim último da Vontade visto em referência a si mesmo seja deixar de querer atingir em suma o seu próprio nãoser E no contexto do pensamento de São Tomás isto implica que toda atividade já que seu fim jamais é alcançado enquanto ainda é ativa ambiciona finalmente a sua própria autodestruição os meios desaparecem quando o fim é alcançado E como se alguém ao escrever um livro fosse sempre levado pelo desejo de terminálo e de se livrar da escrita O ponto a que São Tomás em sua decidida predileção pela contemplação como simples ver e nãofazer estava disposto a chegar fica evidente em uma fortuita observação marginal quando interpreta um texto paulino que trata do amor entre duas pessoas Poderia o prazer de amar alguém indaga ele significar que o fim último da vontade foi posto no homem A resposta é não pois segundo São Tomás o que São Paulo disse na verdade foi que gostava de seu irmão como um meio para gostar de Deus32 e Deus como vimos não pode ser alcançado pela Vontade ou pelo Amor do Homem mas somente por seu Intelecto Isto é claro está muito longe do Amor de Santo Agostinho que ama o amor do amado e também ofende bastante os ouvidos daqueles que ensinados por Kant estão bem convencidos de que devemos tratar a humanidade seja em nossa própria pessoa seja na de outra qualquer sobretudo como fim nunca apenas como meio33 12 Duns Scotus e a primazia da Vontade Passando agora para Duns Scotus não estaremos dando um salto sobre os séculos com todas as inevitáveis descontinuidades e discordâncias que tomam o historiador suspeito Apenas uma geração o separava de São Tomás foram quase contemporâneos Estamos ainda em meio à Escolástica Encontrase nos textos dos dois a mesma mistura curiosa de citações da Antigüidade tratadas como autoridades e razão argumentativa Embora Scotus não tenha escrito uma Summa procede do mesmo modo que São Tomás primeiro a Questão enuncia o que está sendo investigado por exemplo o monoteísmo Pergunto se há somente um Deus discutemse então os prós e contras com base em citações de autoridade em seguida os argumentos de outros pensadores são apresentados e finalmente no Respondeo Scotus enuncia suas próprias opiniões as viae os Caminhos como ele as designa que as cadeias de pensamento percorrerão junto com os argumentos corretos34 Sem duvida à primeira vista a impressão é de que o único ponto de diferença em relação ao escolasticismo tomista é a questão da primazia da vontade a qual é provada por Scotus com tanta plausibilidade argumentativa quanto a que São Tomás desenvolveu para provar a primazia do Intelecto e com quase o mesmo número de citações de Aristóteles Pondo em poucas palavras os argumentos opostos temos o seguinte se São Tomás argumentara que a Vontade é um órgão executivo necessário para executar os insights do Intelecto uma faculdade rreramente subserviente Duns Scotus sustenta que Intellectus est causa subserviens voluntatis O Intelecto serve à Vontade fornecendo a ela seus objetos bem como o conhecimento necessário ou seja o Intelecto tomase por sua vez uma faculdade meramente subserviente Precisa da Vontade para direcionar sua atenção e só pode funcionar adequadamente quando seu objeto é confirmado pela Vontade Sem esta confirmação o Intelecto deixa de funcionar35 Seria um tanto sem sentido entrar aqui nas velhas controvérsias sobre se Scotus era um aristotélico ou um agostiniano alguns especialistas chegaram a sustentar que Duns Scotus é tanto um discípulo de Aristóteles quanto São Tomás36 porque Scotus não era nenhuma das duas coisas Mas onde o debate faz sentido ou seja biograficamente parece que Bettoni o italiano especialista em Scotus está certo Duns Scotus é um agostiniano que se beneficiou ao máximo do método aristotélico na exposição dos pensamentos e doutrinas que constituem sua visão metafísica da realidade37 Essas avaliações e outras semelhantes são reações superficiais mas infelizmente acabaram por conseguir obliterar enormemente a originalidade do homem e a significância de seu pensamento Como se o principal elemento para o qual o Doutor Subtilis quisesse chamar nossa atenção fosse a própria sutileza a complexidade e o intrincamento singulares de sua exposição Scotus era franciscano e a literatura franciscana sempre foi muito afetada pelo fato de que São Tomás um dominicano apesar das dificuldades iniciais tenha sido reconhecido como santo pela Igreja e de que sua Summa Theologica tenha sido a princípio utilizada mas depois prescrita como o manual para o estudo da filosofia e da teologia em todas as escolas católicas Em outras palavras a literatura franciscana é apologética em geral cautelosa e defensiva muito embora as polêmicas do próprio Scotus dirijamse a Henrique de Gante em vez de voltaremse para São Tomás38 Uma leitura mais detida dos textos logo nos faz abandonar essas primeiras impressões aquilo que distingue e diferencia o homem mostrase bem claramente quando ele parece estar em completa harmonia com as regras do escolasticismo Assim em uma interpretação detalhada de Aristóteles ele subitamente propõe reforçar o raciocínio do Filósofo e ao discutir a prova da existência de Deus dada por Santo Anselmo quase que casualmente cede à inclinação de retocála um pouco mas com efeito ele o faz de modo bem considerável O importante é que insistia em estabelecer pela razão argumentos colhidos de uma autoridade39 Situandose no momento decisivo o início do século XIV em que a Idade Média transformavase em Renascimento ele poderia ter dito o que Pico delia Mirandola disse no final do século XV em plena Renascença Sem compromisso com qualquer doutrina percorrí a filosofia de todos os mestres investiguei todos os livros conheci todas as escolas41 Só que Scotus não teria partilhado com os filósofos posteriores a confiança ingênua no poder persuasive da razão No centro de sua reflexão e no centro de sua misericórdia está a firme convicção de que no que tange às questões que dizem respeito a nosso fim e à nossa perpetuidade sempitema o homem mais culto e mais genial nada poderia conhecer pela razão natural41 Pois àqueles que não têm fé a razão correta como parece a si mesma mostra que a condição de sua natureza é ser mortal tanto em corpo quanto em alma42 O que desencaminha o leitor é a grande atenção que Scotus dedica a opiniões com as quais nunca se comprometeu mas cujo exame e investigação constituem o corpo de sua obra Ele certamente não era um cético antigo ou moderno mas tinha uma mentalidade crítica coisa que é e sempre foi muito rara Dessa perspectiva grandes partes de sua obra são uma tentativa incansável de provar por simples argumentação o que ele suspeitava que não poderia ser provado mas como poderia ele ter certeza de estar certo contra quase todos os demais senão seguindo todos os argumentos sujeitandoos ao que Petrus Johannis Olivi chamou de experimentum suitatis um experimento do espírito consigo mesmo Foi por isso que achou necessário reforçar os antigos argumentos ou retocálos um pouco Sabia muito bem o que fazia Como disse Desejo dar a interpretação mais razoável de que sou capaz às palavras de outros pensadores43 Só dessa maneira essencialmente não polêmica a fraqueza inerente da argumentação poderia ser demonstrada Essa evidente fraqueza da razão natural jamais pode ser usada como argumento para a superioridade de faculdades irracionais no pensamento amadurecido do próprio Scotus ele não era nenhum místico e a noção de que o homem é irracional era para ele impensável incogitabile44 Tratase aqui segundo ele da fronteira natural de uma criatura essencialmente limitada cuja finitude é absoluta anterior a qualquer referência que venha a fazer a outra essência Pois assim como um corpo limitase primeiramente em si mesmo por suas próprias extremidades antes de ser limitado em relação a qualquer outra coisa também a forma finita é primeiro limitada em si mesma antes de ser limitada em relação à matéria45 Essa finitude do intelecto humano bastante semelhante àquela do homo temporalis de Santo Agostinho devese ao simples fato de que o homem enquanto homem não criou a si mesmo embora seja capaz de multiplicarse como outras espécies de animais Logo para Scotus a questão nunca é como derivar extrair deduzir a finitude da infinitude divina ou como ascender da finitude humana à infinitude divina mas sim como explicar que um ser absolutamente finito possa conceber algo infinito e chamálo de Deus Por que motivo ao intelecto não repugna a noção de algo infinito46 Dito de outra forma o que há no espírito humano que faz com que seja capaz de transcender suas próprias limitações sua finitude absoluta Em Scotus a resposta para esta questão diferentemente de São Tomás é a Vontade Certamente não há filosofia que possa jamais substituir a revelação divina que o cristão aceita por força do testemunho no qual tem fé A Criação e a ressurreição são objetos de fé não podem ser provadas ou refutadas pela razão natural Como tal elas são contingentes são verdades factuais cujo oposto não é inconcebível dizem respeito a acontecimentos que poderíam não ter acontecido Para aqueles que foram educados na fé cristã elas têm a mesma validade de outros acontecimentos dos quais só sabemos por confiarmos no testemunho dos que viram por exemplo o fato de que o mundo existia antes de nascermos ou de que há lugares no mundo em que nunca estivemos ou mesmo de que certas pessoas são nossos pais47 Uma dúvida radical que rejeite o testemunho dos que presenciaram e que confie apenas na razão é impossível para o homem tratase de um simples artifício retórico do solipsismo constantemente refutado pela própria existência daquele que duvida Todos os homens vivem juntos na base sólida de uma fides acquisita uma fé adquirida que têm em comum O teste para os incontáveis fatos cuja fidedignidade sempre tomamos como certa é que façam sentido para os homens ao se constituírem E neste aspecto o dogma da ressurreição faz muito mais sentido do que a noção filosófica da imortalidade da alma uma criatura dotada de um corpo e de uma alma pode ver sentido somente em uma vida eterna na qual ela é ressuscitada da morte do jeito como é e se conhece As provas dos filósofos para a imortalidade da alma mesmo quando logicamente corretas seriam irrelevantes Para que seja existencialmente relevante para o viator o viajante ou peregrino na terra a vida eterna deve ser uma segunda vida e não um modo totalmente diferente de ser como uma entidade incorpórea Ainda assim se parece óbvio para Scotus que a razão natural dos filósofos jamais alcançou as verdades proclamadas pela revelação divina continua sendo inegável que a noção de divindade antecedeu a qualquer revelação cristã o que significa que deve haver uma capacidade espiritual no homem pela qual ele é capaz de transcender tudo o que lhe é dado e de transcender portanto a própria factualidade do Ser Pois o homem segundo Scotus foi criado junto com o Ser como parte inseparável dele assim como para Santo Agostinho o homem foi criado não no tempo mas junto com o tempo Seu Intelecto está em sintonia com este Ser e seus órgãos sensoriais são talhados para a percepção de aparências seu Intelecto é natural cadit sub naturaf o homem é forçado a aceitar compelido pela evidência do objeto qualquer coisa que o Intelecto lhe proponha Non habet in potestatre sua intelligere et non intelligere49 Com a Vontade é diferente A Vontade pode achar difícil não aceitar o que a razão dita mas a coisa não é impossível assim como não é impossível para a Vontade resistir aos apetites naturais fortes Difficile est voluntatem non inclinari ad id quod est dictatum a ratione practica ultimatim non tamen est impossibile sicut voluntas naturaliter inclinatur sibi dismissa ad condelectandum appetitui sensitivo non tamem impossibile ut frequenter resistat ut patet in virtuosis et sanctis5 É a possibilidade de resistência às necessidade do desejo por um lado e aos ditames do intelecto e da razão por outro que constituem a liberdade humana A autonomia da Vontade sua completa independência das coisas como elas são o que os escolásticos chamam indiferença com o que querem dizer que a vontade não é determinada indeterminata por qualquer objeto que se lhe apresente tem uma só limitação não pode negar o Ser como um todo A limitação do homem nunca fica tão evidente como no fato de que seu espírito aí incluída a faculdade da vontade pode ter como objeto de fé que Deus criou o Ser ex nihilo do nada sem contudo ser capaz de conceber o nada Assim a indiferença da Vontade está relacionada a elementos contraditórios voluntas autem sola habet indifferentiam ad contradictoria somente o ego volitivo sabe que uma decisão que de fato se tomou poderia não ter sido tomada e uma escolha diferente que de fato se fez poderia ter sido feita51 E esse o teste pelo qual a liberdade é demonstrada e nem o desejo nem o intelecto podem equipararse a ela um objeto apresentado ao desejo pode apenas atrair ou repelir e uma questão apresentada ao intelecto pode apenas ser negada ou afirmada Mas a qualidade básica de nossa vontade é que podemos querer ou nãoquerer o objeto apresentado pela razão ou pelo desejo In potestate voluntatis nostrae est habere nolle et velle quae sunt contraria respectu unius obiecti Está em poder de nossa vontade querer e nãoquerer que são contrários com relação ao mesmo objeto52 Ao dizer isso Scotus não está negando é claro que duas volições sucessivas são necessárias para querer e não querer o mesmo objeto mas sustenta sim que o ego volitivo ao realizar uma delas sabe ser livre para realizar também o seu contrário A característica essencial de nossos atos volitivos é o poder de escolher entre coisas opostas e de revogar a escolha uma vez que tenha sido feita grifo nosso53 E precisamente desta liberdade que se manifesta apenas como atividade espiritual o poder de revogar desaparece uma vez que se execute a volição que falamos anteriormente em termos de uma fragmentação da vontade Além de ser aberta a contrários a Vontade pode suspenderse e enquanto tal suspensão só pode ser o resultado de outra volição em contraste com o querernãoquerer nietzscheano e heideggeriano que discutiremos mais adiante esta segunda volição em que a indiferença é escolhida diretamente é um testemunho importante da liberdade humana da habilidade que o espírito tem para evitar toda determinação coercitiva que venha de fora E por sua liberdade que o homem embora parte inseparável do Ser criado pode louvar a criação de Deus pois se tal louvação viesse da razão não seria mais do que uma reação natural causada pela harmonia dada que temos com todas as outras partes do universo Mas ele pode do mesmo modo absterse de tal louvação e até mesmo odiar a Deus e encontrar satisfação em semelhante ódio ou pode pelo menos recusarse a amáLo Esta recusa que Scotus não menciona em sua discussão do possível ódio a Deus é postulada em analogia com sua objeção à velha idéia de que todos os homens querem ser felizes Ele admite ser evidente que os homens desejam por natureza ser felizes embora não haja um acordo sobre o que é felicidade mas a Vontade e aqui temos o ponto crucial pode transcender a natureza no caso suspendêla há uma diferença entre a inclinação natural do homem para a felicidade e a felicidade comoobjetivo de vida deliberadamente escolhido não é absolutamente impossível para o homem descartar de todo a felicidade ao fazer seus projetos voluntários No que diz respeito à inclinação natural e à limitação imposta pela natureza ao poder da Vontade tudo o que se pode afirmar é que nenhum homem quer ser desgraçado54 Scotus evita dar uma resposta clara à questão de se o ódio a Deus é possível ou não pela relação íntima que existe entre essa questão e a questão do mal Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores também ele nega que o homem possa querer o mal como mal mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta55 A autonomia da Vontade nada além da vontade é a causa total da volição nihil aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate56 limita de forma decisiva o poder da razão cujo ditame não é absoluto mas não limita o poder da natureza seja da natureza do homem interior a que se dá o nome de inclinações seja da natureza das circunstâncias exteriores A vontade não é de modo algum onipotente em sua efetividade real sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer Para ilustrar essa liberdade do espírito Scotus dá o exemplo de um homem que se atira de um lugar alto57 Este ato acaba com sua liberdade uma vez que agora ele necessariamente cai Segundo Scotus não Enquanto o homem está caindo necessariamente compelido pela lei da gravidade permanece livre para continuar a querer cair e pode também é claro mudar de idéia caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade Lembramos o exemplo de Espinoza da pedra que rola a qual se fosse dotada de consciência seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que se estava agora rolando era por sua própria vontade Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações no disfarce de argumentos plausíveis dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou liberdade como fatos autoevidentes Para ficar com o presente exemplo nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é real e necessariamente conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto Duns Scotus distingue dois tipos de vontade vontade natural ut natura que segue as inclinações naturais e pode ser inspirada pela razão e pelo desejo e a vontade livre ut libera propriamente dita58 Concorda com quase todos os outros filósofos que está na natureza humana inclinarse para o bem explicando o mal como fraqueza humana a marca de uma criatura que veio do nada creatio ex nihilo e que portanto tem uma certa tendência para mergulhar de volta no nada omnis creaturapotest tendere in nihil et in non esse eo quod de nihilo est59 A vontade natural funciona como a gravidade nos corpos e Scotus chamaa de affectio commodi o fato de sermos afetados pelo que é adequado e conveniente Se o homem tivesse somente a vontade natural seria no máximo um bonum animal uma espécie de bruto esclarecido cuja própria racionalidade ajudaria a escolher os meios adequados a fins dados segundo a natureza humana A vontade livre distinta do liberum arbitrium que só é livre para selecionar os meios para um fim prédesignado designa livremente fins que são perseguidos por si mesmos e dessa busca somente a vontade é capaz voluntas enim est productiva actum pois a Vontade produz seu próprio ato60 O problema é que Scotus não parece dizerem lugar algum o que é de fato esse ato designado livremente embora pareça ter entendido a atividade do livre designar como a real perfeição da Vontade61 Lamento muito admitir que não pode ser este o lugar e que eu não estaria qualificada se este fosse o lugar para fazer justiça à originalidade do pensamento de Duns Scotus especialmente à paixão pelo pensamento construtivo que permeia todo o seu genuíno trabalho62 que ele não teve nem tempo morreu muito jovem jovem demais para um filósofo nem talvez inclinação para apresentar sistematicamente É difícil pensar em qualquer grande filósofo qualquer um dos grandes pensadores e não há muitos deles que ainda precise tanto ser descoberto e auxiliado por nossa atenção e entendimento63 Tal auxílio será tão bemvindo quanto difícil de provar pela razão bastante boa de que não será possível encontrar um nicho confortável para ele entre seus predecessores e sucessores na história das idéias Não será suficiente evitar o clichê do oponente sistemático de São Tomás presente nos manuais e em sua insistência na Vontade como a faculdade mais nobre em comparação com o Intelecto ele teve muitos predecessores dentre os escolásticos o mais importante foi Petrus Johannis Olivi64 Tampouco será suficiente esclarecer e mostrar com detalhes a influência sem dúvida grande que teve sobre Leibniz e Descartes muito embora ainda seja verdade como disse Windelband há mais de setenta anos que os laços destes com o maior dos escolásticos não tenham infelizmente encontrado a consideração e o tratamento que merecem65 Certamente a presença íntima da herança agostiniana em seu trabalho é patente demais para não ser notada não há quem leia Agostinho com maior afinidade e com compreensão mais profunda e sua dívida com Aristóteles foi talvez ainda maior do que a que teve com São Tomás A grande verdade no entanto é que quanto à quintessência de seu pensamento a contingência o preço pago de bom grado pela liberdade ele não teve predecessores ou sucessores Tampouco quanto a seu método uma elaboração cuidadosa do experimentum suitatis de Olivi em experimentos de pensamento que foram estruturados como o teste final do exame crítico do espírito no curso das ações efetuadas consigo e dentro de si mesmo experimur in nobis experientia interna A seguir resumirei estas cadeias de pensamento ou experiências de pensamento admiravelmente originais e altamente relevantes que claramente se chocam com a natureza de nossas tradições filosóficas e teológicas mas que nos escapam facilmente por serem apresentadas à maneira do escolástico e por se perderem facilmente nas intrincadas argumentações scotianas Já mencionei alguns dos notáveis insights primeiro sua objeção ao velho clichê de que todos os homens querem ser felizes do qual só sobrou que nenhum homem pode querer ser infeliz segundo sua não menos surpreendente prova da existência da contingência Que todos aqueles que negam a contingência sejam torturados até que admitam que seria possível não serem torturados67 Ao esbarrarmos com observações tão terraaterra em cercanias eruditas é tentador vêlas como simples chistes Sua validade segundo Scotus depende da experientia interna uma experiência do espírito cuja evidência só pode ser negada por aqueles a quem falta a experiência assim como o homem cego negaria a experiência da cor O caráter seco e inflamável de tais observações poderia sugerir clarões de insights ao invés de cadeias de pensamento mas esses clarões abruptos normalmente só se dão na coisapensamento em uma única frase expressiva que é o resultado de um longo exame crítico prévio E característico de Scotus que a despeito de sua paixão pelo pensamento construtivo ele não fosse um edificador de sistemas seus insights mais surpreendentes aparecem com freqüência por acaso e fora de contexto ele devia saber das desvantagens disso pois nos adverte explicitamente para não entrarmos em disputas com oponentes litigiosos que na falta da experiência interna são capazes de ganhar uma discussão e perder a questão68 Comecemos pela Contingência como o preço a ser pago pela liberdade Scotus é o único pensador para quem a palavra contingente não tem conotação depreciativa Repito que a contingência não é simples privação ou defeito do Ser como a deformidade que é o pecado Em vez disso a contingência é um modo positivo de Ser assim como a necessidade é outro modo69 Essa posição parece inevitável para ele uma questão de integridade intelectual quando há intenção de se salvar a liberdade A primazia do Intelecto sobre a Vontade deve ser rejeitada porque ela não pode salvar a liberdade de forma alguma quia hoc nullo modo salvat libertatem Para ele a principal distinção entre cristãos e pagãos reside na noção bíblica da origem do Universo o Universo do Gênese não veio a ser através da emanação de forças necessárias predeterminadas de modo que sua existência fosse também necessária mas foi criado ex nihilo por decisão do DeusCriador o Qual temos que supor era completamente livre para criar um mundo diferente em que nem as nossas verdades matemáticas nem nossos preceitos morais fossem válidos Daí seguese que tudo o que é poderia não ter sido a não ser o próprio Deus Sua existência é necessária da perspectiva de um mundo não necessário mas não é necessária no sentido de que sempre houve uma necessidade que O coagisse ou inspirasse em Sua criação tal necessidade atuando sobre Ele estaria em clara contradição com a onipotência de Deus bem como com Sua supremacia Os homens são parte inseparável dessa Criação e todas as suas capacidades naturais inclusive seu intelecto seguem naturalmente as leis estabelecidas pelo Fiat divino Ainda assim o Homem em contraposição a todas as outras partes da Criação não foi planejado livremente foi criado à imagem do próprio Deus como se Deus não precisasse somente de anjos em algum mundo sobrenatural mas precisasse também de algumas criaturas à Sua semelhança em meio à natureza do mundo para Lhe fazer companhia A marca desta criatura obviamente mais próxima de Deus do que qualquer outra não é absolutamente a criatividade neste caso a criatura seria de fato algo como um Deus mortal e a meu ver esta é justamente a razão pela qual Scotus não deu prosseguimento à noção de um objetivo da Vontade livremente planejado mesmo tendo ao que parece concebido uma habilidade sem valor de planejar livremente como a verdadeira perfeição71 Em vez disso a criatura de Deus distinguese pela capacidade do espírito de afirmar ou negar livremente sem se deixar coagir pelo desejo ou pelo raciocínio E como se o Ser vindo a existir precisasse do juízo final de Deus para sua plenitude E Deus viu tudo o que fez e observou que era muito bom e esse juízo fosse também extraído do mortal que fora criado à Sua semelhança De qualquer forma o preço da liberdade da Vontade é ser livre frente a cada objeto o homem pode odiar a Deus e encontrar satisfação em tal ódio pois algum prazer deletactio acompanha cada volição72 A liberdade da Vontade não consiste na seleção dos meios para um fim predeterminado eudaimonia ou beatitudo ou bemaventurançaprecisamente porque esse fim já é7y7o pela natureza humana consiste em afirmar ou negar ou odiar livremente o que quer que lhe apareça É essa liberdade da vontade de tomar uma posição espiritualmente que coloca o homem à parte do resto da criação sem isso ele seria um animal esclarecido bonum animal na melhor das hipóteses ou como dissera Olivi anteriormente uma bestia intellectualis uma besta intelectual73 O milagre do espírito humano é que através da Vontade ele pode transcender tudo voluntas transcendit omne creatum como disse Olivi74 e este é o sinal de que o homem foi criado à imagem de Deus A noção bíblica de que Deus mostrou a ele Sua preferência concedendolhe domínio sobre todas as obras de Suas mãos Salmo 8 apenas o tomaria a mais alta de todas as coisas criadas não o colocaria absolutamente apartado delas Quando o ego volitivo diz em sua mais alta manifestação Amo Volo ut sis eu te amo quero que sejas e não quero terte ou quero mandar em ti ele mostrase capaz do mesmo amor com que Deus supostamente ama os homens a quem criou somente porque queria que existissem e a quem Ele ama sem desejar Era assim que a questão se apresentava aos cristãos é por isso que os cristãos dizem que Deus age contingentemente livre e contingentemente75 Mas é possível também segundo Scotus chegar à mesma avaliação da contingência por meio da filosofia Afinal fora o Filósofo que definira o contingente e o acidental to symbebekos como aquilo que poderia também não ser endechomenon me einai16 e de que o ego volitivo tinha mais ciência em cada volição do que o fato de que poderia também não querer experitur enim qui vult se posse non velle1 Como o homem poderia chegar a ser capaz de distinguir um ato livre de vontade de um desejo irresistível sem aquele teste interno infalível O que aparentemente ia contra a liberdade da Vontade de querer ou não querer era a lei da causalidade que Scotus também conhecia na versão aristotélica uma cadeia causai que tomasse o movimento inteligível e levasse finalmente a uma fonte imóvel de todo o movimento o motor imóvel uma causa que não é ela mesma causada A força do argumento ou melhor sua força explanatória está no pressuposto de que uma só causa é suficiente para explicar porque uma coisa é em vez de nãoser isto é para explicar o movimento e a mudança Scotus questiona toda a noção de uma cadeia de causalidade que siga em uma linha contínua através de uma sucessão de causas suficientes e necessárias e que tenha de chegar no final a uma Causa Primeira para evitar um regresso ao infinito Começa a discussão indagando se o ato de vontade é causado na vontade pelo objeto que a move ou pelo movimento da vontade em si e rejeita a resposta de que a vontade é movida por um objeto exterior a ela uma vez que isso não pode de maneira alguma salvar a liberdade quia hoc nullo modo salvat libertatem Rejeita a resposta contrária de que a vontade é onipotente porque ela não pode explicar todas as conseqüências que seguem uma volição quia tunc non possunt salvari omnes conditiones quae consequuntur actum volendi Assim chega à sua posição intermediária na verdade a única posição que salva ambos os fenômenos a liberdade e a necessidade Apresentada desta forma ela soa como um dos exercícios lógicos tão comuns na Escolástica como um jogo um tanto vazio com conceitos abstratos Entretanto Scotus vai desde logo mais além em sua investigação e chega a uma teoria das causas parciais as quais podem concorrer de igual para igual e independentemente umas das outras Tomando como seu maior exemplo a procriação em que duas substâncias independentes macho e fêmea devem unirse para gerar a criança chega à teoria de que toda mudança se dá porque uma pluralidade de causas coincide e a coincidência engendra a textura de realidade nos assuntos humanos78 Assim o cerne do problema não é simplesmente insistir na liberdade original que Deus teve ao criar o mundo e portanto na possibilidade de que Ele poderia ter criado um mundo totalmente diferente mas sim mostrar que a mudança e o movimento como tais aqueles fenômenos que originalmente em Aristóteles levaram à Lei da Causalidade os aitiai bem como os archai são governados pela Contingência Por contingente disse Scotus não designo algo que não é necessário ou que não tivesse sempre existido mas sim algo cujo oposto poderia ter ocorrido no momento em que este realmente ocorreu E por isso que não digo que uma coisa é contingente mas sim que é causada contingentemente79 Em outras palavras é precisamente o elemento causativo nos assuntos humanos que os condena à contingência e à imprevisibilidade Nada poderia entrar em maior contradição com toda a tradição filosófica do que essa insistência no caráter contingente dos processos Basta pensar nas bibliotecas inteiras que foram erguidas para explicar a necessidade da eclosão das últimas duas guerras cada teoria identificando uma única causa diferente quando na verdade nada parece mais plausível do que uma coincidência de causas talvez postas em movimento finalmente por mais uma causa adicional que contingentemente causou as duas conflagrações Embora essa noção de contingência corresponda à experiência do ego volitivo que no ato de volição sabese livre não coagido por suas metas a agir ou não agir em sua busca ela parece ao mesmo tempo oporse de modo insolúvel a uma outra experiência do espírito igualmente válida e ao senso comum que nos diz que na verdade vivemos em um mundo factual de necessidade Uma coisa pode ter acontecido bastante ao acaso mas uma vez que tenha vindo a ser e que tenha assumido realidade perde seu aspecto de contingência e apresentase a nós com o aspecto de necessidade E mesmo quando fomos nós mesmos que efetuamos o evento ou quando somos pelo menos uma das causas que contribuíram para ele como no caso de nos casarmos ou cometermos um crime o simples fato existencial de que ele agora é como veio a ser sejam quais forem as razões resistirá provavelmente a todas as reflexões sobre sua original casualidade Uma vez que o contingente aconteceu não podemos mais desembaraçar os fios que o enredaram até que se tomasse um evento como se pudesse ainda ser ou não ser80 A razão para essa mudança estranha de perspectiva que está na raiz de muitos dos paradoxos ligados ao problema da liberdade é que não há substituto real ou imaginário para a existência como tal Certamente o fluxo do tempo e da transformação pode dissolver os fatos e os eventos mas cada uma dessas dissoluções até mesmo a mudança mais radical já pressupõe a realidade que a precedeu Nas palavras de Scotus tudo o que épassado é absolutamente necessário Tornouse a condição necessária para a minha própria existência e não posso de forma espiritual ou de outra maneira qualquer conceber minha própria nãoexistência já que sendo parte inseparável do Ser sou incapaz de conceber o nada do mesmo modo que concebo Deus como o Criador do Ser mas não um Deus anterior ao creatio ex nihilo Em outras palavras a concepção aristotélica de que a atualidade necessariamente advém de uma potencialidade que a precede seria verificável somente se fosse possível reverter o processo partindose do ato para a potência ao menos espiritualmente só que isso não pode ser feito Só o que se pode dizer sobre o real é que obviamente não era impossível nunca podemos provar que era necessário só porque agora é impossível para nós imaginar um estado de coisas em que não houvesse acontecido Foi isso que fez John Stuart Mill afirmar que nossa consciência interna nos diz que temos um poder isto é uma liberdade que toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos ora em que consiste essa experiência externa da raça humana senão nos registros dos historiadores cujo olhar retrospectivo vê aquilo que foi factum est e que já se tomou portanto necessário Nesse momento a experiência externa suplanta as certezas da consciência interna sem contudo destruíla e o resultado é para um espírito que tenta coordenar e manter em equilíbrio tanto a consciência interna quanto a experiência externa como se a base da necessidade dependesse ela mesma de uma contingência Se por outro lado o espírito no desconforto da aparente contradição com que se depara decide orientarse exclusivamente por sua própria interioridade e entra em um estado de reflexão sobre o passado decobrirá que também aí factualmente como resultado do viraser já terá reordenado os processos em um padrão de necessidade tendolhes eliminado o acaso Essa é a condição necessária da presença existencial do ego pensante ponderando sobre o significado daquilo que veioaser e que agora é Sem se assumir a priori algum tipo de seqüência linear de eventos que tenham sido causados necessária e não contingentemente não seria possível qualquer explicação que tivesse alguma coerência O modo óbvio e mesmo o único possível de preparar e contar uma história é eliminar do que realmente aconteceu os elementos acidentais cuja enumeração fiel seja ela qual for é impossível até mesmo para um cérebro computadorizado Dizse que Scotus admitiu de bom grado que não há resposta real para a questão sobre o modo de conciliar a liberdade e a necessidade82 Não estava a par da dialética hegeliana na qual o processo da necessidade pode produzir a liberdade Mas no seu modo de pensar não era preciso haver tal conciliação pois a liberdade e a necessidade eram dimensões completamente diferentes do espírito se é que havia conflito ele correspondería a um conflito intramuros entre os egos pensante e volitivo um conflito em que a vontade dirige o intelecto e faz com que o homem pergunte por quê A razão para isso é simples a Vontade como Nietzsche descobriria mais tarde é incapaz de querer retroativamente logo deixese para o intelecto a tarefa de descobrir o que deu errado A questão por quê qual é a causa é sugerida pela vontade porque a vontade se experimenta como um agente causativo E esse aspecto da Vontade que enfatizamos quando dizemos que a Vontade é a fonte da ação ou na linguagem escolástica que nossa vontade é produtora de atos e é o que permite a seu possuidor operar explicitamente no querer83 Para falar em termos de causalidade primeiro a vontade causa volições e tais volições causam então certos efeitos que nenhuma vontade pode desfazer O intelecto tentando fornecer à vontade uma causa explanatória que lhe abrande a indignação quanto à própria fraqueza fabricará uma história que faça com que os dados se encaixem Sem pressupor a necessidade faltaria à história toda a coerência Em outras palavras o passado justamente por ser o que é absolutamente necessário está além do alcance da Vontade Para Scotus o problema apresentavase de maneira mais simples os opostos decisivos não são necessidade e liberdade mas sim liberdade e natureza a Vontade ut natura e a Vontade ut libera Assim como o Intelecto a Vontade se inclina naturalmente para a necessidade só que a Vontade ao contrário do Intelecto pode conseguir resistir à inclinação Intimamente ligada a esta doutrina da contingência está a solução de simplicidade surpreendente que Scotus dá ao velho problema da liberdade uma vez que o problema surge da própria faculdade da vontade Discutimos com algum detalhe a curiosa fragmentação da vontade o fato de que a divisão doisemum característica de todos os processos do espírito e descoberta primeiramente por Sócrates e Platão no processo do pensamento transformase em uma luta fatal entre o euquero e o não quero entre velle e nolle que devem ambos estar presentes para assegurar a liberdade Experitur enim qui vult se posse non velle Aquele que experimenta uma volição tem também a experiência de ser capaz de não querer85 Os escolásticos seguindo a filosofia da Vontade de São Paulo o Apóstolo e de Santo Agostinho concordavam que a graça divina era necessária para curar o infortúnio da Vontade Scotus talvez o mais pio dentre eles discordava disso Não é necessária qualquer intervenção divina para redimir o ego volitivo Ela própria sabe muito bem como se curar das conseqüências do dom inestimável e ainda assim altamente questionável da liberdade humana questionável porque o fato de a vontade ser livre e de não ser determinada ou limitada por qualquer objeto dado exterior ou interiormente não significa que o homem como homem goze de liberdade ilimitada O modo normal que o homem tem de escapar à sua liberdade é simplesmente agir conforme as proposições da vontade Por exemplo é possível para mim estar escrevendo neste momento assim como me é possível não estar escrevendo ainda assim meu ato de escrever exclui o seu oposto Por um ato da vontade posso me determinar a escrever e por outro ato posso decidir não escrever mas não posso tomar uma atitude simultânea em relação às duas coisas86 Em outras palavras a vontade humana é indeterminada aberta a contrários e portanto fragmentada somente à medida que sua única atividade consiste em formar volições no momento em que pára de querer e começa a agir conforme uma das proposições da vontade ela perde sua liberdadee o homem o possuidor do ego volitivo fica tão feliz com a perda quanto ficou o asno de Buridan quando resolveu o problema da escolha entre os dois montes de feno decidindo seguir seu