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GÊNESE E ESTRUTURA DO FIO DA MEADA UM PANORAMA DA OBRA DE PAULO ARANTES Pedro Rocha de Oliveira Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Resumo No presente texto procuramos apresentar um panorama da obra de Paulo Arantes analisando os pontos de contato entre sete de suas principais obras Ressentimento da dialética Sentimento de dialética O fio da meada Zero à esquerda Extinção O novo tempo do mundo e Um departamento francês de ultramar Procurando ressaltar a preocupação fundamental que alinhava a diversidade temática dessas obras nos esforçamos em reconstruir a argumentação de Arantes em especial na medida que lida com o problema dos limites da modernização capitalista a relação entre esses limites e a racionalidade moderna e a bizarra sobrevida civilizacional para além deles Esse tríplice problema é várias vezes recolocado na obra de Arantes na medida que a atenção do autor oscila entre sua manifestação na periferia mundial e nas metrópoles capitalistas Palavraschave Arantes obras gênese estrutura Abstract We present an overview of the work of Brazilian philosopher Paulo Arantes analyzing the points of contact between seven of his main works Ressentimento da Dialética Sentimento da Dialética O Fio da Meada Zero à Esquerda Extinção O Novo Tempo do Mundo and Um Departamento Francês de Ultramar Reconstructing Arantes arguments we suggest fundamental concerns behind the thematic diversity of those works the limits of capitalist modernization the relationship between those limits and modern rationality and the bizarre form of extended life consequently in vogue This triple problem is repeated several times in Arantes work as the authors attention oscillates between its manifestation in the world periphery and in capitalist metropolises Keywords Arantes works genesis structure Nascido na década de 1940 Paulo Arantes pertence a uma geração que se intelectualizou e politizou no vivaz e turbulento ambiente político brasileiro que antecedeu ao golpe de 1964 Embora às vezes se defina como materialista vulgar sua referência teórica principal é sem dúvida a obra do crítico literário brasileiro Roberto Schwarz a quem credita repetidamente ter desvendado a xarada da experiência intelectual brasileira Ao mesmo tempo nomes tais como Gyorgy Lukács Theodor Adorno JeanPaul Sartre Herbert Marcuse e Hannah Arendt mas também Francis Fukuyama Jürgen Habermas Frenand Braudel e Carl Schmitt figuram também em sua obra seus textos são usualmente construídos em termos de análises críticas frequentemente simultâneas de autores os mais variados e contrastantes Mas Dissertatio 53 101143 2021 Pedro Rocha de Oliveira 102 quando traz à baila esses autores consagrados o objetivo de Arantes não é posicionarse publicamente diante das suas ideias Vale para o todo de sua obra a epígrafe brechtiana de um de seus livros 1996b ele pensava dentro de outras cabeças BRECHT 1988 p 420 A uma primeira vista os temas desse pensamento heterocefálico variaram consideravelmente ao longo do tempo Nos anos 197080 Arantes preocupouse com a gênese do pensamento burguês e da crítica da economia política Nos anos 1990 refletiu a respeito da conexão entre os projetos nacionais de modernização socioeconômica das décadas anteriores e o imaginário socialista Na virada da década de 1990 para 2000 atentou para os processos de polarização econômica e política subjacentes aos discursos do neoliberalismo e da globalização salientando a conexão entre os caminhos da modernização capitalista financeirizada e militarizada e o eclipse do conteúdo civilizatório do discurso burguês clássico Desde então Arantes vem se preocupando em mapear historicamente a relação entre esse eclipse e a substituição da política de pacto social pelas práticas policiais de gestão territorial a nível nacional e internacional Seus livros têm a forma de coleções de ensaios com títulos jocosos Uma questão de tato O pensamento único e o marxista distraído Pensando por fora às vezes subdivididos em enigmáticas partes numeradas elas mesmas sem título O tom do próprio texto também tem algo de enigmático abordagens indiretas parênteses dentro de parênteses fechados com duplas negativas argumentos longuíssimos às vezes encerrados com tiradas propositalmente inconclusivas Mas a escolha permanente por essa forma peculiar não é um capricho estilístico exprime segundo cremos as idas vindas e aporias impostas pelo problema que ocupou nosso autor continuamente embora às vezes subterraneamente desde os primeiros escritos a maneira como a relação complexa entre o ideário burguês clássico do desenvolvimento socioeconômico e a intensificação histórica das relações sociais capitalistas por um lado inspiraram um imaginário radical de transformação social e por outro colapsaram numa reafirmação brutal da acumulação capitalista como fim em si mesma Ou nos seus termos caracteristicamente aforísticos a modernização abortada ou consumada tanto faz ARANTES 2004 p 66 Além da unidade formal condicionada pelo objeto também há como veremos uma certa unidade de abordagem que vem sendo mantida desde seus trabalhos dos anos 1970 Para problematizar a modernização capitalista Arantes consistentemente adota uma perspectiva bifronte que procura por um lado considerar a socialização burguesa como um projeto ou um processo Dissertatio 53 101143 2021 103 aberto e potencialmente emancipador mas por