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Filosofia
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Paulo Arantes Franklin Leopoldo e Silva Celso Favaretto Ricardo Fabrini Salma T Muchail org A FILOSOFIA E SEU ENSINO vozes Petrópolis em coedição educ editora da pucsp São Paulo 1995 CRUZ COSTA BENTO PRADO JR E O PROBLEMA DA FILOSOFIA NO BRASIL UMA DIGRESSÃO PAULO EDUARDO ARANTES Cruz Costa insistia sem parar na necessidade de aplicar a reflexão ao Brasil mesmo que para isso fosse preciso sair da filosofia estritamente concebida Antonio Candido 1 No Brasil a falta de assunto em filosofia é quase uma fatalidade Razão a mais para transformála em problema Não é uma questão de talento mas de formação Não se trata nem mesmo de formação pessoal embora uma não vá sem a outra Hoje em dia esta última se encontra ao alcance de todos nas boas universidades do país Aliás não há outro caminho pois a cultura filosófica contemporânea é essencialmente universitária uma especialidade entre muitas Sucede que já esse ideal de formação intelectual harmoniosa se desfaz em ficção dourada tão logo o devolvemos ao chão bruto do qual depende a tara gentil da mal formação real do país um conjunto de singularidades plasmadas ao longo do tempo pela expansão desigual do capitalismo Um sistema mundial descompensado que teima em deixar literalmente nossos filósofos a ver navios Todo intelectual razoavelmente atento às idiossincrasias da civilização brasileira que lhe roubam o fôlego sabe salvo nos casos bem conhecidos de cegueira olímpica o quanto pesa a ausência de O que segue é um suplemento ao estudo Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60 publicado no 2º número da revista Filosofia Política 1985 LPM UNICAMPUFRGS Cf Bento Prado Jr O Problema da Filosofia no Brasil In Alguns ensaios Max Limonad São Paulo 1985 do mesmo autor Cruz Costa e a História das Ideias no Brasil in Inteligência brasileira obra coletiva Brasiliense São Paulo 1986 linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação A proliferação dos títulos apresentados na ensaística de explicação do país atesta a dimensão do problema em uma obsessão nacional para cuja abrangência e ramificações Roberto Schwarz foi um dos primeiros a chamar a atenção São ensaios que de fato procuram registrar tendências reais na sociedade apesar da atrofia congênita que tmbra em abortálas no mais das vezes porém traduzem antes o propósito coletivo de dotar o meio amorfo cujo indiferentismo enerva como dizia o dr Pereira Barreto de uma espinha dorsal moderna que o sustente Para ficar nos mais conhecidos deles formação econômica do Brasil formação do Brasil contemporâneo formação política do Brasil formação da literatura brasileira etc Como se vê nossa formação à qual Nabuco deu um cunho pessoal e autocomplacente é perseguida como um ponto de honra nacional e com tanto mais denodo quanto raramente parece dar certo a começar pela esfera intelectual que nos interessa mais de perto Nada soma não há seriação Sílvio Romero os surtos inconclusivos são a regra Corre por esse trilho o desabafo de Mário de Andrade a nossa formação nacional não é natural não é espontânea não é por assim dizer lógica Naturalidade espontaneidade e lógica estão evidentemente do outro lado do oceano Diante da barafunda da imundície de contrastes que somos ainda Mário de Andrade não há dúvida que o ideal de harmonia e inteireza só pode ser a vinculação relativamente consistente que na tradição européia associa a vida do espírito ao conjunto da vida social No que concerne à literatura Antonio Candido deu forma clássica ao problema além de fixar os termos de um cotejo obrigatório Comparada à literatura a filosofia ocupa um lugar subalterno no panorama da cultural nacional novamente menos uma falsa questão de mérito e precedência do que um problema de formação Ou melhor há mérito próprio e precedência mas por motivo de circunstâncias históricas variadas Em primeiro lugar o prestígio meio torto e colonial do verbo literário como padrão de cultura Encimando esse pedestal mais desfrutável a pedra de toque ideológica representada pela literatura que tem sido aqui o fenômeno central da vida do espírito uma inflação literária a serviço da consciência nacional da exposição e revelação do Brasil aos brasileiros Até aí uma parte muito abstrata da lição de Antonio Candido à qual acrescento que nem de longe foi este o caso da filosofia a qual não se prestando à figuração da realidade nacional a construir não somava experiências Quem porventura tenha percorrido a historiografia em mangas de camisa de João Cruz Costa constatará um tanto sufocado e injustamente tentado a atribuir ao seu autor o acanhamento de perspectiva que lhe vinha do material de segunda mão com que lidava que nela a rigor nada se passa nada se encadeia a não ser a colcha disparatada de artefatos retóricos destinados a ofuscar os confrades De um lado portanto um sistema literário em formação o projeto mais ou menos consciente de formação de uma continuidade literária penhor de desenvolvimento cultural autosustentado verdade que minado na contramão pelos azares da vida intelectual a reboque a ponto de cada geração de escritores verse condenada a recomeçar da capo sob o influxo da última influência ultramarina até Machado romper este círculo vicioso completando o ciclo de nossa formação literária Do outro lado apenas folhas mortas no toverlinho de nossa indiferença como Sílvio Romero denominava o mosaico de pastiches bisonhos a que se resumia nossa bruxuleante curiosidade filosófica Uma falta de formação de resto inexistente cuja cifra só poderia ser a mais completa falta de assunto Incomensurável deserto se pensarmos um pouco o quanto custou a Machado de Assis favorecido além do mais por uma linha evolutiva que as cogitações filosóficas de nossos letrados não conheceram atinar finalmente com a matéria literária justa Assunto introuvable em virtude de uma formação que não houve vício de origem que não carece de alcançar clareza e distinção para pesar na memória coletiva de nossos filósofos emperrandolhes a mão despertando a inibição e a vocação dos mais tímidos que farejam a gafe no ar Se conheço bem um dos protagonistas desta Digressão posso imaginálo a esta altura ruminando a seguinte máxima ad hoc em matéria de assuntos em geral seja em literatura como em filosofia a única coisa recomendável é não prescrevêlos E mais prevendo com razão o pior Bento Prado atalharia em dois tempos um raciocínio que a seu ver ameaça desandar para lembrar em nome da grande e lamentável família dos filósofos tímidos e não obstante o sal da terra que não teme menos o ridículo já que insisto do que a camisa de força do assunto suposto real atual global o que seja que cedo ou tarde a continuar neste diapasão tentarei impingirlhe Além da mais não é de hoje que a linha justa desse passo em falso o inquieta Recordaria ato contínuo o que escreveu nos idos de 60 sobre a fonte dos equívocos cometidos por Cruz Costa a consciência do vazio cultural faz com que até mesmo o historiador das idéias tenha uma preocupação essencialmente prospectiva o que ele busca no passado são os germes do que acredita que a filosofia deve ser no futuro É como se tentássemos na inspeção de um passado nãofilosófico adivinhar os traços de uma filosofia que está por vir Os laços de família não poderiam ser mais comprometedores Pois afinal o que busca na experiência negativa do passado o discípulo recalcitrante senão os germes do assunto filosófico que mais nos convêm Não há outra explicação para o zelo historicista desmesurado em expor as raízes nacionais de um detalhe corriqueiro refirome à linhagem brasileira dos filósofos tímidos de cuja genealogia ocupeime noutro lugar cf O bonde da filosofia e mais particularmente aos escrúpulos razoáveis de qualquer autor que pensa duas vezes porém sem a demasia emblemática de Bento Prado que esperou mais de duas décadas para reunir em volume alguns de seus ensaios antes de vir a público O que explica então este cerco meio extemporâneo a não ser a intenção oblíqua de ajustar a universalidade de direito do discurso filosófico livre ao assunto enfim encontrado e além do mais talhado segundo o metro literário construtivo que nos serviu de termo de comparação quer dizer perdido para sempre 2 Antes que o malentendido se avolume refaço o caminho no começo do qual se encontra a sensação mais ou menos viva de desconforto experimentada por quem cuida de filosofia no Brasil um certo sentimento íntimo de andar meio à deriva justamente à procura de assunto É inegável de fato o caráter normativo da noção de formação que nos tem servido de norte ditado pelo ideal europeu de civilização integrada Acresce ainda nos termos em que Antonio Candiido fixou a questão ao opor sistema literário em formação a manifestações literárias avulsas que tal idéia repercutia um programa crítico afinado com o processo em questão a saber que a capacidade de produzir obras de primeira ordem influenciadas não por modelos estrangeiros imediatos mas por exemplos nacionais anteriores causalidade interna que acelera o processo de maturação do dito sistema no interior do qual os empréstimos externos passam a gozar então de existência literária configura um estágio fundamental na superação da dependência Completando a deixa Roberto Schwarz vem fazendo em mais de uma ocasião o balanço do estrago provocado pela preterição do influxo interno hoje muito menos inevitável do que nos tempos de Machado como costuma lembrar o mesmo Roberto O avesso da observação de Antonio Candido a respeito de nossa formação literária sincopada a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar de zero como a resume e amplia Roberto vem a ser o interesse pelo trabalho dos predecessoress entendido não como peso morto mas como elemento dinâmico e irresolvido subjacente às contradições contemporâneas Noutros termos dependência e descontinuidade andam juntas e o prejuízo não é pequeno percepções e teses notáveis a respeito da cultura do país são decapitadas periodicamente e problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia corresponder Em contrapartida não é preciso alinhar com os nativistas para entrevver no funcionamento da causalidade interna descrita por Antonio Candido o preâmbulo da dependência contornada não se trata de continuidade pela continuidade esclarece ainda Roberto Schwarz mas da constituição de um campo de problemas reais particulares com inserção e duração histórica próprias que re colha as forças em presença e em relação ao qual seja possível avançar um passo Na ausência desta terra firme compreendese que nossas cogitações filosóficas girem em falso e os assuntos se evaporem antes mesmo de serem encontrados Inútil lembrar que choveram os equívocos nem me compete repassálos a limpo Limitome apenas a observar que boa parte deles derivava dessa contaminação recíproca de fato e norma convidando a concluir erroneamente que tal exploração de uma tendência duradoura em nosso passado intelectual a consciência de estar fazendo um pouco da nação ao fazer literatura intenção que distinguia nossos letrados dos confrades metropolitanos sancionava um tipo de literatura social por exemplo em detrimento de outro menos vinculado à experiência imediata impondo assim na forma do princípio consagrado pela história uma hierarquia de temas e formas Ledo engano até porque o universalismo confesso de Antonio Candido não é privilégio das grandes literaturas a modulação recorrente das grandes questões fundamentais da assim chamada condição humana alertavao mais do que ninguém para o empecilho estético representado pela sem dúvida inestimável vantagem do atraso de uma formação programada com empenho e consciência E além do mais acrescentaria um pouco daquela gratuidade que dá asas à obra de arte não fará mal a ninguém Uma ressalva que longe de ressuscitar o equívoco oposto devolvenos ao coração do nosso problema pois a gratuidade em questão só floresce com rendimento artístico sobre a terra firme de um ciclo evolutivo consumado que em princípio teria deixado para trás a antiga gratuidade assinalada certa vez por Augusto Meyer nas mais desencadeadas improvisações romanescas de um Alencar preço pago pela nossa prosa de ficção tomada pelo verbalismo engenhoso e farfalhante ao desequilíbrio íntimo da tenuidade brasileira Ora Cruz Costa para voltar ao nosso cotejo passou a vida justamente folheando obrasprimas de gratuidade filosófica Daí a obsessão pelo assunto relevante que o levava a esquadrinhar a mediocridade do nosso passado filosófico à procura dos sinais de nascença que lhe permitissem identificálo e sem dúvida prescrevêlo Paulo que por certo na sua macia lentidão ainda tardariam a amadurecer Noutros termos que a filosofia moderna como todos sabem e já foi dito é antes de tudo uma especialidade universitária e como tal exige preparo técnico relevandose em consequência o vôo raso do autodidatismo Circunstância que Cruz Costa estava longe de ignorar tal o zelo com que abafava sua descrença inata repressandoa dentro dos limites institucionais de uma Cátedra de Filosofia regida segundo mandavam os padrões europeus da excelência Não obstante persistia o velho malestar em nossa cultura filosófica Do lado de Cruz Costa a sensação de estar embarcando numa canoa furada pois o cotejo acima comprometia mais o gênero do que o diletante que podia até revelar pendores especulativos mas quase sempre desacompanhados do menor senso do ridículo fatal naquelas altas paragens do pensamento Do seu longínquo fundo de quintal o que via Cruz Costa Homens de talento perdendose em fumaças filosóficas Exemplos Vejase o caso de Caio Prado Jr com perdão da lembrança sumária muito aquém da sua real envergadura autor de mais de uma obraprima de história econômica do Brasil naufragava no mar morto de uma teoria do conhecimento era o fato do marxismo oficial ter ficado para trás bem longe do nível alcançado pelas forças intelectuais do tempo Não posso determe no caso mais sério de Celso Furtado para o qual é difícil encontrar antecendentes Apenas uma palavra fatalmente esquemática da Formação econômica do Brasil aos últimos livros sobre a crise do capitalismo avançado uma constelação de problemas tomou corpo numa obra ainda em andamento verdadeira raridade num país de vida intelectual atomizada e veleitária sem dúvida uma proeza largamente beneficiada pela assimilação de um saber mal ou bem acumulado nos organismos internacionais em que atuou Como se isto não bastasse deuse no caso uma inversão notável assinalada por Roberto Schwarz nos seguintes termos pela primeira vez um intelectual brasileiro podia refletir sobre o desconcerto do mundo contemporâneo a partir de sua experiência teórica sobre um país subdesenvolvido Sem dúvida um ato de maioria de intelectual precisamente o ato conclusivo do processo de formação do pensamento social brasileiro o qual entretanto não se consumaria caso não tivesse ocorrido nesse meio tempo uma integração mais viva e mais importante do Brasil no capitalismo internacional lembra ainda Roberto Schwarz arrematando o registro daquele ato de maioridade Ora salvo engano uma tal desprovincianização não acompanhou longe disso a meditação de cunho filosófico sobre os destinos da civilização ocidental a que concomitantemente se entrega o autor em seus últimos livros Tropeço corriqueiro Mão pesada do não especialista Ou quem sabe até mesmo um pouco da sede bem brasileira de nomeada que só a especulação filosófica de alto vôo parece conferir em grau superlativo E como conciliar o trocínio de que redundou a maioridade em questão com esse eclipse do mais elementar discernimento Seja o que for mais água para o velho moinho de Cruz Costa cujo ceticismo entretanto não tinha força de argumento Mesmo assim continuei exemplificando parcialmente escolhendo no campo mais desfrutável dos amadores colhendo quando muito um ou outro cacoete da inteligência brasileira que no entanto pesam inclusive nas altas esferas dos grandes juízos sobre o espírito do tempo Além do que é sempre bom lembrar tais percalços são outros tantos efeitos da desastrosa divisão entre as várias competências acadêmicas nas quais tornaremos a esbarrar tão logo voltemos à seara dos especialistas aos filósofos de profissão Nada garante neste ramo tão compartimentado como os demais que se tenha sucesso onde falhou o diletante desavisado ao tentar articular num só golpe de vista os enigmas da prosa de Kafka o progresso técnico uma economia oligopolizada e a crise da humanidade européia Mais uma razão para insistir nesses caminhos cruzados e continuar procurando o assunto filosófico não identificado e no caso segundo a medida de outros processos formativos que se completaram Se isso é fato quer dizer admitido que o âmbito e o teor do raciocínio dito filosófico só se definem ao longo desse esforço muito localizado de identificação conceitual da atualidade se portanto isso é fato peço licença para fechar o parêntese com um outro exemplo agora stricto sensu e como tal normativo para variar re tirado do mesmo repertório de idéias e esquemas explicativos que vem balizando estas conjecturas preliminares Refirome à abertura de um novo ciclo em nossa crítica literária registrada no ensaio de Antonio Candido sobre o Sargento de Milícias Quem o diz é Roberto Schwarz mais ou menos nos seguintes termos cada um deles referência obrigatória toda vez que pensamos na evolução mirrada de nossas letras filosóficas A fase de furor terminológico quando a finalidade da literatura de ensaio era documentar atualização bibliográfica parece coisa do passado alheio está visto Por outro lado completouse também o período cinzento de acumulação universitária de conhecimentos específicos permittindo enfim ao autor Antonio Candido voltarse para o interesse literário tal como a vida o põe o que me diz este livro hoje Ou ainda armado de papel e tinta organizada em princípio para uso próprio a experiência da vida moderna um crítico brasileiro tenta dizer aqui e agora o sentido da vida atual Assim restaurada a vocação interpretativa da crítica onde sempre residiu o seu interesse verdadeiro e extrauniversitário a literatura de ensaio na pessoa de António Candido inaugura enfim a sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura Sem dúvida um limiar análogo à inversão de perspectiva apontada acima no caso do pensamento social com uma ressalva significativa confirmado na sua vocação de crítico pela lição conjugada de Jean Maugüé e João Cruz Costa como ele mesmo declarou certa vez Antonio Candido jamais se envolveu com teoria embora não seja esta a última palavra do enigma Recapitulo A demanda do assunto filosófico engrenado na ordem do dia não pode obviamente ser objeto sem disparate e regressão doutrinária de prescrição por extenso nem dispensa do esforço cosmopolita de atualização todavia o metro indicado literatura e pensamento social não implica necessariamente restrição provinciana nem sugere modelos de excelência intelectual não estamos procurando o equivalente filosófico de Machado de Assis Antonio Candido ou Celso Furtado Disse e repito a questão não é de talento mas de formação Quer dizer ao que parece só atinaremos com o assunto à altura da complicação atual do mundo moderno e no devido grau de generalidade que a forma conceitual da formulação dita filosófica requer num momento de emancipação intelectual que não depende apenas de clarividência pessoal mas repetindo do desfecho de um processo coletivo de formação o qual se bemsucedido cedo ou tarde se a receita funcionar induzirá um fenômeno análogo à inversão mencionada há pouco veremos então um filósofo da casa decifrar um capítulo do curso atual do mundo a partir da exploração sistemática numa forma que ninguém sabe qual será da experiência brasileira Ficam então desconsideradas as contribuições brasileiras à maré atual de papers sobre a Filosofia da Ação a Pragmática Universal a Ética Cognitivística Não devemos então mudar de Paradigma Deixar de incorporar o linguistic turn O passo globalizante que nos pedem a partir da profundidade local reconstruída deveria deixar de lado por exemplo o rejuvenescimento da fala filosófica na pia batismal da nova história das mentalidades Se renunciássemos a abituar a gigantomaquia internacional que envolve o progressismo da nova Teoria Alemã e o vanguardismo errático da Ideologia Francesa mais uma vez não perderia a Europa outra oportunidade de curvarse diante do Brasil Equívocos à vista consinta o leitor outra volta do mesmo parafuso 3 Retomemos o fio reparando que no Brasil a falta de assunto em