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PAULO ARANTES O NOVO TEMPO DO MUNDO E OUTROS ESTUDOS SOBRE A ERA DA EMERGÊNCIA O novo tempo do mundomioloindd 3 30042019 121042 Copyright Boitempo Editorial 2014 Copyright Paulo Eduardo Arantes 2014 Coordenação editorial Ivana Jinkings Editoraadjunta Bibiana Leme Assistência editorial Thaisa Burani Preparação Sara Grünhagen com exceção do capítulo Depois de junho a paz será total por Mariana Tavares Revisão Mariana Tavares Capa David Amiel sobre foto de Mídia NINJA protestos contra a Copa das Confederações em Belo Horizonte junho de 2013 Diagramação Antonio Kehl Produção Livia Campos É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora 1a edição abril de 2014 1a reimpressão outubro de 2014 2a reimpressão maio de 2019 BOITEMPO Jinkings Editores Associados Ltda Rua Pereira Leite 373 05442000 São Paulo SP Tel 11 38757250 38757285 editorboitempoeditorialcombr wwwboitempoeditorialcombr wwwboitempoeditorialwordpresscom wwwfacebookcomboitempo wwwtwittercomeditoraboitempo wwwyoutubecomtvboitempo CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ A683n Arantes Paulo Eduardo 1942 O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência Paulo Eduardo Arantes 1 ed São Paulo Boitempo 2014 Estado de Sítio ISBN 9788575593677 1 Filosofia 2 Filosofia Estudo e ensino I Título II Série 1410484 CDD 100 CDU 1 O novo tempo do mundomioloindd 4 30042019 121042 ZONAS DE ESPERA Uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea 1 A certa altura de seu impressionante painel da onda punitiva que varre o capitalismo contemporâneo seria uma impropriedade sociológica deixar se levar pela inércia da frase feita e acrescentar de alto a baixo além de erro político crasso a sociedade punitiva não alcança o topo da pirâmide nem mesmo seus estratos médios sua varrição ocorre nas zonas liminares do subproletariado mundial Loïc Wacquant pouco antes de nos guiar numa visita à joia da coroa prisional americana a Twin Towers Correctional Facility de Los Angeles passa a palavra ao xerife Apaio que para variar se gaba de tornar a vida de seus hóspedes cada vez mais dura em conformidade está claro com o princípio utilitarista segundo o qual a condição do detento mais bem tratado deve ser inferior à do assalariado em piores condições do lado de fora Seguese um elenco de mesquinharias e retaliações em escala crescente até onde a imaginação pode chegar aliás sem muito esforço tendose em mente que a atual era do confi namento converteu a prisão em aspirador social e máquina de moer Até aí nada de mais por assim dizer pois é voz corrente na população americana encarcerada que viver nas prisões de Los Angeles é como viver no inferno descontado por certo o que se passa ao sul do Rio Grande onde realmente se encontra o último círculo O que faz mesmo pensar é a semcerimônia com que arremata sua arenga de resto um discurso padrão e sempre esperado em campanhas eleitorais acerca das providências de endurecimento do regime de detenção Quero que eles sofram1 Simples 1 Loïc Wacquant Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos 3 ed Rio de Janeiro Revan 2007 Coleção Pensamento Criminológico v 6 p 311 O novo tempo do mundo FINALindd 141 O novo tempo do mundo FINALindd 141 10042014 152751 10042014 152751 142 O novo tempo do mundo assim sem maiores états dâme a repressão judiciária se intensifi cou a ponto de banalizar o próprio ato de infl igir uma dose suplementar de afl ições sempre calibradas para cima numa criatura já estigmatizada e em estado de privação máxima Moderação e proporcionalidade Foise o tempo desse conto de Natal dos primeiros reformadores históricos fraseologia defi nitivamente arquivada assim que se declarou na abertura do atual período de acumulação na base do trabalho dessocializado um estado de emergência no front penal e social ao qual não corresponde como explica extensamente Wacquant nenhuma ruptura na evolução do crime e da delinquência inaugurando pelo contrá rio um novo paradigma de governo da insegurança social alimentada pela turbulenta ansiedade gerada pela normalidade do trabalho desclassifi cado de resto imposto como uma danação precursora do que virá pela frente em caso de recalcitrância e contumácia Como essa onda punitiva é longa e de fundo arrastando consigo outras tantas viradas históricas na mesma direção do paradigma punitivo de con tenção e governo seria o caso de ir adiantando que não só em matéria de moderação e proporcionalidade como também se dizia desde os tempos em que o confl ito armado entre Estados foi por assim dizer juridicamente domesticado até a implosão da guerra total a forma predominante de intervenção em nome da ordem que a guerra contemporânea assumiu é igualmente tributária dessa mesmíssima virada punitiva onde a desmedida reina da estratégia de Choque e Pavor o fi asco na Guerra do Iraque apenas desmoralizou a letra conservando o espírito aliás afi nado com o shock incar ceration analisado por Wacquant ao desenho do arsenal cirúrgico concebido para gravar a memória perene da dor na mente de seus alvos preferenciais novamente disseminados pelas populações liminares do mundofronteira contemporâneo entendendose por fronteira toda sorte de barreira por cuja terra de ninguém social econômica simbólica etc campeia o peso morto do poder punitivo despertado de sua sonolência social pelos novos Estados do Workfare Pois então é assim queremos que eles sofram tanto nas cadeias do con dado de Los Angeles como na Faixa de Gaza mas também tanto na triagem dos postos de assistência em que se encaminham os condenados ao subemprego quanto nas zonas francas da vida e a enumeração dos focos epidêmicos do sofrimento social não teria mais fi m bem como a constatação passo a passo de que todos os seus agentes e pacientes trabalham o xerife e seu pessoal carcerário os operadores assistenciais do workfare e os militares O novo tempo do mundo FINALindd 142 O novo tempo do mundo FINALindd 142 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 143 profi ssionais que não obstante continuam acionando a quinquilharia dos fl agelos high tech etc2 2 Uma explicação necessária no que concerne à atrofi a do Estado Social embalada pelo mantra da responsabilidade pessoal e do trabalho que culminou na transformação do Welfare americano este último a rigor mais uma alega ção do que propriamente um fato numa engrenagem baseada na obrigação humilhante do trabalho subremunerado no que de fato consiste o workfare propriamente dito conversão de ajuda social em trampolim para o emprego precário Wacquant se apoia com frequência na reconstituição devida sobre tudo a Jamie Peck3 da gênese e economia política desse termo guardachuva para todo tipo de iniciativa de recondução da assistência social ao submundo do trabalho degradado Na fórmula de Jamie Peck aos McJobs veio se juntar o complemento dos McWelfare Por isso a tradução sem mais de workfare por trabalho social confunde pois tanto na França como no Brasil a expressão costuma remeter à atividade dos agentes incumbidos de tocar o serviço do setor social No caso a mão esquerda do Estado na conhecida distinção de Bourdieu entre os dois polos do campo burocrático desigualmente repartido entre a mão leve feminina das funções de amparo e proteção por defi nição uma mão aberta encarregada dos gastos e desperdícios e a mão direita masculina a mão dura da nova disciplina econômica Agentes estes que mesmo encarados como os trabalhadores que de fato são e trabalhadores sob risco de enrijeci mento moral pelo trato continuado com o desamparo não se confundem com as pessoas consumidas pela afl ição do outro lado do balcão No Brasil do último período essa distinção trivializouse no senso comum da distribuição aleatória de bondades e maldades conforme os altos e baixos da conjuntura Pois o livro de Wacquant4 tratará de redesenhar o modelo de Bourdieu ao incluir a polícia os tribunais e a prisão entre os elementos centrais da 2 Sobre a virada punitiva da guerra contemporânea ver Paulo Eduardo Arantes Notícias de uma guerra cosmopolita em Extinção São Paulo Boitempo 2007 Coleção Estado de Sítio 3 Workfare States Nova York Guilford Press 2001 4 Como relembrado pelo autor no capítulo teórico que fecha a edição americana de Punir os pobres A Sketch of the Neoliberal State em Punishing the Poor Th e O novo tempo do mundo FINALindd 143 O novo tempo do mundo FINALindd 143 10042014 152751 10042014 152751 144 O novo tempo do mundo mão direita do Estado juntamente com os ministérios da área econômica e orçamentária Dessa troca de mãos ou melhor superposição pois a rigor se trata da colonização do setor social pela lógica punitiva e panóptica característica da burocracia penal pósreabilitação resulta uma crescente remasculinização do Estado e reafi rmação marcial de sua capacidade de controlar os pobres problemáticos tanto os benefi ciários do workfare quanto os que resvalaram para o mundo do crime De sorte que desse embaralha mento de gênero das duas mãos do Estado aliás Wacquant sugere que a escalada patriarcalista do Estado remasculinizado depois de sua presumida feminização keynesiana pode ser entendida como uma reação às profundas modifi cações provocadas no campo político pelo movimento das mulheres seus agentes todos os setores confundidos moles ou duros podem então desempenhar com a desenvoltura que se sabe o novo papel de protetores viris da sociedade contra seus membros rebeldes Nesse sentido todo o engenhoso trabalho no qual se esmeram o xerife Apaio e seus colegas de produzir um excedente de sofrimento em seus de tentos é rigorosamente um travail du mâle para empregar com a mão trocada o jogo exato de palavras a que recorre Christophe Dejours para explicar a emergência de condutas iníquas e práticas organizacionais destinadas a infl igir sem fraquejar injustiça sobre terceiros no novo mundo do trabalho fl exível perguntando se afi nal esse trabalho do mal não seria igualmente o trabalho do macho Sendo este o caso não seria então a virilidade exibida no trabalho de governo da insegurança social a mola secreta de toda a onda punitiva que se alastra pelo sistema virada punitiva que por sua vez não arregimentaria seus operadores no teatro cívico da coragem viril se não se apresentasse com a energia mobilizadora de um trabalho5 O que permitiria de quebra encarar todo o aparato do workfare por um outro prisma o de uma outra onda a da intensifi cação do trabalho Há todavia uma ocorrência do trabalho social em que este é mobili zado em sua acepção propriamente europeia ou pelo menos numa de suas Neoliberal Government of Social Insecurity DurhamLondres Duke University Press 2009 p 287314 5 Christophe Dejours Souff rance en France la banalisation de linjustice sociale Paris Seuil 1998 p 123 Tentei noutro lugar explorar o alcance histórico do quadro conceitual da psicodinâmica das situações de trabalho notadamente na zona cinzenta dos campos da morte no Terceiro Reich como de resto sugerido pelo próprio Dejours Cf Paulo Eduardo Arantes Sale boulot publicado neste volume O novo tempo do mundo FINALindd 144 O novo tempo do mundo FINALindd 144 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 145 variantes enquanto modo de governo de populações inteiras em situações de risco emergencial e turbulência próxima da insurgência endêmica Acepção corriqueira porém não sua incorporação recente pelo menos no discurso do new american way of war e por extensão da matriz ocidental É que agora o trabalho social passou igualmente a pavimentar o caminho americano para a guerra permanente social work with guns na fórmula de Andrew Bacevich6 quem primeiro destacou estas fantasias de governança militar em que a guerra está se instalando para fi car de vez Guardadas as devidas proporções qualquer semelhança com as Minustahs da vida e as Unidades de Polícia Pacifi cadora UPPs cariocas não é casual pois se trata igualmente de um outro continuum punitivo como ressalta o mesmo Wac quant ao emendar por exemplo o workfare no prisonfare Estamos apenas lembrando que o Estado socialpenal remasculinizado é igualmente um warfare State A virada punitiva da guerra ao ressuscitar a velha estratégia da contrainsurgência dos anos 1960 arrastou consigo como garantia de que se trata mesmo de uma contrainsurgência sem fi m o foco na pacifi cação através da boa governança econômica da provisão social e securitária etc7 3 Antes de iniciar nossa visita guiada ao complexo prisional das Torres Gê meas de Los Angeles voltemos ao preâmbulo conceitual que uma expressão muito em voga entre as profi ssões de segurança prisional resume sem deixar resto isto é nenhuma dúvida acerca de por que ainda se trancafi am pessoas no século XXI coisa que no fundo ninguém mais sabe responder e por isso mesmo a pergunta parece tão obviamente sem propósito é preciso fazer com que os presos cheirem a presos make prisoners smell like prisoners Para tanto basta saber armazenálos em zonas de estocagem apropriadas graças sobretudo à recondução das antigas e sempre alegadas funções reabilitadoras do encarceramento à dimensão primitiva de castigo e mera neutralização e com isso reentronizar a centralidade do sofrimento agora em nova chave pois os tempos são outros A humilhação de cheirar como um detento a aura mesma da danação resulta assim de um novo metabolismo carce 6 Social Work with Guns London Review of Books v 31 n 24 17 dez 2009 p 78 7 Para uma exposição completa ver ainda Andrew Bacevich Washington Rules Americas Path to Permanent War Nova York Metropolitan Books 2010 cap 5 O novo tempo do mundo FINALindd 145 O novo tempo do mundo FINALindd 145 10042014 152751 10042014 152751 146 O novo tempo do mundo rário movido a retribuição automática Numa palavra sempre segundo Wacquant quando o encarceramento voltou fi nalmente a ser aquilo que nunca deveria ter deixado de ser desde a origem nada mais do que um sofrimento mas agora num regime institucional de mero processamento de pessoas sem outro fi m que não a contenção pura e simples quer dizer que no limite se encarcera para fazer mal punese para punir numa indistinção deliberada de meios e fi ns8 Volto a sugerir sem poder seguir em frente que os sofrimentos do en carceramento são infl igidos por um trabalho do mal a ser pesquisado na linha referida anteriormente isto é que só se encarcera para fazer mal se tal tratamento de choque for encarado e sublimado na sua própria violência específi ca como um trabalho do zelo na contenção da insegurança social e seus transbordamentos Relembro que do ângulo mencionado o da psico dinâmica das situações de trabalho a realidade do trabalho é o zelo com o qual suas prescrições são contornadas Assim quando Wacquant assinala como uma exceção o fato de certos carcereiros considerarem ser sua incumbência fazer reinar no interior de seus estabelecimentos um rigor penal superior ao estipulado pelo regulamento9 é do trabalho carcerário propriamente dito que está falando e por tabela do zelo característico do trabalho do mal na terceira onda de intensifi cação capitalista do trabalho10 Vistas as coisas por este prisma todavia seria indispensável ressaltar igualmente o outro extremo de toda a cadeia punitiva a pressão da burocracia penitenciária exercida sobre o trabalho de contenção exigido dos agentes correcionais Como se pode verifi car por exemplo num estudo encomendado ao Insti tuto de Psicodinâmica do Trabalho do Québec pela administração de uma supermax presídio de segurança máxima local desafi ada pelo grau elevado de afl ições psíquicas e morais envenenando o serviço de seu pessoal na linha 8 Para o cheiro de cadeia como um fi m em si mesmo ver Loïc Wacquant Punir os pobres cit p 296 Para o teatro do sofrimento penal onde se pune apenas para punir ver a entrevista do mesmo Wacquant no fecho da primeira edição de Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos Rio de Janeiro Revan 2000 Coleção Pensamento Criminológico v 6 p 144 9 Idem Punir os pobres 3 ed cit p 252 10 A respeito desta outra onda gêmea da punitiva como sugerido ver Sadi Dal Rosso Mais trabalho São Paulo Boitempo 2008 Coleção Mundo do Trabalho O novo tempo do mundo FINALindd 146 O novo tempo do mundo FINALindd 146 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 147 de frente uma espécie de muro de arrimo humano mais decisivo do que as barras inertes de uma cela11 Pois bem a crer no que li tudo se passa como se o poder burocrático prisional funcionando obviamente como um real poder punitivo também operasse de modo a fazêlo cair igualmente sobre as costas quentes de seus assalariados de resto já confrontados no seu dia a dia obrigatoriamente rela cional com uma situação de violência sempre no limite da explosão Quando esta fi nalmente ocorre nos momentos de crise mas não só nessas ocasiões extremas pois é amplo o espectro do trabalho verdadeiramente atroz de vigiar e punir e zelosamente ainda por cima pois até nesse último círculo há ainda quem preze o trabalho benfeito e reconhecido como tal o trabalho desses funcionários da sombra adquire então visibilidade máxima mas justamente como trabalho sujo Pois o trabalho de vigilância sem o qual a contenção é mera força bruta trabalho dos olhos dos ouvidos e do cérebro em extenuante estado de prontidão é por defi nição invisível e como tal desprezado na sua insignifi cância salvo na hora do mal necessário Acresce que o trabalho real de conter e vigiar como ocorre de resto com o real do trabalho qualquer que ele seja é uma atividade arriscada também pela iminência constante do excesso ao contornar o formalismo dos protocolos do trabalho prescrito Noutras palavras o trabalho sujo delegado tacitamente aos subalternos uma vez encerrado vira incidente para o qual se procura então um culpado entre os suspeitos de sempre o elo mais fraco na organização do trabalho no interior do aparelho penitenciário funcionando nesses momentos tal qual um sistema judiciário nesse caso uma gestão por inquéritos disciplinares distribuí dos a torto e a direito Assim ao forte sentimento de medo que vulnerabiliza de partida os trabalhadores do sistema vêm se juntar muita raiva e rancor não sendo pequena a dose diária de injustiça e humilhação reservada a essa outra metade da ralé prisional A virada punitiva não poderia ser mais completa 4 Passemos então ao dispositivo de confi namento e estocagem 142 mil metros quadrados alinhados em 4 hectares em pleno coração da cidade o maior estabelecimento de detenção do mundo como gostam de se 11 Lagent correctionnel ou le surveillant surveillé cuja consulta me foi sugerida pelo pesquisador Luciano Pereira O novo tempo do mundo FINALindd 147 O novo tempo do mundo FINALindd 147 10042014 152751 10042014 152751 148 O novo tempo do mundo vangloriar seus responsáveis compreendendo um quartel de alta segu rança um centro de recepção e seleção de novos detentos etc Com 2400 funcionários Wacquant compara o conjunto a uma fábrica gigantesca cuja matériaprima e cujo produto manufaturado seriam os corpos dos detentos Mas a analogia fordista fi ca por aí Embora se trate ainda de uma instituição completa e austera ela é tudo menos uma fábrica de trabalho disciplinado dos velhos tempos pois o trabalho penal quando existe não desempenha nenhuma missão econômica positiva de recrutamento e disciplinamento de uma mão de obra ativa embora seja crescente a pressão fi nanceira re duzir a fatura carcerária e ideológica para reintroduzir o assalariamento desqualifi cado de massa em empresas privadas que operam no interior das prisões permitindo além do mais estender aos presos pobres a obrigação do workfare hoje imposto aos pobres livres como norma de cidadania12 Prevalece todavia a escalada punitiva da mera estocagem de toda uma categoria sacrifi cial da população pois os detentos são o grupo pária entre os párias que pode ser vilipendiada e humilhada impunemente13 E a essa massa exalando o odor repugnante da derrota da vida fracassada e do atraso14 precisa ser administrado inclusive no sentido imperativo de ingestão de um fármaco maléfi co o cheiro social específi co da cadeia cuja impregnação se deve ao funcionamento peculiar de uma outra usina contemporânea especializada no tratamento de detritos sociais15 pois nessas usinas de remoção do refugo humano16 até a tarefa diária de acolher criar e colocar em circulação em princípio o mais rapidamente possível todo esse entulho subproletário assume uma inédita dimensão punitiva altamente reveladora do atual curso do mundo em regime de urgência permanente e justamente no teor intransitivo que estamos vendo punir por punir e nada mais simplesmente para fazer mal e quanto mais melhor 12 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 349 Para a descrição do funcionamento das Twin Towers a seguir ver p 31320 13 Ibidem p 312 14 Nas palavras de Zygmunt Bauman a cuja voz no capítulo logo voltaremos Globali zação as consequências humanas trad Marcus Penchel Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 p 129 15 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 250 16 Outra vez Bauman Vidas desperdiçadas trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 O novo tempo do mundo FINALindd 148 O novo tempo do mundo FINALindd 148 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 149 Por falar em circulação Wacquant assinala a existência de um viaduto com duzentos metros de extensão que liga o centro de seleção à estação rodoviária encravada nas entranhas do edifício onde detentos chegam continuamente de ônibus que descarregam sua carga de pescado noite e dia A Los Angeles County Jail possui o maior parque público para ônibus de todos os Estados Unidos indispensável ao transporte dessas dezenas de milhares de internos Um interminável labirinto de corredores cegos de paredes nuas conecta as diferentes partes do complexo17 O processo punitivo principia pela peregrinação expiatória através dessa malha inextricável para atingir seu primeiro auge num centro ciclópico de recepção e triagem 14 mil metros quadrados distribuídos por dois andares mais de duas dezenas de guichês dotados cada um de uma sala de espera com capacidade para cerca de 50 pessoas O que se faz circular no coração desse labirinto é um imenso coágulo particularmente cruel o resumo exato do tempo morto destilado por uma virada punitiva sem outro fi m que o agravamento do torniquete a interminável volta de um único parafuso o da espera e não se trata apenas da imemorial e interminável contagem dos dias passados atrás das grades de uma prisão Sendo no entanto a mesma agora a espera é outra e tão disseminada quanto a onda punitiva que lhe redefi niu o caráter por assim dizer um compasso de espera mundial Sentados em um pequeno tamborete metálico os acusados declamam seu horsepower identidade altura peso sinais particulares endereço apelidos e antecedentes judiciários e penitenciários num microfone que os liga à funcionária do registro sentada pouco acima deles e por trás de uma vidraça blindada E eles esperam e esperam três horas aqui seis acolá mais quatro nessa outra etapa não menos de duas horas Na realidade vão passar de doze a vinte e quatro horas muitas vezes mais enquanto esperam dormem no chão ou nos bancos de metal das salas de espera sob o neon e a luz gritante das televisões que funcionam o tempo todo para pacifi car o cardume em trânsito18 O grifo obviamente é meu tamanho o inusitado da situação ou sua estranha familiaridade daí passar despercebida essa cifra temporal defi nidora do hiperencarceramento como armazenagem por simples empilhamento do que se pesca nas ruas Por contraste um relato pitoresco talvez nos ponha 17 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 31920 18 Ibidem p 315 O novo tempo do mundo FINALindd 149 O novo tempo do mundo FINALindd 149 10042014 152751 10042014 152751 150 O novo tempo do mundo na pista Estudando a gênese e expansão dessa infl ação penitenciária Nils Christie conta que na pequena Noruega dos anos 1980 para os 1990 as prisões começaram a sofrer uma superlotação tão inusitada que as autoridades resolveram para espanto geral enfi leirar os excedentes numa lista de espera isso mesmo condenados a uma pena de prisão os sentenciados esperavam a vez geralmente em casa por falta de vaga Não se trata em absoluto de uma pena alternativa mas literalmente de uma fi la de espera Mais uma de resto duplamente disciplinar Se todo mundo hoje em dia se arrasta em uma fi la de espera por que não especialmente os destinados a mofar em uma cela Dupla descoberta propiciada por um engarrafamento da onda punitiva que se aproximava daquela pacata província aliás não tão pacata assim se pensarmos em Ibsen e nos abismos da colaboração nos tempos do Terceiro Reich Por um lado primeira dissonância a percepção de que os futuros sequestrados eram pessoas comuns e não selvagens perigosos ou monstros por outro contrabalançando aquela efêmera quebra de estereó tipo alguém numa fi la de espera antes mesmo de ser enjaulado já não tinha mais futuro e mais fazia ainda do lado de fora a experiência do que signifi ca esperar por um outro tempo de espera19 No fi m da década de 1990 esse expediente estava quase inteiramente desativado mas não a revelação num breve relance durante a releitura de uma passagem aparentemente anódina do livro de Wacquant de que fazer esperar e punir não só rimam no universo das disciplinas redescobertas por Foucault mas sobretudo que fazer esperar já é punir na exata medida que não se pune mais para corrigir um desvio mas para agravar um estado indefi nido de expiação e contenção No limite contenção do próprio tempo é sabido que a ausência de tempo que corrói o transcorrer de uma vida em reclusão carcerária mina e destrói o sistema imunológico além de gerar transtornos neurológicos e psíquicos imprevisíveis20 Mas já pelo efeito destrutivo desse dano colateral se pode vis lumbrar o papel central da microfísica da espera na virada punitiva podendo 19 Nils Christie Crime Control as Industry Towards Gulags Western Style 3 ed Londres Routledge 2000 p 445 20 Como lembrado meio que de passagem por Lola Aniyar de Castro junto com outros efeitos patogênicos do espaço e do tempo suspensos pela vida em reclusão efeitos que constituem a essência do próprio confi namento pois o foco do artigo é sobretudo o extermínio intracarcerário nas instituições de sequestro em nosso continente Ver a contribuição da autora no capítulo Matar com a prisão o paraíso legal e o inferno carcerário os estabelecimentos concordes seguros e capazes em O novo tempo do mundo FINALindd 150 O novo tempo do mundo FINALindd 150 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 151 ser letal o tempo morto é mais do que uma metáfora é o tempo próprio da epidemia punitiva que contamina todos os cantos escuros do mundo e os não tão escuros assim que estão sendo remodelados pelo novo governo do capital Escuros e subalternos pois a imposição da espera nos labirintos do sistema penal afeta a base e não o topo da pirâmide social Numa palavra o tempo morto da espera punitiva é uma questão de classe De tal limiar subterrâneo onde vivem em estado de latência os hóspedes dessas ratoeiras prisionais de Los Angeles irradia para as zonas de luz e opulência das classes confortáveis onde a simples espera é então de fato ressentida como um castigo imerecido Logo veremos por que Por enquanto uma outra amostra da matriz punitiva da espera como dis ciplina social Tratando da penalização da assistência pública redirecionada pelo workfare para a imposição coordenada do subemprego assim como se pune para punir o dever do trabalho pelo trabalho é uma evidência que tampouco se discute muito menos a acumulação pela acumulação como todas as demais tautologias constitutivas de uma engrenagem cega como o capitalismo Wacquant observa como as agências de assistência reformadas pelas abordagens do workfare tomaram emprestadas as técnicas de gestão de pessoal usadas na instituição correcional monitoramento cerrado de terminação de um local preciso de trabalho registro detalhado das rotinas e especifi cação de tarefas rígido sistema de sanções graduais etc21 O pro cesso de penalização convergente entre os dois braços do Estado é tal que a semelhança física do posto de assistência pósreforma com as instalações prisionais é chocante Não se trata apenas dos portões dos guardas dos sinais de advertência ou mesmo das cadeiras de plástico cor de laranja das salas de espera ou dos pisos de linóleo de um cinzasujo institucional tratase também das condições de superlotação dos sinais de comando a voz do sistema de som interno o posto de atendimento tem ainda algo de prisão provocado pela sucessão de portas fechadas aparentemente sem fi m cada uma delas com seu próprio número etc22 Pedro Abramovay e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 p 99 21 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 1823 22 Nesse passo nosso autor está transcrevendo observações de Sharon Hays Flat Broke with Children Ibidem p 183 O novo tempo do mundo FINALindd 151 O novo tempo do mundo FINALindd 151 10042014 152751 10042014 152751 152 O novo tempo do mundo Como a nova lei que generalizou o workfare eliminou garantias legais maximizou a autoridade e severidade dos funcionários prossegue Wacquant a atmosfera de prisão se intensifi cou num posto de assistência saturado de desconfi ança confusão e medo Tudo somado impregnando todo o reper tório de gestos e espaços desqualifi cados a mesma experiência opressiva de uma grande espera por coisa nenhuma uma outra zona de suspensão do tempo algo como uma sala de espera absoluta com o avisocomando Espere Aqui clinhotando indefi nidamente como um falso alarme Alertados por um sexto sentido de classe compreendese o calafrio que estremece os de cima quando lhes pedem para esperar um pouquinho além da conta como se uma voz ousasse lhes ordenar ponhase no seu lugar e limitese a esperar coisa que obviamente cheira a casa de detenção 5 Nos tempos que correm sem trocadilho a espera tornouse uma pu nição porque imobiliza E pelas mesmas razões a saber aceleração social máxima conforme o aumento exponencial da velocidade de rotação do capital intensifi ca a exploração do trabalho que por sua vez se fragmenta e dessocializa a mobilidade na boa observação de Zygmunt Bauman secundando a análise clássica de David Harvey acerca da compressão espaçotemporal que a assim chamada acumulação fl exível teria levado ao ponto extremo de anulação de uma e outra dimensão tornouse o fator de estratifi cação mais poderoso e mais cobiçado a matéria de que são feitas e refeitas diariamente as novas hierarquias sociais políticas econômicas e culturais23 A prova de que a velocidade é antes de tudo um fenômeno político como mostrou o estudo pioneiro de Paul Virilio24 pode ser encontrada na polarização social que ela produz reinventando verdadeiras aristocracias da velocidade cuja lógica da corrida que no fundo é a lógica mesma da guerra através da qual a dominação se exerce por meio do controle do movimento da supremacia do não lugar sobre o lugar25 23 Zygmunt Bauman Globalização cit p 16 24 Paul Virilio Velocidade e política trad Celso Mauro Paciornik pref Laymert Garcia dos Santos São Paulo Estação Liberdade 1996 25 Ver a respeito o esclarecedor prefácio de Laymert Garcia dos Santos num tempo em que os argumentos visionários de Virilio ainda passavam em brancas nuvens Ibidem p 915 O novo tempo do mundo FINALindd 152 O novo tempo do mundo FINALindd 152 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 153 prosseguirá por outros meios no tempo instantâneo em que se desloca o capital fi ctício autonomizado O poder foi assim se tornando imponde rável e suas elites móveis elites da mobilidade acrescenta Bauman26 A entronização social do instantâneo corre por esse trilho Contornando o tempo congelado da rotina fordista congelado visto pelo ângulo do capital que não podia então evitar o cara a cara com a força de trabalho plantada no chão da fábrica agora detém os controles do mando quem se move e age com maior rapidez quem mais se aproxima do momentâneo do movimento ainda na formulação de Bauman e no lado oposto da equação contemporânea estão as pessoas que não podem se mover tão rápido e de modo ainda mais claro a categoria das pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem as que obedecem A dominação consiste em nossa própria capacidade de esca par de nos desengajarmos de estar em outro lugar e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito e ao mesmo tempo de destituir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar ou de limitar seus movimentos ou ainda tornálos mais lentos27 26 Também denominadas elites cinéticas Ao que parece a expressão foi pescada pelo arquiteto Rem Koolhaas nas águas turvas do fi lósofo Peter Sloterdijk especulando acerca do estatuto ontológico dos atores da hiperesfera plasmada pela globalização uma hiperesfera conectada de terminais aéreos e ferroviários por onde trafega por acessos exclusivos uma classe de excelência é claro que tudo isso enunciado na dicção do desprezo nietzschiano pelo Último Homem Cf p ex Peter Sloterdijk No mesmo barco ensaio sobre a hiperpolítica trad Claudia Cavalcanti São Paulo Estação Liberdade 1999 p 601 O que importa mesmo destacar são as formas arcaicas de dominação e desigualdade que retornam por meio das tecnologias de informação e comunicação e da correspondente segmentação privatizante das infraestruturas em rede cujo futuro de privilégios encapsulados em todo tipo de enclaves elas tornaram rapidamente uma realidade por assim dizer utópica só que no caso da instantanei dade Ver a propósito uma tradução para o plano das infraestruturas urbanas em rede da tese já mencionada de David Harvey segundo a qual a mobilidade se tornou a principal arena em que se trava a luta por controle e poder Stephen Graham e Simon Marvin Splintering Urbanism Networked Infrastructures Technological Mobili ties and the Urban Condition Londres Routledge 2001 No que concerne às elites cinéticas ver p 364 27 Zygmunt Bauman Modernidade líquida trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 p 139 O novo tempo do mundo FINALindd 153 O novo tempo do mundo FINALindd 153 10042014 152752 10042014 152752 154 O novo tempo do mundo 6 Sendo esse o ponto nevrálgico do confl ito deve necessariamente soar como sarcasmo involuntário a vasta literatura da autoajuda ao estudo sociológico padrão dirigida aos afortunados que ainda podem se dar ao luxo de viver em câmara lenta reduzir a marcha e oferecerse impunemente o refi nado prazer de uma temporada com o relógio na gaveta geralmente numa residência secundária especialmente planejada para tal fi m o tea tro privado do tempo lento de volta ao comando Daí a forte impressão de gentrifi cation nas versões institucionais dessa mesma regalia do tempo desacelerado como no caso da rede Cittaslow mesmo se inspirando na percepção correta de que a cidade enquanto máquina de mobilidade é um aparato dualizador por excelência condenando os retardatários como veremos ao sofrimento de um verdadeiro êxodo impulsionados pela força coercitiva da mobilidade dos ganhadores28 Vão na mesma direção os apelos edifi cantes da Unesco em favor da reabilitação do tempo longo ofuscado pela miopia temporal de nossa época29 Refl etindo sobre o futuro do luxo até mesmo a perspicácia de um Enzensberger resvala nesta armadilha dos happy few a aristocracia da ve locidade há pouco mencionada30 É verdade que o luxo hoje abandonou o excesso e aspira ao necessário como observa Hans Magnus Mas não é menos verdade que o excesso hoje recai sobre as massas bem ou mal trabalhadoras e consumidoras idem de sorte que vive no luxo quem pode desviar para os outros uma tal sobrecarga conduzindo com sucesso uma outra estratégia de evitação De novo minimalismo e renúncia entram em cena desta vez como marcas da distinção envolvidas no acesso a bens escassos Numa virada histórica de aceleração máxima não espanta que o tempo assim como os demais prérequisitos elementares da vida como espaço sossego atenção etc redescobertos ao término de seu périplo tenha se tornado o mais importante 28 Max Rousseau Le mouvement des immobiles Le Monde Diplomatique n 688 jul 2011 Para um retrato expressivo do modo pelo qual este frenesi de mobilidade afeta as populações saturadas pelos fl uxos que no limite as imobilizam ver Vincent Doumayrou Veuton singapouriser la Flandre Le Monde Diplomatique n 673 abr 2010 p 201 29 Jérôme Bindé Pour une éthique du futur Les Cahiers du MURS n 35 abr 1998 30 Hans Magnus Enzensberger Luxo passado presente futuro em Ziguezague trad Marcos José da Cunha Rio de Janeiro Imago 2003 O novo tempo do mundo FINALindd 154 O novo tempo do mundo FINALindd 154 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 155 dos ativos de luxo Todavia não é preciso quebrar a cabeça para atinar com a origem social dos seus consumidores exclusivos por mais que aleguem ser os que menos podem dispor do seu próprio tempo pois afi nal são os maiores prisioneiros de suas agendas que se estendem até por alguns anos no futuro como ressalta e sublinha o próprio Enzensberger comentando o alcance de seu achado para concluir no caso do espaço por exemplo outro recurso natural engarrafado pelo excesso de gente e bugigangas por uma boutade minimalista que cheira a guia de elegância e decoração de interiores Hoje um aposento parece luxuoso quando está vazio O elogio da lentidão não é necessariamente um gênero apologético nele incluído tanto a redenção pela bicicleta como o temps darrêt de uma sessão de psicanálise embora cultivado num terreno escorregadio Num momento de desatenção até mesmo alguém tão insuspeito quanto Robert