outro como um logro cujo fracasso foi clara e constantemente exibido pelo caminho que tomou nas periferias do capitalismo Esse bifrontismo é herança clara do pensamento de Roberto Schwarz tratase de compreender o capitalismo contemporâneo à luz do papel cognitivamente privilegiado que a periferia desempenha dentro dele ler o Norte através do Sul na expressão de Neil Larsen 1995 No presente texto procuraremos resgatar e encadear raciocínios desenvolvidos por Arantes em suas obras que consideramos ser mais representativas desse esforço de intelecção da dialética da modernização capitalista Assim nosso objetivo não será esgotar o conteúdo dessas obras mas achar o fio da meada ARANTES 1996b entre elas Nossa exposição será organizada em sete passos Primeiro 1 debruçandonos sobre uma série de ensaios de Arantes a respeito da gênese dos pensamentos de Hegel e Marx atentaremos aos fundamentos sociológicos da consciência da dialética da modernização burguesa conforme formulada pelo Idealismo e o Romantismo alemães Em seguida 2 relacionaremos esse pensamento dialético às possibilidades políticas da sociedade moderna atentando à leitura que Arantes faz do 1848 francês como paradigmático fechamento histórico daquelas possibilidades Daí 3 passaremos a uma leitura do processo de modernização brasileiro sobretudo da inflexão autoritária a partir do golpe militar de 1964 e 4 da análise de nosso autor a respeito dos rumos tomados pela consciência teórica que refletiu sobre ele Essa reflexão tem implicações sobre 5 um diagnóstico do capitalismo global contemporâneo em especial no que tange a dissociação entre desenvolvimento econômico e progresso civilizacional com 6 a consequente identidade entre violência e administração social e 7 a superação prática do papel que a temporalidade classicamente desempenhava no ideário políticoeconômico burguês 1 Consciência social e modernização Teoria formação nacional e modernidade política Conforme uma formulação do Ressentimento da Dialética ARANTES 1996a p 365 uma das descobertas fundamentais de Marx e Engels teria sido a imbricação entre a gênese da teoria social burguesa e o caráter de classe do processo de socialização capitalista Isso teria sido expresso na Sagrada Família e na Ideologia Alemã Sob o capitalismo dependendo da complexidade da sociedade civil o volume e a diversidade de perfil das classes proprietárias o processo de consolidação das sociedade nacionais demandou um esforço de Pedro Rocha de Oliveira 104 formulação discursivo capaz de converter os interesses particulares de todos os setores sociais envolvidos em torno do objetivo único da formação de um país Nesse discurso o funcionamento do capitalismo que impõe aos atores econômicos o comportamento da competição e a tendência à concentração de riqueza exclusão econômica e constituição de monopólios precisa ser momentaneamente representado sob o aspecto pactual do interesse comum da vantagem e da viabilidade gerais Isso equivale a dizer que a formação nacional precisa aparecer sob a forma de um projeto mais ou menos consciente balizado por uma linguagem universal sociologia economia científica filosofia política etc O que Arantes argumenta contudo é que na Alemanha do final do século XVIII a formação nacional burguesa não havia se completado o que por vias tortas terminou por dotar o pensamento alemão de sua sensibilidade dialética Ressentimento intelectual na periferia da sociedade burguesa clássica A ideia básica é que o Idealismo germinou num ambiente marcado pela frustração dos intelectuais com a penetração social de sua própria obra a qual incorporou constitutivamente essa frustração em meados do século XVIII Essa conceitualização da frustração baseouse na apreciação de como a Alemanha comparavase desfavoravelmente com a França iluminista em termos do alcance social da produção de ideias o que ficou registrado na obra de autores como Goethe Importando o discurso francês do papel fundamental do intelectual na civilização moderna aquela comparação converteuse num diagnóstico da sociedade alemã como arcaica prémoderna atrasada o que deu à frustração a forma final do ressentimento que dá título à obra de Arantes se os intelectuais não eram ouvidos na Alemanha o problema era da sociedade alemã que não lhes dava o valor que sua sofisticação merecia O lastro real desse diagnóstico ressentido era duplo Por um lado a fragmentação política e a concentração de autoridade que marcavam o cenário alemão tornavam o pensamento e a opinião da classe média dispensável para a administração pública Ao mesmo tempo a ausência de mecanismos de participação política tornavam o povo indiferente à consequência política das ideias uma vez que encontravase de qualquer forma incapaz de exercitálas Assim a classe média letrada encontravase na desconfortável situação de depender umbilicalmente de uma aristocracia cujo poderio inconteste tornava as ideias politicamente irrelevantes Era obrigada à intelectualização pelas suas funções socioeconômicas específicas as profissões liberais a universidade a burocracia mas tinha que exercêlas às margens do aparato estatal Dissertatio 53 101143 2021 105 Sem produção endógena intelectualizarse consistia para um alemão entrar em contato com a cultura estrangeira A filosofia exportada da França sob a forma do discurso cosmopolita e universalizante expressava um momento fundamental da realidade europeia a possibilidade de um projeto