instinto parar de escolher e começar a comer Subjaz a esta solução que parece simplista à primeira vista uma distinção feita por Scotus provavelmente sob a influência de Aristóteles entre activum e factivum Tratase da distinção entre a atividade pura a energeia aristotélica que tem seu fim e ergon em si mesma e a fabricação facere que consiste em produzir ou moldar algum objeto externo e isso implica que a operação é transitória isto é tem um fim fora do agente Os artefatos do homem são produzidos por uma atividade transitória147 As atividades do espírito tais como pensar ou querer são atividades da primeira espécie e estas pensava Scotus embora não tenham qualquer resultado no mundo real são de uma perfeição maior porque essencialmente não são transitórias Elas cessam não por terem chegado a seu próprio fim mas somente porque o homem criatura limitada e condicionada é incapaz de continuálas indefinidamente Scotus compara essas atividades do espírito à atividade da luz que se renova permanentemente em sua própria fonte e conserva assim sua constância interna e simplesmente perdura88 Porque o dom da vontade livre foi entregue a um ens creatum este ser para poder se salvar é forçado a passar do activum para o factivum da atividade pura para a fabricação de algo que tem seu fim naturalmente com a emergência do produto A mudança é possível por que há um euposso inerente em cada euquero e este euposso impõe limitações ao euquero que não estão fora da própria atividade da vontade Voluntas estpotentia quia ipsa aliquid potest a Vontade é um poder porque pode alcançar algo e essa potência inerente à Vontade é com efeito o oposto da potentia passiva dos aristotélicos É um euposso poderoso e ativo que o ego experimenta89 Com essa experiência da Vontade como uma potência do espírito cujo poder não consiste como em Epiteto em proteger o espírito da realidade mas ao contrário em inspirálo e conferirlhe autoconfiança é como se tivéssemos chegado ao fim de uma história cujo começo foi a descoberta de São Paulo de que velle eposse não coincidem coincidência que era tida como certa na Antigüidade précristã A última palavra de Scotus sobre a Vontade como faculdade do espírito diz respeito ao mesmo fenômeno que foi elucidado muitos séculos mais tarde na identificação feita por Nietzsche e por Heidegger entre Vontade e Poder só que Scotus ainda não tinha conhecimento do aspecto aniquilador niilista do fenômeno isto é do poder gerado pela negação Ele ainda não via o futuro como uma negação antecipada do presente ou talvez visse mas só no sentido genérico de perceber a futilidade inerente de todas os acontecimentos meramente mundanos como disse Santo Agostinho quodfuturum est transiturum expectatur o que está no futuro é esperado como algo que terá sido90 O homem é capaz de transcender o mundo do Ser junto com o qual foi criado e que permanece sendo seu habitat até a morte ainda assim mesmo as atividades do seu espírito nunca deixam de relacionarse ao mundo dado aos sentidos Assim o intelecto está preso aos sentidos e sua função inata é entender os dados sensoriais de maneira semelhante a Vontade está presa ao apetite sensorial e sua função inata é desfrutar de si mesma Voluntas conjuncta appetitui sensitivo nata est condelectari sibi sicut intellectus conjunctus sensui natus est intelligere sensibilia91 As palavras decisivas aqui são condelectari sibi um prazer inerente à própria atividade da vontade diferente do prazer do desejo de obter o objeto desejado que é transitório a posse extingue o desejo e o prazer O condelectatio sibi importa seu prazer de sua proximidade do desejo e Scotus disse explicitamente que não há prazer do espírito que possa competir com o prazer que surge da satisfação do desejo sensual só que este prazer é quase tão transitório quanto o próprio desejo92 Assim ele estabelece uma distinção nítida entre vontade e desejo porque somente a vontade não é transitória Um prazer inerente à vontade em si mesma é tão natural para a vontade quanto entender e conhecer o são para o intelecto e ele pode ser detectado até mesmo no ódio mas sua perfeição inata a paz final entre o doisemum pode se dar somente quando a vontade é transformada em amor Se a vontade fosse mero desejo de possuir deixaria de existir quando se possui o objeto não desejo aquilo que tenho Quando Scotus especula sobre uma vida após a morte isto é sobre uma existência ideal para o homem como homem esta tão almejada transformação da vontade em amor com seu inerente delectatio é decisiva A transformação do querer em amar não significa que amar deixe de ser uma atividade cujo fim está em si mesma logo a bemaventurança futura a beatitude que se goza na vida eterna não pode de modo algum consistir no descanso e na contemplação A contemplação do summum bonum da coisa mais alta portanto Deus seria o ideal do intelecto que sempre se baseia na intuição a apreensão de uma coisa em seu seristo Thisness haecceitas que é imperfeita nesta vida não somente porque aqui o que é mais alto permanece ignorado mas também porque a intuição do seristo é imperfeita o intelecto recorre aos conceitos universais precisamente porque é incapaz de apreender a hecceidade93 A noção de paz eterna ou de Descanso surge da experiência da inquietação dos desejos e apetites de um ser necessitado que pode transcendêlos em atividades do espírito sem jamais ser capaz de escapar completamente a eles O que a Vontade em um estado de bemaventurança isto é em uma vida após a morte não precisa mais ou não consegue mais ter é a rejeição e o ódio mas isso não significa que o homem em estado de bemaventurança tenha perdido a faculdade de dizer sim A essa aceitação incondicional Scotus dá o nome de Amor Amo volo ut sis A beatitude é portanto o ato pelo qual a vontade vem a ter contato com o objeto apresentado a ela pelo intelecto e o ama satisfazendo assim plenamente seu desejo natural por ele94 Aqui novamente o amor é entendido como uma atividade mas não mais como uma atividade do espírito uma vez que seu objeto não está mais ausente dos sentidos e não é mais conhecido imperfeitamente pelo intelecto Pois a beatitude consiste no alcance pleno e perfeito do objeto como ele é em si e não simplesmente como está no espírito95 O espírito transcendendo as condições existenciais do viajante ou peregrino na terra tem uma indicação desta bemaventurança futura em sua experiência de pura atividade isto é em uma transformação da vontade em amor Recaindo na distinção agostiniana entre uti e frui usar algo para alguma outra coisa e desfrutar de algo por si mesmo Scotus diz que a essência da beatitude consiste no fruitio o amor perfeito a Deus por amor a Deus e é assim distinto do amor a Deus por amor a si mesmo Mesmo se este último é amor pelo bem da salvação da própria alma ainda assim é amor concupiscentiae amor desejoso96 Já em Santo Agostinho encontramos a transformação da vontade em amor e é bastante provável que as reflexões de ambos os pensadores fossem guiadas pelas palavras de São Paulo sobre o amor que jamais acaba nem mesmo quando vier o que é perfeito e tudo o mais tiver sido aniquilado I Coríntios 13813 Em Santo Agostinho a transformação se dá pela força unificadora da vontade não há maior força unificadora do que o amor com que os amantes se amam maravilhosamente unidos97 Mas para Scotus a base de experiência para a eternidade do amor está em sua concepção de um amor que não só está por assim dizer esvaziado purificado dos desejos e das necessidades mas é também um amor no qual a própria faculdade da Vontade é transformada em atividade pura Se nesta vida o milagre do espírito humano é que o homem possa ao menos espiritual e provisoriamente transcender suas condições terrenas e desfrutar da realidade pura de um exercício cujo fim está em si mesmo então o milagre que se espera em uma vida eterna é o de que o homem seja em toda sua existência espiritualizado Scotus fala de um Corpo glorificado98 não mais dependente de faculdades cujas atividades são interrompidas ou pelo factivum o fazer e o moldar objetos ou pelos desejos de uma criatura necessitada que conferem ambos um caráter transitório a toda atividade nesta vida inclusive as atividades do espírito Transformada em amor a inquietação da vontade é abrandada mas não extinta o poder duradouro do amor não é sentido como interrupção no movimento assim como o fim da fúria de uma guerra é sentido como a calma da paz mas sim como a serenidade de um movimento que se autocontém que se auto realiza e é perene Não aparecem aqui a calma e o prazer que se seguem a uma operação perfeita mas sim a quietude de um ato repousado em seu fim Nesta vida sabemos de tais atos em nossa experientia interna e segundo Scotus deveriamos ser capazes de compreendêlos como indicações de um futuro incerto em que eles durariam para sempre A faculdade de atuar se verá acalmada em seu objeto através do ato perfeito o Amor pelo qual ela o obtém99 A idéia de que poderia haver uma atividade que encontra seu repouso em si mesma é de uma originalidade tão surpreendente e sem precedentes ou sucessores na história do pensamento ocidental quanto a da preferência ontológica de Scotus pelo contingente em detrimento do necessário e pelo particular existente em detrimento do universal Tentei mostrar que não encontramos em Scotus simples inversões conceituais mas sim novos e genuínos insights que poderíam todos provavelmente ser explicados como as condições especulativas para uma filosofia da liberdade A meu ver na história da filosofia somente Kant pode se igualar a Duns Scotus em seu compromisso com a liberdade Não obstante Kant não tinha o menor conhecimento de Scotus Vou terminar portanto com uma estranha passagem de Kant na Crítica da razão pura que lida no mínimo com o mesmo problema sem contudo mencionar Liberdade ou Vontade Há algo de muito estranho no fato de que desde que supomos que algo existe não mais possamos evitar a consequência de que alguma coisa existe necessariamente Por outro lado tomando o conceito de uma coisa não importa qual descubro que a existência desta coisa nunca pode ser representada por mim como absolutamente necessária e que sobre o que quer que possa existir nada me impede de pensar em sua nãoexistência Assim se tenho que admitir algo necessário como uma condição para o que existe em geral não posso pensar em qualquer coisa particular como necessária em si Em outras palavras nunca posso acabar o regresso às condições da existência a não ser admitindo um ser necessário e ainda assim jamais estou em posição de começar a partir dele E concluindo esta reflexão algumas páginas depois não há nada que absolutamente force a razão a aceitar uma tal existência ao contrário podese sempre anulála em pensamento sem contradição a necessidade absoluta é uma necessidade encontrável somente no pensamento100 Ao que se pode acrescentar conforme nos ensina Scotus que o nada absoluto não é encontrável no pensamento Mais tarde teremos oportunidade de voltar a essa idéia quando discutirmos os destinos incertos da faculdade da Vontade no final da Era Moderna Capítulo 4 Conclusões 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos Antes de passarmos à parte final dessas considerações tentarei justificar o último e maior salto sobre os séculos nesta incompleta e fragmentária apresentação que tive a pretensão de anunciar como uma história da Vontade Já mencionei minhas dúvidas a respeito da possibilidade de haver legitimamente uma História das idéias uma Geistesgeschichte baseada no pressuposto de que as idéias seguemse gerandose umas às outras em uma sucessão temporal O pressuposto faz sentido somente no sistema da dialética de Hegel Mas sem falar em teorias há um registro dos pensamentos de grandes pensadores cujo lugar na história factual é indiscutível e cujo testemunho afirmador ou negador da Vontade abordamos aqui somente de passagem Descartes e Leibniz de um lado da discussão Hobbes e Espinoza do outro O único grande pensador nesses séculos que seria verdadeiramente irrelevante em nosso contexto é Kant Sua Vontade não é uma capacidade especial do espírito distinta do pensamento mas sim razão prática um Vernunftwille não muito diferente do nouspraktikos de Aristóteles a afirmação de que a razão pura pode ser prática é a tese central da filosofia moral kantiana1 está perfeitamente correta A Vontade de Kant não é nem liberdade de escolha liberum arbitrium nem é sua própria causa para Kant a espontaneidade pura que ele chamou com freqüência de espontaneidade absoluta só existe em pensamento A Vontade de Kant é encarregada pela razão de ser seu órgão executivo em todas as questões da conduta Muito mais embaraçosa e portanto carente de justificação é a omissão em nossas considerações do desenvolvimento do idealismo alemão depois de Kant o salto que demos sobre Fichte Schelling e Hegel os quais a seu modo especulativo resumiram os séculos da Era Moderna Pois a ascensão e declínio da Era Moderna não é uma invenção da história das idéias mas um evento factual que pode ser datado a descoberta da Terra inteira e de parte do Universo a ascensão da ciência moderna e de sua tecnologia seguida do declínio da autoridade da Igreja pela secularização e pelo Iluminismo Essa momentosa ruptura factual que ocorreu em nosso passado foi caracterizada e interpretada segundo muitos pontos de vista diferentes e legítimos em nosso contexto o desenvolvimento mais decisivo que se deu durante esses séculos foi a subjetivização do pensamento cognitivo bem como do metafísico Foi só nesses séculos que o homem se transformou no centro de interesse da ciência e da filosofia Isso não acontecera em tempos anteriores muito embora como vimos a descoberta da Vontade tenha coincidido com a descoberta de um homem interior em um momento em que o homem se tomara uma questão para si mesmo Somente quando a ciência provou não só que os sentidos humanos estavam sujeitos ao engano que poderia ser corrigido à luz de uma nova evidência para que fosse revelada a Verdade mas também que seu aparato sensorial ficara para sempre incapaz de certezas autoevidentes foi que o espírito humano agora totalmente lançado de volta a si mesmo começou com Descartes a procurar uma certeza que fosse um dado puro da consciência Quando Nietzsche chamou a Era Moderna de escola da suspeita quis dizer que pelo menos a partir de Descartes o homem já não estava mais certo de coisa alguma nem mesmo de ser real ele precisava de uma prova da existência não só de Deus como também de si mesmo Foi a certeza do eu sou que Descartes descobriu em seu cogito me cogitare isto é em uma experiência do espírito para a qual nenhum dos sentidos que nos dão nossa realidade e a de um mundo exterior é necessário É claro que essa certeza é bastante questionável Já em Pascal ele próprio influenciado por Descartes encontramos a objeção de que esta consciência dificilmente poderia ser suficiente para distinguir entre sonho e realidade um pobre artesão sonhando durante doze horas toda noite que era rei teria a mesma vida e desfrutaria da mesma quantidade de felicidade que um rei que sonhasse toda noite que era um pobre artesão Além disso já que freqüentemente se sonha estar sonhando nada pode assegurar que aquilo a que chamamos nossa vida não seja um completo sonho do qual despertaremos na morte Duvidar de tudo de omnibus dubitandum est e encontrar certeza na própria atividade de duvidar exigida pela nova Filosofia que de tudo duvida Donne não ajuda pois não está quem duvida obrigado a duvidar que duvida Ninguém foi é verdade tão longe mas isso só significa que nenhum homem jamais foi um cético perfeito jpyrrhonien em Pascal ainda que não por estar fortalecido pela razão ele era impedido pela natureza a qual ajudava a razão impotente e assim o cartesianismo era algo como a história de Dom Quixote2 Séculos mais tarde Nietzsche ainda pensando na mesma linha suspeitou que foi a nossa crença cartesiana no ego pensante como única realidade que nos fez atribuir realidade às coisas em geral3 Com efeito nada se tomou mais característico das últimas fases da metafísica do que essa espécie de inversão de papéis na qual Nietzsche com seus experimentos de pensamento de uma honestidade implacável era um mestre Mas esse jogo ainda um jogo de pensamento mais do que um jogo de linguagem só se tornou possível quando com o surgimento do idealismo alemão romperamse todas as pontes a não ser a ponte arcoíris de conceitos4 ou para falarmenos poeticamente quando ficou claro para os filósofos que a novidade de nossa posição contemporânea em filosofia baseiase na convicção que nenhuma época teve antes de nós de que não possuímos a verdade Todas as gerações anteriores possuíam a verdade até mesmo os céticos5 Nietzsche e Heidegger estavam errados creio na data que deram a essa convicção moderna na verdade ela acompanhara o surgimento da ciência moderna tendo sido atenuada pela certeza cartesiana como substituta para a verdade essa por sua vez foi destruída por Kant junto com os resíduos do escolasticismo que na forma de exercícios lógicos e de dogmatismo das escolas levara uma existência um tanto frágil de simples erudição Mas foi somente no fim do século XIX e aqui Heidegger está certo que a convicção de não possuir a verdade tomase a opinião comum das classes instruídas estabelecendose como algo semelhante ao Espírito da Era da qual Nietzsche era provavelmente o mais destemido representante Entretanto o fator poderoso que atrasou por séculos esta reação brotou ele mesmo com o surgimento das ciências como resposta natural de todo homem pensante ao enorme e imensamente rápido avanço do conhecimento humano um avanço que haveria de fazer com que os séculos anteriores desde a Antigüidade parecessem por comparação pura estagnação O conceito de Progresso como esforço amplo e cooperativo no interesse do conhecimento em si mesmo no qual todos os cientistas do passado do presente e do futuro têm uma parte apareceu desenvolvido de forma completa pela primeira vez nas obras de Francis Bacon6 Com esse conceito operouse a princípio quase automaticamente uma mudança importante na compreensão do Tempo a elevação do Futuro à posição antes ocupada pelo Presente ou pelo Passado A idéia de que cada geração subseqüente saberia mais do que aquela que a precedeu e de que esse progresso jamais se completaria uma convicção que só agora em nosso tempo vem a ser questionada já era suficientemente importante mas para nosso contexto mais importante ainda é a percepção simples e natural de que o conhecimento científico só foi e só pode ser alcançado passo a passo pela contribuição de gerações de exploradores na construção que se faz sobre as descobertas de seus predecessores corrigindoas de maneira gradual A ascensão da ciência teve início com as novas descobertas dos astrônomos cientistas que não apenas usaram de maneira bastante sistemática as descobertas de seus predecessores mas que também sem os registros de gerações passadas vale dizer registros confiáveis teriam sido incapazes de fazer absolutamente qualquer progresso uma vez que o tempo de vida de um homem ou de uma geração de homens é evidentemente curto demais para a verificação de descobertas e validação de hipóteses científicas Mas os astrônomos escreveram catálogos astrais para serem usados por futuros cientistas isto é lançaram a base para avanços científicos A astronomia não estava é claro totalmente sozinha na iniciação do progresso São Tomás de Aquino tinha consciência de um aumento no conhecimento científico argumentum factum est que ele explicava pelas falhas de conhecimento dos que inventaram as ciências Os artesãos também acostumados ao método do ensaio e erro tinham uma consciência clara de certas melhorias em seus ofícios As próprias guildas contudo enfatizavam a continuidade ao invés do progresso do artesanato e a única passagem da literatura que expressa claramente a idéia do progresso gradual do conhecimento ou melhor da habilidade tecnológica aparece em um tratado sobre artilharia7 Mesmo assim o elemento decisivo que conferiu à ciência moderna o seu ímpeto surgiu na astronomia e a idéia de Progresso que a partir de então dominou todas as outras ciências até que finalmente se tomasse a noção dominante do igualmente novo conceito de história baseouse originalmente no estoque de dados no intercâmbio de conhecimento e no lento acúmulo de registros que eram os requisitos para o avanço em astronomia Somente depois das espantosas descobertas dos séculos XVI e XVII foi que o que andava acontecendo nesse campo chamou a atenção daqueles interessados na condição humana em geral Assim enquanto a nova Filosofia provando a inadequação de nossos sentidos de tudo duvidava e dava origem à suspeita e ao desespero o movimento de avanço igualmente mani festo do conhecimento dava origem a um imenso otimismo quanto ao que o homem pode conhecer e aprender Só que esse otimismo não se aplicava aos homens no singular e nem mesmo à relativamente pequena comunidade dos cientistas aplicavase somente à sucessão de gerações isto é à Humanidade como um todo Nas palavras de Pascal que foi o primeiro a detectar que a idéia de progresso era um complemento necessário à idéia de Humanidade era a prerrogativa particularmente humana distintiva do homem e do animal que não só cada ser humano possa avançar diariamente no conhecimento mas que todos os homens juntos progridam continuamente à medida que o universo vai envelhecendo de modo que a completa sucessão de homens através dos séculos deva ser considerada como um só homem que vive para sempre e aprende continuamente grifo nosso8 O decisivo nessa formulação é que a noção de todos os homens juntos que é claro constitui um pensamento e não uma realidade foi de imediato construída segundo o modelo do homem de um sujeito que podia servir como um nome para todos os tipos de atividades expressas por verbos Esse conceito não era uma metáfora propriamente dita era uma completa personificação do tipo das que encontramos nas alegorias das narrativas da Renascença Em outras palavras o Progresso tornouse o projeto da Humanidade atuando por trás dos homens reais uma força personificada que iremos encontrar mais tarde na mão invisível de Adam Smith no ardil da natureza de Kant na astúcia da Razão de Hegel e no materialismo dialético de Marx Sem dúvida o historiador das idéias não verá nessas noções nada além da secularização da divina providência uma interpretação bastante questionável uma vez que encontramos a personificação da Humanidade em Pascal que certamentc teria sido o último a desejar um substituto secular para Deus como aquele que verdadeiramente governa o mundo Seja como for as idéias interligadas de Humanidade e Progresso só vieram para o primeiro plano das especulações filosóficas depois que a Revolução Francesa demonstrou para os espíritos de seus mais pensativos espectadores a realização possível de coisas invisíveis como liberte fraternité egalité parecendo constituir assim uma refutação tangível para a mais antiga convicção dos homens pensantes a de que os altos e baixos da história e dos negócios sempre instáveis dos homens não merecem ser levados a sério Aos ouvidos contemporâneos o famoso dito de Platão nas Leis um homem sério guarda sua seriedade para as coisas sérias e não a desperdiça com insignificâncias9 tais como os assuntos humanos pode parecer desmedido na verdade isso nunca tinha sido questionado antes de Vico e Vico não teve influência ou eco até o século XIX O evento da Revolução Francesa clímax sob muitos aspectos da Era Moderna alterou o aspecto pálido do pensamento por quase um século os filósofos uma tribo de homens notoriamente melancólicos tomaramse exultantes e otimistas Agora acreditavam no Futuro e deixavam para os historiadores as antigas lamentações sobre o curso do mundo Aquilo que séculos de avanços científicos compreendidos na totalidade só pelos participantes da grande empreitada sem contudo ficar além da compreensão geral do filósofo tinham sido incapazes de alcançar era agora efetivado em poucas décadas os filósofos foram convertidos a uma fé no progresso não só do conhecimento mas também dos assuntos humanos em geral E enquanto começavam a refletir com uma lealdade nunca antes vista sobre o curso da história não podiam deixar de tomar consciência quase imediata do maior enigma que seu novo tema lhes apresentava Tratase do simples fato de que nenhuma ação jamais alcança o objetivo pretendido e de que o Progresso ou qualquer outra significação fixa do processo histórico surge de uma mistura sem sentido de erro e violência Goethe de uma casualidade melancólica no curso sem sentido dos assuntos humanos Kant Só se pode detectar algum sentido por meio da sabedoria da visão retrospectiva quando os homens deixam de agir e começam a contar a história do que aconteceu então é como se os homens ao perseguir seus propósitos sem se entender sem a menor lógica tivessem sido levados por uma intenção da natureza pelo fio condutor da razão10 Citei Kant e Goethe que estacaram ambos no limiar da nova geração aquela dos idealistas alemães para quem os acontecimentos da Revolução Francesa foram as experiências de vida decisivas Mas Vico já sabia que os fatos da história conhecida tomados em si mesmos não possuem nem uma base comum nem continuidade nem coerência e Hegel muito depois ainda insistia em que as paixões os propósitos privados e a satisfação de desejos egoístas são as mais efetivas fontes da ação Logo não é o registro dos eventos passados mas somente a história o que faz sentido e o que tanto impressiona nas observações de Kant ao final da vida é ter ele entendido imediatamente que o sujeito da ação da História teria que ser a Humanidade em vez de o homem ou qualquer comunidade humana constatável Não menos impressionante é o fato de ter sido capaz de perceber a grande falha no projeto da História Continuará sempre sendo desconcertante que as gerações anteriores pareçam levar adiante sua pesada tarefa pelo bem dos que virão e que somente os últimos devam ter a sorte de habitar o edifício terminado11 Provavelmente foi por pura coincidência que a geração amadurecida sob o impacto das revoluções do século XVIII tenha também tido o espírito formado pela liberação kantiana do pensamento por sua resolução do antigo dilema entre o dogmatismo e o ceticismo ao introduzir uma autocrítica da Razão E como a revolução encorajou essa geração a transportar a noção de Progresso do avanço científico para o campo dos assuntos humanos e a compreendêla como progresso da História era mais do que natural que sua atenção se voltasse para a Vontade como fonte da ação e como o órgão do Futuro O resultado foi que a idéia de fazer da liberdade a parte essencial da filosofia emancipou o espírito humano em todas as suas relações emancipou o ego pensante para a especulação livre nas cadeias de pensamento cujo fim último era provar que não só o Ego é tudo mas também ao contrario tudo é Ego12 Aquilo que aparecera de forma restrita e provisória no conceito personificado de Humanidade de Pascal começava agora a proliferar com uma incrível intensidade As atividades dos homens seja de pensar seja de agir foram transformadas em atividades de conceitos personificados que tornavam a filosofia tanto infinitamente mais difícil a dificuldade principal em Hegel é seu teor de abstração suas pistas somente ocasionais sobre os dados e fenômenos reais que ele tinha em mente quanto incrivelmente mais viva Era uma verdadeira orgia de pura especulação que em contraste nítido com a razão crítica de Kant estava repleta de dados históricos disfarçados de abstração radical Uma vez que é o próprio conceito personificado que deve supostamente agir é como se nas palavras de Schelling a filosofia se erguesse a um ponto de vista mais alto a um maior realismo em que as simples coisaspensamento os noumena de Kant produtos desma terializados da reflexão do ego pensante sobre dados reais dados históricos em Hegel e mitológicos ou religiosos em Schelling dessem início à sua curiosa dança incorpórea e espectral cujos passos e ritmos não se regulam nem se limitam por qualquer idéia da razão Foi nessa região de especulação pura que a Vontade apareceu durante o curto período do idealismo alemão Na instância última e mais alta declarou Schelling não há outro Ser senão a Vontade A Vontade é Ser primordial e todos os predicados aplicamse somente a ela a ausência de fundamento a eternidade a independência do tempo a autoafirmação Toda filosofia luta apenas para encontrar esta expressão maior13 E citando essa passagem em What is called thinking Heidegger logo acrescenta Os predicados pois que o pensamento metafísico atribuiu desde a Antigüidade ao Ser Schelling encontraos em sua forma final e mais alta no querer A Vontade nesse querer não significa aqui uma capacidade da alma humana entretanto a palavra querer designa aqui o Ser dos seres como um todo grifo nosso14 Sem dúvida Heidegger está certo a Vontade de Schelling é uma entidade metafísica mas ao contrário das falácias metafísicas mais comuns e mais antigas ela é personificada Em um contexto diferente e de forma mais precsa o próprio Heidegger sintetiza o significado deste Conceito personificado a falsa opinião de que a vontade humana é a origem da vontadedequerer surge facilmente quando ao contrario é a Vontadedequerer que quer o homem sem que ele sequer experimente a essência de tal vontade15 Com essas palavras Heidegger voltase resolutamente contra o subjetivismo da Era Moderna e também contra as análises fenomenológicas cuja meta principal sempre foi salvar os fenômenos assim como eles eram dados à consciência E ao entrar na ponte arcoíris de conceitos ele acaba encaininhandose para o idealismo alemão e para a sua exclusão engenhosa do homem e das faculdades do homem em favor de conceitos personificados Nietzsche diagnosticou a inspiração por trás dessa filosofia póskantiana com uma clareza insuperável ele conhecia aquela filosofia muito bem e ao final seguiu ele mesmo por um caminho semelhante e talvez ainda mais extremo A filosofia alemã disse Nietzsche é o modo mais fundamental de nostalgia que jamais houve o anseio pelo que já existiu de melhor Não se está mais etn casa em lugar algum ao final anseiase pela volta àquele único lugar em que se pode estar em casa o mundo grego Mas é precisamente naquela direção1 que todas as pontes estão quebradas exceto as pontes arcoíris de conceitos Ccom certeza é preciso ser muito leve muito sutil muito esguio para passar por essas pontes Mas que felicidade já há nessa vontade de espiritualidade quase de fantasmagoricidade Geisterhaftigkeit Desejase a volta através dos Padres da Igreja aos gregos A filosofia alemã é um pedaço de desejo de Renascença voontade de prosseguir na descoberta da Antigüidade no desenterrar da filosofia amtiga sobretudo dos présocráticos o templo grego enterrado mais fundo Daqrui a alguns séculos talvez julgarseá que toda a filosofia alemã colhe sua verdadeiira dignidade do fato de ser uma recuperação gradual do solo da Antigüidade tornaimonos mais gregos a cada dia primeiro como é razoável nos conceitos e avaliaçõtes como se fossem de certo modo fantasmas helenizantes16 Sem dúvida o conceito personificado tinha raiz em uma ex periênciaconstatável mas o pseudoreino de espíritos incorpóreos atuando por trás dos homens era construído pela nostalgia de um outro mundo no qual o espíriiito do homem pudesse sentirse em casa Esta é então minha justificativa para ter omitido de nossas considerações esse corpo de pensamento o idealismo alemão no qual a espectulação pura no campo da metafísica talvez tenha alcançado seu clímax junto com o fim Não quis atravessar a ponte arcoíris de conceitos talvez porque não seja suficientemente nostálgica em todo caso porque não acredito em um mundoo quer seja um mundo passado ou um futuro em que o espírito humano equipado pa ra retirarse do mundo das aparências poderia ou deveria chegar a sentirse confortavelmente em casa Além disso pelo menos nos casos de Nietzsche e de Heidegger foi precisamente um confronto com a Vontade como faculdade humana e não como categoria ontológica que os instou originalmente a repudiar a facualdade e então a se converter e depositar sua confiança nessa casa f antasmagórioca de conceitos personificados que foi tão obviamente construída e decorada poelo ego pensante em oposição ao volitivo 14 O repúdio nietzscheano da Vontade Em minha discussão sobre a Vontade mencionei repetidars vezes duas maneiras completamente diferentes de se entender esta faculdade coimo uma faculdade de escolha entre objetos ou metas o liberum arbitrium que atiua como árbitro entre fins dados e delibera livremente sobre os meios para alcançálos e por outro lado como nossa faculdade de começar espontaneamente uma série no tempo Kant17 ou como o initium ut esset homo creatus est de Santo Agmstinho a capacidade do homem começar por ser ele mesmo um começo Com o cconceito de Progresso da Era Moderna e sua inerente alteração do entendimento do Futuro que deixa de ser aqmlo que se aproxima de nós para ser aquilo que determinamos com os projetos da Vontade seria natural que o poder instigador da Vontade fosse alçado a primeiro plano E o foi de fato como nos informa a opinião comum na época Por outro lado nada é mais característico do início do que hoje chamamos de existencialismo do que a ausência de qualquer desses traços de otimismo Segundo Nietzsche somente a falta de sentido histórico uma falta que para ele é o erro original de todos os filósofos18 pode explicar esse otimismo Não nos deixemos enganar O tempo marcha para frente gostaríamos de acreditar que tudo o que está nele marcha também para frente que o desenvolvimento é o que se move para frente E quanto ao correlato do Progresso a idéia de Humanidade ele diz a Humanidade não avança nem sequer existe19 Em outras palavras embora a suspeita universal tenha sido fortemente neutralizada no início daEra Moderna detida primeiro pela própria noção de Progresso e depois por sua aparente corporificação e apogeu na Revolução Francesa esta ação ncutralizadora revelouse apenas um fator de adiamento cuja força ao final esgotouse Se preferimos olhar historicamente para tal desenvolvimento só podemos dizer que os experimentos de pensamento de Nietzsche uma filosofia experimental como a que vivo antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo mais fundamental20 finalmente completaram o que tivera início com Descartes e Pascal no século XVII Os homens sempre tentados a levantar o véu do futuro com o auxílio de computadores ou de horóscopos ou dos intestinos de animais sacrificados têm tido piores resultados nessas ciências do que em quase qualquer outra empreitada científica Se estivéssemos falando contudo de uma competição honesta entre futurólogos com relação à nossa própria época o prêmio poderia muito bem ir para John Donne um poeta sem qualquer ambição científica que escreveu em 1611 em reação imediata ao que ele sabia estar se passando nas ciências que ainda ficariam por muito tempo atuando sob o nome de filosofia natural Ele não precisou esperar por Descartes ou Pascal para tirar as conclusões daquilo que percebia And new Philosophy calls all in doubt The Element of fire is quite put out The Sun is lost and thearth and no mans wit Can well direct him where to looke for it Tis all in pieces all cohaerence gone All just supply and all Relation Prince Subject Father Sonne are things forgot E finaliza com lamentações que precisaram mais ou menos de trezentos anos para serem ouvidas de novo Quando conheceres isto Saberás que monstro horrendo que Fantasma lívido Que Cinza seca é este mundo21 É sobre este pano de fundo histórico que teremos que considerar os últimos dois pensadores ainda próximos o bastante da herança filosófica do Ocidente para reconhecer na Vontade uma das faculdades importantes do espírito Começamos com Nietzsche e lembramos que ele jamais escreveu um livro com o título Vontade de Potência a coleção de fragmentos notas e aforismos que levam este título foi publicação póstuma resultado de uma seleção feita sobre um caos de dizeres desconexos e muitas vezes contraditórios Cada um deles é o que todos os escritos do Nietzsche maduro na verdade são a saber um experimento de pensamento um gênero literário surpreendentemente raro nos registros de nossa história A analogia mais óbvia é com Pensées de Pascal que tem em comum com A vontade de potência de Nietzsche um descuido na organização que levou seus últimos editores a tentar reorganizálos com o aborrecido resultado de deixarem o leitor cheio de problemas para identificálos e datálos Consideraremos a princípio alguns enunciados descritivos simples sem conotações filosóficas gerais ou metafísicas A maior parte vai soar bastante familiar mas será melhor não precipitar a conclusão de que possamos estar aqui diante de influências eruditas Inferir esse tipo de coisa é especialmente tentador no caso de Heidegger por seu profundo conhecimento de filosofia medieval por um lado e por sua insistência na primazia do tempo futuro em Ser e Tempo de que já falei por outro Mais digno de nota ainda é que em sua discussão sobre a Vontade que toma fundamentalmente a forma de uma interpretação de Nietzsche ele nunca mencione as descobertas de Santo Agostinho nas Confissões Logo fica melhor atribuir aquilo que irá parecer familiar no que vem a seguir às características peculiares da faculdade da vontade até mesmo a influência de Schopenhauer sobre o jovem Nietzsche pode ser desconsiderada aqui sem maiores escrúpulos Nietzsche sabia que Schopenhauer falou sobre a vontade mas não há nada mais característico de sua filosofia do que a ausência de uma vontade genuína22 e viu corretamente que a razão para isso reside em um equívoco básico na compreensão da vontade como se o anseio o instinto o ímpeto fossem a essência da vontade ao passo que o querer é precisamente um senhor dos anseios aquilo que estipula para eles o seu modo e a sua medida23 Pois querer não é o mesmo que desejar esforçarse por algo ou ter necessidade de algo distinguese de tudo isso através do elemento do Comando Que se comande algo isto é inerente ao querer24 Heidegger comenta Não há expressão mais característica em Nietzsche do que querer é comandar inerente ao querer está o pensamento que comanda25 E não menos característico é que este pensamento que comanda só muito raramente dirigese ao domínio dos outros o comando e a obediência ocorrem ambos no espírito de um modo estranhamente semelhante ao da concepção de Santo Agostinho sobre a qual Nietzsche certamente nada sabia Ele explica em detalhes em Para além do bem e do mal Aquele que quer dá ordens a alguma coisa que nele obedece O aspecto mais estranho deste fenômeno múltiplo a que chamamos de Vontade é que só tenhamos