filosofia convive muito bem na pessoa dos seus mais notáveis representantes com um virtuosismo de ofício que nada fica a dever ao similar europeu E pode ser também que essa conjunção não seja apanágio nosso mas traço comum do enorme girar em falso da filosofia universitária internacional além do mais tudo indica que o sempre evocado espírito da grande tradição filosófica emigrou sem aviso prévio e sem deixar endereço mas por enquanto é melhor ainda não encarar a face externa das nossas tribulações Voltando um reparo que não repara muita coisa pois sugere que o mal que nos persegue não cedeu com a entrada em cena da cultura filosófica organizada Abordo então a questão por um ângulo ainda mais com prometedor isto é retorno à fonte principal do desencontro entre Cruz Costa e Bento Prado Jr à tentação nacionalista do primeiro não obstante sua declarada aversão à idéia muito curta e francamente nefasta de filosofia nacional Um nacionalismo a um tempo esclarecido e rudimentar que se deixa resumir em poucas palavras dele mesmo Cruz Costa que aliás sabia estar lidando com um dos maiores lugarescomuns do ensaísmo de interpretação do Brasil o caráter póstico de nossa civilização cuja autenticidade como se sabe também procede do mesmíssimo fundo falso Para Cruz Costa nacionalismo não era muito mais uma vaga e muito datada teoria culturalista do caráter pragmático terra à terra da civilização lusobrasileira do que em antídoto polêmico para o transoceanismo de todo letrado brasileiro abismado em grotesca e pasmada nostalgia de sentimentos idéias e normas com cujos pressupostos não chegava a atinar com propriedade Antídoto portanto contra a doença do nabuquismo receita que aprendera com os modernistas e o empenho social dos intelectuais formados na escola da Revolução de 30 e sobretudo um convite aos filósofos da terra a se enxergarem por exemplo no espelho de um Euclides da Cunha devidamente aliviado da literatice e do cientificismo de arribação cujo vínculo real com o povo miúdo passava a seus olhos por cifra de alforria intelectual Dessa pequena galeria de escritores independentes também fazia parte até mesmo o prolixo Tobias Barreto do qual admirava sobretudo os repentes de fronda boêmia veio popular que compensava largamente o humor involuntário das elucubrações teutosergipanas que não passava pela cabeça de ninguém tomar ao pé da letra Nacionalismo portanto era o nome infeliz para uma conversão da consciência da exposição sedentária de doutrinas à atenção para a imundície dos contrastes locais no fundo um progresso da consciência que ingressava então como queria Mário de Andrade numa fase mais calma mais modesta mais cotidiana mais proletária por assim dizer de construção passado o primeiro tumulto novidadeiro do sobressalto modernista que quase ia degenerando num insuportável esnobismo literário segundo o mesmo Mário declarava no balanço conhecido dos clássicos e na assimilação bem dosada da literatura epistemológica atual era indispensável à nossa volta fora do círculo mágico uspiano abundavam ainda os que se ocupavam exclusivamente de filosofia brasileira logo identificáveis pela mais completa falta do senso de proporções e correspondente encurtamento caipira do espírito Recorro novamente à capacidade de formulação de Roberto Schwarz para apresentar de um outro ângulo as razões do programa cruzcostiãno de impregnação do raciocínio de cunho filosófico pela cor local comprometedora uma liga desconcertante de argumentos frouxos e olho clínico afiado para a volubilidade de nossos homens de idéias Assim o que alimentava o instinto de nacionalidade de João Cruz Costa era o sentimento do prejuízo causado pela evaporação dos problemas o inconveniente maior do filoneísmo que ao longo de sua carreira verberou em prosa e verso residia precisamente não só na falta de convicção que acompanha teorias adotadas com a mesma sofreugidão com que eram trocadas mas também na ausência de suas implicações menos próximas no conjunto do processo social Até aqui fórmulas schwarzianas sem aspas às quais retorno num trecho de múltiplo alcance pois apanha pela raiz tanto uma das chaves de nossa doença crônica assuntos gorados apenas nascidos como a fonte que dava amparo intuitivo ao destemor nacionalista de Cruz Costa Quando se assiste ao desfile de métodos e concepções a que se reduz em larga medida o cotidiano de qualquer intelectual brasileiro não é difícil reparar na verdade é a mais difícil das observações que só raramente a passagem de uma escola à outra corresponde como seria de esperar ao esgotamento de um projeto no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte Resulta a impressão decepcionante da mudança sem necessidade interna e por isso mesmo sem proveito O gosto da novidade terminológica prevalece sobre o trabalho de conhecimento Nem por isso Cruz Costa cogitou sequer um momento de abrir mão do esforço de desprovinciarização de nossa cultura filosófica a reboque de tais surtos esterilizantes pelo contrário remando contra a maré novidadeira tratou de assegurar como lembrado há pouco o quadro de inibições necessárias ao desenvolvimento de uma linha formativa local decalque produtivo da disciplina européia de que tanto carecíamos Todavia por indispensável que fosse tal antídoto jamais lhe bastou Não é que visse com maus olhos a timidez especulativa que a consciência técnica exacerbada anunciava em alguns mais sensíveis ao vírus do falso rigor até porque ninguém mais do que ele trazia à flor da pele o medo do ridículo no caso do bovarismo filosófico sentimento íntimo de impropriedade que chegava a assumir a forma de autodesmoralização preventiva É que no fundo ainda desconfiava da aparente gratuidade das teorias intangíveis nas quais via sobretudo o lerolero característico da falta de assunto Isso posto Cruz Costa continuava batendo na mesma tecla era imperioso filosofar sobre o Brasil Antes de desancarmos ato contínuo tamanha sandice dois dedos de compreensão Extrair filosofia de um problema brasileiro como quem desentranha poesia da prosa muito apequenada da vida nacional Por que não desde que a particularidade do segundo reencontre a universalidade que se costuma atribuir à primeira que nunca é uma generalidade qualquer mas algo historicamente determinado como tal nem se trata de uma questão de vontade ou apetite mas de oportunidade histórica um imperativo cujo grau de abstração decresce conforme a refração brasileira do processo mundial passe a integrar este último na condição de ponto de vista pertinente periférico porém revelador Noutras palavras passado a limpo o mandamento disparatado de Cruz Costa até hoje pairando no limbo indefinido do voto piedoso e da realização nacionalista descalibrada também pode ser entendido à luz do passo globalizante que segundo Roberto Schwarz a crítica brasileira da cultura ainda está devendo ou seja estudar o nosso atraso como parte da história contemporânea do capital e de seus avanços reconhecer e interpretar no anacronismo formado pela justaposição de formas da civilização moderna e realidades originadas na Colônia uma figura da atualidade e de seu andamento promissor grotesco ou catastrófico Voltando se a conjectura não for oca e vimos que ela não o é noutros domínios extrafilosóficos reencontraremos mais adiante uma ou duas variantes dela Antes de deixála de lado por um momento não seria demais frisar que tal convergência a um tempo objetiva e construída de particular e universal nada tem a ver com nossa incipiente entrada em cena na ciranda internacional de simpósios colóquios e quejandos no ponto morto da produção de papers em escala industrial Dou como contraprova desse passo globalizante em falso o permanente pé atrás do próprio Bento Prado Como um colega muito viajado recomendasse decididamente a internacionalização da vida filosófica nacional Bento que tem horror de preencher formulários para participação em congressos no exterior atalhou em pleno vôo um programa que evidentemente não deixa de ter a sua razão de ser mas você quer então que nos transformemos em Fulano de Tal conhecido medalhão brasileiro filósofo de fama internacional visiting permanente pelo mundo afora presença constante nos melhores simpósios do ramo título obrigatório em mais de uma bibliografia especializada em suma concluía Bento un sombre cretin Competência seguramente não falta ao indigitado como dizem os americanos controla muitas áreas o que até contribui para a sutil confusão de simulacro e paródia da maioria assinalada acima e a que todos aspiramos na qual finalmente se converteu espécie de apoteose da falta de assunto Nem enturmar com o encasulamento provinciano nem esparramarse no bazar ideológico internacional Por certo Cruz Costa não tinha receitas quando esperava arrancar filosofia do mergulho no detalhe brasileiro mas com certeza estava convencido de que não se fazia mais filosofia sob este nome como lembraria muito depois um exaluno seu Rubens Rodrigues Torres Assim a abstrusa palavra de ordem filosofar sobre o Brasil vinha demarcar uma certa maneira de orientarse no pensamento O oriente no caso era a literatura e o gênero híbrido aparentado constituído pelo ensaio de explicação do Brasil como ficou dito Recapitulando tomar a literatura como fio de rumo era aprender em primeiro lugar com um processo de formação em vias de consumarse ao longo do qual causalidade interna e continuidade social por relativas que fossem permitiam pelo menos que uma faixa da vida intelectual funcionasse no Brasil Em segundo lugar mirarse no exemplo de ensaístas como Euclides ou Sílvio Romero era aos olhos de Cruz Costa propor à ruminação do filósofo ou ao sucedâneo brasileiro da espécie os temas heterodoxos que fossem surgindo da pena indisciplinada de um autor independente em que pese a ganga ideológica que lhe embaraça os passos Era enfim medirse pelo poder de revelação do país que desde a origem fora apanhado e ponto de honra de nossa literatura e que para tanto não precisava ser chapadamente realista como demonstra superlativamente o fenômeno Machado Uma preponderância à qual pagouse em contrapartida o preço elevado da literatice que infestou a bem dizer todas as manifestações da inteligência no país a começar pela elocubração filosófica destemperada Acrescese para complicar ainda mais a vida de quem cuida no Brasil de filosofia que a lição de idéias do raciocínio literário nunca está onde a procuramos Não me refiro apenas ao malentendido corrente e generalizado que consiste em introduzir peripécias metafísicas no Sertão de Guimarães Rosa ou na Máquina do Mundo de Drummond como na Europa se enfiava existencialismo nos Castelos e Processos de Kafka ou nos clowns de Beckett Neste sentido literatice e filosofismo sempre andarão juntos A dificuldade que emperra o propósito historicamente razoável de aprender com a experiência intelectual acumulada pelos escritores reside numa falha muitas vezes secular de atitude filosófica da inteligência de nossos homens de letras como se queixava Mário de Andrade não existe uma obra em toda a ficção nacional em que possamos seguir uma linha de pensamento nem muito menos a evolução de um corpo orgânico de idéias Sem dúvida uma falha de formação no sentido amplo que se deu ao termo de tal ordem calamitosa que suscita com frequência o sósia degradado do autor razo lastimado por Mário de Andrade o falso escritor difícil escar necido pelo Lundú que não é apenas o estrangeirado desfrutável ou o amaneirado que confunde juízo literário e experimentação verbal mas também o escritor contagiado pela praga profundérrima do valorete rnismo execrado por Mário Recordo a explicação de Antonio Candido produzindo para públicos simpáticos porém restritos sobretudo culturalmente ilhado pela maioria esmagadora dos pobres expropriados também da independência incipiente que as primeiras letras prometem o escritor brasileiro raramente encontrou reunidas as condições que permitissem a formação de uma literatura complexa Daí a alinhar com o meio pouco exigente bastava um passo que ninguém recusava dar a segregação temida vinha afinal estimular a criação de uma literatura acessível como poucas amparada pela boa consciência da missão cumprida Se Roberto Schwarz tem razão esse apequena mento da intenção literária persiste até os dias de hoje na exata medida em que perdura embora substancialmente alterado o quadro social de origem responsável pelo rebaixamento de nosso cotidiano ideológico E continua servindo de cobertura para a modéstia de nossos resultados literários é ainda Roberto quem provoca para lembrar a seguir que não é por acaso que o ingrediente menos prezado na literatura brasileira é a inteligência a capacidade de formular e emparelhar com a complexidade da hora mundial Por aí também se compreende que nos últimos anos a renovação da prosa de ficção pela associação balanceada de raciocínio e poesia se deva a ensaístas Paulo Emílio Salles Gomes Zulmira Ribeiro Tavares Modesto Carone e se o programa de Cruz Costa não é de todo insensato é de se presumir que encontre ali novos argumentos Por outro lado é bom aproveitar a ducha fria de Roberto para lembrar que não era outra a fonte da falta de apetite especulativo de Cruz Costa que transformada em argumento redundava pura e simplesmente em restrição mental desmoralizante Sua mania de trocar tudo em miúdos e fugir da complicação conceitual descendia em linha direta do lado complacente do programa modernista assim resumido por Roberto não vamos embarcar numa terminologia que não nos diz respeito fiquemos por aqui dentro desta realidade um tanto diferente e tão nossa e que por isso mesmo está a salvo ou idilicamente abaixo da cena contemporânea Salvo engano não é desta renuncia que se trata nesta Digressão O que pedia então João Cruz Costa Mal comparando exigia do pensador brasileiro um certo sentimento íntimo que o tornasse homem do seu tempo e do seu país ainda que tratasse dos mais remotos assuntos A lição de Machado resumese em larga medida ao encarecimento dessa via oblíqua lição devidamente reconstruída por Roberto Schwarz como diferença e comparação estavam implicadas na matéria artística do nosso maior escritor este só poderia tratar das grandes questões da história mundial renunciando a tratálas diretamente Desconfiando dessa linha cruzada ainda que na forma mais folgada do simples senso do ridículo Cruz Costa limitouse entretanto ao lado negativo do problema sabia o que evitar mas engasgava na hora de esmiuçar a grande tarefa ditada pela tradição literária e ensaística que prezava Ou por outra recomendava que se ajustasse o ensino de Jean Maïngué espírito filosófico livre que marcou a primeira década da Missão Francesa ensinar a ler sua época e seu país através da melhor prosa filosófica moderna à experiência básica de todo intelectual brasileiro Antonio Candido lembra que daquelas aulas memoráveis se desprendia uma espécie de inspiração que aguçava o senso da vida da arte da literatura da história dos problemas sociais e acrescenta que Cruz Costa completava a deixa insistindo na aplicação da reflexão filosófica assim entendida ao Brasil Onde a insensatez Se há algo a constatar é que a presença mais ou menos organizada de elementos indispensáveis para o aparecimento de um ensaísmo filosófico de novo tipo parece não ter vingado nessa direção 4 Resta saber o que tornava um homem de espírito como Bento Prado Jr impermeável à feliz convergência daquelas duas tradições Entre outras coisas não devia encarar com entusiasmo uma perspectiva que cedo ou tarde acarretaria o abandono puro e simples da filosofia presente embora num incontestável porém muito vago espírito de crítica e contradição Como se isso não bastasse a utopia duvidosa do assunto reencontrado na forma programática que se sugeriu filosofar sobre o Brasil não é convite que em sã consciência se faça a alguém ainda por cima de esquerda Seja como for dou um exemplo para variar comprometed or Também não se pode dizer à queima roupa que o Idealismo Alemão tenha filosofado coletivamente sobre a Alemanha e muito menos ainda na acepção primária e fatídica do termo nacionalista Não só se declaravam todos cidadãos do mundo a começar pelo Fichte dos Discursos à Nação Alemã e consideravam undeutsch quem fosse apenas bloss deutsch como sequer entenderiam à sandice que mandasse traduzir Wirklichkeit por realidade nacional Não obstante passaram a vida rumando as vantagens e obviamente as desvantagens do atraso porém raramente em condições de fazer a partilha entre o momento de ilusão compensatória e a dimensão realista que essa perspectiva comportava No fundo um ponto de partida provinciano acrescido do cortejo de figuras de uma espécie de consciência nacional infeliz Do Systemprogramm da virada do século ao colapso de 1848 a Filosofia Clássica Alemã foi a rigor obra coletiva de mais de uma geração de intelectuais Nela os homens de idéias e da Idéia aprenderam a reconhecer sua acabrunhadora fisionomia de homens supérfluos bem como a inserção oblíqua do país no desconcerto das nações mais adiantadas da época Tratase em linhas gerais de uma reflexão reconhecidamente abstrusa e que ia assim passando de mão em mão pois apesar dos pesares a filosofia parecia funcionar na Alemanha sobre os efeitos desconcertados da modernização em escala mundial processo ambivalente em que uma espécie de mutilação galopante da personalidade ia queimando uma a uma as promessas de emancipação que a nova ordem social trazia consigo modernização que além do mais no âmbito local chegava atrasada e assumia feição conservadora Um descompasso nacional cuja exploração miúda e cifrada redundava em sondagem de longo alcance Uma questão de método podia então estilizar impassesda inteligência do país bem como inflexões nacionais das transformações em curso no mundo a Revolução Francesa a configuração moderna do Estado a autonomização da arte a generalização da formamercadoria etc passavam a admitir transcriação especulativa imediata por sinal de ponta cabeça Obviamente a DoutrinadaCiência o Sistema do Idealismo Transcendental ou a Ciência da Lógica não tratavam diretamente da miséria alemã e no entanto nas menores células temáticas daquelas obras herméticas cristalizavamse formas cujo conteúdo de experiência expressava uma percepção antitética da modernidade que dificilmente encontraria equivalente nos países em que tal processo transcorria sem grandes atropelos ou pelo menos os percalços eram outros Por mais arrevesado que tenha sido o discurso daqueles professores longínquos um mundo às avessas e esquadrinhado com a lupa torta da especulação não se pode dizer que o Idealismo Alemão tenha pecado por falta de assunto embora nenhum dos protagonistas admitisse que o seu assunto real fosse justamente aquele para o qual davam as costas ao traduzilo para o alemão Isso posto inútil lembrar que não me ocorre nem de longe aproximar o caso brasileiro enfeixado pelo estreito mandamento cruzcostiano do registro intelectual alemão de uma transição para o capitalismo além do mais retardatária que não poderíamos de modo algum ter conhecido Os termos são incomensuráveis mas como negar salvo engano palmar que a comparação improvável deles fala um pouco à imaginação de todo intelectual brasileiro sobretudo do filósofo à procura de assunto tenha ou não consciência dessa deriva Qualquer analogia estrita é mais do que descabida e no entanto um certo ar de família aparenta um ou outro sintoma do mal superior de que padeciam as respectivas classes cultivadas guardadas todas as proporções devidas no caso Um pouco de atenção metódica para o chão que regularmente nos falta é o quanto basta para reparamos por exemplo que nos seus primórdios a literatura alemã de cuja Idade Clássica o Idealismo é parte integrante enfrentou problemas de malformação semelhantes aos nossos Assim instruídos pelo nosso próprio desconforto entenderemos melhor o empenho de um Herder de um Lessing de um Goethe em suprir pela construção literária deliberada a ausência de um passado orgânico do povo alemão veremos com outros olhos a máxima de Thomas Mann segundo a qual os alemães são o povo do eterno recomeçar sem pressupostos uma maneira bem alemã de dourar a pífula da tenuidade nacional que condenava os melhores como o Schiller evocado na tirada de Thomas Mann a recomeçar da capo é difícil não nos sentimos em casa ouvindo Goethe desabafar no fundo levamos uma vida miserável e isolada desabafo tanto mais familiar quanto des pertado pelo cotejo acobruhador com a formidável sonda de espírito concentrada em Paris há três gerações até mesmo compreenderemos a circunstância atenuante