Kurz cede à tentação e reativa o anacronismo social em que esbarram as considerações de Enzensberger sobre quem pode ou não se dar ao luxo de se livrar da agenda na economia contemporânea do tempo quem afi nal pode se dar ao luxo de não ter pressa como o fumante inveterado de Oscar Wilde que não se importava em morrer aos poucos pois não tinha pressa Por isso bate na mesma tecla do uso luxuoso do tempo coisa que nenhum executivo mo derno poderia permitirse mesmo ganhando milhões por ano e dirigindo o carro mais rápido remetendo ao célebre relato do escritor Johann Gottfried Seume 1802 sobre seu passeio a pé da Saxônia até a Sicília um manifesto ambulante contra a aceleração permanente de todos os processos da vida num momento em que a mobilidade tecnológica ainda nem chegara ao patamar da locomotiva a vapor O exemplo sem dúvida é esplêndido como também a conclusão a que chegara Th oreau diante dos novos meios de locomoção e transporte a saber que anda mais rápido quem anda a pé31 O curioso nisso tudo é que Marx também sucumbiu à ideologia da aceleração ao comparar as revoluções modernas à locomotiva da história Sempre à caça da estupidez progressista Flaubert não sossegou até botar um Cristo socialista dirigindo uma locomotiva numa cena de A educação sentimental Todavia mesmo enredado no imaginário do século burguês Marx estava dizendo o mesmo que Th oreau que a humanidade sairia mais rápido da préhistória e nisso 31 Robert Kurz Sinal verde para o caos da crise em Os últimos combates Petrópolis Vozes 1997 Coleção Zero à Esquerda p 3468 São Paulo Nova Alexandria 2009 N E O novo tempo do mundo FINALindd 155 O novo tempo do mundo FINALindd 155 10042014 152752 10042014 152752 156 O novo tempo do mundo toda pressa era pouca andando a pé com a classe operária agora a revolução é que é um bichinho cavador e paciente Seria preciso então acrescentar que o problema não é o luxo de se pôr na contramão de uma superabundância que sufoca mas de saber a hora em que a urgência muda de sentido e com ela todo o sentido da espera Afi nal quando é urgente esperar 32 A fi losofi a crítica do andar preconizada por Seume cujo Passeio a Siracusa obviamente não li era por certo mais do que contemporânea das meditações de Hegel sobre a História a qual podia sim se dar ao supremo luxo de andar a pé pois a Razão e uma razão astuciosa que a conduzia dispunha de uma paciência infi nita Não é mais o caso nem de KurzEnzensberger nem do executivo engolido pela agenda consumida por eventos bestamente inadiáveis 7 Cada vez mais lentos até a imobilidade total nas zonas de espera que são as prisões submersas pela maré punitiva A grande espera de hoje é assim a da imobilidade forçada necessariamente punitiva pois estar proibido de moverse é uma fonte inesgotável de dor incapacidade e impotência33 Por isso o que fazem os internos de uma supermax como a prisão de Pelican Bay em suas celas simplesmente não importa como ela já não foi mais projetada como laboratório de reabilitação por meio do trabalho deliberadamente redundante o que importa continua Bauman é que fi quem ali34 e esperem indefi nidamente Quando o xerife Apaio declara e denuncia a natureza de seu trabalho Quero que eles sofram sabe do que fala quero vêlos imobili zados por uma espera sem fi m nem propósito E sabe em nome de quem fala A imobilização é o destino que as pessoas perseguidas pelo medo da própria imobilização desejam naturalmente e exigem para aqueles que elas temem e julgam merecedores de uma dura e cruel punição Outras formas de dissuasão e retribuição parecem comparativamente de uma clemência lamentável inadequada e inefi caz isto é indolor35 32 Mais adiante veremos de perto como JeanFrançois Bayart responde a essa pergunta em Le gouvernement du monde une critique politique de la globalisation Paris Fayard 2004 33 Como lembra ainda o mesmo Bauman Globalização cit p 130 34 Ibidem p 121 35 Ibidem p 130 O novo tempo do mundo FINALindd 156 O novo tempo do mundo FINALindd 156 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 157 Punir os pobres com a pena cruel dessa espera imobilizadora tanto nas salas de espera social em que se encontram confi nados os benefi ciários humilhados e explorados do workfare quanto a ralé proletária aspirada pelo sorvedouro prisional para não mencionar ainda a legião dos condenados a mofar nas demais zonas liminares de espera coercitiva que o empareda mento global vai multiplicando é portanto também um impulso de retaliação automática ditado por camadas sociais a tal ponto enroscadas nas malhas do privilégio instantaneísta do rentismo e do presentismo que não concebem suplício maior para elas inteiramente simbólico por mais que padeçam nas mãos das ideologias desenhadas para poupar tempo pois não conseguem por assim dizer gastálo36 no presente prolongado37 em que circulam do que a até ontem corriqueira experiência da espera Embora não seja por certo a mesma experiência de classe sem nem mesmo reparar suprema distração grand seigneur que as classes puníveis com a pena da espera indefi nida não têm problemas de agenda38 em função dos quais costumam acontecer os engarrafamentos e as explosões de im paciência de nossas sociedades da satisfação imediata39 É bem verdade que os encastelados nas fortalezas oligárquicas sempre poderão alegar a simetria da apropriação direta no desatino de se matar por um tênis ou coisa que o valha40 Se ainda houvesse dúvida a respeito da matriz prática de toda a atual tecnologia de contração do tempo no enquadramento dos indivíduos pela lógica do delay zero as novas estratégias de gestão e subordinação do trabalho pela mobilização total dos implicados dentro e fora de seu mundo bastaria 36 Th omas Hylland Eriksen Tyranny of the Moment Fast and Slow Time in the Informa tion Age Londres Pluto 2001 37 Na fórmula sugerida por Helga Nowotny em Le temps à soi genèse et structuration dun sentiment du temps Paris Maison des Sciences de lHomme 1992 cujo argumento examino em O novo tempo do mundo publicado na p 2797 deste volume 38 JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas une mutation de temporalités Paris PUF 2004 Sociologie dAujourdHui 39 Zaki Laïdi Le sacre du présent Paris Flammarion 2000 40 Assim irmanados no mesmo estereótipo oligarcas bem pensantes e esquerda punitiva aos quais posso apenas recomendar o artigo de Cecília Coimbra Modalidades de aprisionamento processos de subjetivação contemporâneos e poder punitivo no mencionado volume coletivo Pedro Vieira e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento cit O novo tempo do mundo FINALindd 157 O novo tempo do mundo FINALindd 157 10042014 152752 10042014 152752 158 O novo tempo do mundo consultar o amplo inventário de Nicole Aubert41 Mais uma vez a virada punitiva que acompanha um novo regime de acumulação cuja associação com a regulação coercitiva do trabalho dos pobres Wacquant foi o primeiro a ressaltar com o vigor que se sabe tem a ver com esse desígnio de recentrar o governo de populações supostamente lentas no rumo de uma outra cele ridade diversa das cadências do antigo regime fordista A pressão temporal permanente agora é outra por isso se pune exemplarmente quando se impõe o sem sentido da pura perda de tempo aos perdedores aprisionados uma vez que o fantasma dos ativos é a impossibilidade absoluta de perder tempo Duas palavras sobre a expressão sociedade da satisfação imediata Ela se deve ao sociólogo alemão Gerhard Schulze ao identifi car na matriz contem porânea da sociedade atual num estudo publicado em 1992 o que chamou de Erlebnisgesellschaft na qual justamente a supremacia da experiên cia vivida ou melhor vivência que a rigor de experiência não tem nada provoca uma desarticulação explosiva da noção social de limite No comentário de Zaki Laïdi tratase de um aumento exponencial de tal ordem das opções de vida e escolha disponíveis que enreda o indivíduo numa lógica de escolhas incessantes a serem feitas ato contínuo num mar de possibilidades que o submerge Ocorre que essas possibilidades já se encon tram num regime de livre acesso elas simplesmente estão aí E portanto elas não têm mais nada a ver com um horizonte42 O grifo é meu só para lembrar que essa noção de horizonte sobretudo quando associada à ideia de espera na formulação hoje paradigmática de Reinhart Koselleck43 nos levaria longe precisamente por estar no coração de nosso argumento porém com o sinal trocado pois as zonas de espera que estamos começando a analisar e começando pelo grande encarceramento segundo Wacquant se defi nem justamente por esse apagamento do hori zonte Trocado em miúdos nos seguintes termos ainda pelo mesmo teórico do presentismo contemporâneo variando por sua vez o esquema básico de Koselleck segundo o qual a espera ou a expectativa Erwartung é antes de 41 Com a colaboração de Christophe RouxDufort Le culte de lurgence la société malade du temps Paris Flammarion 2003 42 Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 115 43 Por exemplo em Futuro passado contribuição à semântica dos tempos históricos trad Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira Rio de Janeiro ContrapontoPUC 2006 O novo tempo do mundo FINALindd 158 O novo tempo do mundo FINALindd 158 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 159 tudo um horizonte e como tal se afasta à medida que avançamos e assim se situa muito além de toda a experiência articulada em contraponto como um campo presente do qual aquele horizonte projetivo se distancia à medida que a história ela mesma se temporaliza conforme se cristaliza por sua vez o sentimento moderno por excelência de que o tempo vai para algum lugar e por isso desde então a humanidade sempre espera por alguma coisa para falar como o Galileu de Brecht muito além do real disponível na vivência imediata Por onde se vê que o atualismo de hoje seria portanto mais bem caracterizado como uma desarticulação tal dessas duas dimensões que o presente passa a concentrar toda a sobrecarga de expectativa dirigida noutras épocas ao futuro de sorte que todo chamado à ação responde a uma injunção imediata do instante responde a uma urgência qualquer que por sua vez torna dramática toda conjuntura44 por mais frívolo que possa parecer o apelo presentista atual seu protagonista é um personagem submerso por obrigações temporais exigíveis à queimaroupa45 Pois relembrados os termos nos quais Koselleck redefi niu nossa com preensão corrente da espera e com ela a noção básica de experiência da história cuja mutação radical é justamente a cifra do descontrole contem porâneo voltemos ao modelo da sociedade da satisfação imediata retra duzida por Zaki Laïdi Quer dizer ao eclipse do horizonte de expectativa à medida que se comprime até seu grau zero a distância simbólica entre a espera e o vivido nesse momento quando ancoramos nossas esperas num campo de experiência restrito à proximidade de vida o mundo desaparece como perspectiva e o Eu deixa de ser horizonte para se converter no núcleo duro das condições de possibilidade da experiência Fórmula encantatória kantiana à parte estamos falando do mesmo Eu narcisista e sitiado diagnos ticado por Christopher Lasch ao término dos assim chamados trinta anos gloriosos do pósguerra46 E como logo nos confrontaremos com a fi gura correlata da impaciência não vejo melhor ilustração do exposto acerca do afunilamento temporal característico de uma sociedade centrada na vivência do que o retrato do adolescente prestes a cair em depressão uma crise 44 François Ost Le temps du droit Paris Odile Jacob 1999 p 277 45 Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 8 46 Christopher Lasch O mínimo Eu sobrevivência psíquica em tempos difíceis trad João Roberto Martins Filho São Paulo Brasiliense 1986 p 83 O novo tempo do mundo FINALindd 159 O novo tempo do mundo FINALindd 159 10042014 152752 10042014 152752 160 O novo tempo do mundo inconveniente a ser medicada com urgência para que o garoto ou a garota volte a participar da festa dos incluídos esboçado por Maria Rita Kehl A adolescência do terceiro milênio não se parece mais com a travessia do terreno desconhecido que o sujeito empreende para se reencontrar como o jovem Sidarta personagem do livro de cabeceira de trinta anos atrás A adolescência contemporânea não é uma passagem é uma chegada abrupta talvez precoce em um lugar privilegiado que os meninos e as meninas não tiveram que conquistar47 A festa dos incluídos é uma outra zona de espera Só que positivada pois afi nal se trata de incluídos e assim sendo nessa outra zona o hori zonte de espera se dissipou de uma vez por todas num presente absoluto Na festa dos incluídos um dos grandes laboratórios da euforia perpétua a rigor nada acontece nela não existem atos apenas cenas no juízo fulmi nante de Gay Talese apenas inaugurada a Era da Festa nos Estados Unidos48 Num estudo sobre o transe festivo em que transcorre o tempo infi nito da conjunção noturna de química música e computador Tales AbSáber fecha o argumento uma geração depois do consumo de mercadorias orgiásticas num momento de auge do que se poderia chamar de boêmia a favor desde que ela se industrializou e digitalizou mostrando que com efeito festeja se o fato de não haver nada a festejar49 O alívio enfi m de uma liberação verdadeiramente distópica Assim tudo se passa ao se celebrar a dimensão radicalmente antiutópica de sua cultura aliás fabricada sur place como numa esteira fastfood como se o músico techno e seu povo da noite esti vessem por sua vez trocando em miúdos bem palpáveis o axioma fi losófi co básico do presentismo contemporâneo a grande mutação histórica de nosso tempo é a experiência nova e paradoxal ela mesma histórica da anulação da expectativa de qualquer mudança50 Se avançarmos um pouco mais na companhia de Tales depararemos com o que se poderia chamar enfi m de 47 Maria Rita Kehl Depressão e imagem do novo mundo em Adauto Novaes org Mutações ensaios sobre as novas confi gurações do mundo Rio de JaneiroSão Paulo AgirSESC 2008 p 301 48 Gay Talese A festa acabou em Fama e anonimato trad Luciano Vieira Machado São Paulo Companhia das Letras 2004 p 4357 49 Tales AbSáber A música do tempo infi nito São Paulo Cosac Naify 2012 50 Vejase o comentário de Franklin Leopoldo e Silva Descontrole do tempo histórico e banalização da experiência em Adauto Novaes org Mutações cit O novo tempo do mundo FINALindd 160 O novo tempo do mundo FINALindd 160 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 161 zona cinzenta da onda punitiva contemporânea no caso a suspensão do tempo nessas zonas liberadas por uma noite sem fi m reunindo em torno de desejos hipergratifi cados clubbers empresários viajantes hippies criminosos e mú sicos na enumeração caótica de um ideólogo da cultura ecstasy ela mesma um ramo do juvenilismo que desbancou regras em nome de opções Estou me referindo a sua menção e seu comentário de um artigo em que Žižek aproxima as patéticas manifestações literárias de um condottiere de limpezas étnicas como o líder nacionalista sérvio Radovan Karadžić nas quais incita seus súditos a se jogarem fundo nas bebidas fortes e na inclemência do universo infrapolítico radical no fi lme de Kusturica Underground mentiras de guerra compondo ambos uma constelação precisa de transe destrutivo permanente e apelos à brutalidade obscena de um superego inimigo de todas as proibições a encenação fantasmática da crueldade expiatória nas guerras de desintegração da exIugoslávia Tal é a profunda política da maldade nesse mundo noturno da festa infi nita nele em suma não se deve esperar nada51 Nessa zona de espera singular o medo de parar que nela impera não se deve portanto exclusivamente ao efeito alucinatório da vida sob drogadição Tudo isso dito nunca será demais relembrar que toda essa confi guração de velocidade aceleração e satisfação imediata exponenciada pela intensifi cação presentista da experiência vivida deita raízes na préhistória fordista do nosso mundo como atesta a associação de automóvel e fastfood no capi talismo do imediato pósguerra estudada por Isleide Fontenelle na primeira parte de seu livro enciclopédico sobre o valor da marca McDonalds no caso Naqueles anos recorda um historiador ofi cial do McDonalds o país já estava mais rápido mais móvel e mais orientado para a conveniência e a gratifi cação imediatas52 O velho superego punitivo já começava a soltar as amarras e levantar voo Num país com pressa de construir o futuro na alusão sarcástica de Don DeLillo citado em epígrafe era de se esperar mais cedo ou mais tarde que os vencedores nessa corrida principiassem a organizar a punição dos retardatários imobilizando de vez os que já perdiam velocidade 51 Tales AbSáber A música do tempo infi nito cit p 26 52 John Love McDonalds a verdadeira história do sucesso trad Davi Soares e Aurea Weissemberg 5 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1996 citado em Isleide Arruda Fontenelle O nome da marca McDonalds fetichismo e cultura descartável São Paulo Boitempo 2002 p 60 O novo tempo do mundo FINALindd 161 O novo tempo do mundo FINALindd 161 10042014 152752 10042014 152752 162 O novo tempo do mundo Seja como for o fato é que uma tremenda mutação temporal virou de pontacabeça o mundo que o capitalismo vencedor está reorganizando e governando Mutação cuja fratura exposta se encontra justamente na virada punitiva operada pelo estado bifurcado estudado por Wacquant Daí as duas esperas uma disciplinadora da insegurança social alimentada pela inquietação do trabalho desqualifi cado outra envenenando a euforia perpétua53 das novas classes confortáveis que o capital costuma acariciar com uma mão e infernizar com a outra 8 Sendo assim a aceleração social do tempo uma evidência que se alastra pelo conjunto de sociedades cada vez mais antagônicas embora gover nadas pela fabricação de consensos a maré punitiva que a acompanha se abate necessariamente sob a forma de imobilizações daí o real sentimento de tempo morto que essa onda de choque dissemina em sua passagem Literalmente um contratempo Que se traduz como estamos vendo por uma inédita e massiva experiência negativa da espera Na verdade duas esperas como se disse uma experimentada no polo dominante como um estorvo cuja eliminação também se compra e outra na base comprimida da pirâmide que não obstante a sustenta como um surplus de sofrimento que faz toda a diferença E no entanto não é menos evidente o paradoxo de que ambos os polos são afetados por uma mesma anulação de expec tativas como também fi cou sugerido Retomemos o argumento pela exasperação dos de cima a favor dos quais sopra o vento punitivo E recomecemos para variar pelo mais característico dispositivo da atual contração espaçotemporal o aeroporto e particular mente na condição de encruzilhada internacional pois o elenco de obstáculos e barreiras que estamos assinalando ao fi m e ao cabo é antes de tudo da ordem da fronteira seja ela política social jurídica etc É que por mais insólito que pareça cada vez mais avião rima com espera Pois foi de tanto fazer fi la em aeroporto até o ponto de ebulição que o africanista mas não só JeanFrançois Bayart chegou à conclusão também ela paradoxal de que 53 Para citar novamente o título mas apenas ele de Pascal Bruckner A euforia perpétua ensaio sobre o dever de felicidade trad Rejane Janowitzer São Paulo Difel 2002 O novo tempo do mundo FINALindd 162 O novo tempo do mundo FINALindd 162 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 163 num mundo globalizado pelo capital a única urgência é a espera54 Porém uma espera muito específi ca do momento atual da mundialização enquanto o capital fl ui a força de trabalho das populações em peregrinação perpétua é compartimentada e comprimida por uma gama variada de coerções A mais sutil e onipresente de todas elas a espera quer dizer o disciplinamento pela espera Ela rege inclusive toda uma técnica do corpo numa hora histórica em que outra vez as pessoas são imobilizadas em colunas por um postas em seu lugar em suma Daí a novidade tremenda do dispositivo McDonalds estudado por Isleide Fontenelle55 fazer fi la para conseguir comida digamos assim numa lanchonete banal deixa de sêlo quando nos damos conta de que isso só ocorria em prisões situações de guerra ou indigência econômica extrema como na Grande Depressão no fi m dos anos 1940 quando os dois irmãos McDonald deram a largada no seu novo negócio estes cenários emergenciais ainda estavam bem vivos na memória dos consumidores e no entanto logo seriam apagados pela aceleração da motorização individual Como relembra Isleide juntando carro e restauração rápida ambos padroni zados e massifi cados na produção e no consumo o fastfood veio responder à pressa urbana de sorte que a rapidez motorizada acabou impondo a anomalia civilizada do paladar homogeneizado Há quem veja nesse fi m de linha o produto da guerra encontrando os precursores do fastfood nos racionamentos do tempo de guerra e nas técnicas de alimentação que forneciam rações para milhões de tropas na Europa Pelo sim pelo não Isleide aproveita a deixa para pôr na roda uma outra questão a nossa no momento algo que hoje parece a coisa mais natural do mundo no ato de comer em restaurantes sic fastfood e que não deixa de ser intrigante para dizer o menos a fi la Segue então a observação que está nos interessando Soldando num bloco só a nova pressa urbana e a fi la que a modula ora acelerando ora retardando dosando a ansiedade dos que esperam dóceis embora impacientes certamente dessa mise au rang generalizada a ex pressão francesa empregada por Bayart é muito mais drástica decorrerão processos inéditos de subjetivação que aliás Isleide começou a repertoriar no último capítulo a começar pelo tipo de sujeito moldado pela cultura do descartável que o fastfood se não inventou entronizou de vez 54 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit 55 Isleide Arruda Fontenelle O nome da marca cit p 85 O novo tempo do mundo FINALindd 163 O novo tempo do mundo FINALindd 163 10042014 152752 10042014 152752 164 O novo tempo do mundo Do mesmo modo as companhias aéreas que também servem sanduíches de fantasia e prometem sensações de leveza e entretenimento a bordo são antes de tudo instituições disciplinares E não só por canalizarem seus passageiros confrontados por fi las intermináveis cancelamentos arbitrá rios explicações de fachada etc mas por exercerem igualmente funções de vigilância das mais anódinas triagens às efetivamente policiais da simples verifi cação de vistos à alimentação de fi chários e cadastros com os dados desse fl uxo perene Com tanto controle e vigilância não surpreende que a infl ação das múltiplas esperas seja ressentida como uma orquestração punitiva Por certo nada literal é claro mas as explosões de cólera sobretudo nas oca siões em que a pane generalizada parece se instalar na imensa sala de espera esparramada por todos os recantos de um terminal aéreo correspondem a um sentimento absurdo de prejuízo desmesurado como a demanda se reveste de urgência crescente toda espera é sofrida como um escândalo in tolerável menos pelo dano real do atraso do que pela afronta lógica causada pelo espetáculo da imobilização no interior de uma máquina de compressão e aceleração do tempo parodiando além do mais as famigeradas fi las para tudo do socialismo real Enquanto esperam e ruminam a frustração alguns fi losofam acerca da degradação da espera rebaixada à condição de mero atraso porém elevada à condição de absurdo ontológico de um lado a impaciência ferve ao ponto da passagem ao ato de outro a nova disciplina metafísica glosa essa derradeira ironia da condição pósmoderna e por aí vamos56 Outros no entanto escapam pelo mercado do bypass coroamento de toda essa engrenagem comercialexistencial Instituída a disciplina trata se de redistribuíla remodelando a escala das superioridades sociais Como lembrado o canto de sereia capitalista dirigido ao outro lado do Muro era a bemaventurança de um mundo sem fi las Porém assim que a vitória do capital reunifi cou o mundo em um mercado só seguiuse um colossal amestramento das populações concernidas em particular assujeitamentos pela espera entre outras tantas tecnologias de exercício privilegiado do poder Ora que não se sujeitar às fi las fosse se transformar em mercadoria nem mesmo o mais arguto crítico do capitalismo foi capaz de prever como observa Luiz Carlos Azenha acerca do mercado americano de compra e 56 Para um breve apanhado dessas distinções espera prosaica numa fi la espera pura quando por exemplo aquilo que deve acontecer está fora de alcance hors de toute attente ver JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas cit p 2123 O novo tempo do mundo FINALindd 164 O novo tempo do mundo FINALindd 164 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 165 venda de tempo economizado57 Numa palavra dos terminais aeroviários e ferroviários à internet faixas exclusivas para quem puder pagar mais Para os demais fi la No entanto quem compra a fuga da disciplina da espera paga o governo com uma mercadoria valiosa como assinalado informações pessoais fornecidas a uma agência encarregada de zelar pela segurança do transporte por sua vez ligada ao onipresente Departamento de Segurança Interna na hora de validar o chip abretesésamo escapase do castigo da fi la ao preço de uma malha de vigilância ainda mais fi na58 Filosofando um pouco digamos que a espera hoje se encontra no coração de uma ontologia muito especial do presente Por contrariar e frear as novas temporalidades do imediato e da urgência a espera tornou se algo que excede os indivíduos qualquer que seja a origem social da pressão que os comprime impondolhes uma provação justamente excessiva Uma espera multiforme e de insólita conformação nos oprime nada poder fazer num momento quando se tem tanta coisa para fazer ou inversamente não saber o que fazer quando não se tem mais nada a fazer o absurdo em pessoa e vivido59 Essa vaga mistura de senso comum e existencialismo requentado não deve todavia nos confundir Bem ou mal descrita o fato é que a orientação espaçotemporal do capitalismo mudou de rumo e ingressou noutra dimensão da experiência da história ou num novo regime de historicidade como preferem dizer alguns historiadores que não por acaso se identifi cam como historiadores do presente sendo que esse novo regime da experiência social do tempo se caracteriza por essa inédita se é que se pode falar assim onipresença do presente60 que todos estão chamando genericamente de Presentismo deslizando de todo modo ao longo do eixo da aceleração e da urgência Contra as quais se 57 Luiz Carlos Azenha A era do privilégio pistas exclusivas nas estradas fi las rápidas nas alfândegas internet superveloz Serviço público também virou mercadoria CartaCapital n 496 21 maio 2008 p 40 58 Nas páginas em que se analisa a expansão do bypassing system nas cidades cabeadas e dualizadas no já citado Splintering Urbanism Graham e Marvin relembram a origem militar do método empregado originalmente em lugares estratégicos submetidos a mecanismos de alta vigilância 59 Traduzindo livremente JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas cit p 312 60 François Hartog Régimes dhistoricité présentisme et expériences du temps Paris Seuil 2003 François Dosse Renaissance de lévénement un défi pour lhistorien entre sphinx et phénix Paris PUF 2010 Le Noeud Gordien O novo tempo do mundo FINALindd 165 O novo tempo do mundo FINALindd 165 10042014 152752 10042014 152752 166 O novo tempo do mundo choca frontalmente o contratempo imobilizador da espera como estamos vendo a todo momento E não se trata de um resíduo do antigo regime no caso a experiência moderna da temporalização da história a espera também mudou deixou basicamente de ser um horizonte Tornouse ao contrário uma disciplina além do mais inculcada massivamente como começou notando JeanFrançois Bayart ao analisar como quem não quer nada não mais do que um fait divers a expansão do poder disciplinador das incontornáveis fi las de espera para então concluir que uma tal disciplina da espera seria inerente ao regime de historicidade que caracteriza o momento atual da acumulação mundializada A onda de choque na esteira da reati vação contemporânea do poder punitivo ganhará assim em compreensão ao ser incluída no âmbito desse novo regime Se o propósito ou a falta de é intensifi car o sofrimento social disciplinador nada melhor ou pior do que a espera sem horizonte No imediato pósguerra o olho clínico de um Samuel Beckett permitiulhe fechar o diagnóstico ao ver que essa seria a cifra do novo curso do mundo Mas se tratava de teatro e não de juízo político categórico nunca é demais lembrar 9 A certa altura Bayart se dá conta de que Mohammed Atta também precisou fazer fi la para comprar seus cutters e subir no avião que se espati faria numa das torres do World Trade Center Seria o caso de observar que enquanto esperava na fi la a impaciência de Mohammed deveria ser bem outra embora igualmente explosiva como se veria minutos depois assim como inteiramente outro o regime temporal sob o qual transcorria sua espera Não é fácil atinar com a natureza deste último tampouco medir a distância separando digamos o teor de sua experiência da assim chamada Modernidade que aliás conhecia muito bem como urbanista vivendo na Alemanha onde se formara do horizonte de expectativa que nortearia sua espera tarefa tanto mais complicada e indispensável por recobrir o ponto cego de nosso tempo que obviamente ninguém quer encarar Dizer que a ascese jihadista distenderia ao máximo aquela distância até o acting out fi nal além de nada explicar voltaria a abrir a porteira dos clichês por quilo acerca do défi cit de modernização e secularização T J Clark arriscou uma hipótese que nos interessa de perto ao situar o malestar absoluto na civili zação contemporânea que a seu ver acabou se apossando do e conformando O novo tempo do mundo FINALindd 166 O novo tempo do mundo FINALindd 166 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 167 o islamismo radical na crescente incapacidade dessa mesma civilização de oferecer aos seus fi lhos maneiras de viver no presente e aceitar o fl uxo contingente do tempo61 Noutras palavras redescrito em negativo o Pre sentismo no qual nos instalamos há uma geração e que estamos abordando pelo ângulo punitivo de uma espera cujo horizonte se encontra rebaixado até o grau zero repassado agora pelo fi ltro das novas tecnologias digitais de aceleração reprodução e armazenagem de informações em tempo real Nos últimos tempos construiuse um extraordinário aparato para permitir às pessoas imaginar arquivar digitalizar objetivar e se apossar do momento Parece que o aqui e agora não é tolerável ou no mínimo não inteiramente real a não ser que seja narrado ou mostrado imediata ou continuamente para os outros ou para nós mesmos O telefone celular o digital replay a troca instantânea de mensagens por computador a conexão em tempo real o video loop Longe de mim dizer que dar forma visual a uma experiência signifi ca não vivêla Depende é claro de que e para que serve a construção da imagem Existe no entanto uma espécie de visualização que todo mundo percebe por intuição que consiste em sua essência de um mecanismo de defesa um modo de deliberadamente isolar um momento distanciandose do nãovivido do nãosignifi cativo Além de ativista e membro de um coletivo conselhista sediado na região da Baía de São Francisco Timothy Clark é historiador e crítico de arte seria o caso de evocar a propósito o uso muito disseminado hoje em dia do vídeo no teatro reapresentando em tempo real a imagem do que está sendo vivido em cena contraveneno desarmouse um mecanismo de defesa Ou simplesmente se mimetiza o que todo mundo faz por não saber viver num presente não obstante onipresente É esta a mola propul sora absolutamente contemporânea da alucinação que acometeu a franja vanguardista do Islã radical superar essa brecha que impede de viver o presente numa era de expectativas decrescentes aliás declinantes na medida mesma da infl ação presentista O que Timothy Clark descreveu em escala micro e privada muito em bora envolva tecnologias massivas de reprodução corresponde exatamente ao que se está chamando de historicização imediata do presente enquanto traço defi nidor de nossa época62 e na sua esteira de reconhecimento do 61 T J Clark O Estado do espetáculo em Sônia Salzstein org Modernismos trad Vera Pereira São Paulo Cosac Naify 2007 Coleção Outros Critérios p 3212 62 François Hartog Régimes dhistoricité cit Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 107 O novo tempo do mundo FINALindd 167 O novo tempo do mundo FINALindd 167 10042014 152752 10042014 152752 168 O novo tempo do mundo acontecimento como o horizonte de expectativa do indivíduo hoje63 Nos dois casos nos havemos com a produção e reprodução de uma nebulosa de acontecimentos de toda ordem Assim à constatação corrente de que a economia midiática do presente não cessa de produzir e consumir aconteci mentos é preciso acrescentar uma particularidade que faz toda a diferença O presente no próprio momento em que se faz deseja se ver como já histó rico como algo já passado Ele se volta de algum modo sobre si mesmo para antecipar o olhar que se dirigirá a ele quando terá passado completamente será passado como se quisesse prever o passado se fazer passado antes mesmo de ter advindo plenamente como presente mas esse olhar é o seu olhar o olhar do presente64 O círculo presentista se fechará com suprema ironia aliás nada involun tária se observarmos que essa lógica do acontecimento contemporâneo que se fazendo ver enquanto se produz vai se historicizando na mesma me dida em que já traz consigo sua própria comemoração no geral sob o olho das câmeras é levada ao seu limite pelo 11 de Setembro65 E se de fato o acontecimento é mesmo o horizonte de expectativa do indivíduo hoje Mohammed Atta enquanto fazia fi la disciplinadamente não podia esperar menos do que um acontecimento extremo absoluto nisso fi nalmente nosso contemporâneo agora em tempo integral sem resíduos defasados de outro fuso histórico transformando em profecia realizada o diagnóstico de Paul Virilio segundo o qual66 no campo de forças e expectativas do capitalismo histórico aberto em 1789 e semicerrado com a Queda do Muro sucederam se Três Grandes Esperas primeiro o horizonte de expectativa da Revolução seguido pela espera da Guerra e fi nalmente a do Acidente Absoluto sem prejuízo de que possam um dia confl uir e se indiscernir67 Por mais extravagante ou plausível que à primeira vista possa parecer tal periodização o fato é que na grande sala de espera presentista na qual 63 François Dosse Renaissance de lévénement cit p 243 Grifo meu 64 François Hartog Régimes dhistoricité cit p 127 65 Ibidem p 116 66 Se o compreendi bem nos termos do estudo O novo tempo do mundo publicado neste volume 67 Paul Virilio Laccident originel Paris Galilée 2005 O novo tempo do mundo FINALindd 168 O novo tempo do mundo FINALindd 168 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 169 se converteu a Idade Contemporânea68 presidem dois novos princípios que não dão margem à dúvida quanto à crise do futuro como se diz69 o da Responsabilidade70 e o da Precaução duas balizas assinalando que o horizonte contemporâneo do mundo encolheu e mais como os sinais enviados pelo futuro não são nada claros a futurologia que ambos alimen tam como o nome indica não é mais do que uma tecnologia dos sinais de alarme que de qualquer modo não anunciariam o surpreendente pois por mais ampla que seja a varredura virtual do futuro sempre se tratará de um presente apenas dilatado Por onde se vê que presentismo e estado permanente de alerta são coextensivos E se assim é responsabilização71 e precaução anunciavam a próxima maré alta de contenção que se aproximava Com efeito a hipótese comunista segundo consta foi arquivada faz tempo e a Guerra Fria igualmente desativada e no entanto as sociedades que se autodenominam póshistóricas continuam a se emparedar conforme vão se multiplicando os novos inimigos só que agora assombrando por dentro dos muros A prevenção agora é outra Quando o horizonte é o próprio presente regido pela contenção responsabilizadora do que vem pela frente essa onda do futuro na contramão só pode ser punitiva É aqui que devemos encaixar o diagnóstico de época de Loïc Wacquant Ao princípio presentista de precaução e endurecimento da responsabilização penal deve forçosamente corresponder um outro paradigma reaglutinador do poder punitivo bem como um outro estado igualmente ajustado a essa nova estática da contenção parafraseando a caracterização do Direito Penal do Inimigo segundo Zaff aroni72 Assim ao horizonte liberal do pro 68 Relembro que Günther Anders em Le temps de la fi n Paris LHerne 2007 não falava mais em Idade porém defi nitivamente em Prazo 69 Pelo menos desde o artigo precursor de Krzysztof Pomian La crise de lavenir Le Débat n 7 dez 1980 70 Formulado originalmente como se sabe por Hans Jonas mas hoje fraseologia de domínio público 71 Como Klaus Günther por exemplo reinterpreta à luz do mesmo princípio enunciado por Hans Jonas a idade social que atravessamos Cf Klaus Günther Responsabi lização na sociedade civil Novos Estudos São Paulo Cebrap n 63 jul 2002 72 Eugenio Raúl Zaff aroni O inimigo no Direito Penal trad Sérgio Lamarão Rio de Janeiro Revan 2007 Coleção Pensamento Criminológico v 14 cap 5 Não por acaso na proposta original de seu autor o penalista alemão Günther Jakobs a doutrina do direito penal do inimigo contempla igualmente uma clivagem análoga O novo tempo do mundo FINALindd 169 O novo tempo do mundo FINALindd 169 10042014 152752 10042014 152752 170 