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Direito ·
Introdução ao Estudo do Direito
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A VERDADE FACTUAL RELATIVA NAS DECISÕES JUDICIAIS U M DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR C O M O FILME DOZE H O M E N S E U M A SENTENÇA THE RELATIVE FACTUAL TRUTH IN THE JUDICIAL DECISIONS AN INTERDISCIPLINARY DIALOGUE WITH THE MOVIE 12 ANGRY MEN Mara Regina de Oliveira Resumo Este artigo parte da hipótese de que a decisão jurídica não se reduz a u m silogismo jurídico o qual se restringiria à exposição declaratória e mecanicista da norma geral A verdade factual não pode ser captada pelo Direito no momento de sua aplicação prática Ela é substituída pelo pela idéia de fato verificado juridicamente o raciocínio decisório é constitutivo porque envolve u m discurso hermenêutico complexo E m u m a perspectiva interdisciplinar analisamos a linguagem imaginética do filme Doze Homens e uma sentença Sidney Lumet 1957 Palavraschaves Decisão Silogismo Verdade Linguagem Justiça Cinema Direito Interpretação Abstract This article considers the hypothesis that the legal decisión is not merely a legal syllogism which would be restricted to exposure of the declaratory and mechanist general mie The factual truth cannot be captured by the law at time of its practical application It is replaced by the idea of legally verified fact the reasoning is a constitutive decisión because it involves a complex hermeneutical discourse From an interdisciplinary perspective w e analyze the movie 12 Angry Men Sidney Lumet 1957 Keywords Decisión Syllogism Truth Language Justice Cinema Law Interpretation É possível que seja um problema interessante de psicologia social determinar o porquê se deseja ocultar o que realmente ocorre na administração da justiça Aqui devemos nos contentar e m asseverar que parece u m fenômeno universal simular que a administração dajustiça constitui uma simples dedução lógica de regras jurídicas sem nenhuma valoração por parte do juiz 1 Mestre e Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo onde leciona a disciplina Filosofia do Direito na condição de Professora Assistente Doutora É Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo onde leciona na pósgraduação a disciplina Cinema e Filosofia do Direito o problema da verdade e dajustiça no exercício jurídico do poder 1 ROSS Alf Direito e Justiça Bauru Edipro 2003 p 184185 R Fac Dir Univ SP v105 P535558 jandez 2010 536 Mar a Regina de Oliveira Introdução A peça teatral Faith Healer escrita pelo irlandês Brian Friel traduzida em recente montagem paulistana como O Fantástico Reparador de Feridas traz u m instigante questionamento e m torno da possibilidade da objetividade da narrativa de u m evento factual Ela é composta por quatro monólogos onde três personagens que viajaram juntos pelo interior da Escócia contam para o espectador sua versão sobre certos eventos traumáticos e m termos emocionais que viveram juntos no passado O aspecto instigante da peça é que a partir do momento que começamos a comparar os discursos nos colocando quase na posição de analistas psicológicos dos personagens percebemos que as narrativas são contraditórias e discordantes entre si2 Frank é o faith healer u m personagem atormentado que abusa da bebida por não ter controle do seu d o m da cura Ele demonstra cinismo e ao mesmo tempo angústia diante desta incerteza Grace sua esposa é filha de u m conhecido advogado mas vive u m a conturbada e ambígua relação com a Frank que oscila entre o amor e o ódio diante da sua dependência emocional e m relação ao seu companheiro que mostra traços de crueldade e m relação a ela Teddy é o empresário decadente de Frank que também é alcoólatra e busca defender a princípio o não envolvimento emocional na profissão mas paradoxalmente acaba por demostrar grande admiração pessoal por Frank e talvez uma paixão não assumida por Grace Observamos nos três personagens u m a grande fragilidade emocional e u m a marcante distância entre a fala verbalmente posta para o público como eles se vêem e aquilo que a figura deles comunica no palco como u m todo como eles podem ser vistos por terceiros H á uma grande diferença entre a imagem que cada u m faz de si próprio e como são vistos u m pelo outro do ponto de vista externo A peça termina sem que possamos saber o que de fato aconteceu a incerteza sobre a narrativa dos fatos permanece e m aberto O que observamos com exatidão é a incongruência discursiva entre os três personagens e a certeza da dúvida sobre as variadas e antagônicas percepções do real Conforme expõe Edgar Morin pelo processo psicológico da projeção como processo universal e multiforme as nossas necessidades aspirações desejos obsessões projetamse não só no vácuo dos sonhos e imaginação mas sobre as coisas e os seres Isto explica os relatos contraditórios de u m mesmo acontecimento mais inconscientes do que intencionais A crítica histórica ou psicológica do testemunho revela que as nossas percepções elementares como a percepção da estatura de alguém são confundidas Assistimos esta peça em Dublin no Gate Theatre sob a direção de Jonathan Kent tendo os atores Ralph Fiennes Frank Hardy Ingrid Craigie Grace e Ian MacDiarmid Teddy nos papéis principais E m São Paulo assistimos em 2010 a montagem feita pela Cia Ludens no Viga Espaço Cênico tendo os atores Walter Breda Frank Hard Mariana Muniz Grace e Rubens Caribe Teddy R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 537 sentença e trabalhadas pelas nossas projeções Sempre atribuímos a alguém que julgamos as tendências que nos são próprias Tudo é puro para os puros e impuro para os impuros3 A obra teatral discute como elementos psicológicos subjetivos interferem no testemunho pessoal da percepção da realidade de Frank Grace e Teddy enquanto elemento lingüístico relevante Eles questionam o nosso senso c o m u m lingüístico ingênuo voltado para a idéia da língua como representação objetiva do mundo real capaz de captar a chamada verdade factual Assistindo a montagem irlandesa lembramonos de como seria possível relacionar esta discussão com a narrativa dos fatos no âmbito judicial M a s é também possível pensar nesta mesma incerteza narrativa projetada no processo decisório jurídico D o ponto de vista dogmático admitese a possibilidade da verdade factual e abstraise o complexo problema da imprecisão lingüística e da subjetividade do intérprete Partese do pressuposto de que seria possível descrever os fatos com objetividade e subsumilo à normal geral com precisão lógica absoluta A proposta deste artigo é ir além desta simplificação dogmática e m parte justificada pela necessidade prática de promover a decidibilidade conflitos com o mínimo de perturbação social possível Pretendemos fazer u m a análise zetética e interdisciplinar do problema da verdade factual no fenômeno decisório lingüístico colocando e m discussão o problema da incerteza da narrativa E m termos metodológicos relacionaremos algumas teorias críticas do direito com a linguagem imaginética do cinema porque consideramos que ela assim como o teatro teria o d o m de captar as complexidades humanas que envolvem o fenômeno decisório na sua base real tendo e m vista o seu aspecto comunicativo profundo sem fazer concessões simplificadoras Escolhemos para a análise o brilhante filme Doze homens e uma sentença Sidney Lumet 1957 que na esteira do filósofo Júlio Cabrera nos faz pensar e m termos logopáticos sobre o problema da verdade e da justiça no processo judicial A seguir antes de entrar propriamente na análise do filme vamos expor e m linhas gerais reflexões sobre esta possibilidade de relacionamento do cinema com o pensar filosóficocrítico que para nós não apenas permite u m a exemplificação das teorias mas u m a expansão do próprio pensar filosófico e m si mesmo 1 Cinema e pensamento filosófico um diálogo possível Em um instigante livro intitulado O Cinema Pensa uma introdução à filosofia através dos filmes o filósofo argentino radicado no Brasil Júlio Cabrera defende a importante tese de que a filosofia ao invés de ser considerada como algo concebido historicamente antes do cinema poderia ser entendida como u m saber mutável 3 MORIN Edgard A alma do cinema In XAVIER Ismail Org A Experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 146 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 538 Mara Regina de Oliveira que se modifica através do diálogo com a chamada sétima arte como elemento cultural relevante Neste sentido o pensar através da interpretação de imagens e m movimento ou e m ilusão de movimento assume u m contorno não apenas voltado à racionalidade lógica mas também a u m a cognição da realidade que inclui u m elemento afetivo pático primordial4 Segundo o autor alguns filósofos como Kierkegaard Schopenhauer Heidegger e Nietzsche poderiam ser considerados filósofos páticos a palavra pático vem do grego phátos que diz respeito àquilo que manifesta emoções que de certa forma anteciparam u m tipo de reflexão humana no campo da linguagem escrita próxima a que será viabilizada pelo cinema posteriormente através de imagens5 Esclarece o autor que embora os chamados filósofos lógicos ou apáticos como Aristóteles São Tomás Descartes Locke Hume Kant e Wittgenstein tenham eventualmente formulado o problema do impacto da emoção na razão filosófica como tema os filósofos páticos citados no parágrafo anterior foram muito além incluindo a afetividade como elemento constitutivo da racionalidade do ponto de vista interno e não apenas externo Citando Heidegger ele afirma Dentre todos os filósofos foi ele que expressou de maneira mais clara este compromisso da filosofia com um pathos de caráter fundamental quando fala por exemplo da angústia e do tédio como sentimentos que nos colocam em contato com o ser do mundo como sentimentos com valor cognitivo no sentido amplo de um acesso ao mundo não de um sentido epistemológico Ao referir à poesia como pensante e não apenas como um fenômeno estético ou um desabafo emocional ela a considera essencialmente apta a expressa a verdade do ser6 Para a compreensão profunda de u m problema filosófico não basta entendê lo racionalmente como conceito teóricosemântico Temos de vivêlo sentilo ser afetado por ele como u m a experiência emocional não empírica que aguce a nossa sensibilidade cognitiva próxima de u m a dimensão que poderíamos chamar de pragmáticoimpactante a qual deve produzir algum tipo de transformação Embora a forma literária tenha preponderado na história do pensamento filosófico nada impediria que se viabilizasse u m a problematização filosófica através da análise de imagens do cinema da fotografia da ópera ou da dança7 Mais adiante ele levanta a polêmica hipótese de que o cinema seria u m a linguagem mais apropriada do que a própria escrita nesta forma de pensar dos C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 1516 Id Ibid Id Ibid p 19 Id Ibid p 17 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 539 sentença filósofos que ele chama de logopáticos Algumas questões humanas não podem apenas ser ditas e articuladas logicamente Elas devem ser apresentadas sensivelmente por meio de u m a compreensão logopática racional e afetiva que longe de ser u m a mera impressão psicológica tem pretensão de verdade universal C o m o forma de pensamento ele é tão aberto como a filosofia dita literária não existe u m a definição que o alcance e m termos absolutos8 Cabe aqui mencionar o pensamento de Jean Epstein sobre a questão C o m o Cabrera ele destaca a grande proximidade simbólica da imagem c o m a realidade sensível que ela representa e m comparação c o m a palavra que apresentaria u m a espécie de símbolo indireto elaborado pela razão relacionado ao poder de abstrair classificar e deduzir A percepção da imagem e m movimento constitui u m a significação semi pronta que alcança de forma contundente e indutiva a emotividade do espectador sem a mediação do raciocínio abstrato Já a palavra para produzir u m a emoção depende de uma prévia decodificação racional de seu significado para que represente u m a realidade e esteja apta a mexer c o m sentimentos Nas suas considerações A frase fica como u m criptograma incapaz de suscitar u m estado sentimental enquanto a sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveis através de operações intelectuais que interpretam e reúnem numa ordem lógica termos abstratos para deles deduzir uma síntese mais completa Por outro lado a simplicidade extrema com que se organiza uma seqüência cinematográfica onde todos os elementos são acima de tudo figuras particulares requer apenas u m esforço mínimo de decodificação e ajuste para que os signos da tela adquiram u m efeito pleno de emoção9 Para que a linguagem cinematográfica seja vista do ponto de vista filosófico é necessário que percebamos que ela se constrói a partir dos chamados conceitos imagem que não se confundem com os tradicionais conceitosideia trabalhados na filosofia escrita N o pensamento de Cabrera eles não têm u m caráter essencialista e definitivo mas heurístico e crítico Eles caracterizam u m a experiência que se tem para que possamos entender e trabalhar este conceito na forma de u m fazer coisa c o m imagens Nas palavras do autor A racionalidade logopática do cinema muda a estrutura habitualmente aceita do saber enquanto definido apenas lógica ou intelectualmente Saber algo do ponto de vista logopático não consiste somente em ter informações mas 8 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 18 9 EPSTEIN Jean O cinema do diaboexcertos In XAVIER Ismail Org A experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 294 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 540 Mara Regina de Oliveira também em estar aberto a certo tipo de experiência e em aceitar deixarse afetar por uma coisa de dentro dela mesma em uma experiência vivida10 Não se trata apenas de assistir ao filme como u m a experiência estética ou social desarticulada do raciocínio ou ler u m comentário sobre a película mas de desenvolver u m a interação lógicoafetiva que evidencie a presença de conceitos ou idéias nas imagens e m movimento Já entendemos como a linguagem do cinema é poderosa porque produz a famosa impressão da realidade acompanhada pela identificação com o olhar dos personagens numa situação dinâmica de espacialidade e temporalidade construídas Os conceitosimagem do cinema produzem u m impacto emocional sobre questões que dizem respeito ao humano com valor cognitivo persuasivo unindo lógica e pática concomitantemente Este impacto emocional não está ligado a u m possível efeito dramático de u m filme do tipo melodrama muitos filmes considerados cerebrais comovem o espectador pela sua frieza Por mais racional que seja u m filme ele nunca será abstrato como u m tratado literário filosófico Neste sentido cabe lembrar da didática distinção feita por Hugo Munsterberg a respeito das emoções provocadas pelo cinema E m primeiro lugar teríamos as emoções que os personagens comunicam de dentro do filme provocando simpatia pelo sofrimento ou m e s m o compartilhando as alegrias pelo amor realizado A percepção visual das várias manifestações dessas emoções se funde e m nossa mente com a consciência da emoção manifestada É como se estivéssemos vendo e observando diretamente a própria emoção Reagimos organicamente de forma adequada o horror nos dá arrepios a felicidade nos acalma H á uma experiência viva do reflexo emocional dentro da nossa mente Nos filmes melodramáticos este tipo emoção está muito presente Mas haveria por assim dizer u m segundo tipo de emoção secundária e m que a platéia reage às cenas do filme do ponto de vista da sua vida afetiva independente onde pode haver portanto u m a indignação moral e não u m a identificação emotiva com o personagem A nosso ver estas duas formam de emotividade se combinam na experiência do cinema mas a emoção secundária estaria mais presente nos chamados filmes cerebrais e seria muito útil e m atividades acadêmicas interdisciplinares A pretensão de universalidade da reflexão filosóficocinematográfica está ligada à idéia de possibilidade e não de necessidade Temos a constatação de que embora não aconteça necessariamente com todos poderia acontecer com qualquer um12 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 21 M U N S T E R B E R G Hugo As emoções In XAVIER Ismail Org A experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 5253 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 541 sentença Um filme por inteiro pode ser a expressão de um conceitoimagem de uma ou múltiplas noções Temos neste caso u m macro conceitoimagem que é formado a partir de outros conceitosimagem menores que requerem certo tempo cinematográfico para