alegada por Goethe nós alemães nascemos ontem como um caso de consciência amena do atraso na qual como é sabido Antonio Candido nos ensinou a reconhecer o preâmbulo da ideologia compensatória do país novo que aliás nem eo caso da Alemanha E assim por diante A tal ponto poderíamos multiplicar os jogos de espelho dessa miragem tangível que não seria mera extravagância imaginar que filosofar sobre o Brasil implicaria por tabela e acomodação recíproca de foco passar a limpo a evolução do conjunto da Ideologia Alemã mais ou menos nos moldes que acabamos de esboçar Noutros termos não encarar com naturalidade a existência da filosofia no Brasil os seus assuntos não estão disponíveis no repertório clássico é também atinar com o assunto real do pensamento alemão moderno a saber com perdão do abuso terminológico os efeitos ideológicos do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo golpe de vista armado pela posição em falso de todo intelectual brasileiro acrescido da ressalva assinalada linhas atrás por mais fortes que sejam os laços de família unindo a franja retardatária da expansão capitalista moderna não são estreitos o suficiente para apagar a diferença fundamental entre a transição européia do feudalismo para o capitalismo e a dependência de origem colonial de países que já nasceram à sombra do capital 5 Como ficamos Em má posição como sempre Bento Prado poderia até conceder para facilitar a vida de um exaluno que uma tal combinação de engrenagem lógica abstrata matéria social cifrada no dito mecanismo especulativo e horizonte históricomundial apreciado do ângulo estreito de um país retardatário numa palavra mais sintética e programática que uma tal articulação de particular e universal processo social e forma conceitual é um despropósito de resto muito manjado mais fácil de enunciar a torto e a direito como já se disse páginas atrás do que de provar no varejo da explicação de textos Isto sem falar na infelicidade reveladora do exemplo escolhido Penso não só na implicância do nosso Autor com a filosofia alemã clássica de preferência tachar alguém de adepto da schoene Menschheit pronunciada a locução com inflexão infamante é um dos seus argumentos prediletos e fulminantes como na lembrança que fatalmente lhe ocorreria da dupla impropriedade da contraprove escolhida por um lado simples chamada à ordem é preciso convir meia concessão que o fenômeno alemão não está ao alcance de todas as bolsas e que além disso a conjuntura histórica favorável que o Idealismo Alemão e congêneres conheceu caducou e com ela o famigerado ponto de vista da Totalitaet cuja presença animava o detalhe nacional Quanto à sugestão esdrúxula de se filosofar sobre o Brasil seria o caso então de referir um outro notável disparate a título de exemplo do casamento mais que duvidoso de filosofia e realidade nacional enfaticamente descoberta nos anos 30 nome e objeto como lembrou não faz muito Antonio Candido para governo dos que alegam não ter acontecido nada no Brasil com o fim da República Velha ainda que sob pretexto de dar às nossas cogitações filosóficas sem eira nem beira um assunto à altura das exigências do dia Quer dizer Bento não deixaria de contraporme as páginas que dedicou em 1968 ao tratado nacionalespeculativo de Álvaro Vieira Pinto Repasso com algum detalhe um confronto evocado noutros estudos No artigo em questão Bento fazia um breve inventário muito respeitoso e sobretudo semeado de referências ao repertório filosófico mais eminente e nisto consistia a graça contida do escrito de uma variada gama de desatinos conceituais cometidos em nome da identificação do pensamento com o malsinado pontodevistanacional Para melhor ressaltar o grotesco do empreendimento Bento comparavao sem pestanejar à Fenomenologia do Espírito em parte por cinismo óbvio em parte por balda de quem se criou na escola da Dissertação Francesa que manda multiplicar as comparações com os grandes do passado Um cacoete que vinha a calhar pois o efeito cômico era devastador uma odisseia da consciência nacio nal nos moldes da narração hegeliana que evidentemente não padece dessa restrição bizarra onde a Nação ocupava o lugar da Substância e nos era servida sob as espécies do universalconcreto enquanto o subdesenvolvimento por seu turno viase elevado ao céu especulativo na forma de uma pretensa inadequação entre o emsi e o parasi ao mesmo tempo em que a dialética do Senhor e do Escravo comandava e explicava as relações entre pensamento europeu e pensamento colonial esta última figura ponto de honra nacionalespeculativo à sombra do qual aliás pilhavase à vontade autores jamais citados Em suma um monumento ao despropósito filosófico Para governo dos mais moços lembro que a breve análise de Bento arrematava antiga birra uspiana que aliás renasceria em nova chave nos meados dos setenta a ponto de virar moda desancar o finado ISEB Ainda não era esse o caso em 1968 Quatro anos antes o golpe militar desbancara o nacionaldesenvolvimentismo cujo fiasco tornara ilegível a Suma Filosófica do período Aquela algaravia fenomenológica já não comovia mais ninguém Nem mesmo nossos alunos esquecidos dos tempos em que na pessoa de alguns veteranos exigiam cursos de lógica brasileira a lógica concreta do pontodevistanacional E se agora 1968 conforme assinalava Bento voltavam a torcer o nariz para o caráter técnico das aulas que recebiam é porque um novo gauchismo estava na ordem do dia do qual aliás era expressão fiel o artigo em que o Bento lançava a última pá de cal no desastrado amálgama de especulação filosófica e inspiração local A propósito o problema com Vieira Pinto é que a inspiração nunca foi local Nada no livro especifica a realidade nacional evocada a todo momento como critério de verdade Salvo a condição óbvia do subdesenvolvimento nada a identifica como brasileira O livro é uma apoteose de abstração filosofante Como disse a birra vinha de longe e não era só nossa mas de toda a escola de São Paulo Olhávamos com desconfiança a desenvoltura dos intelectuais cariocas e não é difícil saber porque Basta recordar os termos já bastantes esfriados de que se serviu Alfredo Bosi num momento de impaciência com nossos antigos pendores críticoliberais para pôr no seu devido lugar a cultura uspiana operosa bem pensante segura de si um tantinho ciosa de suas origens e aí enfatuada como qualquer academia e como se isto não bastasse penetrada até o âmago por um difuso racionalismo técnico que é a boa consciência do profissional Era natural que em nome do rigor acadêmico assim entendido desdenhássemos as elocu brações mal alinhavadas do indigitado Sartre tropical que juntava alhos com bugalhos Uma falta de jeito que só poderia chocar quem imaginava ter nascido dentro das idéias filosóficas européias e possuindo em conseqüência o segredo do seu bom uso O que no fundo não era inteiramente falso mas não deixava de ter sua graça É sempre bom lembrar que naquela quadra a vida filosófica uspiana não era fácil Pairava sobre ela a suspeita da nota falsa da falta de substância intelectual embora fôssemos incansáveis em nosso zelo estudioso fazíamos questão de cursos puxados Nossa maneira custou a firmarse e muito mais ainda a imporse Á direita amadores que julgavam filosofar por terem lido alguns livros de filosofia exigiam o que ainda não podíamos oferecer questão de tempo e até de princípio os sinais de uma maioria da qual apresentavam a imagem caricata À esquerda os nacionalistas tachavamnos de colonizados Por ocasião do artigo em que Bento voltava a divertirse às custas dos equívocos da transfiguração filosófica da realidade nacional os primeiros não vinham mais ao caso quanto aos segundos não se pode dizer com perdão da insistência que o descrédito que os vitimava fosse indício seguro da evaporação do problema real que não souberam formular mas do qual continuava a dar notícia a própria maneira bisonha de o deixar escapar Na realidade o sistema de impropriedades que o subdesenvolvimento arrastava consigo afetava a todos nativistas isebianos e cosmopolitas uspianos porém com efeitos desiguais Quer dizer o escândalo bem composto e armado de nosso Autor diante do disparate nacionalista reiterava mais uma vez um desequilíbrio generalizado de percepções e argumentos próprios da posição em falso característica da situação de dependência Sem exagero todos tinham boas razões para errar o alvo Explicome recapitulando algunos dos termos do quiproquó do qual é ramificação tardia o desencontro que venho relatando e no centro dele a demanda indigesta do assunto filosófico tingido pela experiência intelectual acumulada e nem sempre organizada na periferia do mundo moderno Em linhas gerais no que consistia afinal a literatura filosófica isebiana cujo flagrante despropósito sempre convém evocar para escarmiento dos mal avisados inimigos da gratuidade especulativa em filosofia em má hora confundida com a pura e simples falta de assunto No fundo uma transcrição em jargão existencialista dos principais lugares comuns de nossa tradição crítica voltada como se sabe para o enorme ponto morto de uma cultura a reboque Estes últimos vinham portanto de longe e bem ou mal refletiam impasses objetivos Já o primeiro era recente e repercutia a voga filosófica predominante fechando o círculo com ironia involuntária sendo ditada pelo prestígio metropolitano de que gozava a chave explicativa e redentora denunciava a extensão do estigma por extirpar confirmando ao mesmo tempo o desacerto do diagnóstico herdado Quanto a nós víamos nisso tudo apenas os bons autores estropiados e mal acompanhados maiores e menores eram indiferentemente lançados na vala comum do pontodevistanacional e permanecíamos cegos para o resto que era tudo quando muito matéria de curiosidade sociológica Uma filosofia da existência colonial de fato não cheirava bem Sorríamos da escassez metafísica que pulsava no âmago do subdesenvolvimento da falta de densidade ontológica do homem colonial metafisicamente oco e assim por diante até a famosa exportação de Nãoser e importação de Ser passando pelo Seroutro da situação colonial Um sorriso que embora tarde iria amarelecer mal comparando não faz muito alguém reparou que na obra máxima de Giannotti por definição compêndio superlativo da filosofia uspiana a crise do capitalismo avançado é apresentada em última análise como uma crise ontológica Possivelmente menos uma infelicidade do autor do que do gênero em todo caso um problema que ultrapassava ambos Voltando ao amálgama de complexo colonial como se dizia na época e fraseologia existencialista seria difícil precisar o que menos se chocava com nossa maneira se a liga inusitada entre esferas de cuja contaminação recíproca suspeitávamos se o consumo desenvolvido de um aparato terminológico que entre nós não chegara a pegar ou pelo menos se acomodara discretamente à nossa sobriedade acadêmica Lembro a propósito desta segunda razão de desencontro que o existencialismo paulistano além de cultivado por diletantes o que acrescia a autenticidade era de direita e regularmente tripudiado por um Oswald de Andrade que aliás também teve o seu sarampão existencialista e o nosso João Cruz Costa com a ressalva da simpatia deste último pelo viés nacionalista por reatar apesar de tudo com uma tradição intelectual de que era intérprete e herdeiro descontado o verniz filosofante conforme o gosto do dia que não costumava mesmo levar a sério Enquanto a autenticidade paulistana naufragava na mera tolice sua contrapartida carioca tinha pelo menos o mérito não menos pachola de atribuíla ao capitalismo nacional Complicando um pouco mais nossa equação recordo que o dito amálgama não era tão insólito assim o exemplo vinha do alto refirome ao itinerário do próprio Sartre que a caminho da fusão com o marxismo principiou por colocar a filosofia da existência à serviço do anticolonialismo O arremedo isebiano que também fundia ontologia existencial e retalhos de marxismo fenomenológico para dar conta do axioma sartreano acerca do caráter sistemático do colonialismo não deixava de ter consistência de resto como resistir na periferia do dito sistema ao pathos heróico da interpelação sartreana Seja como for o fato é que aquele vocabulário sincrético mais ou menos autorizado por Sartre inundou uma parte considerável dos ensaios de decifração das anomalias brasileiras O fenômeno não era novo Um observador de nossa vida ideológica poderia reconhecer no surto isebiano de fenomenologia aplicada a torto e a direito inclusive um elo numa cadeia de episódios cujo primeiro capítulo remontaria provavelmente ao primeiro ato de nosso modernismo como denominava José Veríssimo o processo de atualização cultural que a partir dos anos 70 do século passado acompanhou e glosou em prosa e verso a agonia do Império a marcha do Abolicionismo e outros tantos sobressaltos em nossa modorra secular Falouse muito em aurora burguesa mas isto agora não vem ao caso porém a constelação familiar um esforço redobrado de descoberta e revelação do país real recalcado por um longo passado de bovarismo com o auxílio entre outros recursos disponíveis no arsenal ideológico do Velho Mundo de versões mais ou menos amalucadas sem prejuízo do rendimento ideológico delas de filosofias populares como Positivismo Evolucionismo Monismo e quejandos No que concerne às doutrinas em voga uma espécie de revisão crítica generalizada sob a égide do mais completo desgoverno conceitual Esse o vício de origem da algaravia isebiana tudo bem pesado uma virtude Ora Bento registrou apenas o desajuste prova cabal de que trilhávamos o caminho justo e sobretudo contrapróva de que a matéria bruta da experiência intelectual acumulada no país não se prestava sem desatino à cogitações filosóficas sem deterse no entanto na questão espinhosa ou ociosa de saber se era o gênero convencional que não comportava assunto tão fora de esquadro ou se era este que não estava à altura da forma elevada exigida pelo primeiro De qualquer modo preferiu ignorar a tradição mencionada há pouco cuja continuidade o desconjuntamento em questão a um tempo assegurava e mascarava Exasperado pela fraseologia Bento não só tomoulhe a insensatez ao pé da letra como inverteu o raciocínio vendo nos evidentes malefícios do nacionalismo filosófico uma decorrência da metafísica da consciência em que este se apoiava e travestia Nisto estava em casa Mas se dissesse que Bento Prado simplesmente atendia à voga estruturalista do momento que mandava destronar as filosofias do Sujeito verdade que em nome do mais elementar bom senso ferido no caso pelo constante atentado às noções mais coriáceas de conhecimento objetividade etc sacrificadas no altar do pontodevistanacional e acrescentasse que embora em nova chave sua démarche dava sequência a um vejo nacional mesmo assim não estaria fazendo justiça por inteiro ao andamento complexo do nosso impulso mimético Os empréstimos metropolitanos sucediamse dos dois lados com a diferença de que não nos passava pela cabeça à transcrição local das teorias que estudá observava não é obviamente de sua lavra mas decalque do pensamento francês que se formou na escola do existencialismo alemão uma cultura de oposição fundada em conceitos éticos e ontológicos sem qualquer base científica Esse o argumento que quereríamos ouvir Com quem insinuá quase um enxerto não fosse o talento literário de um Sartre de qualquer modo a estação fenomenológica representava um interregno no pensamento francês que afinal voltava a fazer valer o peso da tradição interrompida repudiando o culto da experiência vivida celebrado pelos amigos da Existência justamente o trabalho de sapa que Granger vinha perseguindo sob nossas vistas acomodandonos entre outras distinções à separação decisiva de ciência e percepção amalgamadas pelos adeptos da Erlebnís fustigada em consequência pelo jovem Giannotti em cujos escritos e cursos o vivido era regularmente tuturado Está visto que não nos convinha um lapso ao quadrado A estréia brasileira de Lebrun derradeiro herói civilizador de uma linhagem fundada por Jean Maugie vinha portanto recapitular alguns passos de nosso passado imediato ao qual devíamos a chance de evitar o fiasco da fraseologia nacionalfilosófica além de anunciar em mais de um momento do seu requisitório o natural desfecho estruturalista da corrente que nos arrastava desde o berço Prolongando a linha de tiro fixada por Lebrun não se pode dizer que Bento voltava a abater em pleno vôo observações preciosas se consideradas do ângulo mais geral de interpretação da experiência contemporânea mesmo porque era muito difícil discernilas caso existissem no cipoal da prosa isebiana É certo que dava as costas ao possível relevo da paisagem intelectual próxima deixando de ver que o descolorido dela atingia a todos por igual Mas também não era menos certo que os fios puxados por Lebrun revistos em perspectiva nos amarravam a uma incipiente linha evolutiva local que principiava a se impor no pequeno mundo universitário e cedo ou tarde deveria submeterse à prova dos nove da realidade Tudo isso dito ficamos na mesma com uma diferença desta vez era a gafe isebiana que punha de quarentena um horizonte real de tal sorte que durante um largo período as singularidades de nossa integração dissonante no processo mundial deixaram de falar à imaginação dos filósofos mais aparelhados do país Até que se quebrasse o encanto valia o círculo vicioso como nossa formação filosófica não se completasse e perpetuasse seu lugar subalterno na evolução de conjunto da inteligência do país questões de talento à parte vivíamos à míngua de assunto e na falta deste a dita formação parecia prolongarse indefinidamente na aridez do momento técnico bem assimilado porém sem antes nem depois Nessas condições armadas pela dependência era natural que as ilusões se acumulassem de parte à parte de um lado a camisa de força do assunto prescrito bafejando forma e fundo de outro o mal disfarçado sentimento de pairar acima da indigênciaambiente mais um fato do que um mérito acompanhado da ilusão complementar de que o nosso público verdadeiro encontravase na Europa Completando o quadro de equívocos cruzados seria o caso de lembrar que o autor de Consciência e Realidade Nacional era um professor de filosofia que nada ficava a dever ao similar uspiano salvo o parafuso a menos ou a mais que o levou a aceitar a incumbência de elevar à altura da especulação filosófica o programa nacionalista que para bem e para mal pusera o país em movimento Uma combinação que não deu certo mas também não sabíamos dizer porque Isto sem falar no equívoco maior que nos ultrapassava a todos os estudiosos do período costumam ressaltar o verdadeiro paradoxo ideológico que foi o surto nacionalista de então não só por cristalizar uma quimera a do desenvolvimento capitalista autosustentado mas por espraiarse no exato momento em que o país ingressava de vez no circuito internacional do grande capital Que um professor de filosofia embarque em canoa furada espanta muito menos é até compreensível que o espetáculo em escala nacional de um ideário cuja preponderância política se vê acrescida a cada desmentido que lhe inflige a realidade A essa grande ilusão somavase outra menor porém igualmente estranhada na inteligência da época a de que os intelectuais influiriam no curso do mundo Tanto quanto a prosa especulativa arrevesada os conceitos estropiados o desvio metafísico de fundo e sobretudo a idéia infeliz de passar para a linguagem da filosofia a mitologia difusa da realidade nacional também pesou na aversão de Bento Prado por esse gênero de elocubração a desmesura representada pela entronização do filósofo que tal tipo de especulação acarretava como lembrava Bento um funcionário da humanidade segundo a definição clássica com a atribuição suplementar de guiar os passos de um Estado desenvolvimentista A filosofia isebiana trocava assim em termos bem graúdos a vocação dirigente enfaticamente alegada pela intelligentsia do período Se recordarmos o sistema de inibições que inclusive por uma questão de método ainda nos governavam e aos poucos o tempo foi diluindo nada poderia chocar mais a fé de ofício de meu mestre Bento Prado Se ainda fosse preciso acrescentar uma derradeira e decisiva razão para consolidar a certeza de Bento Prado de que lhe estou impingindo no mínimo um falso problema bastaria mencionar esta inquietante convergência ou simplesmente bisonha de assunto filosófico induzido pela meditação da realidade próxima muito pouco filosófica e a adaptações local de um topos com a idade de Platão o elogio do filósofo enquanto sal da terra mote glosado e atalhado em mais de uma