O novo tempo do mundo gressismo burguês a gestão das expectativas pelo Estado no que concernia às incertezas de uma sociedade recémorientada para o futuro respondia o governo guardanoturno afi nal o espectro comunista rondava pelas vi zinhanças mais a previdência pessoal das classes proprietárias no Estado Social que emergiu da Grande Depressão do século passado espelhavase por sua vez o consenso dito keynesiano já meramente defensivo o imperativo emergencial no fi m das contas do Nunca Mais no caso tamanho descon trole do mundo seguro social sim porém domesticado sob o horizonte cada vez mais raso de um apocalipse nuclear fi nalmente sitiado pela espera do acidente absoluto o Estadoprecaução de agora73 à cuja compreensível virada punitiva fomos apresentados por Wacquant pois a paranoia securitária decorrente do continuum precauçãoprevençãoresponsabilização precisa empurrar constantemente para as margens e nelas imobilizar a turbulência das populações recalcitrantes por meio das quais aliás eventos extremos podem chegar ao mundo cuja ordem carece por isso mesmo de proteção permanente Notese mas apenas para anotar e seguir adiante que este panorama sumário poderia ser igualmente refeito pelo prisma da história capitalista da guerra a cada horizonte de expectativa uma forma conjugada de guerra e de Estado clausewitziana para o primeiro período em que a política estava no comando ao longo dos improváveis anos dourados a guerra e a paz à maneira do fl agelo à la Tolstói foram substituídas pela impossibilidade estratégica encarnada pela ameaça assegurada da destruição mútua uma guerra imaginária portanto74 voltada sobretudo para o controle das respectivas populações mobilizadas para a produção em massa fi nalmente onde chegamos guerra preventiva e por isso permanente já que o estado de alerta securitário não tolera descontinuidade Do mesmo modo outra sequência análoga de expectativas poderia ser reconhecida na evolução ao Estado bifurcado de Wacquant ao lado de um direito penal operando como puro impedimento físico de preferência preventivo continua em vigor o direito penal dito do cidadão estabelecido que o inimigo imobilizado e neutralizado pertence a todas as categorizações infra com a pena cumprindo ainda sua função de reafi rmação da vigência da norma 73 A expressão é de François Ewald mas o espírito obviamente é outro Cf François Hartog Régimes dhistoricité cit p 214 74 Como a batizou Mary Kaldor Th e Imaginary War Understanding the EastWest Confl ict Oxford Blackwell 1990 O novo tempo do mundo FINALindd 170 O novo tempo do mundo FINALindd 170 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 171 da formaprisão primeiro a emergência do arquipélago carceral e seu envoltório iluminista de reforma moral pela disciplina ao seu modo uma temporalidade ascendente que antes de começar a declinar conheceu um período de congelamento na reconstrução do pósguerra quando o sistema penitenciário da idade clássica pareceu querer refl uir para em seguida assistir ao recomeço do grande encarceramento de hoje A curva é descendente e como se disse de expectativas decrescentes e à medida que elas encurtam o poder punitivo recrudesce Descendo até o subsolo da civilização material uma análoga periodização das idas e vindas da centralidade do trabalho e das grandes esperas que alimentou poderia recontar a mesma história dessas sucessivas subjetivações A rigor escorados na ideiaperspectiva de horizonte não estamos falando de outra coisa senão desta matriz originária 10 Fast track para as elites cinéticas fi las de espera para o comum dos mortais Na verdade mais mortais do que comuns pois nesta escala ainda não descemos até o fundo do poço Mas lá embaixo a disciplina se transmuda em outra coisa o vazio jurídico que envolve o campo em que a fi la dos desesperados se desmanchou a zona de espera propriamente dita A mais temida delas e por isso mesmo uma referência até para as autoridades americanas se encontra no aeroporto Roissy Charles de Gaulle e atende pelo nome de ZAPI zone dattente pour personnes en instance O emprego da última palavra diz tudo acerca da real natureza desses verdadeiros centros de retenção O verniz jurídicoadministrativo de que se reveste a expressão em si mesma arrevesada em instância sugere de saída o caráter suspensivo característico do estado de espera que se abate sobre os indivíduos sugados por aquela verdadeira área de sequestro da qual ninguém sabe nada sequer onde fi ca Subtraídos da visão pública estagnados no tempo lento privados antes de tudo de direitos que não por acaso se encontram justamente em instância sabese lá aos cuidados de que órgão processador de papéis que tais pessoaseminstância geral mente não possuem e quando é o caso são sempre duvidosos Recém desembarcados antes mesmo de enfrentar os controles de praxe esses indivíduos prontamente assinalados por detalhes que um olho de longa memória colonial identifi ca de imediato são desviados da fi la digamos mainstream para as veredas da underclass onde a espera transcorrerá in O novo tempo do mundo FINALindd 171 O novo tempo do mundo FINALindd 171 10042014 152753 10042014 152753 172 O novo tempo do mundo defi nidamente na incerteza na sujeira e no mau cheiro75 Breve relato de uma incursão nesses huisclos de Roissy num o estado de espera em instância já se estendia por inacreditáveis duas semanas noutro uma dúzia de pessoas pacientavam há seis dias pregadas em banquetas diante de um posto policial na melhor das hipóteses eram alimentadas pelo pes soal do serviço de limpeza quando a coisa apertava recorriase às lixeiras de uma lanchonete próxima quanto aos funcionários a respostapadrão invariavelmente dizia que era preciso esperar76 Numa palavra no caso do autor da matéria pessoas que esperam simplesmente não existem Essas em particular de cujo futuro trabalho previamente treinado para a fl exibiliza ção total como se está vendo intermitente ou francamente clandestino depende toda a infraestrutura da mundialização Uma tal espera portanto não é extrínseca por assim dizer resumo da condição do estrangeiro que nunca acaba de chegar pelo contrário nada mais intrínseco a esse avesso punitivo da globalização do que essa mise en attente coercitiva Embora culmine com frequência numa expulsão enquanto dura a espera disten dida ou abreviada por mero arbítrio administrativo ela de fato promove uma inclusão perversa como se diz desastradamente na língua franca dos programas sociais Compreendese que transcorra num espaço a meio caminho entre a prisão e o campo este último num extremo histórico de concentração no outro de refugiado em que termos logo se indicará Uma pessoa em instância espera num limbo jurídico Como bate à porta pedindo passagem e justamente à porta da lei encontrase com efeito fora da lei A rigor a zona de espera funciona à margem do direito Exatamente como a prisão segundo Wacquant A prisão que supostamente deveria fazer respeitar a lei é de fato por sua própria organização uma instituição fora da lei pensando na arbitrariedade administrativa na indiferença geral no despotismo burocrático que vigora nas instituições penitenciárias no tribunalinterno da prisão onde a administração joga com vidas humanas sem controle nem recurso tendo como única preo cupação a administração da ordem interna77 Quanto ao campo nossa outra demasia comparativa embora exata o excesso sendo a regra em toda 75 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 412 76 Matéria do jornal Libération citada por ibidem p 411 77 Loïc Wacquant A prisão é uma instituição fora da lei em Punir os pobres 1 ed cit p 142 O novo tempo do mundo FINALindd 172 O novo tempo do mundo FINALindd 172 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 173 essa confi guração contemporânea a começar pelo retorno do punitivismo bem entendido a superposição entre o campo e a zona de espera se deve a Giorgio Agamben cujo foco entretanto sintomaticamente passa longe da espera tamanha a incongruência entre a concentração do campo e algo como um horizonte de expectativa pois nele o tempo em suspensão está de fato morto E no entanto não deveria ser assim pois foi nada mais nada menos do que a memória daquele horror ou sua antevisão igualmente apavorante que precipitou o pressentimento de que talvez o mundo e seu horizonte de espera tenham mesmo se eclipsado para valer como atestam duas evidências artísticas de cuja força de convencimento é muito difícil escapar sem esvaziar de vez a cabeça Refi rome por certo ao fato de que a notória antipatia de Kafka pelo tempo fl uente inseparável por sua vez esse tempo paralisado pelo pânico de uma alucinante automatização da punição em detrimento da culpa que invariavelmente a segue e não o contrário conforme uma das tantas inversões operadas pelas fábulas realistas kafkianas alcança sua visibilidade mais desconcertante na situação recorrente de um interminável esperarna antessala em que aprisiona seus personagens aliás justamente pelo lado de fora Tudo isso assinalado no estudo notável de Günther Anders78 Não vou obviamente enveredar por uma enésima interpretação da parábola Diante da Lei Muito menos seria o caso de dizer sem mais que os barrados nessas zonas de anomia selvagem se encontram mofando Diante da Lei A menos que a Lei de Kafka seja diretamente interpretada como emanação do poder arcaico de funcionários obscuros O que tampouco seria o caso embora as pessoas que ali se encontram em bom francês en souff rance procurem por todos os meios se ajustar como o agrimensor para enfi m ser admitidas no Castelo não por acaso chamado hoje em dia de Fortaleza Europa De qualquer modo é plausível lembrar e deixar a imaginação histórica correr por conta que o Guardião ao impedir a entrada do homem do campo limitase a deixálo do lado de fora mandandoo por assim dizer aguardar na fi la à pergunta se então poderá entrar mais tarde o porteiro responde que é possível mas não agora Só que uma fi la propriamente mítica já que de um só a própria exceção de uma lei talhada para um único indivíduo impondolhe uma espera de vida inteira imobilidade que no entanto não 78 Kafka pró e contra trad Modesto Carone São Paulo Perspectiva 1969 Cosac Naify 2007 O novo tempo do mundo FINALindd 173 O novo tempo do mundo FINALindd 173 10042014 152753 10042014 152753 174 O novo tempo do mundo ousou quebrar como fi cará sabendo na hora da morte Todavia expulso o demônio da analogia por uma porta ele volta pela outra Notese por exemplo o inusitado ar de família kafkiano deste trecho de prosa O sistema de petição é uma herança da China dinástica e existe há pelo menos mil anos Os que conseguiram vencer as distâncias e chegar à capital tinham o privilégio de expor seus casos ao Imperador que instruía os representantes locais sobre como proceder para resolver o problema Para quem se lembra das histórias de Kafka em torno da fabulosa cons trução da Muralha da China sabe que vencer distâncias tão incomensu ráveis quanto o tempo consumido em percorrêlas sobretudo quando se era portador de uma mensagem do Imperador não é bem o caso A China contemporânea se encarregará de provar que o caminho inverso da petição sim é um pesadelo kafkiano tomado ao pé da letra outra especialidade de Kafka tomar tudo ao pé da letra O trecho de prosa em questão é jornalís tico extraído de uma matéria da correspondente do Estado de S Paulo em Pequim Cláudia Trevisan79 A sequência fala por si só Todos os dias a partir das 7h40 centenas de pessoas fazem fi la para apre sentar petições ao Departamento de Cartas e Visitas sic de Pequim na esperança de que o Governo intervenha para sanar as injustiças de que se julgam vítimas em suas cidades e vilas de origem Suas histórias são quase sempre trágicas e envolvem abuso de poder violência tortura perdas de casas terras salários saúde ou liberdade Muitos viajam milhares de quilômetros até a capital onde se instalam à espera de uma decisão que quase nunca é proferida Alguns aguardam há mais de uma década e a cada três meses reapresentam seus pedidos no mesmo escritório que fi ca no Portão da Eterna Estabilidade sic cinco quilômetros ao sul da Cidade Proibida Milhões de chineses Diante da Lei Um Guardião só É verdade que as disciplinas da espera evoluíram acompanhando a virada punitiva do capitalismo global Enganados com promessas de recompensa fi nanceira ou solução de seus problemas alguns são despachados imediatamente Outros fi cam confi na dos em prisões ilegais nas quais passam semanas ou meses em condições subhumanas Existem ainda os que terminam em hospitais psiquiátricos de onde nem sempre são resgatados 79 Na China petição vira última esperança O Estado de S Paulo 24 abr 2011 p A14 O novo tempo do mundo FINALindd 174 O novo tempo do mundo FINALindd 174 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 175 Consumada a visão profética de Kafka na esteira imediata da heca tombe que se sabe por isso mesmo jamais convocada jamais em cena por assim dizer de corpo presente Beckett por sua vez se concentrará na fi gura sem ênfase de dois pobresdiabos entre clochard e clown que simplesmente esperam e mais nada Só que esse suplemento de imobilização total é ele mesmo cifra de uma inversão tal que muda o sentido dessa nova espera depois que o inenarrável afi nal sobreveio como um acidente histórico absoluto espalhando à sua volta estilhaços de acontecimentos e cacos de conversas sem eira nem beira Pois ao contrário do pathos declamatório que anima o gesto dos desesperados clássicos Vladimir e Estragon não saem de cena não vão embora porque não esperam mais nada mas fi cam tanto faz se por teimosia preguiça ou apatia já que vão fi cando sem sair do lugar então esperam Mais uma vez estou me apoiando noutro artigo implacável de Günther Anders80 Tratase obviamente de uma interpretação do Godot em chave deliberadamente antiteológicometafísica como aliás no caso do ensaio sobre Kafka a começar pelo título paródico Ser sem Tempo Pois nessa imensa zona de espera em que o mundo depois do Campo e da Bomba se converteu Vladimir e Estragon não cessam de parodiar uma atividade que nos acostumamos a chamar de trabalho e que nesse meio tempo qual exatamente perdeu seu sentido Mas fi quemos por aqui Salvo por uma menção mais do que signifi cativa no parágrafo de abertura de um pequeno estudo didático sobre a peça de Beckett Bernard Lalande afi rma que até onde sabe apenas um e um só público deixouse levar unânime e espontaneamente por uma representação de Esperando Godot sem nenhuma explicação prévia os quatrocentos condenados da penitenciária de San Quentin Califórnia numa noite de novembro de 195781 A circunstância fala por si mesma A data também diz alguma coisa por si mesma Apenas quatro anos depois da estreia mundial da peça a visão do antiespetáculo dos dois pobresdiabos imobilizados no tempo morto de uma espera indefi nida ainda podia comover até a medula um público barrapesada que havia comparecido tão somente na expectativa 80 Publicado em 1954 numa revista suíça e depois recolhido no livro de 1956 Lobsolescence de lhomme Paris Ivréa 2001 p 24360 no original Die antiquiertheit des Menschen 81 Bernard Lalande En attendant Godot Beckett Paris Hatier 1970 Profi l dUne Œuvre v 16 O novo tempo do mundo FINALindd 175 O novo tempo do mundo FINALindd 175 10042014 152753 10042014 152753 176 O novo tempo do mundo ansioso como todo público que se apresenta à entrada de um teatro de mexer com as atrizes que certamente estariam à disposição para o que desse e viesse e que no entanto emudeceu desde as primeiras réplicas sem arredar pé até o fi m Não basta observar que desde Homero o estado de um ser humano que espera arrasta consigo seus semelhantes Hoje é preciso saber quando essa gravitação conjunta começou a deixar de ser o caso e banalizouse a ponto de toda espera virar um contratempo irritante por contrariar uma demanda urgente como se viu O argumento sugerido até aqui gira em torno desse momentoso encolhimento do horizonte do mundo não custa repetir e insistir de novo que esta é a data histórica da virada punitiva assinalada por Wacquant Além de fugir na primeira ocasião nunca saberemos ao certo o que esperavam os prisioneiros de San Quentin enquanto acompanhavam a Grande Espera de Vladimir e Estra gon Seja como for o fato é que poucos anos depois no início dos anos 1960 a população prisional americana começou a diminuir regularmente a uma taxa de 1 ao ano a ponto de alguns penalogistas passarem a levar em consideração a hipótese arriscada de um eventual desencarcera mento a caminho como recorda Wacquant82 O motim de Attica em 1973 quando 43 prisioneiros e reféns foram massacrados no assalto da tropa de choque explodiu justamente continua nosso autor no ano em que a população carcerária nos Estados Unidos atingiu seu nível mais baixo no pósguerra Naquele mesmo ano uma comissão recomendou ao presidente Nixon o fechamento dos centros para jovens detentos e a para lisação da construção de penitenciárias durante uma década enquanto por seu turno a historiografi a revisionista da questão penal anunciava o declínio irreversível da prisão depois de ter ocupado um lugar central no dispositivo disciplinar do capitalismo industrial estava destinada a desempenhar um papel menor nas sociedades avançadas diagnóstico canonizado pela obraprima de Foucault dois anos depois Nesta dimensão bem específi ca seria o caso de dizer que promessas e perspectivas como essas elevavam o horizonte de uma outra espera de San Quentin a Attica O resto conhecemos bem na mesma década subsequente de estagnação e recuo da criminalidade operouse a reviravolta espantosa da demografi a carcerária estadunidense que dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte Quando a Guerra Fria terminou pareceu a mais de um observador 82 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 206 O novo tempo do mundo FINALindd 176 O novo tempo do mundo FINALindd 176 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 177 que o gulag havia mudado de lado Não é claro que os escombros pós stalinistas acumulados não subissem aos céus83 Mesmo depois do arquipélago de campos da morte as tábuas do palco continuam representando o mundo como nos tempos de Schiller só que o mundo agora é uma imensa zona de espera ou melhor um dispositivo de governo tal que em seu domínio zonas de espera proliferam na forma de campos Por isso surpreende que Agamben depois de identifi car no cam po a matriz oculta da política onde ainda vivemos desde o momento da virada histórica em que a uma ordem jurídica sem localização o estado de exceção em que a lei é suspensa corresponde desde então uma localização sem ordem o campo como espaço permanente de exceção e que devemos reconhecer através de todas as suas metamorfoses contemporâneas justamen te mas não só as zonas de espera de nossos aeroportos a certas periferias de nossas cidades84 tenha deixado escapar o detalhe capital de que em tais zonas é a disciplina da espera que funciona como alavanca de todo o aparato suspensivo daqueles territórios da exceção Aliás na sua própria redescrição um lugar aparentemente anódino delimita na realidade um espaço onde a ordem jurídica normal se encontra de fato suspensa e onde perpetrar ou não atrocidades não depende do direito mas tão somente do grau de civilidade e do senso moral da polícia que age provisoriamente como poder soberano Sobreviver ali é antes de tudo aprender a esperar mas não esperar sem mais porém numa zona de nãodireito onde cresce o poder punitivo cuja microfísica como estamos vendo irradia por toda a parte onde fl utuam essas populações transitando por fronteiras críticas terras de ninguém onde a vida se arrasta no meio viscoso de uma perspectiva por assim dizer sem horizonte Estudando a nova ordem espacial formas de vida protegidas e co nectadas encapsuladas em arquipélagos defensivos precisamente contra os desconectados e indefesos o arquiteto e urbanista italiano Alessandro Petti85 chega a registrar mais de 250 centros europeus de retenção e triagem de imigrantes enclaves no interior do arquipélago Europa verdadeiros 83 A expressão escombros acumulados circula num jovem círculo radical do Rio de Janeiro Entre destroços do Presente acrescentaria Manuel Bandeira maiúscula a menos 84 Giorgio Agamben Homo sacer le pouvoir souverain et la vie nue Paris Seuil 1997 p 1889 85 Alessandro Petti Arcipelaghi e enclave architettura dellordinamento spaziale contem poraneo Milão Bruno Mondadori 2007 p 16470 O novo tempo do mundo FINALindd 177 O novo tempo do mundo FINALindd 177 10042014 152753 10042014 152753 178 O novo tempo do mundo territórios de exceção que não por acaso denomina precisamente espaço de suspensão lugares confi nados e situados fora do ordenamento espacial e jurídico ao qual de qualquer modo pertencem Na sua reconstituição a doutrina instituidora dessas zonas suspensivas obviamente por motivo de urgência e emergência foi introduzida pela Dinamarca a mesma Dinamarca que em 2011 inaugurou a primeira quebra do Acordo de Schengen sobre a livre circulação de pessoas no interior da União Europeia em meados dos anos 1980 recomendando que se transferissem os reque rentes de asilo para portos seguros mais tarde rebatizados de protection zone Pelo fi m dos anos 1990 a Itália por sua vez diretamente afetada pela imigração mediterrânea sem falar no colapso da Albânia e em acordos prévios de contingenciamentos e confi namentos com o governo líbio criou em caráter de urgência o seu próprio espaço suspensivo denominado Centro de Permanência Temporária e Assistência CPTA Pertencem à mesma família as ilhas gregas transformadas em campos de prisioneiros as zonastampão nas fronteiras europeias de Malta Lampedusa etc Digamos que o approach francês se destacaria por sublinhar o termo exato para a fusão escarninha entre o permanente e o temporário como se expressa no eufemismo italiano para não falar no fato de que a palavra attente também não deixa de abusar de um afeto fundamental da espécie Registrado aliás em termos espaciais correspondentes pelo olho do arquiteto hoje já não se domina mais pelo ancestral divide et impera a nova estratégia segundo nosso autor é ditada por um outro princípio encastelarse e suspender observando porém que onde reinam a separação e o isolamento tanto para os fechados por fora quanto para os encerrados por dentro o horizonte desaparece e a visão perde o foco 11 Chegados a esse ponto a passagem por Guantánamo é obrigatória Sobre o Camp Delta tudo e mais alguma coisa já foi dito Duas palavras bastam sobre aquele pesadelo a rigor sem parâmetros históricos ou melhor soma tório de todas as anomalias normalizadas ao longo de um período em que o paradigma da urgência converteuse num sistema de governo das populações Em primeiro lugar que se trata também de uma zona de espera uma espera tão indefi nida quanto o real estatuto daqueles detainees submetidos a uma soberania off shore igualmente indeterminada Todavia vale para os engo O novo tempo do mundo FINALindd 178 O novo tempo do mundo FINALindd 178 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 179 lidos por aquele buraco negro jurídico o mesmo privilégio de encarnarem o mal absoluto que Wacquant identifi cou na população carcerária colhida pelo arrastão punitivo de hoje pária entre os párias como já foi dito uma categoria sacrifi cial que pode ser vilipendiada e humilhada impunemente E desde a declaração da Guerra ao Terror tão imaginária quanto era a Guerra Fria também torturada aliás ofi cialmente como se sabe Podemos então concluir segunda observação que a disciplina da espera alcançou assim sua dimensão corporal originária própria de todas as disciplinas pois a danação do tempo estagnado precisa ser de preferência extorquida através da privação das sensações elementares que balizam a experiência temporal tato audição etc afi nal mais do que tudo queremos igualmente que eles sofram sendo a Guerra ao Terror uma operação exemplar do poder punitivo por isso mesmo sem o menor valor militar estratégico Por último um lapso de humor negro que JeanFrançois Bayart deixou escapar observando que os detentos do Camp Delta também são punidos com uma fi la de espera para os interrogatórios porém poupados de uma outra fi la no Downtown do campo a do único McDonalds de Cuba As zonas de espera que multiplicam tempo morto pelo mundo imobili zando toda sorte de pessoas a rigor expessoas em instância pelos espaços liminares do planeta são assim verdadeiros paraísos punitivos como denomina Bayart certas zonas francas da educação disseminadas por algumas ilhas do Caribe referindose à deslocalização para essa região de instituições socioe ducativas especializadas em programas de modifi cação comportamental de jovens americanos Não é preciso muita imaginação para adivinhar o que se passa nessas escolas onde certamente se ensina a esperar Do mesmo modo a associação similar francesa Vagabondage organizava estágios de ruptura na Zâmbia Vai pelo mesmo caminho a escalada das novas disciplinas in dustriais nas zonas francas que povoam essas beiradas do mundo por isso mesmo cada vez mais enterradas em seu próprio espaço interno na medida em que conforme se alastra a atual maré punitiva mais se rebaixa o nível a partir do qual se torna natural e aceitável punir como anunciara Foucault E recorda agora Martin Mongin observando o funcionamento dos serviços de segurança nesses espaços ambivalentes espaços abertos ao público porém geridos por empresas privadas ou estatais onde aos poucos seus agentes acabam atuando no duplo registro da Lei e da Regra de sorte que inde sejáveis barrados ou expulsos em virtude da aplicação de um regulamento administrativo são a rigor tratados como se fossem transgressores da lei de O novo tempo do mundo FINALindd 179 O novo tempo do mundo FINALindd 179 10042014 152753 10042014 152753 180 O novo tempo do mundo tal forma a autoridade informal anestesiou a percepção pública de tanto transformar o menor lapso em infração o menor sobressalto o menor even to em um ato de delinquência86 Não é difícil notar que uma zona especial onde se aplica entre outras disciplinas extralegais a disciplina da espera é um espaço funcional como esses açambarcados pela ambígua onipresença de vigilantes E como advertiu Foucault prossegue o argumento acerca dessa contaminação específi ca do campo social pela lógica punitiva do mundo carceral esse amálgama entre o regime da lei e o regime da regra outro modo de prenunciar a Exceção a caminho a crescente legitimidade pelo poder punitivo87 tende a apagar o que pode haver de exorbitante no poder de punir e no limite fazer sofrer exemplarmente 12 É o que se passa nos territórios da Cisjordânia ocupada para irmos direto ao mais hiperbólico paraíso punitivo contemporâneo embora velho de quase meio século ou mais dependendo da periodização das sucessivas ondas punitivas que congelaram o tempo naquela descomunal zona de espera A bem dizer o povo da Palestina só chegou a constituirse como povonação graças a um confl ito que ao longo do tempo converteuo numa comunidade de expectativa Que o outro lado se empenha metodicamente em frustrar muito embora seja igualmente comandado por uma mesma lógica cujo horizonte no entanto é de um projeto verdadeiramente apocalíptico no juízo surpreendente de Benny Morris88 Mas essa Grande Espera que atravessou mais de uma idade histórica da Era dos Impérios à Guerra Fria na qual há quem reconheça o último Horizonte de Expectativa de nosso tempo89 é o pano de fundo por trás da degradação do qual devemos 86 Martin Mongin Quem nos protegerá de quem nos protege Le Monde Diploma tique Brasil n 6 15 out 2009 p 35 87 Com o perdão da redundância pois há sempre uma usurpação na origem do poder punitivo Sobre a sua natureza confi scatória ver Eugenio Raúl Zaff aroni O inimigo no Direito Penal cit p 30 88 Benny Morris On Ethnic Cleansing entrevista a Ari Shavit New Left Review Londres n 26 marabr 2006 p 50 89 Na opinião nem tão desconcertante assim de Zaki Laïdi embora até onde sei ele seja o único a expressála nas categorias consagradas por Koselleck Cf Zaki Laïdi Un monde privé de sens Paris HachetteFayard 20011994 caps III Procuro O novo tempo do mundo FINALindd 180 O novo tempo do mundo FINALindd 180 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 181 recortar os incontáveis fi os de uma outra malha tecida pelo tormento das pequenas esperas intermináveis num labirinto de fi las e controles Refi rome à danação em vida que são os checkpoints estrategicamente distribuídos pelos territórios ocupados Numa escala inimaginável de requinte punitivo em que se faz sofrer para humilhar e viceversa tratase de uma inacreditável espacialização de todas as variações possíveis da disciplina da espera uma quota de tempo morto extraída como um surplus de expropriação do tempo de vida de cada um dos nativos Nos territórios ocupados da Palestina o checkpoint tornouse um verdadeiro sistema de governo das populações de fato cativas durante os três primeiros anos da Intifada 85 do povo da Margem Ocidental simplesmente não conseguia sair de suas aldeias em razão do emaranhado de toques de recolher e barreiras de toda sorte Nas palavras do escritor e ativista Azmi Bishara o checkpoint confi sca tudo o que um homem possui de mais valioso todos os seus esforços todo o seu tempo o checkpoint é o caos e a ordem está dentro e fora da lei opera racionalmente e arbitra riamente através da ordem e da desordem até a completa exaustão moral e psíquica dos condenados a transitar por esse labirinto em que a principal arma para entranhar nos derrotados o sentimento da própria humilhação é a espera e uma espera que não poupa doentes idosos ou crianças que pode ser indefi nidamente alongada ou subitamente abreviada segundo coman dos cujos critérios precisam permanecer insondáveis em suma também aqui queremos que eles sofram quando mais não seja pelo medo com que nos obrigam a viver90 Uma outra amostragem exemplar dessa fusão entre Estado ocupante do Checkpoint e Zona ocupada de Espera em que o mais corriqueiro deslocamento é sinônimo de espera e imobilização sob um sol infernal estando o arcondicionado acintosamente reservado aos estrangeiros ofi ciais ou de passagem encontrase no já citado livro do arqui teto Alessandro Petti narrando sua travessia com mulher e fi lha palestinas naquele pesadelo de ratoeiras interligadas no mesmo propósito de infernizar a vida das pessoas que não poucas vezes se dão conta de estarem andando em círculo A um certo momento o autor sem embargo de sua condição de aclimatar esses juízos acerca da Guerra Fria no estudo O novo tempo do mundo publicado neste volume 90 Eyal Weizman Hollow Land Israels Architecture of Occupation Londres Verso 2007 p 1478 O novo tempo do mundo FINALindd 181 O novo tempo do mundo FINALindd 181 10042014 152753 10042014 152753 182 O novo tempo do mundo europeu depois de bloqueado pela enésima vez confessa ignorar o motivo e muito menos saber exatamente do que está à espera Uma viagem cujas preocupações óbvias são multiplicadas por uma incerteza estrategicamente planejada não saber quais são as regras e quem as dita conclui é de fato uma forma de governo cujo conteúdo é precisamente esse vazio que é o tempo de espera Por outro lado quando se demora quatro horas para ultrapassar uma faixa de poucos metros não se pode deixar de pensar que para além do controle e da segurança nos defrontamos com o suplemento indispensável o inconfundível desenho de uma arquitetura punitiva91 A Ocupação como peça didática em cena desde 1967 e cujo refrão é menos o acordo extor quido do que a paródia sinistra de uma outra lição o importante é aprender a esperar Não perdem por esperar com efeito possivelmente também era isso o que um especialista no problema dos refugiados palestinos como Benny Morris queria dizer Problema Talvez não seja a palavra mais apropriada Diante da Questão Palestina não falta quem tenha se dado conta de que o prazo de validade do teorema marxista a humanidade só se defronta com os problemas que pode resolver esteja vencido 13 Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados o número de vítimas de deslocamentos forçados beira hoje os 45 milhões o maior nos últimos quinze anos alastrando ainda mais uma crise que se arrasta sem perspectiva de saída próxima92Imobilizadas na sua grande maioria nos campos da desgraça humanitária onde realmente se aprende a esperar e se aprende obviamente sofrendo no vácuo jurídico dessas outras zonas de espera em que a situação de exílio pode se prolongar às vezes por vinte anos Mas antes de chegar à estagnação dos campos a danação da espera acompanha o condenado desde os primeiros passos da imigração de um modo ou de outro sempre forçada e no limite canalizadora de todas as demais disciplinas constitutivas de mais esta situação liminar em que fl utuam93 91 Alessandro Petti Arcipelaghi e enclave cit p 113 92 Alexander Betts especialista na questão dos refugiados Viagem sem fi m entrevista a Carolina Rossetti O Estado de S Paulo 26 jun 2011 93 A expressão populações fl utuantes remonta ao repertório da administração colonial francesa como relembra JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 410 O novo tempo do mundo FINALindd 182 O novo tempo do mundo FINALindd 182 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 183 as populações aprisionadas pelo regime punitivo da station94 A expressão francesa empregada por Bayart é mais certeira ao procurar seu alvo alguém de pé aguentando até desabar e o seu conceito a cuja temporalidade disci plinar estaria sendo submetido pois não é mais alguém de castigo no canto da sala Encapuzado e o equilíbrio por um fi o elétrico já vimos a foto uma outra extensão do mesmo continuum punitivo Da afl ição mais comezinha de alguém literalmente estacionado diante de um guichê que não abre nunca ou aleatoriamente segundo o belprazer de um remoto encarregado até o estado de prontidão permanente à espera de um passador ou coiote um barco um emprego documentos uma expulsão ou até mesmo um retorno Com a palavra um veterano clandestino do Mediterrâneo o tunisiano Fawzi Mellah Não tínhamos outro jeito senão esperar Esperar Um clandestino passa mais da metade de seu tempo da sua vida esperando A resposta de um passador A chegada num porto improvisado ou desconhecido A boa vontade de um contato O encontro de um amigo A boa vontade de um empregador au noir Uma anistia Uma eleição presidencial A chegada de uma esquerda qualquer no poder A remoção dessa mesma esquerda do poder Uma manifestação de intelectuais Uma ocupação de uma igreja A quando então se governava por decretos administrativos Como se há de recordar segundo Hannah Arendt esse é um dos laboratórios do cataclismo que se abaterá sobre a Europa de entreguerras pavimentando o caminho para o horror a saber a inclusão também dos bons europeus este o escândalo o mais não vem ao caso que já fl utuavam desde o fi m da Primeira Guerra e o desmembramento dos im périos continentais naquela parte da humanidade que seria em breve considerada supérfl ua e nessa condição pura e simplesmente aniquilada Flutuar voltou a ser prenúncio de naufrágio próximo não só literalmente na travessia do Mediterrâneo mas sobretudo de encalhe nos campos europeus de retenção onde apodrecem as primeiras ondas de imigração empurradas pela Primavera Árabe dos primeiros meses de 2011 por exemplo na terra de ninguém entre a Itália e a França Assim o enviado de O Estado de S Paulo à Ventimiglia encontrou muitos jovens que foram às ruas derrubar o regime de Ben Ali na Tunísia e descobrem que na Europa não são nada além de indesejados e sem direitos punidos duas vezes por não terem trabalho Cf Jamil Chade Imigrantes enfrentam fi m do sonho europeu O Estado de S Paulo 1o maio 2011 p A18 Vivendo ao deusdará depois de arrancados à força dos trens por policiais armados submergem por fi m no terrível aprendizado da espera num limiar dormindo há 43 dias na estação um desses desmobilizados da revolta árabe disse ao repórter que estava contando o tempo de espera para no futuro ser indenizado Seja como for um passo à frente se comparado ao camponês kafkiano envelhecendo diante da Lei sem ao menos contar os anos parados 94 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 418 O novo tempo do mundo FINALindd 183 O novo tempo do mundo FINALindd 183 10042014 152753 10042014 152753 184 O novo tempo do mundo expulsão Em suma dizia há pouco que não se pode falar de futuro com pessoas que vivem uma temporalidade feita de pequenos futuros imediatos preciso acrescentar agora que muito menos se trata de futuro para pessoas que empregam o essencial do seu tempo esperando que alguma coisa ocorra95 Ou ainda agora alguém estacionado no Marrocos Em Tânger vivemos com o celular na mão à espera do anúncio de que um depósito bancário foi feito permitindo a travessia A mesma coerção que expropria explora ou desemprega e por fi m expulsa conjuga imigração e espera clandestina tornadas consubstanciais pela ação de um poder a um tempo gerencial e punitivo que se manifestará em sua plenitude nessas zonas liminares de imobilização e espera que estamos percorrendo do cárcere ao campo hu manitário passando pelo fi ltro da imigração forçada96 95 Ibidem p 413 96 Devemos deixar para outra ocasião o estudo da condição liminar das grandes periferias urbanas do mundo e seu encadeamento no coração do argumento de Wacquant ao longo do continuum prisãogueto É que a disciplina da espera num cárcere a céu aberto como costumam ser descritas aquelas áreas de contenção permanente particularmente em países digamos intermediários cujo novo regime de histori cidade ainda não se confi gurou por extenso não