o seu desenvolvimento temporal u m a única cena não pode constituir u m conceito imagem13 Eles podem ser percebidos literalmente nas imagens exibidas ou serem captados de forma abstrata e metafórica tornando plena a sua conceituação filosófica14 A produção do impacto emocional é fundamental para a eficácia cognitiva do conceitoimagem A técnica cinematográfica se vale da pluriperspectiva da manipulação do tempo e espaço e do corte cinematográfico para viabilizar este efeito estético A pluriperspectiva se constitui graças a sua capacidade de dar saltos da primeira o que vê ou sente o personagem que é subjetiva para a terceira que é objetiva o que vê a câmera Neste sentido a montagem dentro dos planos o ângulo aberto ou fechado da câmera e seu movimento podem tornar intensa a experiência do cinema Isto se associa à enorme capacidade de manipular tempo e espaço avançar e retroceder inverter ou mesclar a ordem cronológica do passado e do futuro mostrar espaços simultâneos e articular o literal e o metafórico como só os sonhos podem Por fim temos a maneira aberta e plural de conectar os planos as cenas e as seqüências15 A técnica cinematográfica possibilita a instauração da experiência logopática a qual permite a manifestação dos conceitosimagem que só podem ser gerados por ela e não por meios literários ou fotográficos Outra característica importante seria a de que eles sempre apresentam desfechos abertos a novas problematizações filosóficas m e s m o que a intenção do diretor seja a de fechálas A linguagem da imagem tem u m a natureza subversiva e m termos de estrutura Neste sentido as soluções lógicas da filosofia escrita geralmente têm u m a intenção de apresentar conclusões mais conciliadoras conservadoras e construtivas simbolicamente bem educadas como uma tentativa de resolver o mundo dentro da cabeça que o cinema não consegue fazer mesmo que tente16 Cabrera também levanta o problema da verdade universal filosófica na linguagem do cinema que se vale de u m a impressão de realidade e pela possibilidade de apresentar a mais inverossímil fantasia como aparência de realidade de maneira retórica e até declaradamente mentirosa Não esqueçamos de que parte da tradição filosófica reverencia a verdade como algo que pode estar livre de ilusões e equívocos C o m o conciliar esta simulação do real com a pretensão de verdade17 2006 p 23 13 Id Ibid p 24 14 Id Ibid p 26 15 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 3132 16 Id Ibid p 34 17 Id Ibid p 37 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 542 Mara Regina de Oliveira O autor entende que tanto as ciências como as filosofias escritas estão cheias de simulações de exemplos fantasiosos para o desenvolvimento de suas questões E m todos os filmes o problema do universalparticular está presente na própria experiência do cinema como u m a espécie de problematicidade intrínseca da imagem através do impacto emocional que provoca Este impinge u m a noção de verdade quase visceral que passa pelas entranhas até chegar ao cérebro mais do que poderia fazer u m tradicional texto filosófico escrito Nestes termos a leitura filosófica de u m filme ao compor elementos lógicos e afetivos está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as emoções mas a própria reflexão logopática que ela gera tem u m alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral muito além do que é simplesmente mostrado no filme 18 A leitura filosófica de u m filme ao compor elementos lógicos e afetivos está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as emoções mas a própria reflexão logopática que ela gera tem u m alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral muito além do que é simplesmente mostrado no filme Nas palavras do autor enquanto a filosofia escrita pretende desenvolver u m universal sem exceções o cinema apresenta u m a exceção com características universais 19 Por último o autor faz u m importante alerta relativo ao problema da imagem poder eventualmente impingir a sua manipulação retórica emocional de forma abusiva e distorcida Ele cita o exemplo dos filmes de propaganda nazista que ajudaram a disseminar a banalidade do mal entre o povo alemão Sempre é necessário que haja u m a informação exterior racional que não venha da própria imagem Desse modo o que as asserções imaginéticas nos mostram não deve ser assumido como verdadeiro sem maiores ponderações críticas de forma similar ao que ocorre nas proposições filosóficas escritas N a percepção do filme o aspecto emocional interage permanentemente com o aspecto lógico Neste sentido diz o autor Podemos negar a verdade que a imagem cinematográfica nos tenta impor A mediação emocional tem a ver com a apresentação da idéias filosófica e não com a sua aceitação impositiva Devemos nos emocionar para entender e não necessariamente para aceitar Não é que a emoção da imagem nos mostre imediatamente uma verdade ela nos apresenta impositivamente um sentido uma possibilidade Mas o sentido de uma imagem como o sentido de uma proposição é anterior à sua verdade ou falsidade20 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p39 Id Ibid p 42 Id Ibid p 4041 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 543 sentença Partindo desta reflexão de Cabrera voltada para a filosofia geral entendemos que no campo da teoria do direito existem instigantes linhas filosóficas literárias práticas que permitem u m a aproximação muito rica com a linguagem imaginética na apreensão de temas que envolvem u m a delicadeza sutil da compreensão do humano e m u m a dimensão mais profunda Toda a discussão teóricofilosófica sobre a relação entre direito verdade e justiça no plano real dos fatos e das condutas efetivas envolve esta aproximação experiencial emotiva que vai muito além da racional compreensão semânticológica de enunciados escritos nos textos legais dogmáticos Tratase de u m ramo do direito onde o humano envolvese diretamente nas questões teóricas primordiais principalmente quando indagamos a respeito da sua imperatividade concreta 2 As imprecisões lingüísticas presentes no momento da aplicação do Direito De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Júnior as teorias dogmáticas estudam o Direito a partir de sua capacidade de institucionalizar e decidir os conflitos sociais do ponto de vista jurídico Para tanto abstraem todas as questões zetéticas de realidade que permeiam o fenômeno normativo que poderiam postergar esta tomada de decisão e comprometer o ideal de segurança jurídica U m dos cânones balizares das teorias dogmáticas da decisão é a idéia de que o raciocínio no âmbito legislativo administrativo e judicial reduzse no seu aspecto formal a u m mero raciocínio silogístico dedutivo que teria a seguinte estrutura básica a norma geral seria a premissa maior a descrição do caso seria a premissa menor e a conclusão seria o ato decisório e m sentido estrito21 C o m o no exemplo Se um indivíduo matar alguém deve ser punido com pena de reclusão de seis a vinte anos João matou seu pai Logo João deve ser punido com pena de reclusão de 15 anos D e u m ponto de vista zetético todavia a realidade lingüística que compõe o raciocínio decisório é muito mais complexa pois vai muito além da visão aparentemente mecânica e simplista do raciocínio lógicoformal A subsunção que consiste no ato de submeter o caso à regra depende da construção da premissa maior que se relaciona tanto com a sua complicada interpretação semântica como na verificação da sua validade normativa e m relação às demais normas do sistema jurídico Nesta perspectiva a premissa maior normativa não é u m dado ela traz elementos prescritivos de dever ser ela 21 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 316 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 544 Mara Regina de Oliveira tipifica a hipótese normativa matar alguém ao imputar u m a conseqüência normativa sancionadora pena de reclusão de 6 a 20 anos22 Hans Kelsen numa perspectiva semelhante considera que o raciocínio decisório tem u m a natureza constitutiva e não apenas declaratória da norma geral O julgador não teria de descobrir e declarar u m direito já de antemão firme a acabado cuja produção já foi concluída na norma geral A aplicação individualização das normas jurídicas gerais depende da verificação no caso concreto apresentado de que existem in concreto os pressupostos in abstracto determinados pela norma geral questões de fato A norma individual que impõe u m a sanção concreta seria constituída e criada só através da decisão judicial23 N o âmbito da construção da premissa maior temos de enfrentar o problema semântico do caráter convencional e equívoco da linguagem A relação entre língua e realidade não é natural nem essencial e m termos universais mas arbitrariamente construída pelas interações humanas Os conceitos não descrevem u m a realidade posta a priori pois é a partir dos conceitos mutáveis e m termos históricos que descrevemos a própria realidade e m seu aspecto dinâmico C o m o os usos lingüísticos variam no tempo e espaço temos o problema da vagueza e da ambigüidade de seus termos Os conceitos vagos são aqueles que a doutrina costuma chamar de conceitos indeterminados na medida e m que sua extensão denotativa é imprecisa C o m o exemplo mencionamos expressões perigo eminente meios necessários ruído excessivo moderadamente Já os conceitos ambíguos ocorrem na medida e m que sua intenção conotativa é sempre dúbia como no caso boafé mulher honesta injusta agressão Muitas vezes a norma estabelece explicitamente u m espaço da discricionariedade do julgador para adaptar a norma a situações fáticas distintas por exemplo u m a pena mínima de seis e pena u m a máxima de vinte anos24 Al Ross e m linha de raciocínio semelhante considera que a referência semântica das palavras do ponto de vista convencional é constituída por u m a zona central sólida e m que a sua aplicação é predominante e certa e u m círculo nebuloso exterior de incerteza no qual a sua aplicação é menos usual e no qual se torna duvidoso saber se a palavra pode ser aplicada ou não A vagueza afeta todas as palavras diz respeito ao fato de seu campo de referência ser indefinido A zona central se transforma gradualmente num círculo de incerteza A ambigüidade que está presente na maioria das palavras diz F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 317 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 255 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 318 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 545 sentença respeito ao fato das palavras não terem um campo de referência único mas múltiplo25 Para citar as palavras do autor De todos os sistemas de símbolos a linguagem é o mais plenamente desenvolvido o mais eficaz e o mais complicado A linguagem pode manifestarse como uma série de formas auditivas ou visuais fala e escrita O significado atribuído a estas formas é claramente convencional Nada impediria que a palavra gato fosse empregada para designar o animal doméstico com quatro patas que faz uau uau e cão para designar o que faz miau O significado atribuído aos símbolos lingüísticos é determinado pelos costumes da comunidade referentes às circunstâncias nas quais se considera adequado emitir certos sons26 Hans Kelsen no último capítulo da Teoria Pura do Direito refutando com veemência a possibilidade da interpretação normativa correta ou verdadeira fala a respeito das indeterminações intencionais e não intencionais que são percebidas linguisticamente no ato de aplicação do direito A s intencionais como o próprio nome indica são aquelas postas de forma consciente pelo órgão criador da norma a ser aplicada a fim de que o aplicador determine critérios específicos para cada caso Ele cita o exemplo da lei penal que prevê para u m m e s m o delito a aplicação da pena de multa e da pena de prisão cabendo ao juiz no caso concreto decidir por u m a ou pela outra Já as indeterminações não intencionais seriam muito mais complexas porque não e m a n a m da vontade do legislador mas do aspecto social e não natural da linguagem Palavras idênticas podem ter significados diferentes o sentido verbal não é unívoco o órgão que tem de aplicar a norma encontrase perante várias significações possíveis Nas palavras de Hans Kelsen a interpretação cognoscitiva leva a percepção da moldura que pode ser preenchida c o m significados semânticos distintos27 Nesta atividade cognoscitiva do órgão aplicador do direito não há formação de raciocínios puros pois há a incidência de normas morais normas de justiça e juízos sociais de valor que não fazem parte do Direito Positivo propriamente e que para o autor são normas relativas jamais universais Ele conclui neste sentido que a interpretação de uma lei não deve conduzir a uma única solução como sendo a única correta mas possivelmente a várias soluções que têm igual valor D o ponto de vista estritamente científico caberia apenas elencar os diversos sentidos possíveis sem qualquer vinculação com a prática efetiva M a s esta incerteza lingüística não impede a tarefa dogmática do direito que para ele está no campo da política jurídica e não da ciência pura O autor ressalta ROSS Alf Direito e justiça Bauru São Paulo Edipro 2003 p 142 Id Ibid p 140 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 364366 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 546 Mara Regina de Oliveira que no momento da aplicação esta interpretação cognoscitiva ligada ao conhecimento dos múltiplos sentidos semânticos se combina com u m ato volitivo que escolhe u m dos sentidos possíveis revelados através da sua percepção cognitiva Esta interpretação torna se autêntica porque cria direito não porque seja de fato como defende a doutrina tradicional a mais correta ou a mais justa do ponto de vista valorativo28 Al Ross entende que a inevitável imprecisão das palavras torna possível tanto abarcar os fatos como não abarcar tendo e m vista o significado da lei O juiz terá de escolher sempre influenciado por u m a valoração A interpretação é u m ato de natureza construtiva que é motivada tanto pela consciência jurídica formal como pela consciência jurídica material A consciência jurídica formal diz respeito ao dogma de obediência ao direito A consciência jurídica material relacionase à tradição cultural ideais posturas valorações que vive no espírito do juiz Ele interpreta a lei à luz desta consciência a fim de que sua decisão seja aceita como correta e como justa ou socialmente desejável Graças a u m a técnica de argumentação o juiz aparenta que sua argumentação pode ser deduzida da verdadeira interpretação da lei29 Recaséns Siches numa linha semelhante de raciocínio entende que esta materialidade valorativa intrínseca a qualquer julgamento estaria sempre a serviço de u m ideal de justiça humanitário e prudencial30 O exame da premissa menor não é menos problemático na medida e m que diz respeito ao tema da prova jurídica A palavra probatio advém de probus que gerou e m português prova e probo Tercio Sampaio Ferraz Jr levanta o problema do duplo sentido da palavra prova que aponta e m seu sentido objetivo a demonstração de u m fato ocorrido e e m seu sentido subjetivo fazer aprovar inspirando simpatia e confiança permitindo o entendimento dos fatos e m sentido favorável envolvendo diretamente o problema dajustiça31 Segundo Hans Kelsen não só a interpretação da norma geral mas também a averiguação do fato delituoso teria u m caráter constitutivo O tribunal determina o órgão para verificar se o fato ocorreu concretamente a fim de que entre no domínio do direito Não é o fato e m si de alguém ter cometido u m homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica mas o fato de u m órgão competente juridicamente ter verificado n u m processo determinado pela ordem jurídica que u m indivíduo praticou u m homicídio O suspeito pode confessar ou negar o fato mas apenas importam as opiniões K E L S E N Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 365 ROSS Alf Direito e Justiça Bauru Edipro 2003 p 168 P R A D O Lídia Reis de Almeida Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do direito Segundo a visão de Recaséns Sie hes In DI GIORGI Beatriz C A M P I L O N G O Celso Fernandes PIOVESAN Flávia Coord Direito cidadania e justiça ensaios sobre lógica interpretação teoria sociologia e filosofia jurídicas São Paulo Editora dos Tribunais 1995 p 6174 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 319 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 547 sentença dos indivíduos encarregados de aplicar o direito que podem até contradizerse Todavia só u m a opinião pode prevalecer na medida e m que ela é juridicamente relevante só podendo ser atacada por meio de recurso até que transite e m julgado O tribunal pode