de modernização social através da racionalização do Estado Moderno O pensamento inglês decifrava a operação econômica anônima e privada em contraste por mais que se identificasse com esses projetos a intelligentsia alemã estava privada da oportunidade social de fazer o pensamento entrar em choque problemático com a realidade não existia uma classe interessa em suas ideias nem estruturas políticas sociedade civil capazes de realizálas Assim a Alemanha desenvolverá um discurso filosófico autocentrado cujo critério de verdade poderá ser apenas a capacidade de seu conteúdo de sobreviver no espaço paradoxal entre o conservadorismo político e a modernidade intelectual evitando os excessos do iluminismo tanto no entusiasmo formal quanto no conteúdo radical uma cultura do tato Schiller expressou loquazmente essa demanda nas suas Cartas para a educação estética do homem de 1794 onde exigia do mérito a bela aparência e da verdade interior a forma agradável ARANTES 1996a p 180 Ao mesmo tempo Goethe descreveu essa polidez forçada como uma forma de defesa contra a situação social desfavorável da Alemanha Nesse sentido a aparência agradável seria apenas aparência um subterfúgio para permitir a sobrevivência no interior da alma humana dos ideais verdadeiros que a sociedade rejeitava Ora no iluminismo francês a luta contra as boas maneiras forçadas dos salões que recobriam a verdade do absolutismo era um dos temas do teatro iluminista de Diderot em sua cruzada contra a libertinagem da nobreza Na Alemanha essa perspectiva estava barrada pela falta de público letrado e pela censura política O Romantismo a fuga para o interior e a ironia objetiva Com a realidade social vedada o pensamento voltase com o Romantismo para um discurso a respeito da superioridade do sentimento e da cultura interior Esse discurso era na prática expressão da luta por reconhecimento profissional do homem de letras Ao mesmo tempo afirmava a inferioridade da realidade arcaica e opaca frente à plenitude subjetiva A ironia foi o seu recurso formal privilegiado possibilitava ao mesmo tempo dar vazão à sofisticação cultural e manter distanciamento crítico frente à cultura moderna Os alvos preferidos dessa crítica mordaz eram os escritores entusiasmados ou seja os que levavam as ideias à sério relatos Pedro Rocha de Oliveira 106 contemporâneos dão conta de uma reunião de salão na qual a leitura do projeto de Schiller de reformar esteticamente a humanidade ocasionou uma contagiante e infindável crise de riso nos presentes Ao mesmo tempo o desprezo pelas ideias era atributo dos inteligentes e o teor essencialmente exibicionista dessa forma foi expresso por A W Schlegel que afirmava a necessidade do homem realmente culto de mudar de ideia várias vezes por dia como alguém cuja mente afiada permite tratar qualquer pensamento singular como limitado demais para seu intelecto superior Tal afirmação de superioridade era marcada pelo ressentimento no entanto seu caráter compensatório ficou evidente para Schlegel que leua como expressão de malestar causado pelo cerceamento da individualidade e a potencialização das capacidades intelectuais Esse desencaixe na leitura de Schlegel seria um sintoma da sociedade moderna em geral o qual aparece mais intensamente na Alemanha arcaica onde as ideias estão fora de lugar do que na França avançada onde as ilusões do autoinebriamento da razão são catalisadas por uma vida social que tampouco será capaz de fazerlhes justiça Ao mesmo tempo nas palavras de Arantes a conversão irônica da impotência histórica e socialmente determinada do pensador em uma convicção pessoal cegavao para a ironia objetiva ARANTES 1996a p 230 o fato de que o progresso da sociedade moderna através da divisão do trabalho e da racionalização estatal ao mesmo tempo criava as condições para a existência de uma classe intelectualizada e tornava inofensivas as ideias que essa classe produzia Essa ironia objetiva será a base persistente da sociologia das ideias que Arantes estenderá até o pensamento marxiano passando por Hegel e pela tradição idealista A relação problemática entre ideias e realidade no Idealismo A interiorização da impotência objetiva do pensamento combinada à sua potencialização subjetiva também foi expressa pela leitura alemão do ceticismo No criticismo de Immanuel Kant a célebre influência do empirismo radical de David Hume havia sido convertida no tabu sobre a coisa em si Sintomaticamente tal tabu não se estendia à essencialidade do próprio ser humano esta sim cognoscível porém em termos de um sujeito transcendental comensurável com uma individualidade em geral ou seja um sujeito histórica e socialmente descontextualizado Isso formava sistema com a dissociação entre a filosofia no sentido técnico e a produção filosófica de interesse geral a filosofia não tinha o que dizer do mundo das relações históricas e sociais exceto no que se depreendiam da metafísica do sujeito Dissertatio 53 101143 2021 107 transcendental que constituía seu verdadeiro objeto Isso também casava com a famosa distinção entre o uso público e o uso privado da razão aspectos do discurso kantiano de limitação do exercício racional que encaixavam com as condições políticas e sociais da produção do pensamento na Alemanha No fim das contas o pensamento rigoroso podia ocuparse livremente de questões morais e com a teoria do conhecimento todo o resto estava submetido a pudores de diversas ordens além de