ocasião pelo próprio Bento à medida em que seus colegas chegavam à independência especulativa filosofando por conta própria e risco Noutros termos quando se bate na tecla suspeita do instinto de nacionalidade e não basta evocar a ressalva machadiana cedo ou tarde soará a nota muito desafinada da função direta da filosofia Mais uma vez seria o caso de observar que os ideólogos do pontodevistanacional em filosofia voltavam a dar sequência a um outro vejo nacional mais precisamente juntavam ao tradicional empenho iluminista dos letrados da terra contrapeso da dependência estudado por Antonio Candido no atacado e no varejo uma versão peculiar de um outro lugar comum da crítica da história intelectual brasileira a saber que a inteligência do país não tem mesmo queda para a especulação filosófica Digamos então traduzindo essa mistura de constatação e preconceito altissonante para os termos do nosso problema que traduziam ambos antes de tudo uma falha de formação de que ainda não nos curamos inteiramente Recordo que ainda há pouco esbarrávamos noutro registro desse mesmo clichê a observação de Mário de Andrade segundo a qual falta envergadura filosófica à inteligência literária brasileira sem com isso pedir uma literatura de pedantes apenas que se juntasse à força generalizadora da forma estética uma faculdade de formulação específica Sociedade amorfa literatura amena outra meia verdade corrigida por Roberto Schwarz ao mostrar no caso excepcional de Machado como era possível reconstruir em profundidade a aparente platitude do país começando como vimos pela identificação do marco zero da rotina intelectual de todo homem de letras brasileiro mais uma vez o fôlego curto que nos infelicita em matéria de pensamento prendese ao sistema de impropriedades geração no seio do primitivo complexo colonial e reproduzido pela nova dependência mecanismo que ao encolher e desqualificar a dimensão cognitiva própria da vida das idéias diminuía nossas chances de reflexão ainda que facilitasse a vida do observador desabusado como seria o caso mais tarde do nosso Cruz Costa que não se deixava empulhar mas pouco conseguia explicar Ora os filosofantes cariocas espartilhados pelo pontodevistanacional ao tentarem passar a limpo o passado cultural do país e ao engrossarem por conseguinte o coro da crítica recorrente do bovarismo da inteligência brasileira tinham notícia de que no campo das idéias gerais não íamos mesmo muito longe só que para variar davam forma desastrada a mais esta manifestação do complexo colonial registrada nossa inapetência filosófica atribuíamlhe o condão de retardar gravemente o processo brasileiro emperrado por falta de filosofia Lavrado o disparate era natural que coubesse ao ponto de vista do infinito ocupado pelo filósofo o apanágio da formulação dos problemas nacionais no âmbito da visão histórica de conjunto Despropósito à parte se não chegaram a ser a voz da nação como pretendiam foram no entanto ouvidos e no calor da hora tal audiência chegou a pesar politicamente Quanto a nós estudávamos preparávamos teses e não sabíamos converter nossa supremacia de técnica intelectual e saber acumulado em influência política a rigor nem cogitávamos disso Mesmo porque não éramos ideólogos e fa zíamos praça disso Mais uma vez a macia lentidão muito mais inclinada a resolver os problemas do que enfaticamente interessada em concluir aliada à modesta consciência das questões preliminares imperativas emblema do ethos uspiano de origem dava dignidade metodológica à quase nenhuma repercussão da Faculdade de Filosofia no ambiente nacional em ebulição De qualquer modo íamos cuidando da nossa formação e se dávamos as costas às elocubrações isebianas era porque elas maltratavam problemas que não estavam em nossos textos como observou mais tarde recapitulando a miopia uspiana um dos principais protagonistas daquele desencontro histórico Daí a confirmação da nossa vocação de tímidos moral provisória na estratégia do pensamento era um passo Repetindo como se não bastasse a liga abstrusa de complexo colonial e fraseologia fenomenológica para os escarmentar e desacreditar de vez qualquer propósito de identificar um assunto significativo fora do repertório clássico a ambição anacrônica de restauração da visão sinóptica da Teoria filosófica na sua antiga enfática acepção com o cortejo de todas as suas veleidades políticas vinha arrematar de vez o disparate além do mais recentemente sepultado pelo eclipse francês da supracitata fraseologia A timidez da maneira filosófica professada pela linhagem uspiana simbolizada superlativamente por Bento Prado Jr tinha pelo menos a vantagem de preservarnos da miragem de que os intelectuais e os filósofos na linha de frente podiam alguma coisa Por esta pista não correríamos 6 Tudo isso dito e repisado chego ao término desta Digressão sem ter dito nada que Bento não soubesse e muito melhor do que eu e por isso mesmo justificadamente inquieto com as conjecturas extravagantes do exaluno Restringindome ao ponto nevrálgico delas recordo apenas que lhe devo a sugestão de confrontar a tenuidade da vida filosófica nacional à formação relativamente bem sucedida do sistema literário brasileiro reconstituído por Antonio Candido A deixa encontrase no artigo de 1968 sobre o falso problema da filosofia no Brasil Depois de referir de um modo muito peculiar a dis tinção hoje clássica entre simples manifestação literária e literatura propriamente dita em função da qual cabia finalmente assinalar a instauração da literatura brasileira voltaremos ao termo dissonante Bento não escondia a conclusão pouco lisonjeira mas nem por isso comprometedora sinal de que no fundo não havia real embaraço à prosperidade do talento filosófico entre nós se observarmos o panorama filosófico nacional à luz daquele quadro conceitual veremos que provavelmente nenhuma escola deixa de estar representada mas são manifestações filosóficas avulsas cuja resenha nada diria a um leitor europeu Em suma no que concerne à filosofia no Brasil o seu registro de nascimento ainda não foi lavrado Um juízo que estava longe de provocar consternação nem mesmo mudança de rumo Até porque nem tudo era apenas divulgação embora manifestações desgarçadas havia entre elas assegurava enfaticamente Bento algumas notáveis Complacência devida ao esforço dos confrades em dotar o país de obras que o emparelhassem aos grandes centros culturais Os novos tempos já não exigiam mais tal simpatia programada sinal de que ia bem o casamento de talento local e assimilação dos temas propostos pelo repertório internacional Deste ajuste ou desajuste o juízo em questão era um espelho fiel um olho posto na terminologia francesa do momento enquanto o outro refletia numa fórmula perfeita o descolorido da paisagem próxima como entretanto não convergiam o curtocircuito passava despercebido e a reflexão perdia uma chance Explicome Sem exagero Bento via na obra clássica de Antonio Candido não os esquemas conceituais adequados à explicação de um fenômeno capital como os percalços característicos da formação de uma continuidade literária mas o similar brasileiro da arqueologia de Foucault cujo ponto de honra era justamente a identificação de descontinuidade acresce que o Sistema em questão além de aparentado com a epistemé foucaultiana também tinha todo o jeito de um sistema diacrítico de oposições como mandava o novo figurino linguístico das ciências humanas de tal sorte que só haveria sistema literário quando ler um autor significasse interpretar a distância que o separa dos demais juntava o que não podia andar junto restava apenas o pastiche sem futuro explicativo Isso posto torno a recordar que o batismo intempestivo de Antonio Candido era decorrência natural do anatema sobrevinddo com os novos ventos filosóficos com o eclipse recente do humanismo seguramente por razões muito diversas das alegadas pelos críticos parisienses do finado ideário históricotranscendental encarnado como se disse pelo interregno francês da fenomenologia e assemelhados caíram por conseqüência em desgraça as noções correlatas de consciência e história irmanadas pelo insustentável pressuposto comum da continuidade Como o novo foco recaísse sobre a idéia de sistema estava armado o curtocircuito de que falamos Nestas rendições de guarda comandadas à distância os uspianos destacavamse ao menos pela sobriedade apresentada oportunamente como apanágio paulistano que lhes era facultada pelo passado francês suficientemente remoto para ser ouvido como a voz da própria natureza Já aludi à dupla fidelidade do nosso impulso mimético garantia de uma continuidade tão postiça quanto verdadeira Como Bento tinha em mira o várias vezes falso problema da filosofia no Brasil a invenção estruturalista dos espectros gêmeos do Sujeito e da História cuja continuidade se deve à identidade do primeiro vinha a calhar pois entroncava em nosso ponto de honra metodológico a autonomia do discurso filosófico assegurada como salientado em mais de uma ocasião pela disciplina historiográfica graças à qual os primeiros professores franceses imaginaram enquadrar e polir os maus modos exibidos pelos brasileiros que se aventuravam no mundo das idéias e como se vê não nos vacinara inteiramente contra as flutuações do influxo externo Mais uma vez não estou dizendo nada que Bento não saiba e não formule inclusive no corpo do mesmo raciocínio por assim dizer bifronte Depois de dar a César o que não é de César Bento voltava a registrar sem ironia a preponderância do supracitado influxo externo patente na dispersão das manifestações filosóficas perdidas como diria Silvio Romero no toverlinho da nossa indiferença essas obras e esses trabalhos muitos deles notáveis embora resenhálos como já observou não implique em nenhuma informação para o leitor europeu não se organizam no tempo próprio de uma tradição nem se articulam no interior de um sistema próprio é de fora como sempre que lhe vem a sua coesão Não poderia alguém incriminarse com maior rigor E por isso mesmo a acuidade do olho clínico de Bento novamente o sexto sentido farejando a gafe no ar esgotavase nela mesma tudo bem pesado uma seqüela da experiência intelectual brasileira cuja atomização por certo não favorecia a consideração simultânea desse balanço entre observação justa e argumento impróprio Acrescento em tempo um detalhe para os maiores de quarenta anos linhas atrás chamei a atenção para o uso insólito do termo instauração aplicado à formação do sistema literário brasileiro descrito por Antonio Candido nosso termo de comparação privilegiado segundo a deixa do próprio Bento Tratase de uma expressão quase fóssil e imagino que o seu emprego não tenha sido deliberado vem de um livro publicado em 1940 por um representante muito característico do espiritulismo quase secular da filosofia universitária francesa Etienne Souriau A Instauração Filosófica que talvez tenha ficado na memória dissertativa de muitos de nós graças à incorporação parcial dele aos argumentos de Gueroult acerca da legitimidade da História da Filosofia Não que este último adotasse o estetiscismo do primeiro muito convencional aliás mas o enigma da indestrutibilidade das filosofias era um convite a encarar cada filosofia como a instauração de uma realidade própria uma espécie de real filosófico sustentado por uma arquitetônica singular e incomensurável pelo metro do real comum Toda obra filosófica apresentavase assim aureolada por um éclat propre um brilho sob medida pois para o nosso gosto profissional o seu reino não podia mesmo ser deste mundo De sorte que até naquele lapso de pormenor fundindo além do mais filosofia e literatura Bento punha no diário a prata da casa na verdade resíduo de um transplante mais antigo e agora índice da mitologia pessoal dele Deixando de lado o vocabulário enfático da instauração Bento seguramente pensava em nossa alforria especulativa ao visar o extremo oposto não havíamos nascido para a filosofia porque o correspondente sistema de obras público e tradição ainda não se completara se dermos uma versão mais prosaica ao que então tinha em mente Feitas as contas nossa certidão de nascenca já fora de fato passada com os primeiros frutos da missão francesa Outra coisa era a maioria propriamente dita hoje menos introuvable que nos idos de 60 sobretudo se a julgarmos segundo o padrão convencional da reflexão pessoal Outro indício seguro do novo estágio pelo menos conforme os critérios da casa que favoreciam as tendências à vida intelectual de bicho de concha refúgio dos técnicos da inteligência é o fato dos nossos maiores passarem a aceitar sem muito pejo a denominação genérica de filósofos Voltando ao assunto na década seguinte Bento variava a angulação trazendo para o primeiro plano o que antes registrara porém relegara a lógica muito peculiar de nossa formação cujo marco zero passava então a destacar mais ou menos no mesmo diapasão civilizatório de Mário de Andrade e Antonio Candido a saber a pequena revolução cultural que foi a instituição de cursos regulares de filosofia em nosso meio universitário É verdade que também mudavam os ares do tempo Como declinasse o regime militar principiava a estação dos balanços e crônicas de origem Convidado a justificar a vida filosófica perante à nova conjuntura que se delineava Bento também recapitulava no Brasil e particularmente em São Paulo a instalação da escola precede e condiciona o exercício do pensamento ela tornou possível a passagem do puro consumo da filosofia a um esboço de produção E isto foi bom arrematava Foi antes de tudo necessário o fardo do subdesenvolvimento na realidade obrigavanos a inverter a seqüência natural européia que subordinava a reflexão filosófica ao andamento vivo da cultura independente assegurandolhe envergadura graças ao vínculo efetivo com o conjunto do processo social Todavia a ordem inversa não nos condenava totalmente ao arbítrio da especulação suspensa no ar Ou melhor o enxerto civilizatório de que bem ou mal nos beneficiávamos na figura da cultura escolar francesa de qualquer modo vinha na esteira da transformação moderna da filosofia em especialidade universitária uma reviravolta européia datada do oitocentos que afinal nos favorecia pois o empobrecimento da experiência intelectual no centro podia muito bem vir a ser a chance histórica da periferia que começava a se associar ao circuito acadêmico mundial Com isso era a famigerada gratuidade dos que entre nós cuidavam de filosofia que mudava de sinal de sorte que um ziguezague sem passado nem futuro deixouse canalizar dando início à nossa formação ainda que no trilho necessário porém um pouco bitolado da cultura escolar Vai nessa direção uma observação de Antonio Candido a rigor o fio vermelho da presente Digressão um lento acumular de tralhos aparentemente gratuitos mas que vão formando uma atmosfera uma tradição um estilo dentro dos quais as atitudes adquirem sentido e consistência Uma fórmula que descreve e prescreve com o conhecimento de causa de quem a viu nascer a germinação obscura da cultura filosófica uspiana cuja macia lentidão tanto exasperava os espíritos menos disciplinados pela rotina que ia se cristalizando segundo o ritmo das técnicas intelectuais importadas desta vez de caso pensado Como a fórmula também comporta uma lição e uma ressalva não posso deixar de sublinhálas sobretudo por nos livrarem da pecha de homens supérfluos O reparo que se encontra no artigo de 45 já citado tinha por alvo o malentendimento do instinto de nacionalidade estreiteza disseminada entre os detratores dos intelectuais puros outro lugar comum de nossa tradição crítica compartilhado plenamente por Cruz Costa que nunca perdia ocasião como se sabe de fustigar as fumaças filosóficas dos pensadores nativos Convinha então lembrar algumas verdades que tanto o empenho de uns quanto o devaneio de outros tendiam a mascarar A principal delas concernia a ameaça que pairava sobre a cultura filosófica naquela quadra de definição de rumos caso baníssemos a especulação alegando as exigências do dia secundando aliás o que havia de melhor no passado da ilustração brasileira seria a morte da filosofia rebaixada à condição de reportagem sob pretexto de que seus problemas tradicionais nada teriam de brasileiro quanto ao assunto caso nos desinteressássemos da paisagem próxima em nome da especulação desinteressada e quase sempre adotada fora de propósito era o risco da mera curiosidade intelectual que corríamos também vezo nacional notório Feito o balanço cabia a ressalva trabalhos aparentemente gratuitos Uma ressalva que expressava antes de tudo confiança na Teoria assim mesmo com maiúscula tomada em sua acepção mais superlativa O fato é que a tonalidade ideológica que a nova Faculdade ia assumindo e Antonio Candido enfatizando favorável ao espírito de crítica e livre exame próprio da pesquisa dita pura e desinteressada coisa inédita num ambiente tradicionalmente imantado pela atração utilitária das profissões que podiam alegar mas só alegar benefício público tangível o fato é que esse pendor radical uma brecha no patronato oligárquico convidava à comparação lisonjeira com a vida teórica dos Antigos Embora predominasse a presença francesa também procedíamos como se fosse nosso igualmente o ponto de honra de qualquer universitário alemão a saber que a Teoria bem compreendida encerrava uma força plástica em condições de moldar à sua imagem e semelhança a conduta de quem a ela se devotasse a vida justa era decorrência dessa conversação ao saber cuja marcha ascendente configura propriamente a Bildung ideal de inteireza ao qual um coração bem formado não podia deixar de aspirar O que Antonio Candido trocava em miúdos progressistas o que nem sempre fora o caso na Alemanha e adaptado ao cenário local mais ou menos nos seguintes termos do estudo dos velhos problemas abstratos da filosofia não tardará a conformarse uma mentalidade incompatível com o cortejo das misérias nacionais Anos depois nos momentos de recapitulação e balanço Antonio Candido nunca deixou de sublinhar a vigilância intelectual dos uspianos que cuidam de filosofia um elogio que tinha a virtude apreciável de contornar a questão delicada dos resultados daquela vigilância que ainda tardavam e retardavam nossa integração definitiva na atividade criadora do espírito moderno como ele esperava e anunciava nos idos de 40 O próprio Cruz Costa rezava pela mesma cartilha até porque sua hostilidade ao devaneio dos preciosos levavao a desdenhar a ciranda das doutrinas em favor do dito espírito filosófico crítico por definição que paradoxalmente emanava desse encontro e desencontro das idéias Quanto a subordinar a consistência das atitudes refratárias ao estado de coisas vigente ao alheamento apenas aparente do intelectual encaramujado Cruz Costa também não diria que não apenas acrescentaria sem o tato de Antonio Candido que na germinação obscura em que deita raíz a mentalidade do contra tão preciosa num país onde todos são a favor pesava muito menos o teor das filosofias do que a disciplina exigida pelo estudo delas Os herdeiros obviamente não discrepariam Digamos para resumir e retomar o fio de nossa meada que essa tradição radical onde se combinavam segregação e empenho a um tempo sancionava e oferecia consolo político à timidez entranhada na maneira filosófica que cultivávamos Refirome voltando ao ponto de onde partimos nesta Digressão ao período crucial de nossos anos de aprendizagem em que a história estrutural da filosofia ocupava um lugar central na estratégia do pensamento para recorrer a uma fórmula do próprio Bento Prado Nossa via suspensiva cifrada no interesse exclusivo pela arquitetônica das doutrinas e no conseqüente desdém pelo mau gosto dos dogmáticos atrelados à questão indecidível da verdade dos sistemas aparecíanos como o caminho mais seguro para fortalecer o juízo político inclinandoo naturalmente para a esquerda Simbiose que um espírito escarninho não hesitou em batizar de esquerda transcendental Estávamos tão convencidos da verdade dessa curiosa convergência que chegávamos a fazer circular um pequeno mito de origem possivelmente verdadeiro que atribuía a Victor Goldschmidt a opinião segundo a qual o estudo rigoroso dos sistemas filosóficos conduzia ao socialismo Acresce que esta fé política de ofício cabeça inibida pelo medo do ridículo e coração der tamado à esquerda era confirmada todo dia pelo vexame permanente da filosofia municipal nossos adversários que menosprezavam a contenção professoral que nos atava filosofavam como se tivessem nascido dentro das grandes teorias em voga perdendose em conseqüência na asneira cuja coloração política era francamente de direita