verificar que u m determinado indivíduo praticou u m homicídio embora na realidade ele não tenha ocorrido ou o tribunal pode verificar que u m indivíduo não praticou u m homicídio embora na realidade ele tenha executado tal homicídio O fato processualmente verificado vem ocupar o lugar do fato e m si32 D e acordo com este pensador teríamos que reformular o silogismo na seguinte forma Se u m indivíduo matar alguém deve ser punido com pena de reclusão de 6 a 20 anos Pressupostos e conseqüências abstratas Pelo processo verificouse que João matou seu pai Verificação concreta e constitutiva dos fatos problema da prova Logo João deve ser punido com pena de 15 anos de reclusão Ordem concreta da sanção Tercio Sampaio Ferraz Jr ao analisar o pensamento de Hans Kelsen no tocante ao problema da segunda premissa considera que as relações fáticas do ponto de vista jurídico não se ligam ao princípio da causalidade mas sim ao da imputação Embora ele considere que a imputação normativa não possa ignorar o nexo causai e m termos absolutos se o nexo causai é impossível a imputação perde o sentido provar u m fato em termos jurídicos significa u m a questão normativa de atribuição de conseqüências à conduta e não u m a relação causai Assim não se prova se A pagou X para B mas sim se houve u m pagamento e m termos jurídicos33 E m síntese podemos afirmar que segundo este autor a questão da prova é u m problema interno ao sistema já que é ele quem determina os prazos e até m e s m o e m que situações devem ser aceitos os nexos causais entre os fatos e direitos A s provas devem ser admitidas pelo Direito Através de procedimentos dogmáticos institucionalizados que são não mecânicos mas constitutivos fazse u m trabalho lingüístico de transformar questões indecidíveis e m decidíveis que de novo podem transformarse e m indecidíveis até a decisão que termina a questão Os procedimentos burocráticos institucionalizados através dos papéis sociais neutralizam o efeito as pressões sociais sobre o sistema jurídico N o processo judicial podemos ser partes advogados promotores agentes judiciais ou juizes H á u m a contínua interação entre os papéis que já são configurados de antemão e não propriamente das pessoas concretas34 32 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 257258 33 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 320 34 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 548 Mara Regina de Oliveira 3 Doze homens e u m a sentença o conceitoimagem do problema da verdade factual relacionada ao tema dajustiça Na cena inicial desta película dirigida por Sidney Lumet em 1957 temos u m a tomada de câmara panorâmica que mostra o conceitoimagem da imponência do Tribunal do Júri da cidade de N o v a York visto de sua escadaria de cima para baixo A câmera vai aos poucos descendo e dirigindo o nosso olhar para dentro primeiro no saguão principal depois no corredor por fim nos colocando diretamente na sala de audiência número 228 onde o juiz profere a seguinte determinação normativa para o júri Juiz Ouviram u m longo e complexo caso de homicídio em primeiro grau U m homicídio premeditado é mais grave acusação em nossos tribunais Ouviram os testemunhos a lei lhes foi lida para ser aplicada ao caso Agora é dever de vocês separar os fatos da versão U m homem está morto a vida de outro está em jogo Se houver dívida razoável sobre a culpa do acusado devem entregarme o veredicto de não culpado se entretanto não houver devem em sã consciência declarar o acusado culpado O que quer que decidam o veredicto deve ser unânime N o caso de julgarem o acusado culpado o tribunal não considerará a hipótese de perdão A sentença de morte é compulsória neste caso Estão frente a grande responsabilidade Obrigado A seguir enquanto o júri deixa a sala a câmera dá u m close na face do jovem acusado de origem latina que mostra e m termos logopáticos o sentimento da angústia de ser sentenciado à cadeira elétrica É a única vez que vemos a sua face ele é acusado de matar seu pai com u m a facada no peito Entramos na sala de votação do júri que está abafada parece ser o dia mais quente do ano e o ventilador não funciona Todos os doze jurados são trancados para que o procedimento burocrático institucionalizado e m torno da decisão unânime se concretize nos termos da interpretação autêntica exposta por Hans Kelsen D o ponto de vista jurídico não temos seres humanos concretos naquela sala mas apenas papéis institucionalizados ligados à função de jurados Eles não têm nomes naquela sala apenas números A partir deste momento vivemos os bastidores zetéticos e humanos daqueles personagens o espectador é trancado na sala c o m eles o m u n d o exterior não pode mais ser visto O clima a ser construído é de discordância angústia e dúvida O filme evita claramente o tratamento maniqueísta os personagens são ambíguos e profundamente humanos no seu desenvolvimento demonstram ter virtudes e defeitos O fato de se tratar de u m órgão judicante coletivo nos permite ver c o m mais didatismo toda a complexidade São Paulo Atlas 2003 p 321 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 549 sentença humana que está por detrás da verificação jurídica do fato que implica numa construção lingüística interpretativa A ação dramática não pode ser mais natural e espontânea nos seus detalhes pois é traduzida e m vários longos planossequência a extensão do corte entre os planos é longa e contínua quase simulando uma discussão feita e m tempo real Os personagens combinam u m a linguagem verbal contundente com u m a expressiva linguagem corporal que é bastante agitada O suor escorre pelas faces nervosas da impactante e expressiva fotografia e m branco e preto Eles não param sentados e m seu lugar nem por u m instante O ritmo da montagem do filme é envolvente e o roteiro é preciso no seu desenvolvimento e m termos lógicos não há u m a cena supérflua na película O oitavo jurado numa magistral atuação de Henry Fonda demonstrando angustia reflexiva olha para a janela como se buscasse ver o mundo lá fora a ordem do ser mas é interrompido pelo décimo segundo jurado que diz frivolamente bonita vista o que achou do caso Achei bem interessante não havia pontos obscuros entende o que digo Tivemos sorte de pegar u m homicídio Antes que a votação comece o clima geral é de descompromisso fazse piadas lêse o jornal falase de trabalho partindo da premissa superficial de que se trata de u m caso óbvio O sétimo jurado diz ao jurado líder foreperson podemos ir embora rápido não sei de vocês mas tenho ingressos para o jogo de hoje Yanks contra Cleveland N o momento da votação o filme mostra o seu poderoso elemento logopático central ligado ao fenômeno decisório jurídico O júri é composto por não especialistas em Direito ele não interpreta a norma geral que tipifica o homicídio como crime mas deve verificar juridicamente o fato através do exame da consistência das provas Todos os jurados acabaram de acompanhar seis dias de audiência com manifestação lingüística da defesa da acusação das testemunhas e do próprio acusado Onze jurados o consideram culpado apenas um o oitavo jurado o considera não culpado A partir daí uma interessante interação comunicativa vai se estabelecer entre eles na maior parte das vezes extremamente nervosa e acalorada e m termos emocionais Tratase da angústia da escolha da decisão traduzida e m termos logopáticos que mescla no espectador uma união de emoções de primeiro e segundo grau Os onze jurados que decidem pelo veredicto culpado demonstram ter apenas consciência da presença de aspectos formais no julgamento no sentido proposto por Alf Ross Apresentam também uma visão ingênua da linguagem como representação da realidade são persuadidos pelo discurso da acusação integralmente Não percebem que eles próprios interpretam a interpretação do discurso probatório a eles apresentada previamente na audiência Após ouvirem a apresentação das provas há uma clara confusão na mente deles entre o verdadeiro e o verossímil entre o fato verificado e o fato em si Todos depositam uma certeza absurda e m torno da suposta situação fática o garoto matou seu pai como se a tivessem visto com seus próprios olhos Aderem aos R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 550 Mara Regina de Oliveira discursos das testemunhas de acusação os tomam como se fossem deles próprios até parece que eles mesmos testemunharam a cena do crime N a justificativa de seus votos alguns se vêem como imparciais Eles só querem citar os fatos como o terceiro jurado numa contundente atuação de Lee J Coob que reproduz o discurso na íntegra de uma das testemunhas vizinha ao rapaz morador do andar debaixo Terceiro jurado O velho morava embaixo do quarto onde houve o homicídio Às OOlOh na noite do homicídio disse ter ouvido barulho E que parecia de briga E ouviu o rapaz gritar Eu vou te matar U m segundo depois ouviu o corpo cair Correu até lá abriu a porta e viu o rapaz fugindo Chamou a polícia Chegaram e acharam o pai esfaqueado O legista precisou a hora da morte por volta da meia noite Esses são os fatos Não se pode refutálos O rapaz é culpado Também sou sentimental Ele só tem 18 anos mas ainda assim deve pagar O décimo jurado tenta reproduzir com suposta objetividade a narrativa da testemunha feminina que morava no prédio e m frente Ela alega ter olhado pela janela e visto do outro lado da rua o rapaz esfaquear o pai às OOlOh m e s m o que naquele exato instante passasse u m trem todo apagado sem passageiros Segundo o que supostamente ficou provado no tribunal seria possível enxergar a janela da frente através de u m trem nestas condições Décimo jurado U m a mulher deitada sem poder dormir de calor entendem levanta olha pela janela e do outro lado da rua vê o rapaz esfaquear o pai É precisamente OOlOh tudo se encaixa Olha ela conhece o rapaz desde pequeno A janela dele é e m frente Ela jura que o viu matar N a especificação dos fundamentos da decisão de cada um observamos uma interessante questão u m a rica pluriperspectiva expressa a partir do ponto de vista de cada jurado Algumas falas potencializadas pelo eficiente uso do closeup que mostra a expressiva linguagem facial de todos revelam a diferente forma com que os jurados percebem a questão lingüística e a sua própria subjetividade A justificativa do oitavo jurado revela consciência da materialidade da interpretação nos termos áeAlfRoss e está bem próxima à lógica do razoável de Recaséns Siches Ela preconiza que todo julgamento deve assumidamente almejar o valor justiça a prudência humana e m favor dos menos favorecidos e m termos sociais Ele demonstra ter a consciência clara de que no processo jurisdicional as estimativas são feitas e m termos concretos a partir de visões particulares Para tanto valoramse as provas e os fatos escolhendose a norma pertinente Fatos idênticos são passíveis de valorações diversas D a m e s m a forma ele parece perceber o que disciplina Hans Kelsen ao alertar que o fato juridicamente verificado pode eventualmente não corresponder ao fato e m si haveria sempre u m a margem de erro potencial Neste sentido se o júri verifica u m fato que na realidade não ocorreu a justiça R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 551 sentença como valor fica claramente comprometida um inocente estaria sendo condenado à morte Pelo sistema jurídico americano o ônus da prova cabe à promotoria mas havendo dúvidas na verificação jurídica do fato não deve haver condenação O oitavo jurado diz c o m reponsabilidade que não se pode decidir sobre a vida de u m jovem de dezoito anos e m cinco minutos Neste instante iniciase u m antagonismo claro entre ele e o terceiro jurado que aparece no diálogo Oitavo jurado E se errarmos Este rapaz foi maltratado a vida inteira Nasceu na pobreza A mãe morreu quando tinha nove anos Morou u m ano e meio em orfanato enquanto o pai esteve preso por estelionato Não é u m começo muito feliz E u m rapaz revoltado porque foi maltratado a vida inteira todos os dias Teve dezoito anos de muita infelicidade Acho que lhe devemos umas palavras é só De acordo com os testemunhos parece culpado Talvez seja Sentei no tribunal seis dias enquanto apresentavam as provas Tudo parecia se encaixar tão bem que comecei a estranhar ou seja nada se encaixa tão perfeitamente Queria perguntar várias coisas Talvez não mudasse nada Comecei achar que a defesa não confrontou as provas de forma efetiva Deixou muitas coisas passarem Comecei a m e colocar no lugar do rapaz Teria pedido outro advogado Se fosse minha vida em jogo ia querer que meu advogado pusesse as testemunhas de acusação na parede Só há uma pessoa que pode ser considerada testemunha a outra diz que ouviu e viu o rapaz fugir depois de matar E há provas circunstanciais Esses dois são tudo o que a promotoria tem E se estiverem errados Terceiro jurado Como assim errados Então para que testemunhas Oitavo jurado Não podem estar errados Terceiro jurado Como assim Estavam sob juramento Oitavo Jurado São pessoas Pessoas erram Não poderiam estar errados O filme também não idealiza a imagem e a vida do acusado que cresceu num cortiço miserável Ele sempre teve u m a vida difícil mas já assumiu atitudes de violência desde muito jovem Segundo informação dos autos o rapaz desde os cinco anos apanhava do pai a socos C o m dez anos foi ao juizado de menores porque jogou u m a pedra na professora já com quinze foi para u m reformatório Roubou u m carro e foi preso por isso Foi pego duas vezes brigando com u m a faca é sabido que seria muito habilidoso c o m elas Para complicar ainda mais o caso através do testemunho de vizinhos que o rapaz teria batido no pai depois de u m a briga por volta das 1900h daquela noite O acusado alega que depois de apanhar do pai teria ido direto a u m a espelunca onde comprou R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 552 Mara Regina de Oliveira u m canivete que tinha cabos especiais O rapaz que lhe vendeu a faca disse que era a única que tinha no estoque Ele teria encontrado os amigos no bar os quais viram a faca mas foi embora às 2045h e teria ido para casa por volta das 2200 h À s 2330h alega ter ido ao cinema e ter perdido a faca antes de voltar para casa por volta das 310h da manhã quando encontra a polícia e o pai morto na sua casa supostamente com a m e s m a faca Ele é interrogado no local do crime e preso pois não foi reconhecido por ninguém que estava no cinema e não consegue se lembrar dos nomes dos filmes que supostamente viu Duas testemunhas vizinhas alegam têlo visto matar o pai e fugir por volta das 0010h As circunstâncias são incriminadoras para o acusado mas o fato em si e m torno da morte do pai do acusado é inacessível para os jurados é inacessível para nós espectadores O oitavo jurado apesar de estar imbuído claramente por uma valoração humanista solidária à condição de excluído do rapaz inicia u m a perspicaz discussão lingüística e m torno da coerência formal do discurso das provas apresentadas Sua estratégia argumentativa é inteligente na medida e m que percebe haver u m grande dissenso valorativo entre os jurados cuja moralidade se mostra bastante relativa no sentido kelseniano da expressão Eles vêm de classes sociais diferentes u m deles inclusive viveu n u m cortiço e m condições semelhantes a do acusado Outros demonstram ter u m poder aquisitivo alto u m deles é corretor da bolsa de valores de Nova York O mais impactante e m termos de conceitoimagem é que vários deles ao longo da discussão deixam o seu papel institucionalizado de jurado e mostram de u m ponto de vista zetético os seus valores pessoais divergentes que acabam por influenciar muitas vezes de forma inconsciente a sua própria interpretação constitutiva dos discursos probatórios Esta valoração nem sempre é humanista e razoável muitas vezes está ligada a preconceitos sociais e traumas pessoais O terceiro jurado relatou olhando para a foto dos dois juntos ter ensinado o filho a brigar quando criança Aos dezesseis anos o filho bateu nele saiu de casa depois disto não mantém contato com ele há dois anos Lembramonos também do que diz o décimo jurado bem representado por EdBegley logo no início do debate sua fala aparentemente objetiva revela na verdade grande preconceito social Décimo jurado Teve um julgamento justo Quanto custa isto Ouvimos os fatos não quer que acreditemos no rapaz sabendo o que é Convivi com eles a vida toda Não se pode acreditar em nada do que dizem Sabem disso Já nascem mentirosos A primeira inconsistência estrutural do discurso das provas levantada pelo oitavo jurado diz respeito à suposta raridade da faca utilizada no crime que seria a m e s m a faca pertencente ao rapaz Ele mostra u m a faca idêntica que teria comprado ilegalmente numa tabacaria a duas quadras da casa do rapaz e que teria