pode deixar de ser modulada por uma outra temporalidade disciplinar mais abrangente no caso que se poderia de nominar propriamente nacional As aspas para sugerir que as nações sobretudo se têm a mesma idade do capitalismo moderno como é por exemplo o nosso caso o que restou na praia no refl uxo de uma expansão econômica ultramarina inédita são as primeiras sociedades orientadas para o futuro além do mais aquecido por um antagonismo social por assim dizer de raiz colonial no caso Afi nando o esquema famoso de Benedict Anderson ganham ao ser redefi nidas como comunidades imagi nadas de expectativas como evocado páginas atrás Por esse prisma desbanalizase o estereótipo do país do futuro além de se deixar aparecer o teor distópico da percepção de que o futuro fi nalmente chegou por entre os destroços do presente Também se destrivializa a percepção bipolar de que o horizonte nacional de classe no centro na periferia ora se encolhe ora se dilata Expectativas são frustradas diferencialmente bem como as explosões de impaciência Para não falar das sucessivas ondas punitivas em países em que governar sempre foi antes de tudo mandar prender Não dá para dizer que nos guetoscárceres periféricos a disciplina da espera se ensina e se aprende do mesmo jeito E por aí iremos decerto até nos depararmos por exemplo com as medidas socioeducativas em meio aberto destinadas precisamente a imobilizar grupos sociais inteiros ditos de risco ou em situação de vulnerabilidade como no caso do projeto Promenino da Fundação Telefônica analisado por Acácio Augusto Para além da prisãoprédio as periferias como campos de concentração a céu aberto em Pedro Vieira e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento cit p 1789 Em todo caso resta que são punidos pela espera que justamente os aparta O novo tempo do mundo FINALindd 184 O novo tempo do mundo FINALindd 184 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 185 Por fi m a paralisia dos campos de refugiados onde a liminaridade é maldita nas palavras do antropólogo Michel Agier97 que passamos a acompanhar nessa última vaga da maré punitiva global o tempo morto da anulação total das expectativas98 No epicentro das levas sucessivas de refu giados invariavelmente um ato de violência Volto a lembrar que as guerras hoje são intervenções restauradoras da ordem o que explica seu viés punitivo recorrente A coerção permanente depois faz o resto e como poderia ser de outro modo pois se trata de confi nar E comprimir uma humanidade pela condição liminar em que estão encerrados de uma outra Grande Espera ainda por defi nir Vão na mesma direção as observações de Th iago Rodrigues sobre São Paulo cidade sem horizonte em que os olhos se perdem em periferia quer dizer metáfora aliás exata à parte A periferia deve fi car onde está e as pessoas que nela vivem também Entendase são milhões que não devem ser eliminados mas retidos observados docilizados Em suma governados Modulandose coerção e cuidado também se encaminham expectativas onde não há horizonte Seja como for uma proeza gestionária inclusive por sedentarizar uma população que é puro movimento em todos os sentidos Cf Th iago Rodrigues Tráfi co e campos de con centração SextaFeira São Paulo Editora 34 n 8 nov 2006 p 1328 97 Michel Agier Aux bords du monde les réfugiés Paris Flammarion 2002 cap 17 Os deslocados se instalam nas bordas das cidades É a liminaridade que une todas as situações de êxodo nas periferias urbanas dos países pobres como nos campos Ela é ao mesmo tempo o fundamento do campo enquanto ato de deixar à espera e afastado da sociedade e o próprio lugar dos removidos e refugiados autoinstalados no sentido em que permanecem em zonas periféricas de ocupação provisória ou ilegal Nada pode se consumar totalmente nesses contextos o inacabamento dos processos de integração lhes é consubstancial a quarentena é o seu horizonte Os campos se encontram fora dos lugares e das temporalidades do mundo comum ordinário e previsível Eles vivem num regime de exceção normalmente reservado a uma margem a uma borda do mundo mantido bem à distância ibidem p 66 98 Quem assim se exprime é o já citado estudioso das situações de imigrações forçadas Alexander Betts ao ouvir de um refugiado somali enclausurado por uma situação de dependência total das instâncias humanitárias e congêneres desde 1989 num campo de Djibuti Pessoas não podem viver só de comida e água Esperança é o que nos mantêm vivos Um artigo de luxo não previsto por Enzensberger embora para tais náufragos do tempo liminar se trate de um gênero de primeira necessidade e não de uma trivialidade servida em sermão dominical De resto a ambição daquele refugiado era bem precisa debaixo da sua lona preta uma outra situação liminar há mais de vinte anos na frente da nossa porta desde que assumira o papel informal de profes sor com duas lousas improvisadas apenas desejava para os seus alunos que tivessem a esperança que ele nunca teve de um dia ser outra coisa na vida que não somente um refugiado Cf Carolina Rossetti Viagem sem fi m O Estado de S Paulo cit Fosse um campo livre que se abrisse certamente se ouviria a esplêndida batida na porta O novo tempo do mundo FINALindd 185 O novo tempo do mundo FINALindd 185 10042014 152753 10042014 152753 186 O novo tempo do mundo residual que estorva Uma vez passada a urgência que é o tempo humani tário real seguese a gestão do estado de insegurança permanente em que passam a viver os indivíduos assistidos em torno dos quais o deserto social cresce fora da lei ordinária dos humanos Ato de violência portanto essa entrada brutal num estado de fl utuação liminar como Agier denomina a condição do refugiado este ser à deriva e à espera que nada mais possui a não ser a crueza elementar de sua própria vida biológica Que certamente Agamben poderia então chamar de vida nua e Agier confi rma que é disso mesmo que se trata Como refugiado em princípio está sempre aguardando alguma coisa Temporariamente abrigado naquelas remotas salas de espera nas beiradas do mundo não pode sequer procurar algum trabalho na região em volta para afi nal quem sabe ganhar a vida vida que de resto lhe é dada pelo dispositivo humanitário operando no local Mas a vida que lhe é dado viver é exatamente essa vida nua revelada pelo descompasso entre a existência social e política anulada pelo confi namento compulsório e os mínimos vitais que lhes são contudo dispensados proteção alimentação saúde Enquanto espera imobilizado num campo o refugiado por certo vive mas não existe mais Tampouco seus guardiães por volta de 500 mil na ativa hoje em dia que trabalham para assegurar a disciplina da es pera ou melhor que só estão naqueles confi ns porque se trata precisamente de um trabalho o trabalho da intervenção humanitária aliás rigorosamente contemporâneo da correspondente profi ssionalização da guerra Mas ur gência é urgência todo esse trabalho é precário por defi nição uma chance ocasional sem amanhã salvo a renovação dessa emergência perpétua numa palavra tanto para os operadores dos campos quanto para a massa dos seus habitantes mais uma vez a espera é a única urgência na fórmula de Bayart A expressão de Marc Agier náufragos da liminaridade caracteriza a condição em que foram lançados todos esses indivíduos enxotados pela desgraça social sem Estado sem lugar sem função fora não dessa ou daquela lei desse ou daquele país mas da lei como tal são proscritos e fora da lei de um novo tipo São produtos conclui Bauman que esta va começando a citar do que ele mesmo Bauman denominou global frontierland algo como uma terra de ninguém que vai se expandindo à medida que se desmancha a Era do Espaço que acompanhou a formação da economiamundo do capitalismo histórico uma erosão sobretudo interna e não apenas confi nada aos territórios exteriores submetidos ao fl agelo das novas guerras sejam elas de intervenção dos Estados hegemônicos ou de O novo tempo do mundo FINALindd 186 O novo tempo do mundo FINALindd 186 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 187 apropriação direta por milícias interpostas99 Pois é nessa terra de fronteira que caracteriza o espaço do novo tempo do mundo sem jamais se saber ao certo se tal condição é transitória ou permanente que se encontram atolados esses foras da lei de um novo tipo sendo além do mais da natu reza dessa nova fronteira impor àqueles que transitam por essas margens internas uma espera também nunca vista desde que se erguem barreiras para subjugar os que caíram em desgraça inculcandolhes de quebra uma impaciência apassivadora que corrompe sem fermentar Debaixo da lona uma espécie de peregrinação que é pura estação Mesmo que fi quem parados num lugar por algum tempo estão numa jornada que nunca chega ao fi m já que seu destino de chegada ou de retorno permanece eternamente inacessível100 Voltaremos ao ponto Não escapou igualmente a Bayart o paradoxo dessa espera em movimento a espera no limiar do globo não é apenas estagnação mas também movimento e integração subordinada antes que exclusão ou marginalidade mas agora incluindo nessa condição liminar que produz igualmente relações sociais ainda que temporárias e hierárquicas no deslocamento permanente dessas populações fl utuantes e transitivas da frontier o nomadismo dos contrabandistas e demais contraventores fi scais101 Por onde se vê mais uma vez continua o nosso autor que independentemente do que se espere e tal é também o caso do trabalhador imigrante clandestino todo movimento de espera em situação liminar encontrase intimamente imbricado no e com o Estado Vem daí o viés punitivo onipresente E o rosário de violências que se sabe Sobre o limiar em que se vê lançada a vida nua desses homens e mulheres lentos embora se deslocando de ceca em meca inclusive pelos recantos mais inóspitos de assentamentos que valem por uma conurbação paira uma nova e espessa invisibilidade acrescenta nosso autor recobrindo toda sorte de punições arbitrárias injúrias pancadas nudez privação de alimento abstinência sexual etc Defi nitivamente não se inventou nada de novo em Abu Ghraib apenas um outro centro mais espetacular de retenção numa global frontierland Lá não se punia por petróleo mas para fazer sofrer e aprender a se pôr no seu lugar 99 Zygmunt Bauman Society under Siege Cambridge Polity 2002 cap 3 e do mesmo autor Vidas desperdiçadas cit p 956 100 Ibidem p 96 101 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 424 O novo tempo do mundo FINALindd 187 O novo tempo do mundo FINALindd 187 10042014 152754 10042014 152754 188 O novo tempo do mundo É claro que a fórmula náufragos da liminaridade não se aplicaria sem despropósito aos agentes encarregados de resgatar sobreviventes e afogados mas não deve ser implausível a suposição de que padeçam igualmente sub mersos naquele oceano de vítimas do mesmo mal que os corrói algo como o trabalho atroz do inumanitário se for possível falar assim102 Comprimidos entre a urgência e a espera estão de fato envolvidos no trabalho execrável de gestão por certo humanitária de populações sem caminho de volta as mais indesejáveis do planeta impossível desconhecer que a rejeição delas é irreversível Acresce que integram o poder constituído do campo A boa marcha dessa quarentena infi nita requer assim além de um dispositivo alimentar e sanitário a presença de um poder de polícia Toda urgência institui um novo poder de polícia Como todo universo de confi namento segregador um assentamento precário de milhares de internos onde vigora além do mais um regime suspensivo inerente àquela situação de exceção alimentada pela emergência encontrase às voltas com todo tipo de turbu lências que demandam um serviço permanente de ordem e por assim dizer lei ou melhor regra Um princípio securitário de ordem assegurado por uma polícia encarregada antes de tudo de sustentar o poder imediato das organizações internacionais sobre a vida dos viventes reagrupados no campo Senso comum mas nem tanto Em princípio um campo de refu giados situase no extremo oposto de um campo de prisioneiros ou pior de concentração E no entanto observa Agier vêse a mesma contingência de instituir como naqueles um quadro igualmente rígido de comando no limite rapidamente alcançado no instante mesmo em que a urgência explode chegase à conclusão de que o socorro humanitário só é efi caz se implicar sem maiores mediações uma ordem policial Um elo afi nal na grande segregação planetária a guetoização avançando pelos dois extremos a voluntária em que se imobilizam as elites cinéticas a coercitivapunitiva em que a ralé mundial vai aprendendo a esperar em movimentos erráticos ou em fi las estacionárias 102 Amalgamando os respectivos raciocínios de Joseph Torrente Travail et banalité du mal Revue dhistoire de la Shoah Paris n 175 2002 amplamente comentado no estudo Sale boulot publicado neste volume e em Bernard Doray Le taylorisme une folie rationnelle Paris Dunod 1981 O novo tempo do mundo FINALindd 188 O novo tempo do mundo FINALindd 188 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 189 14 O tempo morto que a onda punitiva contemporânea arrasta consigo sendo antes de tudo um tempo de espera em ponto morto um tempo de expectativas decrescentes como de resto seu duplo em tempo real um contratempo perene chumbando nos espaços liminares uma popu lação idem sendo portanto um tempo de todas as exceções é no limite um tempo essencialmente administrativo próprio de um Estado ao seu modo peculiar Social e colonizado pelo seu braço penal como vimos Wacquant demonstrar em toda sua extensão Como se trata de punir pela espera literalmente um choque por isso mesmo embalado pela frase feita da estupidez governante choque de gestão mais do que um rótulo roído até o osso uma ameaça que lá embaixo todos entendem JeanFrançois Bayart também pode afi rmar que em larga medida a espera constitutiva da experiência liminar é fruto da ação burocrática a fi la diante dos guichês de cadastramento ou dos controles da polícia a espe rança de que o cargueiro enferrujado engane ou se arranje com a vigilância da guarda costeira a espera na fi la do direito de asilo que os funcionários recusam durante meses ou anos ainda a fi la à hora das refeições diante do caldeirão de sopa da administração humanitária dos campos ou num abrigo de resgatados do mar103 Novamente o sopro profético da grande espera kafkiana não deixa de enregelar não obstante o abismo histórico entre uma e outra espera Aura metafísica despistadora a menos o mesmo cerne jurídicoadministrativo punitivo encardido pela latente onipresença de forasteiros espezinhados batendo à porta e cuja vida é um chegar a vida toda como mostrou Gün ther Anders que não poderia defi nir melhor o universo liminar cuja travessia infi ndável também se apresenta como a soma de esforços inúteis para chegar a um Além outra vez Anders que não é o futuro nem o mundo de amanhã mas o mundo existente Não é preciso ir até o Castelo ou se emaranhar no labirinto processual da exceção jurídica acintosa basta lembrar do desti natário da Mensagem Imperial o súdito lastimável a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial104 e também de como são vãos os esforços do portador daquele mítico bilhete de ingresso 103 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 426 104 Franz Kafka Um médico rural trad Modesto Carone São Paulo Brasiliense 1990 p 39 O novo tempo do mundo FINALindd 189 O novo tempo do mundo FINALindd 189 10042014 152754 10042014 152754 190 O novo tempo do mundo Continua sempre forçando a passagem pelos aposentos do palácio mais interno nunca irá ultrapassálos e se o conseguisse nada estaria ganho teria que percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos pátios o segun do palácio que os circunda e outra vez escadas e pátios e novamente um palácio e assim por diante durante milênios O tempo morto que vai se depositando no centro imóvel do rede moinho contemporâneo é um ricochete gerado pelo abrir e fechar das comportas de controle estatal ou agências terceirizadas a que se delegou poder coercitivo dos fl uxos perniciosos a aluvião tóxica de encarceráveis refugiados imigrantes guetoizados clandestinos do trabalho etc basica mente efeito do controle desses fl uxos que geram insegurança Recapitule mos por outro ângulo nosso motivo de fundo a saber que a onda punitiva sobre cuja crista se dá a ascensão do Estado PenalSocial é uma resposta ao crescimento da insegurança social 15 Com efeito a disciplina da espera que pune pela imobilização a irregula ridade das populações liminares sendo o admirável mundo novo do trabalho redisciplinado o maior sorvedouro dessa liminaridade a ser regulada integra um dispositivo de governo seja na acepção de BourdieuWacquant que se viu seja na redescrição de Foucault o Estado governamentalizado assentado sobre o tripé população economia política e segurança no interior do qual se desenrola toda a nova economia da violência que dá régua e compasso à virada punitiva de agora E se é verdade que se governa conduzindo condutas se procurarmos certamente iremos encontrar incontáveis zonas de espera na intersecção de contato entre o governo dos outros e o governo de si com a diferença de que não se cuida mais de si quando historicamente a espera deixa de ser um horizonte e o seu aprendizado sofrido como um suplício Ou melhor quando o horizonte contemporâneo tornouse nada mais nada menos do que a securização de um risco permanente e incontornável contra o qual toda precaução é pouca como também se viu A contenção punitiva e seu arsenal disciplinar é o espasmo contínuo acionado por todo um sistema de alertas pelo qual se deixa reconhecer a governamentalidade securitária na qual ingressamos e cuja razão de ser na boa explicação de Frédéric Gros é o controle a redução ou a eliminação de todos os riscos de agressão incor ridos não por sujeitos de direito mas por indivíduos considerados na sua O novo tempo do mundo FINALindd 190 O novo tempo do mundo FINALindd 190 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 191 exclusiva dimensão de seres vivos onde direitos e deveres contam menos que os pontos de vulnerabilidade a proteger por medidas de precaução ou pontos de defesa vital a serem otimizados105 Governase continua nosso autor fundamentalmente uma única comunidade de viventes integrados por uma série de continuidades a começar pelo continuum punitivosecuritário privilegiado por Wacquant estendendose do policialcarcerário ao militar o das ameaças do risco alimentar ao risco terrorista o da violência da catás trofe natural à guerra civil o da intervenção da agressão armada contra um Estado pária ao socorro humanitário enfi m o continuum das vítimas do refugiado em estado de choque ao menor abusado A insegurança a que se responde recobre assim o inteiro mundo dos organismos biossociais semo ventes do vírus ao atentado da sexualidade ao meio ambiente A resposta punitiva à insegurança social justamente insere a população liminar sobre a qual incide preferencialmente nesse grande quadro do governo segundo a lógica da intervenção ativa guiada pela racionalidade sumária do risco que engloba num só alvo por exemplo delinquência doença e subemprego Não será exagero portanto assinalar o viés de contenção punitiva na neblina que está baralhando todas as distinções clássicas como na confl uência militar humanitária ou penalsocial com as quais já nos deparamos ao longo dessa digressão A polícia e o exército a diplomacia e as empresas privadas de segurança mas também a medicina e as agências humanitárias os centros de saúde pública e os laboratórios privados todos conspiram num mesmo esforço de securização do indivíduo106 E o fazem por meio de um número crescente de intervenções e preci samente a punitiva é a mais espetacular delas invariavelmente orientadas pelo onipresente princípio de precaução à sombra do qual se multiplicam em nome da missão protetora de um Estado cada vez mais preventivo responsabilizações individualizadas de toda sorte cujo ponto culminante é a vigilância exercida pelo próprio indivíduo sobre si mesmo que assim se autogoverna O sistema geral de vigilância é assim assumido por um estado de vigília individual uma tensão permanente que cada um tome suas precauções contribuindo para a segurança de todos pela generalização desse 105 Frédéric Gros États de violence essai sur la fi n de la guerre Paris Gallimard 2006 p 21543 Ver ainda do mesmo autor Le management sécuritaire Le Monde 20 nov 2010 p 16 106 Idem États de violence cit p 236 O novo tempo do mundo FINALindd 191 O novo tempo do mundo FINALindd 191 10042014 152754 10042014 152754 192 O novo tempo do mundo estado de alerta permanente107 Qualquer desvio será punido e corrigido por uma intervenção restauradora antepondose a perigos intervenções não criam nem instituem nada seus agentes devem portanto acionar dispositivos de ameaças ativas que permitam afastar de maneira contínua perturbações potenciais e afastálas em última instância de pessoas tomadas em sua exclusiva condição de seres vivos Todos estão assim em permanente es tado de alerta intervindo policiais militares psiquiatras humanitários etc Das populações à informação tudo é fl uxo a ser controlado tudo é objeto de segurança alimentar sanitária energética etc Assim sendo a resposta penal maximizadora da insegurança social é uma intervenção entre outras estratégica sem dúvida mas é bom não esquecer que o fl uxo de populações liminares que ela regula comporta todas as demais ramifi cações da sanitá ria à humanitária Mas também não é menos evidente a percepção de que a onda punitiva tanto a concentrada quanto a difusa só se impõe como uma reviravolta histórica a partir do momento em que o vínculo político a legitimidade da autoridade estatal é apagado pelo nexo da vigilância que integra o indivíduo vivente a todo um sistema de segurança Tudo isso dito e resumido porque segundo nosso autor a guerra tal como a conhecemos como confl ito armado público e justo na defi nição clássica de Alberico Gentili está se apagando lentamente suplantada pelos estados de violência que desde então se abriram diante de nós regulados por processos securitários que apenas prometem diminuir os riscos e perigos de uma interminável cadeia de violência que dos vírus e micróbios remonta até a proliferação nuclear passando pelos maus fl uxos das populações irregulares por isso mesmo direcionadas para as zonas de espera da vida margens asseguradas pelo mesmíssimo sistema securitário onde os estados de violência podem então escalar livremente A segurança como sistema onipresente de proteção se reproduz em cada um dos assegurados centrais como ethos da precaução e nos demais fl utuando nos espaços liminares se traduz como a disciplina da espera que imobiliza os portadores daqueles riscos e perigos que se trata de expelir A onda punitiva que nos ocupou até aqui é assim coextensiva a esse estado de violência regulado pelo novo management securitário O tempo morto da onda punitiva é o tempo ora morno ora vertiginoso do estado de alerta indefi nido que veio substituir o tempo descontínuo do perigo de guerra que antes mobilizava a nação 107 Ibidem p 235 O novo tempo do mundo FINALindd 192 O novo tempo do mundo FINALindd 192 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 193 adaptando ao nosso argumento as distinções preciosas de Frédéric Gros em seguida o tempo continuamente ameaçador da destruição mútua as segurada pela guerra nuclear absoluta Perigo ameaça e risco outros três horizontes de expectativas em escala histórica decrescente cada um dotado de um regime de espera específi co No antigo regime da espera a guerra podia ser um sinal da virada nas intervenções militares de hoje são outros tantos sinais da virada punitiva em curso 16 O sinal da virada com efeito Deve ter havido um tempo em que Saltávamos como crianças nem sempre de susto assim que a campainha soava Seu som rasga a sala silenciosa e oca especialmente ao anoitecer Talvez agora tenha chegado aquilo que obscuramente se tenha em mente aquilo que procuramos e que por sua vez procura a nós Sua dádiva transforma e melhora tudo traz novo tempo O som dessa campainha permanece em cada ouvido associase com todo chamado agradável vindo de fora Se houve de fato faz muito tempo mesmo Um contemporâneo não necessariamente cínico se perguntaria de que estrela já extinta estaria chegando essa mensagem incompreensível mesmo se sua expectativa ao toque do interfone não se limite ao entregador da farmácia Quando Ernst Bloch escreveu essas linhas108 a campainha podia muito bem anunciar uma visita da Gestapo e no entanto por maior que fosse a escuridão do momento presente nada garantia que o novo tempo não fosse o princípio do tempo do fi m seu teorema de abertura poderia ser tudo menos uma receita para se vender esperança em lata Só a cegueira terminal de hoje acredita já ter visto e ouvido tudo109 Mas não a dupla surpresa quem sabe se o torpor não for absoluto ocasionada por uma frase que na mais completa 108 Ernst Bloch O princípio esperança trad Nélio Schneider Rio de Janeiro Contra ponto 2005 v 1 p 48 109 Os mesmos cuja afetação chega por vezes ao extremo de evocar certamente em vão o nome de Proust sem no entanto jamais alcançar distinguir no som da campainha de Bloch que rasga a sala silenciosa e oca ao anoitecer anunciando o grande despertar que está vindo o mesmo tilintar álacre ferruginoso interminável agudo e claro da sineta do jardim de Combray que repercute no Narrador como um outro sinal da virada a redescoberta do tempo que chegara a julgar irremediavelmente perdido Ver Marcel Proust Tempo redescoberto Rio de Janeiro Globo 2012 selo Biblioteca Azul O novo tempo do mundo FINALindd 193 O novo tempo do mundo FINALindd 193 10042014 152754 10042014 152754 194 O novo tempo do mundo contramão de tudo o que se disse até agora recomenda o contrário com as mesmas palavras de sua antípoda O que importa é aprender a esperar afi rmava Bloch em 1938 quando a rigor ninguém esperava mais nada salvo o pior A essa altura não vou é claro reapresentar a política do sonharparaafrente preconizada por Bloch porém sonhar acordado lembrando que o sonho diurno não pede interpretação mas reclama secretamente a transformação do mundo tampouco sua lógica não menos onírica A ainda não é A muito menos sua antropologia utópica em que um ser nascido prematuro é caracterizado por um afeto de expectativa na origem de uma consciência antes de tudo antecipatória ou ainda sua fi losofi a da experiência da história na qual desaba a compartimentação entre futuro e passado no qual por sua vez o futuro que ainda não veio a ser tornase visível enquanto o passado vingado e herdado mediado e plenifi cado tornase visível no futuro etc110 Basta lembrar mais para constar pois é duvidosa sequer sua compreensão verbal da parte dos nativos do presentismo contemporâneo que para esse fi lósofo de uma outra Era o ato de esperar não paralisa nem resigna muito menos é fonte banal de ressentimento pelo atraso intolerável etc Agora seria o anacrônico Bloch encalhado no tempo em que o afeto na espera ampliava as pessoas em vez de estreitálas que não entenderia mais nada 17 Para agravar e melhor ilustrar esse notável curtocircuito em torno da in versão de sinal da espera como disciplina e aprendizado seria o caso de convo car uma outra circunstância histórica de positivação da necessidade de esperar reconstituída por Zygmunt Bauman numa breve digressão sobre o sentido moderno da procrastinação111 Remontando à raiz latina da palavra o cras quer dizer amanhã porém um amanhã sufi cientemente elástico para incluir o mais tarde do futuro o crastinus por sua vez é o que pertence ao amanhã relembra que procrastinar é pôr alguma coisa entre as coisas que pertencem ao amanhã Em resumo procrastinar é manipular 110 Fora do círculo cada vez mais restrito de especialistas para quem está ouvindo falar de Bloch pela primeira vez no atual deserto de tudo recomendo o pequeno livro de iniciação de Suzana Albornoz O enigma da esperança Ernst Bloch e as margens da história do espírito Petrópolis Vozes 1999 111 Zygmunt Bauman Modernidade líquida cit p 17881 O novo tempo do mundo FINALindd 194 O novo tempo do mundo FINALindd 194 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 195 as possibilidades da presença de uma coisa deixando atrasando e adiando seu estar presente mantendoa à distância e transferindo sua imediatez Mal começamos a reconhecer o terreno familiar outra inversão de sinal Contra uma impressão que se tornou comum na era moderna a procras tinação não é uma questão de displicência indolência ou lassidão é uma posição ativa prossegue Bauman Nova viragem igualmente positivadora desta vez apontando para um processo de subjetivação incipiente que ao se completar já na forma de uma prática cultural assinala a entrada em cena dos tempos modernos entendamos um novo signifi cado do tempo do tempo que tem história que é história um tempo que em princípio está viajando no caso em direção a outro presente distinto e mais desejável do que o presente vivido agora Voltamos a respirar uma atmosfera familiar pois a procrastinação assim entendida deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma pere grinação Obviamente grifo meu Uma idade histórica à frente os espaços liminares que se viu foram percorridos como uma peregrinaçãoexpiação não como um movimento que se aproxima de um porto seguro mas como um horizonte sem fi m que mais se afasta quanto mais nos aproximamos Em ambas as circunstâncias separadas no entanto pela mutação que se sabe viver a vida como uma peregrinação transcorre em direções opostas ou melhor na sua segunda idade já não há mais nenhuma progressão Ao passo que no tempo vivido como uma peregrinação uma jornada para todos os efeitos cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois Qualquer valor que este presente aqui e agora possa ter não passará de um sinal premoni tório de um valor maior por vir a tarefa do presente é levarmos mais para perto desse valor mais alto o sentido do presente está adiante o que está à mão ganha sentido e é avaliado pelo nochnichtgeworden pelo que ainda não existe Viver a vida como peregrinação está longe portanto de ser uma via de mão única Obriga cada presente a servir a alguma coisa que aindanãoé e a servila diminuindo a distância trabalhando para a proximidade Mas se a distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado o presente perderia tudo o que o fazia signifi cativo e valioso Pensando melhor se assim for a imagem gasta do horizonte que se afasta quanto mais nos aproximamos dele tornase pertinente sob nova luz É a ideia mesma de Horizonte de Expectativa formulada por Reinhart Koselleck nos termos que se viu e O novo tempo do mundo FINALindd 195 O novo tempo do mundo FINALindd 195 10042014 152754 10042014 152754 196 O novo tempo do mundo tanto mais palpável como parâmetro do que se deve compreender como regime histórico moderno quanto mais se afasta do Espaço de Experiência porém sem ruptura total sob pena de desorientação ou delírio voluntarista Sem prejulgar em favor das alternativas em disputa não é difícil perceber que um século atrás o falso dilema Reforma ou Revolução para fi car no campo socialista girava em torno desses polos conceituais ou o Movimento é tudo ou só o desfecho conclusivo é o enigma resolvido de toda a jornada da humanidade sua travessia do reino da necessidade rumo à liberdade Retornando à reconstituição de Bauman sobressai a racionalidade específi ca privilegiada pela vida do peregrino nem instrumentalmente rasa colada à duração presente nem absoluta brilhando apenas ao termo apoteótico da jornada a saber essa racionalidade híbrida da qual decerto não teremos mais notícia leva o peregrino à busca dos meios que podem realizar o estranho feito de manter o fi m dos esforços sempre à vista sem nunca chegar lá de trazer o fi m cada vez mais para perto mas impedindo ao mesmo tempo que a distância caia para zero A vida do peregrino é uma viagem em direção à realização mas a realização nesta vida é equivalente à perda de sentido Só que esse sentido não pode sobreviver à chegada ao destino Foi quando o futuro basculou de um só golpe no deserto do presentismo atual arrastado pela Queda do Muro passando agora para o campo do capitalismo vitorioso o teor de verdade do livro de Fukuyama que afi nal renegou por falta de fi bra para sustentar a nota reside na visão de que algo de substantivo na experiência da história desmoronou junto arrastado pela queda daí a fi guração do último homem se debatendo no formalismo de um domingo sem dias úteis pois no mundo do trabalho dominado só há festa na exceção Seja como for aquela avalanche não soterrou pouca coisa sobretudo a real matriz prática de todo esse redesenho do regime temporal da modernidade capitalista no limite a acumulação interminável como procrastinação e seu duplo antagônico o socialismo como movimento antissistêmico igualmente ambivalente até a medula a saber a jornada do trabalho não só contraída até sua menor célula fabril mas distendida até o extremo limite de uma metáfora de época Aqui a escola onde realmente se aprendia a necessidade de esperar A radiografi a padrão do desarranjo radical dessa unidade básica do capitalis mo moderno a jornada de trabalho encontrase como sabido no livro de Richard Sennett sobre as consequências pessoais do trabalho no novo O novo tempo do mundo FINALindd 196 O novo tempo do mundo FINALindd 196 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 197 capitalismo112 Unidade de medida de tempo basicamente um tempo ativo e cumulativo do qual obviamente não se tem mais notícia para não falar em experiência a começar pela do longo prazo e todo seu cortejo de vínculos impensáveis numa sociedade impaciente Embora aprisionada pela alienação ou justamente por isso uma vida de trabalho era a seu modo uma peregrinação em todos os sentidos seminal A disciplina do fl uxo a curto prazo a violência mesma do tempo da urgência acabou impondo a uma vida de trabalho narrável uma segunda alienação se é que se pode falar assim o desconjuntamento de uma deriva drift um mosaico de mudanças sem antes nem depois Talvez seja mais do que uma ironia crucial o destino compartilhado pelo homem do trabalho fl exível retratado por Sennett à deriva num mar de insignifi câncias e o barco literalmente na mesma condição de navegação a esmo dos novos peregrinos perdidos no mar Ironia suplementar a observação de Sennett acerca da acumulação de tempo no antigo capitalismo escorado por sindicatos e previdência própria quando então o tempo era o único recurso que os que estavam no fundo da sociedade tinham de graça Qualquer que seja no entanto o fi o por onde se puxem essas vidas vividas como peregrinação resta que a jornada entre tempos lugares classes sociais etc é uma experiência crucial geradora de signifi cação e que foi essa forma histórica que se desmanchou com a grande mutação presentista de nossa época Entre parênteses só para que se possa avaliar a magnitude dessa matriz hoje avariada basta lembrar toda jornada exigindo uma explicação que não são poucos nem desimportantes os antropólogos que situam o enigma da jornada do nascimento à morte na origem das religiões113 112 Cf A corrosão do caráter trad Marcos Santarrita 15 ed Rio de Janeiro Record 2010 Na edição original Th e Corrosion of Character Th e Personal Consequences of Work in the New Capitalism Nova YorkLondres Norton 1998 Signifi cativamente a tradução brasileira encontrase na 15ª edição Sua recepção tornouse ela mesma um sintoma 113 Ver a respeito Benedict Anderson Nação e consciência nacional trad Lólio Lourenço de Oliveira São Paulo Ática 1989 para as jornadas da imaginação na genea logia da ideia moderna de nação À qual se poderia acrescentar outra jornada não menos evidente em sua dimensão épica o romance que o século XIX reinventou e deságua na peregrinação de toda uma vida num só dia na Dublin de Joyce Como dizia Lukács no hoje longínquo A teoria do romance tudo isso tem de vir de algum lugar e ir para algum lugar trad José Marcos Mariani de Macedo São Paulo Duas CidadesEditora 34 2000 p 130 Não custa lembrar também sempre O novo tempo do mundo FINALindd 197 O novo tempo do mundo FINALindd 197 10042014 152754 10042014 152754 198 O novo tempo do mundo Como fi camos Pelo menos em condições de rever por este ângulo o paradoxal movimento imobilizador das populações liminares através das zonas de espera do capitalismo global a saber como peregrinações nas quais se está de fato reaprendendo a esperar seja qual for o teor ocasional de cada expectativa em particular De um modo ou de outro será sempre oportuno relembrar de novo na esteira de JeanFrançois Bayart a circunstância de que historicamente toda experiência liminar é indutora de processos de subjetivação Foi assim para dar um exemplo maior com os primeiros portadores de uma escolha de conduta de vida cristã entre escravos libertos e fugitivos na Roma antiga Sem falar para apenas mencionar um segundo caso de primeira grandeza na gênese subterrânea nas zonas de espera na nascente sociedade industrial de uma outra conduta de difícil governo a vida operária Sem com isso querer dizer que o renascimento do horizonte do mundo se ocorrer se dará antes de tudo pelas veias abertas em suas zonas de retenção a título de comparação com o que fi cou para trás e de tão remoto se torna outra vez contemporâneo que em A Montanha Mágica de Th omas Mann uma outra Grande Espera transcorre num tempo de fato incomensurável até sua consumação pelo despertar ensurdecedor da Grande Guerra de 1914 O novo tempo do mundo FINALindd 198 O novo tempo do mundo FINALindd 198 10042014 152754 10042014 152754