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Paulo Arantes Franklin Leopoldo e Silva Celso Favaretto Ricardo Fabrini Salma T Muchail org A FILOSOFIA E SEU ENSINO vozes Petrópolis em coedição educ editora da pucsp São Paulo 1995 CRUZ COSTA BENTO PRADO JR E O PROBLEMA DA FILOSOFIA NO BRASIL UMA DIGRESSÃO PAULO EDUARDO ARANTES Cruz Costa insistia sem parar na necessidade de aplicar a reflexão ao Brasil mesmo que para isso fosse preciso sair da filosofia estritamente concebida Antonio Candido 1 No Brasil a falta de assunto em filosofia é quase uma fatalidade Razão a mais para transformála em problema Não é uma questão de talento mas de formação Não se trata nem mesmo de formação pessoal embora uma não vá sem a outra Hoje em dia esta última se encontra ao alcance de todos nas boas universidades do país Aliás não há outro caminho pois a cultura filosófica contemporânea é essencialmente universitária uma especialidade entre muitas Sucede que já esse ideal de formação intelectual harmoniosa se desfaz em ficção dourada tão logo o devolvemos ao chão bruto do qual depende a tara gentil da mal formação real do país um conjunto de singularidades plasmadas ao longo do tempo pela expansão desigual do capitalismo Um sistema mundial descompensado que teima em deixar literalmente nossos filósofos a ver navios Todo intelectual razoavelmente atento às idiossincrasias da civilização brasileira que lhe roubam o fôlego sabe salvo nos casos bem conhecidos de cegueira olímpica o quanto pesa a ausência de O que segue é um suplemento ao estudo Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60 publicado no 2º número da revista Filosofia Política 1985 LPM UNICAMPUFRGS Cf Bento Prado Jr O Problema da Filosofia no Brasil In Alguns ensaios Max Limonad São Paulo 1985 do mesmo autor Cruz Costa e a História das Ideias no Brasil in Inteligência brasileira obra coletiva Brasiliense São Paulo 1986 linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação A proliferação dos títulos apresentados na ensaística de explicação do país atesta a dimensão do problema em uma obsessão nacional para cuja abrangência e ramificações Roberto Schwarz foi um dos primeiros a chamar a atenção São ensaios que de fato procuram registrar tendências reais na sociedade apesar da atrofia congênita que tmbra em abortálas no mais das vezes porém traduzem antes o propósito coletivo de dotar o meio amorfo cujo indiferentismo enerva como dizia o dr Pereira Barreto de uma espinha dorsal moderna que o sustente Para ficar nos mais conhecidos deles formação econômica do Brasil formação do Brasil contemporâneo formação política do Brasil formação da literatura brasileira etc Como se vê nossa formação à qual Nabuco deu um cunho pessoal e autocomplacente é perseguida como um ponto de honra nacional e com tanto mais denodo quanto raramente parece dar certo a começar pela esfera intelectual que nos interessa mais de perto Nada soma não há seriação Sílvio Romero os surtos inconclusivos são a regra Corre por esse trilho o desabafo de Mário de Andrade a nossa formação nacional não é natural não é espontânea não é por assim dizer lógica Naturalidade espontaneidade e lógica estão evidentemente do outro lado do oceano Diante da barafunda da imundície de contrastes que somos ainda Mário de Andrade não há dúvida que o ideal de harmonia e inteireza só pode ser a vinculação relativamente consistente que na tradição européia associa a vida do espírito ao conjunto da vida social No que concerne à literatura Antonio Candido deu forma clássica ao problema além de fixar os termos de um cotejo obrigatório Comparada à literatura a filosofia ocupa um lugar subalterno no panorama da cultural nacional novamente menos uma falsa questão de mérito e precedência do que um problema de formação Ou melhor há mérito próprio e precedência mas por motivo de circunstâncias históricas variadas Em primeiro lugar o prestígio meio torto e colonial do verbo literário como padrão de cultura Encimando esse pedestal mais desfrutável a pedra de toque ideológica representada pela literatura que tem sido aqui o fenômeno central da vida do espírito uma inflação literária a serviço da consciência nacional da exposição e revelação do Brasil aos brasileiros Até aí uma parte muito abstrata da lição de Antonio Candido à qual acrescento que nem de longe foi este o caso da filosofia a qual não se prestando à figuração da realidade nacional a construir não somava experiências Quem porventura tenha percorrido a historiografia em mangas de camisa de João Cruz Costa constatará um tanto sufocado e injustamente tentado a atribuir ao seu autor o acanhamento de perspectiva que lhe vinha do material de segunda mão com que lidava que nela a rigor nada se passa nada se encadeia a não ser a colcha disparatada de artefatos retóricos destinados a ofuscar os confrades De um lado portanto um sistema literário em formação o projeto mais ou menos consciente de formação de uma continuidade literária penhor de desenvolvimento cultural autosustentado verdade que minado na contramão pelos azares da vida intelectual a reboque a ponto de cada geração de escritores verse condenada a recomeçar da capo sob o influxo da última influência ultramarina até Machado romper este círculo vicioso completando o ciclo de nossa formação literária Do outro lado apenas folhas mortas no toverlinho de nossa indiferença como Sílvio Romero denominava o mosaico de pastiches bisonhos a que se resumia nossa bruxuleante curiosidade filosófica Uma falta de formação de resto inexistente cuja cifra só poderia ser a mais completa falta de assunto Incomensurável deserto se pensarmos um pouco o quanto custou a Machado de Assis favorecido além do mais por uma linha evolutiva que as cogitações filosóficas de nossos letrados não conheceram atinar finalmente com a matéria literária justa Assunto introuvable em virtude de uma formação que não houve vício de origem que não carece de alcançar clareza e distinção para pesar na memória coletiva de nossos filósofos emperrandolhes a mão despertando a inibição e a vocação dos mais tímidos que farejam a gafe no ar Se conheço bem um dos protagonistas desta Digressão posso imaginálo a esta altura ruminando a seguinte máxima ad hoc em matéria de assuntos em geral seja em literatura como em filosofia a única coisa recomendável é não prescrevêlos E mais prevendo com razão o pior Bento Prado atalharia em dois tempos um raciocínio que a seu ver ameaça desandar para lembrar em nome da grande e lamentável família dos filósofos tímidos e não obstante o sal da terra que não teme menos o ridículo já que insisto do que a camisa de força do assunto suposto real atual global o que seja que cedo ou tarde a continuar neste diapasão tentarei impingirlhe Além da mais não é de hoje que a linha justa desse passo em falso o inquieta Recordaria ato contínuo o que escreveu nos idos de 60 sobre a fonte dos equívocos cometidos por Cruz Costa a consciência do vazio cultural faz com que até mesmo o historiador das idéias tenha uma preocupação essencialmente prospectiva o que ele busca no passado são os germes do que acredita que a filosofia deve ser no futuro É como se tentássemos na inspeção de um passado nãofilosófico adivinhar os traços de uma filosofia que está por vir Os laços de família não poderiam ser mais comprometedores Pois afinal o que busca na experiência negativa do passado o discípulo recalcitrante senão os germes do assunto filosófico que mais nos convêm Não há outra explicação para o zelo historicista desmesurado em expor as raízes nacionais de um detalhe corriqueiro refirome à linhagem brasileira dos filósofos tímidos de cuja genealogia ocupeime noutro lugar cf O bonde da filosofia e mais particularmente aos escrúpulos razoáveis de qualquer autor que pensa duas vezes porém sem a demasia emblemática de Bento Prado que esperou mais de duas décadas para reunir em volume alguns de seus ensaios antes de vir a público O que explica então este cerco meio extemporâneo a não ser a intenção oblíqua de ajustar a universalidade de direito do discurso filosófico livre ao assunto enfim encontrado e além do mais talhado segundo o metro literário construtivo que nos serviu de termo de comparação quer dizer perdido para sempre 2 Antes que o malentendido se avolume refaço o caminho no começo do qual se encontra a sensação mais ou menos viva de desconforto experimentada por quem cuida de filosofia no Brasil um certo sentimento íntimo de andar meio à deriva justamente à procura de assunto É inegável de fato o caráter normativo da noção de formação que nos tem servido de norte ditado pelo ideal europeu de civilização integrada Acresce ainda nos termos em que Antonio Candiido fixou a questão ao opor sistema literário em formação a manifestações literárias avulsas que tal idéia repercutia um programa crítico afinado com o processo em questão a saber que a capacidade de produzir obras de primeira ordem influenciadas não por modelos estrangeiros imediatos mas por exemplos nacionais anteriores causalidade interna que acelera o processo de maturação do dito sistema no interior do qual os empréstimos externos passam a gozar então de existência literária configura um estágio fundamental na superação da dependência Completando a deixa Roberto Schwarz vem fazendo em mais de uma ocasião o balanço do estrago provocado pela preterição do influxo interno hoje muito menos inevitável do que nos tempos de Machado como costuma lembrar o mesmo Roberto O avesso da observação de Antonio Candido a respeito de nossa formação literária sincopada a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar de zero como a resume e amplia Roberto vem a ser o interesse pelo trabalho dos predecessoress entendido não como peso morto mas como elemento dinâmico e irresolvido subjacente às contradições contemporâneas Noutros termos dependência e descontinuidade andam juntas e o prejuízo não é pequeno percepções e teses notáveis a respeito da cultura do país são decapitadas periodicamente e problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia corresponder Em contrapartida não é preciso alinhar com os nativistas para entrevver no funcionamento da causalidade interna descrita por Antonio Candido o preâmbulo da dependência contornada não se trata de continuidade pela continuidade esclarece ainda Roberto Schwarz mas da constituição de um campo de problemas reais particulares com inserção e duração histórica próprias que re colha as forças em presença e em relação ao qual seja possível avançar um passo Na ausência desta terra firme compreendese que nossas cogitações filosóficas girem em falso e os assuntos se evaporem antes mesmo de serem encontrados Inútil lembrar que choveram os equívocos nem me compete repassálos a limpo Limitome apenas a observar que boa parte deles derivava dessa contaminação recíproca de fato e norma convidando a concluir erroneamente que tal exploração de uma tendência duradoura em nosso passado intelectual a consciência de estar fazendo um pouco da nação ao fazer literatura intenção que distinguia nossos letrados dos confrades metropolitanos sancionava um tipo de literatura social por exemplo em detrimento de outro menos vinculado à experiência imediata impondo assim na forma do princípio consagrado pela história uma hierarquia de temas e formas Ledo engano até porque o universalismo confesso de Antonio Candido não é privilégio das grandes literaturas a modulação recorrente das grandes questões fundamentais da assim chamada condição humana alertavao mais do que ninguém para o empecilho estético representado pela sem dúvida inestimável vantagem do atraso de uma formação programada com empenho e consciência E além do mais acrescentaria um pouco daquela gratuidade que dá asas à obra de arte não fará mal a ninguém Uma ressalva que longe de ressuscitar o equívoco oposto devolvenos ao coração do nosso problema pois a gratuidade em questão só floresce com rendimento artístico sobre a terra firme de um ciclo evolutivo consumado que em princípio teria deixado para trás a antiga gratuidade assinalada certa vez por Augusto Meyer nas mais desencadeadas improvisações romanescas de um Alencar preço pago pela nossa prosa de ficção tomada pelo verbalismo engenhoso e farfalhante ao desequilíbrio íntimo da tenuidade brasileira Ora Cruz Costa para voltar ao nosso cotejo passou a vida justamente folheando obrasprimas de gratuidade filosófica Daí a obsessão pelo assunto relevante que o levava a esquadrinhar a mediocridade do nosso passado filosófico à procura dos sinais de nascença que lhe permitissem identificálo e sem dúvida prescrevêlo Paulo que por certo na sua macia lentidão ainda tardariam a amadurecer Noutros termos que a filosofia moderna como todos sabem e já foi dito é antes de tudo uma especialidade universitária e como tal exige preparo técnico relevandose em consequência o vôo raso do autodidatismo Circunstância que Cruz Costa estava longe de ignorar tal o zelo com que abafava sua descrença inata repressandoa dentro dos limites institucionais de uma Cátedra de Filosofia regida segundo mandavam os padrões europeus da excelência Não obstante persistia o velho malestar em nossa cultura filosófica Do lado de Cruz Costa a sensação de estar embarcando numa canoa furada pois o cotejo acima comprometia mais o gênero do que o diletante que podia até revelar pendores especulativos mas quase sempre desacompanhados do menor senso do ridículo fatal naquelas altas paragens do pensamento Do seu longínquo fundo de quintal o que via Cruz Costa Homens de talento perdendose em fumaças filosóficas Exemplos Vejase o caso de Caio Prado Jr com perdão da lembrança sumária muito aquém da sua real envergadura autor de mais de uma obraprima de história econômica do Brasil naufragava no mar morto de uma teoria do conhecimento era o fato do marxismo oficial ter ficado para trás bem longe do nível alcançado pelas forças intelectuais do tempo Não posso determe no caso mais sério de Celso Furtado para o qual é difícil encontrar antecendentes Apenas uma palavra fatalmente esquemática da Formação econômica do Brasil aos últimos livros sobre a crise do capitalismo avançado uma constelação de problemas tomou corpo numa obra ainda em andamento verdadeira raridade num país de vida intelectual atomizada e veleitária sem dúvida uma proeza largamente beneficiada pela assimilação de um saber mal ou bem acumulado nos organismos internacionais em que atuou Como se isto não bastasse deuse no caso uma inversão notável assinalada por Roberto Schwarz nos seguintes termos pela primeira vez um intelectual brasileiro podia refletir sobre o desconcerto do mundo contemporâneo a partir de sua experiência teórica sobre um país subdesenvolvido Sem dúvida um ato de maioria de intelectual precisamente o ato conclusivo do processo de formação do pensamento social brasileiro o qual entretanto não se consumaria caso não tivesse ocorrido nesse meio tempo uma integração mais viva e mais importante do Brasil no capitalismo internacional lembra ainda Roberto Schwarz arrematando o registro daquele ato de maioridade Ora salvo engano uma tal desprovincianização não acompanhou longe disso a meditação de cunho filosófico sobre os destinos da civilização ocidental a que concomitantemente se entrega o autor em seus últimos livros Tropeço corriqueiro Mão pesada do não especialista Ou quem sabe até mesmo um pouco da sede bem brasileira de nomeada que só a especulação filosófica de alto vôo parece conferir em grau superlativo E como conciliar o trocínio de que redundou a maioridade em questão com esse eclipse do mais elementar discernimento Seja o que for mais água para o velho moinho de Cruz Costa cujo ceticismo entretanto não tinha força de argumento Mesmo assim continuei exemplificando parcialmente escolhendo no campo mais desfrutável dos amadores colhendo quando muito um ou outro cacoete da inteligência brasileira que no entanto pesam inclusive nas altas esferas dos grandes juízos sobre o espírito do tempo Além do que é sempre bom lembrar tais percalços são outros tantos efeitos da desastrosa divisão entre as várias competências acadêmicas nas quais tornaremos a esbarrar tão logo voltemos à seara dos especialistas aos filósofos de profissão Nada garante neste ramo tão compartimentado como os demais que se tenha sucesso onde falhou o diletante desavisado ao tentar articular num só golpe de vista os enigmas da prosa de Kafka o progresso técnico uma economia oligopolizada e a crise da humanidade européia Mais uma razão para insistir nesses caminhos cruzados e continuar procurando o assunto filosófico não identificado e no caso segundo a medida de outros processos formativos que se completaram Se isso é fato quer dizer admitido que o âmbito e o teor do raciocínio dito filosófico só se definem ao longo desse esforço muito localizado de identificação conceitual da atualidade se portanto isso é fato peço licença para fechar o parêntese com um outro exemplo agora stricto sensu e como tal normativo para variar re tirado do mesmo repertório de idéias e esquemas explicativos que vem balizando estas conjecturas preliminares Refirome à abertura de um novo ciclo em nossa crítica literária registrada no ensaio de Antonio Candido sobre o Sargento de Milícias Quem o diz é Roberto Schwarz mais ou menos nos seguintes termos cada um deles referência obrigatória toda vez que pensamos na evolução mirrada de nossas letras filosóficas A fase de furor terminológico quando a finalidade da literatura de ensaio era documentar atualização bibliográfica parece coisa do passado alheio está visto Por outro lado completouse também o período cinzento de acumulação universitária de conhecimentos específicos permittindo enfim ao autor Antonio Candido voltarse para o interesse literário tal como a vida o põe o que me diz este livro hoje Ou ainda armado de papel e tinta organizada em princípio para uso próprio a experiência da vida moderna um crítico brasileiro tenta dizer aqui e agora o sentido da vida atual Assim restaurada a vocação interpretativa da crítica onde sempre residiu o seu interesse verdadeiro e extrauniversitário a literatura de ensaio na pessoa de António Candido inaugura enfim a sondagem do mundo contemporâneo através de nossa literatura Sem dúvida um limiar análogo à inversão de perspectiva apontada acima no caso do pensamento social com uma ressalva significativa confirmado na sua vocação de crítico pela lição conjugada de Jean Maugüé e João Cruz Costa como ele mesmo declarou certa vez Antonio Candido jamais se envolveu com teoria embora não seja esta a última palavra do enigma Recapitulo A demanda do assunto filosófico engrenado na ordem do dia não pode obviamente ser objeto sem disparate e regressão doutrinária de prescrição por extenso nem dispensa do esforço cosmopolita de atualização todavia o metro indicado literatura e pensamento social não implica necessariamente restrição provinciana nem sugere modelos de excelência intelectual não estamos procurando o equivalente filosófico de Machado de Assis Antonio Candido ou Celso Furtado Disse e repito a questão não é de talento mas de formação Quer dizer ao que parece só atinaremos com o assunto à altura da complicação atual do mundo moderno e no devido grau de generalidade que a forma conceitual da formulação dita filosófica requer num momento de emancipação intelectual que não depende apenas de clarividência pessoal mas repetindo do desfecho de um processo coletivo de formação o qual se bemsucedido cedo ou tarde se a receita funcionar induzirá um fenômeno análogo à inversão mencionada há pouco veremos então um filósofo da casa decifrar um capítulo do curso atual do mundo a partir da exploração sistemática numa forma que ninguém sabe qual será da experiência brasileira Ficam então desconsideradas as contribuições brasileiras à maré atual de papers sobre a Filosofia da Ação a Pragmática Universal a Ética Cognitivística Não devemos então mudar de Paradigma Deixar de incorporar o linguistic turn O passo globalizante que nos pedem a partir da profundidade local reconstruída deveria deixar de lado por exemplo o rejuvenescimento da fala filosófica na pia batismal da nova história das mentalidades Se renunciássemos a abituar a gigantomaquia internacional que envolve o progressismo da nova Teoria Alemã e o vanguardismo errático da Ideologia Francesa mais uma vez não perderia a Europa outra oportunidade de curvarse diante do Brasil Equívocos à vista consinta o leitor outra volta do mesmo parafuso 3 Retomemos o fio reparando que no Brasil a falta de assunto em filosofia convive muito bem na