uma palavra para ele e em especial que tenhamos só uma palavra para o fato de que somos em cada caso particular ao mesmo tempo quem dá as ordens e quem as obedece ao obedecermos experimentamos os sentimentos de coerção ânsia pressão resistência que normalmente começaram a se manifestar imediatamente após o ato de querer por estarmos entretanto no comando experimentamos uma sensação de prazer e isso ainda mais intensamente porque estamos habituados a superar a dicotomia pela noção do Eu o Ego e isso de um modo que tomamos como certa em nós a obediência e que identificamos querer e executar querer e agir grifo nosso Essa operação da vontade existente apenas em nosso espírito supera a dualidade espiritual do doisemum que veio a tomarse uma batalha entre um que comanda e um que supostamente deve obedecer pela identificação do Eu como um todo com a parte que comanda e antecipando que a outra a parte que resiste obedecerá e fará o que lhe disserem para fazer Aquilo que é chamado de liberdade da vontade é essencialmente uma superioridade passional em relação a alguém que deve obedecer Eu sou livre ele deve obedecer a consciência disto é a própria vontade 26 Não esperaríamos que Nietzsche acreditasse na graça divina como o poder de cura da dualidade da Vontade O inesperado na descrição acima é que ele tenha detectado na consciência da luta uma espécie de truque do Eu que o capacita para escapar ao conflito identificandose com a parte que comanda e para fechar os olhos por assim dizer para os sentimentos desagradáveis e paralisantes de se estar sob coerção e portanto sempre prestes a resistir Nietzsche com freqüência denuncia este sentimento de superioridade como uma ilusão ainda que como uma ilusão saudável Em outras passagens ele explica a estranheza do fenômeno como um todo chamandoo de uma oscilação da vontade entre sim e não mas mantém se preso ao sentimento da superioridade do Eu identificando aoscilação com uma espécie de vaivém entre o prazer e a dor O prazer diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus é claramente o júbilo antecipado do euposso inerente ao próprio ato de querer independente da performance do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem independente de exaltação ou de platéia Em Nietzsche o que importa é que ele inclui os sentimentos negativos de servidão de estar sob coação e de resistência ou ressentimento entre os obstáculos necessários sem os quais a Vontade nem sequer conhecería seu próprio poder Somente ao vencer uma resistência interna é que a Vontade toma consciência de sua gênese ela não brotou para adquirir poder o poder é sua própria fonte Novamente em Para além do bem e do mal Liberdade da vontade é a expressão para a condição prazerosa múltipla daquele que quer e que está no comando e simultaneamente se vê como o mesmo que executa o comando desfrutando enquanto tal o triunfo sobre a resistência mas de posse do juízo de que é sua própria vontade que está superando a resistência Dessa maneira aquele que quer acrescenta os sentimentos prazerosos da execução ao sentimento prazeroso que tem como Comandante27 Essa descrição que toma o doisemum da Vontade o Eu resistente e o Eu triunfante como a fonte do poder da Vontade deve sua plausibilidade à introdução inesperada do princípio de dor e de prazer na discussão colocar prazer e desprazer como fatos principiais28 Assim como a simples ausência de dor jamais pode causar o prazer também a Vontade senão tivesse que superar a resistência jamais poderia alcançar poder Aqui seguindo involuntariamente as antigas filosofias hedonistas em vez do cálculo contemporâneo do prazerdor Nietzsche baseiase em sua descrição na experiência de alívio da dor não na mera ausência de dor ou na mera presença de prazer A intensidade da sensação de alívio só se compara à intensidade da sensação de dor e é sempre maior do que qualquer prazer desligado da dor O prazer de beber o vinho mais delicioso não pode se comparar em intensidade ao prazer que um homem com uma sede desesperada sente ao tomar seu primeiro gole dágua Neste sentido há uma clara distinção entre o júbilo independente e desligado das necessidades e desejos e o prazer ânsia sensual de uma criatura cujo corpo está vivo a ponto de necessitar algo que não tem O júbilo ao que parece só pode ser experimentado quando se está completamente livre de dor e desejo isto é ele fica de fora do cálculo dor prazer que Nietzsche desprezava por seu inerente utilitarismo O júbilo aquilo que Nietzsche chamou de princípio dionisíaco vem da abundância e é verdade que todo júbilo é uma espécie de luxúria ele nos domina e só podemos ceder a ele depois que as necessidades da vida tenham sido satisfeitas Mas isso não nega a existência de um elemento sensual no júbilo abundância é ainda abundância de vida e o princípio dionisíaco em sua ânsia sensual tornase destruição justamente porque a abundância pode se permitir a destruição Neste aspecto não tem a Vontade a mais íntima afinidade possível com o princípio da vida que continuamente produz e destrói Assim Nietzsche define o dionisíaco como a identificação temporária com o princípio de vida incluindose a volúpia do mártir como o Júbilo na destruição e na visão de sua progressiva ruína Júbilo no que está por vir e reside no futuro que triunfa sobre coisas existentes por mais que sejam boas29 A mudança nietzscheana do euquero para o euposso antecipado que nega o euqueroenãoposso de São Paulo negando assim toda a ética cristã está baseada em um Sim irrestrito à Vida isto é em uma elevação da Vida tal como ela é experimentada fora de todas as atividades do espírito à posição de valor supremo segundo o qual tudo o mais deve ser avaliado Isso é possível e razoável porque há com efeito um euposso inerente a cada euquero como vimos em nossa discussão sobre Duns Scotus Voluntas estpotentia quia ipsa alquidpotest A Vontade é um poder porque consegue alcançar algo30 A Vontade nietzscheana entretanto não se limita por seu próprio euposso inerente por exemplo ela pode querer a eternidade e Nietzsche anseia por um futuro que produzirá o superhomem isto é uma nova espécie humana forte o suficiente para viver no pensamento de um eterno retomo Produzimos o pensamento mais pesado produzamos agora o ser para quem isso será fácil e venturosol Para celebrar o futuro não o passado Para cantar dichten o mito do futuro31 A idéia da Vida como o mais alto valor não pode é claro ser demonstrada é uma simples hipótese o pressuposto do senso comum de que a vontade é livre porque sem esse pressuposto como se tem dito repetidas vezes nenhum preceito de natureza moral religiosa ou jurídica poderia chegar a fazer sentido Ela é contrariada pela hipótese científica segundo a qual como apontou Kant de maneira notável todo ato no momento em que entra no mundo cai em uma rede de causas aparecendo assim em uma seqüência de ocorrências explicáveis somente no contexto da causalidade Para Nietzsche o decisivo é que a hipótese do senso comum constitui um sentimento dominante do qual não podemos nos livrar mesmo se as hipóteses científicas fossem demonstradas32 Mas a identificação da vontade com a vida a idéia de que nosso ímpeto de viver e nossa vontade de querer são ao final a mesma coisa tem outras conseqüências talvez mais sérias para o conceito nietzscheano de poder Isso pode ficar mais claro quando consideramos as metáforasguia em A gaia ciência uma relacionada com a vida outra que introduz o tema do eterno retorno a idéia básica do Zaratustra como ele a designou em Ecce Homo e também a idéia básica de seus aforismos póstumos reunidos sob o título enganador e nãonietzscheano de A vontade de potência A primeira aparece sob o título de Vontade e onda Wille und Welle Com que avidez aproximase esta onda como se estivesse à procura de algo Com que pressa terrível ela rasteja até o fundo das ranhuras mais secretas deste rochedo labiríntico Parece que há ali escondido algo de valor de infinito valor e agora volta um pouco mais lentamente mas ainda branca de emoção estará desapontada Terá encontrado aquilo que procurava Estará fingindo estar desapontada Mas já se aproxima outra onda ainda mais ávida e selvagem do que a primeira e sua alma também parece estar cheia de segredos e de gana para desenterrar tesouros E assim que vivem as ondas é assim que vivemos nós também nós que queremos Lançaivos como quiserdes impetuosas brami de prazer e de maldade ou mergulhai de novo e lançai vossa infinita crina branca de espuma e de musgo sobre elas Tudo aprovo pois tudo vos serve tão bem e tenho uma disposição tão boa para convosco para tudo Pois conheçovos e também a vosso segredo conheço vossa raça Vós e eu não somos da mesma raça Vós e eu não temos o mesmo segredo grifos nossos33 Aqui a princípio é como se estivéssemos lidando com uma metáfora perfeita uma semelhança perfeita de duas relações entre coisas completamente diferentes34 A relação entre as ondas e o mar do qual elas se erguem sem intenção ou meta criando uma euforia enorme e sem propósito assemelhase e portanto ilumina o turbilhão que a Vontade provoca na morada da alma parecendo estar sempre em busca de algo até que se acalma ainda que sem se extinguir sempre pronta para um novo levante A Vontade aprecia o querer assim como o oceano aprecia as ondas pois a não querer o homem prefere ainda querer o nada35 Em um exame mais detido entretanto parece que algo bastante decisivo aconteceu àquilo que era originalmente uma metáfora homérica Aquelas metáforas como vimos eram sempre irreversíveis olhando para as tempestades no oceano nos lembraríamos de nossas emoções interiores mas aquelas emoções nada nos informavam sobre o mar Na metáfora nietzscheana as duas coisas diferentes que a metáfora reúne não apenas se assemelham para Nietzsche elas são idênticas e o segredo do qual ele tanto se orgulha é precisamente seu conhecimento desta identidade Vontade e Onda são a mesma coisa e podese mesmo ficar tentado a supor que as experiências do ego volitivo fizeram com que Nietzsche descobrisse o turbilhão do mar Em outras palavras as aparências do mundo transformaramse em um mero símbolo das experiências interiores com a conseqüência de que a metáfora originalmente concebida para servir de ponte sobre o abismo entre o ego pensante ou o volitivo e o mundo das aparências entra em colapso O colapso ocorreu não por causa de um peso superior dado aos objetos que confrontam a vida humana mas sim por uma adesão sectária ao aparato da alma humana cujas experiências são entendidas como tendo absoluta primazia Há inúmeras passagens em Nietzsche que apontam para este antropomorfismo fundamental Para citar apenas um exemplo Todas as pressuposições da teoria mecanicista que em Nietzsche é idêntica às hipóteses científicas matéria átomo gravidade pressão e forçanão são fatosemsi mas sim interpretações feitas com o auxílio de ficções físicas36 A ciência moderna chegou a suspeitas estranhamente semelhantes nas reflexões especulativas sobre seus próprios resultados os astrofísicos de hoje devem considerar a possibilidade de que seu mundo exterior seja somente o nosso mundo interior virado ao avesso Lewis Mumford Passemos agora à nossa segunda história que não é na verdade uma metáfora ou um símbolo mas uma parábola a história de um experimento de pensamento que Nietzsche intitulou Das grõsste Schwergewichf o pensamento que mais pesaria sobre nós E se algum dia ou noite um demônio viesse rondarte em tua mais solitária solidão e te dissesse Esta vida tal como a vives agora terás de viver mais uma vez e mais inúmeras vezes e nada de novo haverá nela mas a menor dor e o menor júbilo o menor pensamento e o menor suspiro e cada coisa indizivelmente pequena ou grande em tua vida terá de voltar a ti todas na mesma sucessão e sequência até mesmo esta aranha e este luar entre as árvores e até mesmo este momento e eu mesmo A eterna ampulheta da existência será invertida sem descanso e tu junto com ela poeira das poeiras Não te lançarias por terra e rangerías os dentes e amaldiçoarias o demônio que assim te falou A menos que tenhas vivido um momento formidável em que lhe responderías Es um deus e eu jamais ouvi nada mais divino Se este pensamento se apossasse de ti modificaria o teu modo de ser ou talvez te esmagasse A questão em cada uma e em todas as coisas Desejas isto uma vez mais e inúmeras vezes mais pesaria sobre tuas ações como o maior dos pesos Ou quão bem disposto estarias de transformar a tie a vida de modo a não desejar outra coisa com mais fervor além desta suprema confirmação final grifos nossos37 Nenhuma versão posterior da idéia de eterno retomo mostra mais inequivocamente sua principal característica a saber a de que não é uma teoria nem doutrina e nem mesmo uma hipótese mas um simples experimento de pensamento Como tal e implicando um retomo experimental ao conceito cíclico de tempo da Antigüidade parece estar em flagrante contradição com qualquer noção possível de Vontade cujos projetos sempre pressupõem o tempo retilíneo e um futuro que é ignorado e portanto aberto a mudanças No contexto dos enunciados do próprio Nietzsche sobre a Vontade e da mudança que ele postulou de um euquero para um euposso antecipado a única afinidade entre as duas histórias parece estar no momento formidável de transbordante benevolência o estar com uma disposição boa com relação à Vida que obviamente deu origem ao pensamento em cada caso Visto em termos de sua noção de Vontade este seria o momento em que o sentimento do euposso está no seu apogeu espalhando um sentimento de força Kraftgefiihl generalizado Esta emoção como observa Nietzsche surge em nós com frequência antes mesmo do ato ocasionada pela idéia daquilo que deve ser feito o que acontece quando vemos um inimigo ou um obstáculo em relação aos quais nos sentimos em iguais condições Para a vontade operante esta emoção tem pouca importância é sempre um sentimento acessório ao qual erradamente atribuímos a força de ação a qualidade de um agente causativo Nossa crença na causalidade é uma crença em força e efeito uma transferência de nossa experiência na qual identificamos a força e o sentimento da força38 A famosa descoberta de Hume de que a relação entre causa e efeito está na crença engendrada pelo costume e pela associação e não no conhecimento foi feita novamente e com muitas variantes por Nietzsche que ignorava ter tido um predecessor Seu exame é mais penetrante e mais crítico porque no lugar do cálculo de utilidades de Hume e de seu sentimento moral ele postula a experiência de um euquero a que se segue um efeito isto é usa o fato de que o homem tem consciência de si mesmo como um agente causativo mesmo antes de ter feito qualquer coisa Mas Nietzsche não acredita que isto tome a Vontade menos irrelevante para Nietzsche assim como para Hume a vontade livre é uma ilusão inerente à natureza humana uma ilusão de que a filosofia um exame crítico de nossas faculdades irá nos curar Só que para Nietzsche as consequências morais dessa cura são decididamente mais sérias Se já não podemos atribuir o valor de uma ação à intenção o propósito que nos levou a agir ou a viver se a ausência de intenção e propósito nos acontecimentos vem cada vez mais para o primeiro plano da consciência fica inevitável concluir que nada tem qualquer significado pois essa frase melancólica significa Todo significado está na intenção e se a intenção falta de todo então falta de todo também o significado Logo Por que um propósito não poderia ser um epifenômeno na série de mudanças de forças efetivas que produz a ação intencionada uma pálida imagem em nossa consciência um indício de ocorrências e não sua causa Mas com isso teremos criticado a vontade em si não será uma ilusão tomar por causa aquilo que surge para a consciência como um ato da vontade grifo nosso39 O fato de essa passagem ser contemporânea das passagens sobre o Eterno Retomo justifica que indaguemos se e como esses dois pensamentos podem ser se não conciliados pelo menos concebidos de um modo que não venham a entrar em choque frontal Primeiro comentemos brevemente alguns enunciados importantes de Nietzsche sobre a Vontade que não são especulativos mas sim descritivos Há em primeiro lugar o que parece óbvio mas que nunca foi apontado antes o fato de que a Vontade não pode querer retroativamenie não pode parar a roda do tempo Esta é a versão de Nietzsche para o eu queroenãoposso pois é precisamente este querer retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar Desta impotência Nietzsche retira todo o mal humano o rancor a sede de vingança castigamos porque não podemos desfazer o que foi feito a sede de poder para dominar os outros A essa genealogia da moral poderiamos acrescentar a impotência da Vontade que persuade o homem a preferir olhar para trás relembrando e pensando porque para o olhar retrospectivo tudo o que é parece ser necessário O repúdio da Vontade libera o homem de uma responsabilidade que seria intolerável caso nada do que foi feito pudesse ser desfeito Em todo caso foi provavelmente o choque da Vontade com o passado que fez com que Nietzsche fizesse experimentos com o Eterno Retorno Em segundo lugar o conceito de vontadedepotência é redundante a Vontade gera poder para o querer logo a vontade que tem como objetivo a humildade não é menos poderosa do que aquela cujo objetivo é mandar nos outros O ato de vontade em si já é um ato de potência uma indicação de força o sentimento de força Kraftgefühl que vai além do que se requer para satisfazer as necessidades e demandas da vida cotidiana Se há uma contradição simples nos experimentos de pensamento de Nietzsche é a contradição entre a impotência factual da Vontade ela quer mas não pode querer retroativamente e este sentimento de força Em terceiro lugar a Vontade seja quando é vontade retroativa e percebe sua impotência seja quando é vontade projetiva e percebe sua força transcende a simples gratuidade giveness do mundo Tal transcendência é espontânea e corresponde à avassaladora superabundância de Vida O objetivo autêntico da Vontade é portanto a abundância Com as palavras liberdade da Vontade falamos desse sentimento de excesso de força e o sentimento é mais do que uma simples ilusão da consciência porque corresponde de fato à própria superabundância de vida Seria portanto possível entender toda a Vida como Vontadedepotência Somente onde há vida há também vontade não vontade de vida mas vontade de potência41 Pois seria bem possível explicar a alimentação como a conseqüência de apropriação insaciável de vontade de potência e a procriação como a desagregação que sobrevêm quando as células dominantes são incapazes de organizar aquilo que foi apropriado41 Esse transcender que é inerente à vontade Nietzsche chama de Superação Ele é possível por causa da abundância a atividade em si é vista como criatividade e a virtude que corresponde a todo esse complexo de idéias é a Generosidade a superação da sede de vingança É a extravagância e a inconseqüência Übermut de uma vontade transbordante e esbanjadora que abre um futuro para além de todo o passado e de todo o presente O Excedente segundo Nietzsche e também segundo Marx o simples fato de um excedente de força de trabalho que resta depois que se satisfazem os requisitos para a preservação da vida individual e da sobrevivência da espécie constitui a conditioperquam de toda cultura O tão falado superhomem é homem à medida que é capaz de transcender de superar a si mesmo Mas essa superação não devemos esquecer é um exercício meramente espiritual recriar todo o foi assim em um assim eu quis que fosse somente a isto eu chamaria de redenção42 Pois O homem busca um mundo que não seja auto contraditório nem enganador que não mude um mundo verdadeiro O homem assim como ele é quando é honesto é um niilista isto é um homem que julga o mundo como ele é e como não deveria ser um homem que julga e o mundo como deveria ser e como não existe Para superar o niilismo é preciso a força de reversão dos valores e de exaltação do mundo aparente como o único mundo e dizer que esse valores são bons43 O necessário claramente não é mudar o mundo ou os homens mas sim o modo que estes têm de avaliálo seu modo em outras palavras de pensar e refletir sobre ee Nas palavras de Nietzsche o que deve ser superado são os filósofos aqueles cuja vida é um experimento de cognição44 devese ensinálos a lidar com as coisas Se Nietzsche tivesse desenvolvido esses pensamentos em uma filosofia sistemática teria criado uma espécie de doutrina epitetiana amplamente enriquecida ensinando mais uma vez a arte de viver a própria vida cujo truque psicológico poderoso consiste em querer que aconteça o que de qualquer modo acontece45 Mas o fato é que Nietzsche que conhecia e apreciava muito Epiteto não parou na descoberta da onipotência espiritual da Vontade Engajouse em uma construção do mundo dado que fizesse sentido que fosse uma morada adequada para uma criatura cuja força da vontade é grande o suficiente para abrir mão do significado das coisas que consegue resistir vivendo em um mundo sem sentido46 Eterno Retomo é o termo para esse pensamento final e redentor à medida que proclama a Inocência de todo Devir die Unschulddes Werdens e com isso sua inerente falta de metas e de propósitos sua liberdade da culpa e da responsabilidade A Inocência do Devir e o Eterno Retomo não são retirados de uma faculdade do espírito têm raiz no fato indiscutível de que nós somos realmente lançados no mundo Eleidegger de que ninguém nos perguntou se queríamos estar aqui ou se queríamos ser como somos Pois pelo que sabemos ou podemos algum dia saber ninguém é absolutamente responsável pelo fato de o homem estar aí por ele ser dessa ou daquela maneira ou por estar nestas circunstâncias e neste ambiente Logo o insight básico sobre a essência do Ser é que absolutamente não há fatos morais um insight que Nietzsche como ele mesmo disse foi o primeiro a formular Suas conseqüências são enormes não só porque o Cristianismo com seu conceito de uma ordem moral do mundo corrompe a inocência do devir por meio do castigo e da culpa e portanto pode ser visto como uma metafísica do carrasco mas também porque com a eliminação do propósito e da intenção de alguém que possa ser responsabilizado a própria causalidade é eliminada nada pode ser recuperado como causa uma vez que a causa prima é eliminada47 Com a eliminação da causa e do efeito não faz mais sentido a estrutura linear do Tempo cujo passado é sempre entendido como causa do presente e cujo presente é o tempo verbal da intenção e da preparação dos projetos para o futuro e cujo futuro é o resultado de ambos Além disso esse constructo temporal desintegrase sob o peso do insight não menos factual de que Tudo passa que o futuro traz apenas aquilo que terá sido e portanto que tudo o que é merece passar48 Assim como cada euquero em sua identificação com a parte que comanda no doisemum antecipa triunfalmente um euposso também a expectativa a disposição com a qual a Vontade afeta a alma contém em si a melancolia de um eisto tambémterásido a previsão do passado do futuro que reafirma o Passado como a forma verbal dominante do Tempo A única possibilidade de se redimir deste Passado devorador é o pensamento de que tudo o que passa retoma isto é um constructo cíclico do tempo que faz com que o Ser oscile dentro de si mesmo E a própria vida não é construída assim um dia não se segue ao outro estação após estação repetindose em uma rotina eterna Essa visão de mundo não é muito mais verdadeira para a realidade como a conhecemos do que a visão de mundo dos filósofos Se o movimento do mundo tivesse como meta um estado final esse estado teria sido alcançado O fato único fundamental entretanto é que ele não tem como meta um estado final e toda filosofia e toda hipótese científica que precisa de tal estado final é refutada por esse fato fundamental Busco uma concepção de mundo que leve esse fato em conta O Devir tem que ser explicado sem que se recorra a intenções finais o Devir tem que aparecer justificado a cada momento ou aparecer como incapaz de ser avaliado o que dá no mesmo o presente não deve absolutamente ser justificado por referência ao futuro e nem o passado com referência ao presente Nietzsche resume então 10 Devir não ambiciona um estado final não flui para ser 2 O Devir não é meramente um estado aparente talvez o mundo dos seres seja uma mera aparência 3 O Devir tem valor igual a todo momento em outras palavras não tem absolutamente valor algum pois falta qualquer coisa com relação à qual se possa medilo O valor total do mundo não pode ser medido1 Na confusão de aforismos observações e experimentos de pensamento que constituem a coletânea póstuma intitulada Vontade de potência a importância desta última passagem que citei um tanto extensamente é difícil de ser definida A julgar por sua evidência interna tendo a pensála como a palavra final de Nietzsche sobre o assunto e essa última palavra significa claramente um repúdio à Vontade e ao ego volitivo cujas experiências internas levaram os homens pensantes ao engano de supor que há algo como causa e efeito intenção e meta na realidade O superhomem é aquele que supera essas falácias aquele cujos insights são fortes o bastante para resistir às urgências da Vontade ou para alterar o seu rumo redimila de todas as oscilações acalmála levandoa àquela imobilidade em que desviar o olhar é a única negação50 porque nada resta senão almejar ser aquele que diz sim bendizer tudo o que é por ser bendizer e dizer Amém51 15 O querernãoquerer de Heidegger Nem a palavra vontade nem a palavra pensamento aparecem no trabalho inicial de Heidegger antes da tão falada reviravolta Kehre ou mudança radical que se deu em meados dos anos trinta e o nome de Nietzsche nunca é mencionado em Ser e Tempo52 Portanto a posição de Heidegger sobre a faculdade da Vontade que culmina com sua insistência passional em querer não querer que é claro nada tem a ver com a oscilação da Vontade entre velle e nolle querer e nãoquerer surge diretamente de sua investigação extremamente cuidadosa da obra de Nietzsche a que ele volta depois de 1940 repetidas vezes Ainda assim os dois volumes do seu Nietzsche que foram publicados em 1961 são em certos aspectos os mais expressivos contém conjuntos de conferências dadas em cursos entre os anos 1936 e 1940 isto é exatamente nos anos em que a reviravolta realmente ocorreu e que ainda não tinha portanto sido submetida às interpretações do próprio Heidegger Se ao ler esses dois volumes ignoramos as reinterpretações posteriores de Heidegger que se deram depois de Nietzsche podemos ficar tentados a datar a reviravolta como um evento autobiográfico concreto precisamente entre o volume I e o volume II pois a bem da verdade o primeiro volume explica Nietzsche aceitandoo enquanto c segundo é escrito em um tom suavizado mas inconfundivelmente polêmico Essa mudança importante de disposição foi observada ao que eu saiba somente por J L Metha em seu excelente livro sobre A filosofia de Martin Heidegger52 e de maneira menos decisiva por Walter Schulz A relevância dessa datação parece evidente é contra a vontadedepotência que a reviravolta se dirige original e primordialmente No entender de Heidegger a vontade de governar e de dominar é uma espécie de pecado original do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com seu breve passado no movimento nazista Quando mais tarde anunciou publicamente pela primeira vez em Sobre o humanismo í 94954 que tinha havido uma reviravolta na verdade em um sentido mais amplo ele estivera remodelando durante anos seus próprios pontos de vista sobre toda a história dos gregos até o presente concentrandose especialmente não na Vontade mas na relação entre Ser e Homem Originalmente durante aqueles anos a reviravolta tinha sido um voltarse contra a autoafirmação do homem como proclamou no famoso discurso pronunciado quando se tomou reitor da Universidade de Freiburg em 193355 encarnada simbolicamente em Prometeu o primeiro filósofo uma figura que nunca mais é mencionada em sua obra Agora voltavase contra o suposto subjetivismo de Ser e Tempo e o interesse central do livro na existência do homem em seu modo de ser Grosso modo se Heidegger sempre estivera interessado na questão do significado do Ser seu objetivo inicial provisório tinha sido analisar o ser do homem como a única entidade que pode fazer a pergunta porque ela toca o seu próprio ser logo quando o homem levanta a questão O que é o Ser ele é lançado de volta a si mesmo Mas quando lançado de volta a si mesmo ele levanta a questão Quem é o homem é o Ser ao contrário que avança para o primeiro plano é o Ser agora emergindo que convida o homem a pensar Heidegger foi forçado a abandonar sua abordagem original de Ser e Tempo em vez de procurar abordar o Ser através da abertura e da transcendência inerentes ao homem ele passa a tentar definir o homem em termos de Ser56 E a primeira exigência que o Ser faz ao homem é que pense bem sobre a diferença ontológica isto é a diferença entre o puro fato de ser zsness dos seres e o ser desse fato de ser zsMcyy ele mesmo o Ser do Ser Como o próprio Heidegger enuncia em Sobre o humanismo para falar simplesmente pensamento é pensamento do Ser onde o do tem duplo sentido O pensamento é do Ser à medida que dandose através do Ser pertence ao Ser Ao mesmo tempo é pensamento do Ser à medida que pertencendo ao Ser escuta o Ser57 A escuta do homem transforma o chamado silencioso do Ser em fala e a linguagem é a linguagem do Ser assim como as nuvens são as nuvens do céu58 A reviravolta neste sentido tem duas conseqüências importantes que não têm quase nada a ver com o repúdio pela Vontade Primeiro o Pensamento não é mais subjetivo Sem dúvida sem ser pensado pelo homem o Ser nunca se manifestaria ele depende do homem que lhe oferece uma morada a Linguagem é a morada do Ser Mas o que o homem pensa não surge de sua própria espontaneidade ou criatividade é a resposta obediente ao comando do Ser Segundo os entes em que o mundo das aparências se dá para o homem distraem o homem do Ser que se esconde por trás deles assim como as árvores escondem a floresta que no entanto vista de fora é constituída por elas Em outras palavras o Esquecimento do Ser Seinsvergessenheit pertence à própria natureza da relação entre Homem e Ser Heidegger agora não se satisfaz mais em eliminar o ego volitivo em favor do ego pensante sustentando por exemplo como faz ainda em Nietzsche que a insistência da Vontade no futuro força o homem ao esquecimento do passado que rouba do pensamento a sua atividade mais importante que é andenken lembrança A Vontade nunca possuiu o começo ela o deixou e o abandonou essencialmente através do esquecimento59 Agora ele dessubjetiviza o pensamento em si roubao de seu Sujeito o homem como ser pensante e transformao em uma função do Ser no qual reside toda eficácia fluindo daí em direção ao ente das Seiende determinando assim o curso real do mundo O Pensamento por sua vez deixase chamar pelo Ser que é o significado real do que acontece através dos entes para dar expressão à verdade do Ser60 Esta reinterpretação da reviravolta mais do que a reviravolta em si determina o desenvolvimento inteiro da filosofia final de Heidegger Contida de forma resumida na Brief über den Humanismus que interpreta Ser e Tempo como uma antecipação necessária e uma preparação para a reviravolta ela centrase na noção de que pensar a saber dizer a palavra não dita do Ser é o autêntico fazer Turi do homem é aí que a História do Ser Seinsgeschichte que transcende todos os atos meramente humanos e é superior a eles se passa na verdade Este pensar é recordação posto que ouve a voz do Ser nas expressões dos grandes filósofos do passado mas o passado vem a ele da direção oposta de modo que a descida Absteig ao passado coincida com a expectativa paciente e pensativa pela chegada do futuro o avenant1 Começamos com a reviravolta original Mesmo no primeiro volume de Nietzsche em que Heidegger segue cuidadosamente as caracterizações descritivas da Vontade de Nietzsche ele utiliza o que mais tarde aparece como diferença ontológica a distinção entre o Ser do Ser e o fato de ser isziess Seiendheit dos entes Segundo essa interpretação a vontadede potência significa o fato de ser Aness o modo principal em que tudo o que é realmente é Nesse aspecto a Vontade é entendida como uma simples função do processo vital o mundo vem a existir através da continuação do processo vital62 ao passo que o Eterno Retomo é visto como o termo de Nietzsche para o Ser do Ser através do qual a natureza transitória do tempo é eliminada e o Devir o meio para a finalidade da vontadede potência recebe a marca do Ser O Eterno Retorno é o pensamento mais afirmativo porque é a negação da negação Nessa perspectiva a vontadede potência não é mais do que uma necessidade biológica que mantém a roda girando e é transcendida por uma Vontade que vai além do mero instinto de vida ao dizer Sim para a Vida Na visão de Nietzsche como vimos O Devir não tem objetivo não termina no Ser O Devir tem valor igual a cada momento em outras palavras não tem valor algum pois não há nada a partir de cujo valor ele pudesse ser medido e a respeito de que a palavra valor fizesse qualquer sentido63 Na visão de Heidegger a verdadeira contradição em Nietzsche não se deve à aparente oposição entre a vontadedepotência que tendo um objetivo final pressupõe um conceito retilíneo de tempo e o Eterno Retomo com seu conceito cíclico de tempo Reside ao invés disso na transvaloração de valores nietzscheana que segundo o próprio Nietzsche faria sentido somente no esquema da vontadedepotência mas que ele via no entanto como a conseqüência final do pensamento do Eterno Retomo Em outras palavras foi em última análise a vontadedepotência em si uma postuladora de valores que determinou a filosofia da Vontade de Nietzsche A vontadedepotência avalia ao final um Devir eternamente recorrente como a única saída para a falta de sentido da vida e do mundo e essa transposição não só é um retomo à subjetividade cuja marca distintiva é o pensamento valorativo64 mas também sofre da mesma falta de radicalismo característica do platonismo invertido de Nietzsche que colocando as coisas de cabeça para baixo ou de baixo para cima mantém intacto o quadro categorial em que essas inversões podem funcionar A análise estritamente fenomenológica da Vontade feita por Heidegger no volume I de Nietzsche segue cuidadosamente suas análises anteriores do eu em Ser e tempo só que a Vontade toma o lugar atribuído ao Cuidado no trabalho anterior Lemos A autoobservação e o autoexame nunca trazem à luz o eu ou mostram como nós mesmos somos Mas ao querer e também ao nãoquerer fazemos exatamente isso aparecemos em uma luz que é em si iluminada por um ato de vontade Querer sempre significa trazerse a si mesmo Querendo encontramonos com quem somos autenticamente65 Logo querer é essencialmente querer o próprio eu mas não um eu dado que é aquilo que é mas o eu que quer tomarse aquilo que é A Vontade de fugir do próprio eu é na verdade um ato de não querer66 Veremos mais adiante que esse retorno ao conceito de eu de SereTempo não deixa de ter importância para a reviravolta ou mudança de disposição manifesta no segundo volume No segundo volume há uma mudança definitiva de ênfase do pensamento do Eterno Retomo para uma interpretação da Vontade quase que exclusi vamente como vontadedepotência no sentido específico de uma vontade de governar e dominar em lugar de uma expressão do instinto de vida A noção do volume I de que todo ato de vontade exatamente porque é um comando gera uma contravontade Widerwillen isto é a idéia de um obstáculo necessário em cada ato de vontade que deve primeiro superar um nãoquerer é agora generalizada para uma característica inerente a todo ato de fazer Para tim carpinteiro por exemplo a madeira consiste no obstáculo contra o qual ele trabalha quando faz com que ela se tome uma mesa67 Isso também é generalizado todo objeto exatamente porque é um objeto e não simplesmente uma coisa independente da avaliação do cálculo e do fazer humanos está aí para ser superado por um sujeito A vontadedepotência é a culminância da subjetivização da Era Moderna todas as faculdades humanas estão sob o comando da Vontade A Vontade é querer ser o senhor É fundamental e exclusivamente comando No comando aquele que dá o comando também o obedece Assim o eu que comanda é seu próprio superior68 Aqui o conceito da Vontade perde de fato as características biológicas que têm papel tão importante na compreensão de Nietzsche da Vontade como simples sintoma do instinto de vida Está na natureza do poder e não mais na natureza da superabundância e do excesso da vida espalharse c expandirse O poder existe somente à medida que ele mesmo aumente e à medida que a vontadedepotência comande este aumento A Vontade instiga a si mesma dando ordens não é a vida mas a vontadedepotência a essência do poder Essa essência e nunca uma quantidade limitada de poder continua sendo a meta da Vontade uma vez que a Vontade pode existir somente na relação com o poder Eis por que a Vontade necessariamente precisa dessa meta É também a raão pela qual um terror do vazio permeia essencialmente toda vontade Do ponto de vista da Vontade o nada é a extinção da Vontade no deixar de querer Logo citando Nietzsche nossa vontade prefere querer o nada a não querer Querer o nada aqui significa querer a negação a destruição a devastação grifos nossos69 A palavra final de Heidegger sobre essa faculdade diz respeito à destrutividade da Vontade assim como a palavra final de Nietzsche dizia respeito à sua criatividade e superabundância Tal destrutividade manifestase na obsessão da Vontade pelo futuro que leva necessariamente o homem ao esquecimento Para que possa querer o futuro no sentido de ser senhor do futuro o homem deve esquecer e finalmente destruir o passado Da descoberta de Nietzsche de que a Vontade não pode querer retroativamente seguese não só a frustração e o ressentimento mas também a vontade positiva e ativa de aniquilar o que foi E já que tudo o que é real veio a ser isto é incorpora um passado essa destrutividade relacionase em última instância a tudo o que é Heidegger sintetiza isso em What is Called Thinking Frente àquilo que foi a vontade não tem mais nada a dizer o foi resiste ao querer da Vontade o foi reage e é contrário à Vontade Mas por meio desta reação o contrário cria raízes dentro da própria vontade A vontade padece disso ou seja a Vontade padece de si mesma do que passou do passado Mas o que passou originase do passar Assim a Vontade quer ela mesma o passar A reação da Vontade contra todo foise mostrase como a vontade de fazer com que tudo passe de querer portanto que tudo mereça passar A reação que surge na Vontade é então a vontade contra tudo