cair fora de um discurso racional verdadeiramente científico Nas recepção de F H Jacobi ao criticismo kantiano era como se na prática as coisas realmente existentes a coisaemsi estivesses proibidas ao pensamento e a inteligência só pudesse se entreter com o mundo das meras aparências ou seja no fundo com o nada Contudo essa anulação transcendental das coisas assumiria em J G Fichte o sentido oposto ao de uma afirmação da impotência do pensamento Fichte converteria a kantiana anulação transcendental da realidade no exercício da vontade subjetiva de impor sentido à realidade Isso incluía uma releitura do ressentimento romântico A realidade não era exatamente indiferente às ideias antes era vazia de ideias porque antes das ideias não era nada Ao mesmo tempo a Razão colocava as ideias como única destinação da realidade de tal modo que o nada deveria tornarse algo conforme estava inscrito no caráter prático e teleológico das ideias que na realidade social não tinham realidade mas não tinhamna ainda Fichte e as massas anuladas Fichte enraizava esse esquema filosófico na situação social europeia e alemã Em especial o niilismo que está em seu centro a realidade anulada corresponderia à inércia política e social das massas Entretanto no sistema filosófico fichteano essa inércia é desprovida de densidade sociológica sendo representada apenas como o espaço vazio para a ação das ideias ou seja para a prática política do intelectual O atraso alemão ou mesmo a dissociação moderna entre o pensamento e a ação política existiam apenas para que o intelectual enquanto professor Lehrer cumprisse seu papel civilizador algo que está inscrito no título da obra magna a Doutrina da Ciência Wissenschaftslehre Caracteristicamente Fichte deixava de lado o problema extrafilosófico da dissociação entre a massa politicamente neutralizada e a classe intelectual espertíssima ou seja o problema sociológico da diferenciação intelectual Por outro lado ao contrário do que ocorria na má consciência romântica existe aqui um lugar para o ideal reformador Pedro Rocha de Oliveira 108 Contudo esse ideal é exclusivamente intelectual didático A plebe tão ignorante quanto empobrecida e alijada da política oscila entre a passividade e a revolta para evitar esses extremos é preciso desencadear um processo lento de reforma baseada na educação Hegel teoria social e pacto de classes Sabemos que essa preocupação com a possibilidade de uma revolta popular à francesa e sua resposta reformista foi uma constante no Idealismo Alemão Contudo Arantes registra a peculiaridade da contribuição da obra de Hegel para esse consenso Escrevendo em 1798 Hegel reconhecia a precariedade da sociedade alemã a perda de poder e dignidade da vida existente na qual não se encontra mais a satisfação apud Arantes 1996a 324 Mas diferentemente da tradição idealista que o precedeu ao invés de pretender restaurar imediatamente essa dignidade através da cultura o jovem Hegel demorouse naquele momento negativo expressandoo como uma experiência social compartilhada pelas classes cultas e pelo povo Em outros termos a massa e os intelectuais no fundo padeciam do mesmo problema e queriam a mesma coisa Nas palavras do autor alemão citadas por Arantes A crescente contradição entre o desconhecido que os homens inconscientemente procuram e a vida que lhes é oferecida e consentida e que de fato é a sua própria vida e a nostalgia da vida daqueles que elevaram em si mesmos a natureza à condição da Ideia carrega em si um impulso de aproximação recíproca A necessidade dos primeiros de aceder à consciência do que os aprisiona e ao desconhecido pelo qual aspiram vai ao encontro da necessidade dos segundos de introduzir na vida a Ideia que elaboraram idem Ao mesmo tempo aquela vida vazia e passiva das massas não havia sido sempre o caso mas tinha ela mesma uma densidade histórica No texto sobre a Positividade da Religião Cristã Hegel aponta para a Reforma Protestante como uma conflagração social animada pelo sentimento de um direito duradouro o direito de seguir as próprias opiniões religiosas as convicções que cada um formou por si mesmo HEGEL 1996 p 146 evidência portanto não apenas de uma pulsão popular para o saber sob a forma religiosa da convicção individual de todo modo tão cara ao ideário iluminista mas de uma capacidade de levar essa pulsão a cabo através da transformação social Contudo essa unidade entre os ideais e a ação política de massas foi historicamente desperdiçada aniquilada pela forma que a sociedade alemã tomou posteriormente de tal modo que é como se os poderosos da Igreja e do Estado se sentissem felizes ao ver que em nós dormita ou mesmo carece Dissertatio 53 101143 2021 109 de vida a lembrança do que outrora sentiram nossos antepassados do seu direito e por cuja afirmação milhares deles arriscaram suas vidas HEGEL 1996 p 147 Com o passar dos anos Hegel emprestará ênfase crescentemente diminuída ao momento de simpatia popular de seu pensamento Guardará de tais formulações sobretudo a ideia resultante da massa coagida e incapaz e o enrijecimento da burocracia estatal que impedia às classes esclarecidas dedicar todas as suas capacidades à modernização da sociedade alemã Aquela incapacitação popular em seus textos de maturidade tornam pouco recomendável a generalização do sufrágio e os resquícios feudais que oprimiam a população alemã só poderiam ser superados através de um pacto de classes expresso numa