pessoa dos seus mais notáveis representantes com um virtuosismo de ofício que nada fica a dever ao similar europeu E pode ser também que essa conjunção não seja apanágio nosso mas traço comum do enorme girar em falso da filosofia universitária internacional além do mais tudo indica que o sempre evocado espírito da grande tradição filosófica emigrou sem aviso prévio e sem deixar endereço mas por enquanto é melhor ainda não encarar a face externa das nossas tribulações Voltando um reparo que não repara muita coisa pois sugere que o mal que nos persegue não cedeu com a entrada em cena da cultura filosófica organizada Abordo então a questão por um ângulo ainda mais com prometedor isto é retorno à fonte principal do desencontro entre Cruz Costa e Bento Prado Jr à tentação nacionalista do primeiro não obstante sua declarada aversão à idéia muito curta e francamente nefasta de filosofia nacional Um nacionalismo a um tempo esclarecido e rudimentar que se deixa resumir em poucas palavras dele mesmo Cruz Costa que aliás sabia estar lidando com um dos maiores lugarescomuns do ensaísmo de interpretação do Brasil o caráter póstico de nossa civilização cuja autenticidade como se sabe também procede do mesmíssimo fundo falso Para Cruz Costa nacionalismo não era muito mais uma vaga e muito datada teoria culturalista do caráter pragmático terra à terra da civilização lusobrasileira do que em antídoto polêmico para o transoceanismo de todo letrado brasileiro abismado em grotesca e pasmada nostalgia de sentimentos idéias e normas com cujos pressupostos não chegava a atinar com propriedade Antídoto portanto contra a doença do nabuquismo receita que aprendera com os modernistas e o empenho social dos intelectuais formados na escola da Revolução de 30 e sobretudo um convite aos filósofos da terra a se enxergarem por exemplo no espelho de um Euclides da Cunha devidamente aliviado da literatice e do cientificismo de arribação cujo vínculo real com o povo miúdo passava a seus olhos por cifra de alforria intelectual Dessa pequena galeria de escritores independentes também fazia parte até mesmo o prolixo Tobias Barreto do qual admirava sobretudo os repentes de fronda boêmia veio popular que compensava largamente o humor involuntário das elucubrações teutosergipanas que não passava pela cabeça de ninguém tomar ao pé da letra Nacionalismo portanto era o nome infeliz para uma conversão da consciência da exposição sedentária de doutrinas à atenção para a imundície dos contrastes locais no fundo um progresso da consciência que ingressava então como queria Mário de Andrade numa fase mais calma mais modesta mais cotidiana mais proletária por assim dizer de construção passado o primeiro tumulto novidadeiro do sobressalto modernista que quase ia degenerando num insuportável esnobismo literário segundo o mesmo Mário declarava no balanço conhecido dos clássicos e na assimilação bem dosada da literatura epistemológica atual era indispensável à nossa volta fora do círculo mágico uspiano abundavam ainda os que se ocupavam exclusivamente de filosofia brasileira logo identificáveis pela mais completa falta do senso de proporções e correspondente encurtamento caipira do espírito Recorro novamente à capacidade de formulação de Roberto Schwarz para apresentar de um outro ângulo as razões do programa cruzcostiãno de impregnação do raciocínio de cunho filosófico pela cor local comprometedora uma liga desconcertante de argumentos frouxos e olho clínico afiado para a volubilidade de nossos homens de idéias Assim o que alimentava o instinto de nacionalidade de João Cruz Costa era o sentimento do prejuízo causado pela evaporação dos problemas o inconveniente maior do filoneísmo que ao longo de sua carreira verberou em prosa e verso residia precisamente não só na falta de convicção que acompanha teorias adotadas com a mesma sofreugidão com que eram trocadas mas também na ausência de suas implicações menos próximas no conjunto do processo social Até aqui fórmulas schwarzianas sem aspas às quais retorno num trecho de múltiplo alcance pois apanha pela raiz tanto uma das chaves de nossa doença crônica assuntos gorados apenas nascidos como a fonte que dava amparo intuitivo ao destemor nacionalista de Cruz Costa Quando se assiste ao desfile de métodos e concepções a que se reduz em larga medida o cotidiano de qualquer intelectual brasileiro não é difícil reparar na verdade é a mais difícil das observações que só raramente a passagem de uma escola à outra corresponde como seria de esperar ao esgotamento de um projeto no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte Resulta a impressão decepcionante da mudança sem necessidade interna e por isso mesmo sem proveito O gosto da novidade terminológica prevalece sobre o trabalho de conhecimento Nem por isso Cruz Costa cogitou sequer um momento de abrir mão do esforço de desprovinciarização de nossa cultura filosófica a reboque de tais surtos esterilizantes pelo contrário remando contra a maré novidadeira tratou de assegurar como lembrado há pouco o quadro de inibições necessárias ao desenvolvimento de uma linha formativa local decalque produtivo da disciplina européia de que tanto carecíamos Todavia por indispensável que fosse tal antídoto jamais lhe bastou Não é que visse com maus olhos a timidez especulativa que a consciência técnica exacerbada anunciava em alguns mais sensíveis ao vírus do falso rigor até porque ninguém mais do que ele trazia à flor da pele o medo do ridículo no caso do bovarismo filosófico sentimento íntimo de impropriedade que chegava a assumir a forma de autodesmoralização preventiva É que no fundo ainda desconfiava da aparente gratuidade das teorias intangíveis nas quais via sobretudo o lerolero característico da falta de assunto Isso posto Cruz Costa continuava batendo na mesma tecla era imperioso filosofar sobre o Brasil Antes de desancarmos ato contínuo tamanha sandice dois dedos de compreensão Extrair filosofia de um problema brasileiro como quem desentranha poesia da prosa muito apequenada da vida nacional Por que não desde que a particularidade do segundo reencontre a universalidade que se costuma atribuir à primeira que nunca é uma generalidade qualquer mas algo historicamente determinado como tal nem se trata de uma questão de vontade ou apetite mas de oportunidade histórica um imperativo cujo grau de abstração decresce conforme a refração brasileira do processo mundial passe a integrar este último na condição de ponto de vista pertinente periférico porém revelador Noutras palavras passado a limpo o mandamento disparatado de Cruz Costa até hoje pairando no limbo indefinido do voto piedoso e da realização nacionalista descalibrada também pode ser entendido à luz do passo globalizante que segundo Roberto Schwarz a crítica brasileira da cultura ainda está devendo ou seja estudar o nosso atraso como parte da história contemporânea do capital e de seus avanços reconhecer e interpretar no anacronismo formado pela justaposição de formas da civilização moderna e realidades originadas na Colônia uma figura da atualidade e de seu andamento promissor grotesco ou catastrófico Voltando se a conjectura não for oca e vimos que ela não o é noutros domínios extrafilosóficos reencontraremos mais adiante uma ou duas variantes dela Antes de deixála de lado por um momento não seria demais frisar que tal convergência a um tempo objetiva e construída de particular e universal nada tem a ver com nossa incipiente entrada em cena na ciranda internacional de simpósios colóquios e quejandos no ponto morto da produção de papers em escala industrial Dou como contraprova desse passo globalizante em falso o permanente pé atrás do próprio Bento Prado Como um colega muito viajado recomendasse decididamente a internacionalização da vida filosófica nacional Bento que tem horror de preencher formulários para participação em congressos no exterior atalhou em pleno vôo um programa que evidentemente não deixa de ter a sua razão de ser mas você quer então que nos transformemos em Fulano de Tal conhecido medalhão brasileiro filósofo de fama internacional visiting permanente pelo mundo afora presença constante nos melhores simpósios do ramo título obrigatório em mais de uma bibliografia especializada em suma concluía Bento un sombre cretin Competência seguramente não falta ao indigitado como dizem os americanos controla muitas áreas o que até contribui para a sutil confusão de simulacro e paródia da maioria assinalada acima e a que todos aspiramos na qual finalmente se converteu espécie de apoteose da falta de assunto Nem enturmar com o encasulamento provinciano nem esparramarse no bazar ideológico internacional Por certo Cruz Costa não tinha receitas quando esperava arrancar filosofia do mergulho no detalhe brasileiro mas com certeza estava convencido de que não se fazia mais filosofia sob este nome como lembraria muito depois um exaluno seu Rubens Rodrigues Torres Assim a abstrusa palavra de ordem filosofar sobre o Brasil vinha demarcar uma certa maneira de orientarse no pensamento O oriente no caso era a literatura e o gênero híbrido aparentado constituído pelo ensaio de explicação do Brasil como ficou dito Recapitulando tomar a literatura como fio de rumo era aprender em primeiro lugar com um processo de formação em vias de consumarse ao longo do qual causalidade interna e continuidade social por relativas que fossem permitiam pelo menos que uma faixa da vida intelectual funcionasse no Brasil Em segundo lugar mirarse no exemplo de ensaístas como Euclides ou Sílvio Romero era aos olhos de Cruz Costa propor à ruminação do filósofo ou ao sucedâneo brasileiro da espécie os temas heterodoxos que fossem surgindo da pena indisciplinada de um autor independente em que pese a ganga ideológica que lhe embaraça os passos Era enfim medirse pelo poder de revelação do país que desde a origem fora apanhado e ponto de honra de nossa literatura e que para tanto não precisava ser chapadamente realista como demonstra superlativamente o fenômeno Machado Uma preponderância à qual pagouse em contrapartida o preço elevado da literatice que infestou a bem dizer todas as manifestações da inteligência no país a começar pela elocubração filosófica destemperada Acrescese para complicar ainda mais a vida de quem cuida no Brasil de filosofia que a lição de idéias do raciocínio literário nunca está onde a procuramos Não me refiro apenas ao malentendido corrente e generalizado que consiste em introduzir peripécias metafísicas no Sertão de Guimarães Rosa ou na Máquina do Mundo de Drummond como na Europa se enfiava existencialismo nos Castelos e Processos de Kafka ou nos clowns de Beckett Neste sentido literatice e filosofismo sempre andarão juntos A dificuldade que emperra o propósito historicamente razoável de aprender com a experiência intelectual acumulada pelos escritores reside numa falha muitas vezes secular de atitude filosófica da inteligência de nossos homens de letras como se queixava Mário de Andrade não existe uma obra em toda a ficção nacional em que possamos seguir uma linha de pensamento nem muito menos a evolução de um corpo orgânico de idéias Sem dúvida uma falha de formação no sentido amplo que se deu ao termo de tal ordem calamitosa que suscita com frequência o sósia degradado do autor razo lastimado por Mário de Andrade o falso escritor difícil escar necido pelo Lundú que não é apenas o estrangeirado desfrutável ou o amaneirado que confunde juízo literário e experimentação verbal mas também o escritor contagiado pela praga profundérrima do valorete rnismo execrado por Mário Recordo a explicação de Antonio Candido produzindo para públicos simpáticos porém restritos sobretudo culturalmente ilhado pela maioria esmagadora dos pobres expropriados também da independência incipiente que as primeiras letras prometem o escritor brasileiro raramente encontrou reunidas as condições que permitissem a formação de uma literatura complexa Daí a alinhar com o meio pouco exigente bastava um passo que ninguém recusava dar a segregação temida vinha afinal estimular a criação de uma literatura acessível como poucas amparada pela boa consciência da missão cumprida Se Roberto Schwarz tem razão esse apequena mento da intenção literária persiste até os dias de hoje na exata medida em que perdura embora substancialmente alterado o quadro social de origem responsável pelo rebaixamento de nosso cotidiano ideológico E continua servindo de cobertura para a modéstia de nossos resultados literários é ainda Roberto quem provoca para lembrar a seguir que não é por acaso que o ingrediente menos prezado na literatura brasileira é a inteligência a capacidade de formular e emparelhar com a complexidade da hora mundial Por aí também se compreende que nos últimos anos a renovação da prosa de ficção pela associação balanceada de raciocínio e poesia se deva a ensaístas Paulo Emílio Salles Gomes Zulmira Ribeiro Tavares Modesto Carone e se o programa de Cruz Costa não é de todo insensato é de se presumir que encontre ali novos argumentos Por outro lado é bom aproveitar a ducha fria de Roberto para lembrar que não era outra a fonte da falta de apetite especulativo de Cruz Costa que transformada em argumento redundava pura e simplesmente em restrição mental desmoralizante Sua mania de trocar tudo em miúdos e fugir da complicação conceitual descendia em linha direta do lado complacente do programa modernista assim resumido por Roberto não vamos embarcar numa terminologia que não nos diz respeito fiquemos por aqui dentro desta realidade um tanto diferente e tão nossa e que por isso mesmo está a salvo ou idilicamente abaixo da cena contemporânea Salvo engano não é desta renuncia que se trata nesta Digressão O que pedia então João Cruz Costa Mal comparando exigia do pensador brasileiro um certo sentimento íntimo que o tornasse homem do seu tempo e do seu país ainda que tratasse dos mais remotos assuntos A lição de Machado resumese em larga medida ao encarecimento dessa via oblíqua lição devidamente reconstruída por Roberto Schwarz como diferença e comparação estavam implicadas na matéria artística do nosso maior escritor este só poderia tratar das grandes questões da história mundial renunciando a tratálas diretamente Desconfiando dessa linha cruzada ainda que na forma mais folgada do simples senso do ridículo Cruz Costa limitouse entretanto ao lado negativo do problema sabia o que evitar mas engasgava na hora de esmiuçar a grande tarefa ditada pela tradição literária e ensaística que prezava Ou por outra recomendava que se ajustasse o ensino de Jean Maïngué espírito filosófico livre que marcou a primeira década da Missão Francesa ensinar a ler sua época e seu país através da melhor prosa filosófica moderna à experiência básica de todo intelectual brasileiro Antonio Candido lembra que daquelas aulas memoráveis se desprendia uma espécie de inspiração que aguçava o senso da vida da arte da literatura da história dos problemas sociais e acrescenta que Cruz Costa completava a deixa insistindo na aplicação da reflexão filosófica assim entendida ao Brasil Onde a insensatez Se há algo a constatar é que a presença mais ou menos organizada de elementos indispensáveis para o aparecimento de um ensaísmo filosófico de novo tipo parece não ter vingado nessa direção 4 Resta saber o que tornava um homem de espírito como Bento Prado Jr impermeável à feliz convergência daquelas duas tradições Entre outras coisas não devia encarar com entusiasmo uma perspectiva que cedo ou tarde acarretaria o abandono puro e simples da filosofia presente embora num incontestável porém muito vago espírito de crítica e contradição Como se isso não bastasse a utopia duvidosa do assunto reencontrado na forma programática que se sugeriu filosofar sobre o Brasil não é convite que em sã consciência se faça a alguém ainda por cima de esquerda Seja como for dou um exemplo para variar comprometed or Também não se pode dizer à queima roupa que o Idealismo Alemão tenha filosofado coletivamente sobre a Alemanha e muito menos ainda na acepção primária e fatídica do termo nacionalista Não só se declaravam todos cidadãos do mundo a começar pelo Fichte dos Discursos à Nação Alemã e consideravam undeutsch quem fosse apenas bloss deutsch como sequer entenderiam à sandice que mandasse traduzir Wirklichkeit por realidade nacional Não obstante passaram a vida rumando as vantagens e obviamente as desvantagens do atraso porém raramente em condições de fazer a partilha entre o momento de ilusão compensatória e a dimensão realista que essa perspectiva comportava No fundo um ponto de partida provinciano acrescido do cortejo de figuras de uma espécie de consciência nacional infeliz Do Systemprogramm da virada do século ao colapso de 1848 a Filosofia Clássica Alemã foi a rigor obra coletiva de mais de uma geração de intelectuais Nela os homens de idéias e da Idéia aprenderam a reconhecer sua acabrunhadora fisionomia de homens supérfluos bem como a inserção oblíqua do país no desconcerto das nações mais adiantadas da época Tratase em linhas gerais de uma reflexão reconhecidamente abstrusa e que ia assim passando de mão em mão pois apesar dos pesares a filosofia parecia funcionar na Alemanha sobre os efeitos desconcertados da modernização em escala mundial processo ambivalente em que uma espécie de mutilação galopante da personalidade ia queimando uma a uma as promessas de emancipação que a nova ordem social trazia consigo modernização que além do mais no âmbito local chegava atrasada e assumia feição conservadora Um descompasso nacional cuja exploração miúda e cifrada redundava em sondagem de longo alcance Uma questão de método podia então estilizar impassesda inteligência do país bem como inflexões nacionais das transformações em curso no mundo a Revolução Francesa a configuração moderna do Estado a autonomização da arte a generalização da formamercadoria etc passavam a admitir transcriação especulativa imediata por sinal de ponta cabeça Obviamente a DoutrinadaCiência o Sistema do Idealismo Transcendental ou a Ciência da Lógica não tratavam diretamente da miséria alemã e no entanto nas menores células temáticas daquelas obras herméticas cristalizavamse formas cujo conteúdo de experiência expressava uma percepção antitética da modernidade que dificilmente encontraria equivalente nos países em que tal processo transcorria sem grandes atropelos ou pelo menos os percalços eram outros Por mais arrevesado que tenha sido o discurso daqueles professores longínquos um mundo às avessas e esquadrinhado com a lupa torta da especulação não se pode dizer que o Idealismo Alemão tenha pecado por falta de assunto embora nenhum dos protagonistas admitisse que o seu assunto real fosse justamente aquele para o qual davam as costas ao traduzilo para o alemão Isso posto inútil lembrar que não me ocorre nem de longe aproximar o caso brasileiro enfeixado pelo estreito mandamento cruzcostiano do registro intelectual alemão de uma transição para o capitalismo além do mais retardatária que não poderíamos de modo algum ter conhecido Os termos são incomensuráveis mas como negar salvo engano palmar que a comparação improvável deles fala um pouco à imaginação de todo intelectual brasileiro sobretudo do filósofo à procura de assunto tenha ou não consciência dessa deriva Qualquer analogia estrita é mais do que descabida e no entanto um certo ar de família aparenta um ou outro sintoma do mal superior de que padeciam as respectivas classes cultivadas guardadas todas as proporções devidas no caso Um pouco de atenção metódica para o chão que regularmente nos falta é o quanto basta para reparamos por exemplo que nos seus primórdios a literatura alemã de cuja Idade Clássica o Idealismo é parte integrante enfrentou problemas de malformação semelhantes aos nossos Assim instruídos pelo nosso próprio desconforto entenderemos melhor o empenho de um Herder de um Lessing de um Goethe em suprir pela construção literária deliberada a ausência de um passado orgânico do povo alemão veremos com outros olhos a máxima de Thomas Mann segundo a qual os alemães são o povo do eterno recomeçar sem pressupostos uma maneira bem alemã de dourar a pífula da tenuidade nacional que condenava os melhores como o Schiller evocado na tirada de Thomas Mann a recomeçar da capo é difícil não nos sentimos em casa ouvindo Goethe desabafar no fundo levamos uma vida miserável e isolada desabafo tanto mais familiar quanto des pertado pelo cotejo acobruhador com a formidável sonda de espírito concentrada em Paris há três gerações até mesmo compreenderemos a circunstância atenuante alegada por Goethe nós alemães