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Direito ·

Introdução ao Estudo do Direito

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O juiz boca da lei Luiz Sergio Fernandes de Souza 21 de abril de 2017 10h00 O Projeto de Lei que cuida do abuso de autoridade em tramitação no Senado PLS nº 28016 ao tratar como crime a atividade jurisdicional que se afaste de uma suposta interpretação literal da lei representa grave retrocesso Não é preciso enveredar pela filosofia da linguagem para concluir que o apego à letra da lei a expectativa de que tenha de ser entendida à risca mais que uma aspiração aparentemente ingênua é expressão dos regimes autoritários Carlos Maximiliano Deputado Federal na República Velha por duas vezes 1911 e 1919 Ministro de Estado na presidência de Venceslau Brás 1914 ProcuradorGeral da República sob a vigência da Constituição Federal de 1934 que ajudou a escrever além de Ministro da Corte Suprema 1936 já ensinava que embora de aparência translúcida as palavras sempre deixam margem para interpretação mesmo porque o sentido delas muda com o tempo Escrevendo em 1924 chama a atenção para a advertência de Ulpiano jurisconsulto romano segundo a qual embora claríssimo o edito do pretor não se deve descurar da interpretação Houve excessos é certo sobretudo na Idade Média configurados na substituição dos textos legais por parêmias e no uso de argumentos especiosos fato que explica a má reputação da retórica arte de argumentar que Aristóteles tivera entretanto na conta de atividade séria Mas de outra forma a pretexto de afastar os riscos de uma interpretação demasiadamente ampla certas doutrinas já na Idade Contemporânea apegaramse à ideia de que as palavras têm um sentido unívoco de forma que bastaria a interpretação gramatical A Escola da Exegese que ganhou corpo no período que se seguiu à Revolução Francesa valorizando a noção do respeito à letra da lei sustentava que ao juiz por meio de um processo puramente racional seria dado aplicar a norma sem a interferência dos aspectos subjetivos como no silogismo em que das premissas se retira necessariamente a conclusão Tal qual se passou no campo da ciência em que se postulava um conhecimento isento de valores o racionalismo levou à crença na figura de um juiz neutro distante dos aspectos culturais históricos e axiológicos Le juge bouche de la loi Os revolucionários deposto o rei absolutista traíram os ideais da Revolução instaurando um clima de terror O Diretório substituiu a Convenção fato que marcou a quarta fase revolucionária finda com o golpe de Napoleão e a instalação do Consulado Diziase na época por temor ao espírito reacionário dos juízes ligados ao antigo regime que o Código de Napoleão 1804 era completo e coerente não demandando interpretação Jactavamse juristas e professores de afirmar que não estudavam nem ensinavam Direito Civil debruçandose sobre o Código de Napoleão Como registra Carlos Maximiliano em obra que se tornou clássica Hermenêutica e Aplicação do Direito 1924 surpreende que decorridos cem anos Paula Batista professor da Faculdade de Direito do Recife ainda sustentasse que a interpretação não se justifica quando a lei é clara e precisa in claris cessat interpretatio Hoje custa crer que passados duzentos anos desde o Código de Napoleão alguém defenda a necessidade e não só a possibilidade de uma interpretação literal da lei alheio ao fato de que a velocidade das transformações sociais atropelando os textos legais representa um constante desafio à argúcia de advogados e juristas tanto quanto ao senso de justiça dos magistrados É certo que a tecnologia digital com o tempo tornará previsível o desfecho dos julgamentos mudança já em curso Mas o homem não prescindirá do ato de interpretar sempre estimativo e não meramente cognitivo porque o Direito é sobretudo uma ciência do espírito Ao jurisdicionado será dado saber qual a probabilidade de o juiz sob certas condições decidir o caso neste ou naquele sentido o que se revela factível sobretudo em sistemas nos quais impera a vinculação vertical das decisões judiciais como é o nosso A prognose de qualquer forma será feita na base do universo de precedentes ou seja de julgamentos As palavras não são portadoras de um sentido unívoco Além da sintaxe a comunicação humana transcorre na base de relações semânticas e pragmáticas Como já advertia Alipio Silveira escrevendo na década de 30 Da interpretação das leis em face dos vários regimes políticos embora o legislador ponhase a dar uma regra a tudo somente em regimes totalitários e autocráticos se pode conceber a pretensão de regramento completo e preciso de toda a conduta humana infenso a qualquer tipo de interpretação mesmo porque acrescentamos a norma opera no campo da hipótese cuja aplicação ao caso concreto demanda precisamente o exercício da jurisdição o poder de dizer o direito E o sentido da norma não está inscrito nela própria não emana do texto revelandose ao homem pelo só fato de ser ele dotado de razão Há todo um aspecto cultural que transcende a relação sujeitoobjeto Por isso preocupa a iniciativa de criminalizar a interpretação judicial que não se vê afastada na Emenda do Relator da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania de 22317 pois a pretexto de incorporar a sugestão feita pelo Juiz Sérgio Moro que se orienta basicamente no mesmo sentido de Emendas anteriores o substitutivo mantém expressa referência à interpretação literal da lei noção ontológica que poderá servir muito bem a uma razão instrumental