custado seis dólares Considera nestes termos que haveria a possibilidade dele ter m e s m o perdido a faca e o pai ter sido esfaqueado com u m a similar Mais tarde vai ser considerado através R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 553 sentença da experiência do sexto jurado que morou num cortiço que o rapaz por ser experiente como o uso deste tipo de faca jamais a utilizaria de cima para baixo como ocorreu no crime mas sim de baixo para cima É feita mais u m a votação se os onze mantiverem a seu veredicto de culpado o oitavo jurado aceita concordar com eles e mudar o seu voto Mas neste momento aparece mais voto para não culpado foi dado pelo nono jurado retratado pela bela atuação de Joseph Sweeney claramente o mais velho do grupo Fica claro que ele é u m a pessoa madura e ponderada menos vítima de seus preconceitos e traumas que teve a sua visão e m torno dos possíveis equívocos da linguagem ampliada pela discussão iniciada pelo oitavo jurado Ele diz Nono Jurado Ele não está dizendo que o rapaz é inocente Apenas não tem certeza Não é fácil se posicionar contra os outros Ele fez uma jogada por apoio e eu lhe dei O rapaz é provavelmente culpado mas quero ouvir mais A seguir o oitavo jurado percebe uma outra sutil inconsistência formal nos discursos das duas testemunhas quando analisados conjuntamente Mostra que se o trem estava passando no exato da ocorrência do assassinato como alega a testemunha que viu o crime da janela do prédio da frente o idoso não poderia ao m e s m o tempo ter ouvido o rapaz gritar enquanto o trem passava Ele parece resgatar a idéia de Hans Kelsen quando considera que sendo a causalidade impossível não se pode imputar conseqüências jurídicas aos fatos Oitavo jurado Um trem de seis vagões leva dez segundos passando por um ponto Digamos que o ponto seja a janela do quarto do homicídio Morei num segundo andar perto dos trilhos quando o trem passa é quase insuportável Mal se houve o que pensa O velho que morava no apartamento de baixo disse que ouviu o rapaz dizer que o mataria N o segundo seguinte o corpo foi ao chão A vizinha da frente diz que viu o homicídio pela janela dos dois últimos vagões O corpo foi ao chão enquanto o trem passava portanto o trem passou roncando pela janela do velho dez segundos antes de o corpo cair O velho teria de ter ouvido o rapaz gritar quando o trem passava Não é possível que o ouvisse Mesmo que ouvisse não reconheceria a voz Acho que u m testemunho que condena a morte deveria ser preciso sim Neste momento estimulado pelo oitavo jurado o nono jurado faz uma releitura retrospectiva quase cinematográfica da linguagem corporal da testemunha idosa H á u m belo closeup de sua face e o processo psicológico de identificaçãoprojeção é claro entre ambos Por também ser idoso ele se projeta na testemunha e com ela se identifica Ele não diz que a testemunha mentiu deliberadamente mas entende que ela eventualmente teria se forçado a acreditar que ouviu aquilo e que reconheceu o rosto do rapaz R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 554 Mara Regina de Oliveira Nono jurado Eu o observei por u m longo tempo O paletó estava rasgado debaixo do ombro Você não notou Como se vem a um tribunal assim Era u m senhor muito idoso e usava um paletó rasgado Andou bem devagar até a tribuna Puxava da perna esquerda e tentava esconder isto Por que estava com vergonha Acho que conheço este homem melhor do que vocês aqui Este é um homem calado amedrontado insignificante velho que nuca foi nada a vida inteira Que nunca foi reconhecido ou teve seu nome nos jornais Ninguém o conhece Ninguém o cita Ninguém lhe pede conselhos depois de setenta e cinco anos Cavalheiros é uma coisa triste não ter expressão alguma U m homem como este precisa ser citado precisa ser ouvido Ser citado ao menos uma vez é muito importante para ele Seria duro para ele se isolar em seu mundo O oitavo jurado também considera que sendo o rapaz muito esperto não haveria sentido e m pensar que ele gritaria ao cometer o crime para toda a vizinhança ouvir Diz que o advogado de defesa escolhido pelo Estado provavelmente não queria o caso pois sendo u m caso com poucas chances de vitória não traria louros para a carreira dele a menos que se esforçasse bastante e que acreditasse na inocência do rapaz É neste momento que oitavo jurado tem u m novo insight que não havia percebido antes com relação à imprecisões lingüísticas na narrativa do idoso Para justificar o seu ponto de vista ele chega a encenar a narrativa da testemunha na sala do júri Mostra através de o seu próprio caminhar que seria impossível para u m velho manco que teve derrame ir do quarto à sala e m quinze segundos tendo de percorrer três metros e meio no quarto mais treze metros do corredor A o testar pessoalmente o tempo andando a m e s m a metragem arrastando a perna ele verifica que o tempo gasto seria de quarenta e u m segundos Conclui que ele pode ter visto outra pessoa que julgou ser o rapaz A chuva começa o tempo refresca e metaforicamente o ventilador volta a funcionar como se ele simbolizasse o enfraquecimento do antagonismo e a presença marcante da razoabilidade humana na interação do julgamento A o longo dela cada vez que a votação é refeita mais jurados votam pelo veredicto não culpado Ocorre u m a interessante contraposição de discursos entre o décimo primeiro jurado que claramente influenciado pela fala do oitavo jurado defende o princípio da razoabilidade no veredicto A seguir temos a fala exaltada do décimo jurado que deixa de lado a suposta crença na verdade dos fatos e assume claramente a interferência da sua subjetividade valorativa preconceituosa na leitura interpretativa das provas Neste momento todos na sala dão as costas para ele enquanto discursa O exagero valorativo de sua fala é exposto numa causalidade impossível Ela é calcada e m torno da idéia de que todo desfavorecido é u m mentiroso u m bêbado e u m assassino a qual nada tem a ver com a verificação do fato R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 555 sentença processual do ponto de vista interativo Isto a torna sem sentido perante os demais em termos de imputação normativa Décimo primeiro jurado Temos uma responsabilidade Sempre achei algo notável da democracia O fato de sermos convocados pelo correio para vir aqui decidir pela culpa ou não de u m rapaz do qual nunca ouvimos falar Não temos nada a perder ou a ganhar com o nosso veredicto Isto é uma das razões pelas quais somos fortes não devíamos fazer disto algo pessoal Décimo jurado Sabem como essa gente mente Já é uma coisa nata Que diabos Eles não sabem o que é a verdade E não precisam de motivo algum para matar alguém Ficam bêbados bebem como gambá todos eles E se alguém morrer morreu A vida humana não significa o mesmo para eles Claro que possuem coisas boas sou o primeiro a reconhecer conheci u m casal que era bom mas é exceção Entendem A maioria parece insensível São capazes de tudo Estão cometendo u m grande equívoco O rapaz é mentiroso Sei tudo sobre eles Eles não prestam Não tem u m que preste Estas pessoas são perigosas selvagens A seguir o oitavo jurado alerta que o preconceito embora profundamente humano dificulta ainda mais o acesso à verdade e m si já muito complicado e difícil Resume de u m ponto de vista zetético e logopático o conceitoimagem da angustiante incerteza do julgamento exposta n u m a interessante emoção de primeiro grau que nos coloca ao lado dele na sua dúvida existencial Pela sua fala percebemos mais u m a vez os limites da verificação do fato processual no sentido propugnado por Hans Kelsen O que se discute naquela sala não é inocência real do acusado pois esta é inacessível ao direito O debate jurídico gira e m torno da certeza e m torno da verificação jurídica dos fatos da existência ou não da dúvida razoável e não do fato e m si que jamais será acessado por eles ou pelo espectador Oitavo jurado É sempre difícil deixar os preconceitos fora de uma questão destas Não importa para que lado vá o preconceito sempre obscurece a verdade Não sei qual é a verdade e suponho que ninguém aqui jamais saberá de fato Nove pessoas aqui parecem achar que o réu é não culpado Mas só estamos jogando com probabilidades Podemos estar enganados podemos estar deixando u m homem culpado livre não sei Ninguém pode saber ao certo Mas temos dúvida razoável E isso é algo muito valioso no nosso sistema Nenhum júri pode declarar u m homem culpado a menos que tenha certeza Nós nove não podemos entender como vocês três continuam com tanta certeza R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 556 Mara Regina de Oliveira N o momento e m que o quarto jurado reafirma o seu voto de culpado e reconstrói o discurso da testemunha feminina que alega ter visto o crime como se de fato estivesse vendo o crime ele mesmo naquele instante ele faz u m gesto curioso Ele tira os seus óculos e passa as mãos no nariz no lugar onde estes se apoiam Neste momento o nono jurado que já havia demonstrado ter u m a memória visual extraordinária e m relação ao idoso tem u m novo insight que passou despercebido até mesmo pela astúcia lingüística do oitavo jurado Ele recorda que a testemunha feminina tinha marcas de óculos no nariz e as esfregava o tempo todo A partir desta observação minuciosa outros confirmam terem percebido o detalhe inclusive o quarto jurado que estava tão certo da verdade imposta minutos antes O oitavo jurado considera que talvez como o idoso ela tenha pensado ter visto o acusado mas de fato pode ter visto algo embaçado Se ela estava na cama tentando dormir no momento e m que supostamente viu o rapaz esfaquear o peito do pai de cima para baixo apenas virando o seu rosto olhando para a janela ela estava sem óculos certamente Mais u m a vez temos u m a impossibilidade causai ver uma pessoa na janela da frente sem óculos através de u m trem e m movimento no escuro que torna impossível a imputação normativa ao fato O último a mudar de posição é o terceiro jurado que parecia até então irredutível Seu antagonismo com o oitavo jurado é explícito já que situação inicial se inverteu Temos onzes jurados favoráveis ao veredicto não culpado Antes de expor a sua fragilidade pessoal ele faz u m a tentativa desesperada mas frustrada de invocar mais uma vez a objetividade das provas Todavia acaba revelando de forma extremamente passional que estava projetando a nível psicológico o trauma de ter sido agredido e abandonado por seu filho N a verdade ele estaria condenando seu próprio filho e não o acusado através de processo mental complexo mais inconsciente O confronto com o seu trauma é muito doloroso mas o impulsiona a escolher de forma mais racional e menos perturbada por emoções negativas o veredicto não culpado após rasgar a foto em que aparece ao lado do filho já adulto O julgamento termina todos saem da sala levando consigo a impessoalidade de seus papeis após proferir a interpretação autêntica dos fatos no veredicto não culpado no sentido kelseniano da expressão Antes de deixar a sala o oitavo jurado mostra consideração humana pelo terceiro jurado entregandolhe gentilmente o paletó quando o vê arrasado psicologicamente Mas ao sair do tribunal já perto da escadaria o nono jurado pergunta o seu nome n u m gesto final de encontro de pessoas não mais de papéis que acabaram sendo parceiros nesta empreitada humanista O oitavo jurado apenas reponde com u m sorriso Davis O nono jurado oferece a sua mão e m cumprimento dizendo cordialmente Eu sou MacCardle Eles se despedem e cada u m segue o seu caminho R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 557 sentença Considerações finais Pela análise do filme relacionada a concepções teóricas no campo da Filosofia do Direito ficou demonstrado o conceitoimagem ligado à impossibilidade de reduzirmos o raciocínio decisório a u m a dedução silogística mecanicista defendida pelas teorias dogmáticas tradicionais A película evidencia a importância do impacto da compreensão logopática emocional e afetiva para a cognição completa de como as imprecisões lingüísticas impossibilitam a defesa dogmática de u m ideal de justiça absoluto no momento do julgamento O fato e m si e a verdade factual jamais vão ser acessados pelo direito no momento de sua aplicação É ele que constrói e relativiza a verdade fática em termos normativos por isso há inerentes possibilidades de erro Através das emoções primárias percebemos a angústia humana que afeta o sensível mas perspicaz oitavo jurado diante desta incerteza quando ela implica na decisão sobre a vida ou morte de u m a pessoa Pelas mesmas emoções sentimos como as valorações humanas negativas ligadas aos preconceitos à falta de seriedade e aos traumas pessoais que atingem outros jurados dificultam ainda mais esta constituição dos fatos de forma razoável E m termos concretos há u m a espécie de metainterpretação complexa no fenômeno decisório na medida e m que os julgadores têm de interpretar u m a interpretação prévia da realidade construída pelo próprio discurso probatório Haveria imprecisões lingüísticas e subjetividades valorativas nestes dois níveis de construção hermenêutica Mas e m termos de emoção secundária o filme provoca u m a angústia ainda maior que diz respeito a u m a potencial incompletude humana de quem julga u m processo Ele tornou evidente nos termos colocados pelas teorias destacadas como a verificação jurídica do fato envolve u m permanente campo de incertezas na medida e m que depende de uma construção lingüística competente que não afeta a todos envolvidos nas tarefas judicantes de forma unânime Faz parte da natureza humana ter u m a visão humanista e responsável mas nunca estaremos livres das valorações menos positivas que nos afetam e que também fazem parte da condição humana inexoravelmente Se o filme confirma as reflexões de Al Ross no tocante a permanente integração da consciência jurídica formal ligada ao respeito dogmático ao direito e da consciência jurídica material ligada aos valores nos raciocínio decisórios surge ao mesmo tempo a percepção expandida através do filme de que esta materialidade está sujeita a distorções e tem ser trabalhada com responsabilidade Onze jurados não tinham consciência desta materialidade relativa que envolve u m a escolha entre diferentes possibilidades naquele julgamento Apenas o oitavo jurado estava consciente do risco da injustiça de u m a materialidade mal trabalhada e das incertezas lingüísticas Ele acabou dominando a cena graças à sua astúcia argumentativa associada a u m senso de responsabilidade ético Para nós o contato com a linguagem artística é muito rico para expor este momento de complexidade com maturidade visando a construção de u m a R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 558 Mara Regina de Oliveira consciência jurídica material mais positiva e m termos humanos Ele supera qualquer explicação teórica racional pois tem de ser sentida existencialmente C o m o na brilhante peça irlandesa de Brian Friel Faith Healer citada na introdução deste trabalho os conceitosimagem do filme Doze homens e uma sentença não nos conduzem à resposta fácil e m torno do real como ocorre e m muitos filmes de tribunal hollywoodianos que não hesitam e m mostrar e m termos ideais e claramente fictícios a suposta verdade factual no final Iniciamos e terminamos nossa experiência logopática angustiados e presos na sala do júri de forma b e m próxima ao que ocorre na realidade concreta de u m julgamento Jamais saberemos o que aconteceu de fato jamais saberemos se o rapaz matou ou não o seu próprio pai Apenas captamos as possibilidades não congruentes dos relatos discursivos narrativos do que poderia ou não poderia ter acontecido e m termos reais São Paulo outubro de 2010 Referências CABRERA Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 DI GIORGI Beatriz C A M P I L O N G O Celso Fernandes PIOVESAN Flávia Coord Direito cidadania e justiça ensaios sobre lógica interpretação teoria sociologia e filosofia jurídicas São Paulo Editora dos Tribunais 1995 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Direito retórica e comunicação subsídios para uma pragmática do discurso jurídico São Paulo Saraiva 1973 Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 Teoria da norma jurídica ensaio de pragmática da comunicação normativa Rio de Janeiro Forense 1978 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 L U M E T Sidney Doze homens e uma sentença 12 Angry Men D V D M G M H o m e Entertainment 2004 ROSS Alf Direito e justiça Bauru Edipro 2003 XAVIER Ismail O discurso cinematográfico a opacidade e a transparência São Paulo Paz e Terra 2005 Org A Experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010