nascemos ontem como um caso de consciência amena do atraso na qual como é sabido Antonio Candido nos ensinou a reconhecer o preâmbulo da ideologia compensatória do país novo que aliás nem eo caso da Alemanha E assim por diante A tal ponto poderíamos multiplicar os jogos de espelho dessa miragem tangível que não seria mera extravagância imaginar que filosofar sobre o Brasil implicaria por tabela e acomodação recíproca de foco passar a limpo a evolução do conjunto da Ideologia Alemã mais ou menos nos moldes que acabamos de esboçar Noutros termos não encarar com naturalidade a existência da filosofia no Brasil os seus assuntos não estão disponíveis no repertório clássico é também atinar com o assunto real do pensamento alemão moderno a saber com perdão do abuso terminológico os efeitos ideológicos do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo golpe de vista armado pela posição em falso de todo intelectual brasileiro acrescido da ressalva assinalada linhas atrás por mais fortes que sejam os laços de família unindo a franja retardatária da expansão capitalista moderna não são estreitos o suficiente para apagar a diferença fundamental entre a transição européia do feudalismo para o capitalismo e a dependência de origem colonial de países que já nasceram à sombra do capital 5 Como ficamos Em má posição como sempre Bento Prado poderia até conceder para facilitar a vida de um exaluno que uma tal combinação de engrenagem lógica abstrata matéria social cifrada no dito mecanismo especulativo e horizonte históricomundial apreciado do ângulo estreito de um país retardatário numa palavra mais sintética e programática que uma tal articulação de particular e universal processo social e forma conceitual é um despropósito de resto muito manjado mais fácil de enunciar a torto e a direito como já se disse páginas atrás do que de provar no varejo da explicação de textos Isto sem falar na infelicidade reveladora do exemplo escolhido Penso não só na implicância do nosso Autor com a filosofia alemã clássica de preferência tachar alguém de adepto da schoene Menschheit pronunciada a locução com inflexão infamante é um dos seus argumentos prediletos e fulminantes como na lembrança que fatalmente lhe ocorreria da dupla impropriedade da contraprove escolhida por um lado simples chamada à ordem é preciso convir meia concessão que o fenômeno alemão não está ao alcance de todas as bolsas e que além disso a conjuntura histórica favorável que o Idealismo Alemão e congêneres conheceu caducou e com ela o famigerado ponto de vista da Totalitaet cuja presença animava o detalhe nacional Quanto à sugestão esdrúxula de se filosofar sobre o Brasil seria o caso então de referir um outro notável disparate a título de exemplo do casamento mais que duvidoso de filosofia e realidade nacional enfaticamente descoberta nos anos 30 nome e objeto como lembrou não faz muito Antonio Candido para governo dos que alegam não ter acontecido nada no Brasil com o fim da República Velha ainda que sob pretexto de dar às nossas cogitações filosóficas sem eira nem beira um assunto à altura das exigências do dia Quer dizer Bento não deixaria de contraporme as páginas que dedicou em 1968 ao tratado nacionalespeculativo de Álvaro Vieira Pinto Repasso com algum detalhe um confronto evocado noutros estudos No artigo em questão Bento fazia um breve inventário muito respeitoso e sobretudo semeado de referências ao repertório filosófico mais eminente e nisto consistia a graça contida do escrito de uma variada gama de desatinos conceituais cometidos em nome da identificação do pensamento com o malsinado pontodevistanacional Para melhor ressaltar o grotesco do empreendimento Bento comparavao sem pestanejar à Fenomenologia do Espírito em parte por cinismo óbvio em parte por balda de quem se criou na escola da Dissertação Francesa que manda multiplicar as comparações com os grandes do passado Um cacoete que vinha a calhar pois o efeito cômico era devastador uma odisseia da consciência nacio nal nos moldes da narração hegeliana que evidentemente não padece dessa restrição bizarra onde a Nação ocupava o lugar da Substância e nos era servida sob as espécies do universalconcreto enquanto o subdesenvolvimento por seu turno viase elevado ao céu especulativo na forma de uma pretensa inadequação entre o emsi e o parasi ao mesmo tempo em que a dialética do Senhor e do Escravo comandava e explicava as relações entre pensamento europeu e pensamento colonial esta última figura ponto de honra nacionalespeculativo à sombra do qual aliás pilhavase à vontade autores jamais citados Em suma um monumento ao despropósito filosófico Para governo dos mais moços lembro que a breve análise de Bento arrematava antiga birra uspiana que aliás renasceria em nova chave nos meados dos setenta a ponto de virar moda desancar o finado ISEB Ainda não era esse o caso em 1968 Quatro anos antes o golpe militar desbancara o nacionaldesenvolvimentismo cujo fiasco tornara ilegível a Suma Filosófica do período Aquela algaravia fenomenológica já não comovia mais ninguém Nem mesmo nossos alunos esquecidos dos tempos em que na pessoa de alguns veteranos exigiam cursos de lógica brasileira a lógica concreta do pontodevistanacional E se agora 1968 conforme assinalava Bento voltavam a torcer o nariz para o caráter técnico das aulas que recebiam é porque um novo gauchismo estava na ordem do dia do qual aliás era expressão fiel o artigo em que o Bento lançava a última pá de cal no desastrado amálgama de especulação filosófica e inspiração local A propósito o problema com Vieira Pinto é que a inspiração nunca foi local Nada no livro especifica a realidade nacional evocada a todo momento como critério de verdade Salvo a condição óbvia do subdesenvolvimento nada a identifica como brasileira O livro é uma apoteose de abstração filosofante Como disse a birra vinha de longe e não era só nossa mas de toda a escola de São Paulo Olhávamos com desconfiança a desenvoltura dos intelectuais cariocas e não é difícil saber porque Basta recordar os termos já bastantes esfriados de que se serviu Alfredo Bosi num momento de impaciência com nossos antigos pendores críticoliberais para pôr no seu devido lugar a cultura uspiana operosa bem pensante segura de si um tantinho ciosa de suas origens e aí enfatuada como qualquer academia e como se isto não bastasse penetrada até o âmago por um difuso racionalismo técnico que é a boa consciência do profissional Era natural que em nome do rigor acadêmico assim entendido desdenhássemos as elocu brações mal alinhavadas do indigitado Sartre tropical que juntava alhos com bugalhos Uma falta de jeito que só poderia chocar quem imaginava ter nascido dentro das idéias filosóficas européias e possuindo em conseqüência o segredo do seu bom uso O que no fundo não era inteiramente falso mas não deixava de ter sua graça É sempre bom lembrar que naquela quadra a vida filosófica uspiana não era fácil Pairava sobre ela a suspeita da nota falsa da falta de substância intelectual embora fôssemos incansáveis em nosso zelo estudioso fazíamos questão de cursos puxados Nossa maneira custou a firmarse e muito mais ainda a imporse Á direita amadores que julgavam filosofar por terem lido alguns livros de filosofia exigiam o que ainda não podíamos oferecer questão de tempo e até de princípio os sinais de uma maioria da qual apresentavam a imagem caricata À esquerda os nacionalistas tachavamnos de colonizados Por ocasião do artigo em que Bento voltava a divertirse às custas dos equívocos da transfiguração filosófica da realidade nacional os primeiros não vinham mais ao caso quanto aos segundos não se pode dizer com perdão da insistência que o descrédito que os vitimava fosse indício seguro da evaporação do problema real que não souberam formular mas do qual continuava a dar notícia a própria maneira bisonha de o deixar escapar Na realidade o sistema de impropriedades que o subdesenvolvimento arrastava consigo afetava a todos nativistas isebianos e cosmopolitas uspianos porém com efeitos desiguais Quer dizer o escândalo bem composto e armado de nosso Autor diante do disparate nacionalista reiterava mais uma vez um desequilíbrio generalizado de percepções e argumentos próprios da posição em falso característica da situação de dependência Sem exagero todos tinham boas razões para errar o alvo Explicome recapitulando algunos dos termos do quiproquó do qual é ramificação tardia o desencontro que venho relatando e no centro dele a demanda indigesta do assunto filosófico tingido pela experiência intelectual acumulada e nem sempre organizada na periferia do mundo moderno Em linhas gerais no que consistia afinal a literatura filosófica isebiana cujo flagrante despropósito sempre convém evocar para escarmiento dos mal avisados inimigos da gratuidade especulativa em filosofia em má hora confundida com a pura e simples falta de assunto No fundo uma transcrição em jargão existencialista dos principais lugares comuns de nossa tradição crítica voltada como se sabe para o enorme ponto morto de uma cultura a reboque Estes últimos vinham portanto de longe e bem ou mal refletiam impasses objetivos Já o primeiro era recente e repercutia a voga filosófica predominante fechando o círculo com ironia involuntária sendo ditada pelo prestígio metropolitano de que gozava a chave explicativa e redentora denunciava a extensão do estigma por extirpar confirmando ao mesmo tempo o desacerto do diagnóstico herdado Quanto a nós víamos nisso tudo apenas os bons autores estropiados e mal acompanhados maiores e menores eram indiferentemente lançados na vala comum do pontodevistanacional e permanecíamos cegos para o resto que era tudo quando muito matéria de curiosidade sociológica Uma filosofia da existência colonial de fato não cheirava bem Sorríamos da escassez metafísica que pulsava no âmago do subdesenvolvimento da falta de densidade ontológica do homem colonial metafisicamente oco e assim por diante até a famosa exportação de Nãoser e importação de Ser passando pelo Seroutro da situação colonial Um sorriso que embora tarde iria amarelecer mal comparando não faz muito alguém reparou que na obra máxima de Giannotti por definição compêndio superlativo da filosofia uspiana a crise do capitalismo avançado é apresentada em última análise como uma crise ontológica Possivelmente menos uma infelicidade do autor do que do gênero em todo caso um problema que ultrapassava ambos Voltando ao amálgama de complexo colonial como se dizia na época e fraseologia existencialista seria difícil precisar o que menos se chocava com nossa maneira se a liga inusitada entre esferas de cuja contaminação recíproca suspeitávamos se o consumo desenvolvido de um aparato terminológico que entre nós não chegara a pegar ou pelo menos se acomodara discretamente à nossa sobriedade acadêmica Lembro a propósito desta segunda razão de desencontro que o existencialismo paulistano além de cultivado por diletantes o que acrescia a autenticidade era de direita e regularmente tripudiado por um Oswald de Andrade que aliás também teve o seu sarampão existencialista e o nosso João Cruz Costa com a ressalva da simpatia deste último pelo viés nacionalista por reatar apesar de tudo com uma tradição intelectual de que era intérprete e herdeiro descontado o verniz filosofante conforme o gosto do dia que não costumava mesmo levar a sério Enquanto a autenticidade paulistana naufragava na mera tolice sua contrapartida carioca tinha pelo menos o mérito não menos pachola de atribuíla ao capitalismo nacional Complicando um pouco mais nossa equação recordo que o dito amálgama não era tão insólito assim o exemplo vinha do alto refirome ao itinerário do próprio Sartre que a caminho da fusão com o marxismo principiou por colocar a filosofia da existência à serviço do anticolonialismo O arremedo isebiano que também fundia ontologia existencial e retalhos de marxismo fenomenológico para dar conta do axioma sartreano acerca do caráter sistemático do colonialismo não deixava de ter consistência de resto como resistir na periferia do dito sistema ao pathos heróico da interpelação sartreana Seja como for o fato é que aquele vocabulário sincrético mais ou menos autorizado por Sartre inundou uma parte considerável dos ensaios de decifração das anomalias brasileiras O fenômeno não era novo Um observador de nossa vida ideológica poderia reconhecer no surto isebiano de fenomenologia aplicada a torto e a direito inclusive um elo numa cadeia de episódios cujo primeiro capítulo remontaria provavelmente ao primeiro ato de nosso modernismo como denominava José Veríssimo o processo de atualização cultural que a partir dos anos 70 do século passado acompanhou e glosou em prosa e verso a agonia do Império a marcha do Abolicionismo e outros tantos sobressaltos em nossa modorra secular Falouse muito em aurora burguesa mas isto agora não vem ao caso porém a constelação familiar um esforço redobrado de descoberta e revelação do país real recalcado por um longo passado de bovarismo com o auxílio entre outros recursos disponíveis no arsenal ideológico do Velho Mundo de versões mais ou menos amalucadas sem prejuízo do rendimento ideológico delas de filosofias populares como Positivismo Evolucionismo Monismo e quejandos No que concerne às doutrinas em voga uma espécie de revisão crítica generalizada sob a égide do mais completo desgoverno conceitual Esse o vício de origem da algaravia isebiana tudo bem pesado uma virtude Ora Bento registrou apenas o desajuste prova cabal de que trilhávamos o caminho justo e sobretudo contrapróva de que a matéria bruta da experiência intelectual acumulada no país não se prestava sem desatino à cogitações filosóficas sem deterse no entanto na questão espinhosa ou ociosa de saber se era o gênero convencional que não comportava assunto tão fora de esquadro ou se era este que não estava à altura da forma elevada exigida pelo primeiro De qualquer modo preferiu ignorar a tradição mencionada há pouco cuja continuidade o desconjuntamento em questão a um tempo assegurava e mascarava Exasperado pela fraseologia Bento não só tomoulhe a insensatez ao pé da letra como inverteu o raciocínio vendo nos evidentes malefícios do nacionalismo filosófico uma decorrência da metafísica da consciência em que este se apoiava e travestia Nisto estava em casa Mas se dissesse que Bento Prado simplesmente atendia à voga estruturalista do momento que mandava destronar as filosofias do Sujeito verdade que em nome do mais elementar bom senso ferido no caso pelo constante atentado às noções mais coriáceas de conhecimento objetividade etc sacrificadas no altar do pontodevistanacional e acrescentasse que embora em nova chave sua démarche dava sequência a um vejo nacional mesmo assim não estaria fazendo justiça por inteiro ao andamento complexo do nosso impulso mimético Os empréstimos metropolitanos sucediamse dos dois lados com a diferença de que não nos passava pela cabeça à transcrição local das teorias que estudá observava não é obviamente de sua lavra mas decalque do pensamento francês que se formou na escola do existencialismo alemão uma cultura de oposição fundada em conceitos éticos e ontológicos sem qualquer base científica Esse o argumento que quereríamos ouvir Com quem insinuá quase um enxerto não fosse o talento literário de um Sartre de qualquer modo a estação fenomenológica representava um interregno no pensamento francês que afinal voltava a fazer valer o peso da tradição interrompida repudiando o culto da experiência vivida celebrado pelos amigos da Existência justamente o trabalho de sapa que Granger vinha perseguindo sob nossas vistas acomodandonos entre outras distinções à separação decisiva de ciência e percepção amalgamadas pelos adeptos da Erlebnís fustigada em consequência pelo jovem Giannotti em cujos escritos e cursos o vivido era regularmente tuturado Está visto que não nos convinha um lapso ao quadrado A estréia brasileira de Lebrun derradeiro herói civilizador de uma linhagem fundada por Jean Maugie vinha portanto recapitular alguns passos de nosso passado imediato ao qual devíamos a chance de evitar o fiasco da fraseologia nacionalfilosófica além de anunciar em mais de um momento do seu requisitório o natural desfecho estruturalista da corrente que nos arrastava desde o berço Prolongando a linha de tiro fixada por Lebrun não se pode dizer que Bento voltava a abater em pleno vôo observações preciosas se consideradas do ângulo mais geral de interpretação da experiência contemporânea mesmo porque era muito difícil discernilas caso existissem no cipoal da prosa isebiana É certo que dava as costas ao possível relevo da paisagem intelectual próxima deixando de ver que o descolorido dela atingia a todos por igual Mas também não era menos certo que os fios puxados por Lebrun revistos em perspectiva nos amarravam a uma incipiente linha evolutiva local que principiava a se impor no pequeno mundo universitário e cedo ou tarde deveria submeterse à prova dos nove da realidade Tudo isso dito ficamos na mesma com uma diferença desta vez era a gafe isebiana que punha de quarentena um horizonte real de tal sorte que durante um largo período as singularidades de nossa integração dissonante no processo mundial deixaram de falar à imaginação dos filósofos mais aparelhados do país Até que se quebrasse o encanto valia o círculo vicioso como nossa formação filosófica não se completasse e perpetuasse seu lugar subalterno na evolução de conjunto da inteligência do país questões de talento à parte vivíamos à míngua de assunto e na falta deste a dita formação parecia prolongarse indefinidamente na aridez do momento técnico bem assimilado porém sem antes nem depois Nessas condições armadas pela dependência era natural que as ilusões se acumulassem de parte à parte de um lado a camisa de força do assunto prescrito bafejando forma e fundo de outro o mal disfarçado sentimento de pairar acima da indigênciaambiente mais um fato do que um mérito acompanhado da ilusão complementar de que o nosso público verdadeiro encontravase na Europa Completando o quadro de equívocos cruzados seria o caso de lembrar que o autor de Consciência e Realidade Nacional era um professor de filosofia que nada ficava a dever ao similar uspiano salvo o parafuso a menos ou a mais que o levou a aceitar a incumbência de elevar à altura da especulação filosófica o programa nacionalista que para bem e para mal pusera o país em movimento Uma combinação que não deu certo mas também não sabíamos dizer porque Isto sem falar no equívoco maior que nos ultrapassava a todos os estudiosos do período costumam ressaltar o verdadeiro paradoxo ideológico que foi o surto nacionalista de então não só por cristalizar uma quimera a do desenvolvimento capitalista autosustentado mas por espraiarse no exato momento em que o país ingressava de vez no circuito internacional do grande capital Que um professor de filosofia embarque em canoa furada espanta muito menos é até compreensível que o espetáculo em escala nacional de um ideário cuja preponderância política se vê acrescida a cada desmentido que lhe inflige a realidade A essa grande ilusão somavase outra menor porém igualmente estranhada na inteligência da época a de que os intelectuais influiriam no curso do mundo Tanto quanto a prosa especulativa arrevesada os conceitos estropiados o desvio metafísico de fundo e sobretudo a idéia infeliz de passar para a linguagem da filosofia a mitologia difusa da realidade nacional também pesou na aversão de Bento Prado por esse gênero de elocubração a desmesura representada pela entronização do filósofo que tal tipo de especulação acarretava como lembrava Bento um funcionário da humanidade segundo a definição clássica com a atribuição suplementar de guiar os passos de um Estado desenvolvimentista A filosofia isebiana trocava assim em termos bem graúdos a vocação dirigente enfaticamente alegada pela intelligentsia do período Se recordarmos o sistema de inibições que inclusive por uma questão de método ainda nos governavam e aos poucos o tempo foi diluindo nada poderia chocar mais a fé de ofício de meu mestre Bento Prado Se ainda fosse preciso acrescentar uma derradeira e decisiva razão para consolidar a certeza de Bento Prado de que lhe estou impingindo no mínimo um falso problema bastaria mencionar esta inquietante convergência ou simplesmente bisonha de assunto filosófico induzido pela meditação da realidade próxima muito pouco filosófica e a adaptações local de um topos com a idade de Platão o elogio do filósofo enquanto sal da terra mote glosado e atalhado em mais de uma ocasião pelo próprio Bento à