o que passa tudo isto é tudo o que vem a ser a partir de um vira ser e que perdura grifos nossos70 Nessa compreensão radical de Nietzsche a Vontade é essencialmente destrutiva e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe Seguindo essa interpretação a própria natureza da tecnologia é a vontade de querer ou seja de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo cujo fim natural só pode ser a destruição total A alternativa a esse jugo é deixarser e o deixarser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser A disposição que permeia o deixarser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer mais tarde em sua reinterpretação da reviravolta Heidegger a chama de Gelassenheit uma serenidade que corresponde ao deixar ser e que nos prepara para um pensamento que não é uma vontade71 Esse pensamento está além da distinção entre atividade e passividade porque está além do domínio da Vontade isto é além da categoria da causalidade que Heidegger concordando com Nietzsche deriva da experiência que o ego volitivo tem de produzir efeitos e portanto de uma ilusão produzida pela consciência O insight segundo o qual pensar e querer não são somente duas faculdades do ser enigmático chamado homem mas são também opostos ocorreu tanto a Nietzsche quanto a Heidegger E a versão de ambos do conflito fatal que se processa quando o doisemum da consciência realizado no diálogo sem som de mim comigo mesmo transforma sua harmonia e amizade originais em um conflito contínuo entre vontade e contravontade entre comando e resistência Mas encontramos testemunho deste conflito por toda a história desta faculdade A diferença entre a posição de Heidegger e a de seus predecessores reside no seguinte o espírito do homem chamado pelo Ser para transpor para a linguagem a verdade do Ser está sujeito a uma História do Ser Seinsgeschichte e essa História determina se os homens respondem ao Ser em termos de querer ou em termos de pensar É a História do Ser funcionando por trás dos homens de ação que como o Espírito do Mundo de Hegel determina os destinos humanos e revelase ao ego pensante caso este último consiga superar a vontade e realizar o deixarser À primeira vista isso pode parecer mais uma versão talvez um pouco mais sofisticada da astúcia da razão de Hegel da astúcia da natureza de Kant da mão invisível de Adam Smith ou da divina Providência todas elas forças invisíveis que dirigem os altos e baixos dos assuntos humanos para um objetivo predeterminado a liberdade em Hegel a paz eterna em Kant a harmonia entre os interesses contraditórios de uma economia de mercado em Adam Smith a salvação final na teologia cristã A noção em si a saber a de que as ações dos homens são inexplicáveis em si mesmas e que só podem ser entendidas como obra de algum propósito oculto ou agente oculto é muito mais velha Já Platão pôde imaginar que cada um de nós criaturas vivas é um fantoche feito pelos deuses talvez como um brinquedo talvez com algum propósito mais sério e que aquilo que tomamos como causas a busca do prazer e o afastamento da dor não são mais do que as cordas pelas quais somos postos para funcionar72 Nem sequer precisamos de uma demonstração das influências históricas para compreendermos a persistência obstinada da idéia desde a ficção etérea de Platão até o consrMcíoespiritual de Hegelque resultou de um repensar sem precedentes sobre a história do mundo que eliminava deliberadamente do registro factual tudo o que é meramente factual por ser acidental ou sem importância A simples verdade é que nenhum homem pode agir sozinho embora seus motivos para agir possam ser certos projetos desejos paixões e objetivos pessoais Tampouco podemos jamais realizar qualquer coisa completamente conforme o planejado mesmo quando como archon conseguimos liderar e iniciar e esperamos que nossos seguidores e ajudantes executem aquilo que começamos e isso se combina com a nossa consciência de sermos capazes de causar um efeito gerando a noção de que o resultado real deve ser atribuído a alguma força estranha sobrenatural que sem perturbarse com pluralidade humana fornece o resultado final Essa falácia assemelhase à que Nietzsche detectou na idéia de um progresso necessário da Humanidade Repetindo A Humanidade não avança nem sequer existe Mas já que o tempo marcha para frente gostaríamos de acreditar que tudo o que está nele marcha também para frente que o desenvolvimento é tal que se move para frente73 Certamente a Seinsgeschichte de Heidegger não pode deixar de nos lembrar o Espírito do Mundo de Hegel A diferença entretanto é decisiva Quando Hegel viu o Espírito do Mundo a cavalo em Napoleão em Jena sabia que Napoleão não tinha ele próprio consciência de ser a encarnação do Espírito sabia que ele estava agindo segundo aquela mistura humana comum de objetivos de curto prazo desejos e paixões para Heidegger contudo é o próprio Ser que sempre mudando se manifesta no pensamento do agente de modo que agir e pensar coincidem Se agir significa dar auxílio à essência do Ser então pensar é na verdade agir Isto é prepararse construir uma morada para a essência do Ser em meio aos entes pelos quais o Ser se transpõe junto com sua essência à fala Sem a fala o simples fazer ressentese da falta da dimensão em que pode efetivarse e seguir instruções A fala entretanto nunca é uma simples expressão do pensamento do sentimento ou da vontade A fala é a dimensão original na qual o ser humano é capaz de responder ao chamado do Ser e respondendo pertencer a ele O pensamento é a realização dessa correspondência original74 Em termos de uma simples reversão de pontos de vista poderiamos ficar tentados a ver na posição de Heidegger a justificativa da reversão aforística de Descartes feita por Valery Lhomme pense done je suis dit Tunivers O homem pensa logo eu existo diz o universo75 A interpretação é de fato tentadora já que Heidegger certamente concordaria com a frase de Valéry Les évènements ne sont que l écume des choses Os acontecimentos não são mais do que a espuma das coisas Não concordaria entretanto com o pressuposto de Valéry de que o que realmente é a realidade subjacente da qual a superfície é simples espuma é a realidade estável de um Ser substancial e em última análise imutável Tampouco teria concordado seja antes seja depois da reviravolta que o novo é por definição a parte perecível das coisas Le nouveau est par definition la partie périssable des choses71 Desde que reinterpreta sua reviravolta Heidegger insiste na continuidade de seu pensamento no sentido de que Ser e Tempo era uma preparação necessária que já continha de um modo provisório a principal direção de seu trabalho final E isso é em grande parte verdade embora possa vir a desradicalizar a reviravolta posterior e as conseqüências que nela estão obviamente implícitas para o futuro da filosofia Comecemos com as conseqüências mais impressionantes que se encontram no próprio trabalho posterior a saber primeiro a noção de que o pensamento solitário em si constitui a única ação relevante no registro factual da história e segundo a idéia de que pensar é o mesmo que agradecer e não só por razões etimológicas Uma vez feito isto tentaremos seguir o desenvolvimento de certos termoschave em Ser e Tempo e ver o que acontece com eles Os três termoschave que proponho são Cuidado Morte e Eu O Cuidado em Ser e Tempo o modo fundamental do interesse existencial do homem por seu próprio ser não desaparece simplesmente em favor da Vontade com a qual obviamente tem em comum algumas características ele altera radicalmente a sua própria função Quase perde sua relação consigo mesmo seu interesse pelo próprio ser do homem e junto com isso a disposição de ansiedade produzida quando o mundo no qual o homem é lançado revelase como nada para um ser que sabe de sua própria mortalidade das nackte Dass im Nichts der Welt aquilo nu no nada do mundo77 A ênfase alterase de Sorge como preocupação ou interesse para consigo mesmo para Sorge como tomar conta e isso não de si mesmo mas do Ser O homem que era o zelador Platzhalter do Nada e que portanto estava aberto ao desvelamento do Ser transformase agora no guardião Hüter ou pastor Hirte do Ser e sua fala oferece ao Ser sua morada A Morte por outro lado que originalmente era real para o homem somente como a possibilidade mais extrema se fosse realizada por exemplo no suicídio o homem obviamente perdería a possibilidade que tem de existir em face da morte78 transformase agora na redoma que reúne protege e salva a essência dos mortais que são mortais não porque sua vida tenha um fim mas porque estar morto pertence ainda ao seu ser mais íntimo79 Essas descrições que soam estranhas referemse a experiências bem conhecidas atestadas por exemplo pela antiga máxima de mortuis nil nisi bonum Não é a dignidade da morte enquanto tal que nos faz temêla e respeitála mas sim a curiosa mudança de vida para morte que acomete a personalidade dos mortos Na lembrança o modo como os mortais vivos pensam sobre seus mortos é como se todas as qualidades não essenciais perecessem com o desaparecimento do corpo em que estavam encarnadas Os mortos são postos na redoma da lembrança como relíquias preciosas deles mesmos Finalmente há o conceito de Eu e é este o conceito cuja mudança na reviravolta é a mais inesperada e também a que tem maiores conseqüências Em Ser e Tempo o termo Eu é a resposta para a questão Quem é o homem em oposição à questão O que ele é o Eu é o termo para a existência do homem em oposição a qualquer qualidade que ele possa ter Essa existência o autêntico ser um Eu é extraída polemicamente do Eles Mu dem Ausdruck Selbst antworten wirauf die Frage nach dem Wer desDaseins Das eigentliche Selbstein bestimmtsich ais eine existenzielle Modifikation des Man 80 Modificando o Eles da vida cotidiana a existência humana produz um solus ipse e Heidegger fala nesse contexto de um solipsismo existencial isto é da realização do principium individuationis uma realização que em outros filósofos encontramos como uma das funções essenciais da Vontade Heidegger atribuíraa originalmente ao Cuidado seu termo inicial para o órgão do homem para o futuro81 Para sublinhar a semelhança entre Cuidado antes da reviravolta e Vontade em um cenário moderno voltamosnos para Bergson que certamente não influenciado por pensadores anteriores mas seguindo a evidência imediata da consciência propusera apenas algumas décadas antes de Heidegger a coexistência de dois eus um social o Eles de Heidegger e o outro o fundamental o autêntico de Heidegger A função da vontade é recuperar esse eu fundamental das atribulações da vida social em geral e da linguagem em particular isto é daquela linguagem falada habitualmente em que cada palavra tem um significado social82 Tratase de uma linguagem repleta de clichês necessária para a comunicação com os outros em um mundo externo bem distinto de nós mesmos que é a propriedade comum a todos os seres conscientes A vida em comum com os outros criou seu próprio tipo de fala que leva à formação de um segundo eu que obscurece o primeiro A tarefa da filosofia é levar de volta esse eu social para o eu real e concreto cuja atividade não pode ser comparada à de qualquer outra força porque essa força é a pura espontaneidade de que cada um de nós tem consciência imediata e que é obtida somente pela observação imediata que se faz de si mesmo83 E Bergson bem na linha de Nietzsche e por assim dizer também em sintonia com Heidegger enxerga a prova dessa espontaneidade na criatividade artística A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial seja na forma de causas externas ou de motivos internos Quando um músico compõe uma sinfonia sua obra era possível antes de ser real84 Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve no volume I de Nietzsche isto é antes da reviravolta Querer sempre significa trazerse a si mesmo Querendo encontramo nos conosco assim como somos autenticamente85 Ainda assim esta é toda a afinidade que se pode encontrar entre Heidegger e seus predecessores imediatos Nunca em Ser e Tempo exceto por uma observação lateral sobre a fala poética como des velamen to possível da existência86 a criatividade artística é mencionada No volume I de Nietzsche a tensão e a relação íntima entre poesia e filosofia entre o poeta e o filósofo é observada em duas ocasiões mas nunca no sentido nietzscheano ou bergsoniano de criatividade pura87 Em Ser e Tempo ao contrário o Eu tomase manifesto na voz da consciência que chama o homem para retomar de seu próprio enredamento cotidiano no man em alemão um elemento que denota impessoalidade as pessoas ou eles retomo que a consciência em seu chamado desvela como culpa humana uma palavra Schuld que em alemão quer dizer tanto ser culpado ser responsável por algum ato quanto ter dívidas no sentido de dever algo a alguém88 O ponto principal na idéia de culpa de Heidegger é que a existência humana é culpada à medida que existe factualmente não precisa tomar se culpada de algo por omissões ou práticas apenas é chamada para realizar autenticamente a culpa que de qualquer forma ela é89 Aparentemente nunca ocorreu a Heidegger que fazendo com que todos os homens que escutam o chamado da consciência sejam igualmente culpados ele estava na verdade proclamando a inocência universal onde todos são culpados ninguém é culpado Essa culpa existencial dada pela existência humana se estabelece de duas maneiras Inspirado na idéia de Goethe de que aquele que age sempre se toma culpado Heidegger mostra que toda ação ao realizar uma única possibilidade mata de um só golpe todas as outras dentre as quais teve que fazer a escolha Todo compromisso acarreta algumas desistências Mais importante do que isso entretanto é que o conceito de ser lançado no mundo já implica que a existência humana deve sua existência a algo que não é ela mesma está endividada em virtude de sua própria existência o Dasein a existência humana naquilo que é foi lançado está aí mas aí não foi trazido por si mesmo90 A consciência exige que o homem aceite essa dívida e aceitação significa que o Eu consegue uma espécie de ação handelri entendida polemicamente como o oposto das ações audíveis e visíveis da vida pública a simples espuma daquilo que verdadeiramente é Esse agir é silencioso é um deixar o próprio eu agir em sua dívida e esta ação completamente interior na qual o homem se abre para a autêntica realidade de ser lançado91 pode existir somente na atividade do pensamento Essa é provavelmente a razão pela qual Heidegger por toda sua obra evitou propositalmente92 lidar com a ação O que mais surpreende em sua interpretação da consciência é a veemente denúncia da interpretação comum da consciência que sempre concebeu como uma espécie de solilóquio o diálogo sem som de mim comigo mesmo Tal diálogo sustenta Heidegger só pode ser explicado como uma tentativa inautêntica de autojustificação contra as alegações do Eles E isto é ainda mais impressionante porque Heidegger em um contexto diferente e é verdade só de maneira marginal fala da voz de um amigo que todo Dasein existência humana traz consigo93 Por mais estranha e em última análise inexplicável que a análise da consciência em Heidegger possa se mostrar pela evidência fenomenológica a ligação com os simples fatos da existência humana implícitos no conceito de uma dívida primordial certamente contêm a primeira pista para a identificação que posteriormente ele faz entre pensar e agradecer O que o chamado da consciência realiza na verdade é a recuperação do eu individualizado yereinzeltes de seu envolvimento nos acontecimentos que determinam as atividades cotidianas do homem e no curso do registro histórico 1écume des choses Intimado novamente o eu dirigese agora para um pensamento que expressa gratidão por aquilo nu ter sido dado Confrontado com o Ser a atitude do homem deve ser a do agradecimento E cumpre que isso seja visto como uma variante do thaumazein de Platão o princípio iniciador da filosofia Lidamos com aquele espanto admirativo e encontrálo em um contexto moderno não impressiona nem surpreende basta pensar na exaltação daqueles que dizem Sim de Nietzsche ou desviar a atenção das especulações acadêmicas para alguns dos grandes poetas deste século Eles mostram pelo menos como pode ser sugestiva uma afirmação como esta na solução para a aparente falta de sentido em um mundo completamente secularizado Aqui estão duas linhas do russo Osip Mandelstam escritas em 1918 We will remember in Lethes cold waters The earth for us has been worth a thousand heavens1 Estes versos podem ser facilmente comparados com algumas linhas de Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duino escritas mais ou menos na mesma época cito algumas delas Erde du liebe ich will Oh glaub es bediirfte Nicht deiner FrUhlinge mehr mich dir zu gewinnem Einer ach ein einziger ist schon dem Blute zu viel Namenlos bin ich zu dir entschlossen von weit her hnmer warstdu im recht 2 E finalmente como um lembrete cito novamente o que WH Auden escreveu mais ou menos vinte anos mais tarde That singular command I do not understand Bless what there is for being Which has to be obeyed for What else am I made for Agreeing or disagreeing Talvez esses exemplos de testemunho não acadêmico para os dilemas da última fase da Era Moderna possam explicar o grande apelo da obra de Heidegger para uma elite da comunidade intelectual a despeito do quase unânime antagonismo que despertou nas universidades desde o aparecimento de Ser e Tempo Mas se isto aplicase à coincidência entre pensar e agradecer dificilmente aplicase à fusão entre pensar e agir Em Heidegger ela não é só a eliminação da separação sujeitoobjeto com a finalidade de dessubjeti vizar o Ego Cartesiano mas é a fusão real das mudanças na História do Ser Seinsgeschichte com a atividade de pensamento dos pensadores A história do Ser inspira e guia secretamente o que se passa na superfície enquanto os pensadores escondidos e protegidos por Eles respondem ao Ser e o realizam Aqui o conceito personificado cuja existência fantasmagórica produziu o último grande avivamento da filosofia no Idealismo Alemão tomase completamente encarnado há um Alguém que transforma em ação o significado oculto do Ser originando no curso desastroso dos eventos uma contracorrente salutar Este Alguém o pensador que se habituou a deixar de querer passando a deixarser é na verdade o autêntico Eu de Ser e Tempo que agora ouve o chamado do Ser em lugar do chamado da Consciência Diferente do Eu o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu contudo ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadirse a agir factualmente sich in das faktische Handeln bringen94 Nesse contexto a reviravolta significa que o Eu não atua mais em si mesmo o que se abandonou foi o Insichhandelnlassen des eigensten Selbst95 mas obediente ao Ser desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à espuma dos seres as meras aparências cuja corrente é conduzida pela vontade de potência O Eles reaparece aqui mas sua principal característica não é mais o palavrório Geredef é a destrutividade inerente ao querer O que origina essa mudança é uma radicalização decisiva tanto da antiga tensão entre pensar e querer a ser resolvida pelo querernãoquerer quanto do conceito personificado que apareceu em sua forma mais articulada no Espírito do Mundo de Hegel aquele Ninguém fantasmagórico que confere significado àquilo que é factualmente ainda que de um modo sem sentido e contingente Em Heidegger este Ninguém que supostamente atua por trás dos homens de ação encontra agora uma encarnação na existência do pensador que age sem nada fazer sem dúvida uma pessoa que pode até ser identificada como Pensadorcoisa que entretanto não significa seu retomo ao mundo das aparências Ele continua sendo o solus ipse no solipsismo existencial só que agora o destino do mundo a História do Ser passa a depender dele Até agora estivemos levando em conta os insistentes pedidos do próprio Heidegger para que se preste a devida atenção ao desenvolvimento contínuo de seu pensamento desde Ser e Tempo a despeito da reviravolta que se deu em meados dos anos trinta Baseamonos também em suas próprias interpretações da reviravolta durante o final dos anos trinta e o início dos quarentainterpretações corroboradas de forma precisa e coerente por suas inúmeras publicações dos anos cinqüenta e sessenta Mas há outra interrupção talvez até mais radical em sua vida e em seu pensamento a que ninguém inclusive Heidegger deu publicamente atenção Essa interrupção coincidiu com a derrota catastrófica da Alemanha nazista e com as sérias dificuldades do próprio Heidegger com a comunidade acadêmica e com as autoridades da ocupação logo depois da guerra Por um período de aproximadamente cinco anos Heidegger foi silenciado de maneira tão efetiva que dentre seus trabalhos publicados só existem dois ensaios maiores Sobre o humanismo escrito em 1946 e publicado na Alemanha e na França em 1947 e A sentença de Anaximandro também escrito em 1946 e publicado como o último ensaio de Holzwege em 1950 Desses dois Sobre o humanismo contém uma síntese eloqüente e um enorme esclarecimento sobre a alteração interpretativa que ele dera à reviravolta original mas A Sentença de Anaximandro tem um caráter diferente apresenta uma visão totalmente nova e inesperada sobre toda a colocação do problema do Ser As principais teses desse ensaio quç agora tentarei descrever em linhas gerais nunca foram continuadas ou plenamente explicadas no trabalho posterior de Heidegger De resto ele menciona em uma nota à publicação no Holzwege que o ei lio teria sido tirado de um Tratado Abhandlung escrito em 1946 e infelizmente jamais publicado A mim parece óbvio que essa nova visão tão isolada dr restante de seu pensamento há de ter emergido de mais uma mudança de disposição não menos importante do que a mudança que ocorreu entre o primeiro e o segundo volume sobre Nietzschea mudança da VontadedePotência como Vontadedequerer para a nova Gelassenheit a serenidade do deixar ser e o paradoxal querernãoquerer A disposição alterada reflete a derrota da Alemanha o pontozero como a chamou Emst Jünger que por alguns anos pareceu prometer um novo começo Na versão de Heidegger Estaremos nas vésperas da transformação mais monstruosa por que já passou nosso planeta Ou estaremos diante de uma noite que anuncia uma nova aurora Somos nós os retardatários e ao mesmo tempo os que precedem a aurora de uma era de todo diferente que já deixou para trás nossas representações historiográficas da história96 Tratase da mesma disposição que Jaspers expressou em um famoso simpósio em Genebra naquele mesmo ano Vivemos como se estivéssemos a bater em portões ainda fechados O que acontece hoje irá talvez um dia fundar e estabelecer um mundo97 Essa disposição de esperança logo desapareceu na rapidez com que a Alemanha recuperouse econômica e politicamente do pontozero confrontados com a realidade da Alemanha de Adenauer nem Heidegger nem Jaspers jamais expuseram de forma sistemática o que muito em breve aparecería para eles como uma interpretação equivocada da Nova Era No caso de Heidegger contudo temos ainda o ensaio sobre Anaximandro com seus perturbadores sinais a indicar uma outra possibilidade de especulação ontológica sinais que estão semiencobertos pelas considerações filológicas altamente técnicas do texto grego que é bastante obscuro e provavelmente adulterado partindo deles arriscarei uma exegese desta sedutora variante de sua filosofia Na tradução literal e provisória de Heidegger o pequeno texto grego diz Ora daquilo de que as coisas são geradas genesis também o desaparecer phthora se engendra conforme a necessidade pois as coisas se dão justiça diken didonai e penitência tisin umas às outras por sua injustiça adikia segundo a ordem do tempo98 O tema é pois o viraser e o desaparecer de tudo o que é A medida que qualquer coisa que seja é ela se demora no presente entre uma ausência dupla sua chegada e sua partida Durante as ausências ela está oculta é desocultada somente na curta duração de sua aparição Vivendo em um mundo das aparências tudo o que conhecemos ou podemos conhecer é um movimento que deixa todo ser que emerge abandonar o ocultamento e ir em direção ao desocultamento demorando se ali por um tempo até que por sua vez abandone o desocultamento partindo e retirandose para o ocultamento99 Mesmo essa descrição nãoespeculativa estritamente fenomenológica está claramente em desacordo com o ensinamento habitual que Heidegger transmite de uma diferença ontológica segundo a qual aletheia verdade entendida como nãovelamento ou desocultamento está sempre do lado do Ser no mundo das aparências o Ser revelase somente na resposta do pensamento do homem em termos de linguagem Nas palavras de Sobre o humanismo A linguagem é a morada do Ser Die Sprache istj zumal das Haus des Seins und die Behausung des Menschenwesens Na exegese do fragmento de Anaximandro desocultamento não é verdade pertence aos seres que chegam e que partem para um Ser oculto O que dificilmente causou mas certamente facilitou essa reversão é o fato de que os gregos especialmente os présocráticos pensavam com freqüência no Ser como physis natureza cujo significado original deriva dephyein crescer isto é vir da escuridão para a luz Anaximandro diz Heidegger pensou em genesis e phthora em termos de physis como formas luminosas de ascensão e declínio101 E a physis segundo um fragmento muito citado de Heráclito aprecia ocultarse102 Embora Heidegger não mencione o fragmento de Heráclito no ensaio sobre Anaximadro suas teses principais parecem ter sido inspiradas por Heráclito em vez de Anaximandro De importância central é o conteúdo especulativo a relação na diferença ontológica é aí revertida e isso é expresso nas seguintes frases O desocultamento dos seres o brilho a eles concedido pelo Ser obscurece a luz do Ser pois ao revelarse em seres o Ser se retira Das Sein entzieht sich indent es sich in das Seiende entbirgtm A frase que grifei ganha muita ênfase no texto por ser muito repetida Sua plausibilidade imediata no original alemão baseiase inteiramente na relação lingüística cognata de verbergen esconder ocultar com bergen proteger e abrigar e entbergen desvelar Na tentativa de explicar o conteúdo especulativo da relação cognata como foi construída por Heidegger podemos resumilo da seguinte forma o ir e vir dos seres seu aparecer e desaparecer sempre começa com um desvelamento que é um entbergen a perda do abrigo bergen original que fora concedido pelo Ser o ser então se demora um pouco no brilho do desvelamento e acaba por retomar ao abrigo protetor do Ser em seu ocultamento Presumivelmente Anaximandro falava de genesis ephthora geração e declínio isto é genesis estin segundo a interpretação que gostaria de dar epthora ginetai viraser é e desaparecer vem a ser4 Em outras palavras há sem dúvida algo como um devir tudo o que conhecemos veio a ser emergiu de alguma escuridão anterior para a luz do dia e este devir fica sendo sua lei enquanto perdura sua duração é ao mesmo tempo o seu desaparecer O Devir a lei que governa os seres é agora o oposto de Ser quando ao desaparecer o devir interrompese ele se transforma de novo naquele Ser de cuja escuridão protetora e ocultadora emergiu originalmente Nesse contexto especulativo a diferença ontológica consiste na diferença entre Ser no sentido forte e duradouro e devir E através da retirada que o Ser sustenta sua verdade e a protege protegea do brilho dos seres que ofusca a luz do Ser ainda que originalmente o Ser tenha concedido este brilho Isto leva ao enunciado aparentemente paradoxal Ao prover o desocultamento dos seres o Ser estabelece seu ocultamento105 No decorrer dessa especulação a transformação na abordagem que Heidegger usualmente faz da busca do Ser die Seinsfrage e do esquecimento do Ser Seinsvergessenheit tomase evidente Não é mais a inautenticidade genuína ou outra particularidade da existência humana o que faz com que o homem esqueça o Ser em seu abandono ao man a palavra alemã para a pluralidade do Eles tampouco o faz por ficar distraído com a superabundância dos meros entes O esquecimento do Ser pertence à essência autoocultadora do Ser a história do Ser e não a história dos homens na filosofia em geral ou na metafísica em particular começa com o esquecimento do Ser já que o Ser juntamente com sua essência aquilo que o distingue dos seres guardase para si mesmo106 Através da retirada do Ser do reino dos seres esses entes cujo desocultamento foi causado por este Ser são lançados a esmo ficam a errar e este errar constitui o reino do erro o espaço em que se desdobra a história Sem a errância não havería conexão de destino a destino não haveria história grifo nosso7 Para resumir ainda estamos diante da diferença ontológica a separação categorial entre Ser e seres mas essa separação adquiriu por assim dizer uma espécie de história com um começo e um fim No começo o Ser desvelase nos seres e o desvelamento dá início a dois movimentos opostos o Ser retirase para si e os seres são lançados a esmo para constituir o reino no sentido do reino de um príncipe do erro Esse reino do erro é a esfera da história humana comum em que os destinos factuais são ligados e tomam uma forma coerente através do errar Nesse esquema não há lugar para a História do Ser Seinsgeschichte desempenhada por sob os homens de ação o Ser protegido em seu ocultamento não tem história e toda época da história mundial é época de errância Entretanto exatamente porque o contínuo de tempo fragmentase no campo histórico em diferentes eras o lançamento dos seres a esmo também se dá nas épocas e no esquema de Heidegger parece haver um momento privilegiado o momento de transição de uma época para outra de destino para destino quando o Ser como Verdade interrompe a continuidade do erro quando a essência epocal do Ser chama a si a natureza extática do Dase inw A este chamado o pensamento pode responder reconhecendo o chamado do destino isto é o espírito de uma era inteira pode tomarse atento para aquilo a que está destinado em vez de perderse nas particularidades errantes dos assuntos humanos cotidianos Heidegger nunca menciona nesse contexto uma ligação entre pensar e agradecer e está bem a par das possíveis conclusões pessimistas para não dizer niilistas que se podem retirar de uma interpretação que se adequaria perfeitamente à compreensão de Burckhardt e de Nietzsche da experiência grega em seu aspecto mais profundo109 Além disso convém observar que aqui ele não parece estar absolutamente interessado em sublinhar a tensão da relação muito íntima entre filosofia e poesia Em vez disso conclui o ensaio com algo que não disse em qualquer outro lugar Se a essência do homem consiste em pensar na verdade do Ser notese bem agora um Ser que se retirou que se esconde e se oculta então o pensar deve poetizar o enigma do Ser am Rãtsel des Seins dichterí Mencionei de passagem a mudança radical que o conceito de morte sofreu nos últimos escritos de Heidegger onde a morte aparece como redentora final da essência do homem o Gebirg des Seins in dem Spiel der Welt o abrigo do Ser no jogo do mundo111 E tentei explicar e de certo modo justificar a estranheza disto com um testemunho bem conhecido de certas experiências familiares que ao que eu saiba nunca foram conceitualizadas No ensaio sobre Anaximandro a palavra morte não aparece mas o conceito tem é claro presença bem transparente na idéia de vida entre duas ausências antes de se chegar pelo nascimento e depois de se desaparecer com a morte E aqui temos de fato um esclarecimento conceituai sobre a morte como abrigo para a essência da existência humana cuja presença temporal e transitória é compreendida como o demorarse entre duas ausências e como uma estada no reino da errância Pois a fonte deste errar e aqui podemos é claro enxergar até que ponto essa variante continua sendo simples variante das convicções filosóficas básicas e permanentes de Heidegger é o fato de que de um ser que se demora um pouco em presença entre duas ausências e tem a habilidade de transcender sua própria presença só se pode dizer que está realmente presente enquanto se deixa pertencer ao nãopresente112 Sua chance de alcançar isto está em conseguir aproveitarse do momento epocal na transição entre períodos em que os destinos históricos mudam e a verdade que subjaz à próxima época de errância tomase evidente ao pensamento A Vontade como destruidora aparece aqui também embora não se diga seu nome tratase da ânsia de persistir de suportar o apetite desmedido do homem para agarrarse a si mesmo Dessa forma ele faz mais do que simplesmente errar O Demorarse como persistência é insurreição a bem da simples duração113 A insurreição dirigese contra a ordem dike cria desordem adikia permeando o reino da errância Esses enunciados trazemnos de volta a território familiar como fica evidente quando lemos aí que a desordem é trágica e não uma coisa pela qual se pode responsabilizar o homem Com certeza não há mais qualquer chamado da consciência convocando o homem de volta ao seu eu autêntico ao insight de que não importa o que tenha feito ou se omitido de fazer era já schuldig culpado posto que sua existência era algo que ele devia depois de ter sido lançado no mundo Mas assim como em Ser e Tempo este eu culpado podia salvarse antecipando sua morte aqui também o Dasein errante enquanto demorase um pouco no reino da errância pode através da atividade do pensamento juntarse ao que está ausente Há entretanto a diferença de que aqui o ausente o Ser em sua permanente retirada não tem história no reino da errância e de que pensar e agir não coincidem Agir é errar perderse Deveriamos considerar também de que modo a definição inicial do serculpado como traço primordial do Dasein independentemente de qualquer ato específico foi substituída por errar como a marca decisiva de toda a história humana Ambas as formulações a propósito lembrarão curiosamente para quem lê alemão o Der Handelnde wird immer schuldig e o Es irrt der Mensch solang er strebt de Goethe114 Podemos acrescentar a esses diferentes ecos de si mesmo as seguintes frases do ensaio sobre Anaximandro Todo pensador depende do chamado do Ser A dimensão desta dependência determina a liberdade de influências irrelevantes115 com o que Heidegger quer claramente falar dos acontecimentos cotidianos factuais causados por homens que erram Quando juntamos essas correspondências é como se estivéssemos lidando aqui com uma simples variação do ensinamento básico de Heidegger Sejacomo for é óbvio que minha interpretação atual é extremamente provisória não pode de modo algum ser um substituto para o tratado não publicado do qual fazia parte originalmente o ensaio sobre Anaximandro Em nosso atual estado de conhecimento do texto a coisa toda continua muito duvidosa Mas seja encarando esse texto como variante seja como mudança a denúncia que Heidegger faz do instinto de autopreservação comum a todas as coisas vivas como uma insurreição veemente contra a ordem da criação é como tal tão rara na história das idéias que eu gostaria de citar o único dizer semelhante que conheço três linhas pouco conhecidas de Goethe em um poema escrito aproximadamente em 1821 com o título Eins und Alies Das Ewige regt sich fort in alien Denn alles muss in Nichts zerfallen Wenn es im Sein beharren will 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum Logo no começo dessas reflexões fiz uma advertência sobre a falha inevitável em todo exame crítico da faculdade da Vontade Tratase de algo bastante óbvio mas que passa facilmente despercebido na discussão dos argumentos e contraargumentos particulares simplesmente toda filosofia da Vontade é concebida e articulada não por homens de ação mas por filósofos os pensadores profissionais de Kant que de um jeito ou de outro estão comprometidos com o bios theoretikos e que portanto estão mais inclinados a interpretar o mundo do que a mudálo De todos os filósofos e teólogos que consultamos só Duns Scotus como vimos estava pronto a pagar o preço da contingência pelo dom da liberdade o dom do espírito que temos para começar algo novo algo que sabemos que poderia também não ser Sem dúvida a necessidade sempre agradou mais aos filósofos do que a liberdade porque eles precisavam para sua atividade de um tranquilitas animae Leibniz uma paz de espírito que com base na acquiescentia sibi a concordância de si consigo mesmo só poderia ser garantida efetivamente através de um assentimento do arranjo do mundo O mesmo eu que a atividade pensante desconsidera em sua retirada do mundo das aparências é afirmado e assegurado pela reflexividade da Vontade Assim como o pensamento prepara o eu para o papel de espectador a Vontade dá a ele a forma de um Eu duradouro que orienta todos os atos de volição particulares Ela cria o caráter do eu e foi por essa razão que às vezes foi entendida como o principium individuationis a fonte de identificação específica do indivíduo No entanto é precisamente esta individuação ocasionada pela Vontade que gera problemas novos e sérios para a noção de liberdade O indivíduo amoldado pela Vontade e sabedor de que poderia ser diferente daquilo que é o caráter ao contrário da aparência ou dos talentos e habilidades corporais não é inatamente dado ao eu sempre tende a afirmar um Eumesmo contra um Eles indefinido todos os O Eterno em tudo se faz sentir Pois tudo no Nada deve cair Se for insistir em Ser tradução livre NT outros que eu como indivíduo não sou Nada pode ser mais apavorante com efeito do que a noção de liberdade solipsista o sentimento de que o meu ficar de fora isolado de todos os demais devese à vontade livre de que nada nem ninguém pode ser responsabilizado por isso a não ser eu mesmo A Vontade com seus projetos para o futuro desafia a crença na necessidade no assentimento do arranjo do mundo a que chama de ufania Ainda assim não está claro para todos que o mundo não é e nunca foi o que deveria ser E quem sabe ou jamais soube o que vem a ser este deveria O deveria é utópico não tem topos próprio ou um lugar no mundo A confiança na necessidade na convicção de que tudo é como era para ser não é infinitamente preferível à liberdade comprada ao preço da contingência Nessas circunstâncias a liberdade não parece um eufemismo para essa região incinerada marcada pelo desamparo com o qual a existência humana Dasein foi abandonada a si mesma die Verlassenheit in der Überlassenheit an es selbst Essas dificuldades e ansiedades são causadas pela Vontade à medida que é uma faculdade do espírito sendo portanto reflexiva repercutindo sobre si mesma vollo me velle cogito me cogitare ou em termos heideggerianos pelo fato de que existencialmente falando a existência humana foi abandonada a si mesma Nada parecido perturba nosso intelecto a capacidade que o