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PAULO ARANTES O NOVO TEMPO DO MUNDO E OUTROS ESTUDOS SOBRE A ERA DA EMERGÊNCIA O novo tempo do mundomioloindd 3 30042019 121042 Copyright Boitempo Editorial 2014 Copyright Paulo Eduardo Arantes 2014 Coordenação editorial Ivana Jinkings Editoraadjunta Bibiana Leme Assistência editorial Thaisa Burani Preparação Sara Grünhagen com exceção do capítulo Depois de junho a paz será total por Mariana Tavares Revisão Mariana Tavares Capa David Amiel sobre foto de Mídia NINJA protestos contra a Copa das Confederações em Belo Horizonte junho de 2013 Diagramação Antonio Kehl Produção Livia Campos É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora 1a edição abril de 2014 1a reimpressão outubro de 2014 2a reimpressão maio de 2019 BOITEMPO Jinkings Editores Associados Ltda Rua Pereira Leite 373 05442000 São Paulo SP Tel 11 38757250 38757285 editorboitempoeditorialcombr wwwboitempoeditorialcombr wwwboitempoeditorialwordpresscom wwwfacebookcomboitempo wwwtwittercomeditoraboitempo wwwyoutubecomtvboitempo CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ A683n Arantes Paulo Eduardo 1942 O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência Paulo Eduardo Arantes 1 ed São Paulo Boitempo 2014 Estado de Sítio ISBN 9788575593677 1 Filosofia 2 Filosofia Estudo e ensino I Título II Série 1410484 CDD 100 CDU 1 O novo tempo do mundomioloindd 4 30042019 121042 ZONAS DE ESPERA Uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea 1 A certa altura de seu impressionante painel da onda punitiva que varre o capitalismo contemporâneo seria uma impropriedade sociológica deixar se levar pela inércia da frase feita e acrescentar de alto a baixo além de erro político crasso a sociedade punitiva não alcança o topo da pirâmide nem mesmo seus estratos médios sua varrição ocorre nas zonas liminares do subproletariado mundial Loïc Wacquant pouco antes de nos guiar numa visita à joia da coroa prisional americana a Twin Towers Correctional Facility de Los Angeles passa a palavra ao xerife Apaio que para variar se gaba de tornar a vida de seus hóspedes cada vez mais dura em conformidade está claro com o princípio utilitarista segundo o qual a condição do detento mais bem tratado deve ser inferior à do assalariado em piores condições do lado de fora Seguese um elenco de mesquinharias e retaliações em escala crescente até onde a imaginação pode chegar aliás sem muito esforço tendose em mente que a atual era do confi namento converteu a prisão em aspirador social e máquina de moer Até aí nada de mais por assim dizer pois é voz corrente na população americana encarcerada que viver nas prisões de Los Angeles é como viver no inferno descontado por certo o que se passa ao sul do Rio Grande onde realmente se encontra o último círculo O que faz mesmo pensar é a semcerimônia com que arremata sua arenga de resto um discurso padrão e sempre esperado em campanhas eleitorais acerca das providências de endurecimento do regime de detenção Quero que eles sofram1 Simples 1 Loïc Wacquant Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos 3 ed Rio de Janeiro Revan 2007 Coleção Pensamento Criminológico v 6 p 311 O novo tempo do mundo FINALindd 141 O novo tempo do mundo FINALindd 141 10042014 152751 10042014 152751 142 O novo tempo do mundo assim sem maiores états dâme a repressão judiciária se intensifi cou a ponto de banalizar o próprio ato de infl igir uma dose suplementar de afl ições sempre calibradas para cima numa criatura já estigmatizada e em estado de privação máxima Moderação e proporcionalidade Foise o tempo desse conto de Natal dos primeiros reformadores históricos fraseologia defi nitivamente arquivada assim que se declarou na abertura do atual período de acumulação na base do trabalho dessocializado um estado de emergência no front penal e social ao qual não corresponde como explica extensamente Wacquant nenhuma ruptura na evolução do crime e da delinquência inaugurando pelo contrá rio um novo paradigma de governo da insegurança social alimentada pela turbulenta ansiedade gerada pela normalidade do trabalho desclassifi cado de resto imposto como uma danação precursora do que virá pela frente em caso de recalcitrância e contumácia Como essa onda punitiva é longa e de fundo arrastando consigo outras tantas viradas históricas na mesma direção do paradigma punitivo de con tenção e governo seria o caso de ir adiantando que não só em matéria de moderação e proporcionalidade como também se dizia desde os tempos em que o confl ito armado entre Estados foi por assim dizer juridicamente domesticado até a implosão da guerra total a forma predominante de intervenção em nome da ordem que a guerra contemporânea assumiu é igualmente tributária dessa mesmíssima virada punitiva onde a desmedida reina da estratégia de Choque e Pavor o fi asco na Guerra do Iraque apenas desmoralizou a letra conservando o espírito aliás afi nado com o shock incar ceration analisado por Wacquant ao desenho do arsenal cirúrgico concebido para gravar a memória perene da dor na mente de seus alvos preferenciais novamente disseminados pelas populações liminares do mundofronteira contemporâneo entendendose por fronteira toda sorte de barreira por cuja terra de ninguém social econômica simbólica etc campeia o peso morto do poder punitivo despertado de sua sonolência social pelos novos Estados do Workfare Pois então é assim queremos que eles sofram tanto nas cadeias do con dado de Los Angeles como na Faixa de Gaza mas também tanto na triagem dos postos de assistência em que se encaminham os condenados ao subemprego quanto nas zonas francas da vida e a enumeração dos focos epidêmicos do sofrimento social não teria mais fi m bem como a constatação passo a passo de que todos os seus agentes e pacientes trabalham o xerife e seu pessoal carcerário os operadores assistenciais do workfare e os militares O novo tempo do mundo FINALindd 142 O novo tempo do mundo FINALindd 142 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 143 profi ssionais que não obstante continuam acionando a quinquilharia dos fl agelos high tech etc2 2 Uma explicação necessária no que concerne à atrofi a do Estado Social embalada pelo mantra da responsabilidade pessoal e do trabalho que culminou na transformação do Welfare americano este último a rigor mais uma alega ção do que propriamente um fato numa engrenagem baseada na obrigação humilhante do trabalho subremunerado no que de fato consiste o workfare propriamente dito conversão de ajuda social em trampolim para o emprego precário Wacquant se apoia com frequência na reconstituição devida sobre tudo a Jamie Peck3 da gênese e economia política desse termo guardachuva para todo tipo de iniciativa de recondução da assistência social ao submundo do trabalho degradado Na fórmula de Jamie Peck aos McJobs veio se juntar o complemento dos McWelfare Por isso a tradução sem mais de workfare por trabalho social confunde pois tanto na França como no Brasil a expressão costuma remeter à atividade dos agentes incumbidos de tocar o serviço do setor social No caso a mão esquerda do Estado na conhecida distinção de Bourdieu entre os dois polos do campo burocrático desigualmente repartido entre a mão leve feminina das funções de amparo e proteção por defi nição uma mão aberta encarregada dos gastos e desperdícios e a mão direita masculina a mão dura da nova disciplina econômica Agentes estes que mesmo encarados como os trabalhadores que de fato são e trabalhadores sob risco de enrijeci mento moral pelo trato continuado com o desamparo não se confundem com as pessoas consumidas pela afl ição do outro lado do balcão No Brasil do último período essa distinção trivializouse no senso comum da distribuição aleatória de bondades e maldades conforme os altos e baixos da conjuntura Pois o livro de Wacquant4 tratará de redesenhar o modelo de Bourdieu ao incluir a polícia os tribunais e a prisão entre os elementos centrais da 2 Sobre a virada punitiva da guerra contemporânea ver Paulo Eduardo Arantes Notícias de uma guerra cosmopolita em Extinção São Paulo Boitempo 2007 Coleção Estado de Sítio 3 Workfare States Nova York Guilford Press 2001 4 Como relembrado pelo autor no capítulo teórico que fecha a edição americana de Punir os pobres A Sketch of the Neoliberal State em Punishing the Poor Th e O novo tempo do mundo FINALindd 143 O novo tempo do mundo FINALindd 143 10042014 152751 10042014 152751 144 O novo tempo do mundo mão direita do Estado juntamente com os ministérios da área econômica e orçamentária Dessa troca de mãos ou melhor superposição pois a rigor se trata da colonização do setor social pela lógica punitiva e panóptica característica da burocracia penal pósreabilitação resulta uma crescente remasculinização do Estado e reafi rmação marcial de sua capacidade de controlar os pobres problemáticos tanto os benefi ciários do workfare quanto os que resvalaram para o mundo do crime De sorte que desse embaralha mento de gênero das duas mãos do Estado aliás Wacquant sugere que a escalada patriarcalista do Estado remasculinizado depois de sua presumida feminização keynesiana pode ser entendida como uma reação às profundas modifi cações provocadas no campo político pelo movimento das mulheres seus agentes todos os setores confundidos moles ou duros podem então desempenhar com a desenvoltura que se sabe o novo papel de protetores viris da sociedade contra seus membros rebeldes Nesse sentido todo o engenhoso trabalho no qual se esmeram o xerife Apaio e seus colegas de produzir um excedente de sofrimento em seus de tentos é rigorosamente um travail du mâle para empregar com a mão trocada o jogo exato de palavras a que recorre Christophe Dejours para explicar a emergência de condutas iníquas e práticas organizacionais destinadas a infl igir sem fraquejar injustiça sobre terceiros no novo mundo do trabalho fl exível perguntando se afi nal esse trabalho do mal não seria igualmente o trabalho do macho Sendo este o caso não seria então a virilidade exibida no trabalho de governo da insegurança social a mola secreta de toda a onda punitiva que se alastra pelo sistema virada punitiva que por sua vez não arregimentaria seus operadores no teatro cívico da coragem viril se não se apresentasse com a energia mobilizadora de um trabalho5 O que permitiria de quebra encarar todo o aparato do workfare por um outro prisma o de uma outra onda a da intensifi cação do trabalho Há todavia uma ocorrência do trabalho social em que este é mobili zado em sua acepção propriamente europeia ou pelo menos numa de suas Neoliberal Government of Social Insecurity DurhamLondres Duke University Press 2009 p 287314 5 Christophe Dejours Souff rance en France la banalisation de linjustice sociale Paris Seuil 1998 p 123 Tentei noutro lugar explorar o alcance histórico do quadro conceitual da psicodinâmica das situações de trabalho notadamente na zona cinzenta dos campos da morte no Terceiro Reich como de resto sugerido pelo próprio Dejours Cf Paulo Eduardo Arantes Sale boulot publicado neste volume O novo tempo do mundo FINALindd 144 O novo tempo do mundo FINALindd 144 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 145 variantes enquanto modo de governo de populações inteiras em situações de risco emergencial e turbulência próxima da insurgência endêmica Acepção corriqueira porém não sua incorporação recente pelo menos no discurso do new american way of war e por extensão da matriz ocidental É que agora o trabalho social passou igualmente a pavimentar o caminho americano para a guerra permanente social work with guns na fórmula de Andrew Bacevich6 quem primeiro destacou estas fantasias de governança militar em que a guerra está se instalando para fi car de vez Guardadas as devidas proporções qualquer semelhança com as Minustahs da vida e as Unidades de Polícia Pacifi cadora UPPs cariocas não é casual pois se trata igualmente de um outro continuum punitivo como ressalta o mesmo Wac quant ao emendar por exemplo o workfare no prisonfare Estamos apenas lembrando que o Estado socialpenal remasculinizado é igualmente um warfare State A virada punitiva da guerra ao ressuscitar a velha estratégia da contrainsurgência dos anos 1960 arrastou consigo como garantia de que se trata mesmo de uma contrainsurgência sem fi m o foco na pacifi cação através da boa governança econômica da provisão social e securitária etc7 3 Antes de iniciar nossa visita guiada ao complexo prisional das Torres Gê meas de Los Angeles voltemos ao preâmbulo conceitual que uma expressão muito em voga entre as profi ssões de segurança prisional resume sem deixar resto isto é nenhuma dúvida acerca de por que ainda se trancafi am pessoas no século XXI coisa que no fundo ninguém mais sabe responder e por isso mesmo a pergunta parece tão obviamente sem propósito é preciso fazer com que os presos cheirem a presos make prisoners smell like prisoners Para tanto basta saber armazenálos em zonas de estocagem apropriadas graças sobretudo à recondução das antigas e sempre alegadas funções reabilitadoras do encarceramento à dimensão primitiva de castigo e mera neutralização e com isso reentronizar a centralidade do sofrimento agora em nova chave pois os tempos são outros A humilhação de cheirar como um detento a aura mesma da danação resulta assim de um novo metabolismo carce 6 Social Work with Guns London Review of Books v 31 n 24 17 dez 2009 p 78 7 Para uma exposição completa ver ainda Andrew Bacevich Washington Rules Americas Path to Permanent War Nova York Metropolitan Books 2010 cap 5 O novo tempo do mundo FINALindd 145 O novo tempo do mundo FINALindd 145 10042014 152751 10042014 152751 146 O novo tempo do mundo rário movido a retribuição automática Numa palavra sempre segundo Wacquant quando o encarceramento voltou fi nalmente a ser aquilo que nunca deveria ter deixado de ser desde a origem nada mais do que um sofrimento mas agora num regime institucional de mero processamento de pessoas sem outro fi m que não a contenção pura e simples quer dizer que no limite se encarcera para fazer mal punese para punir numa indistinção deliberada de meios e fi ns8 Volto a sugerir sem poder seguir em frente que os sofrimentos do en carceramento são infl igidos por um trabalho do mal a ser pesquisado na linha referida anteriormente isto é que só se encarcera para fazer mal se tal tratamento de choque for encarado e sublimado na sua própria violência específi ca como um trabalho do zelo na contenção da insegurança social e seus transbordamentos Relembro que do ângulo mencionado o da psico dinâmica das situações de trabalho a realidade do trabalho é o zelo com o qual suas prescrições são contornadas Assim quando Wacquant assinala como uma exceção o fato de certos carcereiros considerarem ser sua incumbência fazer reinar no interior de seus estabelecimentos um rigor penal superior ao estipulado pelo regulamento9 é do trabalho carcerário propriamente dito que está falando e por tabela do zelo característico do trabalho do mal na terceira onda de intensifi cação capitalista do trabalho10 Vistas as coisas por este prisma todavia seria indispensável ressaltar igualmente o outro extremo de toda a cadeia punitiva a pressão da burocracia penitenciária exercida sobre o trabalho de contenção exigido dos agentes correcionais Como se pode verifi car por exemplo num estudo encomendado ao Insti tuto de Psicodinâmica do Trabalho do Québec pela administração de uma supermax presídio de segurança máxima local desafi ada pelo grau elevado de afl ições psíquicas e morais envenenando o serviço de seu pessoal na linha 8 Para o cheiro de cadeia como um fi m em si mesmo ver Loïc Wacquant Punir os pobres cit p 296 Para o teatro do sofrimento penal onde se pune apenas para punir ver a entrevista do mesmo Wacquant no fecho da primeira edição de Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos Rio de Janeiro Revan 2000 Coleção Pensamento Criminológico v 6 p 144 9 Idem Punir os pobres 3 ed cit p 252 10 A respeito desta outra onda gêmea da punitiva como sugerido ver Sadi Dal Rosso Mais trabalho São Paulo Boitempo 2008 Coleção Mundo do Trabalho O novo tempo do mundo FINALindd 146 O novo tempo do mundo FINALindd 146 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 147 de frente uma espécie de muro de arrimo humano mais decisivo do que as barras inertes de uma cela11 Pois bem a crer no que li tudo se passa como se o poder burocrático prisional funcionando obviamente como um real poder punitivo também operasse de modo a fazêlo cair igualmente sobre as costas quentes de seus assalariados de resto já confrontados no seu dia a dia obrigatoriamente rela cional com uma situação de violência sempre no limite da explosão Quando esta fi nalmente ocorre nos momentos de crise mas não só nessas ocasiões extremas pois é amplo o espectro do trabalho verdadeiramente atroz de vigiar e punir e zelosamente ainda por cima pois até nesse último círculo há ainda quem preze o trabalho benfeito e reconhecido como tal o trabalho desses funcionários da sombra adquire então visibilidade máxima mas justamente como trabalho sujo Pois o trabalho de vigilância sem o qual a contenção é mera força bruta trabalho dos olhos dos ouvidos e do cérebro em extenuante estado de prontidão é por defi nição invisível e como tal desprezado na sua insignifi cância salvo na hora do mal necessário Acresce que o trabalho real de conter e vigiar como ocorre de resto com o real do trabalho qualquer que ele seja é uma atividade arriscada também pela iminência constante do excesso ao contornar o formalismo dos protocolos do trabalho prescrito Noutras palavras o trabalho sujo delegado tacitamente aos subalternos uma vez encerrado vira incidente para o qual se procura então um culpado entre os suspeitos de sempre o elo mais fraco na organização do trabalho no interior do aparelho penitenciário funcionando nesses momentos tal qual um sistema judiciário nesse caso uma gestão por inquéritos disciplinares distribuí dos a torto e a direito Assim ao forte sentimento de medo que vulnerabiliza de partida os trabalhadores do sistema vêm se juntar muita raiva e rancor não sendo pequena a dose diária de injustiça e humilhação reservada a essa outra metade da ralé prisional A virada punitiva não poderia ser mais completa 4 Passemos então ao dispositivo de confi namento e estocagem 142 mil metros quadrados alinhados em 4 hectares em pleno coração da cidade o maior estabelecimento de detenção do mundo como gostam de se 11 Lagent correctionnel ou le surveillant surveillé cuja consulta me foi sugerida pelo pesquisador Luciano Pereira O novo tempo do mundo FINALindd 147 O novo tempo do mundo FINALindd 147 10042014 152751 10042014 152751 148 O novo tempo do mundo vangloriar seus responsáveis compreendendo um quartel de alta segu rança um centro de recepção e seleção de novos detentos etc Com 2400 funcionários Wacquant compara o conjunto a uma fábrica gigantesca cuja matériaprima e cujo produto manufaturado seriam os corpos dos detentos Mas a analogia fordista fi ca por aí Embora se trate ainda de uma instituição completa e austera ela é tudo menos uma fábrica de trabalho disciplinado dos velhos tempos pois o trabalho penal quando existe não desempenha nenhuma missão econômica positiva de recrutamento e disciplinamento de uma mão de obra ativa embora seja crescente a pressão fi nanceira re duzir a fatura carcerária e ideológica para reintroduzir o assalariamento desqualifi cado de massa em empresas privadas que operam no interior das prisões permitindo além do mais estender aos presos pobres a obrigação do workfare hoje imposto aos pobres livres como norma de cidadania12 Prevalece todavia a escalada punitiva da mera estocagem de toda uma categoria sacrifi cial da população pois os detentos são o grupo pária entre os párias que pode ser vilipendiada e humilhada impunemente13 E a essa massa exalando o odor repugnante da derrota da vida fracassada e do atraso14 precisa ser administrado inclusive no sentido imperativo de ingestão de um fármaco maléfi co o cheiro social específi co da cadeia cuja impregnação se deve ao funcionamento peculiar de uma outra usina contemporânea especializada no tratamento de detritos sociais15 pois nessas usinas de remoção do refugo humano16 até a tarefa diária de acolher criar e colocar em circulação em princípio o mais rapidamente possível todo esse entulho subproletário assume uma inédita dimensão punitiva altamente reveladora do atual curso do mundo em regime de urgência permanente e justamente no teor intransitivo que estamos vendo punir por punir e nada mais simplesmente para fazer mal e quanto mais melhor 12 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 349 Para a descrição do funcionamento das Twin Towers a seguir ver p 31320 13 Ibidem p 312 14 Nas palavras de Zygmunt Bauman a cuja voz no capítulo logo voltaremos Globali zação as consequências humanas trad Marcus Penchel Rio de Janeiro Jorge Zahar 1999 p 129 15 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 250 16 Outra vez Bauman Vidas desperdiçadas trad Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Jorge Zahar 2005 O novo tempo do mundo FINALindd 148 O novo tempo do mundo FINALindd 148 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 149 Por falar em circulação Wacquant assinala a existência de um viaduto com duzentos metros de extensão que liga o centro de seleção à estação rodoviária encravada nas entranhas do edifício onde detentos chegam continuamente de ônibus que descarregam sua carga de pescado noite e dia A Los Angeles County Jail possui o maior parque público para ônibus de todos os Estados Unidos indispensável ao transporte dessas dezenas de milhares de internos Um interminável labirinto de corredores cegos de paredes nuas conecta as diferentes partes do complexo17 O processo punitivo principia pela peregrinação expiatória através dessa malha inextricável para atingir seu primeiro auge num centro ciclópico de recepção e triagem 14 mil metros quadrados distribuídos por dois andares mais de duas dezenas de guichês dotados cada um de uma sala de espera com capacidade para cerca de 50 pessoas O que se faz circular no coração desse labirinto é um imenso coágulo particularmente cruel o resumo exato do tempo morto destilado por uma virada punitiva sem outro fi m que o agravamento do torniquete a interminável volta de um único parafuso o da espera e não se trata apenas da imemorial e interminável contagem dos dias passados atrás das grades de uma prisão Sendo no entanto a mesma agora a espera é outra e tão disseminada quanto a onda punitiva que lhe redefi niu o caráter por assim dizer um compasso de espera mundial Sentados em um pequeno tamborete metálico os acusados declamam seu horsepower identidade altura peso sinais particulares endereço apelidos e antecedentes judiciários e penitenciários num microfone que os liga à funcionária do registro sentada pouco acima deles e por trás de uma vidraça blindada E eles esperam e esperam três horas aqui seis acolá mais quatro nessa outra etapa não menos de duas horas Na realidade vão passar de doze a vinte e quatro horas muitas vezes mais enquanto esperam dormem no chão ou nos bancos de metal das salas de espera sob o neon e a luz gritante das televisões que funcionam o tempo todo para pacifi car o cardume em trânsito18 O grifo obviamente é meu tamanho o inusitado da situação ou sua estranha familiaridade daí passar despercebida essa cifra temporal defi nidora do hiperencarceramento como armazenagem por simples empilhamento do que se pesca nas ruas Por contraste um relato pitoresco talvez nos ponha 17 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 31920 18 Ibidem p 315 O novo tempo do mundo FINALindd 149 O novo tempo do mundo FINALindd 149 10042014 152751 10042014 152751 150 O novo tempo do mundo na pista Estudando a gênese e expansão dessa infl ação penitenciária Nils Christie conta que na pequena Noruega dos anos 1980 para os 1990 as prisões começaram a sofrer uma superlotação tão inusitada que as autoridades resolveram para espanto geral enfi leirar os excedentes numa lista de espera isso mesmo condenados a uma pena de prisão os sentenciados esperavam a vez geralmente em casa por falta de vaga Não se trata em absoluto de uma pena alternativa mas literalmente de uma fi la de espera Mais uma de resto duplamente disciplinar Se todo mundo hoje em dia se arrasta em uma fi la de espera por que não especialmente os destinados a mofar em uma cela Dupla descoberta propiciada por um engarrafamento da onda punitiva que se aproximava daquela pacata província aliás não tão pacata assim se pensarmos em Ibsen e nos abismos da colaboração nos tempos do Terceiro Reich Por um lado primeira dissonância a percepção de que os futuros sequestrados eram pessoas comuns e não selvagens perigosos ou monstros por outro contrabalançando aquela efêmera quebra de estereó tipo alguém numa fi la de espera antes mesmo de ser enjaulado já não tinha mais futuro e mais fazia ainda do lado de fora a experiência do que signifi ca esperar por um outro tempo de espera19 No fi m da década de 1990 esse expediente estava quase inteiramente desativado mas não a revelação num breve relance durante a releitura de uma passagem aparentemente anódina do livro de Wacquant de que fazer esperar e punir não só rimam no universo das disciplinas redescobertas por Foucault mas sobretudo que fazer esperar já é punir na exata medida que não se pune mais para corrigir um desvio mas para agravar um estado indefi nido de expiação e contenção No limite contenção do próprio tempo é sabido que a ausência de tempo que corrói o transcorrer de uma vida em reclusão carcerária mina e destrói o sistema imunológico além de gerar transtornos neurológicos e psíquicos imprevisíveis20 Mas já pelo efeito destrutivo desse dano colateral se pode vis lumbrar o papel central da microfísica da espera na virada punitiva podendo 19 Nils Christie Crime Control as Industry Towards Gulags Western Style 3 ed Londres Routledge 2000 p 445 20 Como lembrado meio que de passagem por Lola Aniyar de Castro junto com outros efeitos patogênicos do espaço e do tempo suspensos pela vida em reclusão efeitos que constituem a essência do próprio confi namento pois o foco do artigo é sobretudo o extermínio intracarcerário nas instituições de sequestro em nosso continente Ver a contribuição da autora no capítulo Matar com a prisão o paraíso legal e o inferno carcerário os estabelecimentos concordes seguros e capazes em O novo tempo do mundo FINALindd 150 O novo tempo do mundo FINALindd 150 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 151 ser letal o tempo morto é mais do que uma metáfora é o tempo próprio da epidemia punitiva que contamina todos os cantos escuros do mundo e os não tão escuros assim que estão sendo remodelados pelo novo governo do capital Escuros e subalternos pois a imposição da espera nos labirintos do sistema penal afeta a base e não o topo da pirâmide social Numa palavra o tempo morto da espera punitiva é uma questão de classe De tal limiar subterrâneo onde vivem em estado de latência os hóspedes dessas ratoeiras prisionais de Los Angeles irradia para as zonas de luz e opulência das classes confortáveis onde a simples espera é então de fato ressentida como um castigo imerecido Logo veremos por que Por enquanto uma outra amostra da matriz punitiva da espera como dis ciplina social Tratando da penalização da assistência pública redirecionada pelo workfare para a imposição coordenada do subemprego assim como se pune para punir o dever do trabalho pelo trabalho é uma evidência que tampouco se discute muito menos a acumulação pela acumulação como todas as demais tautologias constitutivas de uma engrenagem cega como o capitalismo Wacquant observa como as agências de assistência reformadas pelas abordagens do workfare tomaram emprestadas as técnicas de gestão de pessoal usadas na instituição correcional monitoramento cerrado de terminação de um local preciso de trabalho registro detalhado das rotinas e especifi cação de tarefas rígido sistema de sanções graduais etc21 O pro cesso de penalização convergente entre os dois braços do Estado é tal que a semelhança física do posto de assistência pósreforma com as instalações prisionais é chocante Não se trata apenas dos portões dos guardas dos sinais de advertência ou mesmo das cadeiras de plástico cor de laranja das salas de espera ou dos pisos de linóleo de um cinzasujo institucional tratase também das condições de superlotação dos sinais de comando a voz do sistema de som interno o posto de atendimento tem ainda algo de prisão provocado pela sucessão de portas fechadas aparentemente sem fi m cada uma delas com seu próprio número etc22 Pedro Abramovay e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento Rio de Janeiro Revan 2010 p 99 21 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 1823 22 Nesse passo nosso autor está transcrevendo observações de Sharon Hays Flat Broke with Children Ibidem p 183 O novo tempo do mundo FINALindd 151 O novo tempo do mundo FINALindd 151 10042014 152751 10042014 152751 152 O novo tempo do mundo Como a nova lei que generalizou o workfare eliminou garantias legais maximizou a autoridade e severidade dos funcionários prossegue Wacquant a atmosfera de prisão se intensifi cou num posto de assistência saturado de desconfi ança confusão e medo Tudo somado impregnando todo o reper tório de gestos e espaços desqualifi cados a mesma experiência opressiva de uma grande espera por coisa nenhuma uma outra zona de suspensão do tempo algo como uma sala de espera absoluta com o avisocomando Espere Aqui clinhotando indefi nidamente como um falso alarme Alertados por um sexto sentido de classe compreendese o calafrio que estremece os de cima quando lhes pedem para esperar um pouquinho além da conta como se uma voz ousasse lhes ordenar ponhase no seu lugar e limitese a esperar coisa que obviamente cheira a casa de detenção 5 Nos tempos que correm sem trocadilho a espera tornouse uma pu nição porque imobiliza E pelas mesmas razões a saber aceleração social máxima conforme o aumento exponencial da velocidade de rotação do capital intensifi ca a exploração do trabalho que por sua vez se fragmenta e dessocializa a mobilidade na boa observação de Zygmunt Bauman secundando a análise clássica de David Harvey acerca da compressão espaçotemporal que a assim chamada acumulação fl exível teria levado ao ponto extremo de anulação de uma e outra dimensão tornouse o fator de estratifi cação mais poderoso e mais cobiçado a matéria de que são feitas e refeitas diariamente as novas hierarquias sociais políticas econômicas e culturais23 A prova de que a velocidade é antes de tudo um fenômeno político como mostrou o estudo pioneiro de Paul Virilio24 pode ser encontrada na polarização social que ela produz reinventando verdadeiras aristocracias da velocidade cuja lógica da corrida que no fundo é a lógica mesma da guerra através da qual a dominação se exerce por meio do controle do movimento da supremacia do não lugar sobre o lugar25 23 Zygmunt Bauman Globalização cit p 16 24 Paul Virilio Velocidade e política trad Celso Mauro Paciornik pref Laymert Garcia dos Santos São Paulo Estação Liberdade 1996 25 Ver a respeito o esclarecedor prefácio de Laymert Garcia dos Santos num tempo em que os argumentos visionários de Virilio ainda passavam em brancas nuvens Ibidem p 915 O novo tempo do mundo FINALindd 152 O novo tempo do mundo FINALindd 152 10042014 152751 10042014 152751 Zonas de espera 153 prosseguirá por outros meios no tempo instantâneo em que se desloca o capital fi ctício autonomizado O poder foi assim se tornando imponde rável e suas elites móveis elites da mobilidade acrescenta Bauman26 A entronização social do instantâneo corre por esse trilho Contornando o tempo congelado da rotina fordista congelado visto pelo ângulo do capital que não podia então evitar o cara a cara com a força de trabalho plantada no chão da fábrica agora detém os controles do mando quem se move e age com maior rapidez quem mais se aproxima do momentâneo do movimento ainda na formulação de Bauman e no lado oposto da equação contemporânea estão as pessoas que não podem se mover tão rápido e de modo ainda mais claro a categoria das pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem as que obedecem A dominação consiste em nossa própria capacidade de esca par de nos desengajarmos de estar em outro lugar e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito e ao mesmo tempo de destituir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar ou de limitar seus movimentos ou ainda tornálos mais lentos27 26 Também denominadas elites cinéticas Ao que parece a expressão foi pescada pelo arquiteto Rem Koolhaas nas águas turvas do fi lósofo Peter Sloterdijk especulando acerca do estatuto ontológico dos atores da hiperesfera plasmada pela globalização uma hiperesfera conectada de terminais aéreos e ferroviários por onde trafega por acessos exclusivos uma classe de excelência é claro que tudo isso enunciado na dicção do desprezo nietzschiano pelo Último Homem Cf p ex Peter Sloterdijk No mesmo barco ensaio sobre a hiperpolítica trad Claudia Cavalcanti São Paulo Estação Liberdade 1999 p 601 O que importa mesmo destacar são as formas arcaicas de dominação e desigualdade que retornam por meio das tecnologias de informação e comunicação e da correspondente segmentação privatizante das infraestruturas em rede cujo futuro de privilégios encapsulados em todo tipo de enclaves elas tornaram rapidamente uma realidade por assim dizer utópica só que no caso da instantanei dade Ver a propósito uma tradução para o plano das infraestruturas urbanas em rede da tese já mencionada de David Harvey segundo a qual a mobilidade se tornou a principal arena em que se trava a luta por controle e poder Stephen Graham e Simon Marvin Splintering Urbanism Networked Infrastructures Technological Mobili ties and the Urban Condition Londres Routledge 2001 No que concerne às elites cinéticas ver p 364 27 Zygmunt Bauman Modernidade líquida trad Plínio Dentzien Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 p 139 O novo tempo do mundo FINALindd 153 O novo tempo do mundo FINALindd 153 10042014 152752 10042014 152752 154 O novo tempo do mundo 6 Sendo esse o ponto nevrálgico do confl ito deve necessariamente soar como sarcasmo involuntário a vasta literatura da autoajuda ao estudo sociológico padrão dirigida aos afortunados que ainda podem se dar ao luxo de viver em câmara lenta reduzir a marcha e oferecerse impunemente o refi nado prazer de uma temporada com o relógio na gaveta geralmente numa residência secundária especialmente planejada para tal fi m o tea tro privado do tempo lento de volta ao comando Daí a forte impressão de gentrifi cation nas versões institucionais dessa mesma regalia do tempo desacelerado como no caso da rede Cittaslow mesmo se inspirando na percepção correta de que a cidade enquanto máquina de mobilidade é um aparato dualizador por excelência condenando os retardatários como veremos ao sofrimento de um verdadeiro êxodo impulsionados pela força coercitiva da mobilidade dos ganhadores28 Vão na mesma direção os apelos edifi cantes da Unesco em favor da reabilitação do tempo longo ofuscado pela miopia temporal de nossa época29 Refl etindo sobre o futuro do luxo até mesmo a perspicácia de um Enzensberger resvala nesta armadilha dos happy few a aristocracia da ve locidade há pouco mencionada30 É verdade que o luxo hoje abandonou o excesso e aspira ao necessário como observa Hans Magnus Mas não é menos verdade que o excesso hoje recai sobre as massas bem ou mal trabalhadoras e consumidoras idem de sorte que vive no luxo quem pode desviar para os outros uma tal sobrecarga conduzindo com sucesso uma outra estratégia de evitação De novo minimalismo e renúncia entram em cena desta vez como marcas da distinção envolvidas no acesso a bens escassos Numa virada histórica de aceleração máxima não espanta que o tempo assim como os demais prérequisitos elementares da vida como espaço sossego atenção etc redescobertos ao término de seu périplo tenha se tornado o mais importante 28 Max Rousseau Le mouvement des immobiles Le Monde Diplomatique n 688 jul 2011 Para um retrato expressivo do modo pelo qual este frenesi de mobilidade afeta as populações saturadas pelos fl uxos que no limite as imobilizam ver Vincent Doumayrou Veuton singapouriser la Flandre Le Monde Diplomatique n 673 abr 2010 p 201 29 Jérôme Bindé Pour une éthique du futur Les Cahiers du MURS n 35 abr 1998 30 Hans Magnus Enzensberger Luxo passado presente futuro em Ziguezague trad Marcos José da Cunha Rio de Janeiro Imago 2003 O novo tempo do mundo FINALindd 154 O novo tempo do mundo FINALindd 154 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 155 dos ativos de luxo Todavia não é preciso quebrar a cabeça para atinar com a origem social dos seus consumidores exclusivos por mais que aleguem ser os que menos podem dispor do seu próprio tempo pois afi nal são os maiores prisioneiros de suas agendas que se estendem até por alguns anos no futuro como ressalta e sublinha o próprio Enzensberger comentando o alcance de seu achado para concluir no caso do espaço por exemplo outro recurso natural engarrafado pelo excesso de gente e bugigangas por uma boutade minimalista que cheira a guia de elegância e decoração de interiores Hoje um aposento parece luxuoso quando está vazio O elogio da lentidão não é necessariamente um gênero apologético nele incluído tanto a redenção pela bicicleta como o temps darrêt de uma sessão de psicanálise embora cultivado num terreno escorregadio Num momento de