medida em que seus colegas chegavam à independência especulativa filosofando por conta própria e risco Noutros termos quando se bate na tecla suspeita do instinto de nacionalidade e não basta evocar a ressalva machadiana cedo ou tarde soará a nota muito desafinada da função direta da filosofia Mais uma vez seria o caso de observar que os ideólogos do pontodevistanacional em filosofia voltavam a dar sequência a um outro vejo nacional mais precisamente juntavam ao tradicional empenho iluminista dos letrados da terra contrapeso da dependência estudado por Antonio Candido no atacado e no varejo uma versão peculiar de um outro lugar comum da crítica da história intelectual brasileira a saber que a inteligência do país não tem mesmo queda para a especulação filosófica Digamos então traduzindo essa mistura de constatação e preconceito altissonante para os termos do nosso problema que traduziam ambos antes de tudo uma falha de formação de que ainda não nos curamos inteiramente Recordo que ainda há pouco esbarrávamos noutro registro desse mesmo clichê a observação de Mário de Andrade segundo a qual falta envergadura filosófica à inteligência literária brasileira sem com isso pedir uma literatura de pedantes apenas que se juntasse à força generalizadora da forma estética uma faculdade de formulação específica Sociedade amorfa literatura amena outra meia verdade corrigida por Roberto Schwarz ao mostrar no caso excepcional de Machado como era possível reconstruir em profundidade a aparente platitude do país começando como vimos pela identificação do marco zero da rotina intelectual de todo homem de letras brasileiro mais uma vez o fôlego curto que nos infelicita em matéria de pensamento prendese ao sistema de impropriedades geração no seio do primitivo complexo colonial e reproduzido pela nova dependência mecanismo que ao encolher e desqualificar a dimensão cognitiva própria da vida das idéias diminuía nossas chances de reflexão ainda que facilitasse a vida do observador desabusado como seria o caso mais tarde do nosso Cruz Costa que não se deixava empulhar mas pouco conseguia explicar Ora os filosofantes cariocas espartilhados pelo pontodevistanacional ao tentarem passar a limpo o passado cultural do país e ao engrossarem por conseguinte o coro da crítica recorrente do bovarismo da inteligência brasileira tinham notícia de que no campo das idéias gerais não íamos mesmo muito longe só que para variar davam forma desastrada a mais esta manifestação do complexo colonial registrada nossa inapetência filosófica atribuíamlhe o condão de retardar gravemente o processo brasileiro emperrado por falta de filosofia Lavrado o disparate era natural que coubesse ao ponto de vista do infinito ocupado pelo filósofo o apanágio da formulação dos problemas nacionais no âmbito da visão histórica de conjunto Despropósito à parte se não chegaram a ser a voz da nação como pretendiam foram no entanto ouvidos e no calor da hora tal audiência chegou a pesar politicamente Quanto a nós estudávamos preparávamos teses e não sabíamos converter nossa supremacia de técnica intelectual e saber acumulado em influência política a rigor nem cogitávamos disso Mesmo porque não éramos ideólogos e fa zíamos praça disso Mais uma vez a macia lentidão muito mais inclinada a resolver os problemas do que enfaticamente interessada em concluir aliada à modesta consciência das questões preliminares imperativas emblema do ethos uspiano de origem dava dignidade metodológica à quase nenhuma repercussão da Faculdade de Filosofia no ambiente nacional em ebulição De qualquer modo íamos cuidando da nossa formação e se dávamos as costas às elocubrações isebianas era porque elas maltratavam problemas que não estavam em nossos textos como observou mais tarde recapitulando a miopia uspiana um dos principais protagonistas daquele desencontro histórico Daí a confirmação da nossa vocação de tímidos moral provisória na estratégia do pensamento era um passo Repetindo como se não bastasse a liga abstrusa de complexo colonial e fraseologia fenomenológica para os escarmentar e desacreditar de vez qualquer propósito de identificar um assunto significativo fora do repertório clássico a ambição anacrônica de restauração da visão sinóptica da Teoria filosófica na sua antiga enfática acepção com o cortejo de todas as suas veleidades políticas vinha arrematar de vez o disparate além do mais recentemente sepultado pelo eclipse francês da supracitata fraseologia A timidez da maneira filosófica professada pela linhagem uspiana simbolizada superlativamente por Bento Prado Jr tinha pelo menos a vantagem de preservarnos da miragem de que os intelectuais e os filósofos na linha de frente podiam alguma coisa Por esta pista não correríamos 6 Tudo isso dito e repisado chego ao término desta Digressão sem ter dito nada que Bento não soubesse e muito melhor do que eu e por isso mesmo justificadamente inquieto com as conjecturas extravagantes do exaluno Restringindome ao ponto nevrálgico delas recordo apenas que lhe devo a sugestão de confrontar a tenuidade da vida filosófica nacional à formação relativamente bem sucedida do sistema literário brasileiro reconstituído por Antonio Candido A deixa encontrase no artigo de 1968 sobre o falso problema da filosofia no Brasil Depois de referir de um modo muito peculiar a dis tinção hoje clássica entre simples manifestação literária e literatura propriamente dita em função da qual cabia finalmente assinalar a instauração da literatura brasileira voltaremos ao termo dissonante Bento não escondia a conclusão pouco lisonjeira mas nem por isso comprometedora sinal de que no fundo não havia real embaraço à prosperidade do talento filosófico entre nós se observarmos o panorama filosófico nacional à luz daquele quadro conceitual veremos que provavelmente nenhuma escola deixa de estar representada mas são manifestações filosóficas avulsas cuja resenha nada diria a um leitor europeu Em suma no que concerne à filosofia no Brasil o seu registro de nascimento ainda não foi lavrado Um juízo que estava longe de provocar consternação nem mesmo mudança de rumo Até porque nem tudo era apenas divulgação embora manifestações desgarçadas havia entre elas assegurava enfaticamente Bento algumas notáveis Complacência devida ao esforço dos confrades em dotar o país de obras que o emparelhassem aos grandes centros culturais Os novos tempos já não exigiam mais tal simpatia programada sinal de que ia bem o casamento de talento local e assimilação dos temas propostos pelo repertório internacional Deste ajuste ou desajuste o juízo em questão era um espelho fiel um olho posto na terminologia francesa do momento enquanto o outro refletia numa fórmula perfeita o descolorido da paisagem próxima como entretanto não convergiam o curtocircuito passava despercebido e a reflexão perdia uma chance Explicome Sem exagero Bento via na obra clássica de Antonio Candido não os esquemas conceituais adequados à explicação de um fenômeno capital como os percalços característicos da formação de uma continuidade literária mas o similar brasileiro da arqueologia de Foucault cujo ponto de honra era justamente a identificação de descontinuidade acresce que o Sistema em questão além de aparentado com a epistemé foucaultiana também tinha todo o jeito de um sistema diacrítico de oposições como mandava o novo figurino linguístico das ciências humanas de tal sorte que só haveria sistema literário quando ler um autor significasse interpretar a distância que o separa dos demais juntava o que não podia andar junto restava apenas o pastiche sem futuro explicativo Isso posto torno a recordar que o batismo intempestivo de Antonio Candido era decorrência natural do anatema sobrevinddo com os novos ventos filosóficos com o eclipse recente do humanismo seguramente por razões muito diversas das alegadas pelos críticos parisienses do finado ideário históricotranscendental encarnado como se disse pelo interregno francês da fenomenologia e assemelhados caíram por conseqüência em desgraça as noções correlatas de consciência e história irmanadas pelo insustentável pressuposto comum da continuidade Como o novo foco recaísse sobre a idéia de sistema estava armado o curtocircuito de que falamos Nestas rendições de guarda comandadas à distância os uspianos destacavamse ao menos pela sobriedade apresentada oportunamente como apanágio paulistano que lhes era facultada pelo passado francês suficientemente remoto para ser ouvido como a voz da própria natureza Já aludi à dupla fidelidade do nosso impulso mimético garantia de uma continuidade tão postiça quanto verdadeira Como Bento tinha em mira o várias vezes falso problema da filosofia no Brasil a invenção estruturalista dos espectros gêmeos do Sujeito e da História cuja continuidade se deve à identidade do primeiro vinha a calhar pois entroncava em nosso ponto de honra metodológico a autonomia do discurso filosófico assegurada como salientado em mais de uma ocasião pela disciplina historiográfica graças à qual os primeiros professores franceses imaginaram enquadrar e polir os maus modos exibidos pelos brasileiros que se aventuravam no mundo das idéias e como se vê não nos vacinara inteiramente contra as flutuações do influxo externo Mais uma vez não estou dizendo nada que Bento não saiba e não formule inclusive no corpo do mesmo raciocínio por assim dizer bifronte Depois de dar a César o que não é de César Bento voltava a registrar sem ironia a preponderância do supracitado influxo externo patente na dispersão das manifestações filosóficas perdidas como diria Silvio Romero no toverlinho da nossa indiferença essas obras e esses trabalhos muitos deles notáveis embora resenhálos como já observou não implique em nenhuma informação para o leitor europeu não se organizam no tempo próprio de uma tradição nem se articulam no interior de um sistema próprio é de fora como sempre que lhe vem a sua coesão Não poderia alguém incriminarse com maior rigor E por isso mesmo a acuidade do olho clínico de Bento novamente o sexto sentido farejando a gafe no ar esgotavase nela mesma tudo bem pesado uma seqüela da experiência intelectual brasileira cuja atomização por certo não favorecia a consideração simultânea desse balanço entre observação justa e argumento impróprio Acrescento em tempo um detalhe para os maiores de quarenta anos linhas atrás chamei a atenção para o uso insólito do termo instauração aplicado à formação do sistema literário brasileiro descrito por Antonio Candido nosso termo de comparação privilegiado segundo a deixa do próprio Bento Tratase de uma expressão quase fóssil e imagino que o seu emprego não tenha sido deliberado vem de um livro publicado em 1940 por um representante muito característico do espiritulismo quase secular da filosofia universitária francesa Etienne Souriau A Instauração Filosófica que talvez tenha ficado na memória dissertativa de muitos de nós graças à incorporação parcial dele aos argumentos de Gueroult acerca da legitimidade da História da Filosofia Não que este último adotasse o estetiscismo do primeiro muito convencional aliás mas o enigma da indestrutibilidade das filosofias era um convite a encarar cada filosofia como a instauração de uma realidade própria uma espécie de real filosófico sustentado por uma arquitetônica singular e incomensurável pelo metro do real comum Toda obra filosófica apresentavase assim aureolada por um éclat propre um brilho sob medida pois para o nosso gosto profissional o seu reino não podia mesmo ser deste mundo De sorte que até naquele lapso de pormenor fundindo além do mais filosofia e literatura Bento punha no diário a prata da casa na verdade resíduo de um transplante mais antigo e agora índice da mitologia pessoal dele Deixando de lado o vocabulário enfático da instauração Bento seguramente pensava em nossa alforria especulativa ao visar o extremo oposto não havíamos nascido para a filosofia porque o correspondente sistema de obras público e tradição ainda não se completara se dermos uma versão mais prosaica ao que então tinha em mente Feitas as contas nossa certidão de nascenca já fora de fato passada com os primeiros frutos da missão francesa Outra coisa era a maioria propriamente dita hoje menos introuvable que nos idos de 60 sobretudo se a julgarmos segundo o padrão convencional da reflexão pessoal Outro indício seguro do novo estágio pelo menos conforme os critérios da casa que favoreciam as tendências à vida intelectual de bicho de concha refúgio dos técnicos da inteligência é o fato dos nossos maiores passarem a aceitar sem muito pejo a denominação genérica de filósofos Voltando ao assunto na década seguinte Bento variava a angulação trazendo para o primeiro plano o que antes registrara porém relegara a lógica muito peculiar de nossa formação cujo marco zero passava então a destacar mais ou menos no mesmo diapasão civilizatório de Mário de Andrade e Antonio Candido a saber a pequena revolução cultural que foi a instituição de cursos regulares de filosofia em nosso meio universitário É verdade que também mudavam os ares do tempo Como declinasse o regime militar principiava a estação dos balanços e crônicas de origem Convidado a justificar a vida filosófica perante à nova conjuntura que se delineava Bento também recapitulava no Brasil e particularmente em São Paulo a instalação da escola precede e condiciona o exercício do pensamento ela tornou possível a passagem do puro consumo da filosofia a um esboço de produção E isto foi bom arrematava Foi antes de tudo necessário o fardo do subdesenvolvimento na realidade obrigavanos a inverter a seqüência natural européia que subordinava a reflexão filosófica ao andamento vivo da cultura independente assegurandolhe envergadura graças ao vínculo efetivo com o conjunto do processo social Todavia a ordem inversa não nos condenava totalmente ao arbítrio da especulação suspensa no ar Ou melhor o enxerto civilizatório de que bem ou mal nos beneficiávamos na figura da cultura escolar francesa de qualquer modo vinha na esteira da transformação moderna da filosofia em especialidade universitária uma reviravolta européia datada do oitocentos que afinal nos favorecia pois o empobrecimento da experiência intelectual no centro podia muito bem vir a ser a chance histórica da periferia que começava a se associar ao circuito acadêmico mundial Com isso era a famigerada gratuidade dos que entre nós cuidavam de filosofia que mudava de sinal de sorte que um ziguezague sem passado nem futuro deixouse canalizar dando início à nossa formação ainda que no trilho necessário porém um pouco bitolado da cultura escolar Vai nessa direção uma observação de Antonio Candido a rigor o fio vermelho da presente Digressão um lento acumular de tralhos aparentemente gratuitos mas que vão formando uma atmosfera uma tradição um estilo dentro dos quais as atitudes adquirem sentido e consistência Uma fórmula que descreve e prescreve com o conhecimento de causa de quem a viu nascer a germinação obscura da cultura filosófica uspiana cuja macia lentidão tanto exasperava os espíritos menos disciplinados pela rotina que ia se cristalizando segundo o ritmo das técnicas intelectuais importadas desta vez de caso pensado Como a fórmula também comporta uma lição e uma ressalva não posso deixar de sublinhálas sobretudo por nos livrarem da pecha de homens supérfluos O reparo que se encontra no artigo de 45 já citado tinha por alvo o malentendimento do instinto de nacionalidade estreiteza disseminada entre os detratores dos intelectuais puros outro lugar comum de nossa tradição crítica compartilhado plenamente por Cruz Costa que nunca perdia ocasião como se sabe de fustigar as fumaças filosóficas dos pensadores nativos Convinha então lembrar algumas verdades que tanto o empenho de uns quanto o devaneio de outros tendiam a mascarar A principal delas concernia a ameaça que pairava sobre a cultura filosófica naquela quadra de definição de rumos caso baníssemos a especulação alegando as exigências do dia secundando aliás o que havia de melhor no passado da ilustração brasileira seria a morte da filosofia rebaixada à condição de reportagem sob pretexto de que seus problemas tradicionais nada teriam de brasileiro quanto ao assunto caso nos desinteressássemos da paisagem próxima em nome da especulação desinteressada e quase sempre adotada fora de propósito era o risco da mera curiosidade intelectual que corríamos também vezo nacional notório Feito o balanço cabia a ressalva trabalhos aparentemente gratuitos Uma ressalva que expressava antes de tudo confiança na Teoria assim mesmo com maiúscula tomada em sua acepção mais superlativa O fato é que a tonalidade ideológica que a nova Faculdade ia assumindo e Antonio Candido enfatizando favorável ao espírito de crítica e livre exame próprio da pesquisa dita pura e desinteressada coisa inédita num ambiente tradicionalmente imantado pela atração utilitária das profissões que podiam alegar mas só alegar benefício público tangível o fato é que esse pendor radical uma brecha no patronato oligárquico convidava à comparação lisonjeira com a vida teórica dos Antigos Embora predominasse a presença francesa também procedíamos como se fosse nosso igualmente o ponto de honra de qualquer universitário alemão a saber que a Teoria bem compreendida encerrava uma força plástica em condições de moldar à sua imagem e semelhança a conduta de quem a ela se devotasse a vida justa era decorrência dessa conversação ao saber cuja marcha ascendente configura propriamente a Bildung ideal de inteireza ao qual um coração bem formado não podia deixar de aspirar O que Antonio Candido trocava em miúdos progressistas o que nem sempre fora o caso na Alemanha e adaptado ao cenário local mais ou menos nos seguintes termos do estudo dos velhos problemas abstratos da filosofia não tardará a conformarse uma mentalidade incompatível com o cortejo das misérias nacionais Anos depois nos momentos de recapitulação e balanço Antonio Candido nunca deixou de sublinhar a vigilância intelectual dos uspianos que cuidam de filosofia um elogio que tinha a virtude apreciável de contornar a questão delicada dos resultados daquela vigilância que ainda tardavam e retardavam nossa integração definitiva na atividade criadora do espírito moderno como ele esperava e anunciava nos idos de 40 O próprio Cruz Costa rezava pela mesma cartilha até porque sua hostilidade ao devaneio dos preciosos levavao a desdenhar a ciranda das doutrinas em favor do dito espírito filosófico crítico por definição que paradoxalmente emanava desse encontro e desencontro das idéias Quanto a subordinar a consistência das atitudes refratárias ao estado de coisas vigente ao alheamento apenas aparente do intelectual encaramujado Cruz Costa também não diria que não apenas acrescentaria sem o tato de Antonio Candido que na germinação obscura em que deita raíz a mentalidade do contra tão preciosa num país onde todos são a favor pesava muito menos o teor das filosofias do que a disciplina exigida pelo estudo delas Os herdeiros obviamente não discrepariam Digamos para resumir e retomar o fio de nossa meada que essa tradição radical onde se combinavam segregação e empenho a um tempo sancionava e oferecia consolo político à timidez entranhada na maneira filosófica que cultivávamos Refirome voltando ao ponto de onde partimos nesta Digressão ao período crucial de nossos anos de aprendizagem em que a história estrutural da filosofia ocupava um lugar central na estratégia do pensamento para recorrer a uma fórmula do próprio Bento Prado Nossa via suspensiva cifrada no interesse exclusivo pela arquitetônica das doutrinas e no conseqüente desdém pelo mau gosto dos dogmáticos atrelados à questão indecidível da verdade dos sistemas aparecíanos como o caminho mais seguro para fortalecer o juízo político inclinandoo naturalmente para a esquerda Simbiose que um espírito escarninho não hesitou em batizar de esquerda transcendental Estávamos tão convencidos da verdade dessa curiosa convergência que chegávamos a fazer circular um pequeno mito de origem possivelmente verdadeiro que atribuía a Victor Goldschmidt a opinião segundo a qual o estudo rigoroso dos sistemas filosóficos conduzia ao socialismo Acresce que esta fé política de ofício cabeça inibida pelo medo do ridículo e coração der tamado à esquerda era confirmada todo dia pelo vexame permanente da filosofia municipal nossos adversários que menosprezavam a contenção professoral que nos atava filosofavam como se tivessem nascido dentro das grandes teorias em voga perdendose em conseqüência na asneira cuja coloração política era francamente de direita