democracia de notáveis representando os interesses da modernidade Mas permanecerá viva na obra de Hegel a ideia de uma religião popular como lugar de um pacto intelectual de classes ela seria patriótica a ponto de despertar na alma do povo o sentimento de sua dignidade e ao mesmo tempo suficientemente elevada para que dela não se envergonhassem as classes educadas ARANTES 1996a p 317 O proletariado como verdadeiro herdeiro do ressentimento burguês Em Hegel portanto está pautada a reflexão sobre o discurso que através da pactuação social é capaz de atingir uma universalidade politicamente eficaz A maneira como Hegel apresenta essa impregnação deixa claro que não se trata apenas de uma teoria brilhante mas sobretudo de uma teoria capaz de responder a uma necessidade das massas Nos últimos ensaios do Ressentimento Arantes sugere que em certo sentido a obra de Marx direcionouse a essa mesma exigência Entretanto a crítica da ideologia burguesa embasada no reconhecimento do caráter de classe do universalismo permitia inserir uma problematização importante na ideia do pensamento que produz um pacto de classes Arantes interpreta a base sociológica daquela crítica nos seguintes termos Devido à complexidade numérica e operacional do Estado e do mercado a administração pública precisa adquirir traços técnicocientíficos É em função dessa exigência operacional que aparecem as condições materiais de manter um setor social exclusivamente dedicado ao pensamento o qual diversificase sob a forma de uma intelectualidade em sentido amplo O pensamento que esse setor social produz está impregnado por um lado de vícios atrelados à manutenção da ordem das coisas manifestos nos impulsos reformistas dos profissionais do espírito alemães e ao mesmo tempo de Pedro Rocha de Oliveira 110 uma ressentida negatividade intelectual ligada ao fato de que não podem identificarse totalmente com a administração social a qual por definição é restritiva hierarquizada etc Nesse sentido esses setores intelectualizados estavam tão alienados da determinação dos rumos históricos da sociedade quanto as populações administradas Aí estão as raízes do imaginário burguês universalista o qual tinha em seu cerne a ideia de uma realidade inteiramente permeável ao pensamento e à ação das pessoas comuns A crítica marxista da ideologia consistiria em afirmar que aquela ideia era em si mesma verdadeira ou seja representava um ideal político válido mas que diante dela a realidade da sociedade burguesa era falsa Em termos históricos o universalismo havia tido como lema unificar as classes em luta contra o absolutismo mas a sociedade burguesa se apropriara do Estado Moderno empregandoo para a manutenção e aprofundamento das relações de produção capitalistas amparadas na propriedade privada Com isso ficava aquém do universalismo que prometia de tal modo que o problema da alienação social continuava vivo para os setores sociais que padeciam sob a administração social para o capital a classe trabalhadora era a herdeira do ressentimento burguês mas num momento histórico em que a racionalidade já não podia ser representada como mero atributo subjetivo uma vez que o processo de modernização social havia sido desencadeado pela burguesia Assim a alienação que o Romantismo e o Idealismo viam em termos de um abismo entre capacidades racionais e a realidade será reinterpretado historicamente no Manifesto Comunista em termos de uma contradição entre as relações de produção o Estado Moderno e seu sistema políticojurídico administrativo amparado na propriedade privada e as forças produtivas a tecnologia e o maquinário e os saberes administrativos associados Vista desse ângulo a revolta das massas no que apontava para o ressentimento com a alienação e portanto para a negatividade do pensamento burguês também apontava para a potencial ampliação do momento positivamente moderno ou científico dele a modernização 2 Limites e possibilidades da modernização burguesa O paradigmático 1848 Em O Fio da Meada Arantes 1996b retorna ao problema da gênese do pensamento marxiano abordandoo através da análise do 1848 francês a Revolução de Fevereiro e seus desdobramentos no 18 Brumário de Luís Bonaparte Em resumo na leitura que Arantes faz de Marx o episódio Dissertatio 53 101143 2021 111 desempenha o papel da alvorada da política burguesa que contudo foi natimorta ARANTES 1996b p 31 A pressão pela reorganização democrática do sistema político francês implodiu na medida que as classes proprietárias voltaramse contra o sufrágio temendo as consequências da crescente radicalização popular tornando evidente o caráter particularista ou de classe do discurso universalista burguês da Revolução de 1789 O pacto de classes projetado pelo universalismo é sepultado sob os cadáveres dos fuzilados nas barricadas o diálogo entre o ideário e as necessidades populares e o pensamento burguês é inviabilizado Na medida que o movimento de massas derrotado em 1848 envolvia não apenas o proletariado organizado mas também a pequena burguesia intelectualizada aquela derrota representa também uma inflexão no perfil hegemônico do capital que supera a fase do livre empreendedorismo os vitoriosos de 1848 são a alta burguesia industrial e financeira Assim a filosofia moderna socialmente relevante teria sido um devaneio da sociedade burguesa competitiva revogada pelo curso modernizador que nas décadas seguintes desaguará no capitalismo monopolista Na