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A VERDADE FACTUAL RELATIVA NAS DECISÕES JUDICIAIS U M DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR C O M O FILME DOZE H O M E N S E U M A SENTENÇA THE RELATIVE FACTUAL TRUTH IN THE JUDICIAL DECISIONS AN INTERDISCIPLINARY DIALOGUE WITH THE MOVIE 12 ANGRY MEN Mara Regina de Oliveira Resumo Este artigo parte da hipótese de que a decisão jurídica não se reduz a u m silogismo jurídico o qual se restringiria à exposição declaratória e mecanicista da norma geral A verdade factual não pode ser captada pelo Direito no momento de sua aplicação prática Ela é substituída pelo pela idéia de fato verificado juridicamente o raciocínio decisório é constitutivo porque envolve u m discurso hermenêutico complexo E m u m a perspectiva interdisciplinar analisamos a linguagem imaginética do filme Doze Homens e uma sentença Sidney Lumet 1957 Palavraschaves Decisão Silogismo Verdade Linguagem Justiça Cinema Direito Interpretação Abstract This article considers the hypothesis that the legal decisión is not merely a legal syllogism which would be restricted to exposure of the declaratory and mechanist general mie The factual truth cannot be captured by the law at time of its practical application It is replaced by the idea of legally verified fact the reasoning is a constitutive decisión because it involves a complex hermeneutical discourse From an interdisciplinary perspective w e analyze the movie 12 Angry Men Sidney Lumet 1957 Keywords Decisión Syllogism Truth Language Justice Cinema Law Interpretation É possível que seja um problema interessante de psicologia social determinar o porquê se deseja ocultar o que realmente ocorre na administração da justiça Aqui devemos nos contentar e m asseverar que parece u m fenômeno universal simular que a administração dajustiça constitui uma simples dedução lógica de regras jurídicas sem nenhuma valoração por parte do juiz 1 Mestre e Doutora em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo onde leciona a disciplina Filosofia do Direito na condição de Professora Assistente Doutora É Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo onde leciona na pósgraduação a disciplina Cinema e Filosofia do Direito o problema da verdade e dajustiça no exercício jurídico do poder 1 ROSS Alf Direito e Justiça Bauru Edipro 2003 p 184185 R Fac Dir Univ SP v105 P535558 jandez 2010 536 Mar a Regina de Oliveira Introdução A peça teatral Faith Healer escrita pelo irlandês Brian Friel traduzida em recente montagem paulistana como O Fantástico Reparador de Feridas traz u m instigante questionamento e m torno da possibilidade da objetividade da narrativa de u m evento factual Ela é composta por quatro monólogos onde três personagens que viajaram juntos pelo interior da Escócia contam para o espectador sua versão sobre certos eventos traumáticos e m termos emocionais que viveram juntos no passado O aspecto instigante da peça é que a partir do momento que começamos a comparar os discursos nos colocando quase na posição de analistas psicológicos dos personagens percebemos que as narrativas são contraditórias e discordantes entre si2 Frank é o faith healer u m personagem atormentado que abusa da bebida por não ter controle do seu d o m da cura Ele demonstra cinismo e ao mesmo tempo angústia diante desta incerteza Grace sua esposa é filha de u m conhecido advogado mas vive u m a conturbada e ambígua relação com a Frank que oscila entre o amor e o ódio diante da sua dependência emocional e m relação ao seu companheiro que mostra traços de crueldade e m relação a ela Teddy é o empresário decadente de Frank que também é alcoólatra e busca defender a princípio o não envolvimento emocional na profissão mas paradoxalmente acaba por demostrar grande admiração pessoal por Frank e talvez uma paixão não assumida por Grace Observamos nos três personagens u m a grande fragilidade emocional e u m a marcante distância entre a fala verbalmente posta para o público como eles se vêem e aquilo que a figura deles comunica no palco como u m todo como eles podem ser vistos por terceiros H á uma grande diferença entre a imagem que cada u m faz de si próprio e como são vistos u m pelo outro do ponto de vista externo A peça termina sem que possamos saber o que de fato aconteceu a incerteza sobre a narrativa dos fatos permanece e m aberto O que observamos com exatidão é a incongruência discursiva entre os três personagens e a certeza da dúvida sobre as variadas e antagônicas percepções do real Conforme expõe Edgar Morin pelo processo psicológico da projeção como processo universal e multiforme as nossas necessidades aspirações desejos obsessões projetamse não só no vácuo dos sonhos e imaginação mas sobre as coisas e os seres Isto explica os relatos contraditórios de u m mesmo acontecimento mais inconscientes do que intencionais A crítica histórica ou psicológica do testemunho revela que as nossas percepções elementares como a percepção da estatura de alguém são confundidas Assistimos esta peça em Dublin no Gate Theatre sob a direção de Jonathan Kent tendo os atores Ralph Fiennes Frank Hardy Ingrid Craigie Grace e Ian MacDiarmid Teddy nos papéis principais E m São Paulo assistimos em 2010 a montagem feita pela Cia Ludens no Viga Espaço Cênico tendo os atores Walter Breda Frank Hard Mariana Muniz Grace e Rubens Caribe Teddy R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 537 sentença e trabalhadas pelas nossas projeções Sempre atribuímos a alguém que julgamos as tendências que nos são próprias Tudo é puro para os puros e impuro para os impuros3 A obra teatral discute como elementos psicológicos subjetivos interferem no testemunho pessoal da percepção da realidade de Frank Grace e Teddy enquanto elemento lingüístico relevante Eles questionam o nosso senso c o m u m lingüístico ingênuo voltado para a idéia da língua como representação objetiva do mundo real capaz de captar a chamada verdade factual Assistindo a montagem irlandesa lembramonos de como seria possível relacionar esta discussão com a narrativa dos fatos no âmbito judicial M a s é também possível pensar nesta mesma incerteza narrativa projetada no processo decisório jurídico D o ponto de vista dogmático admitese a possibilidade da verdade factual e abstraise o complexo problema da imprecisão lingüística e da subjetividade do intérprete Partese do pressuposto de que seria possível descrever os fatos com objetividade e subsumilo à normal geral com precisão lógica absoluta A proposta deste artigo é ir além desta simplificação dogmática e m parte justificada pela necessidade prática de promover a decidibilidade conflitos com o mínimo de perturbação social possível Pretendemos fazer u m a análise zetética e interdisciplinar do problema da verdade factual no fenômeno decisório lingüístico colocando e m discussão o problema da incerteza da narrativa E m termos metodológicos relacionaremos algumas teorias críticas do direito com a linguagem imaginética do cinema porque consideramos que ela assim como o teatro teria o d o m de captar as complexidades humanas que envolvem o fenômeno decisório na sua base real tendo e m vista o seu aspecto comunicativo profundo sem fazer concessões simplificadoras Escolhemos para a análise o brilhante filme Doze homens e uma sentença Sidney Lumet 1957 que na esteira do filósofo Júlio Cabrera nos faz pensar e m termos logopáticos sobre o problema da verdade e da justiça no processo judicial A seguir antes de entrar propriamente na análise do filme vamos expor e m linhas gerais reflexões sobre esta possibilidade de relacionamento do cinema com o pensar filosóficocrítico que para nós não apenas permite u m a exemplificação das teorias mas u m a expansão do próprio pensar filosófico e m si mesmo 1 Cinema e pensamento filosófico um diálogo possível Em um instigante livro intitulado O Cinema Pensa uma introdução à filosofia através dos filmes o filósofo argentino radicado no Brasil Júlio Cabrera defende a importante tese de que a filosofia ao invés de ser considerada como algo concebido historicamente antes do cinema poderia ser entendida como u m saber mutável 3 MORIN Edgard A alma do cinema In XAVIER Ismail Org A Experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 146 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 538 Mara Regina de Oliveira que se modifica através do diálogo com a chamada sétima arte como elemento cultural relevante Neste sentido o pensar através da interpretação de imagens e m movimento ou e m ilusão de movimento assume u m contorno não apenas voltado à racionalidade lógica mas também a u m a cognição da realidade que inclui u m elemento afetivo pático primordial4 Segundo o autor alguns filósofos como Kierkegaard Schopenhauer Heidegger e Nietzsche poderiam ser considerados filósofos páticos a palavra pático vem do grego phátos que diz respeito àquilo que manifesta emoções que de certa forma anteciparam u m tipo de reflexão humana no campo da linguagem escrita próxima a que será viabilizada pelo cinema posteriormente através de imagens5 Esclarece o autor que embora os chamados filósofos lógicos ou apáticos como Aristóteles São Tomás Descartes Locke Hume Kant e Wittgenstein tenham eventualmente formulado o problema do impacto da emoção na razão filosófica como tema os filósofos páticos citados no parágrafo anterior foram muito além incluindo a afetividade como elemento constitutivo da racionalidade do ponto de vista interno e não apenas externo Citando Heidegger ele afirma Dentre todos os filósofos foi ele que expressou de maneira mais clara este compromisso da filosofia com um pathos de caráter fundamental quando fala por exemplo da angústia e do tédio como sentimentos que nos colocam em contato com o ser do mundo como sentimentos com valor cognitivo no sentido amplo de um acesso ao mundo não de um sentido epistemológico Ao referir à poesia como pensante e não apenas como um fenômeno estético ou um desabafo emocional ela a considera essencialmente apta a expressa a verdade do ser6 Para a compreensão profunda de u m problema filosófico não basta entendê lo racionalmente como conceito teóricosemântico Temos de vivêlo sentilo ser afetado por ele como u m a experiência emocional não empírica que aguce a nossa sensibilidade cognitiva próxima de u m a dimensão que poderíamos chamar de pragmáticoimpactante a qual deve produzir algum tipo de transformação Embora a forma literária tenha preponderado na história do pensamento filosófico nada impediria que se viabilizasse u m a problematização filosófica através da análise de imagens do cinema da fotografia da ópera ou da dança7 Mais adiante ele levanta a polêmica hipótese de que o cinema seria u m a linguagem mais apropriada do que a própria escrita nesta forma de pensar dos C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 1516 Id Ibid Id Ibid p 19 Id Ibid p 17 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 539 sentença filósofos que ele chama de logopáticos Algumas questões humanas não podem apenas ser ditas e articuladas logicamente Elas devem ser apresentadas sensivelmente por meio de u m a compreensão logopática racional e afetiva que longe de ser u m a mera impressão psicológica tem pretensão de verdade universal C o m o forma de pensamento ele é tão aberto como a filosofia dita literária não existe u m a definição que o alcance e m termos absolutos8 Cabe aqui mencionar o pensamento de Jean Epstein sobre a questão C o m o Cabrera ele destaca a grande proximidade simbólica da imagem c o m a realidade sensível que ela representa e m comparação c o m a palavra que apresentaria u m a espécie de símbolo indireto elaborado pela razão relacionado ao poder de abstrair classificar e deduzir A percepção da imagem e m movimento constitui u m a significação semi pronta que alcança de forma contundente e indutiva a emotividade do espectador sem a mediação do raciocínio abstrato Já a palavra para produzir u m a emoção depende de uma prévia decodificação racional de seu significado para que represente u m a realidade e esteja apta a mexer c o m sentimentos Nas suas considerações A frase fica como u m criptograma incapaz de suscitar u m estado sentimental enquanto a sua fórmula não for traduzida em dados claros e sensíveis através de operações intelectuais que interpretam e reúnem numa ordem lógica termos abstratos para deles deduzir uma síntese mais completa Por outro lado a simplicidade extrema com que se organiza uma seqüência cinematográfica onde todos os elementos são acima de tudo figuras particulares requer apenas u m esforço mínimo de decodificação e ajuste para que os signos da tela adquiram u m efeito pleno de emoção9 Para que a linguagem cinematográfica seja vista do ponto de vista filosófico é necessário que percebamos que ela se constrói a partir dos chamados conceitos imagem que não se confundem com os tradicionais conceitosideia trabalhados na filosofia escrita N o pensamento de Cabrera eles não têm u m caráter essencialista e definitivo mas heurístico e crítico Eles caracterizam u m a experiência que se tem para que possamos entender e trabalhar este conceito na forma de u m fazer coisa c o m imagens Nas palavras do autor A racionalidade logopática do cinema muda a estrutura habitualmente aceita do saber enquanto definido apenas lógica ou intelectualmente Saber algo do ponto de vista logopático não consiste somente em ter informações mas 8 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 18 9 EPSTEIN Jean O cinema do diaboexcertos In XAVIER Ismail Org A experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 294 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 540 Mara Regina de Oliveira também em estar aberto a certo tipo de experiência e em aceitar deixarse afetar por uma coisa de dentro dela mesma em uma experiência vivida10 Não se trata apenas de assistir ao filme como u m a experiência estética ou social desarticulada do raciocínio ou ler u m comentário sobre a película mas de desenvolver u m a interação lógicoafetiva que evidencie a presença de conceitos ou idéias nas imagens e m movimento Já entendemos como a linguagem do cinema é poderosa porque produz a famosa impressão da realidade acompanhada pela identificação com o olhar dos personagens numa situação dinâmica de espacialidade e temporalidade construídas Os conceitosimagem do cinema produzem u m impacto emocional sobre questões que dizem respeito ao humano com valor cognitivo persuasivo unindo lógica e pática concomitantemente Este impacto emocional não está ligado a u m possível efeito dramático de u m filme do tipo melodrama muitos filmes considerados cerebrais comovem o espectador pela sua frieza Por mais racional que seja u m filme ele nunca será abstrato como u m tratado literário filosófico Neste sentido cabe lembrar da didática distinção feita por Hugo Munsterberg a respeito das emoções provocadas pelo cinema E m primeiro lugar teríamos as emoções que os personagens comunicam de dentro do filme provocando simpatia pelo sofrimento ou m e s m o compartilhando as alegrias pelo amor realizado A percepção visual das várias manifestações dessas emoções se funde e m nossa mente com a consciência da emoção manifestada É como se estivéssemos vendo e observando diretamente a própria emoção Reagimos organicamente de forma adequada o horror nos dá arrepios a felicidade nos acalma H á uma experiência viva do reflexo emocional dentro da nossa mente Nos filmes melodramáticos este tipo emoção está muito presente Mas haveria por assim dizer u m segundo tipo de emoção secundária e m que a platéia reage às cenas do filme do ponto de vista da sua vida afetiva independente onde pode haver portanto u m a indignação moral e não u m a identificação emotiva com o personagem A nosso ver estas duas formam de emotividade se combinam na experiência do cinema mas a emoção secundária estaria mais presente nos chamados filmes cerebrais e seria muito útil e m atividades acadêmicas interdisciplinares A pretensão de universalidade da reflexão filosóficocinematográfica está ligada à idéia de possibilidade e não de necessidade Temos a constatação de que embora não aconteça necessariamente com todos poderia acontecer com qualquer um12 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 21 M U N S T E R B E R G Hugo As emoções In XAVIER Ismail Org A experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 p 5253 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 541 sentença Um filme por inteiro pode ser a expressão de um conceitoimagem de uma ou múltiplas noções Temos neste caso u m macro conceitoimagem que é formado a partir de outros conceitosimagem menores que requerem certo tempo cinematográfico para o seu desenvolvimento temporal u m a única cena não pode constituir u m conceito imagem13 Eles podem ser percebidos literalmente nas imagens exibidas ou serem captados de forma