Luiz Sergio Fernandes de Souza é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Professor do Programa de Estudos PósGraduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Cloroquina ciência e poder Somente no âmbito racional se pode buscar orientação segura para enfrentar a pandemia Luiz Sergio Fernandes de Souza O Estado de SPaulo 22 de maio de 2020 03h00 O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina substâncias que compõem medicamentos registrados na Anvisa para tratamento de outras doenças no combate à covid19 vem provocando intensa polêmica Contudo uma coisa é a discussão científica pautada no confronto entre modelos que se desenvolve na base de argumentos cuja conclusão depende de evidências e outra a discussão apaixonada que se faz com o emprego deliberado ou não do discurso falacioso Muitos se valem de exemplos isolados de cura fazendo indevida generalização sem lastro indutivo ou se utilizando de dados que por não terem sido coletados aleatoriamente acabam por comprometer a representatividade da amostra com igual prejuízo da correção indutiva Outros a partir de supostas evidências na verdade simples coincidências entre o uso da substância e a cura estabelecem indevidas relações causais tudo para justificar a utilização do medicamento fora da esfera de aplicação aprovada pela Anvisa Só mesmo no âmbito da racionalidade é que se pode buscar orientação segura para o enfrentamento da pandemia que já matou cerca de 20 mil brasileiros condenando à miséria expressiva parcela da população Deste ponto de vista há que ter em conta que a inserção dos medicamentos que contêm a cloroquina e a hidroxicloroquina nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS visando ao tratamento da covid19 depende da prévia aprovação da Anvisa De fato cabe à vigilância sanitária o registro de droga ou medicamento o que depende da comprovação científica e da análise da segurança e eficácia para o uso a que o fármaco se propõe Apenas produtos médicos submetidos a pesquisa aprovada pela Anvisa estão dispensados do registro o que tem em conta o princípio da beneficência possíveis riscos para o sujeito de pesquisa somente se justificam à vista dos benefícios do tratamento experimental Razões bioéticas também orientam o uso compassivo regulado pela Anvisa RDC nº 38 de 1282013 agência que autorizou o emprego da cloroquina e da hidroxicloroquina nas formas graves de covid19 a critério médico Ainda não há comprovação científica nem análise de segurança e eficácia no tratamento da covid19 quer da cloroquina quer da hidroxicloroquina A avaliação da Anvisa orientada por metodologia científica exige a indicação da finalidade e do uso a que se destina o produto o que inclui informações sobre o desempenho que o fabricante a ele atribui assim como de seus efeitos secundários colaterais e contraindicações exame que se faz à vista de dados de pesquisas clínicas e inspeções feitas desde a produção até a comercialização do produto RDC 56 642001 Com isso se quer dizer que não basta a convicção pessoal sobre a segurança e eficácia da cloroquina ou da hidroxicloroquina no tratamento da covid19 cabendo alertar que o uso não autorizado poderá trazer consequências na esfera da responsabilidade civil no caso de eventual insucesso ou de graves efeitos resultantes do uso dessas substâncias Digase mais se o tratamento não autorizado pelas instâncias sanitárias competentes for ministrado pelo poder público responderá o Estado em tese no caso de agravamento ou morte artigo 37 6º da Constituição No que respeita às relações entre a administração pública e seus agentes pode configurarse nas hipóteses mencionadas a prática de improbidade administrativa com uma série de consequências jurídicas que vão da imposição de multa passando pela impossibilidade de contratar com o poder público até a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos Não por acaso a preocupação revelada na edição da MP 966 de 1352020 ao isentar de responsabilidade o administrador público que venha a adotar determinada orientação técnica no enfrentamento da emergência decorrente da pandemia exceção feita à hipótese de dolo erro grosseiro ou conluio independentemente do resultado da conduta administrativa o que abre caminho para a aprovação do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina também por medida provisória com o que o SUS seria levado a utilizálas no tratamento da covid19 A relação entre racionalidade científica e racionalidade política um dos temas centrais da sociologia do conhecimento compõe o pano de fundo dessa discussão É preciso entender o que move a defesa intransigente do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid19 sobretudo quando se sabe que se se confirmar a tendência de aumento exponencial do número de enfermos muitos não terão efetivo acesso ao sistema de saúde situação que se pode agravar com o uso indiscriminado daquelas substâncias que comprovadamente têm risco de sérios efeitos secundários ou colaterais O certo é que a ciência quando se submete a injunções de ordem política ou a determinado projeto político capitula As sucessivas exonerações no Ministério da Saúde talvez possam ser interpretadas nesse contexto É inegável também para repetir frase atribuída a Galileu Galilei que a verdade é filha do tempo e não da autoridade Sucede que o tempo neste período de imagens sombrias e narrativas distópicas conspira contra todos nós brasileiros MESTRE E DOUTOR EM DIREITO USP PROFESSOR DA PUC SP É DESEMBARGADOR DO TJSP