espírito tem de cognição e sua confiança na verdade As habilidades cognitivas como nossos sentidos não repercutem sobre si mesmas são completamente intencionais vale dizer completamente absorvidas pelo objeto que se pretende alcançar Logo à primeira vista é surpreendente encontrar um preconceito semelhante contra a liberdade nos grandes cientistas do nosso século Como se sabe eles ficaram muito perturbados quando suas descobertas demonstráveis na astrofísica e também na física nuclear deram origem à suspeita de que vivemos em um universo que nas palavras de Einstein é governado por um Deus que joga dados com ele ou à de que como sugeriu Heisenberg aquilo que consideramos o mundo exterior pode ser nosso mundo interior virado do avesso Lewis Mumford Tais pensamentos e repensamentos não são é claro enunciados científicos não pretendem fornecer verdades demonstráveis ou teoremas experimentais que seus autores possam ter a esperança de traduzir em proposições suscetíveis de prova São reflexões inspiradas por uma busca de significado e portanto não são menos especulativas do que outros produtos do ego pensante O próprio Einstein em uma observação muito citada traçou bastante claramente o limite entre enunciados cognitivos e proposições especulativas o fato mais incompreensível da natureza é o fato de a natureza ser compreensível Aqui podemos quase observar o modo como o ego pensante interfere na atividade cognitiva interrompea e paralisaa com suas reflexões Colocase fora de ordem com a atividade habitual dos cientistas repercutindo sobre si mesmo meditando sobre a ininteligibilidade fundamental daquilo que está fazendo ininteligibilidade que permanece um enigma sobre o qual vale a pena pensar embora não possa ser resolvido Tais reflexões podem render várias hipóteses e algumas podem até mesmo acabar produzindo conhecimento quando testadas de qualquer forma sua qualidade e seu peso dependerão das conquistas cognitivas de seus autores É difícil contudo negar que as reflexões dos grandes fundadores da ciência moderna Einstein Planck Bohr Heisenberg Schrodinger tenham provocado uma crise nos fundamentos da ciência moderna Grundlagenkrise e sua questão central como deve ser o mundo para que o homem possa conhecêlo é tão antiga quanto a própria ciência e continua sem resposta117 Parece somente natural que essa geração de fundadores em cujas descobertas a ciência moderna se baseou e cujas reflexões acerca do que estavam fazendo produziram a crise nos fundamentos fosse seguida por muitas gerações de epígonos menos eminentes que acham mais fácil responder questões irrespondíveis por terem menos consciência da linha que separa suas atividades habituais de suas reflexões sobre elas Falei da orgia de pensamento especulativo que se seguiu à liberação kantiana da necessidade da razão de pensar além da capacidade cognitiva do intelecto os jogos que os idealistas alemães fizeram com os conceitos personificados e as alegações feitas para a validade científicaalgo que muito se distancia da crítica de Kant Do ponto de vista da verdade científica as especulações idealistas eram pseudocientíficas agora no pólo oposto do eixo algo semelhante parece estar acontecendo Os materialistas jogam o jogo da especulação com o auxílio de computadores da cibernética e da automação suas inferências produzem não fantasmas como no jogo dos idealistas mas materializações como as das sessões espíritas O que mais impressiona nesses jogos materialistas é que seus resultados se assemelham aos conceitos dos idealistas Assim o Espírito do Mundo de Hegel materializouse recentemente na construção de um sistema nervoso feito no modelo de um computador gigante Lewis Thomas118 propõe que se entenda a comunidade mundial dos seres humanos como um Cérebro Gigante em que há um intercâmbio tão rápido de pensamentos que os cérebros da humanidade muitas vezes parecem funcionalmente estar sofrendo uma fusão Tendo a humanidade como seu sistema nervoso a Terra inteira assim se toma um organismo que respira com pequenas partes interligadas todas crescendo sob a membrana protetora da atmosfera do planeta119 Tais noções não são nem ciência nem filosofia mas sim ficção científica estão muito difundidas e demonstram que as extravagâncias da especulação materialista em muito se igualam às loucuras da metafísica idealista O denominador comum de todas essas falácias materialistas ou idealistas além do fato de se originarem historicamente da noção de progresso e de sua companheira a entidade indemonstrável chamada Humanidade é que elas preenchem a mesma função emocional Nas palavras de Lewis Thomas elas acabam com toda a preciosa noção de um eu próprio a antiga e maravilhosa ilha de um Eu autônoma voluntária livre para iniciativas independente e isolada que é um mito120 O nome próprio deste mito do qual somos de todos os lados aconselhados a nos livrar é Liberdade Aos pensadores profissionais filósofos ou cientistas não lhes aprouve a liberdade e seu caráter inelutavelmente aleatório não estiveram dispostos a pagar o preço da contingência pelo dom questionável da espontaneidade pela capacidade de fazer o que se poderia também deixar de ter feito Deixemos portanto esses pensadores profissionais de lado e concentremos nossa atenção nos homens de ação que devem ter um compromisso com a liberdade pela própria natureza de sua atividade que consiste em mudar o mundo e não em interpretálo ou conhecêlo Em termos conceituais passamos da noção de liberdade filosófica philosophical freedom para a de liberdade política political liberty uma diferença óbvia da qual ao que eu saiba somente Montesquieu falou e mesmo assim de passagem quando utilizou a liberdade filosófica como um pano de fundo no qual a liberdade política pudesse ser delineada com mais nitidez Em um capítulo intitulado De la liberté du citoyen Sobre a liberdade do cidadão ele disse La libertéphilosophique consiste dans Iexercise de sa volonté ou du moins sil faut parler dans tous les systèmes dans Vopinion oil Ion est que Ion exerce sa volonté La libertépolitique consiste dans la süreté ou du moins dans Iopinion que Ion a de la süreté A liberdade filosófica consiste no exercício da vontade ou pelo menos se temos de levar em conta todos os sistemas na opinião de que exercemos nossa vontade A liberdade política consiste na segurança ou pelo menos na opinião de que se tem segurança121 A liberdade política do cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que vem da opinião de que todos têm segurança e para que se possa estar de posse dessa liberdade o governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro122 A liberdade filosófica a liberdade da vontade é relevante somente para pessoas que vivem fora das comunidades políticas como indivíduos solitários As comunidades políticas nas quais os homens se tornam cidadãos são produzidas e preservadas por leis e tais leis feitas pelos homens podem variar muito e podem dar forma a inúmeros tipos de governo todos eles de uma maneira ou de outra tolhendo a vontade livre de seus cidadãos Com exceção da tirania no entanto em que uma vontade arbitrária governa as vidas de todos os governos abrem algum espaço de liberdade para a ação espaço que na verdade põe em movimento o corpo constituído de cidadãos Os princípios que inspiram as ações dos cidadãos variam de acordo com as diferentes formas de governo mas são todos como Jefferson os designou corretamente princípios energéticos123 e a liberdade política ne peut consister quà pouvoir faire ce que Ion doit vouloir et à nêtre point contraint de faire ce que Ion ne doit pas vouloir só pode consistir no poder de fazer aquilo que devemos querer e em não sermos forçados a fazer o que não devemos querer124 A ênfase aqui está claramente no Poder no sentido do euposso para Montesquieu assim como para os antigos era óbvio que não se poderia mais dizer que um agente era livre quando lhe faltasse a capacidade de fazer o que quisesse fazer quer por circunstâncias exteriores quer pelas interiores Além disso as Leis que segundo Montesquieu transformam indivíduos livres e sem lei em cidadãos não são os Dez Mandamentos de Deus ou a voz da consciência ou o lumen rationale da razão iluminando igualmente todos os homens mas sim rapports feitas pelos homens relações que envolvendo os assuntos inconstantes do homem mortal diferentes da eternidade de Deus ou da imortalidade do cosmos devem estar submetidas a todos os acidentes que podem acontecer e variar à proporção que a vontade do homem muda125 Para Montesquieu bem como para a Antigüidade précristã e para os homens que no final do século fundaram a República norteamericana as palavras poder e liberdade eram praticamente sinônimas A liberdade de movimento o poder de se movimentar sem o impedimento da doença ou de um senhor foi originalmente a mais elementar de todas a liberdades justamente o seu pré requisito Assim a liberdade política distinguese da liberdade filosófica por ser claramente uma qualidade do euposso e não do euquero Uma vez que é possuída pelo cidadão e não pelo homem em geral só pode se manifestar em comunidades onde o relacionamento dos muitos que vivem juntos é tanto no falar quanto no agir regulado por um grande número de rapports leis costumes hábitos e similares Em outras palavras a liberdade política só é possível na esfera da pluralidade humana e com a condição de que essa esfera não seja simplesmente uma extensão deste eueeumesmo Iand myself dual para um nós plural A ação em que um nós está sempre engajado em mudar nosso mundo comum mantém a oposição mais aguda possível com a atividade solitária do pensamento que funciona no diálogo de mim comigo mesmo Em circunstâncias excepcionalmente propícias esse diálogo pode como vimos estenderse a um outro já que um amigo é como disse Aristóteles um outro eu Jamais pode porém alcançar o nós o verdadeiro plural da ação Um erro bastante frequente entre filósofos modernos que insistem na importância da comunicação como garantia da verdade em especial Karl Jaspers e Martin Buber com sua filosofia do EuTu é acreditar que a intimidade do diálogo a ação interna na qual apelo a mim mesmo ou ao outro eu o amigo em Aristóteles o amado em Jaspers o Tu em Buber possa estenderse e tornarse paradigmática para a esfera política Esse nós surge onde quer haja homens vivendo juntos sua forma primordial é a família e pode constituirse de diferentes modos todos eles baseados em última instância em alguma forma de assentimento do qual a modalidade mais natural é a obediência assim como a modalidade mais natural e menos nociva de dissentimento é a desobediência O assentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir sozinho de que os homens querendo realizar algo no mundo devem agir de comum acordo o que seria trivial caso não houvesse sempre alguns membros da comunidade determinados a desrespeitar o acordo e a tentar por arrogância ou desespero agir sozinhos São esses os tiranos ou criminosos dependendo do objetivo final a que querem chegar o que têm em comum e o que os isola do resto da comunidade é que acreditam no uso de instrumentos de violência como substitutos para o poder Esta é uma tática que só funciona para os objetivos de curto prazo dos criminosos os quais depois de completar seu crime podem e têm que voltar a tomar parte na comunidade o tirano por outro lado sempre um lobo na pele de um cordeiro só pode resistir usurpando a posição justa da liderança o que o toma dependente de auxiliares para levar adiante projetos da sua própria vontade Ao contrário do poder que a vontade do espírito tem de afirmar ou negar cuja garantia prática final é o suicídio o poder político mesmo quando os que apoiam o tirano admitem o terror isto é o uso de violência é sempre um poder limitado e uma vez que poder e liberdade na esfera da pluralidade humana são na verdade sinônimos isso significa que também a liberdade política é sempre liberdade limitada A pluralidade humana o Eles sem um rosto do qual o Eu individual se separa para ficar a sós consigo mesmo é dividida em um enorme número de unidades e somente como membros desta unidade isto é de uma comunidade é que os homens ficam prontos para a ação A multiplicidade dessas comunidades manifestase de muitos modos e formas obedecendo cada uma a diferentes leis tendo diferentes hábitos e costumes e acalentando diferentes memórias do passado isto é uma multiplicidade de tradições Montesquieu provavelmente estava certo ao supor que cada uma dessas entidades movese e age segundo um princípio inspirador diferente reconhecido como o padrão final para julgar os feitos e os crimes a virtude nas repúblicas a honra e a glória nas monarquias a moderação nas aristocracias o medo e a suspeita nas tiranias só que essa enumeração orientada pela mais antiga distinção entre formas de governo o governo de um o de poucos o dos melhores ou o de todos é lamentavelmente inadequada à rica diversidade dos seres humanos que vivem juntos na Terra O único traço em comum entre todos esses modos e formas de pluralidade humana é simplesmente sua gênese isto é o fato de que em algum momento no tempo e por alguma razão um grupo de pessoas tenha vindo a pensar sobre si como um Nós Seja qual for o modo como esse Nós é inicialmente experimentado e expresso parece que ele sempre precisa de um começo e nada parece mais oculto na escuridão e no mistério do que este No princípio não só quanto à espécie humana em oposição a outros organismos vivos como também quanto à enorme variedade de sociedades indubitavelmente humanas A assombrosa obscuridade da questão pouco foi iluminada pelas recentes descobertas biológicas antropológicas e arqueológicas por mais êxito que tenham tido em estender a ponte pelo intervalo de tempo que nos separa de um passado ainda mais distante E é improvável que qualquer informação factual venha algum dia a lançar luz sobre o emaranhado desconcertante de hipóteses mais ou menos plausíveis todas sofrendo da suspeita incurável de que justamente sua plausibilidade e sua probabilidade possam acabar sendo sua própria anulação uma vez que toda a nossa existência real a gênese da Terra o desenvolvimento da vida orgância ali a evolução do homem a partir das incontáveis espécies animais ocorreu contra possibilidades estatísticas esmagadoras Tudo o que é real no Universo e na natureza foi um dia uma infinita improbabilidade No mundo cotidiano em que passamos nosso próprio e exíguo quociente de realidade só podemos estar certos de um encolhimento do tempo para trás que não é menos decisivo do que o encolhimento das distâncias espaciais na Terra Aquilo que há somente algumas décadas recordando os três mil anos de Goethe Wer nicht von dreitausend Jahren Sich weiss Rechenschaft zu geben Bleib im Dunkel unefahrenMag von Tag zu Tage leben ainda chamávamos de Antigüidade está hoje muito mais próximo de nós do que esteve para nossos ancestrais E bastante provável que esse dilema do nãosaber nunca venha a ser resolvido correspondendo como corresponde a outras evidentes limitações inerentes à condição humana que impõe limites definitivos e intransponíveis à nossa sede de conhecimento sabemos por exemplo sobre a imensidão do Universo e no entanto jamais seremos capazes de conhecêlo e o máximo que podemos fazer nesse impasse é apelar para as narrativas lendárias que em nossa tradição auxiliaram gerações passadas a aprender a lidar com os mistérios do No princípio Tratase das lendas fundadoras que claramente tinham a ver com um tempo anterior a qualquer forma de governo e a qualquer princípio particular que desse início a seu movimento Ainda assim o tempo com o qual lidavam era o tempo humano e o começo a que se referiam não era uma criação divina mas um conjunto de ocorrências feitas pelo homem que a memória podia alcançar através de uma interpretação imaginativa das velhas narrativas As duas lendas fundadoras da civilização ocidental a romana e a hebraica a despeito do Timeu de Platão nadaque se comparejamais aconteceu na Antigüidade grega são totalmente diferentes a não ser por terem ambas surgido em meio a um povo que pensava em seu passado como uma história cujo começo era conhecido e podia ser datado Os judeus sabiam o ano da criação do mundo e contam o tempo até hoje a partir desse ano e os romanos em contraste com os gregos que contavam o tempo de Olimpíada em Olimpíada sabiam ou acreditavam saber o ano da fundação de Roma contando o tempo a partir daí Muito mais impressionante e carregado de conseqüências muito mais sérias para a nossa tradição e pensamento político é o fato assombroso de que ambas as lendas em contradição nítida com os conhecidos princípios alegados como inspiração para a ação política em comunidades constituídas sustentem que no caso da fundação o ato supremo pelo qual o Nós se constitui como uma entidade identificável o princípio inspirador para a ação seja o amor pela liberdade e isto tanto no sentido negativo de liberação da opressão quanto no positivo de estabelecimento da Liberdade como realidade estável e tangível Tanto a diferença quanto a conexão entre essas duas a liberdade que advém de ser liberado e a liberdade que surge da espontaneidade de começar algo novo são paradigmaticamente representadas nas duas lendas fundadoras que atuaram como guias para o pensamento político ocidental Temos a narrativa bíblica do êxodo de tribos israelenses do Egito que precedeu a lei mosaica constituidora do povo hebreu e a narrativa de Virgílio sobre as andanças de Enéias que levaram à fundação de Roma dum conderet urberrí como Virgílio define o conteúdo de seu grande poema já nas primeiras linhas Ambas as lendas começam com um ato de liberação a fuga da opressão e da escravidão no Egito e a fuga da Tróia em chamas isto é fuga da aniquilação em ambos os casos esse ato é narrado da perspectiva de uma nova liberdade conquista de uma nova terra prometida que oferece mais que a luxúria do Egito e a fundação de uma nova Cidade que é preparada por uma guerra destinada a acabar com a guerra de Tróia de modo que a ordem dos acontecimentos tal como exposta por Homero pudesse ser revertida A reversão que Vírgilio fez de Homero é completa e deliberada126 Desta vez é Aquiles na forma de Turno Também aqui podes dizer que um Príamo encontrou seu Aquiles quem foge e é morto por Heitor na forma de Enéias no centro a fonte de toda a desgraça é de novo uma mulher só que agora uma noiva Lavínia e não uma adúltera e o fim da guerra não é o triunfo pela vitória e destruição total dos derrotados mas sim um novo corpo político ambas as nações invictas entram em um acordo sob as mesmas leis para sempre Quando lemos estas lendas como narrativas constatamos sem dúvida uma enorme diferença entre as andanças desesperadas e a esmo das tribos israelenses no deserto depois do êxodo e as aventuras maravilhosas e as coloridas histórias de Enéias e seus companheiros troianos mas para os homens de ação de gerações posteriores que reviraram os arquivos da Antigüidade em busca de paradigmas que guiassem suas próprias intenções isso não era o que importava O que importava era que havia um hiatus entre o desastre e a salvação entre a liberação da velha ordem e a nova liberdade corporificada em uma novus ordo seclorum uma nova ordem das eras com cujo nascimento o mundo se modificara estruturalmente O hiato legendário entre um nãomais e um aindanão indicava claramente que a íiberdade não seria um resultado automático da liberação que o fim do velho não é necessariamente o começo do novo que a noção de um contínuo de tempo todopoderoso é uma ilusão Narrativas de um período transitório da servidão à liberdade do desastre à salvação tinham grande apelo porque as lendas se concentravam principalmente nos feitos dos grandes líderes pessoas de significação histórica mundial que apareciam no palco da história precisamente durante tais intervalos de tempo histórico Todos aqueles que pressionados por circunstâncias exteriores ou motivados por linhas de pensamento radicalmente utópicas não estavam satisfeitos em mudar o mundo através de uma reforma gradual de uma antiga ordem esta rejeição do gradual foi precisamente o que transformou os homens de ação do século XVII o primeiro século de uma elite intelectual completamente secularizada nos homens das revoluções estavam quase que logicamente forçados a aceitar a possibilidade de um hiatus no fluxo contínuo da seqüência temporal Lembramos o embaraço de Kant ao lidar com um poder de começar espontaneamente uma série de coisas ou estados sucessivos isto é com um começo absoluto que em virtude da inquebrável seqüência do contínuo de tempo seguirá entretanto sendo sempre a continuação de uma série precedente127 A palavra revolução supostamente deveria dissolver este embaraço quando durante as últimas décadas do século XVIII mudou de significado deixando seu antigo sentido astronômico e assumindo o sentido de um acontecimento sem precedentes Na França isso chegou a levar a uma revolução de curta duração no calendário em outubro de 1793 decidiuse que a proclamação da República era um novo começo para a história humana e como isso ocorrera em setembro de 1792 o novo calendário declarava que setembro de 1793 era a inauguração do Ano II Essa tentativa de localizar um novo começo absoluto no tempo fracassou e provavelmente não só por causa do forte aspecto anticristão do novo calendário todos os feriados cristãos inclusive o domingo foram abolidos e uma divisão fictícia do mês de trinta dias em unidades de dez dias foi instituída o décimo dia de cada dezena substituiría o domingo como dia de descanso O uso extinguiuse em cerca de 1805 uma data que mal é lembrada mesmo por historiadores profissionais No caso da Revolução norteamericana a antiga e lendária noção de um hiato temporal entre a velha ordem e a nova era parecia muito mais apropriada do que uma revolução no calendário para superar o abismo entre um contínuo de tempo de sucessão ordenada e o começo espontâneo de algo novo De fato seria tentador usar o surgimento dos Estados Unidos da América como exemplo histórico da verdade das velhas lendas como uma verificação do dito de Locke no princípio todo o mundo era América O período colonial seria interpretado como o período de transição entre a servidão e a liberdade o hiato entre a partida da Inglaterra e do Velho Mundo e o estabelecimento da liberdade no Novo O paralelo com as lendas é assombrosamente próximo em ambos os casos o ato de fundação deuse por meio de feitos e sofrimentos de exilados Isso aplicase até mesmo à história bíblica tal como é narrada no Êxodo Canaã a terra prometida não é de forma alguma a morada original dos judeus mas terra da estada anterior dos judeus Êxodo 64 Virgílio insiste com mais veemência ainda no tema do exílio Enéias e seus companheiros foram levados a procurar longínquos exílios e terras desertas chorando ao deixar o porto e os campos onde foi Tróia exilados que não sabiam para onde nos conduziam os nossos destinos e onde nos seria permitido o descanso12 Os fundadores da República norteamericana estavam bem familiarizados com a Antigüidade romana e também com a bíblica e podem ter retirado das velhas lendas a distinção decisiva entre a simples liberação e a verdadeira liberdade nunca utilizam porém o hiato como base possível para explicar o que estavam fazendo Há uma razão simples e factual para isso embora a terra fosse ser no final para muitos um lugar de descanso e um asilo para os exilados eles próprios não haviam chegado lá como exilados mas sim como colonizadores Até o final quando o conflito com a Inglaterra mostrouse inevitável não era problema para eles reconhecer a autoridade da metrópole Orgulharamse de ser indivíduos ingleses até que o momento de sua rebelião contra um governo injusto taxação sem representação os levou a uma revolução verdadeira uma mudança na própria forma de governo e à constituição de uma República como único governo o que agora era sentido por eles como a forma adequada para governar a terra dos homens livres Foi nesse momento que aqueles que tinham começado como homens de ação sendo depois transformados em homens de revolução modificaram o grande verso de Virgílio Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo a grande ordem das eras é renascida assim como era no princípio129 para a Novus ordo seclorum a nova ordem que ainda hoje vemos nas notas do dinheiro americano Para os Patronos Fundadores a variação implicava a admissão de que o grande esforço para reformar e recompor a integridade inicial do corpo político fundar Roma de novo tinha levado à tarefa completamente inesperada e muito diferente de constituir uma coisa totalmente nova fundar uma nova Roma Quando os homens de ação homens que queriam mudar o mundo cons cientizaramse que tal mudança poderia realmente postular uma nova ordem das eras o início de algo sem precedentes começaram a vasculhar a história à procura de ajuda Começaram a repensar coisaspensamento tais como o Pentateuco e a Eneida lendas fundadoras que pudessem dizerlhes como resolver o problema do começo um problema porque a própria natureza do começo é trazer em si um elemento de completa arbitrariedade Foi só então que eles se depararam com o abismo da liberdade sabendo que tudo o que se fizesse agora poderia também deixar de ser feito e tendo também a crença clara e precisa de que uma vez que uma coisa é feita não pode ser desfeita de que a memória humana contando a história sobrevive ao arrependimento e à destruição Isso aplicase apenas ao campo das ações ao muitosemum dos seres humanos130 isto é às comunidades em que o Nós é devidamente estabelecido para sua jornada através do tempo histórico As lendas fundadoras com seu hiato entre a liberação e a constituição da liberdade indicam o problema sem resolvêlo Apontam para o abismo do nada que se abre antes de qualquer ação que não pode ser explicada por uma cadeia segura de causa e efeito e que tampouco se explica pelas categorias aristotélicas de potência e ato No contínuo de tempo normal todo efeito transformase imediatamente em uma causa de futuras ocorrências mas quando a cadeia causai é quebradao que ocorre depois que se alcança a liberação já que a liberação ainda que seja a conditio sine qua non da liberdade jamais é a conditio per quam que causa a liberdade não resta nada em que o iniciante possa se agarrar O pensamento de um começo absoluto creatio ex nihilo elimina a seqüência de temporalidade tanto quanto o pensamento de um fim absoluto que agora se designa corretamente como pensar o impensável Conhecemos a solução hebraica para essa perplexidade Admitese um DeusCriador que cria o tempo juntamente com o Universo e que como legislador mantémse fora de Sua criação e fora do tempo como o Um que é quem ele é a tradução literal de Jeová é Eu sou quem eu sou da eternidade para a eternidade Esse conceito de eternidade forjado por uma criatura temporal é o absoluto de temporalidade É aquilo que resta do tempo quando ele é absolvido liberado de sua relatividade o tempo tal como aparecería para um observador externo não sujeito a suas leis e por definição sem relacionarse a nada em virtude de sua Unicidade A medida que o Universo e tudo nele pode ser remetido à região dessa Unicidade absoluta a Unicidade fundase em algo que pode estar além do raciocínio dos homens temporais mas que ainda assim possui um tipo de racionalidade própria pode explicar dar uma explicação lógica daquilo que é existencialmente inexplicável E a necessidade de uma explicação nunca é mais forte do que na presença de um evento novo desconectado que interrompe o contínuo a seqüência do tempo cronológico Essa parece ser a razão pela qual os homens que eram esclarecidos demais para acreditar no DeusCriador hebraicocristão se voltaram com rara unanimidade para uma linguagem pseudoreligiosa quando tiveram de lidar com o problema da fundação como o começo de uma nova ordem das eras Temos o apelo a Deus no Céu que Locke considerava necessário a todos aqueles que se engajaram na novidade de uma comunidade que emergia do estado de natureza temos as leis da natureza e o Deus da natureza de Jefferson o grande legislador do universo de John Adams e o legislador imortal de Robespierre seu culto a um Ser Supremo As explicações desses homens funcionam claramente por analogia assim como Deus no princípio criou o Céu e a Terra permanecendo fora de sua criação e anterior a ela também o legislador humanocriado à imagem de Deus e portanto capaz de imitáLo quando lança asfundações de uma comunidade humana cria as condições para toda vida política e desenvolvimento histórico futuros Sem dúvida nem os gregos nem os romanos tinham qualquer idéia de um DeusCriador cuja Unicidade sem relações pudesse servir como emblema paradigmático para um começo absoluto Mas os romanos que datavam sua história a partir da fundação de Roma em 753 parecem pelo menos ter sabido que a própria natureza deste assunto requeria um princípio transmundano Se não fosse assim Cícero não poderia ter sustentado que a excelência humana nunca se aproxima tanto dos caminhos dos deuses quanto na fundação de novas comunidades e na preservação de comunidades já fundadas131 Para Cícero assim como para os gregos de quem ele derivou sua filosofia os fundadores não eram deuses mas homens divinos e a grandeza de seus feitos deveria estabelecer uma lei que se tomasse a fonte de autoridade um padrão imutável em relação ao qual todas as leis e decretos positivos aprovados pelos homens poderiam ser avaliados e do qual obtinham sua legitimidade Tomar como modelo as crenças religiosas em plena Idade do Iluminismo poderia ter bastado caso só estivesse em jogo a autoridade de uma nova lei e de fato é impressionante que encontremos referências explícitas a um estado futuro de recompensas e punições inseridas em todas as constituições estaduais norteamericanas apesar de não encontrarmos nenhuma alusão a uma vida eterna na Declaração de Independência ou na Constituição dos Estados Unidos Os motivos para tais tentativas desesperadas de se agarrar a uma fé que em realidade não poderia sobreviver à emancipação contemporânea do domínio secular em relação à Igreja eram completamente pragmáticos e altamente práticos Em seu discurso sobre o Ser Supremo e a imortalidade da alma na Convenção Nacional de 7 de maio de 1794 Robespierre pergunta Quel avantage trouvestu à persuader 1homme qu une force aveugle preside à ses destins et frappe au hasard le crime et la vertu Que vantagem vês em persuadir os homens a acreditar que uma força cega preside seus destinos lançando ao acaso o crime e a virtude e nos Discourses on Davila John Adams fala do mesmo modo curiosamente retórico sobre o mais lamentável de todos os credos aquele de que os homens não passam de pirilampos e que tudo isto falta um pai o que tomaria o próprio assassinato tão indiferente quanto atirar em uma tarântula e o extermínio da nação Rohilla tão inocente quanto engolir ácaros junto com um pedaço de queijo132 Em resumo o que temos aqui é um esforço efêmero da parte do governo secular para manter não a fé hebraicocristã mas sim instrumentos políticos de governo que tinham sido tão eficientes na proteção das comunidades medievais contra a criminalidade Retrospectivamente isso quase pode parecer um expediente engenhoso dos poucos que eram instruídos para persuadir a maioria a não seguir a trilha escorregadia em direção ao Iluminismo De qualquer forma a tentativa fracassou totalmenteno início do nosso século poucos eram os que ainda acreditavam em um futuro estado de recompensas e punições e estava provavelmente fadada a fracassar Entretanto a perda da crença e com ela de uma boa parte do antigo medo aterrador da morte certamente contribuiu para a maciça invasão da criminalidade na vida política de comunidades altamente civilizadas que nosso século testemunhou Há uma estranha e inerente impotência nos sistemas legais de comunidades inteiramente secularizadas sua pena máxima a pena de morte somente data e acelera um destino a que todos os mortais estão sujeitos Seja como for sempre que homens de ação impulsionados pelo próprio momentum do processo de liberação começaram seriamente a se preparar para um começo inteiramente novo a novus ordum seclorum em vez de se voltarem para a Bíblia No princípio Deus criou o Céu e a Terra eles vasculharam os arquivos da Antigüidade romana em busca da prudência antiga para guiálos no estabelecimento de uma República isto é de um governo de leis e não de homens Harrington Eles não só precisavam familiarizarse com uma nova forma de governo como também com uma lição sobre a arte de fundação sobre como superar as perplexidades inerentes a todo começo Estavam bem conscientes é claro da espontaneidade desconcertante de um ato livre Como sabiam um ato somente pode ser chamado de livre se não for afetado ou causado por alguma coisa que o precede exigindo ainda assim à medida que se transforma imediatamente em uma causa do que quer que venha a se seguir uma justificativa que se vier a ter êxito terá que apresentar o ato como a continuação de uma série precedente isto é virá a negar a própria experiência de liberdade e novidade E o que a Antigüidade romana tinha a ensinar a esses respeito era bastante tranqüilizante e consolador Não sabemos por que os romanos no século III aC ou talvez ainda mais cedo decidiram traçar sua ascendência não a partir de Rômulo mas sim de Enéias o homem de Tróia que trouxera Ilio junto com os Penates vencidos para a Itália e que portanto tomouse a origem da raça romana Mas é óbvio que esse fato era de grande importância não só para Virgílio e seus contemporâneos do tempo de Augusto como também para todos aqueles que começando com Maquiavel tinham se dirigido à Antigüidade romana para aprender como conduzir os assuntos humanos sem a ajuda de um Deus transcendente O que os homens de ação estavam aprendendo nos arquivos da Antigüidade romana era o significado original de um fenômeno com o qual curiosamente a civilização ocidental tivera contato desde o fim do Império Romano e o conseqüente triunfo definitivo do cristianismo Longe de ser novo o fenômeno do renascer ou da renascença que se deu dos séculos XV e XVI em diante tinha dominado o desenvolvimento cultural da Europa e fora precedido por toda uma série de renascenças menores que deram fim aos poucos séculos daquilo que realmente foi a Idade das Trevas entre o saque de Roma e a renascença Carolíngia Cada um destes renasceres consistindo em uma Restauração do Saber e centrandose na Antigüidade romana e em menor grau na grega só alterara e revitalizara os meios muito restritos da elite instruída dentro e fora dos monastérios Foi só na Era do Iluminismo isto é em um mundo agora completamente secularizado que a restauração da Antigüidade deixou de ser uma questão de erudição passando a responder a propósitos práticos altamente políticos Nesta empreitada o único predecessor fora uma figura solitária Maquiavel O problema que os homens de ação estavam sendo convidados a resolver era o da perplexidade inerente à tarefa da fundação e uma vez que para eles o exemplo paradigmático de uma fundação bem sucedida tinha que ser Roma era da maior importância descobrir que mesmo a fundação de Roma como os próprios romanos a tinham compreendido não era um começo absolutamente novo Segundo Virgílio era o ressurgimento de Tróia e o restabelecimento de uma CidadeEstado que precedera Roma Portanto a linha de continuidade e tradição exigida pelo próprio contínuo de tempo e pela faculdade da memória este temor inato de que as coisas caiam no esquecimento que parece pertencer à criatura temporal tanto quanto a habilidade de fazer projetos para o futuro nunca tinha sido quebrada Vista sob esse ângulo a fundação de Roma foi o renascer de Tróia a primeira por assim dizer de uma série de renascenças que fizeram a história da cultura e civilização européia Basta que recapitulemos o poema político mais famoso de Vírgilio a Quarta Écloga para compreendermos como foi vital para a visão romana de seu Estado interpretar a constituição e fundação em termos do restabelecimento de um começo o qual como um começo absoluto permanece etemamente envolto em mistério Pois se no reino de Augusto o grande ciclo de períodos nasce de novo como todas as traduções padrão para as línguas modernas apresentam o grande verso de Virgílio Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo é justamente porque esta ordem das eras não é nova mas é somente um retomo a algo anterior Para Augusto que na Eneida tem a tarefa de começar este renascer há inclusive a promessa de que de novo há de trazer ao Lácio séculos de ouro por entre os campos outrora governados por Saturno isto é a terra itálica antes da chegada dos troianos133 Seja como for a ordem invocada na Quarta Ecloga tem sua grandeza ao voltar a um começo anterior sendo por ele inspirada Retoma agora a donzela retoma o reino de Saturno E ainda assim o caminho de volta visto do ângulo daqueles que vivem agora é um verdadeiro começo Agora do alto dos céus uma nova geração é enviada134 Este é sem dúvida um hino ao nascimento uma canção em louvor ao nascimento de uma criança e da chegada de uma nova progenies uma nova geração Foi por muito tempo confundido com uma profecia de salvação através de um Theos soter um Deus salvador ou ao menos com uma expressão de um anseio religioso précristão Porém longe de predizer a chegada de uma criança divina o poema é uma afirmação do caráter divino do nascimento como tal se queremos extrair dele um significado geral este poderia ser a crença do poeta de que a salvação potencial do mundo encontrase justamente no fato de que a espécie humana regenerase sempre e constantemente Mas esse significado não é explícito tudo o que o próprio poeta diz é que toda criança nascida na continuidade da história romana tem que aprender heroum laudes et facta parentis as glórias dos heróis e os feitos dos progenitores de forma que seja capaz de fazer o que todos os meninos romanos deveríam supostamente fazer ajudar a governar o mundo para o qual as virtudes de seus pais tinham trazido a paz135 Em nosso contexto o que importa é que a noção de fundação de contar o tempo ab urbe condita está exatamente no centro da historiografia romana juntamente com a não menos profunda noção romana de que todas essas fundações tendo lugar exclusivamente no campo dos assuntos humanos em que os homens representam uma história para relembrar e preservar são restabelecimentos e reconstituições e não começos absolutos Isso fica ainda mais evidente quando interpretamos a Eneida de Virgílio a história da fundação da cidade de Roma lado a lado com as Geórgicas os quatro poemas em louvor da agricultura do zelo pelos campos e rebanhos e árvores e da terra calma entregue aos cuidados do trabalho cíclico do lavrador renovandose enquanto o ano