desatenção até mesmo alguém tão insuspeito quanto Robert Kurz cede à tentação e reativa o anacronismo social em que esbarram as considerações de Enzensberger sobre quem pode ou não se dar ao luxo de se livrar da agenda na economia contemporânea do tempo quem afi nal pode se dar ao luxo de não ter pressa como o fumante inveterado de Oscar Wilde que não se importava em morrer aos poucos pois não tinha pressa Por isso bate na mesma tecla do uso luxuoso do tempo coisa que nenhum executivo mo derno poderia permitirse mesmo ganhando milhões por ano e dirigindo o carro mais rápido remetendo ao célebre relato do escritor Johann Gottfried Seume 1802 sobre seu passeio a pé da Saxônia até a Sicília um manifesto ambulante contra a aceleração permanente de todos os processos da vida num momento em que a mobilidade tecnológica ainda nem chegara ao patamar da locomotiva a vapor O exemplo sem dúvida é esplêndido como também a conclusão a que chegara Th oreau diante dos novos meios de locomoção e transporte a saber que anda mais rápido quem anda a pé31 O curioso nisso tudo é que Marx também sucumbiu à ideologia da aceleração ao comparar as revoluções modernas à locomotiva da história Sempre à caça da estupidez progressista Flaubert não sossegou até botar um Cristo socialista dirigindo uma locomotiva numa cena de A educação sentimental Todavia mesmo enredado no imaginário do século burguês Marx estava dizendo o mesmo que Th oreau que a humanidade sairia mais rápido da préhistória e nisso 31 Robert Kurz Sinal verde para o caos da crise em Os últimos combates Petrópolis Vozes 1997 Coleção Zero à Esquerda p 3468 São Paulo Nova Alexandria 2009 N E O novo tempo do mundo FINALindd 155 O novo tempo do mundo FINALindd 155 10042014 152752 10042014 152752 156 O novo tempo do mundo toda pressa era pouca andando a pé com a classe operária agora a revolução é que é um bichinho cavador e paciente Seria preciso então acrescentar que o problema não é o luxo de se pôr na contramão de uma superabundância que sufoca mas de saber a hora em que a urgência muda de sentido e com ela todo o sentido da espera Afi nal quando é urgente esperar 32 A fi losofi a crítica do andar preconizada por Seume cujo Passeio a Siracusa obviamente não li era por certo mais do que contemporânea das meditações de Hegel sobre a História a qual podia sim se dar ao supremo luxo de andar a pé pois a Razão e uma razão astuciosa que a conduzia dispunha de uma paciência infi nita Não é mais o caso nem de KurzEnzensberger nem do executivo engolido pela agenda consumida por eventos bestamente inadiáveis 7 Cada vez mais lentos até a imobilidade total nas zonas de espera que são as prisões submersas pela maré punitiva A grande espera de hoje é assim a da imobilidade forçada necessariamente punitiva pois estar proibido de moverse é uma fonte inesgotável de dor incapacidade e impotência33 Por isso o que fazem os internos de uma supermax como a prisão de Pelican Bay em suas celas simplesmente não importa como ela já não foi mais projetada como laboratório de reabilitação por meio do trabalho deliberadamente redundante o que importa continua Bauman é que fi quem ali34 e esperem indefi nidamente Quando o xerife Apaio declara e denuncia a natureza de seu trabalho Quero que eles sofram sabe do que fala quero vêlos imobili zados por uma espera sem fi m nem propósito E sabe em nome de quem fala A imobilização é o destino que as pessoas perseguidas pelo medo da própria imobilização desejam naturalmente e exigem para aqueles que elas temem e julgam merecedores de uma dura e cruel punição Outras formas de dissuasão e retribuição parecem comparativamente de uma clemência lamentável inadequada e inefi caz isto é indolor35 32 Mais adiante veremos de perto como JeanFrançois Bayart responde a essa pergunta em Le gouvernement du monde une critique politique de la globalisation Paris Fayard 2004 33 Como lembra ainda o mesmo Bauman Globalização cit p 130 34 Ibidem p 121 35 Ibidem p 130 O novo tempo do mundo FINALindd 156 O novo tempo do mundo FINALindd 156 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 157 Punir os pobres com a pena cruel dessa espera imobilizadora tanto nas salas de espera social em que se encontram confi nados os benefi ciários humilhados e explorados do workfare quanto a ralé proletária aspirada pelo sorvedouro prisional para não mencionar ainda a legião dos condenados a mofar nas demais zonas liminares de espera coercitiva que o empareda mento global vai multiplicando é portanto também um impulso de retaliação automática ditado por camadas sociais a tal ponto enroscadas nas malhas do privilégio instantaneísta do rentismo e do presentismo que não concebem suplício maior para elas inteiramente simbólico por mais que padeçam nas mãos das ideologias desenhadas para poupar tempo pois não conseguem por assim dizer gastálo36 no presente prolongado37 em que circulam do que a até ontem corriqueira experiência da espera Embora não seja por certo a mesma experiência de classe sem nem mesmo reparar suprema distração grand seigneur que as classes puníveis com a pena da espera indefi nida não têm problemas de agenda38 em função dos quais costumam acontecer os engarrafamentos e as explosões de im paciência de nossas sociedades da satisfação imediata39 É bem verdade que os encastelados nas fortalezas oligárquicas sempre poderão alegar a simetria da apropriação direta no desatino de se matar por um tênis ou coisa que o valha40 Se ainda houvesse dúvida a respeito da matriz prática de toda a atual tecnologia de contração do tempo no enquadramento dos indivíduos pela lógica do delay zero as novas estratégias de gestão e subordinação do trabalho pela mobilização total dos implicados dentro e fora de seu mundo bastaria 36 Th omas Hylland Eriksen Tyranny of the Moment Fast and Slow Time in the Informa tion Age Londres Pluto 2001 37 Na fórmula sugerida por Helga Nowotny em Le temps à soi genèse et structuration dun sentiment du temps Paris Maison des Sciences de lHomme 1992 cujo argumento examino em O novo tempo do mundo publicado na p 2797 deste volume 38 JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas une mutation de temporalités Paris PUF 2004 Sociologie dAujourdHui 39 Zaki Laïdi Le sacre du présent Paris Flammarion 2000 40 Assim irmanados no mesmo estereótipo oligarcas bem pensantes e esquerda punitiva aos quais posso apenas recomendar o artigo de Cecília Coimbra Modalidades de aprisionamento processos de subjetivação contemporâneos e poder punitivo no mencionado volume coletivo Pedro Vieira e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento cit O novo tempo do mundo FINALindd 157 O novo tempo do mundo FINALindd 157 10042014 152752 10042014 152752 158 O novo tempo do mundo consultar o amplo inventário de Nicole Aubert41 Mais uma vez a virada punitiva que acompanha um novo regime de acumulação cuja associação com a regulação coercitiva do trabalho dos pobres Wacquant foi o primeiro a ressaltar com o vigor que se sabe tem a ver com esse desígnio de recentrar o governo de populações supostamente lentas no rumo de uma outra cele ridade diversa das cadências do antigo regime fordista A pressão temporal permanente agora é outra por isso se pune exemplarmente quando se impõe o sem sentido da pura perda de tempo aos perdedores aprisionados uma vez que o fantasma dos ativos é a impossibilidade absoluta de perder tempo Duas palavras sobre a expressão sociedade da satisfação imediata Ela se deve ao sociólogo alemão Gerhard Schulze ao identifi car na matriz contem porânea da sociedade atual num estudo publicado em 1992 o que chamou de Erlebnisgesellschaft na qual justamente a supremacia da experiên cia vivida ou melhor vivência que a rigor de experiência não tem nada provoca uma desarticulação explosiva da noção social de limite No comentário de Zaki Laïdi tratase de um aumento exponencial de tal ordem das opções de vida e escolha disponíveis que enreda o indivíduo numa lógica de escolhas incessantes a serem feitas ato contínuo num mar de possibilidades que o submerge Ocorre que essas possibilidades já se encon tram num regime de livre acesso elas simplesmente estão aí E portanto elas não têm mais nada a ver com um horizonte42 O grifo é meu só para lembrar que essa noção de horizonte sobretudo quando associada à ideia de espera na formulação hoje paradigmática de Reinhart Koselleck43 nos levaria longe precisamente por estar no coração de nosso argumento porém com o sinal trocado pois as zonas de espera que estamos começando a analisar e começando pelo grande encarceramento segundo Wacquant se defi nem justamente por esse apagamento do hori zonte Trocado em miúdos nos seguintes termos ainda pelo mesmo teórico do presentismo contemporâneo variando por sua vez o esquema básico de Koselleck segundo o qual a espera ou a expectativa Erwartung é antes de 41 Com a colaboração de Christophe RouxDufort Le culte de lurgence la société malade du temps Paris Flammarion 2003 42 Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 115 43 Por exemplo em Futuro passado contribuição à semântica dos tempos históricos trad Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira Rio de Janeiro ContrapontoPUC 2006 O novo tempo do mundo FINALindd 158 O novo tempo do mundo FINALindd 158 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 159 tudo um horizonte e como tal se afasta à medida que avançamos e assim se situa muito além de toda a experiência articulada em contraponto como um campo presente do qual aquele horizonte projetivo se distancia à medida que a história ela mesma se temporaliza conforme se cristaliza por sua vez o sentimento moderno por excelência de que o tempo vai para algum lugar e por isso desde então a humanidade sempre espera por alguma coisa para falar como o Galileu de Brecht muito além do real disponível na vivência imediata Por onde se vê que o atualismo de hoje seria portanto mais bem caracterizado como uma desarticulação tal dessas duas dimensões que o presente passa a concentrar toda a sobrecarga de expectativa dirigida noutras épocas ao futuro de sorte que todo chamado à ação responde a uma injunção imediata do instante responde a uma urgência qualquer que por sua vez torna dramática toda conjuntura44 por mais frívolo que possa parecer o apelo presentista atual seu protagonista é um personagem submerso por obrigações temporais exigíveis à queimaroupa45 Pois relembrados os termos nos quais Koselleck redefi niu nossa com preensão corrente da espera e com ela a noção básica de experiência da história cuja mutação radical é justamente a cifra do descontrole contem porâneo voltemos ao modelo da sociedade da satisfação imediata retra duzida por Zaki Laïdi Quer dizer ao eclipse do horizonte de expectativa à medida que se comprime até seu grau zero a distância simbólica entre a espera e o vivido nesse momento quando ancoramos nossas esperas num campo de experiência restrito à proximidade de vida o mundo desaparece como perspectiva e o Eu deixa de ser horizonte para se converter no núcleo duro das condições de possibilidade da experiência Fórmula encantatória kantiana à parte estamos falando do mesmo Eu narcisista e sitiado diagnos ticado por Christopher Lasch ao término dos assim chamados trinta anos gloriosos do pósguerra46 E como logo nos confrontaremos com a fi gura correlata da impaciência não vejo melhor ilustração do exposto acerca do afunilamento temporal característico de uma sociedade centrada na vivência do que o retrato do adolescente prestes a cair em depressão uma crise 44 François Ost Le temps du droit Paris Odile Jacob 1999 p 277 45 Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 8 46 Christopher Lasch O mínimo Eu sobrevivência psíquica em tempos difíceis trad João Roberto Martins Filho São Paulo Brasiliense 1986 p 83 O novo tempo do mundo FINALindd 159 O novo tempo do mundo FINALindd 159 10042014 152752 10042014 152752 160 O novo tempo do mundo inconveniente a ser medicada com urgência para que o garoto ou a garota volte a participar da festa dos incluídos esboçado por Maria Rita Kehl A adolescência do terceiro milênio não se parece mais com a travessia do terreno desconhecido que o sujeito empreende para se reencontrar como o jovem Sidarta personagem do livro de cabeceira de trinta anos atrás A adolescência contemporânea não é uma passagem é uma chegada abrupta talvez precoce em um lugar privilegiado que os meninos e as meninas não tiveram que conquistar47 A festa dos incluídos é uma outra zona de espera Só que positivada pois afi nal se trata de incluídos e assim sendo nessa outra zona o hori zonte de espera se dissipou de uma vez por todas num presente absoluto Na festa dos incluídos um dos grandes laboratórios da euforia perpétua a rigor nada acontece nela não existem atos apenas cenas no juízo fulmi nante de Gay Talese apenas inaugurada a Era da Festa nos Estados Unidos48 Num estudo sobre o transe festivo em que transcorre o tempo infi nito da conjunção noturna de química música e computador Tales AbSáber fecha o argumento uma geração depois do consumo de mercadorias orgiásticas num momento de auge do que se poderia chamar de boêmia a favor desde que ela se industrializou e digitalizou mostrando que com efeito festeja se o fato de não haver nada a festejar49 O alívio enfi m de uma liberação verdadeiramente distópica Assim tudo se passa ao se celebrar a dimensão radicalmente antiutópica de sua cultura aliás fabricada sur place como numa esteira fastfood como se o músico techno e seu povo da noite esti vessem por sua vez trocando em miúdos bem palpáveis o axioma fi losófi co básico do presentismo contemporâneo a grande mutação histórica de nosso tempo é a experiência nova e paradoxal ela mesma histórica da anulação da expectativa de qualquer mudança50 Se avançarmos um pouco mais na companhia de Tales depararemos com o que se poderia chamar enfi m de 47 Maria Rita Kehl Depressão e imagem do novo mundo em Adauto Novaes org Mutações ensaios sobre as novas confi gurações do mundo Rio de JaneiroSão Paulo AgirSESC 2008 p 301 48 Gay Talese A festa acabou em Fama e anonimato trad Luciano Vieira Machado São Paulo Companhia das Letras 2004 p 4357 49 Tales AbSáber A música do tempo infi nito São Paulo Cosac Naify 2012 50 Vejase o comentário de Franklin Leopoldo e Silva Descontrole do tempo histórico e banalização da experiência em Adauto Novaes org Mutações cit O novo tempo do mundo FINALindd 160 O novo tempo do mundo FINALindd 160 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 161 zona cinzenta da onda punitiva contemporânea no caso a suspensão do tempo nessas zonas liberadas por uma noite sem fi m reunindo em torno de desejos hipergratifi cados clubbers empresários viajantes hippies criminosos e mú sicos na enumeração caótica de um ideólogo da cultura ecstasy ela mesma um ramo do juvenilismo que desbancou regras em nome de opções Estou me referindo a sua menção e seu comentário de um artigo em que Žižek aproxima as patéticas manifestações literárias de um condottiere de limpezas étnicas como o líder nacionalista sérvio Radovan Karadžić nas quais incita seus súditos a se jogarem fundo nas bebidas fortes e na inclemência do universo infrapolítico radical no fi lme de Kusturica Underground mentiras de guerra compondo ambos uma constelação precisa de transe destrutivo permanente e apelos à brutalidade obscena de um superego inimigo de todas as proibições a encenação fantasmática da crueldade expiatória nas guerras de desintegração da exIugoslávia Tal é a profunda política da maldade nesse mundo noturno da festa infi nita nele em suma não se deve esperar nada51 Nessa zona de espera singular o medo de parar que nela impera não se deve portanto exclusivamente ao efeito alucinatório da vida sob drogadição Tudo isso dito nunca será demais relembrar que toda essa confi guração de velocidade aceleração e satisfação imediata exponenciada pela intensifi cação presentista da experiência vivida deita raízes na préhistória fordista do nosso mundo como atesta a associação de automóvel e fastfood no capi talismo do imediato pósguerra estudada por Isleide Fontenelle na primeira parte de seu livro enciclopédico sobre o valor da marca McDonalds no caso Naqueles anos recorda um historiador ofi cial do McDonalds o país já estava mais rápido mais móvel e mais orientado para a conveniência e a gratifi cação imediatas52 O velho superego punitivo já começava a soltar as amarras e levantar voo Num país com pressa de construir o futuro na alusão sarcástica de Don DeLillo citado em epígrafe era de se esperar mais cedo ou mais tarde que os vencedores nessa corrida principiassem a organizar a punição dos retardatários imobilizando de vez os que já perdiam velocidade 51 Tales AbSáber A música do tempo infi nito cit p 26 52 John Love McDonalds a verdadeira história do sucesso trad Davi Soares e Aurea Weissemberg 5 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1996 citado em Isleide Arruda Fontenelle O nome da marca McDonalds fetichismo e cultura descartável São Paulo Boitempo 2002 p 60 O novo tempo do mundo FINALindd 161 O novo tempo do mundo FINALindd 161 10042014 152752 10042014 152752 162 O novo tempo do mundo Seja como for o fato é que uma tremenda mutação temporal virou de pontacabeça o mundo que o capitalismo vencedor está reorganizando e governando Mutação cuja fratura exposta se encontra justamente na virada punitiva operada pelo estado bifurcado estudado por Wacquant Daí as duas esperas uma disciplinadora da insegurança social alimentada pela inquietação do trabalho desqualifi cado outra envenenando a euforia perpétua53 das novas classes confortáveis que o capital costuma acariciar com uma mão e infernizar com a outra 8 Sendo assim a aceleração social do tempo uma evidência que se alastra pelo conjunto de sociedades cada vez mais antagônicas embora gover nadas pela fabricação de consensos a maré punitiva que a acompanha se abate necessariamente sob a forma de imobilizações daí o real sentimento de tempo morto que essa onda de choque dissemina em sua passagem Literalmente um contratempo Que se traduz como estamos vendo por uma inédita e massiva experiência negativa da espera Na verdade duas esperas como se disse uma experimentada no polo dominante como um estorvo cuja eliminação também se compra e outra na base comprimida da pirâmide que não obstante a sustenta como um surplus de sofrimento que faz toda a diferença E no entanto não é menos evidente o paradoxo de que ambos os polos são afetados por uma mesma anulação de expec tativas como também fi cou sugerido Retomemos o argumento pela exasperação dos de cima a favor dos quais sopra o vento punitivo E recomecemos para variar pelo mais característico dispositivo da atual contração espaçotemporal o aeroporto e particular mente na condição de encruzilhada internacional pois o elenco de obstáculos e barreiras que estamos assinalando ao fi m e ao cabo é antes de tudo da ordem da fronteira seja ela política social jurídica etc É que por mais insólito que pareça cada vez mais avião rima com espera Pois foi de tanto fazer fi la em aeroporto até o ponto de ebulição que o africanista mas não só JeanFrançois Bayart chegou à conclusão também ela paradoxal de que 53 Para citar novamente o título mas apenas ele de Pascal Bruckner A euforia perpétua ensaio sobre o dever de felicidade trad Rejane Janowitzer São Paulo Difel 2002 O novo tempo do mundo FINALindd 162 O novo tempo do mundo FINALindd 162 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 163 num mundo globalizado pelo capital a única urgência é a espera54 Porém uma espera muito específi ca do momento atual da mundialização enquanto o capital fl ui a força de trabalho das populações em peregrinação perpétua é compartimentada e comprimida por uma gama variada de coerções A mais sutil e onipresente de todas elas a espera quer dizer o disciplinamento pela espera Ela rege inclusive toda uma técnica do corpo numa hora histórica em que outra vez as pessoas são imobilizadas em colunas por um postas em seu lugar em suma Daí a novidade tremenda do dispositivo McDonalds estudado por Isleide Fontenelle55 fazer fi la para conseguir comida digamos assim numa lanchonete banal deixa de sêlo quando nos damos conta de que isso só ocorria em prisões situações de guerra ou indigência econômica extrema como na Grande Depressão no fi m dos anos 1940 quando os dois irmãos McDonald deram a largada no seu novo negócio estes cenários emergenciais ainda estavam bem vivos na memória dos consumidores e no entanto logo seriam apagados pela aceleração da motorização individual Como relembra Isleide juntando carro e restauração rápida ambos padroni zados e massifi cados na produção e no consumo o fastfood veio responder à pressa urbana de sorte que a rapidez motorizada acabou impondo a anomalia civilizada do paladar homogeneizado Há quem veja nesse fi m de linha o produto da guerra encontrando os precursores do fastfood nos racionamentos do tempo de guerra e nas técnicas de alimentação que forneciam rações para milhões de tropas na Europa Pelo sim pelo não Isleide aproveita a deixa para pôr na roda uma outra questão a nossa no momento algo que hoje parece a coisa mais natural do mundo no ato de comer em restaurantes sic fastfood e que não deixa de ser intrigante para dizer o menos a fi la Segue então a observação que está nos interessando Soldando num bloco só a nova pressa urbana e a fi la que a modula ora acelerando ora retardando dosando a ansiedade dos que esperam dóceis embora impacientes certamente dessa mise au rang generalizada a ex pressão francesa empregada por Bayart é muito mais drástica decorrerão processos inéditos de subjetivação que aliás Isleide começou a repertoriar no último capítulo a começar pelo tipo de sujeito moldado pela cultura do descartável que o fastfood se não inventou entronizou de vez 54 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit 55 Isleide Arruda Fontenelle O nome da marca cit p 85 O novo tempo do mundo FINALindd 163 O novo tempo do mundo FINALindd 163 10042014 152752 10042014 152752 164 O novo tempo do mundo Do mesmo modo as companhias aéreas que também servem sanduíches de fantasia e prometem sensações de leveza e entretenimento a bordo são antes de tudo instituições disciplinares E não só por canalizarem seus passageiros confrontados por fi las intermináveis cancelamentos arbitrá rios explicações de fachada etc mas por exercerem igualmente funções de vigilância das mais anódinas triagens às efetivamente policiais da simples verifi cação de vistos à alimentação de fi chários e cadastros com os dados desse fl uxo perene Com tanto controle e vigilância não surpreende que a infl ação das múltiplas esperas seja ressentida como uma orquestração punitiva Por certo nada literal é claro mas as explosões de cólera sobretudo nas oca siões em que a pane generalizada parece se instalar na imensa sala de espera esparramada por todos os recantos de um terminal aéreo correspondem a um sentimento absurdo de prejuízo desmesurado como a demanda se reveste de urgência crescente toda espera é sofrida como um escândalo in tolerável menos pelo dano real do atraso do que pela afronta lógica causada pelo espetáculo da imobilização no interior de uma máquina de compressão e aceleração do tempo parodiando além do mais as famigeradas fi las para tudo do socialismo real Enquanto esperam e ruminam a frustração alguns fi losofam acerca da degradação da espera rebaixada à condição de mero atraso porém elevada à condição de absurdo ontológico de um lado a impaciência ferve ao ponto da passagem ao ato de outro a nova disciplina metafísica glosa essa derradeira ironia da condição pósmoderna e por aí vamos56 Outros no entanto escapam pelo mercado do bypass coroamento de toda essa engrenagem comercialexistencial Instituída a disciplina trata se de redistribuíla remodelando a escala das superioridades sociais Como lembrado o canto de sereia capitalista dirigido ao outro lado do Muro era a bemaventurança de um mundo sem fi las Porém assim que a vitória do capital reunifi cou o mundo em um mercado só seguiuse um colossal amestramento das populações concernidas em particular assujeitamentos pela espera entre outras tantas tecnologias de exercício privilegiado do poder Ora que não se sujeitar às fi las fosse se transformar em mercadoria nem mesmo o mais arguto crítico do capitalismo foi capaz de prever como observa Luiz Carlos Azenha acerca do mercado americano de compra e 56 Para um breve apanhado dessas distinções espera prosaica numa fi la espera pura quando por exemplo aquilo que deve acontecer está fora de alcance hors de toute attente ver JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas cit p 2123 O novo tempo do mundo FINALindd 164 O novo tempo do mundo FINALindd 164 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 165 venda de tempo economizado57 Numa palavra dos terminais aeroviários e ferroviários à internet faixas exclusivas para quem puder pagar mais Para os demais fi la No entanto quem compra a fuga da disciplina da espera paga o governo com uma mercadoria valiosa como assinalado informações pessoais fornecidas a uma agência encarregada de zelar pela segurança do transporte por sua vez ligada ao onipresente Departamento de Segurança Interna na hora de validar o chip abretesésamo escapase do castigo da fi la ao preço de uma malha de vigilância ainda mais fi na58 Filosofando um pouco digamos que a espera hoje se encontra no coração de uma ontologia muito especial do presente Por contrariar e frear as novas temporalidades do imediato e da urgência a espera tornou se algo que excede os indivíduos qualquer que seja a origem social da pressão que os comprime impondolhes uma provação justamente excessiva Uma espera multiforme e de insólita conformação nos oprime nada poder fazer num momento quando se tem tanta coisa para fazer ou inversamente não saber o que fazer quando não se tem mais nada a fazer o absurdo em pessoa e vivido59 Essa vaga mistura de senso comum e existencialismo requentado não deve todavia nos confundir Bem ou mal descrita o fato é que a orientação espaçotemporal do capitalismo mudou de rumo e ingressou noutra dimensão da experiência da história ou num novo regime de historicidade como preferem dizer alguns historiadores que não por acaso se identifi cam como historiadores do presente sendo que esse novo regime da experiência social do tempo se caracteriza por essa inédita se é que se pode falar assim onipresença do presente60 que todos estão chamando genericamente de Presentismo deslizando de todo modo ao longo do eixo da aceleração e da urgência Contra as quais se 57 Luiz Carlos Azenha A era do privilégio pistas exclusivas nas estradas fi las rápidas nas alfândegas internet superveloz Serviço público também virou mercadoria CartaCapital n 496 21 maio 2008 p 40 58 Nas páginas em que se analisa a expansão do bypassing system nas cidades cabeadas e dualizadas no já citado Splintering Urbanism Graham e Marvin relembram a origem militar do método empregado originalmente em lugares estratégicos submetidos a mecanismos de alta vigilância 59 Traduzindo livremente JeanPierre Boutinet Vers une société des agendas cit p 312 60 François Hartog Régimes dhistoricité présentisme et expériences du temps Paris Seuil 2003 François Dosse Renaissance de lévénement un défi pour lhistorien entre sphinx et phénix Paris PUF 2010 Le Noeud Gordien O novo tempo do mundo FINALindd 165 O novo tempo do mundo FINALindd 165 10042014 152752 10042014 152752 166 O novo tempo do mundo choca frontalmente o contratempo imobilizador da espera como estamos vendo a todo momento E não se trata de um resíduo do antigo regime no caso a experiência moderna da temporalização da história a espera também mudou deixou basicamente de ser um horizonte Tornouse ao contrário uma disciplina além do mais inculcada massivamente como começou notando JeanFrançois Bayart ao analisar como quem não quer nada não mais do que um fait divers a expansão do poder disciplinador das incontornáveis fi las de espera para então concluir que uma tal disciplina da espera seria inerente ao regime de historicidade que caracteriza o momento atual da acumulação mundializada A onda de choque na esteira da reati vação contemporânea do poder punitivo ganhará assim em compreensão ao ser incluída no âmbito desse novo regime Se o propósito ou a falta de é intensifi car o sofrimento social disciplinador nada melhor ou pior do que a espera sem horizonte No imediato pósguerra o olho clínico de um Samuel Beckett permitiulhe fechar o diagnóstico ao ver que essa seria a cifra do novo curso do mundo Mas se tratava de teatro e não de juízo político categórico nunca é demais lembrar 9 A certa altura Bayart se dá conta de que Mohammed Atta também precisou fazer fi la para comprar seus cutters e subir no avião que se espati faria numa das torres do World Trade Center Seria o caso de observar que enquanto esperava na fi la a impaciência de Mohammed deveria ser bem outra embora igualmente explosiva como se veria minutos depois assim como inteiramente outro o regime temporal sob o qual transcorria sua espera Não é fácil atinar com a natureza deste último tampouco medir a distância separando digamos o teor de sua experiência da assim chamada Modernidade que aliás conhecia muito bem como urbanista vivendo na Alemanha onde se formara do horizonte de expectativa que nortearia sua espera tarefa tanto mais complicada e indispensável por recobrir o ponto cego de nosso tempo que obviamente ninguém quer encarar Dizer que a ascese jihadista distenderia ao máximo aquela distância até o acting out fi nal além de nada explicar voltaria a abrir a porteira dos clichês por quilo acerca do défi cit de modernização e secularização T J Clark arriscou uma hipótese que nos interessa de perto ao situar o malestar absoluto na civili zação contemporânea que a seu ver acabou se apossando do e conformando O novo tempo do mundo FINALindd 166 O novo tempo do mundo FINALindd 166 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 167 o islamismo radical na crescente incapacidade dessa mesma civilização de oferecer aos seus fi lhos maneiras de viver no presente e aceitar o fl uxo contingente do tempo61 Noutras palavras redescrito em negativo o Pre sentismo no qual nos instalamos há uma geração e que estamos abordando pelo ângulo punitivo de uma espera cujo horizonte se encontra rebaixado até o grau zero repassado agora pelo fi ltro das novas tecnologias digitais de aceleração reprodução e armazenagem de informações em tempo real Nos últimos tempos construiuse um extraordinário aparato para permitir às pessoas imaginar arquivar digitalizar objetivar e se apossar do momento Parece que o aqui e agora não é tolerável ou no mínimo não inteiramente real a não ser que seja narrado ou mostrado imediata ou continuamente para os outros ou para nós mesmos O telefone celular o digital replay a troca instantânea de mensagens por computador a conexão em tempo real o video loop Longe de mim dizer que dar forma visual a uma experiência signifi ca não vivêla Depende é claro de que e para que serve a construção da imagem Existe no entanto uma espécie de visualização que todo mundo percebe por intuição que consiste em sua essência de um mecanismo de defesa um modo de deliberadamente isolar um momento distanciandose do nãovivido do nãosignifi cativo Além de ativista e membro de um coletivo conselhista sediado na região da Baía de São Francisco Timothy Clark é historiador e crítico de arte seria o caso de evocar a propósito o uso muito disseminado hoje em dia do vídeo no teatro reapresentando em tempo real a imagem do que está sendo vivido em cena contraveneno desarmouse um mecanismo de defesa Ou simplesmente se mimetiza o que todo mundo faz por não saber viver num presente não obstante onipresente É esta a mola propul sora absolutamente contemporânea da alucinação que acometeu a franja vanguardista do Islã radical superar essa brecha que impede de viver o presente numa era de expectativas decrescentes aliás declinantes na medida mesma da infl ação presentista O que Timothy Clark descreveu em escala micro e privada muito em bora envolva tecnologias massivas de reprodução corresponde exatamente ao que se está chamando de historicização imediata do presente enquanto traço defi nidor de nossa época62 e na sua esteira de reconhecimento do 61 T J Clark O Estado do espetáculo em Sônia Salzstein org Modernismos trad Vera Pereira São Paulo Cosac Naify 2007 Coleção Outros Critérios p 3212 62 François Hartog Régimes dhistoricité cit Zaki Laïdi Le sacre du présent cit p 107 O novo tempo do mundo FINALindd 167 O novo tempo do mundo FINALindd 167 10042014 152752 10042014 152752 168 O novo tempo do mundo acontecimento como o horizonte de expectativa do indivíduo hoje63 Nos dois casos nos havemos com a produção e reprodução de uma nebulosa de acontecimentos de toda ordem Assim à constatação corrente de que a economia midiática do presente não cessa de produzir e consumir aconteci mentos é preciso acrescentar uma particularidade que faz toda a diferença O presente no próprio momento em que se faz deseja se ver como já histó rico como algo já passado Ele se volta de algum modo sobre si mesmo para antecipar o olhar que se dirigirá a ele quando terá passado completamente será passado como se quisesse prever o passado se fazer passado antes mesmo de ter advindo plenamente como presente mas esse olhar é o seu olhar o olhar do presente64 O círculo presentista se fechará com suprema ironia aliás nada involun tária se observarmos que essa lógica do acontecimento contemporâneo que se fazendo ver enquanto se produz vai se historicizando na mesma me dida em que já traz consigo sua própria comemoração no geral sob o olho das câmeras é levada ao seu limite pelo 11 de Setembro65 E se de fato o acontecimento é mesmo o horizonte de expectativa do indivíduo hoje Mohammed Atta enquanto fazia fi la disciplinadamente não podia esperar menos do que um acontecimento extremo absoluto nisso fi nalmente nosso contemporâneo agora em tempo integral sem resíduos defasados de outro fuso histórico transformando em profecia realizada o diagnóstico de Paul Virilio segundo o qual66 no campo de forças e expectativas do capitalismo histórico aberto em 1789 e semicerrado com a Queda do Muro sucederam se Três Grandes Esperas primeiro o horizonte de expectativa da Revolução seguido pela espera da Guerra e fi nalmente a do Acidente Absoluto sem prejuízo de que possam um dia confl uir e se indiscernir67 Por mais extravagante ou plausível que à primeira vista possa parecer tal periodização o fato é que na grande sala de espera presentista na qual 63 François Dosse Renaissance de lévénement cit p 243 Grifo meu 64 François Hartog Régimes dhistoricité cit p 127 65 Ibidem p 116 66 Se o compreendi bem nos termos do estudo O novo tempo do mundo publicado neste volume 67 Paul Virilio Laccident originel Paris Galilée 2005 O novo tempo do mundo FINALindd 168 O novo tempo do mundo FINALindd 168 10042014 152752 10042014 152752 Zonas de espera 169 se converteu a Idade Contemporânea68 presidem dois novos princípios que não dão margem à dúvida quanto à crise do futuro como se diz69 o da Responsabilidade70 e o da Precaução duas balizas assinalando que o horizonte contemporâneo do mundo encolheu e mais como os sinais enviados pelo futuro não são nada claros a futurologia que ambos alimen tam como o nome indica não é mais do que uma tecnologia dos sinais de alarme que de qualquer modo não anunciariam o surpreendente pois por mais ampla que seja a varredura virtual do futuro sempre se tratará de um presente apenas dilatado Por onde se vê que presentismo e estado permanente de alerta são coextensivos E se assim é responsabilização71 e precaução anunciavam a próxima maré alta de contenção que se aproximava Com efeito a hipótese comunista segundo consta foi arquivada faz tempo e a Guerra Fria igualmente desativada e no entanto as sociedades que se autodenominam póshistóricas continuam a se emparedar conforme vão se multiplicando os novos inimigos só que agora assombrando por dentro dos muros A prevenção agora é outra Quando o horizonte é o próprio presente regido pela contenção responsabilizadora do que vem pela frente essa onda do futuro na contramão só pode ser punitiva É aqui que devemos encaixar o diagnóstico de época de Loïc Wacquant Ao princípio presentista de precaução e endurecimento da responsabilização penal deve forçosamente corresponder um outro paradigma reaglutinador do poder punitivo bem como um outro estado igualmente ajustado a essa nova estática da contenção parafraseando a caracterização do Direito Penal do Inimigo segundo Zaff aroni72 Assim ao horizonte liberal do pro 68 Relembro que Günther Anders em Le temps de la fi n Paris LHerne 2007 não falava mais em Idade porém defi nitivamente em Prazo 69 Pelo menos desde o artigo precursor de Krzysztof Pomian La crise de lavenir Le Débat n 7 dez 1980 70 Formulado originalmente como se sabe por Hans Jonas mas hoje fraseologia de domínio público 71 Como Klaus Günther por exemplo reinterpreta à luz do mesmo princípio enunciado por Hans Jonas a idade social que atravessamos Cf Klaus Günther Responsabi lização na sociedade civil Novos Estudos São Paulo Cebrap n 63 jul 2002 72 Eugenio Raúl Zaff aroni O inimigo no Direito Penal trad Sérgio Lamarão Rio de Janeiro Revan 2007 Coleção Pensamento Criminológico v 14 cap 5 Não por acaso na proposta original de seu autor o penalista alemão Günther Jakobs a doutrina do direito penal do inimigo contempla igualmente uma clivagem análoga O novo tempo do mundo FINALindd 169 O novo tempo do mundo FINALindd 169 10042014 