abstrata e metafórica tornando plena a sua conceituação filosófica14 A produção do impacto emocional é fundamental para a eficácia cognitiva do conceitoimagem A técnica cinematográfica se vale da pluriperspectiva da manipulação do tempo e espaço e do corte cinematográfico para viabilizar este efeito estético A pluriperspectiva se constitui graças a sua capacidade de dar saltos da primeira o que vê ou sente o personagem que é subjetiva para a terceira que é objetiva o que vê a câmera Neste sentido a montagem dentro dos planos o ângulo aberto ou fechado da câmera e seu movimento podem tornar intensa a experiência do cinema Isto se associa à enorme capacidade de manipular tempo e espaço avançar e retroceder inverter ou mesclar a ordem cronológica do passado e do futuro mostrar espaços simultâneos e articular o literal e o metafórico como só os sonhos podem Por fim temos a maneira aberta e plural de conectar os planos as cenas e as seqüências15 A técnica cinematográfica possibilita a instauração da experiência logopática a qual permite a manifestação dos conceitosimagem que só podem ser gerados por ela e não por meios literários ou fotográficos Outra característica importante seria a de que eles sempre apresentam desfechos abertos a novas problematizações filosóficas m e s m o que a intenção do diretor seja a de fechálas A linguagem da imagem tem u m a natureza subversiva e m termos de estrutura Neste sentido as soluções lógicas da filosofia escrita geralmente têm u m a intenção de apresentar conclusões mais conciliadoras conservadoras e construtivas simbolicamente bem educadas como uma tentativa de resolver o mundo dentro da cabeça que o cinema não consegue fazer mesmo que tente16 Cabrera também levanta o problema da verdade universal filosófica na linguagem do cinema que se vale de u m a impressão de realidade e pela possibilidade de apresentar a mais inverossímil fantasia como aparência de realidade de maneira retórica e até declaradamente mentirosa Não esqueçamos de que parte da tradição filosófica reverencia a verdade como algo que pode estar livre de ilusões e equívocos C o m o conciliar esta simulação do real com a pretensão de verdade17 2006 p 23 13 Id Ibid p 24 14 Id Ibid p 26 15 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p 3132 16 Id Ibid p 34 17 Id Ibid p 37 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 542 Mara Regina de Oliveira O autor entende que tanto as ciências como as filosofias escritas estão cheias de simulações de exemplos fantasiosos para o desenvolvimento de suas questões E m todos os filmes o problema do universalparticular está presente na própria experiência do cinema como u m a espécie de problematicidade intrínseca da imagem através do impacto emocional que provoca Este impinge u m a noção de verdade quase visceral que passa pelas entranhas até chegar ao cérebro mais do que poderia fazer u m tradicional texto filosófico escrito Nestes termos a leitura filosófica de u m filme ao compor elementos lógicos e afetivos está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as emoções mas a própria reflexão logopática que ela gera tem u m alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral muito além do que é simplesmente mostrado no filme 18 A leitura filosófica de u m filme ao compor elementos lógicos e afetivos está direcionada a particulares que suscitam e que manifestam as emoções mas a própria reflexão logopática que ela gera tem u m alcance universal que nos permite pensar o mundo de forma geral muito além do que é simplesmente mostrado no filme Nas palavras do autor enquanto a filosofia escrita pretende desenvolver u m universal sem exceções o cinema apresenta u m a exceção com características universais 19 Por último o autor faz u m importante alerta relativo ao problema da imagem poder eventualmente impingir a sua manipulação retórica emocional de forma abusiva e distorcida Ele cita o exemplo dos filmes de propaganda nazista que ajudaram a disseminar a banalidade do mal entre o povo alemão Sempre é necessário que haja u m a informação exterior racional que não venha da própria imagem Desse modo o que as asserções imaginéticas nos mostram não deve ser assumido como verdadeiro sem maiores ponderações críticas de forma similar ao que ocorre nas proposições filosóficas escritas N a percepção do filme o aspecto emocional interage permanentemente com o aspecto lógico Neste sentido diz o autor Podemos negar a verdade que a imagem cinematográfica nos tenta impor A mediação emocional tem a ver com a apresentação da idéias filosófica e não com a sua aceitação impositiva Devemos nos emocionar para entender e não necessariamente para aceitar Não é que a emoção da imagem nos mostre imediatamente uma verdade ela nos apresenta impositivamente um sentido uma possibilidade Mas o sentido de uma imagem como o sentido de uma proposição é anterior à sua verdade ou falsidade20 C A B R E R A Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 p39 Id Ibid p 42 Id Ibid p 4041 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 543 sentença Partindo desta reflexão de Cabrera voltada para a filosofia geral entendemos que no campo da teoria do direito existem instigantes linhas filosóficas literárias práticas que permitem u m a aproximação muito rica com a linguagem imaginética na apreensão de temas que envolvem u m a delicadeza sutil da compreensão do humano e m u m a dimensão mais profunda Toda a discussão teóricofilosófica sobre a relação entre direito verdade e justiça no plano real dos fatos e das condutas efetivas envolve esta aproximação experiencial emotiva que vai muito além da racional compreensão semânticológica de enunciados escritos nos textos legais dogmáticos Tratase de u m ramo do direito onde o humano envolvese diretamente nas questões teóricas primordiais principalmente quando indagamos a respeito da sua imperatividade concreta 2 As imprecisões lingüísticas presentes no momento da aplicação do Direito De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Júnior as teorias dogmáticas estudam o Direito a partir de sua capacidade de institucionalizar e decidir os conflitos sociais do ponto de vista jurídico Para tanto abstraem todas as questões zetéticas de realidade que permeiam o fenômeno normativo que poderiam postergar esta tomada de decisão e comprometer o ideal de segurança jurídica U m dos cânones balizares das teorias dogmáticas da decisão é a idéia de que o raciocínio no âmbito legislativo administrativo e judicial reduzse no seu aspecto formal a u m mero raciocínio silogístico dedutivo que teria a seguinte estrutura básica a norma geral seria a premissa maior a descrição do caso seria a premissa menor e a conclusão seria o ato decisório e m sentido estrito21 C o m o no exemplo Se um indivíduo matar alguém deve ser punido com pena de reclusão de seis a vinte anos João matou seu pai Logo João deve ser punido com pena de reclusão de 15 anos D e u m ponto de vista zetético todavia a realidade lingüística que compõe o raciocínio decisório é muito mais complexa pois vai muito além da visão aparentemente mecânica e simplista do raciocínio lógicoformal A subsunção que consiste no ato de submeter o caso à regra depende da construção da premissa maior que se relaciona tanto com a sua complicada interpretação semântica como na verificação da sua validade normativa e m relação às demais normas do sistema jurídico Nesta perspectiva a premissa maior normativa não é u m dado ela traz elementos prescritivos de dever ser ela 21 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 316 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 544 Mara Regina de Oliveira tipifica a hipótese normativa matar alguém ao imputar u m a conseqüência normativa sancionadora pena de reclusão de 6 a 20 anos22 Hans Kelsen numa perspectiva semelhante considera que o raciocínio decisório tem u m a natureza constitutiva e não apenas declaratória da norma geral O julgador não teria de descobrir e declarar u m direito já de antemão firme a acabado cuja produção já foi concluída na norma geral A aplicação individualização das normas jurídicas gerais depende da verificação no caso concreto apresentado de que existem in concreto os pressupostos in abstracto determinados pela norma geral questões de fato A norma individual que impõe u m a sanção concreta seria constituída e criada só através da decisão judicial23 N o âmbito da construção da premissa maior temos de enfrentar o problema semântico do caráter convencional e equívoco da linguagem A relação entre língua e realidade não é natural nem essencial e m termos universais mas arbitrariamente construída pelas interações humanas Os conceitos não descrevem u m a realidade posta a priori pois é a partir dos conceitos mutáveis e m termos históricos que descrevemos a própria realidade e m seu aspecto dinâmico C o m o os usos lingüísticos variam no tempo e espaço temos o problema da vagueza e da ambigüidade de seus termos Os conceitos vagos são aqueles que a doutrina costuma chamar de conceitos indeterminados na medida e m que sua extensão denotativa é imprecisa C o m o exemplo mencionamos expressões perigo eminente meios necessários ruído excessivo moderadamente Já os conceitos ambíguos ocorrem na medida e m que sua intenção conotativa é sempre dúbia como no caso boafé mulher honesta injusta agressão Muitas vezes a norma estabelece explicitamente u m espaço da discricionariedade do julgador para adaptar a norma a situações fáticas distintas por exemplo u m a pena mínima de seis e pena u m a máxima de vinte anos24 Al Ross e m linha de raciocínio semelhante considera que a referência semântica das palavras do ponto de vista convencional é constituída por u m a zona central sólida e m que a sua aplicação é predominante e certa e u m círculo nebuloso exterior de incerteza no qual a sua aplicação é menos usual e no qual se torna duvidoso saber se a palavra pode ser aplicada ou não A vagueza afeta todas as palavras diz respeito ao fato de seu campo de referência ser indefinido A zona central se transforma gradualmente num círculo de incerteza A ambigüidade que está presente na maioria das palavras diz F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 317 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 255 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 318 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 545 sentença respeito ao fato das palavras não terem um campo de referência único mas múltiplo25 Para citar as palavras do autor De todos os sistemas de símbolos a linguagem é o mais plenamente desenvolvido o mais eficaz e o mais complicado A linguagem pode manifestarse como uma série de formas auditivas ou visuais fala e escrita O significado atribuído a estas formas é claramente convencional Nada impediria que a palavra gato fosse empregada para designar o animal doméstico com quatro patas que faz uau uau e cão para designar o que faz miau O significado atribuído aos símbolos lingüísticos é determinado pelos costumes da comunidade referentes às circunstâncias nas quais se considera adequado emitir certos sons26 Hans Kelsen no último capítulo da Teoria Pura do Direito refutando com veemência a possibilidade da interpretação normativa correta ou verdadeira fala a respeito das indeterminações intencionais e não intencionais que são percebidas linguisticamente no ato de aplicação do direito A s intencionais como o próprio nome indica são aquelas postas de forma consciente pelo órgão criador da norma a ser aplicada a fim de que o aplicador determine critérios específicos para cada caso Ele cita o exemplo da lei penal que prevê para u m m e s m o delito a aplicação da pena de multa e da pena de prisão cabendo ao juiz no caso concreto decidir por u m a ou pela outra Já as indeterminações não intencionais seriam muito mais complexas porque não e m a n a m da vontade do legislador mas do aspecto social e não natural da linguagem Palavras idênticas podem ter significados diferentes o sentido verbal não é unívoco o órgão que tem de aplicar a norma encontrase perante várias significações possíveis Nas palavras de Hans Kelsen a interpretação cognoscitiva leva a percepção da moldura que pode ser preenchida c o m significados semânticos distintos27 Nesta atividade cognoscitiva do órgão aplicador do direito não há formação de raciocínios puros pois há a incidência de normas morais normas de justiça e juízos sociais de valor que não fazem parte do Direito Positivo propriamente e que para o autor são normas relativas jamais universais Ele conclui neste sentido que a interpretação de uma lei não deve conduzir a uma única solução como sendo a única correta mas possivelmente a várias soluções que têm igual valor D o ponto de vista estritamente científico caberia apenas elencar os diversos sentidos possíveis sem qualquer vinculação com a prática efetiva M a s esta incerteza lingüística não impede a tarefa dogmática do direito que para ele está no campo da política jurídica e não da ciência pura O autor ressalta ROSS Alf Direito e justiça Bauru São Paulo Edipro 2003 p 142 Id Ibid p 140 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 364366 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 546 Mara Regina de Oliveira que no momento da aplicação esta interpretação cognoscitiva ligada ao conhecimento dos múltiplos sentidos semânticos se combina com u m ato volitivo que escolhe u m dos sentidos possíveis revelados através da sua percepção cognitiva Esta interpretação torna se autêntica porque cria direito não porque seja de fato como defende a doutrina tradicional a mais correta ou a mais justa do ponto de vista valorativo28 Al Ross entende que a inevitável imprecisão das palavras torna possível tanto abarcar os fatos como não abarcar tendo e m vista o significado da lei O juiz terá de escolher sempre influenciado por u m a valoração A interpretação é u m ato de natureza construtiva que é motivada tanto pela consciência jurídica formal como pela consciência jurídica material A consciência jurídica formal diz respeito ao dogma de obediência ao direito A consciência jurídica material relacionase à tradição cultural ideais posturas valorações que vive no espírito do juiz Ele interpreta a lei à luz desta consciência a fim de que sua decisão seja aceita como correta e como justa ou socialmente desejável Graças a u m a técnica de argumentação o juiz aparenta que sua argumentação pode ser deduzida da verdadeira interpretação da lei29 Recaséns Siches numa linha semelhante de raciocínio entende que esta materialidade valorativa intrínseca a qualquer julgamento estaria sempre a serviço de u m ideal de justiça humanitário e prudencial30 O exame da premissa menor não é menos problemático na medida e m que diz respeito ao tema da prova jurídica A palavra probatio advém de probus que gerou e m português prova e probo Tercio Sampaio Ferraz Jr levanta o problema do duplo sentido da palavra prova que aponta e m seu sentido objetivo a demonstração de u m fato ocorrido e e m seu sentido subjetivo fazer aprovar inspirando simpatia e confiança permitindo o entendimento dos fatos e m sentido favorável envolvendo diretamente o problema dajustiça31 Segundo Hans Kelsen não só a interpretação da norma geral mas também a averiguação do fato delituoso teria u m caráter constitutivo O tribunal determina o órgão para verificar se o fato ocorreu concretamente a fim de que entre no domínio do direito Não é o fato e m si de alguém ter cometido u m homicídio que constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica mas o fato de u m órgão competente juridicamente ter verificado n u m processo determinado pela ordem jurídica que u m indivíduo praticou u m homicídio O suspeito pode confessar ou negar o fato mas apenas importam as opiniões K E L S E N Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 365 ROSS Alf Direito e Justiça Bauru Edipro 2003 p 168 P R A D O Lídia Reis de Almeida Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do direito Segundo a visão de Recaséns Sie hes In DI GIORGI Beatriz C A M P I L O N G O Celso Fernandes PIOVESAN Flávia Coord Direito cidadania e justiça ensaios sobre lógica interpretação teoria sociologia e filosofia jurídicas São Paulo Editora dos Tribunais 1995 p 6174 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 319 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 547 sentença dos indivíduos encarregados de aplicar o direito que podem até contradizerse Todavia só u m a opinião pode prevalecer na medida e m que ela é juridicamente relevante só podendo ser atacada por meio de recurso até que transite e m julgado O tribunal pode verificar que u m determinado indivíduo praticou u m homicídio embora na realidade ele não tenha ocorrido ou o tribunal pode verificar