volta a rolar sobre si seguindo o caminho costumeiro ela permanece impassível e sobrevive a muitos filhos dos filhos vê passar por si muitas gerações de homens Esta é a Itália antes de Roma a terra de Saturno terra de varões aquele que nela vive que conhece os deuses da terra Pan o velho Silvano e as irmãs Ninfas e permanece fiel ao amor das águas e dos bosques perdese da fama A ele os fasces gloriosos do povo e a púrpura dos reis não atingem nem o Estado Romano ou os reinos destinados ao declínio nem pode a misericórdia dos pobres ou a inveja dos ricos causarlhe tormento Que frutos os campos graciosos geram por sua livre e espontânea vontade Estes ele colhe e nada sabe do ferro da justiça ou do Foro louco ou do passado do povo Esta vida em sagrada pureza era a vida de ouro que Saturno levara na terra e o único problema era que neste mundo de maravilhas e abundância de plantas e animais não há lenda das várias raças ou nomes que as designem e nem era o caso de registrar esta lenda Que vá ele saber quantos grãos de areia há no redemoinho do Euro sobre a planície da Líbia ou contar quantas ondas quebram na costa dos mares da Jônia Aqueles que cantam a origem deste mundo prétroiano e pré romano cujos anos circulares não produzem lendas que mereçam ser contadas mas que ao mesmo tempo produzem as maiores maravilhas da natureza que não cessam de deleitar os homens aqueles que em Virgílio louvam o reino de Saturno e os mitos da criação na sexta Ecloga ou no Livro I da Eneida cantam uma terra de contos de fadas e são eles mesmos figuras marginais O bardo de Dido de longos cabelos e Celênio com as veias mais inchadas que nunca do vinho de ontem entretêm uma platéia jovem e vivaz com as velhas histórias das andanças da Lua e das agonias do Sol de onde vêm a raça humana e os brutos de onde vêm a água e o fogo de como em pleno e amplo vazio foram colhidas as sementes da terra e do ar e do mar e além disso a do fogo e de como a partir destes todos os começos das coisas e do jovem mundo esférico cresciam juntos Ainda assim e isto é decisivo esta terra utópica de fazdeconta que fica de fora da história é eterna e sobrevive na indestrutibilidade da natureza os lavradores ou pastores que cuidam dos campos e dos rebanhos são ainda testemunhos em plena história romanotroiana de um passado itálico em que os nativos eram o povo de Saturno e não havia lei que os acorrentasse à justiça virtuosos em sua própria vontade livre e no costume do deus dos velhos136 Assim nenhuma ambição romana era encarregada de governar as nações e ordenar a lei da paz regere império populos pacisque imponere morem e nenhuma moralidade romana era mais necessária para poupar os conquistados e derrotar os soberbos parcere suiectis et debellare superbos Detiveme nos poemas de Virgílio com algum vagar por diferentes razões Resumindo os homens quando se livraram da tutela da Igreja voltaramse para a Antigüidade e seus primeiros passos em um mundo secularizado foram guiados pela revitalização de um saber antigo Confrontados com o enigma da fundação como reiniciar o tempo dentro de um contínuo de tempo inexorável eles naturalmente voltaramse para a história da fundação de Roma e aprenderam com Virgílio que esse ponto de partida da história ocidental já tinha sido um reviver o ressurgimento de Tróia Aquilo só lhes poderia dizer que a esperança de fundar uma nova Roma era uma ilusão o máximo que eles poderíam esperar seria repetir a fundação primitiva e fundar Roma de novo O que quer que fosse anterior a esta primeira fundação ela própria o ressurgimento de algum passado definido estava situado fora da história era a natureza cuja eternidade cíclica poderia fornecer um refúgio contra a marcha para adiante do tempo a direção vertical e retilínea da história um lugar de ócio otium para quando os homens cansassem dos negócios nãoócios da cidadania nec otium por definição mas cuja origem não tinha qualquer interesse porque se encontrava além do alcance da ação Com certeza há algo de enigmático no fato de que os homens de ação cuja única intenção e propósito era modificar toda a estrutura do mundo futuro e criar uma novus ordo seclorum tenham se dirigido àquele passado distante da Antigüidade pois eles não reverteram deliberadamente o eixo do tempo e mandaram os jovens caminhar de volta ao puro resplendor do passado Petrarca137 porque o passado clássico é o verdadeiro futuro Buscavam um paradigma para uma nova forma de governo em sua própria era esclarecida e dificilmente se davam conta do fato de que estavam olhando para trás Ainda mais enigmático a meu ver do que terem vasculhado os arquivos da Antigüidade é não se terem rebelado contra a Antigüidade quando descobriram que a resposta final e certamente mais profunda dos romanos a prudência antiga era que a salvação sempre vem do passado que os ancestrais eram maiores superiores por definição E espantoso além disso que a noção do futuro justamente um futuro prenhe da salvação final que traz de volta uma espécie de Idade do Ouro inicial tenha se tomado popular em um tempo em que o Progresso tomara se o conceito dominante na explicação do movimento da história E o mais impressionante exemplo da persistência daquele sonho muito antigo é obviamente a fantasia marxista de um reino de liberdade sem classes e sem guerras tal como foi prefigurado no comunismo original um reino que tem mais do que uma semelhança superficial com o reino original de Saturno sobre a Itália quando nenhuma lei acorrentava os homens à justiça Em sua forma original antiga como o início da história a Idade do Ouro é um pensamento melancólico É como se há milhares de anos nossos ancestrais houvessem tido um pressentimento da descoberta eventual do princípio da entropia que surgiría em um século XIX embriagado de progresso uma descoberta que se não tivesse sido questionada teria destituído a ação de qualquer significado138 O que fez na verdade o princípio da entropia desaparecer para os homens que realizaram as revoluções dos séculos XIX e XX foi não tanto a refutação científica de Engels mas o retomo de Marx e obviamente também o de Nietzsche ao conceito cíclico de tempo em que a inocência préhistórica do começo finalmente reaparecería tão triunfante quanto a segunda vinda de Jesus à Terra Mas isso não nos interessa aqui Quando dirigimos nossa atenção para os homens de ação esperando encontrar neles uma noção de liberdade purgada das perplexidades causadas nos espíritos humanos pela reflexividade das atividades do espírito a inevitável repercussão do ego volitivo sobre si mesmo esperavamos mais do que finalmente alcançamos O abismo de pura espontaneidade que nas lendas fundadoras é superado pelo hiato entre liberação e constituição da liberdade foi coberto com o mecanismo típico da tradição ocidental a única tradição em que a liberdade sempre foi a raison dêtre de toda política através do qual compreendemos o novo como uma reafirmação melhorada do velho A liberdade só sobreviveu em sua integridade original na teoria política isto é na teoria concebida com a finalidade da ação política apenas nas promessas utópicas e infundadas de um reino de liberdade final que na sua versão marxista em todo caso significaria de fato o fim de todas as coisas uma paz etema na qual todas as atividades especificamente humanas desapareceríam Sem dúvida chegar a uma conclusão como esta é frustrante mas só conheço para ela uma única alternativa possível em toda a história do pensamento político Se como Hegel acreditava a tarefa do filósofo é apreender a mais elusiva de todas as manifestações o espírito de uma era na rede dos conceitos da razão então Santo Agostinho o filósofo cristão do século V dC foi o único filósofo que Roma jamais teve Ele era romano mais por educação do que por nascimento e foi sua educação que o levou aos textos clássicos da Roma republicana do século I aC que mesmo então viviam somente sob a forma da erudição Em sua grande obra A cidade de Deus ele menciona mas não explica algo que poderia terse tomado o alicerce ontológico para uma filosofia da política verdadeiramente romana ou virgiliana Segundo ele como sabemos Deus criou o homem como uma criatura temporal hommo temporalis o tempo e o homem foram criados juntos e essa temporalidade foi afirmada pelo fato de que cada homem devia sua vida não somente à multiplicação das espécies mas ao nascimento à entrada de uma criatura nova que como algo inteiramente novo aparece em meio ao contínuo de tempo do mundo O propósito da criação do homem era tomar possível um começo Para que houvesse um começo o homem foi criado sem que antes dele ninguém o fosse Initium ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit139 A própria capacidade de começar tem raiz na natalidade e de forma alguma na criatividade não em um dom mas no fato de que os seres humanos novos homens continuamente aparecem no mundo em virtude do nascimento Estou bem consciente de que o argumento mesmo na versão agostiniana é um tanto opaco e não nos parece dizer nada além de que estamos condenados a ser livres porque nascemos não importando se apreciamos a liberdade ou abominamos sua arbitrariedade se ela nos apraz ou se preferimos escapar à sua terrível responsabilidade elegendo alguma forma de fatalismo Esse impasse se é que é um impasse só pode ser desfeito ou resolvido pelo apelo a uma outra faculdade do espírito não menos misteriosa do que a faculdade de começar a faculdade do Juízo cuja análise poderia no mínimo nos dizer o que está em jogo em nossos prazeres e desprazeres Notas Capítulo 1 1 Ver Sophist 253254 e Republic 517 2 Hermman Diels e Walther Kranz Die Fragmente der Vorsokratiker Berlim 1960 vol I frag B4 3 Confessions Livro XI cap 13 4 La Pensée et le Mouvant 1934 Paris 1950 p 170 5 Ibid p 26 6 117466 e 1177a20 Ver também as objeções de Aristóteles ao conceito de prazer em Platão 1173al31173b7 7 Op cit p 5 8 Para o que se segue ver Metaphisics Livro VII cap 710 9 De Anima 433a30 10 Bruno Snell The Discovery of the Mind Nova Iorque Evanston 1960 pp 182183 11 The Spirit of Medieval Philosophy Nova Iorque 1940 p 307 12 Tem sido uma questão de debate entre os velhos filósofos muito antes da encarnação de nosso Salvador se tudo o que ocorre vem da necessidade ou se algumas coisas vêm do acaso Mas o terceiro modo de fazer as coisas acontecer isto é a vontade livre é algo que nunca foi mencionado por eles nem pelos cristãos no início do Cristianismo Mas há algum tempo os doutores da Igreja Romana extraíram deste domínio da vontade Deus a vontade do homem e trouxeram a doutrina em que a vontade do homem é livre e determinada pelo próprio poder da vontade The Question Concerning Liberty Necessity and Chance English Work Londres 1841 Vol Vp 1 13 Ver Nicomachean Ethics Livro V cap 8 14 Ibid livro III 1110 al7 15 Gilbert Ryle The Concept of Mind Nova Iorque 1949 p 65 16 Henry Herbert Williams artigo sobre a Vontade in Encyclopaedia Britannica 11 edição 17 De Generatione Livro I cap 3 317b 1618 18 Ibid 318a2527 e 319a2329 The Basic Works of Aristotle Richard McKeon Nova Iorque 1941 p 483 19 Meteorologica 339b27 20 Livro I 1100a33l 100bl8 21 De Caelo 283b2631 22 The Will to Power Walter Kaufmann cd Vintage Books Nova Iorque 1968 n617 23 DeCivitateDei Livro XII cap 20 24 Ibid cap 13 25 Nosso atual calendário que toma o nascimento de Cristo como o ponto decisivo a partir do qual contamos o tempo para frente e para trás foi introduzido no final do século XVIII Os manuais alegam que a reforma era necessária por razões acadêmicas para facilitar a datação dos eventos da Antigüidade sem precisar fazer referência ao emaranhado de diferentes contagens de tempo Hegel ao que eu saiba o único filósofo a ponderar sobre a mudança abrupta e notável viu nela um claro sinal de cronologia verdadeiramente cristã uma vez que o nascimento de Cristo tomavase então o ponto decisivo da história do mundo Parece mais significativo que no novo esquema possamos contar o tempo para frente e para trás de modo que o passado estenda se para um infinito passado e que o futuro do mesmo modo estenda se para um futuro infinito A dupla infinitude elimina todas as noções de começo e de tempo estabelecendo a humanidade por assim dizer em uma realidade potencialmente sempitema na Terra Nem é preciso acrescentar que nada poderia ser mais estranho ao pensamento cristão do que uma imortalidade terrena da humanidade e de seu mundo 26 Ver o artigo sobre a Vontade na Encyclopaedia Britannica mencionado anteriormente na nota 16 27 Ver Dieter Nestle Eleutheria Teil I Studien zum Wesen der Freiheit bei den Griechen und im Nenen Testament Tubingen 1967 pp 6 e s Parece digno de nota que a etimologia moderna se incline a derivar a palavra Eleutheria de uma raiz indogennânica significando Volk or Stamm que tem como resultado apresentar aqueles que pertencem ã mesma unidade étnica como sendo reconhecidos livres por seus companheiros de etnia Este exemplo de erudição não soa desconfortavelmente próximo das noções de cultura alemã dos anos trinta que vinham à tona na época pela primeira vez 28 Critique of Pure Reason B476 Para esta e outras citações ver a tradução de Norman Kemp Smith Immanuel Kants Critique of Pure Reason Nova Iorque 1963 em que a autora freqüentemente se baseou 29 Uber die dsthetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen 1795 19s carta 30 The World as Wil and Idea 1818 traduzido por R B Haldane e J Kemp vol I pp 39 e 129 Citado aqui da introdução de Konstantin Kolenda ao Essay on the freedom of the Will de Arthur Schopenhauer Library of Liberal Arts Indianapolis Nova Iorque I960 p viii 31 Of Human Freedom 1809 traduzido por James Gutmann Chicago 1936 p 24 32 Beyond Good and Evil 1885 traduzido por Marianne Cowan Chicago 1955 seção 18 33 Also Sprach Zarathustra in Ecce Homo 1889 n 1 34 Ibid n 3 35 Ver Karl Jaspers Nietzsche An Introduction to the Understanding of His Philosophical Activity 1935 traduzido por Charles F Wallraff e Frederick J Schmitz Tucson 1965 e Martin Heidegger Nietzsche dois vols Pfullingen 1961 36 Philosophy 1932 traduzido por E B Ashton Chicago 1970 vol 2 p 167 37 Das primare Phanomen der urspriinglichen und eigentlichen Zeitlichkeit ist die Zukunft In Sein und Zeit 1926 Tubingen 1949 p 329 Gelassenheit Pfullingen 1959 tradução inglesa Discourse on Thinking traduzido por John M Anderson e E Hans Freund Nova Iorque 1966 38 Nota da editora fomos incapazes de encontrar esta referência 39 English Works vol V p 55 40 Carta a G H Schaller datada de outubro de 1674 Ver Espinoza The Chief Works editado porR H M Elwes Nova Iorque 1951 vol II p 390 41 Ethics pt Ill prop II nota in ibid vol II p 134 Carta a Schaller in ibid p392 42 Leviathan editado por Michael Oakeshott Oxford 1948 cap 21 43 Essay on the Freedom of the Will p 43 44 An Examination of Sir William Hamiltons Philosophy 1867 cap XXVI citado de Free Will editado por Sidney Morgenbesser e James Walsh Englewood Cliffs 1962 p 59 45 Ver Martin Kahler Das Gewissen 1878 Darmstadt 1967 pp 46 e ss 46 Ver Laws Livro IX 865e 47 Op cit pp 6364 48 Notebooks 19141916 ed bilíngüe traduzido por G E M Anscombe Nova Iorque 1961 item com a data de 5 de agosto 1916 p 80e também pp 86e88e 49 Santo Agostinho On Free Choice of the Will De libero arbítrio Livro III seção 3 50 Em resposta à Objeção XII à Primeira Meditação que a liberdade da vontade foi pressuposta sem prova Ver The Philosophical Works of Descartes trad Elizabeth Haldane e G T Ross Cambridge 1970 vol II pp 7475 51 Meditação IV in ibid 1972 vol I pp 174175 Tradução da autora 52 Principles of Philosophy in ibid pt 1 prin XL p 235 53 Ibid prin XLI p 235 54 Critique of Pure reason B751 55 Op cit pp 9899 56 Critique of Pure Reason B478 57 Ver Hans Jonas Jewish and Christian Elements in Philosophy in Philosophical essays From Ancient Creed to Technological Man Englewood Cliffs 1974 58 Henri Bergson op cit p 13 59 Ibid p 15 60 Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy 1982 Nova Iorque 1960 p 314 Ele também chama Duns Scotus de o maior dos escolásticos p 425 61 John Duns Scotus Philosophical Writings A Selection Trad Allan Wolter Library of Liberal Arts Indianápolis Nova Iorque 1962 pp 84 e 10 62 Hans Jonas op cit p 29 63 Op cit p 10 64 Ibid p 33 65 Time and Free Will An essay on the immediate data of consciousness 1889 trad F L Pogson Harper Torchbooks Nova lorque 1960 p 142 66 Ibid pp 240 e 167 67 Principles of Philosophy prin XLI in The Philosophical Works of Descartes op cit p 235 68 Resposta a Objeções à Meditação V op cit p 225 69 Duns Scotus op cit p 171 70 Ver sua investigação exaustiva sobre o argumento fatalista Tt was to be in Dilemmas Cambridge 1969 pp 1535 71 Ibid p 28 72 De Fato xiii 3014 31 73 Ibid V 35 74 Como Chrysippus já apontou Ver ibid xx 48 75 Confessio Philosophi ed bilingiie ed Otto Saame Frankfurt 1967 p 66 76 Jenenser Logik MetaphysikundNaturphilosophieCasson ed Leipzig 1923 p 204 in Naturphilosophie I A Begriffder Bewegung 77 Ver Friedrich Nietzsche Thus Spoke Zarathustra pt II On Redemption A vontade não pode querer para trás Que o tempo não anda para trás é esta a sua fúria aquilo que foi é o nome da pedra que não pode se mover in The Portable Nietzsche trad Walter Kaufmann Nova lorque 1954 p 251 78 Ver cap Ill p 142en89 79 Op cit p 110 80 Ibid 122 81 Ibid pp 42 44 76 92 98 100 82 Citado por Walter Lehmann em sua Introdução para uma Antologia de Escritos Alemães Meister Eckhart Gottingen 1919 sentença 15 p 16 83 O ensaio está agora disponível em Etudes dHistoire de la Pensée Philosophique Paris 1961 84 Agora disponível em inglês Introduction to the Readings of Hegel ed Allan Bloom Nova lorque 1969 p 134 85 Op cit p 177 86 Philosophy of Right Preface Encyclopedia n 465 2a edição 87 Op cit loc cit 88 Ibid p 177 e 185 nota 89 Ibid 188 90 Jenenser Logik p 204 91 Koyré op cit p 183 citando Hegel JenenserRealphilosophie ed Johannes Hoffmeister Leipzig 1932 vol II p 10 e ss 92 Koyré op cit p 177 93 Platão Republic 329bc 94 Koyré op cit p 166 95 Ibid p 174 96 Koyré La Terminologie Hégélienne in op cit p 213 97 Martin Heidegger Sein und Zeit n 65 p 326 98 Koyré op cit p 188 citando Phdnomenologie des Geistes 99 Koyré op cit p 183 citando JenenserRealphilosophie 100 Koyré Hegel àléna in op cit p 188 101 Koyré op cit p 185 citando JenenserRealphilosophie 102 A passagem em Plotino é um comentário do Timeu de Platão 37c38b Aparece em Ennead III 711 On Time and Eternity Utilizei uma tradução de A H Armstrong in Loeb Classical Library Londres 1967 e a tradução de Emile Bréhier para o francês na edição bilíngüe das Ennéades Paris 192438 103 Um relato excelente e muito detalhado da literatura sobre Hegel está agora disponível in Michael Theunissen Die Verwirklichung der Vernunft Zur TheoriePraxisDiskussion im Anschluss an Hegel Beiheft 6 da Philosophic Rundschau Tübingen 1970 Os principais trabalhos em nosso contexto são Franz Rosenzweig Hegel und derStaat 2 vols 1920 Aalen 1962 Joachim Ritter Hegel und die franzõsische Revolution Frankfurt 1965 Manfred Riedel Theorie und Praxis im Denkem Hegels Stuttgart 1965 104 The Philosophy of History trad J Sibree Nova lorque 1956 pp 446 447 Philosophic der Weltgeschichte Hãlfte II Die Germanische Welt Lasson Leipzig 1923 p 926 105 Em uma carta a Schelling de 16 de Abril 1795 Briefe Leipzig 1887 vol I p 15 106 Citado de Theunissen op cit 107 The Philosophy of History p 442 108 Ibid p 446 109 Ibid pp 30 e 36 110 Ibid p 442 111 Ibid p 443 Tradução da autora 112 Ibid p 36 113 Ibid p 79 Tradução da autora cf Werke Berlim 1940 vol IX p 98 114 Op cit p 189 115 The Phenomenology of Mind trad J B Baillie 1910 Nova Iorque 1964 p 803 116 Koyré op cit p 164 citando Encyclopedia n 258 117 Hegel The Phenomenology of Mind pp 801 807808 Grifos nossos 118 Ibid p 808 119 Überwindung der Metaphysik in Vortrage und Aufsdtze Pfullingen 1954 vol I set xxii p 89 120 Hegel Science of Logic trad W H Johnston e L G Struthers Londres Nova Iorque 1966 vol I p 118 121 Toward a Genealogy of Morals 1887 n 28 122 Heidegger Uberwindung der Metaphysik op cit set xxiii p 89 123 Science of Logic vol I pp 95 97 85 Capítulo 2 1 Concept of Mind pp 62 e ss 2 Ver o estudo bastante iluminador de E H Gombrich Art and Illusion Nova Iorque 1960 3 De Anima 433a2124 e Nicomachean Ethics 1139a35 4 Para esta citação e para o que se segue ver De Anima Livro III cap 9 e 10 5 Meister Eckhart Franz Pfeiffer ed Gottingen 1914 pp 551552 6 Citado de Werner Jaeger Aristotle Londres 1962 p 249 Jaeger nota também que o terceiro livro Sobre a Alma que citei aqui parece peculiarmente platônico p 332 7 Nicomachean Ethics 1168b6 8 Ibid 1166b525 9 Ver as últimas linhas de Antígona 10 Nicomachean Ethics 1139bl4 11 Citado de Andreas Graeser Plotinus and the Stoics Leiden 1972 p 119 12 NicomacheanEthics 1139a3133 1139b45 13 Ibid 1134a21 14 Ibid 1112bl2 15 Eudemian Ethics 1226al0 16 Ibid 1223b 10 17 Ibid 1224a311224b 15 18 Ibid 1226b 10 19 Ibid 1226b 1 112 Cf Nicomachean Ethics 1 1 12b 1118 20 Para uma excelente discussão sobre Vontade e Liberdade em Kant ver Lewis White Beck A Commentary on Kants Critique of Practical Reason Chicago Londres 1960 cap XL 21 Op cit p 551 22 Hans Jonas Augustin und das paulinische Freiheitsproblem 2a ed Gottingen 1965 ver cspecialmentc cap Ill publicado como Philosophical Meditation on the Seventh Chapter of Pauls Epistle to the Romans in The Future of our Religious Past ed James M Robinson Londres Nova Iorque 1971 pp 333350 23 Metamorphoses Livro VII 11 2021 Video meliora proboque deteriora sequor 24 Chagigah II 1 Citado de Hans Blumenberg Paradigmen zu einer Metaphorologie Bonn 1960 p 26 n 38 25 Livro XI cap xii e xxx 26 Ver Discourses Livro II cap xix 27 Fragments 23 28 The Mammal 23 e 33 29 Discourses Livro II cap 16 30 Todos os trabalhos que temos inclusive os Discourses são aparentemente quase um registro estenográfico de suas conferências e discussões informais anotadas c compiladas por um de seus alunos Arriam Ver Whitney J Oates Introdução Geral para seu The Stoic and Epicurean Philosophers Modern Library Nova Iorque 1940 cuja tradução sigo frequentemente 31 Discourses Livro I cap xv 32 Ibid Livro II cap xviii 33 Ibid Livro I cap xxvii 34 Ibid Livro II cap i 35 Ibid Livro II cap xvi 36 The Manual 23 e 33 37 Discourses Livro II cap xvi 38 Ibid Livro I cap i 39 Ibid 40 Ibid Livro I cap xvii 41 Phisic 188b30 42 Discourses Livro I cap xvii 43 Ibid Livro II cap xi 44 Ibid Livro II cap x 45 Ibid Livro III cap xiv 46 The Manual 1 47 Fragments 1 48 Ibid 8 49 Discourses Livro I cap i 50 The Manual 30 51 Discourses Livro I cap xxv 52 Ibid Livro I cap ix 53 Ibid Livro I cap xxv Grifo nosso 54 Le Mythe de Sisyphe Paris 1942 55 De Trinitate Livro XIII vii 10 56 Ibid viii 11 57 Discourses Livro II cap x 58 Ibid Livro II cap xvii 59 The Manual 8 60 Fragments 8 61 In De Libero Arbítrio Livro III vviii 62 Discourses Livro II cap xviii 63 Ibid Livro II cap viii 64 The Manual 5148 65 Frag 149 Enarrationes in Psalmos Patrologiae Latina JP Migne Paris 185466 vol 37 CXXXIV 16 66 Paul Oskar Kristeller com um pouco mais de cuidado diz que Santo Agostinho é provavelmente o maior filósofo grego da Antigüidade clássica Ver Renaissance Concepts of Man Harper Torchbooks Nova Iorque 1972 p 149 67 On the Trinity Livro 13 iv 7 Bead certe inquit Cicero omnes esse volumus 68 O vitae philosophia dux Tusculanae Disputationes Livro V cap 2 69 Citado com aprovação de um escritor romano Varro em The City of God Livro XIX i 3 Nulla est homini causa philosophandi nisi ut beatus sit 70 Para a importância e profundidade desta questão ver especialmente On the Trinity Livro X caps iii e viii Como o espírito pode buscar a si mesmo e encontrarse é uma questão singular Aonde vai para procurar e donde vem para encontrar 71 Confessions Livro XI especialmente cap xiv e xxii 72 Peter Brown Augustine of Hippo Berkeley e Los Angeles 1967 p 123 73 Ibid 112 74 On Free Choice of the Will Livro I cap i e ii 75 Ibid cap xvi 117 e 118 76 Confessions Livro VIII cap v 77 Ibid cap viii 78 Uma explicação detalhada sobre a derivação de voluntas de velle e potestas de posse aparece em The Spirit and the Letter arts 5258 um trabalho da fase final interessado na questão A fé está ela mesma em nosso poder in Morgenbesser e Walsh op cit p 22 79 On Free Choice of the Will Livro III cap iii 27 cf ibid Livro I cap xii 86 e Retractationes Livro I cap ix 3 80 Epistolae VTl 5 On Free Choice of the Will Livro III cap i 810 cap iii 33 81 Ver Etienne Gilson Jean Duns Scot introduction à ses positions fondamentales Paris 1952 p 657 82 On Free Choice of the Will Livro III cap xxv 83 Ibid cap xvii 84 On Grace and Free Will cap xliv 85 Confessions Livro VIII cap iii 68 86 On Free Choice of the Will Livro III caps viviii Lehmann op cit sentença 14 p 16 87 On Free Choice of the Will Livro III cap v 88 Precious Five Collected Poems Nova Iorque p 450 89 Confessions Livro VIII cap viii 90 Ibid cap ix 91 Ibid caps ix e x 92 Ibid cap x 93 Epistolae 157 2 9 55 10 18 Confissões Livro XIII cap ix 94 In An examination of Sir William Hamiltons Philosophy On the Freedom of the Will 1867 citado de Morgenbesser e Walsh op cit pp 5769 Grifo nosso 95 Confessions Livro III cap vi 11 96 Livro IX cap iv 97 Livro XIII cap xi 98 Livro X cap xi 18 99 Ibid Livro XL cap iii 6 100 Ibid cap ii 2 101 Ibid cap iv 7 102 Ibid cap v 8 103 Ibid Livro XII cap iii 3 104 Efrem Bettoni Duns Scotus The Basic Principles of his Philosophy trad Bemardine Bonansea Washington 1961 p 158 Grifo nosso 105 On the Trinity Livro XV cap xxi 41 106 Ibid Livro VIII cap x 107 Ibid Livro X cap viii 11 108 Ibid Livro XI cap ii 5 109 Ibid Livro X cap v7 Grifo nosso 110 Ibid cap xi 17 111 Ibid Livro XI cap v9 112 Ibid Livro X cap v7 113 Ibid cap viii 11 114 Ibid cap v7 Cf Livro XII cap xii xiv xv 115 Ibid Livro XII cap xiv 23 116 Ibid Livro X cap xi 18 117 Ibid Livro XI cap ix 18 118 The City of God Livro XI cap xxviii 119 William H Davis The Freewill Question The Hague 1971 p 29 120 Em sua forma mais extrema como foi sustentada por Santo Agostinho no final da vida a doutrina afirma que as crianças que não recebem o batismo antes de morrer estão condenadas àdanação eterna Isso não pode se justificar fazendo apelo a São Paulo porque essas crianças não podem ainda ter conhecido a fé Só depois que a graça é materializada em um sacramento realizado pela Igreja só depois que a fé foi institucionalizada essa versão da predestinação pode se justificar A graça institucionalizada não é mais um dado da consciência uma experiência do homem interior e portanto não tem interesse para a filosofia tampouco é a rigor uma questão de fé Certamente este está entre os fatos políticos mais importantes no credo cristão do qual não estamos tratando aqui 121 The City of God Livro XI cap xxi 122 Confessions Livro XI cap xiv 123 Ibid caps xx e xxviii 124 Ibid cap xxi 125 Ibid cap xxiv xxvi xxviii 126 Ver especialmente Livros XIXIII de The City ofGod 127 Ibid Livro XII cap xiv 128 Ibid Livro XI cap vi 129 Ibid Livro XII cap xiv 130 Ibid cap xx e xxi 131 Ibid Livro XI cap xxxii 132 Ibid Livro XII cap xxi e xxii 133 Ibid cap vi 134 Ibid Livro XIII cap x 135 B478 Capítulo 3 1 The Spirit of Medieval Philosophy pp 207 e 70 2 Summa Theologica I questão 82 a 1 3 Ibid questão 81 a 3 e questão 83 a 4 4 Duns Scotus citado por Gilson The Spirit of Medieval Philosophy p 52 5 Gilson The Spirit of Medieval Philosophy p 437 6 Em What Is Authority in Between Past and Future tentei mostrar a importância do passado para uma concepção romana de política Ver especialmente a explicação da tríade romana auctoritas religio traditio 7 De Civitate Dei Livro XII cap xiv 8 Op cit I questão 5 a 4 9 Ibid III questão 15 a 3 10 Ibid I questão 15 a 3 11 Ibid I questão 48 a 3 12 Ibid questão 5 questão 49 a 3 13 Citado em ibid questão 49 a 3 14 History of Christian Philosophy in the Middle Age Nova Iorque 1955 p 375 15 Summa Theologica I questão 75 a 6 16 Ibid questão 81 a 3 17 Ibid questão 82 a 4 18 Gilson History of Christian Philosophy in the Middle Age p 766 19 Summa Theologica I questão 29 a 3 Resp 20 Agostinho De Civitate Dei Livro XII cap xxi 21 Summa Theologica I questão 82 a 4 22 Ibid questão 83 a 3 23 Levantado por São Tomás na Summa contra Gentiles III 26 24 Citado de Wilhelm Kahl Die Lehre vom Primat des Willens bei Augustin Duns Scotus und Descartes Estrasburgo 1886 p 61 nota 25 The Divine Comedy Paraíso Canto xviii 1 109 s trad Laurence Binyon Nova Iorque 1949 Assim vês que o homem celestial se funda Mais no ato de ver a Deus Do que no amor que apenas o secunda Tradução livre NT 26 Citado de Gustav Siewerth Thomas von Aquin die menschliche Willesfreiheit Texte ausgewahltmiteinerEinleitungversechenDüsseldorf 1954 p 62 27 Summa Theologica I questão 79 a 2 28 Ibid III questão 9 a 1 29 NicomacheanEthics Livro X 1178bl821 1177b56 30 Summa Theologica III questão 10 a 2 Summa contra Gentiles loc cit 31 Metaphisics 1072b3 32 SummaTheologicaIII questão 1 la3Cf Commentary onSt Pauls Epistle to the Galatians cap 5 lec3 33 Grundlegung zur Metaphysik des Sitten Akademie Ausgabe vol IV 1911 p 429 34 Ver por exemplo a seção IV da edição bilíngüe de Duns Scotus Philosophical Writtings ed e trad Allan Wolter Edinburgo Londres 1962 pp 83 e ss 35 Citado de Khal op cit pp 97 e 99 36 Ver Efrem Bettoni The Originality of the Scotistic Synthesis in John K Ryan e Bemardine M Bonansea John Duns Scotus 1265 1965 Washington 1965 p 34 37 Duns Scotus p 191 Em um contexto diferente entretanto embora ainda no mesmo livro p 144 Bettoni sustenta que em grande parte a originalidade da demonstração scotiana da existência de Deus reside em ser uma síntese de São Tomás e Santo Anselmo 38 Além das obras citadas acima utilizei principalmente as seguintes Emst Stadler Psychologic und Metaphysik der menschlichen Freiheit Munique Paderborn Viena 1971 Ludwig Walter Das Glaubensverstãndnis bei Johannes Scotus Munique Paderborn Viena 1968 Etienne Gilson Jean Duns Scot Johannes Auer Die menschliche Willensfreiheit im Lehrsystem des Thomas von Aquin und Johannes Duns Scotus Munique 1938 Walter Hoeres Der Wille ais reine Vollkommenheit nach Duns Scotus Munique 1962 Robert Prentice The Voluntarism in Duns Scotus in Franciscan Studies vol 28 Annual VI 1968 Berard Vogt The Metaphysics of Human Liberty in Duns Scotus in Proceedings of the American Catholic Philosophical Association vol XVI 1940 39 Citado de Wolter op cit pp 64 73 e 57 40 Citado de Kristeller op cit p 58 41 Citado de Wolter op cit p 162 Tradução da autora 42 Ibid p 161 Trad da autorS 43 Ibid nota 25 seção V p 184 44 Ibid p 73 45 Ibid p 75 46 Ibid p 72 Gilson sustenta que a própria noção de infinito é de origem cristã Os gregos antes da Era Cristã nunca conceberam a infinitude a não ser como uma imperfeição Ver The Spirit of Medieval Philosophy p 55 47 Ver Walter op cit p 130 48 Citado de Stadter op cit p 315 49 Citado de Auer op cit p 86 50 Citado de Vogt op cit p 34 51 Ibid 52 Citado de Kahl op cit pp 8687 53 Bettoni Duns Scotus p 76 54 Ver Bernardine M Bonansea Duns Scotus Voluntarism in Ryan e Bonansea op cit p 92 Nonpossum velle esse miserum sed ex hoc non sequitur ergo necessário volo beatitudinem quia nullum velle necessário elicitura voluntate p 93 nota 38 55 Ver ibid pp 8990 e nota 28 Bonansea enumera as passagens que parecem indicar a possibilidade de a vontade buscar o mal como mal p 89 nota 25 56 Citado de Vogt op cit p 31 57 Bonansea op cit p 94 nota44 58 Ver Vogt op cit p 29 e Bonansea op cit p 86 nota 13 Voluntas naturalis non est voluntas nec velle naturale est velle 59 Citado de Hoeres op cit pp 113114 60 Ibid p 151 A citação é de Auer op cit p 149 61 Hoeres op cit p 120 Enquanto a edição definitiva das obras de Duns Scotus não estiver completa algumas questões que dizem respeito a seus ensinamentos sobre tais temas permanecerão em aberto 62 Bettoni Duns Scotus p 187 63 Ibid 188 64 Ver Stadter op cit especialmente a seção sobre Petrus Johannes Olivi pp 144167 65 Ver Bettoni Duns Scotus p 193 nota 66 Tais frases ocorrem vez por outra Para uma discussão deste tipo de introspecção ver Béraud de SaintMaurice The Contemporary Significance of Duns Scotus Philosophy in Ryan e Bonansea op cit p 354 e Ephrem Longpré The Psychology of Duns Scotus and its Modernity in The Franciscan Educational Conference vol XII 1931 67 Para a prova da contingência Scotus invoca a autoridade de Avicenna citando de sua Metaphisics Aqueles que negam o primeiro princípio isto é que Algum ser é contingente devem ser açoitados ou queimados até que admitam que não é a mesma coisa ser queimado ou chicoteado e não ser queimado ou chicoteado Ver Arthur Hyman e James J Walsh Philosophy in the Middle Ages Nova lorque 1967 p 92 68 Qualquer um que esteja acostumado com as disputas medievais entre as escolas não deixa de se surpreender com seu espírito contencioso um tipo de saber contencioso Francis Bacon que objetivava acima de tudo uma vitória efêmera As sátiras de Erasmo e Rabelais assim como os ataques de Francis Bacon atestam uma atmosfera nas escolas que deve ter sido bastante desagradável para aqueles que estavam fazendo filosofia de fato Para Scotus ver Saint Maurice in Ryan e Bonsnsea op cit pp 354358 69 Citado de Hyman e Walsh op cit p 597 70 Bonansea op cit p 109 nota 90 71 Hoeres op cit p 121 72 Bonansea op cit p 89 73 Stadter op cit p 193 74 Ibid 75 Wolter op cit p 80 76 Aristóteles Phisics 256b 10 77 Auer op cit p 169 78 Para a teoria das causas concorrentes ver Bonansea op cit pp 109110 As citações são basicamente de P Ch Balie Une question inédite de J Duns Scots sur la volonté in Recherches de théologie ancienne et médiévale vol 3 1931 79 Wolter op cit p 55 80 Cf o insight de Bergson citado no do capítulo 1 do presente volume 81 Citado de Hoeres op cit p Ill que infelizmente não fornece qualquer original em latim para a frase Denn alies Vergangene ist schlechthin notwendig 82 Ver Bonansea op cit p 95 83 Citado de Hyman e Walsh op cit p 596 84 Ver Vogt op cit p 29 85 Auer op cit p 152 86 Bettoni Duns Scotus p 158 87 Wolter op cit pp 57 e 177 88 Hoeres op cit p 191 89 Stadter op cit pp 288289 90 Citado em Heidegger Was Heisst Denken Tübingen 1954 p 41 91 Citado de Vogt op cit p 93 92 Hoeres op cit p 197 93 Bettoni Duns Scotus p 122 94 Bonansea op cit p 120 95 Ibid p 119 96 Ibidp 120 97 On the Trinity Livro X cap viii 11 98 Bettoni Duns Scotus p 40 99 Utilizei para minha interpretação o seguinte texto latino tirado da Opus Oxoniense IV díst 49 questão 4 números 59 Si enim accipiatur quietatio pro consequente operationem perfectam concedo quod illam quietationem praecedit perfecta consecutio finis si autem accipiatur quietatio pro actu quietativo in fine dico quod actus amandi qui naturaliter praecedit delectationem quietat illo modo quia potentia operativa non quietatur in obiecto nisi per operationem perfectam per quam attingit obiectum Proponho a seguinte tradução Pois se a quietude é aceita como algo que se segue a uma operação perfeita admito que uma obtenção perfeita do fim precede esta quietude Se entretanto admito que a quietude está em um ato que reside em seu próprio fim afirmo que o ato de amor que precede o prazer traz a calma de um modo que a faculdade da ação só termina no objeto por meio da operação perfeita com a qual se obtém o objeto 100 B643b645trad Smith pp 515516 Capítulo 4 1 Lewis White Beck op cit p 41 2 Para Pascal ver Pensées n 81 Ed Pantheon n 438 257 Ed Pléiade e Sayings Attributed to Pascal in Pensée Ed Penguin p 356 Para Donne ver An Anatomy of the World The First Anniversary 3 The Will To Power n 487 p 269 4 Ibid n419 p 225 5 Heidegger in Uberwindung der Metaphysik op cit p 83 6 Para esta nota e para o que vem a seguir ver especialmente Edgar Zilsel The Genesis of the Concept of Scientific Progress in Journal of the History of Ideas 1945 vol VI p 3 7 Zilsel encontra portanto a gênese do conceito de Progresso na experiência e na atitude intelectual dos artesãos superiores 8 Préface pour le Traité du Vide Ed Pléiade p 310 9 VII 803c 10 Ver Kant Idea for a Universal History from a Cosmopolitan Point of View 1784 Introdução in Kant on History ed Lewis White Beck Library of Liberal Arts Indianapolis Nova Iorque 1963 pp 1112 11 Ibid Terceira Tese Trad da autora 12 Schelling Of Human Freedom p 351 13 Ibid p 350 14 Trad F D Wieck e J G Gray Nova Iorque Evanston Londres 1968 p 91 15 Vortrdge undAufsatze p 89 16 The Will to Power n 419 pp 225226 17 Critique of Pure Reason B478 18 Human All Too Human n 2 in The Portable Nietzsche p 51 19 The Will to Power n 90 p 55 20 Ibid n 1041 p 536 21 An Anatomy of the World The First Anniversary E a nova filosofia de tudo duvida Ao Elemento fogo estinguelhe a vida O Sol se perdeu e a Terra e a sabedoria humana não há Que na busca destes possa ele guiar Está tudo em pedaços a coerência toda no chão Tudo é só estoque e tudo Relação Príncipe Vassalo Pai Filho são coisas esquecidas tradução livre NT 22 The Will to Power n 95 p 59 23 Ibid n 84 p 52 24 Ibid n 668 p 353 Trad da autora 25 Nietzsche vol I p 70 26 N 19 27 Ibid grifo nosso 28 The Will to Power n 693 p 369 29 èidn417p 224 30 Ver cap Ill p 142 31 In Aufzeichnung zum VI Teil von Also Sprach Zarathustra citado de Heidegger WasHeisst Denken p 46 32 The Will to Power n 667 p 352 Trad da autora 33 The Gay Science trad Walter Kaufmann Vintage Books Nova Iorque 1974 Livro VI n 310 pp 247248 34 Ver O Pensar cap II 35 Toward a Genealogy of Morals n 28 36 The Will to Power n 689 p 368 37 The Gay Science Livro VI n 341 pp 273274 38 The Will to Power n 664 p 350 39 Ibid n 666 pp 351352 Trad da autora 40 Thus Spoke Zarathustra parte II On SelfOvercoming in The Portable Nietzsche p 227 41 The Will to Power n 660 p 349 42 Thus Spoke Zarathustra parte II On Redemption in The Portable Nietzsche p 251 43 The Will to Power n 585A pp 316319 44 The Gay Science Livro IV n 324 Trad da autora 45 Ver cap II pp 7384 46 The Will to Power n 585A p 318 47 Ver Twilight of The Idols especialmente The Four Great Errors in The Portable Nietzsche pp 500501 48 Thus Spoke Zarathustra parte II in The Portable Nietzsche p 252 49 The Will to Power n 708 pp 377378 50 The Gay Science Livro IV n 276 p 223 51 Thus Spoke Zarathustra parte III Before Sunrise também The Seven Seals ou The Yes and Amen Song in The Portable Nietzsche pp 276279 e 340343 52 Ver o excelente Index de toda obra de Heidegger inclusive Wegmarken 1968 por Hildegard Feick 2a ed Tübingen 1968 No item Wille Wollen o Index remete o leitor a Sorge Subjekt e cita uma frase do Sein und Zeit Wollen und Wünschen sind im Dasein als Sorge verwurzelt Mencionei que a ênfase moderna no futuro como o tempo verbal predominante mostrouse na escolha heideggeriana do Cuidado como o existencial dominante em suas análises iniciais da existência humana Se relemos as seções correspondentes em Sein und Zeit especialmente o n 41 fica evidente que mais tarde ele usou