apropriação que Arantes faz do argumento marxiano tal revogamento transforma o momento positivo do pensamento burguês Em conexão com a crítica da alienação o impulso de modernização continha uma relação com a ideia da sociedade civil ampla Expressa nos termos universalistas essa relação apontara para o conteúdo democrático do ideário burguês mas com os acontecimentos políticos de 1848 esse conteúdo fica suprimido Levando isso em conta e voltando nossa atenção para a formulação do Manifesto Comunista podemos dizer que o 1848 coloca a modernização numa configuração nãocontraditória junto às relações sociais burguesas a partir de então ambas tenderiam à característica potencialização da concentração de poder econômico e político Dessa forma a esterilização do universalismo burguês parece indicar também a esterilização política da sociedade capitalista inclusive de sua contradição histórica esquemática que obedecendo as exigências do materialismo enraizava a revolução social no mundo existente A filosofia sem objeto e a crítica da economia política Com o 1848 portanto a filosofia literalmente ficou sem assunto perdeu de vez o seu objeto ARANTES 1996b p 31 ou seja teve historicamente revogada sua função de articular o pacto de classes em torno da transformação da realidade Mas a perda de objeto não impede a filosofia de Pedro Rocha de Oliveira 112 continuar funcionando Deixando de lado os aspectos de teoria social que havia herdado do pensamento hegeliano a filosofia afirmase definitivamente como especialidade universitária mergulhando na epistemologia e nas questões de demarcação sempre ameaçada de um lado pelo fantasma da extinta metafísica e de outro pelo sistema das ciências e algumas novas disciplinas como a psicologia a lógica formal as várias epistemologias científicas etc ARANTES 1996b p 32 Tal percurso levaa do neokantismo ao formalismo da virada linguística Por outro lado a inviabilização de uma filosofia com implicações políticas diretas não significa a paralisação do pensamento crítico O surgimento da Crítica da Economia Política se encaixa exatamente nesse contexto em que o imperativo da transformação social se dissocia da exigência de universalidade do ideário burguês lançando luz retrospectiva sobre o passado da ilusão filosófica anterior ARANTES 1996b p 40 O flerte com a filosofia burguesa é superado pela descoberta de uma racionalidade alienada em si mesma o Capital e pela demonstração de seu núcleo violento de dominação social com o que fica expresso o limite político do pacto de classes na sociedade burguesa Esse é segundo nosso autor o caminho da obra marxiana depois de 1852 Ao mesmo tempo aquela a dissociação entre filosofia e transformação social não foi permanente G Lukács e toda uma tropa de filósofos marxistas reerguerão o problema do universal dentro do discurso da Crítica da Economia Política A Arantes interessa o contexto históricosocial desse chamado marxismo ocidental contra o pano de fundo do qual História e Consciência de Classe destoa claramente Tratase de um modelo irrepetível escrito em um momento de estado de graça histórico 1996b p 45 as possibilidades abertas para a organização popular pela Revolução Bolchevique A perspectiva política da classe trabalhadora aparece em termos do problema do fetichismo da mercadoria e atrelada a uma crítica social total enraizada na sociologia da modernização weberiana Nesse sentido a filosofia socialmente crítica reaparece em conexão com um processo político real de alcance potencialmente mundial numa abertura histórica em breve encerrada pela vitória do Nacional Socialismo na Alemanha Notavelmente foi justamente nas vésperas desse ocaso europeu que o ideário socialista começou a ser apropriado pela intelectualidade de esquerda brasileira Dissertatio 53 101143 2021 113 3 Intelectualidade e modernização na periferia Problema da intelectualidade socialista brasileira Seguindo formulações de Antonio Candido e Roberto Schwarz Arantes considera que problema constitutivo de nossa intelligentsia foi desde sempre a ausência de uma produção intelectual endógena capaz de fazer uma leitura crítica da modernização brasileira Daí apostou na capacidade do ideário socialista de desempenhar essa função e consequentemente precisou converter em termos nacionais uma teoria originalmente formulada para dar conta de uma realidade completamente diferente Ora vimos acima como Arantes enraíza a gênese do pensamento marxiano num discurso filosófico alimentado pela reflexão sobre o caráter periférico da sociedade alemã e conclui com um questionamento sobre a relação entre a aplicabilidade histórica daquele pensamento e os limites políticos e civilizatórios da socialização capitalista Como transparece na argumentação de O Fio da Meada aquele caráter periférico e estes limites serão a chave empregada por Arantes para pensar a recepção brasileira do ideário socialista Modernização e progressismo Em primeiro lugar é preciso atentar para o contexto histórico daquela recepção que se deu à época do esforço industrializante impulsionado e mediado pelo governo de Getúlio Vargas 193019451 Seu desenvolvimentismo corporatista nacionalista e autoritário tinha por um lado afinidades ideológicas com a extremadireita europeia mas por outro prescindia da sua modalidade de mobilização popular radical que ademais era impossível no Brasil de então A população estava majoritariamente ocupada em atividades rurais