que u m indivíduo não praticou u m homicídio embora na realidade ele tenha executado tal homicídio O fato processualmente verificado vem ocupar o lugar do fato e m si32 D e acordo com este pensador teríamos que reformular o silogismo na seguinte forma Se u m indivíduo matar alguém deve ser punido com pena de reclusão de 6 a 20 anos Pressupostos e conseqüências abstratas Pelo processo verificouse que João matou seu pai Verificação concreta e constitutiva dos fatos problema da prova Logo João deve ser punido com pena de 15 anos de reclusão Ordem concreta da sanção Tercio Sampaio Ferraz Jr ao analisar o pensamento de Hans Kelsen no tocante ao problema da segunda premissa considera que as relações fáticas do ponto de vista jurídico não se ligam ao princípio da causalidade mas sim ao da imputação Embora ele considere que a imputação normativa não possa ignorar o nexo causai e m termos absolutos se o nexo causai é impossível a imputação perde o sentido provar u m fato em termos jurídicos significa u m a questão normativa de atribuição de conseqüências à conduta e não u m a relação causai Assim não se prova se A pagou X para B mas sim se houve u m pagamento e m termos jurídicos33 E m síntese podemos afirmar que segundo este autor a questão da prova é u m problema interno ao sistema já que é ele quem determina os prazos e até m e s m o e m que situações devem ser aceitos os nexos causais entre os fatos e direitos A s provas devem ser admitidas pelo Direito Através de procedimentos dogmáticos institucionalizados que são não mecânicos mas constitutivos fazse u m trabalho lingüístico de transformar questões indecidíveis e m decidíveis que de novo podem transformarse e m indecidíveis até a decisão que termina a questão Os procedimentos burocráticos institucionalizados através dos papéis sociais neutralizam o efeito as pressões sociais sobre o sistema jurídico N o processo judicial podemos ser partes advogados promotores agentes judiciais ou juizes H á u m a contínua interação entre os papéis que já são configurados de antemão e não propriamente das pessoas concretas34 32 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 p 257258 33 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 p 320 34 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 548 Mara Regina de Oliveira 3 Doze homens e u m a sentença o conceitoimagem do problema da verdade factual relacionada ao tema dajustiça Na cena inicial desta película dirigida por Sidney Lumet em 1957 temos u m a tomada de câmara panorâmica que mostra o conceitoimagem da imponência do Tribunal do Júri da cidade de N o v a York visto de sua escadaria de cima para baixo A câmera vai aos poucos descendo e dirigindo o nosso olhar para dentro primeiro no saguão principal depois no corredor por fim nos colocando diretamente na sala de audiência número 228 onde o juiz profere a seguinte determinação normativa para o júri Juiz Ouviram u m longo e complexo caso de homicídio em primeiro grau U m homicídio premeditado é mais grave acusação em nossos tribunais Ouviram os testemunhos a lei lhes foi lida para ser aplicada ao caso Agora é dever de vocês separar os fatos da versão U m homem está morto a vida de outro está em jogo Se houver dívida razoável sobre a culpa do acusado devem entregarme o veredicto de não culpado se entretanto não houver devem em sã consciência declarar o acusado culpado O que quer que decidam o veredicto deve ser unânime N o caso de julgarem o acusado culpado o tribunal não considerará a hipótese de perdão A sentença de morte é compulsória neste caso Estão frente a grande responsabilidade Obrigado A seguir enquanto o júri deixa a sala a câmera dá u m close na face do jovem acusado de origem latina que mostra e m termos logopáticos o sentimento da angústia de ser sentenciado à cadeira elétrica É a única vez que vemos a sua face ele é acusado de matar seu pai com u m a facada no peito Entramos na sala de votação do júri que está abafada parece ser o dia mais quente do ano e o ventilador não funciona Todos os doze jurados são trancados para que o procedimento burocrático institucionalizado e m torno da decisão unânime se concretize nos termos da interpretação autêntica exposta por Hans Kelsen D o ponto de vista jurídico não temos seres humanos concretos naquela sala mas apenas papéis institucionalizados ligados à função de jurados Eles não têm nomes naquela sala apenas números A partir deste momento vivemos os bastidores zetéticos e humanos daqueles personagens o espectador é trancado na sala c o m eles o m u n d o exterior não pode mais ser visto O clima a ser construído é de discordância angústia e dúvida O filme evita claramente o tratamento maniqueísta os personagens são ambíguos e profundamente humanos no seu desenvolvimento demonstram ter virtudes e defeitos O fato de se tratar de u m órgão judicante coletivo nos permite ver c o m mais didatismo toda a complexidade São Paulo Atlas 2003 p 321 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 549 sentença humana que está por detrás da verificação jurídica do fato que implica numa construção lingüística interpretativa A ação dramática não pode ser mais natural e espontânea nos seus detalhes pois é traduzida e m vários longos planossequência a extensão do corte entre os planos é longa e contínua quase simulando uma discussão feita e m tempo real Os personagens combinam u m a linguagem verbal contundente com u m a expressiva linguagem corporal que é bastante agitada O suor escorre pelas faces nervosas da impactante e expressiva fotografia e m branco e preto Eles não param sentados e m seu lugar nem por u m instante O ritmo da montagem do filme é envolvente e o roteiro é preciso no seu desenvolvimento e m termos lógicos não há u m a cena supérflua na película O oitavo jurado numa magistral atuação de Henry Fonda demonstrando angustia reflexiva olha para a janela como se buscasse ver o mundo lá fora a ordem do ser mas é interrompido pelo décimo segundo jurado que diz frivolamente bonita vista o que achou do caso Achei bem interessante não havia pontos obscuros entende o que digo Tivemos sorte de pegar u m homicídio Antes que a votação comece o clima geral é de descompromisso fazse piadas lêse o jornal falase de trabalho partindo da premissa superficial de que se trata de u m caso óbvio O sétimo jurado diz ao jurado líder foreperson podemos ir embora rápido não sei de vocês mas tenho ingressos para o jogo de hoje Yanks contra Cleveland N o momento da votação o filme mostra o seu poderoso elemento logopático central ligado ao fenômeno decisório jurídico O júri é composto por não especialistas em Direito ele não interpreta a norma geral que tipifica o homicídio como crime mas deve verificar juridicamente o fato através do exame da consistência das provas Todos os jurados acabaram de acompanhar seis dias de audiência com manifestação lingüística da defesa da acusação das testemunhas e do próprio acusado Onze jurados o consideram culpado apenas um o oitavo jurado o considera não culpado A partir daí uma interessante interação comunicativa vai se estabelecer entre eles na maior parte das vezes extremamente nervosa e acalorada e m termos emocionais Tratase da angústia da escolha da decisão traduzida e m termos logopáticos que mescla no espectador uma união de emoções de primeiro e segundo grau Os onze jurados que decidem pelo veredicto culpado demonstram ter apenas consciência da presença de aspectos formais no julgamento no sentido proposto por Alf Ross Apresentam também uma visão ingênua da linguagem como representação da realidade são persuadidos pelo discurso da acusação integralmente Não percebem que eles próprios interpretam a interpretação do discurso probatório a eles apresentada previamente na audiência Após ouvirem a apresentação das provas há uma clara confusão na mente deles entre o verdadeiro e o verossímil entre o fato verificado e o fato em si Todos depositam uma certeza absurda e m torno da suposta situação fática o garoto matou seu pai como se a tivessem visto com seus próprios olhos Aderem aos R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 550 Mara Regina de Oliveira discursos das testemunhas de acusação os tomam como se fossem deles próprios até parece que eles mesmos testemunharam a cena do crime N a justificativa de seus votos alguns se vêem como imparciais Eles só querem citar os fatos como o terceiro jurado numa contundente atuação de Lee J Coob que reproduz o discurso na íntegra de uma das testemunhas vizinha ao rapaz morador do andar debaixo Terceiro jurado O velho morava embaixo do quarto onde houve o homicídio Às OOlOh na noite do homicídio disse ter ouvido barulho E que parecia de briga E ouviu o rapaz gritar Eu vou te matar U m segundo depois ouviu o corpo cair Correu até lá abriu a porta e viu o rapaz fugindo Chamou a polícia Chegaram e acharam o pai esfaqueado O legista precisou a hora da morte por volta da meia noite Esses são os fatos Não se pode refutálos O rapaz é culpado Também sou sentimental Ele só tem 18 anos mas ainda assim deve pagar O décimo jurado tenta reproduzir com suposta objetividade a narrativa da testemunha feminina que morava no prédio e m frente Ela alega ter olhado pela janela e visto do outro lado da rua o rapaz esfaquear o pai às OOlOh m e s m o que naquele exato instante passasse u m trem todo apagado sem passageiros Segundo o que supostamente ficou provado no tribunal seria possível enxergar a janela da frente através de u m trem nestas condições Décimo jurado U m a mulher deitada sem poder dormir de calor entendem levanta olha pela janela e do outro lado da rua vê o rapaz esfaquear o pai É precisamente OOlOh tudo se encaixa Olha ela conhece o rapaz desde pequeno A janela dele é e m frente Ela jura que o viu matar N a especificação dos fundamentos da decisão de cada um observamos uma interessante questão u m a rica pluriperspectiva expressa a partir do ponto de vista de cada jurado Algumas falas potencializadas pelo eficiente uso do closeup que mostra a expressiva linguagem facial de todos revelam a diferente forma com que os jurados percebem a questão lingüística e a sua própria subjetividade A justificativa do oitavo jurado revela consciência da materialidade da interpretação nos termos áeAlfRoss e está bem próxima à lógica do razoável de Recaséns Siches Ela preconiza que todo julgamento deve assumidamente almejar o valor justiça a prudência humana e m favor dos menos favorecidos e m termos sociais Ele demonstra ter a consciência clara de que no processo jurisdicional as estimativas são feitas e m termos concretos a partir de visões particulares Para tanto valoramse as provas e os fatos escolhendose a norma pertinente Fatos idênticos são passíveis de valorações diversas D a m e s m a forma ele parece perceber o que disciplina Hans Kelsen ao alertar que o fato juridicamente verificado pode eventualmente não corresponder ao fato e m si haveria sempre u m a margem de erro potencial Neste sentido se o júri verifica u m fato que na realidade não ocorreu a justiça R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 551 sentença como valor fica claramente comprometida um inocente estaria sendo condenado à morte Pelo sistema jurídico americano o ônus da prova cabe à promotoria mas havendo dúvidas na verificação jurídica do fato não deve haver condenação O oitavo jurado diz c o m reponsabilidade que não se pode decidir sobre a vida de u m jovem de dezoito anos e m cinco minutos Neste instante iniciase u m antagonismo claro entre ele e o terceiro jurado que aparece no diálogo Oitavo jurado E se errarmos Este rapaz foi maltratado a vida inteira Nasceu na pobreza A mãe morreu quando tinha nove anos Morou u m ano e meio em orfanato enquanto o pai esteve preso por estelionato Não é u m começo muito feliz E u m rapaz revoltado porque foi maltratado a vida inteira todos os dias Teve dezoito anos de muita infelicidade Acho que lhe devemos umas palavras é só De acordo com os testemunhos parece culpado Talvez seja Sentei no tribunal seis dias enquanto apresentavam as provas Tudo parecia se encaixar tão bem que comecei a estranhar ou seja nada se encaixa tão perfeitamente Queria perguntar várias coisas Talvez não mudasse nada Comecei achar que a defesa não confrontou as provas de forma efetiva Deixou muitas coisas passarem Comecei a m e colocar no lugar do rapaz Teria pedido outro advogado Se fosse minha vida em jogo ia querer que meu advogado pusesse as testemunhas de acusação na parede Só há uma pessoa que pode ser considerada testemunha a outra diz que ouviu e viu o rapaz fugir depois de matar E há provas circunstanciais Esses dois são tudo o que a promotoria tem E se estiverem errados Terceiro jurado Como assim errados Então para que testemunhas Oitavo jurado Não podem estar errados Terceiro jurado Como assim Estavam sob juramento Oitavo Jurado São pessoas Pessoas erram Não poderiam estar errados O filme também não idealiza a imagem e a vida do acusado que cresceu num cortiço miserável Ele sempre teve u m a vida difícil mas já assumiu atitudes de violência desde muito jovem Segundo informação dos autos o rapaz desde os cinco anos apanhava do pai a socos C o m dez anos foi ao juizado de menores porque jogou u m a pedra na professora já com quinze foi para u m reformatório Roubou u m carro e foi preso por isso Foi pego duas vezes brigando com u m a faca é sabido que seria muito habilidoso c o m elas Para complicar ainda mais o caso através do testemunho de vizinhos que o rapaz teria batido no pai depois de u m a briga por volta das 1900h daquela noite O acusado alega que depois de apanhar do pai teria ido direto a u m a espelunca onde comprou R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 552 Mara Regina de Oliveira u m canivete que tinha cabos especiais O rapaz que lhe vendeu a faca disse que era a única que tinha no estoque Ele teria encontrado os amigos no bar os quais viram a faca mas foi embora às 2045h e teria ido para casa por volta das 2200 h À s 2330h alega ter ido ao cinema e ter perdido a faca antes de voltar para casa por volta das 310h da manhã quando encontra a polícia e o pai morto na sua casa supostamente com a m e s m a faca Ele é interrogado no local do crime e preso pois não foi reconhecido por ninguém que estava no cinema e não consegue se lembrar dos nomes dos filmes que supostamente viu Duas testemunhas vizinhas alegam têlo visto matar o pai e fugir por volta das 0010h As circunstâncias são incriminadoras para o acusado mas o fato em si e m torno da morte do pai do acusado é inacessível para os jurados é inacessível para nós espectadores O oitavo jurado apesar de estar imbuído claramente por uma valoração humanista solidária à condição de excluído do rapaz inicia u m a perspicaz discussão lingüística e m torno da coerência formal do discurso das provas apresentadas Sua estratégia argumentativa é inteligente na medida e m que percebe haver u m grande dissenso valorativo entre os jurados cuja moralidade se mostra bastante relativa no sentido kelseniano da expressão Eles vêm de classes sociais diferentes u m deles inclusive viveu n u m cortiço e m condições semelhantes a do acusado Outros demonstram ter u m poder aquisitivo alto u m deles é corretor da bolsa de valores de Nova York O mais impactante e m termos de conceitoimagem é que vários deles ao longo da discussão deixam o seu papel institucionalizado de jurado e mostram de u m ponto de vista zetético os seus valores pessoais divergentes que acabam por influenciar muitas vezes de forma inconsciente a sua própria interpretação constitutiva dos discursos probatórios Esta valoração nem sempre é humanista e razoável muitas vezes está ligada a preconceitos sociais e traumas pessoais O terceiro jurado relatou olhando para a foto dos dois juntos ter ensinado o filho a brigar quando criança Aos dezesseis anos o filho bateu nele saiu de casa depois disto não mantém contato com ele há dois anos Lembramonos também do que diz o décimo jurado bem representado por EdBegley logo no início do debate sua fala aparentemente objetiva revela na verdade grande preconceito social Décimo jurado Teve um julgamento justo Quanto custa isto Ouvimos os fatos não quer que acreditemos no rapaz sabendo o que é Convivi com eles a vida toda Não se pode acreditar em nada do que dizem Sabem disso Já nascem mentirosos A primeira inconsistência estrutural do discurso das provas levantada pelo oitavo jurado diz respeito à suposta raridade da faca utilizada no crime que seria a m e s m a faca pertencente ao rapaz Ele mostra u m a faca idêntica que teria comprado ilegalmente numa tabacaria a duas quadras da casa do rapaz e que teria custado seis dólares Considera nestes termos que haveria a possibilidade dele ter m e s m o perdido a faca e o pai ter sido esfaqueado