certas características do Cuidado em sua análise da Vontade 53 Nova Iorque 1971 p 112 54 Primeira ed Frankfurt 1949 p 17 55 Die Selbstbehauptung der deutschen Universitdt A autoafirmação da Universidade Alemã 56 Mehta op cit p 43 57 Brief uber den Humanismus p 47 Platons Lehre vonder Wahreit Berna 1947 p 57 trad citada de Mehta op cit p 114 58 Brief über den Humanismus p 47 59 Vol II p 468 60 Brief über den Humanismus p 53 trad citada de Mehta op cit p 114 61 Brief über den Humanismus pp 4647 62 Nietzsche vol I p 624 63 The Will to Power n 708 Trad da autora 64 Nietzsche vol II p 272 In Mehta op cit p 179 65 Nietzsche vol I p 6364 66 Ibid p 161 67 Ibid vol II p 462 68 Ibid p 265 69 Ibid p 267 70 Pp 9293 Trad da autora 71 Gelassenheit p 33 Discourse on Thinking p 60 72 Laws I 644 73 The Will to Power n 90 p 55 74 Die Technik und die Kehre Pfulllingen 1962 p 40 75 Citado de Jean Beaufret Dialogue avec Heidegger Paris 1974 vol Ill p 204 76 Valéry Tel Quel in Oeuvres de Paul Valery ed Pléiade Dijon 1960 vol II p 560 77 Sein und Zeit n 57 pp 276277 78 Ibid n 53 p 261 79 Vortrage und Aufsdtze pp 177 e 256 80 N 54 p 267 81 Ibid n 41 p 187en53p 263 82 Bergson Time and Free Will pp 128130 133 83 Ibid 138143 cfp 183 84 Bergson Creative Mind trad MabelleL Andison Nova lorque 1946 pp 27 e22 85 Pp 6364 86 N 34 p 162 87 Pp 329 e 470471 88 N 5459 Ver especialmente pp 268 e ss 89 Ibid n 58 p 287 90 Ibid p 284 91 Ibid n 5960 pp 294295 92 Ibid n 60 p 300 93 Ibid n 34 p 163 94 Ibid n 59 p 294 95 Ibid n 5960 p 295 96 Utilizo e cito muito a tradução de David Farrell Kreil primeiramente publicada in Arion New Series Vol 1 n4 1975 pp 580581 97 A citação completa de que extraí o trecho diz o seguinte em minha própria tradução Wir Leben ais ob wir pochend vor den Toren stãnden die noch geschlossen sind Bis heute geschieht vielleicht im ganz Intimen was so noch keine Welt begründet sondern nur dem Einzelnen sich schenkt was aber vielleicht eine Welt begründen wird wenn es aus der Zerstreuung sich begegnet Suponho que a conferência em Genebra foi publicada na revista Wandlung mas foi utilizada no prefácio a Sechs Essays Heidelberg 1948 uma coleção de ensaios que escrevi durante a década de 40 98 The Anaximander Fragment Arion p 584 99 Ibid p 596 100 Brief über den Humanismus agora in Wegmarken Frankfurt 1967 p 191 101 The Anaximander Fragment Arion p 595 102 Frag 123 103 P 591 104 Ibid p 596 105 Ibid p 591 106 Ibid p 618 107 Ibid p 591 108 Ibid p 592 109 Ibid p 609 110 Ibid p 626 111 Poema inédito escrito por volta de 1950 112 P 611 113 Ibid p 609 114 Para evitar equívocos ambas as citações são tão famosas que já fazem parte da língua alemã Todo falante de alemão pensa geralmente nesses termos sem necessariamente ter sido influenciado por Goethe 115 P 623 116 Heidegger Sein und Zeit n 57 117 Thomas Kuhn The Structure of Scientific Revolutions Chicago 1962 p 172 118 The Lives of a Cell Nova lorque 1974 119 Ver Newsweek 24 de junho de 1974 p 89 120 Ibid 121 Esprit des Lois Livro XII cap 2 122 Ibid Livro XI cap 6 123 Citado da introdução de Franz Neumann a The Spirit of the Laws de Montesquieu trad Thomas Nugent Nova lorque 1949 p xl 124 Esprit des Lois Livro XI cap 3 125 Ibid Livro I cap 1 Livro XXVI cap 1 e 2 126 Ver por exemplo R W B Lewis Homer and Virgil The Double Themes Furioso Primavera 1950 p 24 As repetidas referências explícitas à Ilíada nesses livros da Eneida não aparecem como paralelos mas como reversões 127 Critique of Pure Reason B478 128 Aeneí Livro III 112 in Virgils Works trad William C McDermott Modem Library Nova lorque 1950 p 44 129 A Quarta Écloga 130 Tomei de empréstimo este termo bemachado para comunidades do ensaio altamente instrutivo The Character of the Modem European State in On Human Conduct de Michael Oakeshott Oxford 1975 p 199 131 De Republica I 7 132 Oeuvres ed Laponneraye 1840 vol Ill p 623 The Works of John Adams ed Charles Francis Adams Boston 1850 1856 vol VI 1851 p 281 133 VI 790794 134 A Quarta Écloga 135 Existe uma vasta literatura sobre o assunto bastante instrutiva é Die Aeneis und Homer de Georg Nikolaus Knauer Gottingen 1964 A seguinte passagem de Virgílio Homeraujfassung scheint mir von der spezifisch rômischen Denkform personlicher Verpflichtung gepragt zu sein die dem Romer auferlegte nach dem aus der Vergangenheit iiberkommenem Vorbild der Ahnen Ruhm und Glanz der eigenen Familie und des Staates durch Verwirklichung im Heute fiir die Zukunft der Nachfahren zu bewahren p 357 136 Aeneid Livro VII 206 137 Citado de George Steiner After Babel Nova Iorque e Londres 1975 p 132 138 R J E Clausius 18221888 físico e matemático alemão que enunciou a segunda lei da termodinâmica introduziu o princípio da entropia energia não disponível para trabalho útil em um sistema termodinâmico representada pelo símbolo j Postulando que a entropia do universo está aumentando continuamente ele previu que o universo se extinguiria pela morte do calor quando tudo dentro dele chegasse à mesma temperatura Columbia Encyclopedia 3a ed Ed 139 De Civitate Dei Livro XII cap xx Apêndice O Julgar Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant Sabemos pelo próprio testemunho de Kant que o momento decisivo de sua vida foi a descoberta das faculdades cognitivas do espírito humano e de suas limitações em 1770 algo que lhe ocupou mais de dez anos para ser elaborado e publicado na forma da Crítica da razão pura Sabemos também através de suas cartas o que este labor imenso de tantos anos significou para seus outros planos e idéias Ele escreve sobre este tema principal que detinha e obstruía como uma barragem todos os outros assuntos que esperava abordar e publicar Kant dizia que era como uma pedra em seu caminho que ele só poderia prosseguir depois que fosse removida Antes do acontecimento de 1770 tivera a intenção de escrever e publicar em breve a Metafísica dos Costumes que acabou sendo escrita e publicada aproximadamente trinta anos mais tarde Mas naquele tempo o livro foi anunciado com o título de Crítica do gosto moral Quando Kant chegou finalmente à terceira Crítica ainda a chamava inicialmente de Crítica do Gosto Então duas coisas aconteceram por trás do gosto um tópico popular durante todo o século XVIII ele descobrira uma faculdade humana inteiramente nova a saber o juízo Ao mesmo tempo porém retirou da competência da nova faculdade as proposições morais Em outras palavras algo além do gosto agora decidiría sobre o belo e o feio a questão moral do certo e do errado porém não seria decidida nem pelo gosto nem pelo juízo mas somente pela razão Os elos mantidos entre as duas partes da Crítica do juízo estão mais intimamente relacionados com o político do que com qualquer outra coisa nas demais Críticas Os elos mais importantes são primeiramente o de que em nenhuma das duas partes Kant fala do homem como um ser inteligível ou cognitivo A palavra verdade não aparece A primeira parte fala dos homens no plural assim como vivem em sociedades a segunda fala das espécies humanas A diferença mais decisiva entre a Crítica da razão prática e a Crítica do juízo é que as leis morais da primeira são válidas para todos os seres inteligíveis enquanto as regras da segunda têm a validade rigorosamente limitada aos seres humanos na Terra E o segundo elo reside no fato de que a faculdade do juízo lida com particulares que como tais contêm algo contingente em relação ao universal que é aquilo com que o pensamento normalmente está lidando Esses particulares são de dois tipos a primeira parte da Crítica do juízo lida com objetos do juízo propriamente ditos como por exemplo um objeto que dizemos ser belo sem que sejamos capazes de subsumilo em uma categoria geral Quando dizemos Que rosa bela não chegamos a este juízo dizendo antes todas as rosas são belas esta flor é uma rosa logo ela é bela O outro tipo contemplado na segunda parte é a impossibilidade de derivar qualquer produto particular da natureza de causas gerais Absolutamente nenhuma razão humana na verdade nenhuma razão que seja finita como a nossa em qualidade por mais que venha a ultrapassála em grau pode aspirar a entender sequer uma folha de capim por simples causas mecânicas Causas mecânicas na terminologia de Kant significa causas naturais opõese a causas técnicas com o que ele quer designar causas artificiais isto é aquilo pelo que algo é fabricado com uma finalidade A ênfase aqui recai sobre o entender sobre como posso entender e não só explicar por que razão simplesmente há capim e então por que há esta folha particular de capim O juízo do particular isto é belo isto é feio isto é certo isto é errado não tem lugar na filosofia moral de Kant O juízo não é razão prática a razão prática raciocina e nos diz o que fazer e o que não fazer estabelece a lei e é idêntica à vontade e a vontade profere comandos fala em imperativos O juízo ao contrário surge de um prazer meramente contemplativo ou de um deleite inativo untatiges Wohlgefallen Este sentimento de prazer contemplativo se chama gosto e a Crítica do juízo intitulavase originalmente Crítica do gosto Se é que a filosofia prática fala de prazer contemplativo mencionao somente de passagem e não como se o conceito fosse dela proveniente Isto não soa plausível Como é que prazer contemplativo e deleite inativo poderíam ter qualquer coisa a ver com prática Isto não é uma prova conclusiva de que Kant decidira que sua preocupação com o particular e com o contingente era uma coisa do passado e tinha sido um assunto um tanto marginal E ainda assim veremos que sua posição final sobre a Revolução Francesa um acontecimento que teve um papel central em sua velhice quando esperava todos os dias muito impaciente pelos jornais foi decidida por essa atitude dos meros espectadores daqueles que não entram no jogo apenas o acompanham com uma participação ansiosa passional que surgia do mero prazer contemplativo e do deleite inativo O alargamento do espírito desempenha um papel crucial na Crítica do juízo Ele é alcançado ao compararmos nosso juízo com o juízo possível dos outros e não com seu juízo real e ao nos colocarmos no lugar de qualquer outro homem A faculdade que toma isto possível chamase imaginação O pensamento crítico é possível só onde os pontos de vista dos outros estão abertos à inspeção O pensamento crítico portanto sendo ainda uma atividade solitária não se exclui de todos os outros Por meio da imaginação ele toma os outros presentes movendose assim potencialmente em um espaço que é público aberto a todos os lados em outras palavras adota a posição do cidadão kantiano do mundo Pensar com a mentalidade alargada isto significa treinar nossa imaginação a visitar Devo alertálos aqui sobre um equívoco muito comum e fácil de acontecer O truque do pensamento crítico não consiste em uma empatia imensamente alargada através da qual poderiamos saber o que se passa de fato na cabeça dos outros Pensar segundo o entendimento de Kant significa Selbstdenken pensar por si mesmo que é a máxima de uma razão nunca passiva Estar propenso a tal passividade chamase preconceito e o esclarecimento é antes de mais nada liberarse do preconceito Aceitar o que passa pelos espíritos daqueles cujo ponto de vista na verdade o lugar de onde vêem as condições a que estão sujeitos sempre diferentes de indivíduo para indivíduo de uma classe ou de um grupo comparados a outros não é o meu isto nada mais seria que aceitar passivamente seus pensamentos isto é trocar os preconceitos próprios à minha posição pelos preconceitos deles O pensamento alargado resulta primeiramente de uma abstração das limitações que se juntam contingentemente a nosso próprio juízo da desconsideração de suas condições subjetivas privadas que a tantos impõem limites isto é da desconsideração daquilo que normalmente chamamos de interesse próprio e que segundo Kant não é esclarecido ou capaz de esclarecer mas é na verdade limitador Quanto maior a região em que o indivíduo esclarecido é capaz de moverse de ponto de vista a ponto de vista mais geral será seu pensamento Esta generalidade entretanto não é a generalidade do conceito do conceito casa no qual podemos então subsumir todas as edificações concretas Está ao contrário intimamente ligado aos particulares com as condições particulares dos pontos de vista pelos quais devemos passar para que cheguemos a nosso próprio ponto de vista geral Este ponto de vista geral foi mencionado anteriormente como sendo a imparcialidade é um ponto de vista a partir do qual podemos considerar assistir formar nossos juízos ou como diz o próprio Kant em que podemos refletir sobre os assuntos humanos Não nos diz como agir No próprio Kant esta perplexidade vem para o primeiro plano na atitude aparentemente contraditória em seus últimos anos de uma admiração quase ilimitada pela Revolução Francesa por um lado e de sua igualmente quase ilimitada oposição a qualquer iniciativa revolucionária por parte dos cidadãos por outro A reação de Kant à primeira e mesmo à segunda vista não é de modo algum ambígua Ele nunca hesitou em sua opinião sobre a grandeza daquilo que chamava de evento recente e quase nunca hesitou em sua condenação a todos aqueles que preparam tal evento Este evento não consiste em feitos momentosos ou em malfeitorias cometidas por homens pelos quais o que era grande entre os homens toma se pequeno ou o que era pequeno tomase grande tampouco em esplêndidas estruturas políticas antigas que desaparecem como que em um passe de mágica enquanto outras adiantamse tomando seu lugar como se viessem das profundezas da terra Não nada disso Tratase simplesmente do modo de pensar dos espectadores que se revela publicamente no grande jogo das transformações A revolução de um povo aquinhoado que vimos desabrochar em nosso tempo pode ter êxito ou falhar pode estar tão repleta de miséria e de atrocidades que um homem sensato ousando esperar executála com sucesso pela segunda vez não chegue a resolverse a fazêla com tais custos esta revolução repito encontra nos corações de todos os espectadores que não estão engajados no jogo uma participação ansiosa que beira o entusiasmo com que exaltação o público não envolvido que assiste é solidário sem a menor intenção de ajudar Sem tal participação solidária o significado da ocorrência seria completamente diferente ou simplesmente não existiría Pois essa solidariedade é o que inspira a esperança a esperança de que depois de muitas revoluções com todos os seus efeitos transformadores a finalidade maior da natureza uma existência cosmopolita dentro da qual todas as capacidades originais da raça humana possam ser desenvolvidas seja finalmente alcançada Não se deve concluir disso entretanto que Kant de alguma forma tomasse minimamente o partido dos futuros homens de revolução Esses direitos permanecem sempre como uma idéia que só pode ser executada sob a condição de que os meios empregados para isso sejam compatíveis com a moralidade Essa condição limitadora não deve ser ultrapassada pelas pessoas que não podem portanto perseguir seus direitos através da revolução que é sempre injusta E Se uma revolução violenta causada por uma constituição ruim introduz por meios ilegais uma constituição mais legal não seria permitido que as pessoas voltassem à constituição anterior mas enquanto durasse a revolução toda pessoa que aberta ou secretámente dela tomasse parte incorrería com justiça na punição que cabe aos que se rebelam O que se vê aqui é o conflito entre o princípio segundo o qual se age e o princípio segundo o qual se julga Kant declarou mais de uma vez sua opinião sobre a guerra e nunca de modo tão enfático quanto na Crítica do juízo onde ele discute o tópico de modo bastante característico na seção sobre o Sublime O que vem a seristo que mesmo para os selvagens é um objeto da maior admiração E um homem que não recua diante de nada que nada teme e que portanto não sucumbe frente ao perigo Mesmo no estado mais alto de civilização esta veneração peculiar pelo soldado permanece porque mesmo esses reconhecem que seu espírito não se subjuga ao perigo Portanto na comparação entre um estadista e um general o juízo estético elege este último A própria guerra tem algo de sublime em si Por outro lado uma paz longa geralmente leva à predominância de um espírito comercial e junto com ele do egoísmo vil da covardia e da efeminação aviltando a disposição do povo Este é o juízo do espectador isto é juízo estético Não obstante não só a guerra um empreendimento não intencional provocado pelas paixões desenfreadas dos homens pode realmente servir em virtude de sua própria falta de sentido como uma preparação para a paz cosmopolita final eventualmente a simples exaustão terá de impor aquilo que nem a razão nem a boa vontade terão sido capazes de realizar mas também a despeito das terríveis aflições que traz consigo quando visita a raça humana e das talvez maiores aflições com as quais a preparação constante para ela no tempo de paz oprime esta raça é ainda assim um motivo para desenvolver ao extremo todos os talentos úteis à cultura Estes insights sobre o juízo estético e reflexionante não têm conseqüências práticas para a ação No que diz respeito à ação não há dúvida de que a razão práticamoral pronuncia dentro de nós o seguinte veto irresistível Não deve haver guerra Assim não é mais uma questão de se a paz perpétua é possível ou não ou de se não estaremos talvez equivocados em nosso juízo teórico se pressupomos que ela é possível Pelo contrário temos simplesmente que agir como se ela pudesse realmente ocorrer mesmo se o cumprimento desta intenção pacífica fosse permanecer para sempre uma devotada esperança pois fazer isto é nosso dever Mas essas máximas para a ação não anulam o juízo estético e reflexionante Em outras palavras muito embora Kant sempre agisse pela paz conhecia e tinha em mente o seu juízo Se tivesse agido com base no conhecimento adquirido como espectador teria sido no interior do próprio espírito um criminoso Se tivesse esquecido por causa deste dever moral seus insights como espectador teria se transformado naquilo que tantos homens bons envolvidos e engajados nos assuntos públicos tendem a ser um tolo idealista Uma vez que Kant não escreveu sua filosofia política a melhor maneira de descobrir o que ele pensava sobre este assunto é nos debruçarmos sobre a sua Crítica do juízo estético em que ao discutir a produção de obras de arte em suas relações com o gosto que julga e decide sobre elas ele se depara com um problema análogo semelhante Somos inclinados a pensar que para julgar um espetáculo devese ter em primeiro lugar o espetáculo que o espectador é secundário em relação ao ator sem levar em conta que ninguém em seu juízo perfeito poria em cartaz um espetáculo sem estar seguro de haver espectadores para assistilo Kant está convencido de que o mundo sem o homem seria um deserto e um mundo sem o homem significa sem espectador Na discussão do juízo estético a distinção é que é necessário o gênio para a produção das obras de arte enquanto para julgar e decidir se os objetos são belos ou não não é preciso nada além nós diriamos mas não Kant do gosto Para julgar objetos belos o gosto é necessário para sua produção o gênio é preciso O gênio segundo Kant é uma questão de imaginação produtiva e de originalidade o gosto é uma questão de juízo Ele levanta a questão qual das duas é a faculdade mais nobre qual é a condição sine qua non que devemos observar no julgar da arte como arte bela e o faz pressupondo é claro que embora a maioria dos juizes da beleza não tenham a faculdade de imaginação produtiva a que ele chama gênio aos poucos dotados com o gênio não falta a faculdade do gosto E a resposta é a seguinte A abundância e a originalidade de idéias são menos necessárias à beleza do que o acordo entre a imaginação em sua liberdade e a conformidade à lei do entendimento que se chama gosto Pois toda a abundância das primeiras só produz na liberdade sem lei absurdos por outro lado o juízo é a faculdade pela qual elas são ajustadas ao entendimento O gosto assim como o juízo em geral é a disciplina ou treinamento do gênio cortalhe as asas orienta traz clareza e ordem aos pensamentos do gênio toma as idéias suscetíveis de assentimento permanente e geral tomandoas capazes de ser seguidas por outros e capazes também de uma cultura sempre progressiva Se então no conflito entre essas duas propriedades em um produto algo tem de ser sacrificado há de ser principalmente do lado do gênio sem o qual não existiría nada para o juízo julgar Mas Kant diz explicitamente que para a arte bela imaginação intelecto espírito e gosto são requisitos e acrescenta em uma nota que as três primeiras faculdades estão unidas por meio da quarta isto é pelo gosto ou seja pelo juízo O espírito além disso faculdade especial distinta da razão do intelecto e da imaginação capacita o gênio a encontrar uma expressão para as idéias pela qual o estado de espírito subjetivo por elas ocasionado pode ser comunicado a outros Em outras palavras o espírito ou seja aquilo que inspira o gênio e somente ele e aquilo que nenhuma ciência é capaz de ensinar e que nenhum trabalho árduo permite aprender consiste em expressar o elemento inefável no estado de espírito Gemützustand que certas representações despertam em todos nós mas para o qual não temos palavras e não poderiamos portanto comunicar sem a ajuda do gênio não poderiamos comunicálas uns para os outros é uma tarefa que cabe ao gênio tomar este estado de espírito comunicável em geral A faculdade que guia esta comunicabilidade é o gosto e gosto ou juízo não são privilégio do gênio A condição sine qua non para a existência do objeto belo é sua comunicabilidade o juízo do espectador cria o espaço sem o qual não seria absolutamente possível a aparição de tais objetos O domínio público é constituído pelos críticos e pelos espectadores e não pelos atores ou artesãos E este crítico e espectador está em cada um dos atores ou artesãos sem esta faculdade de criticar de julgar aquele que faz ou fabrica ficaria tão isolado do espectador que nem sequer seria percebido Ou falando de outro modo ainda em termos kantianos a própria originalidade do artista ou a novidade do ator depende que ele se faça entender por aqueles que não são artistas ou atores E se podemos falar em gênio no singular em virtude de sua originalidade nunca podemos falar desse modo sobre o espectador Espírito neste contexto traduz spirit Gemut Gemützustand NT espectadores existem somente no plural O espectador não se envolve no ato mas está sempre envolvido com seus companheiros espectadores Não tem em comum com aquele que faz a faculdade do gênio a originalidade ou com o ator a faculdade da novidade a faculdade que compartilham é a do juízo No que diz respeito ao fazer o insight é pelo menos tão antigo quanto a Antigüidade latina em oposição à grega Vamos encontrar sua expressão pela primeira vez em Sobre os oradores de Cícero Pois todos discriminam diiudicare distinguem entre o certo e o errado em questões de arte e proporção por meio de algum sentido silencioso sem qualquer conhecimento de arte e proporção e enquanto podem fazêlo no caso de pinturas e estátuas e em outros trabalhos do gênero para cujo entendimento a natureza lhes concedeu menos subsídios mostram muito mais esta discriminação no julgar de ritmos e pronúncias de palavras uma vez que estas enraizamse infixa nos sentidos comuns e no das coisas que a natureza quis que ninguém fosse de todo incapaz de sentir e experimentar expertus E prossegue observando que é verdadeiramente maravilhoso e formidável o modo como é pequena a diferença entre o instruído e o ignorante no julgar enquanto há a maior das diferenças no fazer Kant bem nesse estilo observa em sua Antropologia que a insanidade consiste em haver perdido este senso comum que nos capacita a julgar como espectadores e o oposto disso é um sensus privatus um senso privado que ele também chama de Eingensinn lógico dando a entender que nossa faculdade lógica a faculdade que nos capacita a tirar conclusões a partir de premissas poderia de fato funcionar sem a comunicação só que nesse caso isto é no caso de a insanidade ter causado a perda deste senso comum ela levaria a resultados insanos precisamente por ter se separado da experiência que só pode ser válida e validada na presença de outros O aspecto mais surpreendente desta questão é que o senso comum a faculdade de julgar e discriminar entre o certo e o errado deva basearse no sentido do gosto De nossos cinco sentidos três nos dão claramente objetos do mundo exterior e são portanto facilmente comunicáveis Visão audição e tato lidam direta e de certo modo objetivamente com objetos olfato e gosto nos dão sensações que são inteiramente privadas e incomunicáveis o gosto e o cheiro que sinto não podem absolutamente ser expressos em palavras Parecem ser os sentidos privados por definição Além disso os três sentidos objetivos têm em comum o fato de serem capazes de representação de ter presente algo que está ausente posso lembrarme de um edifício de uma melodia da textura do veludo Esta faculdade chama se em Kant Imaginação disso nem o gosto nem o olfato são capazes Por outro lado são bem claramente estes os sentidos discriminatórios podemos nos furtar a julgar o que vemos e embora isto seja mais difícil podemos nos furtar a julgar o que ouvimos ou tocamos Mas em questões de gosto e cheiro o aprazme ou o não me apraz é imediato e avassalador E o prazer ou o desprazer são por sua vez inteiramente privados Por que então o gosto deveria e não só em Kant mas desde Graciano ser elevado tomandose o veículo da faculdade espiritual de julgar E o juízo por sua vez quer dizer não o juízo simplesmente cognitivo que reside nos sentidos que nos dão os objetos e que temos em comum com todas as coisas vivas que têm o mesmo equipamento sensorial mas o juízo entre certo e errado por que deveria ele basearse neste sentido privado Não é verdade que em questões de gosto podemos comunicar tão pouco que não podemos sequer discutilas de gustibus non disputandum est Mencionamos que o gosto e o olfato são os sentidos mais privados isto é os sentidos em que não é um objeto mas sim uma sensação o que se sente e em que a sensação não se prende ao objeto e não pode ser relembrada Podese reconhecer o cheiro de uma rosa ou de uma comida quando são novamente sentidos mas não é possível têlos presentes do modo como se pode ter presente qualquer visão já vista ou qualquer melodia já ouvida Ao mesmo tempo vimos que o gosto mais do que qualquer dos outros sentidos tornouse o veículo do juízo somente o gosto e o olfato são discriminatórios pela própria natureza e somente estes sentidos se relacionam com o particular enquanto tal todos os objetos dados aos sentidos objetivos compartilham suas propriedades com outros objetos não são únicos Além disso o aprazme ou o não me apraz têm uma presença esmagadora no gosto e no olfato São imediatos e não mediados pelo pensamento ou pela reflexão E o aprazme ou o não me apraz é quase idêntico ao concorda comigo ou discorda de mim O cerne da questão é o seguinte afetame diretamente Justamente por esta razão não se pode discutir aqui o certo e o errado Nenhum argumento pode me persuadir a gostar de ostras se eu não gosto delas Em outras palavras o elemento perturbador em assuntos de gosto é que eles não são comunicáveis A solução para esses enigmas pode ser indicada pelos nomes de duas outras faculdadesimaginação e senso comum 1 A imaginação transformaum objeto em algo com o qual não preciso estar diretamente confrontado mas que de certa maneira internalizei de modo que eu agora possa ser afetado por ele como se me fosse dado por um sentido nãoobjetivo Kant diz E belo aquilo que me apraz no mero ato de julgar Isto é não é importante se apraz ou não na percepção aquilo que apraz simplesmente na percepção é gratificante e não belo Apraz na representação a imaginação preparouo de modo que agora possa refletir sobre ele a operação da reflexão Só aquilo que nos toca que nos afeta na representação quando não se pode mais ser afetado pela presença imediata sem envolverse assim como o espectador não se envolve nas ações reais durante a Revolução Francesa pode então ser julgado como certo ou errado importante ou irrelevante feio ou belo ou algo intermediário Passamos então a chamálo de juízo e não mais de gosto porque embora nos afete ainda como uma questão de gosto estabelecemos agora através da representação a distância adequada o afastamento ou o não envolvimento ou o desinteresse requisito para a aprovação ou desaprovação ou para avaliar algo em seu valor apropriado Removendo o objeto estabelecemos a condição para a imparcialidade E 2 senso comum Kant muito cedo se deu conta de que havia algo de não subjetivo no que parecia ser o sentido mais privado e subjetivo esta cons ciência é expressa da seguinte forma há o fato de que as questões de gosto o belo interessa somente em sociedade Um homem que se deixe abandonar em uma ilha deserta não enfeitaria sua casa ou a si mesmo O homem não se contenta com um objeto se não pode satisfazerse com ele em comum com os outros ao passo que nos desprezamos quando trapaceamos em um jogo mas nos envergonhamos somente quando somos pegos Ou em questões de gosto devemos renunciar a nós mesmos em favor dos outros ou com a finalidade de agradar os outros Wir müssen uns gleichsam anderen zu gefallen entsagen Finalmente e do modo mais radical No gosto superase o egoísmo temos consideração no sentido original da palavra Temos que superar nossas condições subjetivas especiais em proveito dos outros Em outras palavras o elemento não subjetivo nos sentidos não objetivos é a intersubjetividade Devese estar só para se poder pensar é preciso companhia para se desfrutar de uma refeição O juízo e especialmente os juízos de gosto sempre se refletem sobre outros e levam seus possíveis juízos em conta Isso é necessário porque sou humano e não posso viver sem a companhia dos homens O direcionamentoaooutro básico do juízo e do gosto parece estar na maior oposição possível com a própria natureza com a natureza absolutamente idiossincrática do sentido em si Logo podemos ficar tentados a concluir que a faculdade do juízo é erradamente derivada deste sentido Kant muito ciente de todas as implicações desta derivação permanece convencido de que se trata de uma derivação correta E o fenômeno mais plausível a seu favor é sua observação inteiramente correta de que o verdadeiro oposto do Belo não é o Feio mas aquilo que provoca a repugnância E não esqueçam que Kant planejou originalmente escrever uma Crítica do gosto moral A operação da imaginação julgamos objetos que não estão mais presentes e que não mais nos afetam diretamente Ainda assim quando o objeto é removido de nossos sentidos exteriores passa a ser objeto para nossos sentidos interiores Quando representamos para nós mesmos algo ausente fechamos por assim dizer aqueles sentidos pelos quais os objetos nos são dados em sua objetividade O sentido do gosto é um sentido no qual é como se nos sentíssemos a nós mesmos é como um sentido interior Esta operação de imaginação prepara o objeto para a operação de reflexão E esta operação de reflexão é a real atividade de julgar algo Fechando nossos olhos tornamonos espectadores imparciais das coisas visíveis sem sermos afetados diretamente por elas O poeta cego Também fazendo daquilo que os sentidos externos perceberam um objeto para o sentido interior comprimimos e condensamos a multiplicidade do que é dado sensualmente estamos em posição de ver com os olhos do espírito isto é de ver o todo que dá sentido aos particulares A questão que surge agora é a seguinte quais são os padrões da operação de reflexão Chamase gosto o sentido interno porque assim como o gosto ele escolhe Mas essa escolha sujeitase ela mesma mais uma vez a outra escolha podemos aprovar ou desaprovar o simples fato de aprazer ele está sujeito à aprovação e desaprovação Kant dá exemplos A alegria de um homem necessitado mas bem intencionado ao tomarse herdeiro de um pai afetuoso mas avarento ou ao contrário uma dor profunda pode satisfazer a pessoa que a experimenta a angústia de uma viúva na morte de seu excelente marido ou algo que é gratificante pode também aprazer como nas ciências que buscamos ou um pesar por exemplo ódio inveja vingança pode ademais desaprazer Todas essas aprovações e desaprovações são repensamentos enquanto estamos fazendo pesquisa científica podemos estar vagamente conscientes de estarmos felizes nesta atividademas só quando refletirmos sobre isso mais tarde é que seremos capazes de ter esse prazer adicional o prazer de aprovar Neste prazer adicional não é mais o objeto o que apraz mas o fato de que o julgamos prazeroso se relacionamos isto ao todo da natureza ou ao mundo podemos dizer nos apraz o fato de o mundo da natureza nos aprazer O próprio ato de aprovação dá prazer o próprio ato de desaprovação causa desprazer Daí a questão como escolher entre a aprovação e a desaprovação Um critério podemos arriscar considerando os exemplos o critério é a comunicabilidade ou o caráter público Não ficaremos ultraansiosos para anunciar nossa alegria na morte de nosso pai ou nossos sentimentos de ódio e inveja não sentiremos por outro lado remorsos ao dizer que gostamos de fazer o trabalho científico e tampouco ocultaremos nossa dor na morte de um excelente marido O critério é comunicabilidade e o padrão para decidir sobre ele é o Senso Comum Sobre a comunicabilidade de uma sensação É verdade que a sensação dos sentidos é comunicável em geral porque podemos supor que todos têm sentidos semelhantes aos nossos Mas não se pode pressupor isso com relação a qualquer sensação particular Estas sensações são privadas e também não há juízo envolvido somos simplesmente passivos reagimos não somos espontâneos como quando voluntariamente imaginamos algo ou refletimos sobre algo No pólo oposto encontramos os juízos morais estes segundo Kant são necessários são ditados pela razão prática mesmo se não pudessem ser comunicados permaneceríam válidos Temos em terceiro lugar os juízos ou o prazer no belo este prazer acompanha a apreensão ordinária Auffassung não a percepção de um objeto pela imaginação por meio de um procedimento do juízo que ele deve também exercitar em proveito da experiência mais comum Esse tipo de juízo está em toda experiência que temos com o mundo Este juízo se baseia naquele intelecto comum e sólido gemeiner e gesunder Verstand que temos que pressupor em todos Como é que este senso comum se distingue de outros sentidos que também temos em comum e que no entanto não garantem o acordo das sensações O gosto como uma espécie de sensus communis O termo modificouse O primeiro senso comum significava um sentido semelhante a nossos outros sentidos o mesmo para todos em sua própria privacidade Ao usar o termo latino Kant indica que está falando de algo diferente está falando de um sentido extra como uma capacidade mental extra o termo alemão Menschenverstand que nos ajusta a uma comunidade O entendimento comum dos homens é o mínimo que se pode esperar de qualquer um que se diga homem O sensus communis é o sentido especificamente humano porque a comunicação isto é a fala depende dele O único sintoma geral de insanidade é a perda do sensus communis e a teimosia lógica em insistir no seu próprio sensus privatus No sensus communis devemos incluir a idéia de um sentido comum a todos isto é de uma faculdade do juízo que em sua reflexão leva em conta a priori o modo de representação de todos os outros homens em pensamento para de certo modo comparar seu juízo com a razão coletiva da humanidade Isto se faz comparandose nosso juízo com o juízo possível dos outros e não com o real e colocandonos no lugar de qualquer outro homem abstraindonos das limitações que contingentemente se juntam a nosso próprio juízo Agora esta operação talvez pareça artificial demais para ser atribuída a uma faculdade chamada de senso comum mas só tem tal aparência quando expressa em uma formulação abstrata Não há nada mais natural em si do que abstrair do encanto e da emoção se buscamos um juízo que venha a servir como regra universal Depois disso seguemse as máximas deste sensus communis pensar por si mesmo a máxima do esclarecimento colocarmonos no lugar de todos os outros em pensamento a máxima da mentalidade alargada e a máxima da consistência estar de acordo consigo mesmo mit sich selbst einstimming denken Não se trata aqui de questões de cognição a verdade nos compele não precisamos de máximas As máximas aplicamse e são necessárias só para questões de opinião e de juízo E assim como em questões morais nossa máxima de conduta declara a qualidade de nossa vontade também as máximas do juízo atestam nosso tipo de mentalidade Denkungsarf nos assuntos mundanos que são governados pelo senso de comunidade Por menor que seja a área ou o grau de alcance dos talentos naturais do homem ainda assim há indicação de um homem de pensamento alargado se ele desconsidera as condições subjetivas privadas de seu próprio juízo que confinam tantos outros e reflete sobre elas de um ponto de vista geral que ele só pode determinar colocandose no lugar e no ponto de vista dos outros O gosto é este senso de comunidade gemeinshaftlicher Sinn e senso significa aqui o efeito de uma reflexão sobre o espírito Esta reflexão me afeta como se fosse uma sensação Poderiamos até mesmo definir o gosto como a faculdade de julgar aquilo que toma comunicável em geral sem a mediação de um conceito o nosso sentimento como a sensação em uma representação dada não a percepção Se pudéssemos supor que a mera comunicabilidade geral de um sentimento deve trazer em si um interesse para nós com relação a ela deveriamos ser capazes de explicar por que o sentimento no juízo do gosto vem a ser imputado a todos por assim dizer como um dever A validade destes juízos nunca possui a validade das proposições cognitivas ou científicas que não são a rigor juízos Se dizemos que o céu é azul ou que dois e dois são quatro não julgamos dizemos o que é compelidos pela evidência de nossos sentidos ou de nosso espírito Neste sentido nunca podemos compelir alguém a concordar com nossos juízos isto é belo isto é errado Kant não acredita entretanto que juízos morais sejam o produto da reflexão e da imaginação logo não são a rigor juízos podemos somente pretender cortejar o acordo de todos os demais E nesta atividade persuasiva podemos na verdade apelar para o senso de comunidade Quanto menos idiossincrático for o seu gosto melhor poderá ser comunicado a comunicabilidade novamente é a pedra de toque A imparcialidade em Kant é chamada de desinteresse o prazer desinteressado no Belo Se portanto o parágrafo 41 na Crítica do juízo fala de um Interesse no Belo na verdade está falando de terse um interesse no desinteresse Por podermos dizer que algo