152752 10042014 152752 170 O novo tempo do mundo gressismo burguês a gestão das expectativas pelo Estado no que concernia às incertezas de uma sociedade recémorientada para o futuro respondia o governo guardanoturno afi nal o espectro comunista rondava pelas vi zinhanças mais a previdência pessoal das classes proprietárias no Estado Social que emergiu da Grande Depressão do século passado espelhavase por sua vez o consenso dito keynesiano já meramente defensivo o imperativo emergencial no fi m das contas do Nunca Mais no caso tamanho descon trole do mundo seguro social sim porém domesticado sob o horizonte cada vez mais raso de um apocalipse nuclear fi nalmente sitiado pela espera do acidente absoluto o Estadoprecaução de agora73 à cuja compreensível virada punitiva fomos apresentados por Wacquant pois a paranoia securitária decorrente do continuum precauçãoprevençãoresponsabilização precisa empurrar constantemente para as margens e nelas imobilizar a turbulência das populações recalcitrantes por meio das quais aliás eventos extremos podem chegar ao mundo cuja ordem carece por isso mesmo de proteção permanente Notese mas apenas para anotar e seguir adiante que este panorama sumário poderia ser igualmente refeito pelo prisma da história capitalista da guerra a cada horizonte de expectativa uma forma conjugada de guerra e de Estado clausewitziana para o primeiro período em que a política estava no comando ao longo dos improváveis anos dourados a guerra e a paz à maneira do fl agelo à la Tolstói foram substituídas pela impossibilidade estratégica encarnada pela ameaça assegurada da destruição mútua uma guerra imaginária portanto74 voltada sobretudo para o controle das respectivas populações mobilizadas para a produção em massa fi nalmente onde chegamos guerra preventiva e por isso permanente já que o estado de alerta securitário não tolera descontinuidade Do mesmo modo outra sequência análoga de expectativas poderia ser reconhecida na evolução ao Estado bifurcado de Wacquant ao lado de um direito penal operando como puro impedimento físico de preferência preventivo continua em vigor o direito penal dito do cidadão estabelecido que o inimigo imobilizado e neutralizado pertence a todas as categorizações infra com a pena cumprindo ainda sua função de reafi rmação da vigência da norma 73 A expressão é de François Ewald mas o espírito obviamente é outro Cf François Hartog Régimes dhistoricité cit p 214 74 Como a batizou Mary Kaldor Th e Imaginary War Understanding the EastWest Confl ict Oxford Blackwell 1990 O novo tempo do mundo FINALindd 170 O novo tempo do mundo FINALindd 170 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 171 da formaprisão primeiro a emergência do arquipélago carceral e seu envoltório iluminista de reforma moral pela disciplina ao seu modo uma temporalidade ascendente que antes de começar a declinar conheceu um período de congelamento na reconstrução do pósguerra quando o sistema penitenciário da idade clássica pareceu querer refl uir para em seguida assistir ao recomeço do grande encarceramento de hoje A curva é descendente e como se disse de expectativas decrescentes e à medida que elas encurtam o poder punitivo recrudesce Descendo até o subsolo da civilização material uma análoga periodização das idas e vindas da centralidade do trabalho e das grandes esperas que alimentou poderia recontar a mesma história dessas sucessivas subjetivações A rigor escorados na ideiaperspectiva de horizonte não estamos falando de outra coisa senão desta matriz originária 10 Fast track para as elites cinéticas fi las de espera para o comum dos mortais Na verdade mais mortais do que comuns pois nesta escala ainda não descemos até o fundo do poço Mas lá embaixo a disciplina se transmuda em outra coisa o vazio jurídico que envolve o campo em que a fi la dos desesperados se desmanchou a zona de espera propriamente dita A mais temida delas e por isso mesmo uma referência até para as autoridades americanas se encontra no aeroporto Roissy Charles de Gaulle e atende pelo nome de ZAPI zone dattente pour personnes en instance O emprego da última palavra diz tudo acerca da real natureza desses verdadeiros centros de retenção O verniz jurídicoadministrativo de que se reveste a expressão em si mesma arrevesada em instância sugere de saída o caráter suspensivo característico do estado de espera que se abate sobre os indivíduos sugados por aquela verdadeira área de sequestro da qual ninguém sabe nada sequer onde fi ca Subtraídos da visão pública estagnados no tempo lento privados antes de tudo de direitos que não por acaso se encontram justamente em instância sabese lá aos cuidados de que órgão processador de papéis que tais pessoaseminstância geral mente não possuem e quando é o caso são sempre duvidosos Recém desembarcados antes mesmo de enfrentar os controles de praxe esses indivíduos prontamente assinalados por detalhes que um olho de longa memória colonial identifi ca de imediato são desviados da fi la digamos mainstream para as veredas da underclass onde a espera transcorrerá in O novo tempo do mundo FINALindd 171 O novo tempo do mundo FINALindd 171 10042014 152753 10042014 152753 172 O novo tempo do mundo defi nidamente na incerteza na sujeira e no mau cheiro75 Breve relato de uma incursão nesses huisclos de Roissy num o estado de espera em instância já se estendia por inacreditáveis duas semanas noutro uma dúzia de pessoas pacientavam há seis dias pregadas em banquetas diante de um posto policial na melhor das hipóteses eram alimentadas pelo pes soal do serviço de limpeza quando a coisa apertava recorriase às lixeiras de uma lanchonete próxima quanto aos funcionários a respostapadrão invariavelmente dizia que era preciso esperar76 Numa palavra no caso do autor da matéria pessoas que esperam simplesmente não existem Essas em particular de cujo futuro trabalho previamente treinado para a fl exibiliza ção total como se está vendo intermitente ou francamente clandestino depende toda a infraestrutura da mundialização Uma tal espera portanto não é extrínseca por assim dizer resumo da condição do estrangeiro que nunca acaba de chegar pelo contrário nada mais intrínseco a esse avesso punitivo da globalização do que essa mise en attente coercitiva Embora culmine com frequência numa expulsão enquanto dura a espera disten dida ou abreviada por mero arbítrio administrativo ela de fato promove uma inclusão perversa como se diz desastradamente na língua franca dos programas sociais Compreendese que transcorra num espaço a meio caminho entre a prisão e o campo este último num extremo histórico de concentração no outro de refugiado em que termos logo se indicará Uma pessoa em instância espera num limbo jurídico Como bate à porta pedindo passagem e justamente à porta da lei encontrase com efeito fora da lei A rigor a zona de espera funciona à margem do direito Exatamente como a prisão segundo Wacquant A prisão que supostamente deveria fazer respeitar a lei é de fato por sua própria organização uma instituição fora da lei pensando na arbitrariedade administrativa na indiferença geral no despotismo burocrático que vigora nas instituições penitenciárias no tribunalinterno da prisão onde a administração joga com vidas humanas sem controle nem recurso tendo como única preo cupação a administração da ordem interna77 Quanto ao campo nossa outra demasia comparativa embora exata o excesso sendo a regra em toda 75 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 412 76 Matéria do jornal Libération citada por ibidem p 411 77 Loïc Wacquant A prisão é uma instituição fora da lei em Punir os pobres 1 ed cit p 142 O novo tempo do mundo FINALindd 172 O novo tempo do mundo FINALindd 172 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 173 essa confi guração contemporânea a começar pelo retorno do punitivismo bem entendido a superposição entre o campo e a zona de espera se deve a Giorgio Agamben cujo foco entretanto sintomaticamente passa longe da espera tamanha a incongruência entre a concentração do campo e algo como um horizonte de expectativa pois nele o tempo em suspensão está de fato morto E no entanto não deveria ser assim pois foi nada mais nada menos do que a memória daquele horror ou sua antevisão igualmente apavorante que precipitou o pressentimento de que talvez o mundo e seu horizonte de espera tenham mesmo se eclipsado para valer como atestam duas evidências artísticas de cuja força de convencimento é muito difícil escapar sem esvaziar de vez a cabeça Refi rome por certo ao fato de que a notória antipatia de Kafka pelo tempo fl uente inseparável por sua vez esse tempo paralisado pelo pânico de uma alucinante automatização da punição em detrimento da culpa que invariavelmente a segue e não o contrário conforme uma das tantas inversões operadas pelas fábulas realistas kafkianas alcança sua visibilidade mais desconcertante na situação recorrente de um interminável esperarna antessala em que aprisiona seus personagens aliás justamente pelo lado de fora Tudo isso assinalado no estudo notável de Günther Anders78 Não vou obviamente enveredar por uma enésima interpretação da parábola Diante da Lei Muito menos seria o caso de dizer sem mais que os barrados nessas zonas de anomia selvagem se encontram mofando Diante da Lei A menos que a Lei de Kafka seja diretamente interpretada como emanação do poder arcaico de funcionários obscuros O que tampouco seria o caso embora as pessoas que ali se encontram em bom francês en souff rance procurem por todos os meios se ajustar como o agrimensor para enfi m ser admitidas no Castelo não por acaso chamado hoje em dia de Fortaleza Europa De qualquer modo é plausível lembrar e deixar a imaginação histórica correr por conta que o Guardião ao impedir a entrada do homem do campo limitase a deixálo do lado de fora mandandoo por assim dizer aguardar na fi la à pergunta se então poderá entrar mais tarde o porteiro responde que é possível mas não agora Só que uma fi la propriamente mítica já que de um só a própria exceção de uma lei talhada para um único indivíduo impondolhe uma espera de vida inteira imobilidade que no entanto não 78 Kafka pró e contra trad Modesto Carone São Paulo Perspectiva 1969 Cosac Naify 2007 O novo tempo do mundo FINALindd 173 O novo tempo do mundo FINALindd 173 10042014 152753 10042014 152753 174 O novo tempo do mundo ousou quebrar como fi cará sabendo na hora da morte Todavia expulso o demônio da analogia por uma porta ele volta pela outra Notese por exemplo o inusitado ar de família kafkiano deste trecho de prosa O sistema de petição é uma herança da China dinástica e existe há pelo menos mil anos Os que conseguiram vencer as distâncias e chegar à capital tinham o privilégio de expor seus casos ao Imperador que instruía os representantes locais sobre como proceder para resolver o problema Para quem se lembra das histórias de Kafka em torno da fabulosa cons trução da Muralha da China sabe que vencer distâncias tão incomensu ráveis quanto o tempo consumido em percorrêlas sobretudo quando se era portador de uma mensagem do Imperador não é bem o caso A China contemporânea se encarregará de provar que o caminho inverso da petição sim é um pesadelo kafkiano tomado ao pé da letra outra especialidade de Kafka tomar tudo ao pé da letra O trecho de prosa em questão é jornalís tico extraído de uma matéria da correspondente do Estado de S Paulo em Pequim Cláudia Trevisan79 A sequência fala por si só Todos os dias a partir das 7h40 centenas de pessoas fazem fi la para apre sentar petições ao Departamento de Cartas e Visitas sic de Pequim na esperança de que o Governo intervenha para sanar as injustiças de que se julgam vítimas em suas cidades e vilas de origem Suas histórias são quase sempre trágicas e envolvem abuso de poder violência tortura perdas de casas terras salários saúde ou liberdade Muitos viajam milhares de quilômetros até a capital onde se instalam à espera de uma decisão que quase nunca é proferida Alguns aguardam há mais de uma década e a cada três meses reapresentam seus pedidos no mesmo escritório que fi ca no Portão da Eterna Estabilidade sic cinco quilômetros ao sul da Cidade Proibida Milhões de chineses Diante da Lei Um Guardião só É verdade que as disciplinas da espera evoluíram acompanhando a virada punitiva do capitalismo global Enganados com promessas de recompensa fi nanceira ou solução de seus problemas alguns são despachados imediatamente Outros fi cam confi na dos em prisões ilegais nas quais passam semanas ou meses em condições subhumanas Existem ainda os que terminam em hospitais psiquiátricos de onde nem sempre são resgatados 79 Na China petição vira última esperança O Estado de S Paulo 24 abr 2011 p A14 O novo tempo do mundo FINALindd 174 O novo tempo do mundo FINALindd 174 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 175 Consumada a visão profética de Kafka na esteira imediata da heca tombe que se sabe por isso mesmo jamais convocada jamais em cena por assim dizer de corpo presente Beckett por sua vez se concentrará na fi gura sem ênfase de dois pobresdiabos entre clochard e clown que simplesmente esperam e mais nada Só que esse suplemento de imobilização total é ele mesmo cifra de uma inversão tal que muda o sentido dessa nova espera depois que o inenarrável afi nal sobreveio como um acidente histórico absoluto espalhando à sua volta estilhaços de acontecimentos e cacos de conversas sem eira nem beira Pois ao contrário do pathos declamatório que anima o gesto dos desesperados clássicos Vladimir e Estragon não saem de cena não vão embora porque não esperam mais nada mas fi cam tanto faz se por teimosia preguiça ou apatia já que vão fi cando sem sair do lugar então esperam Mais uma vez estou me apoiando noutro artigo implacável de Günther Anders80 Tratase obviamente de uma interpretação do Godot em chave deliberadamente antiteológicometafísica como aliás no caso do ensaio sobre Kafka a começar pelo título paródico Ser sem Tempo Pois nessa imensa zona de espera em que o mundo depois do Campo e da Bomba se converteu Vladimir e Estragon não cessam de parodiar uma atividade que nos acostumamos a chamar de trabalho e que nesse meio tempo qual exatamente perdeu seu sentido Mas fi quemos por aqui Salvo por uma menção mais do que signifi cativa no parágrafo de abertura de um pequeno estudo didático sobre a peça de Beckett Bernard Lalande afi rma que até onde sabe apenas um e um só público deixouse levar unânime e espontaneamente por uma representação de Esperando Godot sem nenhuma explicação prévia os quatrocentos condenados da penitenciária de San Quentin Califórnia numa noite de novembro de 195781 A circunstância fala por si mesma A data também diz alguma coisa por si mesma Apenas quatro anos depois da estreia mundial da peça a visão do antiespetáculo dos dois pobresdiabos imobilizados no tempo morto de uma espera indefi nida ainda podia comover até a medula um público barrapesada que havia comparecido tão somente na expectativa 80 Publicado em 1954 numa revista suíça e depois recolhido no livro de 1956 Lobsolescence de lhomme Paris Ivréa 2001 p 24360 no original Die antiquiertheit des Menschen 81 Bernard Lalande En attendant Godot Beckett Paris Hatier 1970 Profi l dUne Œuvre v 16 O novo tempo do mundo FINALindd 175 O novo tempo do mundo FINALindd 175 10042014 152753 10042014 152753 176 O novo tempo do mundo ansioso como todo público que se apresenta à entrada de um teatro de mexer com as atrizes que certamente estariam à disposição para o que desse e viesse e que no entanto emudeceu desde as primeiras réplicas sem arredar pé até o fi m Não basta observar que desde Homero o estado de um ser humano que espera arrasta consigo seus semelhantes Hoje é preciso saber quando essa gravitação conjunta começou a deixar de ser o caso e banalizouse a ponto de toda espera virar um contratempo irritante por contrariar uma demanda urgente como se viu O argumento sugerido até aqui gira em torno desse momentoso encolhimento do horizonte do mundo não custa repetir e insistir de novo que esta é a data histórica da virada punitiva assinalada por Wacquant Além de fugir na primeira ocasião nunca saberemos ao certo o que esperavam os prisioneiros de San Quentin enquanto acompanhavam a Grande Espera de Vladimir e Estra gon Seja como for o fato é que poucos anos depois no início dos anos 1960 a população prisional americana começou a diminuir regularmente a uma taxa de 1 ao ano a ponto de alguns penalogistas passarem a levar em consideração a hipótese arriscada de um eventual desencarcera mento a caminho como recorda Wacquant82 O motim de Attica em 1973 quando 43 prisioneiros e reféns foram massacrados no assalto da tropa de choque explodiu justamente continua nosso autor no ano em que a população carcerária nos Estados Unidos atingiu seu nível mais baixo no pósguerra Naquele mesmo ano uma comissão recomendou ao presidente Nixon o fechamento dos centros para jovens detentos e a para lisação da construção de penitenciárias durante uma década enquanto por seu turno a historiografi a revisionista da questão penal anunciava o declínio irreversível da prisão depois de ter ocupado um lugar central no dispositivo disciplinar do capitalismo industrial estava destinada a desempenhar um papel menor nas sociedades avançadas diagnóstico canonizado pela obraprima de Foucault dois anos depois Nesta dimensão bem específi ca seria o caso de dizer que promessas e perspectivas como essas elevavam o horizonte de uma outra espera de San Quentin a Attica O resto conhecemos bem na mesma década subsequente de estagnação e recuo da criminalidade operouse a reviravolta espantosa da demografi a carcerária estadunidense que dobrou em dez anos e quadruplicou em vinte Quando a Guerra Fria terminou pareceu a mais de um observador 82 Loïc Wacquant Punir os pobres 3 ed cit p 206 O novo tempo do mundo FINALindd 176 O novo tempo do mundo FINALindd 176 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 177 que o gulag havia mudado de lado Não é claro que os escombros pós stalinistas acumulados não subissem aos céus83 Mesmo depois do arquipélago de campos da morte as tábuas do palco continuam representando o mundo como nos tempos de Schiller só que o mundo agora é uma imensa zona de espera ou melhor um dispositivo de governo tal que em seu domínio zonas de espera proliferam na forma de campos Por isso surpreende que Agamben depois de identifi car no cam po a matriz oculta da política onde ainda vivemos desde o momento da virada histórica em que a uma ordem jurídica sem localização o estado de exceção em que a lei é suspensa corresponde desde então uma localização sem ordem o campo como espaço permanente de exceção e que devemos reconhecer através de todas as suas metamorfoses contemporâneas justamen te mas não só as zonas de espera de nossos aeroportos a certas periferias de nossas cidades84 tenha deixado escapar o detalhe capital de que em tais zonas é a disciplina da espera que funciona como alavanca de todo o aparato suspensivo daqueles territórios da exceção Aliás na sua própria redescrição um lugar aparentemente anódino delimita na realidade um espaço onde a ordem jurídica normal se encontra de fato suspensa e onde perpetrar ou não atrocidades não depende do direito mas tão somente do grau de civilidade e do senso moral da polícia que age provisoriamente como poder soberano Sobreviver ali é antes de tudo aprender a esperar mas não esperar sem mais porém numa zona de nãodireito onde cresce o poder punitivo cuja microfísica como estamos vendo irradia por toda a parte onde fl utuam essas populações transitando por fronteiras críticas terras de ninguém onde a vida se arrasta no meio viscoso de uma perspectiva por assim dizer sem horizonte Estudando a nova ordem espacial formas de vida protegidas e co nectadas encapsuladas em arquipélagos defensivos precisamente contra os desconectados e indefesos o arquiteto e urbanista italiano Alessandro Petti85 chega a registrar mais de 250 centros europeus de retenção e triagem de imigrantes enclaves no interior do arquipélago Europa verdadeiros 83 A expressão escombros acumulados circula num jovem círculo radical do Rio de Janeiro Entre destroços do Presente acrescentaria Manuel Bandeira maiúscula a menos 84 Giorgio Agamben Homo sacer le pouvoir souverain et la vie nue Paris Seuil 1997 p 1889 85 Alessandro Petti Arcipelaghi e enclave architettura dellordinamento spaziale contem poraneo Milão Bruno Mondadori 2007 p 16470 O novo tempo do mundo FINALindd 177 O novo tempo do mundo FINALindd 177 10042014 152753 10042014 152753 178 O novo tempo do mundo territórios de exceção que não por acaso denomina precisamente espaço de suspensão lugares confi nados e situados fora do ordenamento espacial e jurídico ao qual de qualquer modo pertencem Na sua reconstituição a doutrina instituidora dessas zonas suspensivas obviamente por motivo de urgência e emergência foi introduzida pela Dinamarca a mesma Dinamarca que em 2011 inaugurou a primeira quebra do Acordo de Schengen sobre a livre circulação de pessoas no interior da União Europeia em meados dos anos 1980 recomendando que se transferissem os reque rentes de asilo para portos seguros mais tarde rebatizados de protection zone Pelo fi m dos anos 1990 a Itália por sua vez diretamente afetada pela imigração mediterrânea sem falar no colapso da Albânia e em acordos prévios de contingenciamentos e confi namentos com o governo líbio criou em caráter de urgência o seu próprio espaço suspensivo denominado Centro de Permanência Temporária e Assistência CPTA Pertencem à mesma família as ilhas gregas transformadas em campos de prisioneiros as zonastampão nas fronteiras europeias de Malta Lampedusa etc Digamos que o approach francês se destacaria por sublinhar o termo exato para a fusão escarninha entre o permanente e o temporário como se expressa no eufemismo italiano para não falar no fato de que a palavra attente também não deixa de abusar de um afeto fundamental da espécie Registrado aliás em termos espaciais correspondentes pelo olho do arquiteto hoje já não se domina mais pelo ancestral divide et impera a nova estratégia segundo nosso autor é ditada por um outro princípio encastelarse e suspender observando porém que onde reinam a separação e o isolamento tanto para os fechados por fora quanto para os encerrados por dentro o horizonte desaparece e a visão perde o foco 11 Chegados a esse ponto a passagem por Guantánamo é obrigatória Sobre o Camp Delta tudo e mais alguma coisa já foi dito Duas palavras bastam sobre aquele pesadelo a rigor sem parâmetros históricos ou melhor soma tório de todas as anomalias normalizadas ao longo de um período em que o paradigma da urgência converteuse num sistema de governo das populações Em primeiro lugar que se trata também de uma zona de espera uma espera tão indefi nida quanto o real estatuto daqueles detainees submetidos a uma soberania off shore igualmente indeterminada Todavia vale para os engo O novo tempo do mundo FINALindd 178 O novo tempo do mundo FINALindd 178 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 179 lidos por aquele buraco negro jurídico o mesmo privilégio de encarnarem o mal absoluto que Wacquant identifi cou na população carcerária colhida pelo arrastão punitivo de hoje pária entre os párias como já foi dito uma categoria sacrifi cial que pode ser vilipendiada e humilhada impunemente E desde a declaração da Guerra ao Terror tão imaginária quanto era a Guerra Fria também torturada aliás ofi cialmente como se sabe Podemos então concluir segunda observação que a disciplina da espera alcançou assim sua dimensão corporal originária própria de todas as disciplinas pois a danação do tempo estagnado precisa ser de preferência extorquida através da privação das sensações elementares que balizam a experiência temporal tato audição etc afi nal mais do que tudo queremos igualmente que eles sofram sendo a Guerra ao Terror uma operação exemplar do poder punitivo por isso mesmo sem o menor valor militar estratégico Por último um lapso de humor negro que JeanFrançois Bayart deixou escapar observando que os detentos do Camp Delta também são punidos com uma fi la de espera para os interrogatórios porém poupados de uma outra fi la no Downtown do campo a do único McDonalds de Cuba As zonas de espera que multiplicam tempo morto pelo mundo imobili zando toda sorte de pessoas a rigor expessoas em instância pelos espaços liminares do planeta são assim verdadeiros paraísos punitivos como denomina Bayart certas zonas francas da educação disseminadas por algumas ilhas do Caribe referindose à deslocalização para essa região de instituições socioe ducativas especializadas em programas de modifi cação comportamental de jovens americanos Não é preciso muita imaginação para adivinhar o que se passa nessas escolas onde certamente se ensina a esperar Do mesmo modo a associação similar francesa Vagabondage organizava estágios de ruptura na Zâmbia Vai pelo mesmo caminho a escalada das novas disciplinas in dustriais nas zonas francas que povoam essas beiradas do mundo por isso mesmo cada vez mais enterradas em seu próprio espaço interno na medida em que conforme se alastra a atual maré punitiva mais se rebaixa o nível a partir do qual se torna natural e aceitável punir como anunciara Foucault E recorda agora Martin Mongin observando o funcionamento dos serviços de segurança nesses espaços ambivalentes espaços abertos ao público porém geridos por empresas privadas ou estatais onde aos poucos seus agentes acabam atuando no duplo registro da Lei e da Regra de sorte que inde sejáveis barrados ou expulsos em virtude da aplicação de um regulamento administrativo são a rigor tratados como se fossem transgressores da lei de O novo tempo do mundo FINALindd 179 O novo tempo do mundo FINALindd 179 10042014 152753 10042014 152753 180 O novo tempo do mundo tal forma a autoridade informal anestesiou a percepção pública de tanto transformar o menor lapso em infração o menor sobressalto o menor even to em um ato de delinquência86 Não é difícil notar que uma zona especial onde se aplica entre outras disciplinas extralegais a disciplina da espera é um espaço funcional como esses açambarcados pela ambígua onipresença de vigilantes E como advertiu Foucault prossegue o argumento acerca dessa contaminação específi ca do campo social pela lógica punitiva do mundo carceral esse amálgama entre o regime da lei e o regime da regra outro modo de prenunciar a Exceção a caminho a crescente legitimidade pelo poder punitivo87 tende a apagar o que pode haver de exorbitante no poder de punir e no limite fazer sofrer exemplarmente 12 É o que se passa nos territórios da Cisjordânia ocupada para irmos direto ao mais hiperbólico paraíso punitivo contemporâneo embora velho de quase meio século ou mais dependendo da periodização das sucessivas ondas punitivas que congelaram o tempo naquela descomunal zona de espera A bem dizer o povo da Palestina só chegou a constituirse como povonação graças a um confl ito que ao longo do tempo converteuo numa comunidade de expectativa Que o outro lado se empenha metodicamente em frustrar muito embora seja igualmente comandado por uma mesma lógica cujo horizonte no entanto é de um projeto verdadeiramente apocalíptico no juízo surpreendente de Benny Morris88 Mas essa Grande Espera que atravessou mais de uma idade histórica da Era dos Impérios à Guerra Fria na qual há quem reconheça o último Horizonte de Expectativa de nosso tempo89 é o pano de fundo por trás da degradação do qual devemos 86 Martin Mongin Quem nos protegerá de quem nos protege Le Monde Diploma tique Brasil n 6 15 out 2009 p 35 87 Com o perdão da redundância pois há sempre uma usurpação na origem do poder punitivo Sobre a sua natureza confi scatória ver Eugenio Raúl Zaff aroni O inimigo no Direito Penal cit p 30 88 Benny Morris On Ethnic Cleansing entrevista a Ari Shavit New Left Review Londres n 26 marabr 2006 p 50 89 Na opinião nem tão desconcertante assim de Zaki Laïdi embora até onde sei ele seja o único a expressála nas categorias consagradas por Koselleck Cf Zaki Laïdi Un monde privé de sens Paris HachetteFayard 20011994 caps III Procuro O novo tempo do mundo FINALindd 180 O novo tempo do mundo FINALindd 180 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 181 recortar os incontáveis fi os de uma outra malha tecida pelo tormento das pequenas esperas intermináveis num labirinto de fi las e controles Refi rome à danação em vida que são os checkpoints estrategicamente distribuídos pelos territórios ocupados Numa escala inimaginável de requinte punitivo em que se faz sofrer para humilhar e viceversa tratase de uma inacreditável espacialização de todas as variações possíveis da disciplina da espera uma quota de tempo morto extraída como um surplus de expropriação do tempo de vida de cada um dos nativos Nos territórios ocupados da Palestina o checkpoint tornouse um verdadeiro sistema de governo das populações de fato cativas durante os três primeiros anos da Intifada 85 do povo da Margem Ocidental simplesmente não conseguia sair de suas aldeias em razão do emaranhado de toques de recolher e barreiras de toda sorte Nas palavras do escritor e ativista Azmi Bishara o checkpoint confi sca tudo o que um homem possui de mais valioso todos os seus esforços todo o seu tempo o checkpoint é o caos e a ordem está dentro e fora da lei opera racionalmente e arbitra riamente através da ordem e da desordem até a completa exaustão moral e psíquica dos condenados a transitar por esse labirinto em que a principal arma para entranhar nos derrotados o sentimento da própria humilhação é a espera e uma espera que não poupa doentes idosos ou crianças que pode ser indefi nidamente alongada ou subitamente abreviada segundo coman dos cujos critérios precisam permanecer insondáveis em suma também aqui queremos que eles sofram quando mais não seja pelo medo com que nos obrigam a viver90 Uma outra amostragem exemplar dessa fusão entre Estado ocupante do Checkpoint e Zona ocupada de Espera em que o mais corriqueiro deslocamento é sinônimo de espera e imobilização sob um sol infernal estando o arcondicionado acintosamente reservado aos estrangeiros ofi ciais ou de passagem encontrase no já citado livro do arqui teto Alessandro Petti narrando sua travessia com mulher e fi lha palestinas naquele pesadelo de ratoeiras interligadas no mesmo propósito de infernizar a vida das pessoas que não poucas vezes se dão conta de estarem andando em círculo A um certo momento o autor sem embargo de sua condição de aclimatar esses juízos acerca da Guerra Fria no estudo O novo tempo do mundo publicado neste volume 90 Eyal Weizman Hollow Land Israels Architecture of Occupation Londres Verso 2007 p 1478 O novo tempo do mundo FINALindd 181 O novo tempo do mundo FINALindd 181 10042014 152753 10042014 152753 182 O novo tempo do mundo europeu depois de bloqueado pela enésima vez confessa ignorar o motivo e muito menos saber exatamente do que está à espera Uma viagem cujas preocupações óbvias são multiplicadas por uma incerteza estrategicamente planejada não saber quais são as regras e quem as dita conclui é de fato uma forma de governo cujo conteúdo é precisamente esse vazio que é o tempo de espera Por outro lado quando se demora quatro horas para ultrapassar uma faixa de poucos metros não se pode deixar de pensar que para além do controle e da segurança nos defrontamos com o suplemento indispensável o inconfundível desenho de uma arquitetura punitiva91 A Ocupação como peça didática em cena desde 1967 e cujo refrão é menos o acordo extor quido do que a paródia sinistra de uma outra lição o importante é aprender a esperar Não perdem por esperar com efeito possivelmente também era isso o que um especialista no problema dos refugiados palestinos como Benny Morris queria dizer Problema Talvez não seja a palavra mais apropriada Diante da Questão Palestina não falta quem tenha se dado conta de que o prazo de validade do teorema marxista a humanidade só se defronta com os problemas que pode resolver esteja vencido 13 Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados o número de vítimas de deslocamentos forçados beira hoje os 45 milhões o maior nos últimos quinze anos alastrando ainda mais uma crise que se arrasta sem perspectiva de saída próxima92Imobilizadas na sua grande maioria nos campos da desgraça humanitária onde realmente se aprende a esperar e se aprende obviamente sofrendo no vácuo jurídico dessas outras zonas de espera em que a situação de exílio pode se prolongar às vezes por vinte anos Mas antes de chegar à estagnação dos campos a danação da espera acompanha o condenado desde os primeiros passos da imigração de um modo ou de outro sempre forçada e no limite canalizadora de todas as demais disciplinas constitutivas de mais esta situação liminar em que fl utuam93 91 Alessandro Petti Arcipelaghi e enclave cit p 113 92 Alexander Betts especialista na questão dos refugiados Viagem sem fi m entrevista a Carolina Rossetti O Estado de S Paulo 26 jun 2011 93 A expressão populações fl utuantes remonta ao repertório da administração colonial francesa como relembra JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 410 O novo tempo do mundo FINALindd 182 O novo tempo do mundo FINALindd 182 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 183 as populações aprisionadas pelo regime punitivo da station94 A expressão francesa empregada por Bayart é mais certeira ao procurar seu alvo alguém de pé aguentando até desabar e o seu conceito a cuja temporalidade disci plinar estaria sendo submetido pois não é mais alguém de castigo no canto da sala Encapuzado e o equilíbrio por um fi o elétrico já vimos a foto uma outra extensão do mesmo continuum punitivo Da afl ição mais comezinha de alguém literalmente estacionado diante de um guichê que não abre nunca ou aleatoriamente segundo o belprazer de um remoto encarregado até o estado de prontidão permanente à espera de um passador ou coiote um barco um emprego documentos uma expulsão ou até mesmo um retorno Com a palavra um veterano clandestino do Mediterrâneo o tunisiano Fawzi Mellah Não tínhamos outro jeito senão esperar Esperar Um clandestino passa mais da metade de seu tempo da sua vida esperando A resposta de um passador A chegada num porto improvisado ou desconhecido A boa vontade de um contato O encontro de um amigo A boa vontade de um empregador au noir Uma anistia Uma eleição presidencial A chegada de uma esquerda qualquer no poder A remoção dessa mesma esquerda do poder Uma manifestação de intelectuais Uma ocupação de uma igreja A quando então se governava por decretos administrativos Como se há de recordar segundo Hannah Arendt esse é um dos laboratórios do cataclismo que se abaterá sobre a Europa de entreguerras pavimentando o caminho para o horror a saber a inclusão também dos bons europeus este o escândalo o mais não vem ao caso que já fl utuavam desde o fi m da Primeira Guerra e o desmembramento dos im périos continentais naquela parte da humanidade que seria em breve considerada supérfl ua e nessa condição pura e simplesmente aniquilada Flutuar voltou a ser prenúncio de naufrágio próximo não só literalmente na travessia do Mediterrâneo mas sobretudo de encalhe nos campos europeus de retenção onde apodrecem as primeiras ondas de imigração empurradas pela Primavera Árabe dos primeiros meses de 2011 por exemplo na terra de ninguém entre a Itália e a França Assim o enviado de O Estado de S Paulo à Ventimiglia encontrou muitos jovens que foram às ruas derrubar o regime de Ben Ali na Tunísia e descobrem que na Europa não são nada além de indesejados e sem direitos punidos duas vezes por não terem trabalho Cf Jamil Chade Imigrantes enfrentam fi m do sonho europeu O Estado de S Paulo 1o maio 2011 p A18 Vivendo ao deusdará depois de arrancados à força dos trens por policiais armados submergem por fi m no terrível aprendizado da espera num limiar dormindo há 43 dias na estação um desses desmobilizados da revolta árabe disse ao repórter que estava contando o tempo de espera para no futuro ser indenizado Seja como for um passo à frente se comparado ao camponês kafkiano envelhecendo diante da Lei sem ao menos contar os anos parados 94 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 418 O novo tempo do mundo FINALindd 183 O novo tempo do mundo FINALindd 183 10042014 152753 10042014 152753 184 O novo tempo do mundo expulsão Em suma dizia há pouco que não se pode falar de futuro com pessoas que vivem uma temporalidade feita de pequenos futuros imediatos preciso acrescentar agora que muito menos se trata de futuro para pessoas que empregam o essencial do seu tempo esperando que alguma coisa ocorra95 Ou ainda agora alguém estacionado no Marrocos Em Tânger vivemos com o celular na mão à espera do anúncio de que um depósito bancário foi feito permitindo a travessia A mesma coerção que expropria explora ou desemprega e por fi m expulsa conjuga imigração e espera clandestina tornadas consubstanciais pela ação de um poder a um tempo gerencial e punitivo que se manifestará em sua plenitude nessas zonas liminares de imobilização e espera que estamos percorrendo do cárcere ao campo hu manitário passando pelo fi ltro da imigração forçada96 95 Ibidem p 413 96 Devemos deixar para outra ocasião o estudo da condição liminar das grandes periferias urbanas do mundo e seu encadeamento no coração do argumento de Wacquant ao longo do continuum prisãogueto É que a disciplina da espera num cárcere a céu aberto como costumam ser descritas aquelas áreas de contenção permanente particularmente em países digamos intermediários cujo novo regime de histori cidade ainda não se confi gurou por extenso não