com u m a similar Mais tarde vai ser considerado através R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 553 sentença da experiência do sexto jurado que morou num cortiço que o rapaz por ser experiente como o uso deste tipo de faca jamais a utilizaria de cima para baixo como ocorreu no crime mas sim de baixo para cima É feita mais u m a votação se os onze mantiverem a seu veredicto de culpado o oitavo jurado aceita concordar com eles e mudar o seu voto Mas neste momento aparece mais voto para não culpado foi dado pelo nono jurado retratado pela bela atuação de Joseph Sweeney claramente o mais velho do grupo Fica claro que ele é u m a pessoa madura e ponderada menos vítima de seus preconceitos e traumas que teve a sua visão e m torno dos possíveis equívocos da linguagem ampliada pela discussão iniciada pelo oitavo jurado Ele diz Nono Jurado Ele não está dizendo que o rapaz é inocente Apenas não tem certeza Não é fácil se posicionar contra os outros Ele fez uma jogada por apoio e eu lhe dei O rapaz é provavelmente culpado mas quero ouvir mais A seguir o oitavo jurado percebe uma outra sutil inconsistência formal nos discursos das duas testemunhas quando analisados conjuntamente Mostra que se o trem estava passando no exato da ocorrência do assassinato como alega a testemunha que viu o crime da janela do prédio da frente o idoso não poderia ao m e s m o tempo ter ouvido o rapaz gritar enquanto o trem passava Ele parece resgatar a idéia de Hans Kelsen quando considera que sendo a causalidade impossível não se pode imputar conseqüências jurídicas aos fatos Oitavo jurado Um trem de seis vagões leva dez segundos passando por um ponto Digamos que o ponto seja a janela do quarto do homicídio Morei num segundo andar perto dos trilhos quando o trem passa é quase insuportável Mal se houve o que pensa O velho que morava no apartamento de baixo disse que ouviu o rapaz dizer que o mataria N o segundo seguinte o corpo foi ao chão A vizinha da frente diz que viu o homicídio pela janela dos dois últimos vagões O corpo foi ao chão enquanto o trem passava portanto o trem passou roncando pela janela do velho dez segundos antes de o corpo cair O velho teria de ter ouvido o rapaz gritar quando o trem passava Não é possível que o ouvisse Mesmo que ouvisse não reconheceria a voz Acho que u m testemunho que condena a morte deveria ser preciso sim Neste momento estimulado pelo oitavo jurado o nono jurado faz uma releitura retrospectiva quase cinematográfica da linguagem corporal da testemunha idosa H á u m belo closeup de sua face e o processo psicológico de identificaçãoprojeção é claro entre ambos Por também ser idoso ele se projeta na testemunha e com ela se identifica Ele não diz que a testemunha mentiu deliberadamente mas entende que ela eventualmente teria se forçado a acreditar que ouviu aquilo e que reconheceu o rosto do rapaz R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 554 Mara Regina de Oliveira Nono jurado Eu o observei por u m longo tempo O paletó estava rasgado debaixo do ombro Você não notou Como se vem a um tribunal assim Era u m senhor muito idoso e usava um paletó rasgado Andou bem devagar até a tribuna Puxava da perna esquerda e tentava esconder isto Por que estava com vergonha Acho que conheço este homem melhor do que vocês aqui Este é um homem calado amedrontado insignificante velho que nuca foi nada a vida inteira Que nunca foi reconhecido ou teve seu nome nos jornais Ninguém o conhece Ninguém o cita Ninguém lhe pede conselhos depois de setenta e cinco anos Cavalheiros é uma coisa triste não ter expressão alguma U m homem como este precisa ser citado precisa ser ouvido Ser citado ao menos uma vez é muito importante para ele Seria duro para ele se isolar em seu mundo O oitavo jurado também considera que sendo o rapaz muito esperto não haveria sentido e m pensar que ele gritaria ao cometer o crime para toda a vizinhança ouvir Diz que o advogado de defesa escolhido pelo Estado provavelmente não queria o caso pois sendo u m caso com poucas chances de vitória não traria louros para a carreira dele a menos que se esforçasse bastante e que acreditasse na inocência do rapaz É neste momento que oitavo jurado tem u m novo insight que não havia percebido antes com relação à imprecisões lingüísticas na narrativa do idoso Para justificar o seu ponto de vista ele chega a encenar a narrativa da testemunha na sala do júri Mostra através de o seu próprio caminhar que seria impossível para u m velho manco que teve derrame ir do quarto à sala e m quinze segundos tendo de percorrer três metros e meio no quarto mais treze metros do corredor A o testar pessoalmente o tempo andando a m e s m a metragem arrastando a perna ele verifica que o tempo gasto seria de quarenta e u m segundos Conclui que ele pode ter visto outra pessoa que julgou ser o rapaz A chuva começa o tempo refresca e metaforicamente o ventilador volta a funcionar como se ele simbolizasse o enfraquecimento do antagonismo e a presença marcante da razoabilidade humana na interação do julgamento A o longo dela cada vez que a votação é refeita mais jurados votam pelo veredicto não culpado Ocorre u m a interessante contraposição de discursos entre o décimo primeiro jurado que claramente influenciado pela fala do oitavo jurado defende o princípio da razoabilidade no veredicto A seguir temos a fala exaltada do décimo jurado que deixa de lado a suposta crença na verdade dos fatos e assume claramente a interferência da sua subjetividade valorativa preconceituosa na leitura interpretativa das provas Neste momento todos na sala dão as costas para ele enquanto discursa O exagero valorativo de sua fala é exposto numa causalidade impossível Ela é calcada e m torno da idéia de que todo desfavorecido é u m mentiroso u m bêbado e u m assassino a qual nada tem a ver com a verificação do fato R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 555 sentença processual do ponto de vista interativo Isto a torna sem sentido perante os demais em termos de imputação normativa Décimo primeiro jurado Temos uma responsabilidade Sempre achei algo notável da democracia O fato de sermos convocados pelo correio para vir aqui decidir pela culpa ou não de u m rapaz do qual nunca ouvimos falar Não temos nada a perder ou a ganhar com o nosso veredicto Isto é uma das razões pelas quais somos fortes não devíamos fazer disto algo pessoal Décimo jurado Sabem como essa gente mente Já é uma coisa nata Que diabos Eles não sabem o que é a verdade E não precisam de motivo algum para matar alguém Ficam bêbados bebem como gambá todos eles E se alguém morrer morreu A vida humana não significa o mesmo para eles Claro que possuem coisas boas sou o primeiro a reconhecer conheci u m casal que era bom mas é exceção Entendem A maioria parece insensível São capazes de tudo Estão cometendo u m grande equívoco O rapaz é mentiroso Sei tudo sobre eles Eles não prestam Não tem u m que preste Estas pessoas são perigosas selvagens A seguir o oitavo jurado alerta que o preconceito embora profundamente humano dificulta ainda mais o acesso à verdade e m si já muito complicado e difícil Resume de u m ponto de vista zetético e logopático o conceitoimagem da angustiante incerteza do julgamento exposta n u m a interessante emoção de primeiro grau que nos coloca ao lado dele na sua dúvida existencial Pela sua fala percebemos mais u m a vez os limites da verificação do fato processual no sentido propugnado por Hans Kelsen O que se discute naquela sala não é inocência real do acusado pois esta é inacessível ao direito O debate jurídico gira e m torno da certeza e m torno da verificação jurídica dos fatos da existência ou não da dúvida razoável e não do fato e m si que jamais será acessado por eles ou pelo espectador Oitavo jurado É sempre difícil deixar os preconceitos fora de uma questão destas Não importa para que lado vá o preconceito sempre obscurece a verdade Não sei qual é a verdade e suponho que ninguém aqui jamais saberá de fato Nove pessoas aqui parecem achar que o réu é não culpado Mas só estamos jogando com probabilidades Podemos estar enganados podemos estar deixando u m homem culpado livre não sei Ninguém pode saber ao certo Mas temos dúvida razoável E isso é algo muito valioso no nosso sistema Nenhum júri pode declarar u m homem culpado a menos que tenha certeza Nós nove não podemos entender como vocês três continuam com tanta certeza R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 556 Mara Regina de Oliveira N o momento e m que o quarto jurado reafirma o seu voto de culpado e reconstrói o discurso da testemunha feminina que alega ter visto o crime como se de fato estivesse vendo o crime ele mesmo naquele instante ele faz u m gesto curioso Ele tira os seus óculos e passa as mãos no nariz no lugar onde estes se apoiam Neste momento o nono jurado que já havia demonstrado ter u m a memória visual extraordinária e m relação ao idoso tem u m novo insight que passou despercebido até mesmo pela astúcia lingüística do oitavo jurado Ele recorda que a testemunha feminina tinha marcas de óculos no nariz e as esfregava o tempo todo A partir desta observação minuciosa outros confirmam terem percebido o detalhe inclusive o quarto jurado que estava tão certo da verdade imposta minutos antes O oitavo jurado considera que talvez como o idoso ela tenha pensado ter visto o acusado mas de fato pode ter visto algo embaçado Se ela estava na cama tentando dormir no momento e m que supostamente viu o rapaz esfaquear o peito do pai de cima para baixo apenas virando o seu rosto olhando para a janela ela estava sem óculos certamente Mais u m a vez temos u m a impossibilidade causai ver uma pessoa na janela da frente sem óculos através de u m trem e m movimento no escuro que torna impossível a imputação normativa ao fato O último a mudar de posição é o terceiro jurado que parecia até então irredutível Seu antagonismo com o oitavo jurado é explícito já que situação inicial se inverteu Temos onzes jurados favoráveis ao veredicto não culpado Antes de expor a sua fragilidade pessoal ele faz u m a tentativa desesperada mas frustrada de invocar mais uma vez a objetividade das provas Todavia acaba revelando de forma extremamente passional que estava projetando a nível psicológico o trauma de ter sido agredido e abandonado por seu filho N a verdade ele estaria condenando seu próprio filho e não o acusado através de processo mental complexo mais inconsciente O confronto com o seu trauma é muito doloroso mas o impulsiona a escolher de forma mais racional e menos perturbada por emoções negativas o veredicto não culpado após rasgar a foto em que aparece ao lado do filho já adulto O julgamento termina todos saem da sala levando consigo a impessoalidade de seus papeis após proferir a interpretação autêntica dos fatos no veredicto não culpado no sentido kelseniano da expressão Antes de deixar a sala o oitavo jurado mostra consideração humana pelo terceiro jurado entregandolhe gentilmente o paletó quando o vê arrasado psicologicamente Mas ao sair do tribunal já perto da escadaria o nono jurado pergunta o seu nome n u m gesto final de encontro de pessoas não mais de papéis que acabaram sendo parceiros nesta empreitada humanista O oitavo jurado apenas reponde com u m sorriso Davis O nono jurado oferece a sua mão e m cumprimento dizendo cordialmente Eu sou MacCardle Eles se despedem e cada u m segue o seu caminho R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010 A verdade factual relativa nas decisões judiciais um diálogo interdisciplinar com o filme doze homens e uma 557 sentença Considerações finais Pela análise do filme relacionada a concepções teóricas no campo da Filosofia do Direito ficou demonstrado o conceitoimagem ligado à impossibilidade de reduzirmos o raciocínio decisório a u m a dedução silogística mecanicista defendida pelas teorias dogmáticas tradicionais A película evidencia a importância do impacto da compreensão logopática emocional e afetiva para a cognição completa de como as imprecisões lingüísticas impossibilitam a defesa dogmática de u m ideal de justiça absoluto no momento do julgamento O fato e m si e a verdade factual jamais vão ser acessados pelo direito no momento de sua aplicação É ele que constrói e relativiza a verdade fática em termos normativos por isso há inerentes possibilidades de erro Através das emoções primárias percebemos a angústia humana que afeta o sensível mas perspicaz oitavo jurado diante desta incerteza quando ela implica na decisão sobre a vida ou morte de u m a pessoa Pelas mesmas emoções sentimos como as valorações humanas negativas ligadas aos preconceitos à falta de seriedade e aos traumas pessoais que atingem outros jurados dificultam ainda mais esta constituição dos fatos de forma razoável E m termos concretos há u m a espécie de metainterpretação complexa no fenômeno decisório na medida e m que os julgadores têm de interpretar u m a interpretação prévia da realidade construída pelo próprio discurso probatório Haveria imprecisões lingüísticas e subjetividades valorativas nestes dois níveis de construção hermenêutica Mas e m termos de emoção secundária o filme provoca u m a angústia ainda maior que diz respeito a u m a potencial incompletude humana de quem julga u m processo Ele tornou evidente nos termos colocados pelas teorias destacadas como a verificação jurídica do fato envolve u m permanente campo de incertezas na medida e m que depende de uma construção lingüística competente que não afeta a todos envolvidos nas tarefas judicantes de forma unânime Faz parte da natureza humana ter u m a visão humanista e responsável mas nunca estaremos livres das valorações menos positivas que nos afetam e que também fazem parte da condição humana inexoravelmente Se o filme confirma as reflexões de Al Ross no tocante a permanente integração da consciência jurídica formal ligada ao respeito dogmático ao direito e da consciência jurídica material ligada aos valores nos raciocínio decisórios surge ao mesmo tempo a percepção expandida através do filme de que esta materialidade está sujeita a distorções e tem ser trabalhada com responsabilidade Onze jurados não tinham consciência desta materialidade relativa que envolve u m a escolha entre diferentes possibilidades naquele julgamento Apenas o oitavo jurado estava consciente do risco da injustiça de u m a materialidade mal trabalhada e das incertezas lingüísticas Ele acabou dominando a cena graças à sua astúcia argumentativa associada a u m senso de responsabilidade ético Para nós o contato com a linguagem artística é muito rico para expor este momento de complexidade com maturidade visando a construção de u m a R Fac Dir Univ SP v 105 p 535 558 jandez 2010 558 Mara Regina de Oliveira consciência jurídica material mais positiva e m termos humanos Ele supera qualquer explicação teórica racional pois tem de ser sentida existencialmente C o m o na brilhante peça irlandesa de Brian Friel Faith Healer citada na introdução deste trabalho os conceitosimagem do filme Doze homens e uma sentença não nos conduzem à resposta fácil e m torno do real como ocorre e m muitos filmes de tribunal hollywoodianos que não hesitam e m mostrar e m termos ideais e claramente fictícios a suposta verdade factual no final Iniciamos e terminamos nossa experiência logopática angustiados e presos na sala do júri de forma b e m próxima ao que ocorre na realidade concreta de u m julgamento Jamais saberemos o que aconteceu de fato jamais saberemos se o rapaz matou ou não o seu próprio pai Apenas captamos as possibilidades não congruentes dos relatos discursivos narrativos do que poderia ou não poderia ter acontecido e m termos reais São Paulo outubro de 2010 Referências CABRERA Júlio O cinema pensa uma introdução à filosofia através dos filmes Rio de Janeiro Rocco 2006 DI GIORGI Beatriz C A M P I L O N G O Celso Fernandes PIOVESAN Flávia Coord Direito cidadania e justiça ensaios sobre lógica interpretação teoria sociologia e filosofia jurídicas São Paulo Editora dos Tribunais 1995 F E R R A Z JÚNIOR Tercio Sampaio Direito retórica e comunicação subsídios para uma pragmática do discurso jurídico São Paulo Saraiva 1973 Introdução ao estudo do direito técnica decisão dominação 4 ed São Paulo Atlas 2003 Teoria da norma jurídica ensaio de pragmática da comunicação normativa Rio de Janeiro Forense 1978 KELSEN Hans Teoria pura do direito São Paulo Martins Fontes 1987 L U M E T Sidney Doze homens e uma sentença 12 Angry Men D V D M G M H o m e Entertainment 2004 ROSS Alf Direito e justiça Bauru Edipro 2003 XAVIER Ismail O discurso cinematográfico a opacidade e a transparência São Paulo Paz e Terra 2005 Org A Experiência do cinema antologia Rio de Janeiro Edições Graal Embrafilmes 2008 R Fac Dir Univ SP v 105 p 535558 jandez 2010