é belo é que temos um prazer em sua existência e é nisso que consiste todo o interesse Em uma de suas reflexões nos cadernos Kant observa que o Belo nos ensina a amar sem interesse próprio ohne Eigennutz E a característica peculiar deste interesse é que interessa somente em sociedade Kant enfatiza que pelo menos uma de nossas faculdades a faculdade do juízo pressupõe a presença de outros E não só aquilo que terminologicamente chamamos de juízo preso a isto está todo o aparato da alma por assim dizer Comunicando nossos sentimentos nossos prazeres e deleites desinteressados dizemos nossas escolhas e escolhemos nossas companhias Preferiría errar com Platão que acertar com os pitagóricos Cícero Finalmente quanto mais amplo o escopo dos homens aos quais poderiamos comunicar maior o valor do objeto Embora o prazer que todos têm em tal objeto não seja considerável isto é contanto que não se compartilhe dele e não tenha em si qualquer interesse notável ainda assim a idéia de sua comunicabilidade geral aumenta seu valor a um grau quase infinito Neste ponto a Crítica do juízo incorpora sem esforço a deliberação de Kant sobre uma humanidade unida vivendo em uma paz eterna Se todos esperam e exigem de todos os demais esta referência à comunicação geral do prazer do deleite desinteressado então teremos alcançado um ponto em que é como se existisse uma comunidade original ditada pela própria humanidade È em virtude desta idéia de humanidade presente em cada homem particular que os homens são humanos e eles podem se dizer civilizados ou humanos porque esta idéia se tomouse o princípio de suas ações e de seus juízos E neste ponto que o ator e o espectador passam a estar unidos a máxima daquele que age e a máxima o padrão segundo a qual o espectador julga o espetáculo do mundo tomamse uma só O imperativo categórico para a ação poderia enunciar o seguinte aja sempre segundo a máxima que permita que esta unidade original possa ser realizada em uma lei geral Concluindo tentarei esclarecer algumas das dificuldades a dificuldade principal no juízo é ser a faculdade dejulgar o particular mas pensar significa generalizar portanto tratase da faculdade que misteriosamente combina o particular e o geral Isto é relativamente fácil se o geral é dado como uma regra um princípio uma lei de modo que julgar seja simplesmente subsumirlhe um particular A dificuldade cresce se somente o particular é dado e é preciso descobrir o geral relativo a ele Pois o padrão não pode ser importado da experiência e não pode ser derivado do exterior Não posso julgar um particular por outro particular para determinar seu valor preciso de uma tertiumquidou de uma tertiumcomparationis algo que se relacione aos dois particulares e que seja ainda assim distinto de ambos Em Kant encontramos duas soluções completamente diferentes para esta dificuldade Como uma verdadeira tertium comparationis aparecem em Kant duas idéias sobre as quais temos que refletir para chegar a juízos tratase nos escritos políticos e ocasionalmente também na Crítica do juízo da idéia da unidade original da humanidade como um todo e derivada desta idéia a noção de natureza humana aquilo que constitui o humano nos seres humanos que vivem e morrem neste mundo nesta terra que é um globo na qual eles vivem juntos a qual eles dividem juntos na sucessão de gerações Na Crítica do juízo encontrase também a idéia de finalidade todo objeto diz Kant como um particular precisando do fundamento de sua realidade e contendoo em si tem uma finalidade Os únicos objetos que parecem não ter finalidade são os objetos estéticos de um lado e os homens do outro Não podemos perguntar quen ad finem com que finalidade uma vez que eles não servem para nada Mas objetos de arte sem finalidade bem como a aparentemente sem propósito variedade da natureza tem a finalidade de aprazer aos homens fazendo com que se sintam em casa no mundo Isso jamais pode ser provado mas a Finalidade é uma idéia para regular nossas reflexões em seus juízos reflexionantes Ou a segunda idéia de Kant a meu ver uma solução muito mais valiosa é a seguinte E validade exemplar Exemplos são o veículo dos juízos Vejamos o que é isso todo objeto particular por exemplo uma mesa tem um conceito correspondente pelo qual podemos reconhecer uma mesa como uma mesa Isso pode ser concebido como a idéia platônica ou o esquema kantiano isto é temos diante dos olhos do nosso espírito uma mesa esquemática ou simplesmente uma figura de mesa formal com a qual toda mesa deve estar em conformidade Ou se procedermos inversamente partindo das muitas mesas que vimos em nossa vida as despojamos de todas as qualidades secundárias e o que resta é uma mesa em geral contendo as propriedades mínimas comuns a todas as mesas A mesa abstrata Restanos ainda uma possibilidade que entra em juízos e que não são cognições podemos encontrar ou pensar em alguma mesa que julgamos ser a melhor possível e tomar esta mesa como o exemplo de como as mesas deveríam realmente ser a mesa exemplar Exemplo vem de eximere escolher um particular Isto é e continua a ser um particular que em sua própria particularidade revela a generalidade que de outra forma não poderia ser definida A Coragem é como Aquiles Etc Estivemos falando aqui sobre a parcialidade do ator que por estar envolvido nunca vê o significado do todo O mesmo não se aplica ao belo ou a qualquer feito em si O belo é em termos kantianos um fim em si mesmo porque todo seu significado possível está contido em si mesmo sem referência a outros sem conexão por assim dizer com as outras coisas belas No próprio Kant há esta contradição o Progresso Infinito é a lei da espécie humana ao mesmo tempo a dignidade do homens exige que eles sejam vistos cada um deles em sua particularidade refletindo enquanto tais mas sem qualquer comparação e independentemente do tempo a humanidade em geral Em outras palavras a própria idéia de progresso se é mais que uma simples alteração de circunstâncias e uma melhora no mundo contradiz a noção kantiana de dignidade humana Posfácio da editora Mary McCarthy Hannah Arendt morreu subitamente em 4 de dezembro de 1975 Era uma noite de quintafeira ela recebia amigos em casa No sábado anterior havia terminado O Querer a segunda seção de A vida do espírito Assim como A condição humana seu precursor o trabalho fora concebido em três partes Enquanto A condição humana com o subtítulo de A vita activa fora dividida em Labor Trabalho e Ação A vida do espírito tal como foi planejada era dividida em O Pensar O Querer e O Julgar as três atividades básicas no seu modo de ver da vida espiritual A distinção feita na Idade Média entre a vida ativa do homem no mundo e a solitária vita contemplativa estava é claro presente em seu pensamento embora para ela aquele que pensa quer e julga não seja um contemplador isolado por vocação monástica mas sim o homem comum ao exercitar sua capacidade especificamente humana de retirarse de tempos em tempos para a região invisível do espírito Se a vida do espírito é ou não superior à chamada vida ativa assim como foi considerada na Antigüidade e na Idade Média essa é uma questão que Hannah Arendt nunca enunciou claramente Ainda assim podese dizer que os últimos anos de sua vida foram consagrados a este trabalho que ela tratava como uma tarefa que lhe cabia como ser vigorosamente pensante a coisa mais elevada a que estava destinada Em meio aos seus diversos compromissos acadêmicos participação em várias mesasredondas painéis e consultorias era um constante recruta da vita activa do cidadão e da figura pública ainda que raramente fosse uma voluntária ela permanecia imersa em A vida do espírito como se a finalização do livro fosse liberála não tanto de uma obrigação que soaria onerosa demais mas de um pacto que fizera Todos os caminhos por mais secundários que fossem em que o acaso ou a intenção a colocassem em sua existência cotidiana e profissional levavamna de volta àquele trabalho Quando em junho de 1972 chegou um convite para participar como confe rencista das Gifford Lectures na Universidade de Aberdeen Hannah Arendt escolheu utilizar a ocasião para uma espécie de teste dos volumes já em preparação As Gifford Lectures serviram também como estímulo Iniciadas em 1885 por Adam Gifford um importante juiz escocês com a finalidade de estabelecer em cada uma das quatro cidades Edimburgo Glasgow Aberdeen e St Andrews uma cátedra de Teologia Natural no sentido mais amplo do termo as conferências já haviam sido anteriormente proferidas por Josiah Royce William James Bergson J G Frazer Whitehead Eddington John Dewey Werner Jaeger Karl Barth Etienne Gilson Gabriel Marcel entre outros um rol de honra do qual ela teve muito orgulho em participar Sendo normalmente supersticiosa deve ter encarado as conferências também como uma espécie de amuleto obras como The Varieties of Religious Experience Process and Reality de Whitehead The Mistery of Being de Marcel The Spirit of Medieval Philosophy de Gilson tinham vindo à luz pela primeira vez nestas Gifford Lectures Tendo aceito a incumbência ela trabalhou talvez mais arduamente do que deveria para terminar a tarefa no tempo disponível deu a primeira série de conferências sobre O Pensar na primavera de 1973 Na primavera de 1974 voltou para a segunda série sobre O Querer e foi impedida de continuar por um ataque cardíaco depois da primeira conferência Pretendia voltar na primavera de 1976 para terminar a série durante esse tempo dera a maior parte de O Pensar e de O Querer em suas aulas na New School for Social Research em Nova Iorque Ainda não havia começado O Julgar embora tivesse utilizado material sobre o juízo em cursos que miristrou na Universidade de Chicago e na New School sobre a filosofia política de Kant Depois da morte de Hannah Arendt encontrouse em sua máquina de escrever uma folha em branco a não ser pelo título O Julgar e duas epígrafes Em algum momento entre o sábado do término de O Querer e a quintafeira de sua morte ela deve ter sentado para enfrentar a terceira seção O plano de Hannah Arendt era um trabalho em dois volumes O Pensar o maior deveria ocupar o primeiro e o segundo deveria conter O Querer e O Julgar Conforme disse a amigos esperava que O Julgar ficasse muito mais curto do que os outros Costumava dizer também que esperava que fosse este o mais fácil de lidar O mais difícil tinha sido O Querer A razão que deu para esperar que O Julgar fosse ficar curto era a falta de fontes de consulta somente Kant havia escrito sobre esta faculdade que antes dele só tinha sido notada por filósofos no âmbito da estética em que fora nomeada Gosto Para facilitar ela sem dúvida sentia que suas conferências sobre a filosofia política de Kant com a cuidadosa análise da Crítica do juízo já tinham preparado bastante bem o terreno a ser trabalhado Não obstante podese imaginar que O Julgar viesse a surpreendêla e acabasse por tomar só ele um volume inteiro De qualquer forma para dar ao leitor alguma noção sobre o que haveria na seção conclusiva juntamos um apêndice ao segundo volume contendo extratos das conferências de Hannah Arendt em sala de aula Fora o material de seminário não incluído aqui sobre a Imaginação que toca de passagem no papel que esta última desempenha no processo de julgar isto é tudo o que temos sobre os pensamentos da autora acerca desse tema embora ainda possa aparecer algo mais na correspondência quando for editada É uma pena que não haja outras coisas qualquer pessoa familiarizada com seu espírito terá certeza de que o conteúdo do apêndice não é exaustivo com relação às idéias que já deveríam estar se agitando em sua cabeça quando ela colocou a nova folha de papel na máquina Sobre a edição Ao que eu saiba os livros e artigos de Hannah Arendt eram editados antes de chegar à forma de publicação Aqueles escritos em inglês naturalmente O trabalho era feito por profissionais das editoras das revistas William Shawn na The New Yorker Robert Silvers na The New York Review of Books Philip Rahv nos velhos tempos na Partisan Review e também por amigos As vezes muitas mãos que não se conheciam trabalhavam nos manuscritos com seu consentimento e normalmente mas nem sempre com sua colaboração tendia a deixar aqueles em quem aprendera a confiar bem livres para usar o lápis vermelho Ela se referia a tudo isso com humor como o inglesamento pelo qual tinham de passar seus textos Aprendera a escrever sozinha em inglês como exilada já depois dos trinta e cinco anos e nunca se sentiu tão à vontade com esta língua mesmo na fala como já se sentia com o francês Debatia se com a língua inglesa e com suas terríveis e misteriosas restrições Embora tivesse um talento natural que viria a se fazer sentir em sioux e em sânscrito para a expressão eloqüente vigorosa e às vezes pungente seus períodos eram longos à maneira alemã e tinham que ser desenrolados e quebrados em dois ou três Além disso como qualquer um que fala ou escreve em uma língua estrangeira ela tinha problemas com preposições E com aquilo que Fowler chamava de idioma de ferro E para encontrar o lugar natural dos advérbios pois em inglês não há regras apenas uma lei não escrita que parece tirânica e ameaçadora para o estrangeiro por poder ser de resto quebrada sem a menor previsão Ademais ela era impaciente Suas frases podiam ser pesadas não só porque sua língua materna era o alemão com uma tendência para as seqüências de elementos modificadores e de subordinação que atravancam o caminho até o esperado verbo mas também porque tentava obter muito de uma só vez Essa mistura de pressa e generosidade era muito característica dela De qualquer forma o trabalho de Hannah Arendt foi editado Trabalhei em vários de seus textos às vezes depois de um outro editor amador ou profissional que me havia precedido Revisamos juntas Da violência um certo verão no Café Flore e então levei o texto para casa para exame posterior Trabalhamos em Da desobediência civil em uma pensione na Suíça por vários dias e demos toques finais no último artigo que publicou Home to Roost em um apartamento que lhe fora emprestado em Marbach terra natal de Schiller perto do Deutsche Literaturachiv onde ela pesquisava os escritos de Jaspers Trabalhei com ela na seção sobre O Pensar de A vida do espírito em Aberdeen em uma cópia do manuscrito original posso ver minhas alterações a lápis Na primavera seguinte enquanto ela se encontrava em uma ala do hospital de Aberdeen por alguns dias no balão de oxigênio trabalhei em partes de O Querer sozinha a seu pedido Enquanto Hannah Arendt vivia o trabalho era divertido por ser uma colaboração e um intercâmbio No geral ela aceitava correções de bom grado com alívio quando se tratava de preposições por exemplo com interesse quando alguma questão de uso era nova para ela As vezes discutíamos continuando a discussão por correspondência isso aconteceu em sua tradução do termo Verstand de Kant como intelecto eu achava que devia ser entendimento como no padrão das traduções Mas jamais a convencí e cedi Agora acho que ambas estávamos certas porque apontávamos para coisas diferentes ela se apegava ao sentido original do termo e eu estava buscava a compreensão dos leitores No presente texto ficou intelecto A maior parte de nossas discordâncias eram resolvidas por um meio termo ou por um corte Mas no processo sua impaciência natural mais cedo ou mais tarde reafirmavase Ela não gostava de fazer muito alvoroço a respeito de detalhes Você dá um jeito ela diria afinal começando a esconder um bocejo Sendo impaciente era também indulgente supunhame uma perfeccionista e inclinavase a condescender com essa tendência contanto que não se aproximasse do proselitismo Seja como for nunca tivemos diferenças substantivas Se às vezes eu questionava o pensamento em um de seus manuscritos era somente para apontar o que me parecia uma contradição com outro pensamento que ela apresentara páginas atrás Normalmente acabava ficando claro que eu tinha deixado de perceber alguma distinção subjacente ou ao contrário que ela tinha deixado de perceber a necessidade que o leitor teria de distinguo Por mais estranho que possa parecer nossas cabeças estavam sob muitos aspectos bastante próximas um fato que ela freqüentemente observava quando a mesma noção ocorria para cada uma independentemente enquanto um oceano o Atlântico nos separava Ou ela lia algum texto que eu tinha escrito e encontrava ali um pensamento sobre o qual ela vinha ponderando em silêncio Tal convergência de pensamento decidiu havia de ter algo a ver com a minha formação católica que me tinha dado ela acreditava uma aptidão para a filosofia Na verdade minhas notas nos dois cursos de filosofia que fiz na faculdade estão longe de ser brilhantes cursos confusos e de ensino letárgico acrescentese Por outro lado entretanto nossos estudos não se distanciam tanto Na Alemanha ela tinha feito sua tese de doutorado sobre o Conceito de Amor em Santo Agostinho nos Estados Unidos eu havia lido Santo Agostinho em um curso de graduação sobre Latim Medieval e regozijarame com A cidade de Deus meu favorito Possivelmente meus estudos sobre a Idade Média e a Renascença em francês latim inglês além dos anos de latim clássico e mais tarde da leitura da Platão em casa combinaramse à infância católica ficando no lugar de um treinamento formal em filosofia Há também o fato não considerado por Hannah Arendt de que no decorrer dos anos aprendi muito com ela Menciono essas coisas agora para referirme às minhas qualificações para editar A vida do espirito Não foi um trabalho para o qual eu tivesse me candidatado e quando em janeiro de 1974 ela me tomou sua inventariante literária duvido muito que antevisse o que estava para acontecer isto é que não viveria para terminar aqueles volumes e que seria eu sem o benefício de sua assistência que tomaria conta da publicação Se ela de fato anteviu isso no final pelo menos como uma possibilidade clara depois do ataque cardíaco alguns meses depois em Aberdeen devia saber que eu cuidaria do livro com todas as minhas peculiaridades e rigores e aceitou o inevitável por espírito filosófico Conhecendome pode até ter previsto as tentações que me cercariam com a nova liberdade de interferência liberdade para fazer as coisas do meu jeito mas se me conhecesse tão bem sabería também que a resistência diante do simples vislumbre de tais tentações se erguería em minha consciência ainda católica Se adivinhasse em suma que haveria dias em que eu me tomaria um campo de batalha no qual minha lealdade à prosa de meus antepassados lutaria com meu sentimento de dever para com ela provavelmente teria se divertido com a cena de semelhante disputa furiosa a competição entre os escrúpulos e as tentações tão estranha à sua própria natureza Devo supor que êla confiava em meu julgamento tinha fé em que no final não haveria prejuízo que o manuscrito sairía ileso da luta se me faltasse a confiança em sua confiança eu acabaria logo tendo que desistir Mas o que quer que tenha previsto ou deixado de prever o fato é que ela não está aqui agora para ser consultada ou para nos auxiliar Fui forçada a conjecturar sua reação a cada ato de interferência editorial Na maioria dos casos a experiência anterior facilitou a tarefa se Hannah Arendt conhecia me eu também a conhecia Mas surgiram problemas aqui e ali que no passado eu certamente não teria tentado resolver sozinha em um esforço para adivinhar Toda vez que não estava segura salpicava o manuscrito com pontos de interrogação que significavam O que você quer dizer aqui Pode tomar mais claro E a palavra certa Hoje as questões O que será que ela quis dizer com isso A repetição era intencional ou não dirigemse a mim Ainda assim não exatamente à minha pessoa ao invés disso colocome em seu lugar transformome em uma espécie de leitora de pensamento de médium Com os olhos fechados converso com um fantasma bem vivo Ela me assombrou interrompeu o movimento do meu lápis causou o uso repetido da borracha Na prática a nova liberdade descoberta significou que me sentia menos livre com o seu texto datilografado do que quando ela estava viva Vez por outra pegavame mudando de idéia pelo medo de alguma objeção imaginada e tinha de me recompor com a lembrança de que em circunstâncias normais eu jamais permitiría que passassem os longos períodos de uma página ali olhando me Ou ao contrário aconteciame riscar com firmeza uma frase ou expressão cujo significado era opaco para mim substituindo por uma linguagem que para mim fazia mais sentido então em uma segunda leitura desconfiava e voltava a consultar o texto original via que tinha perdido alguma nuance e recompunha o trecho como havia sido escrito ou fazia novo esforço para parafraseálo Qualquer um que já tenha traduzido reconhecerá o processo os esforços repetidos para ler através da linguagem o pensamento do autor que está ausente Aqui o fato de ter há muitos anos e principalmente creio por minha amizade com ela começado a estudar alemão acabou sendo um golpe de sorte do destino Conheço o bastante da língua materna de Hannah Arendt para discernir a estrutura original como o contorno de montanhas distantes por trás de sua expressão em inglês isto tomou traduzíveis muitas passagens problemáticas simplesmente colocavaas em alemão língua em que ficavam claras e então as refazia em inglês Seja como for no meu entender nada que de alguma forma afete o pensamento foi modificado Foram feitos alguns cortes na maioria pequenos normalmente para eliminar repetições nos casos em que concluí que eram acidentais e não deliberadas Em pouquíssimos lugares não mais que dois ou três acrescentei algo em benefício da clareza como por exemplo as palavras Scotus era um franciscano em uma passagem que de outra forma ficaria obscura para um leitor a quem faltasse a informação Mas tirando tais exceções menores o que se fez foi apenas o inglesamento habitual por que passavam todos os seus textos Isto não se aplica ao material das conferências que figura no apêndice Esses extratos aparecem textualmente com exceção de erros óbvios de datilografia que foram corrigidos Pareceume que uma vez que as conferências sobre Kant jamais foram concebidas para publicação mas sim para serem dadas de viva voz a uma turma de estudantes qualquer intromissão editorial seria inadequada Não era minha tarefa interferir na história As conferências de onde foram tirados os extratos junto com outros escritos podem ser consultadas na Biblioteca do Congresso com a permissão dos seus inventariantes testamentários Devo mencionar um outro grupo de modificações Os manuscritos de O Pensar e O Querer estavam ainda em formato de conferência sem alterações em relação ao modo como tinham sido expostos em Aberdeen embora sob outros aspectos tivessem sido muito revistos e ampliados o último capítulo de O Querer era inteiramente novo Se Hannah Arendt tivesse tido tempo obviamente teria alterado esse formato transformando ouvintes em leitores como fazia habitualmente quando algo que tinha sido proferido como conferência saía em algum livro ou revista No presente texto isso foi feito excetuandose o caso da introdução geral com sua agradável alusão às Gifford Lectures Se algo do sabor da palavra falada permanece entretanto isso só faz bem Uma observação final sobre o inglesamento deve ser feita Evidentemente o gosto pessoal intervém nas decisões do editor Minha idéia própria do que seja aceitável em inglês escrito é como a de qualquer um idiossincrática Não faço objeções por exemplo quanto a terminar uma frase com uma preposição na verdade eu até favoreço esse tipo de construção mas chocame encontrar certos substantivos como shower no sentido de showerbath banho de chuveiro e trigger gatilho usados como verbos Assim não podia deixar que Hannah Arendt uma pessoa que eu admirava tanto usasse trigger quando era perfeitamente adequado utilizar cause causar ou set in motion pôr em movimento E When the chips are down Quando as fichas estão na mesa não posso dizer porque a expressão me desagrada principalmente partindo dela que duvido que tenha algum dia segurado uma ficha de pôquer Mas posso vêla o cigarro na piteira contemplando a mesa de roleta ou bacará acabou então ficando O jogo está feito que lhe cai melhor fica mais do seu jeito Será que ela teria se importado com esse pequenos exemplos de interferência em sua liberdade de expressão Será que ela dava muito valor ao seu trigger Tenho esperança de que teria condescendência com meus preconceitos E embora o gosto pessoal tenha entrado ocasionalmente em cena como árbitro em casos que outrora eu havia tentado persuadila tomei durante todo o tempo muito cuidado para respeitarlhe o tom característico Não permiti que meu próprio estilo interferisse não há uma só palavra estilo Mary McCarthy no texto No único caso em que por não encontrar nada melhor utilizei tal palavra sua inadequação saltava aos olhos nas provas de revisão e a palavra teve de ser rapidamente suprimida De modo que o texto é dela é ela espero no sentido de que as incisões e o polimento revelamna assim como o corte do que é supérfluo no mármore põe a nu sua forma intrínseca Miguelângelo disse isso a respeito da escultura em oposição à pintura e aqui de qualquer forma não há qualquer vestígio de exageros ou de embelezamento Foi um trabalho pesado que mantinha ativo um diálogo imaginário com Hannah Arendt diálogo que às vezes beirava o debate Embora em vida nunca tenha se chegado a isso eu agora a censurava e viceversa O trabalho continuava até tarde da noite nos meus sonhos então subitamente desapareciam páginas do manuscrito ou ao contrário novas páginas apareciam inadvertidamente deixando tudo inclusive as notas fora de ordem Mas também foi senão divertido como nos velhos tempos pelo menos compensador Aprendi por exemplo a entender a Crítica da razão pura que anteriormente considerava impenetrável Procurando uma referência que faltava li alguns diálogos inteiros de Platão o Teeteto e o Sofista nos quais jamais mergulhara anteriormente Aprendi a diferença entre uma arraiaelétrica e uma arraialixa Reli partes das Bucólicas e das Geórgicas de Virgílio que não via desde a faculdade Muitos dos meus velhos livros da faculdade desceram das prateleiras e não só os meus mas também os de meu marido ele estudou filosofia em Bowdoin e os do secretário de meu marido ele tinha Rilke algo que nos faltava de Aristóteles e mais Virgílio Foi uma empreitada cooperativa Minha secretária ao datilografar os manuscritos gentilmente intercedeu em favor de algumas vírgulas e de um tratamento mais rigoroso das falhas gramaticais ela era o Escrúpulo em luta com o lado da Tentação O professor assistente de Hannah Arendt na New School Jerome Kohn caçou algumas referências e amiúde atendendo ao apelo dos ansiosos pontos de interrogação pôde me esclarecer ou então pudemos combinando a nossa confusão chegar a algumas certezas razoáveis Ele até mesmo vide pesadelo acima descobriu uma página que tendo passado despercebida para nós faltava na copiado manuscrito Outros amigos inclusive meu professor de alemão ajudaram Em meio a essa agonia houve momentos de exultação uma mistura do reviver dos nossos tempos de estudante aqueles livros as discussões pela madrugada sobre questões filosóficas e o efeito revigorante das idéias de nossa amiga morta idéias vivas e que geravam controvérsias bem como surpresa e assentimento Embora eu tenha sentido a falta de Hannah Arendt no decorrer desses meses de trabalho na verdade mais de um ano agora por mais que tenha ansiado por sua volta para me esclarecer para objetar confirmar elogiar e ser elogiada não acredito que vá sentir sua falta de verdade sentir a dor do membro amputado até que tudo tenha terminado Sei que ela está morta mas sinto ao mesmo tempo sua presença clara e distinta nesta sala escutando minhas palavras enquanto escrevo talvez concordando com seu menear pensativo talvez reprimindo um bocejo Algumas explicações sobre assuntos práticos Uma vez que o manuscrito embora completo em termos de conteúdo não tinha a forma definitiva nem todas as citações e alusões se fazem acompanhar por notas Graças a Jerome Kohn a Roberta Leighton e a seus auxiliares na editora Harcourt Brace Jovanovich muitas delas foram encontradas Mas como estou dizendo outras ainda faltam e se não puderem ser encontradas a tempo a busca terá que prosseguir e o resultado terá que ser incluído em uma futura edição Além disso mesmo quando temos as referências algumas notas ficaram incompletas principalmente quando a página ou o número do volume que são fornecidos parecem estar errados e ainda não fomos capazes de localizar a passagem certa Isto também espero será eventualmente retificado Tivemos a vantagem de ter acesso aos livros da biblioteca de Hannah Arendt utilizados como referência Mas não temos todos os livros a que ela se referiu Fica claro que ela muitas vezes citava de memória Nos casos em que sua memória não correspondia diretamente ao texto citado isso foi corrigido Com exceção das traduções ali às vezes corrigimos às vezes não Também aqui era uma questão de tentar ler seu pensamento Será que quando a tradução clássica de um original grego latino alemão ou francês era diferente da que ela citava Hannah tinha feito propositalmente a alteração Ou se trataria de uma falha de memória Muitas vezes não conseguíamos ter certeza Como nos mostra a comparação ela de fato lançou mão de traduções clássicas Norman Kemp Smith para Kant Walter Kaufmann para Nietzsche McKeon para Aristóteles as diversas traduções de Platão na edição de Edith Hamilton e Huntington Caims Mas ela conhecia todas essas línguas muito bem um fato que a levava a desviarse da versão clássica quando lhe convinha isto é quando considerava Kemp Smith por exemplo ou Kaufmann imprecisos Do ponto de vista editorial isso criou uma situação caótica Damos crédito a Kemp Smith e a Kaufmann nas notas em que ela se baseou muito mas não inteiramente em suas versões Não fazer parece injusto mas em alguns casos o oposto também parecia injusto Kaufmann por exemplo poderia não querer o crédito de expressões e palavras que não são dele Kemp Smith está morto bem como a maioria dos tradutores de Platão mas isso não significa que a consideração por seus sentimentos deva morrer também Deixando de lado os embaraços com a questão do crédito atacamos o problema geral das traduções de um modo que pode ser fragmentário e ad hoc mas que de fato acompanha a realidade das circunstâncias nas quais nenhuma regra geral e consistente parece funcionar Onde foi possível cada passagem foi comparada com a tradução clássica os trechos estavam freqüentemente sublinhados ou marcados de alguma outra forma no livro que pertencia a Hannah Arendt Quando a variação era grande consultávamos a língua original e se Kemp Smith parecia estar mais perto do alemão de Kant nós o utilizávamos Mas quando havia uma nuance de significado que a tradução de Hannah Arendt sugeria e que na tradução clássica não ficava clara utilizávamos a dela mesmo quando o significado era discutível Com a prática logo ia ficando mais fácil discernir os casos em que uma formulação variante correspondia a uma intenção da parte da autora em oposição àqueles em que se tratava de uma inadvertência uma falha de memória ou um erro de cópia diferenças de pontuação por exemplo foram tratados como inadvertências Infelizmente esta solução prática não dá conta de todas as contingências A não ser quando o texto citado estava na biblioteca em inglês não tínhamos a menor idéia de que tradução se é que havia alguma fora utilizada por Hannah Arendt como referência Suporei que ela fazia a própria tradução e que se sentia livre para fazer alterações ligeiras a bem da expressão inglesa ou da gramática assim como eu teria feito com o seu próprio texto De vez em quando eu mesma retraduzi do original Mas faltoume o atrevimento para tentar fazêlo com Heidegger embora tenha ousado fazêlo com Mestre Eckhart No caso dos autores clássicos há tamanha riqueza de traduções para escolher que dificilmente se pode esperar encontrar exatamente aquela que Hannah Arendt estaria consultandouma agulha em um palheiro Uma vez por sorte esbarrei com uma tradução de Virgílio que por um momento ficou claro ela tinha utilizado Meu lápis moveuse Eureka para indicar em nota a editora a data etc então olhei de novo não Aqui como tantas vezes Hannah tinha utilizado a tradução sem contudo manterse fiel a ela E é impossível identificar em uma nota os pontos em que houve divergência e aqueles em que não houve Ao final chegamos a uma política que foi a de citar uma tradução somente quando foi seguida à risca Quando não indicamos o nome do tradutor significa que a versão utilizada é completa ou quase completamente da autora ou que não pudemos encontrar a tradução que ela consultou se é que existe Ainda assim mesmo essa política merece ressalvas O leitor deve saber que algumas traduçõespadrão McKeon Kemp Smith a miscelânea de HamiltonCairns mesmo nos casos em que não foram especificamente mencionadas foram grosso modo as que serviram de guia para a autora A Bíblia foi um problema especial Parecia difícil dizer a princípio se ela estava usando a versão do Rei James a Revised Standard Version a versão Douai uma versão alemã que ela então traduzia para o inglês ou uma mistura de todas essas Eu até me diverti com a hipótese tema de que ela tivesse ido à Vulgata de São Gerônimo e feito sua própria interpretação do latim Minha tendência era usar a versão do Rei James além da preferência pessoal havia o argumento de que o Tu deves Thou shalt na voz da autora que com frequência aparece em O Querer tinha que combinar com as formas pronominais bíblicas Thou Thee da versão mais antiga de outra forma soaria estranho Mas Roberta Leighton me demonstrou que uma comparação cuidadosa revela que o manuscrito fica mais próximo da Revised Standard Version logo ela foi utilizada com algumas exceções quando a beleza da linguagem do Rei James era irresistível para nós assim como evidentemente também para a autora De qualquer forma aterse no geral à Revised Standard Version acabou com uma dificuldade o fato de que a versão antiga traduz amor agape por caridade Uma vez que para os ouvidos modernos a palavra tem uma conotação muito ligada a uma dedução no imposto de renda ou se refere a ter uma visão benevolente em relação a algo teria que ser trocada por amor entre colchetes toda vez que aparecesse o que dificultaria a leitura Tais preocupações com aconsistênciae com a fidelidade máximanas referências pode parecer curiosa ao leitor em geral Elas são a obsessão da atividade dos editores e acadêmicos Ou são as regras do jogo que a escrita acadêmica concorda em seguir e que por seu próprio rigor aumentam o entusiasmo da atividadeum entusiasmo que não pode ser dividido com aqueles que não estão no jogo A brincadeira de esconder que está por trás de uma nota difícil de encontrar deve ser tomada com a maior seriedade como qualquer outro esporte ou jogo que exija concentração Ainda assim se isso tudo importa somente para poucos principalmente para aqueles envolvidos na atividade qual é o sentido de tudo isso Qual diferença faz se Deus é Ele em uma página e ele em outra Talvez a autora tenha simplesmente mudado de idéia o que é seu direito Por que tentar adivinhar sua preferência subjacente e aprisionála um espírito livre em um Ele ou um ele uniforme Bem é Ele E a vontade é Vontade quando é um conceito e vontade quando atua em um sujeito humano Peço desculpas ao leitor comum por mencionar estes detalhes sobre notas letras maiúsculas e minúsculas colchetes etc coisas tão sem interesse para alguém de fora quanto a ponderação que leva o esportista a escolher uma isca sofisticada quando uma minhoca bastaria para pegar o peixe Os especialistas tendem a perder de vista que o que importa é o peixe como Hannah Arendt seria a primeira a concordar Ela preocupavase com o leitor comum que para ela continuava sendo o estudante adulto E por isso que ela gostava especialmente de Sócrates Mesmo assim sendo uma professora e uma erudita ela conhecia as regras do jogo e na maioria das vezes aceitavaas ainda que mais no espírito da tolerância que se tem com os passatempos infantis do que no do zelo de uma verdadeira participante Seja como for no decorrer desses meses com o manuscrito meus lápis bem apontados transformaramse em tocos E agora já falei muito de meu trabalho É hora de devolver o manuscrito a si mesmo Table of Contents 1 A Vida do Espirito 2 Sumário 3 Prefácio à edição brasileira 4 Nota de tradução 5 Nota da editora 6 Volume 1 O Pensar 1 Introdução 2 Capítulo 1 Aparência 1 1 A natureza fenomênica do mundo 2 2 O verdadeiro ser e a mera aparência a teoria dos dois mundos 3 3 A inversão da hierarquia metafísica o valor da superfície 4 4 Corpo e alma alma e espírito 5 5 Aparência e semblância 6 6 O ego pensante e o eu Kant 7 7 Realidade e ego pensante dúvida cartesiana e sensus communis 8 8 Ciência e senso comum a distinção de Kant entre intelecto e razão verdade e significado 3 Capítulo 2 As atividades espirituais em um mundo de aparências 1 9 Invisibilidade e retirada do mundo 2 10 A luta interna entre pensamento e senso comum 3 110 pensar e o agir o espectador 4 12 Linguagem e metáfora 5 13 A metáfora e o inefável 4 Capítulo 3 O que nos faz pensar 1 14 Os pressupostos filosóficos da filosofia grega 2 15 A resposta de Platão e seus ecos 3 16 A resposta romana 4 17 A resposta de Sócrates 5 18 O doisemum 5 Capítulo 4 Onde estamos quando pensamos 1 19 Tantôt jepense et tantôt je suis Valéry o lugar nenhum 2 20 A lacuna entre passado e futuro o nunc stans 3 21 Postscriptum 6 Notas 1 Introdução 2 Capítulo 1 3 Capítulo 2 4 Capítulo 3 5 Capítulo 4 7 Volume 2 O Querer A Vontade 1 Introdução 2 Capítulo 1 Os filósofos e o querer 1 1 Tempo e atividades do espírito 2 2 A Vontade e a Era Moderna 3 3 As principais objeções à Vontade na filosofia pós medieval 4 4 O problema do novo 5 5 O conflito entre pensamento e Vontade a tonalidade das atividades do espírito 6 6 A solução de Hegel a filosofia da História 3 Capítulo 2 Quaestio mihifactus sum A descoberta do homem interior 1 7 A faculdade da escolha proairesis a precursora da Vontade 2 8 O apóstolo Paulo e a impotência da Vontade 3 10 Santo Agostinho o primeiro filósofo da Vontade 4 Capítulo 3 O Querer e o Intelecto 1 11 São Tomás de Aquino e a primazia do Intelecto 2 12 Duns Scotus e a primazia da Vontade 5 Capítulo 4 Conclusões 1 13 O idealismo alemão e a ponte arcoíris de conceitos 2 14 O repúdio nietzscheano da Vontade 3 15 O querernãoquerer de Heidegger 4 16 O abismo da liberdade e a novus ordo seclorum 6 Notas 1 Capítulo 1 2 Capítulo 2 3 Capítulo 3 4 Capítulo 4 8 Apêndice O Julgar 1 Excertos das conferências sobre a filosofia política de Kant 1 Sobre a comunicabilidade de uma sensação 2 O gosto como uma espécie de sensus communis 2 Posfácio da editora