que envolviam relações sociais de dependência econômica e política características do caudilhismo latifundista A estratégia fundamental de Vargas enraizavase nesse quadro políticoeconômico o subsídio à exportação de café era combinado a um controle estatal rígido das divisas obtidas dessa exportação de modo a concentrar a riqueza necessária para importar bens de produção e promover a indústria de base Isso projetava uma mudança de ênfase na economia brasileira bem como uma reorganização da 1 A recapitulação história que se segue não está pautada em trabalhos do próprio Arantes mas segundo esperamos ajuda a amparar nossa interpretação deles Pedro Rocha de Oliveira 114 relação entre os setores produtivos o capital bancário e uma nova classe trabalhadora que seria organizada desde cima por sindicatos tutelados pelo Ministério do Trabalho O tom modernizador do governo Vargas legou permanentemente ao pensamento político brasileiro a ideia do progresso como princípio norteador para uma administração pública pautada pelo desenvolvimento econômicosocial O mote original desse progressismo era a superação do atraso comparativo entre o Brasil e as potências industriais do hemisfério norte A ele aderiam setores intelectualizados do estado de São Paulo sede da elite cafeicultora Contudo esses setores tinham uma relação dúbia com o governo Vargas Por um lado a modernização econômica consolidaria a classe média paulista e a Universidade de São Paulo onde Arantes foi aluno e é professor foi fundada para atender sua demanda de formação técnica e cultural Ao mesmo tempo o governo autoritário prescindia de um setor intelectualizado amplo Vargas governava cercado de conselheiros técnicos escolhidos pelo próprio executivo de modo que a classe proprietária interessada no desenvolvimento do capitalismo embora parcialmente identificada com o discurso do progresso e beneficiária da administração pública em que estava enraizado não era amplamente consultada para a gestão desse desenvolvimento Ademais uma vez que orbitava direta ou indiretamente a economia agrária de exportação a classe média dependia da desigualdade econômica que tornava contabilmente possível acumular as divisas que desencadearia o desejado progresso uma gigantesca concentração de terra salários e condições de trabalho aviltantes De todo modo nas décadas de 1930 e 40 a intelectualidade socialista em grande parte oriunda daquelas classes privilegiadas adotou hegemonicamente o discurso progressista apostando no ganho civilizatório e político trazido pela industrialização A formação de um proletariado o desenvolvimento das forças produtivas e portanto de uma burguesia nacional combinados à estratégia das frentes políticas estabelecida pela Terceira Internacional fundamentavam uma esperança esquemática de que a modernização autoritária de Vargas ajudaria a colocar o Brasil no caminho da revolução socialista A dialética do populismo De fato no período que se seguiu ao ímpeto de modernização varguista a industrialização trouxe a reboque a formalização e a expansão do Dissertatio 53 101143 2021 115 trabalho assalariado Tal expansão entretanto contrastava com as limitações políticas do sindicalismo tutelado pelo Estado e com a manutenção de condições de vida miseráveis no campo A partir dos últimos anos da década de 1940 uma crescente mobilização popular emprestou ao progressismo a inflexão populista que é usualmente empregada pela historiografia como chave para o compreensão política do período entre o fim do primeiro governo Vargas e o golpe militar de 1964 A ideologia populista representava a reforma social como consequência da confiança da população em um governo voltado para o desenvolvimento econômico e o consequente aprimoramento da qualidade de vida A reforma agrária o controle de preços os direitos trabalhistas e o salário mínimo entravam e saíam constantemente da agenda política Assim eram projetadas alianças entre setores sociais que eram produtos da modernização autoritária varguista a classe média que havia se desenvolvido nas universidades e nos conselhos técnicos do aparelho estatal uma burguesia industrial historicamente recente e os trabalhadores organizados a partir da estrutura sindical do Ministério do Trabalho Ao mesmo tempo o populismo tinha uma dialética interna A capacidade organizativa para a reivindicação política entrava em choque com os limites do sindicalismo tutelado O processo de formalização do emprego resultante da industrialização promovida pela ação estatal e a incorporação de direitos trabalhistas básicos havia dotado a classe trabalhadora de um chão desde o qual lançarse para lutas mais amplas não apenas no campo salarial e contra a carestia mas também pela liberdade sindical e política Em paralelo no campo pipocavam os movimentos de reforma agrária Na academia as ciências sociais em grande parte inspiradas por debates internacionais entre correntes políticoteóricas socialistas já acumulavam uma certa reflexão endógena sobre o próprio desenvolvimento econômico em parte visto como problemático uma vez que até então tinha sido compatível com a manutenção da miséria e até mesmo dependia dela conforme o conceito de desenvolvimento desigual e combinado permitia ver Jovens progressistas saíam das universidades para contribuir com campanhas de alfabetização popular que aliavam o conhecimento das letras com a conscientização política Organizações políticas de esquerda