pode deixar de ser modulada por uma outra temporalidade disciplinar mais abrangente no caso que se poderia de nominar propriamente nacional As aspas para sugerir que as nações sobretudo se têm a mesma idade do capitalismo moderno como é por exemplo o nosso caso o que restou na praia no refl uxo de uma expansão econômica ultramarina inédita são as primeiras sociedades orientadas para o futuro além do mais aquecido por um antagonismo social por assim dizer de raiz colonial no caso Afi nando o esquema famoso de Benedict Anderson ganham ao ser redefi nidas como comunidades imagi nadas de expectativas como evocado páginas atrás Por esse prisma desbanalizase o estereótipo do país do futuro além de se deixar aparecer o teor distópico da percepção de que o futuro fi nalmente chegou por entre os destroços do presente Também se destrivializa a percepção bipolar de que o horizonte nacional de classe no centro na periferia ora se encolhe ora se dilata Expectativas são frustradas diferencialmente bem como as explosões de impaciência Para não falar das sucessivas ondas punitivas em países em que governar sempre foi antes de tudo mandar prender Não dá para dizer que nos guetoscárceres periféricos a disciplina da espera se ensina e se aprende do mesmo jeito E por aí iremos decerto até nos depararmos por exemplo com as medidas socioeducativas em meio aberto destinadas precisamente a imobilizar grupos sociais inteiros ditos de risco ou em situação de vulnerabilidade como no caso do projeto Promenino da Fundação Telefônica analisado por Acácio Augusto Para além da prisãoprédio as periferias como campos de concentração a céu aberto em Pedro Vieira e Vera Malaguti Batista orgs Depois do grande encarceramento cit p 1789 Em todo caso resta que são punidos pela espera que justamente os aparta O novo tempo do mundo FINALindd 184 O novo tempo do mundo FINALindd 184 10042014 152753 10042014 152753 Zonas de espera 185 Por fi m a paralisia dos campos de refugiados onde a liminaridade é maldita nas palavras do antropólogo Michel Agier97 que passamos a acompanhar nessa última vaga da maré punitiva global o tempo morto da anulação total das expectativas98 No epicentro das levas sucessivas de refu giados invariavelmente um ato de violência Volto a lembrar que as guerras hoje são intervenções restauradoras da ordem o que explica seu viés punitivo recorrente A coerção permanente depois faz o resto e como poderia ser de outro modo pois se trata de confi nar E comprimir uma humanidade pela condição liminar em que estão encerrados de uma outra Grande Espera ainda por defi nir Vão na mesma direção as observações de Th iago Rodrigues sobre São Paulo cidade sem horizonte em que os olhos se perdem em periferia quer dizer metáfora aliás exata à parte A periferia deve fi car onde está e as pessoas que nela vivem também Entendase são milhões que não devem ser eliminados mas retidos observados docilizados Em suma governados Modulandose coerção e cuidado também se encaminham expectativas onde não há horizonte Seja como for uma proeza gestionária inclusive por sedentarizar uma população que é puro movimento em todos os sentidos Cf Th iago Rodrigues Tráfi co e campos de con centração SextaFeira São Paulo Editora 34 n 8 nov 2006 p 1328 97 Michel Agier Aux bords du monde les réfugiés Paris Flammarion 2002 cap 17 Os deslocados se instalam nas bordas das cidades É a liminaridade que une todas as situações de êxodo nas periferias urbanas dos países pobres como nos campos Ela é ao mesmo tempo o fundamento do campo enquanto ato de deixar à espera e afastado da sociedade e o próprio lugar dos removidos e refugiados autoinstalados no sentido em que permanecem em zonas periféricas de ocupação provisória ou ilegal Nada pode se consumar totalmente nesses contextos o inacabamento dos processos de integração lhes é consubstancial a quarentena é o seu horizonte Os campos se encontram fora dos lugares e das temporalidades do mundo comum ordinário e previsível Eles vivem num regime de exceção normalmente reservado a uma margem a uma borda do mundo mantido bem à distância ibidem p 66 98 Quem assim se exprime é o já citado estudioso das situações de imigrações forçadas Alexander Betts ao ouvir de um refugiado somali enclausurado por uma situação de dependência total das instâncias humanitárias e congêneres desde 1989 num campo de Djibuti Pessoas não podem viver só de comida e água Esperança é o que nos mantêm vivos Um artigo de luxo não previsto por Enzensberger embora para tais náufragos do tempo liminar se trate de um gênero de primeira necessidade e não de uma trivialidade servida em sermão dominical De resto a ambição daquele refugiado era bem precisa debaixo da sua lona preta uma outra situação liminar há mais de vinte anos na frente da nossa porta desde que assumira o papel informal de profes sor com duas lousas improvisadas apenas desejava para os seus alunos que tivessem a esperança que ele nunca teve de um dia ser outra coisa na vida que não somente um refugiado Cf Carolina Rossetti Viagem sem fi m O Estado de S Paulo cit Fosse um campo livre que se abrisse certamente se ouviria a esplêndida batida na porta O novo tempo do mundo FINALindd 185 O novo tempo do mundo FINALindd 185 10042014 152753 10042014 152753 186 O novo tempo do mundo residual que estorva Uma vez passada a urgência que é o tempo humani tário real seguese a gestão do estado de insegurança permanente em que passam a viver os indivíduos assistidos em torno dos quais o deserto social cresce fora da lei ordinária dos humanos Ato de violência portanto essa entrada brutal num estado de fl utuação liminar como Agier denomina a condição do refugiado este ser à deriva e à espera que nada mais possui a não ser a crueza elementar de sua própria vida biológica Que certamente Agamben poderia então chamar de vida nua e Agier confi rma que é disso mesmo que se trata Como refugiado em princípio está sempre aguardando alguma coisa Temporariamente abrigado naquelas remotas salas de espera nas beiradas do mundo não pode sequer procurar algum trabalho na região em volta para afi nal quem sabe ganhar a vida vida que de resto lhe é dada pelo dispositivo humanitário operando no local Mas a vida que lhe é dado viver é exatamente essa vida nua revelada pelo descompasso entre a existência social e política anulada pelo confi namento compulsório e os mínimos vitais que lhes são contudo dispensados proteção alimentação saúde Enquanto espera imobilizado num campo o refugiado por certo vive mas não existe mais Tampouco seus guardiães por volta de 500 mil na ativa hoje em dia que trabalham para assegurar a disciplina da es pera ou melhor que só estão naqueles confi ns porque se trata precisamente de um trabalho o trabalho da intervenção humanitária aliás rigorosamente contemporâneo da correspondente profi ssionalização da guerra Mas ur gência é urgência todo esse trabalho é precário por defi nição uma chance ocasional sem amanhã salvo a renovação dessa emergência perpétua numa palavra tanto para os operadores dos campos quanto para a massa dos seus habitantes mais uma vez a espera é a única urgência na fórmula de Bayart A expressão de Marc Agier náufragos da liminaridade caracteriza a condição em que foram lançados todos esses indivíduos enxotados pela desgraça social sem Estado sem lugar sem função fora não dessa ou daquela lei desse ou daquele país mas da lei como tal são proscritos e fora da lei de um novo tipo São produtos conclui Bauman que esta va começando a citar do que ele mesmo Bauman denominou global frontierland algo como uma terra de ninguém que vai se expandindo à medida que se desmancha a Era do Espaço que acompanhou a formação da economiamundo do capitalismo histórico uma erosão sobretudo interna e não apenas confi nada aos territórios exteriores submetidos ao fl agelo das novas guerras sejam elas de intervenção dos Estados hegemônicos ou de O novo tempo do mundo FINALindd 186 O novo tempo do mundo FINALindd 186 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 187 apropriação direta por milícias interpostas99 Pois é nessa terra de fronteira que caracteriza o espaço do novo tempo do mundo sem jamais se saber ao certo se tal condição é transitória ou permanente que se encontram atolados esses foras da lei de um novo tipo sendo além do mais da natu reza dessa nova fronteira impor àqueles que transitam por essas margens internas uma espera também nunca vista desde que se erguem barreiras para subjugar os que caíram em desgraça inculcandolhes de quebra uma impaciência apassivadora que corrompe sem fermentar Debaixo da lona uma espécie de peregrinação que é pura estação Mesmo que fi quem parados num lugar por algum tempo estão numa jornada que nunca chega ao fi m já que seu destino de chegada ou de retorno permanece eternamente inacessível100 Voltaremos ao ponto Não escapou igualmente a Bayart o paradoxo dessa espera em movimento a espera no limiar do globo não é apenas estagnação mas também movimento e integração subordinada antes que exclusão ou marginalidade mas agora incluindo nessa condição liminar que produz igualmente relações sociais ainda que temporárias e hierárquicas no deslocamento permanente dessas populações fl utuantes e transitivas da frontier o nomadismo dos contrabandistas e demais contraventores fi scais101 Por onde se vê mais uma vez continua o nosso autor que independentemente do que se espere e tal é também o caso do trabalhador imigrante clandestino todo movimento de espera em situação liminar encontrase intimamente imbricado no e com o Estado Vem daí o viés punitivo onipresente E o rosário de violências que se sabe Sobre o limiar em que se vê lançada a vida nua desses homens e mulheres lentos embora se deslocando de ceca em meca inclusive pelos recantos mais inóspitos de assentamentos que valem por uma conurbação paira uma nova e espessa invisibilidade acrescenta nosso autor recobrindo toda sorte de punições arbitrárias injúrias pancadas nudez privação de alimento abstinência sexual etc Defi nitivamente não se inventou nada de novo em Abu Ghraib apenas um outro centro mais espetacular de retenção numa global frontierland Lá não se punia por petróleo mas para fazer sofrer e aprender a se pôr no seu lugar 99 Zygmunt Bauman Society under Siege Cambridge Polity 2002 cap 3 e do mesmo autor Vidas desperdiçadas cit p 956 100 Ibidem p 96 101 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 424 O novo tempo do mundo FINALindd 187 O novo tempo do mundo FINALindd 187 10042014 152754 10042014 152754 188 O novo tempo do mundo É claro que a fórmula náufragos da liminaridade não se aplicaria sem despropósito aos agentes encarregados de resgatar sobreviventes e afogados mas não deve ser implausível a suposição de que padeçam igualmente sub mersos naquele oceano de vítimas do mesmo mal que os corrói algo como o trabalho atroz do inumanitário se for possível falar assim102 Comprimidos entre a urgência e a espera estão de fato envolvidos no trabalho execrável de gestão por certo humanitária de populações sem caminho de volta as mais indesejáveis do planeta impossível desconhecer que a rejeição delas é irreversível Acresce que integram o poder constituído do campo A boa marcha dessa quarentena infi nita requer assim além de um dispositivo alimentar e sanitário a presença de um poder de polícia Toda urgência institui um novo poder de polícia Como todo universo de confi namento segregador um assentamento precário de milhares de internos onde vigora além do mais um regime suspensivo inerente àquela situação de exceção alimentada pela emergência encontrase às voltas com todo tipo de turbu lências que demandam um serviço permanente de ordem e por assim dizer lei ou melhor regra Um princípio securitário de ordem assegurado por uma polícia encarregada antes de tudo de sustentar o poder imediato das organizações internacionais sobre a vida dos viventes reagrupados no campo Senso comum mas nem tanto Em princípio um campo de refu giados situase no extremo oposto de um campo de prisioneiros ou pior de concentração E no entanto observa Agier vêse a mesma contingência de instituir como naqueles um quadro igualmente rígido de comando no limite rapidamente alcançado no instante mesmo em que a urgência explode chegase à conclusão de que o socorro humanitário só é efi caz se implicar sem maiores mediações uma ordem policial Um elo afi nal na grande segregação planetária a guetoização avançando pelos dois extremos a voluntária em que se imobilizam as elites cinéticas a coercitivapunitiva em que a ralé mundial vai aprendendo a esperar em movimentos erráticos ou em fi las estacionárias 102 Amalgamando os respectivos raciocínios de Joseph Torrente Travail et banalité du mal Revue dhistoire de la Shoah Paris n 175 2002 amplamente comentado no estudo Sale boulot publicado neste volume e em Bernard Doray Le taylorisme une folie rationnelle Paris Dunod 1981 O novo tempo do mundo FINALindd 188 O novo tempo do mundo FINALindd 188 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 189 14 O tempo morto que a onda punitiva contemporânea arrasta consigo sendo antes de tudo um tempo de espera em ponto morto um tempo de expectativas decrescentes como de resto seu duplo em tempo real um contratempo perene chumbando nos espaços liminares uma popu lação idem sendo portanto um tempo de todas as exceções é no limite um tempo essencialmente administrativo próprio de um Estado ao seu modo peculiar Social e colonizado pelo seu braço penal como vimos Wacquant demonstrar em toda sua extensão Como se trata de punir pela espera literalmente um choque por isso mesmo embalado pela frase feita da estupidez governante choque de gestão mais do que um rótulo roído até o osso uma ameaça que lá embaixo todos entendem JeanFrançois Bayart também pode afi rmar que em larga medida a espera constitutiva da experiência liminar é fruto da ação burocrática a fi la diante dos guichês de cadastramento ou dos controles da polícia a espe rança de que o cargueiro enferrujado engane ou se arranje com a vigilância da guarda costeira a espera na fi la do direito de asilo que os funcionários recusam durante meses ou anos ainda a fi la à hora das refeições diante do caldeirão de sopa da administração humanitária dos campos ou num abrigo de resgatados do mar103 Novamente o sopro profético da grande espera kafkiana não deixa de enregelar não obstante o abismo histórico entre uma e outra espera Aura metafísica despistadora a menos o mesmo cerne jurídicoadministrativo punitivo encardido pela latente onipresença de forasteiros espezinhados batendo à porta e cuja vida é um chegar a vida toda como mostrou Gün ther Anders que não poderia defi nir melhor o universo liminar cuja travessia infi ndável também se apresenta como a soma de esforços inúteis para chegar a um Além outra vez Anders que não é o futuro nem o mundo de amanhã mas o mundo existente Não é preciso ir até o Castelo ou se emaranhar no labirinto processual da exceção jurídica acintosa basta lembrar do desti natário da Mensagem Imperial o súdito lastimável a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial104 e também de como são vãos os esforços do portador daquele mítico bilhete de ingresso 103 JeanFrançois Bayart Le gouvernement du monde cit p 426 104 Franz Kafka Um médico rural trad Modesto Carone São Paulo Brasiliense 1990 p 39 O novo tempo do mundo FINALindd 189 O novo tempo do mundo FINALindd 189 10042014 152754 10042014 152754 190 O novo tempo do mundo Continua sempre forçando a passagem pelos aposentos do palácio mais interno nunca irá ultrapassálos e se o conseguisse nada estaria ganho teria que percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos pátios o segun do palácio que os circunda e outra vez escadas e pátios e novamente um palácio e assim por diante durante milênios O tempo morto que vai se depositando no centro imóvel do rede moinho contemporâneo é um ricochete gerado pelo abrir e fechar das comportas de controle estatal ou agências terceirizadas a que se delegou poder coercitivo dos fl uxos perniciosos a aluvião tóxica de encarceráveis refugiados imigrantes guetoizados clandestinos do trabalho etc basica mente efeito do controle desses fl uxos que geram insegurança Recapitule mos por outro ângulo nosso motivo de fundo a saber que a onda punitiva sobre cuja crista se dá a ascensão do Estado PenalSocial é uma resposta ao crescimento da insegurança social 15 Com efeito a disciplina da espera que pune pela imobilização a irregula ridade das populações liminares sendo o admirável mundo novo do trabalho redisciplinado o maior sorvedouro dessa liminaridade a ser regulada integra um dispositivo de governo seja na acepção de BourdieuWacquant que se viu seja na redescrição de Foucault o Estado governamentalizado assentado sobre o tripé população economia política e segurança no interior do qual se desenrola toda a nova economia da violência que dá régua e compasso à virada punitiva de agora E se é verdade que se governa conduzindo condutas se procurarmos certamente iremos encontrar incontáveis zonas de espera na intersecção de contato entre o governo dos outros e o governo de si com a diferença de que não se cuida mais de si quando historicamente a espera deixa de ser um horizonte e o seu aprendizado sofrido como um suplício Ou melhor quando o horizonte contemporâneo tornouse nada mais nada menos do que a securização de um risco permanente e incontornável contra o qual toda precaução é pouca como também se viu A contenção punitiva e seu arsenal disciplinar é o espasmo contínuo acionado por todo um sistema de alertas pelo qual se deixa reconhecer a governamentalidade securitária na qual ingressamos e cuja razão de ser na boa explicação de Frédéric Gros é o controle a redução ou a eliminação de todos os riscos de agressão incor ridos não por sujeitos de direito mas por indivíduos considerados na sua O novo tempo do mundo FINALindd 190 O novo tempo do mundo FINALindd 190 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 191 exclusiva dimensão de seres vivos onde direitos e deveres contam menos que os pontos de vulnerabilidade a proteger por medidas de precaução ou pontos de defesa vital a serem otimizados105 Governase continua nosso autor fundamentalmente uma única comunidade de viventes integrados por uma série de continuidades a começar pelo continuum punitivosecuritário privilegiado por Wacquant estendendose do policialcarcerário ao militar o das ameaças do risco alimentar ao risco terrorista o da violência da catás trofe natural à guerra civil o da intervenção da agressão armada contra um Estado pária ao socorro humanitário enfi m o continuum das vítimas do refugiado em estado de choque ao menor abusado A insegurança a que se responde recobre assim o inteiro mundo dos organismos biossociais semo ventes do vírus ao atentado da sexualidade ao meio ambiente A resposta punitiva à insegurança social justamente insere a população liminar sobre a qual incide preferencialmente nesse grande quadro do governo segundo a lógica da intervenção ativa guiada pela racionalidade sumária do risco que engloba num só alvo por exemplo delinquência doença e subemprego Não será exagero portanto assinalar o viés de contenção punitiva na neblina que está baralhando todas as distinções clássicas como na confl uência militar humanitária ou penalsocial com as quais já nos deparamos ao longo dessa digressão A polícia e o exército a diplomacia e as empresas privadas de segurança mas também a medicina e as agências humanitárias os centros de saúde pública e os laboratórios privados todos conspiram num mesmo esforço de securização do indivíduo106 E o fazem por meio de um número crescente de intervenções e preci samente a punitiva é a mais espetacular delas invariavelmente orientadas pelo onipresente princípio de precaução à sombra do qual se multiplicam em nome da missão protetora de um Estado cada vez mais preventivo responsabilizações individualizadas de toda sorte cujo ponto culminante é a vigilância exercida pelo próprio indivíduo sobre si mesmo que assim se autogoverna O sistema geral de vigilância é assim assumido por um estado de vigília individual uma tensão permanente que cada um tome suas precauções contribuindo para a segurança de todos pela generalização desse 105 Frédéric Gros États de violence essai sur la fi n de la guerre Paris Gallimard 2006 p 21543 Ver ainda do mesmo autor Le management sécuritaire Le Monde 20 nov 2010 p 16 106 Idem États de violence cit p 236 O novo tempo do mundo FINALindd 191 O novo tempo do mundo FINALindd 191 10042014 152754 10042014 152754 192 O novo tempo do mundo estado de alerta permanente107 Qualquer desvio será punido e corrigido por uma intervenção restauradora antepondose a perigos intervenções não criam nem instituem nada seus agentes devem portanto acionar dispositivos de ameaças ativas que permitam afastar de maneira contínua perturbações potenciais e afastálas em última instância de pessoas tomadas em sua exclusiva condição de seres vivos Todos estão assim em permanente es tado de alerta intervindo policiais militares psiquiatras humanitários etc Das populações à informação tudo é fl uxo a ser controlado tudo é objeto de segurança alimentar sanitária energética etc Assim sendo a resposta penal maximizadora da insegurança social é uma intervenção entre outras estratégica sem dúvida mas é bom não esquecer que o fl uxo de populações liminares que ela regula comporta todas as demais ramifi cações da sanitá ria à humanitária Mas também não é menos evidente a percepção de que a onda punitiva tanto a concentrada quanto a difusa só se impõe como uma reviravolta histórica a partir do momento em que o vínculo político a legitimidade da autoridade estatal é apagado pelo nexo da vigilância que integra o indivíduo vivente a todo um sistema de segurança Tudo isso dito e resumido porque segundo nosso autor a guerra tal como a conhecemos como confl ito armado público e justo na defi nição clássica de Alberico Gentili está se apagando lentamente suplantada pelos estados de violência que desde então se abriram diante de nós regulados por processos securitários que apenas prometem diminuir os riscos e perigos de uma interminável cadeia de violência que dos vírus e micróbios remonta até a proliferação nuclear passando pelos maus fl uxos das populações irregulares por isso mesmo direcionadas para as zonas de espera da vida margens asseguradas pelo mesmíssimo sistema securitário onde os estados de violência podem então escalar livremente A segurança como sistema onipresente de proteção se reproduz em cada um dos assegurados centrais como ethos da precaução e nos demais fl utuando nos espaços liminares se traduz como a disciplina da espera que imobiliza os portadores daqueles riscos e perigos que se trata de expelir A onda punitiva que nos ocupou até aqui é assim coextensiva a esse estado de violência regulado pelo novo management securitário O tempo morto da onda punitiva é o tempo ora morno ora vertiginoso do estado de alerta indefi nido que veio substituir o tempo descontínuo do perigo de guerra que antes mobilizava a nação 107 Ibidem p 235 O novo tempo do mundo FINALindd 192 O novo tempo do mundo FINALindd 192 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 193 adaptando ao nosso argumento as distinções preciosas de Frédéric Gros em seguida o tempo continuamente ameaçador da destruição mútua as segurada pela guerra nuclear absoluta Perigo ameaça e risco outros três horizontes de expectativas em escala histórica decrescente cada um dotado de um regime de espera específi co No antigo regime da espera a guerra podia ser um sinal da virada nas intervenções militares de hoje são outros tantos sinais da virada punitiva em curso 16 O sinal da virada com efeito Deve ter havido um tempo em que Saltávamos como crianças nem sempre de susto assim que a campainha soava Seu som rasga a sala silenciosa e oca especialmente ao anoitecer Talvez agora tenha chegado aquilo que obscuramente se tenha em mente aquilo que procuramos e que por sua vez procura a nós Sua dádiva transforma e melhora tudo traz novo tempo O som dessa campainha permanece em cada ouvido associase com todo chamado agradável vindo de fora Se houve de fato faz muito tempo mesmo Um contemporâneo não necessariamente cínico se perguntaria de que estrela já extinta estaria chegando essa mensagem incompreensível mesmo se sua expectativa ao toque do interfone não se limite ao entregador da farmácia Quando Ernst Bloch escreveu essas linhas108 a campainha podia muito bem anunciar uma visita da Gestapo e no entanto por maior que fosse a escuridão do momento presente nada garantia que o novo tempo não fosse o princípio do tempo do fi m seu teorema de abertura poderia ser tudo menos uma receita para se vender esperança em lata Só a cegueira terminal de hoje acredita já ter visto e ouvido tudo109 Mas não a dupla surpresa quem sabe se o torpor não for absoluto ocasionada por uma frase que na mais completa 108 Ernst Bloch O princípio esperança trad Nélio Schneider Rio de Janeiro Contra ponto 2005 v 1 p 48 109 Os mesmos cuja afetação chega por vezes ao extremo de evocar certamente em vão o nome de Proust sem no entanto jamais alcançar distinguir no som da campainha de Bloch que rasga a sala silenciosa e oca ao anoitecer anunciando o grande despertar que está vindo o mesmo tilintar álacre ferruginoso interminável agudo e claro da sineta do jardim de Combray que repercute no Narrador como um outro sinal da virada a redescoberta do tempo que chegara a julgar irremediavelmente perdido Ver Marcel Proust Tempo redescoberto Rio de Janeiro Globo 2012 selo Biblioteca Azul O novo tempo do mundo FINALindd 193 O novo tempo do mundo FINALindd 193 10042014 152754 10042014 152754 194 O novo tempo do mundo contramão de tudo o que se disse até agora recomenda o contrário com as mesmas palavras de sua antípoda O que importa é aprender a esperar afi rmava Bloch em 1938 quando a rigor ninguém esperava mais nada salvo o pior A essa altura não vou é claro reapresentar a política do sonharparaafrente preconizada por Bloch porém sonhar acordado lembrando que o sonho diurno não pede interpretação mas reclama secretamente a transformação do mundo tampouco sua lógica não menos onírica A ainda não é A muito menos sua antropologia utópica em que um ser nascido prematuro é caracterizado por um afeto de expectativa na origem de uma consciência antes de tudo antecipatória ou ainda sua fi losofi a da experiência da história na qual desaba a compartimentação entre futuro e passado no qual por sua vez o futuro que ainda não veio a ser tornase visível enquanto o passado vingado e herdado mediado e plenifi cado tornase visível no futuro etc110 Basta lembrar mais para constar pois é duvidosa sequer sua compreensão verbal da parte dos nativos do presentismo contemporâneo que para esse fi lósofo de uma outra Era o ato de esperar não paralisa nem resigna muito menos é fonte banal de ressentimento pelo atraso intolerável etc Agora seria o anacrônico Bloch encalhado no tempo em que o afeto na espera ampliava as pessoas em vez de estreitálas que não entenderia mais nada 17 Para agravar e melhor ilustrar esse notável curtocircuito em torno da in versão de sinal da espera como disciplina e aprendizado seria o caso de convo car uma outra circunstância histórica de positivação da necessidade de esperar reconstituída por Zygmunt Bauman numa breve digressão sobre o sentido moderno da procrastinação111 Remontando à raiz latina da palavra o cras quer dizer amanhã porém um amanhã sufi cientemente elástico para incluir o mais tarde do futuro o crastinus por sua vez é o que pertence ao amanhã relembra que procrastinar é pôr alguma coisa entre as coisas que pertencem ao amanhã Em resumo procrastinar é manipular 110 Fora do círculo cada vez mais restrito de especialistas para quem está ouvindo falar de Bloch pela primeira vez no atual deserto de tudo recomendo o pequeno livro de iniciação de Suzana Albornoz O enigma da esperança Ernst Bloch e as margens da história do espírito Petrópolis Vozes 1999 111 Zygmunt Bauman Modernidade líquida cit p 17881 O novo tempo do mundo FINALindd 194 O novo tempo do mundo FINALindd 194 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 195 as possibilidades da presença de uma coisa deixando atrasando e adiando seu estar presente mantendoa à distância e transferindo sua imediatez Mal começamos a reconhecer o terreno familiar outra inversão de sinal Contra uma impressão que se tornou comum na era moderna a procras tinação não é uma questão de displicência indolência ou lassidão é uma posição ativa prossegue Bauman Nova viragem igualmente positivadora desta vez apontando para um processo de subjetivação incipiente que ao se completar já na forma de uma prática cultural assinala a entrada em cena dos tempos modernos entendamos um novo signifi cado do tempo do tempo que tem história que é história um tempo que em princípio está viajando no caso em direção a outro presente distinto e mais desejável do que o presente vivido agora Voltamos a respirar uma atmosfera familiar pois a procrastinação assim entendida deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma pere grinação Obviamente grifo meu Uma idade histórica à frente os espaços liminares que se viu foram percorridos como uma peregrinaçãoexpiação não como um movimento que se aproxima de um porto seguro mas como um horizonte sem fi m que mais se afasta quanto mais nos aproximamos Em ambas as circunstâncias separadas no entanto pela mutação que se sabe viver a vida como uma peregrinação transcorre em direções opostas ou melhor na sua segunda idade já não há mais nenhuma progressão Ao passo que no tempo vivido como uma peregrinação uma jornada para todos os efeitos cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois Qualquer valor que este presente aqui e agora possa ter não passará de um sinal premoni tório de um valor maior por vir a tarefa do presente é levarmos mais para perto desse valor mais alto o sentido do presente está adiante o que está à mão ganha sentido e é avaliado pelo nochnichtgeworden pelo que ainda não existe Viver a vida como peregrinação está longe portanto de ser uma via de mão única Obriga cada presente a servir a alguma coisa que aindanãoé e a servila diminuindo a distância trabalhando para a proximidade Mas se a distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado o presente perderia tudo o que o fazia signifi cativo e valioso Pensando melhor se assim for a imagem gasta do horizonte que se afasta quanto mais nos aproximamos dele tornase pertinente sob nova luz É a ideia mesma de Horizonte de Expectativa formulada por Reinhart Koselleck nos termos que se viu e O novo tempo do mundo FINALindd 195 O novo tempo do mundo FINALindd 195 10042014 152754 10042014 152754 196 O novo tempo do mundo tanto mais palpável como parâmetro do que se deve compreender como regime histórico moderno quanto mais se afasta do Espaço de Experiência porém sem ruptura total sob pena de desorientação ou delírio voluntarista Sem prejulgar em favor das alternativas em disputa não é difícil perceber que um século atrás o falso dilema Reforma ou Revolução para fi car no campo socialista girava em torno desses polos conceituais ou o Movimento é tudo ou só o desfecho conclusivo é o enigma resolvido de toda a jornada da humanidade sua travessia do reino da necessidade rumo à liberdade Retornando à reconstituição de Bauman sobressai a racionalidade específi ca privilegiada pela vida do peregrino nem instrumentalmente rasa colada à duração presente nem absoluta brilhando apenas ao termo apoteótico da jornada a saber essa racionalidade híbrida da qual decerto não teremos mais notícia leva o peregrino à busca dos meios que podem realizar o estranho feito de manter o fi m dos esforços sempre à vista sem nunca chegar lá de trazer o fi m cada vez mais para perto mas impedindo ao mesmo tempo que a distância caia para zero A vida do peregrino é uma viagem em direção à realização mas a realização nesta vida é equivalente à perda de sentido Só que esse sentido não pode sobreviver à chegada ao destino Foi quando o futuro basculou de um só golpe no deserto do presentismo atual arrastado pela Queda do Muro passando agora para o campo do capitalismo vitorioso o teor de verdade do livro de Fukuyama que afi nal renegou por falta de fi bra para sustentar a nota reside na visão de que algo de substantivo na experiência da história desmoronou junto arrastado pela queda daí a fi guração do último homem se debatendo no formalismo de um domingo sem dias úteis pois no mundo do trabalho dominado só há festa na exceção Seja como for aquela avalanche não soterrou pouca coisa sobretudo a real matriz prática de todo esse redesenho do regime temporal da modernidade capitalista no limite a acumulação interminável como procrastinação e seu duplo antagônico o socialismo como movimento antissistêmico igualmente ambivalente até a medula a saber a jornada do trabalho não só contraída até sua menor célula fabril mas distendida até o extremo limite de uma metáfora de época Aqui a escola onde realmente se aprendia a necessidade de esperar A radiografi a padrão do desarranjo radical dessa unidade básica do capitalis mo moderno a jornada de trabalho encontrase como sabido no livro de Richard Sennett sobre as consequências pessoais do trabalho no novo O novo tempo do mundo FINALindd 196 O novo tempo do mundo FINALindd 196 10042014 152754 10042014 152754 Zonas de espera 197 capitalismo112 Unidade de medida de tempo basicamente um tempo ativo e cumulativo do qual obviamente não se tem mais notícia para não falar em experiência a começar pela do longo prazo e todo seu cortejo de vínculos impensáveis numa sociedade impaciente Embora aprisionada pela alienação ou justamente por isso uma vida de trabalho era a seu modo uma peregrinação em todos os sentidos seminal A disciplina do fl uxo a curto prazo a violência mesma do tempo da urgência acabou impondo a uma vida de trabalho narrável uma segunda alienação se é que se pode falar assim o desconjuntamento de uma deriva drift um mosaico de mudanças sem antes nem depois Talvez seja mais do que uma ironia crucial o destino compartilhado pelo homem do trabalho fl exível retratado por Sennett à deriva num mar de insignifi câncias e o barco literalmente na mesma condição de navegação a esmo dos novos peregrinos perdidos no mar Ironia suplementar a observação de Sennett acerca da acumulação de tempo no antigo capitalismo escorado por sindicatos e previdência própria quando então o tempo era o único recurso que os que estavam no fundo da sociedade tinham de graça Qualquer que seja no entanto o fi o por onde se puxem essas vidas vividas como peregrinação resta que a jornada entre tempos lugares classes sociais etc é uma experiência crucial geradora de signifi cação e que foi essa forma histórica que se desmanchou com a grande mutação presentista de nossa época Entre parênteses só para que se possa avaliar a magnitude dessa matriz hoje avariada basta lembrar toda jornada exigindo uma explicação que não são poucos nem desimportantes os antropólogos que situam o enigma da jornada do nascimento à morte na origem das religiões113 112 Cf A corrosão do caráter trad Marcos Santarrita 15 ed Rio de Janeiro Record 2010 Na edição original Th e Corrosion of Character Th e Personal Consequences of Work in the New Capitalism Nova YorkLondres Norton 1998 Signifi cativamente a tradução brasileira encontrase na 15ª edição Sua recepção tornouse ela mesma um sintoma 113 Ver a respeito Benedict Anderson Nação e consciência nacional trad Lólio Lourenço de Oliveira São Paulo Ática 1989 para as jornadas da imaginação na genea logia da ideia moderna de nação À qual se poderia acrescentar outra jornada não menos evidente em sua dimensão épica o romance que o século XIX reinventou e deságua na peregrinação de toda uma vida num só dia na Dublin de Joyce Como dizia Lukács no hoje longínquo A teoria do romance tudo isso tem de vir de algum lugar e ir para algum lugar trad José Marcos Mariani de Macedo São Paulo Duas CidadesEditora 34 2000 p 130 Não custa lembrar também sempre O novo tempo do mundo FINALindd 197 O novo tempo do mundo FINALindd 197 10042014 152754 10042014 152754 198 O novo tempo do mundo Como fi camos Pelo menos em condições de rever por este ângulo o paradoxal movimento imobilizador das populações liminares através das zonas de espera do capitalismo global a saber como peregrinações nas quais se está de fato reaprendendo a esperar seja qual for o teor ocasional de cada expectativa em particular De um modo ou de outro será sempre oportuno relembrar de novo na esteira de JeanFrançois Bayart a circunstância de que historicamente toda experiência liminar é indutora de processos de subjetivação Foi assim para dar um exemplo maior com os primeiros portadores de uma escolha de conduta de vida cristã entre escravos libertos e fugitivos na Roma antiga Sem falar para apenas mencionar um segundo caso de primeira grandeza na gênese subterrânea nas zonas de espera na nascente sociedade industrial de uma outra conduta de difícil governo a vida operária Sem com isso querer dizer que o renascimento do horizonte do mundo se ocorrer se dará antes de tudo pelas veias abertas em suas zonas de retenção a título de comparação com o que fi cou para trás e de tão remoto se torna outra vez contemporâneo que em A Montanha Mágica de Th omas Mann uma outra Grande Espera transcorre num tempo de fato incomensurável até sua consumação pelo despertar ensurdecedor da Grande Guerra de 1914 O novo tempo do mundo FINALindd 198 O novo tempo do mundo FINALindd 198 10042014 152754 10042014 152754