articulavam essas lutas e nelas transitava a intelectualidade radical em grande parte equipada com o ideário da revolução socialista No discurso dessa intelectualidade o progressismo combinava a modernização econômica superação do subdesenvolvimento e a luta política Quando a ebulição social resultante entrou em contradição com a Pedro Rocha de Oliveira 116 manutenção da ordem econômicopolítica vigente ela precisou ser sufocada através de um golpe militar arquitetado com apoio de importantes fatias da burguesia industrial e desencadeado em 1964 para conter o avanço dos movimentos populares A máquina partidária populista foi dissolvida as organizações de esquerda postas na ilegalidade as lideranças políticas assassinadas os intelectuais exilados etc Parte da intelectualidade e das organizações de esquerda apostou em guerrilhas rurais e urbanas que através do exemplo despertariam para a ação revolucionária uma consciência política popular latente Mas em 1974 a iniciativa de luta armada já havia sido derrotada pelo governo militar Ditadura e mais modernização autoritária No entanto Arantes sublinha que caracteristicamente a interrupção política do populismo a reconfiguração do pacto de classe e também a inviabilização da alternativa socialista não significariam para o governo militar de 196485 a interrupção do processo de modernização Ao contrário a ditadura imprimiu ao processo de industrialização no Brasil uma intensificação jamais vista antes ou desde então Ou seja a história brasileira oferece uma oportunidade privilegiada de perceber como o desenvolvimento das forças produtivas pode ocorrer independentemente do desenvolvimento social e político Nos termos esquemáticos das discussões que reconstruímos acima a ditadura modernizadora brasileira reapresenta o processo de esterilização da dialética da socialização capitalista a solução autoritária da contradição entre forças produtivas e relações de produção Com isso o ideário progressista da esquerda construído em termos das tensões do populismo fica sem objeto e sem perspectivas 4 A consciência teórica brasileira sobre a dialética da modernização Dualismo Arantes debruçase sobre a gênese e o desenvolvimento da perplexidade intelectual do progressismo brasileiro no Sentimento de Dialética 1992 O livro apresenta uma história crítica da consciência teórica brasileira sobre a modernização partindo das apreciações sobre as desvantagens coloniais que na linguagem progressista teriam condenado o país ao atraso e terminando em reflexões sobre o subdesenvolvimento e seu lugar específico dentro do capitalismo como um todo A exposição de Arantes é construída em Dissertatio 53 101143 2021 117 torno do conceito de dualismo Os dualistas originariamente progressistas dos anos 194050 diagnosticavam os problemas da sociedade brasileira em termos de um déficit civilizacional diante das potências econômicas do hemisfério Norte o qual cumprianos superar Na narrativa de Arantes um dos exemplos avant la lettre desse raciocínio foi o eminente abolicionista Joaquim Nabuco que falava do Brasil do século XIX em termos de uma vocação para a modernização atravancada por uma elite escravista estupidamente apegada às relações de trabalho arcaica e cega às vantagens econômicas da modernização capitalista No caso o que faltava era o esclarecimento das classes proprietárias o qual adviria do contato com as ideias modernas estrangeiras Assim por razões culturais o Brasil encontravase no lado desfavorável de um dualismo global de atraso e modernidade No século XX autores ligados ao Partido Comunista Brasileiro PCB então membro da Terceira Internacional também empregavam raciocínios dualistas embora dotados de certa densidade sociológica A agricultura de exportação era herdeira de um feudal arcaísmo colonial escravista O problema esquemático da revolução socialista no Brasil esbarrava assim no problema de que por aqui o capitalismo e portanto uma sociedade civil e um Estado modernos ainda não havia se constituído ou só se havia constituído precariamente Assim o PCB lia a história brasileira em termos de uma dualidade entre de um lado o atraso representado pela atuação socioeconômica da elite rural tecnicamente arcaica e voltada para exportação e subsistência e de outro o progresso desencadeado pela burguesia industrial Esta última teria sido protagonista sempre que a sociedade brasileira deu sinais de modernização os movimentos que culminaram na abolição da escravatura 1888 na Proclamação da República 1889 no nacionalismo republicano militar do início do século XX e até no movimento estético modernista que culminara na Semana de 1922 Essa visão missionária da burguesia nacional entraria em amargo choque com o papel desempenhado por essa burguesia no golpe de 1964 O dualismo também teve penetração nos meios populistas especificamente nos intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB criado em 1955 pelo presidente Juscelino Kubitschek Ignácio Rangel epígono do ISEB publicaria em 1953 a Dualidade básica da economia brasileira que projetaria nacionalmente o modelo da unidade entre o arcaico e o moderno as cidades brasileiras litorâneas tradicionalmente conectadas ao capital internacional seriam capitalistas enquanto o interior permaneceria arcaico Derivações dessa visão bebendo do funcionalismo norteamericano criariam a persistente imagem de um país dividido no qual Pedro Rocha de Oliveira 118 conviveriam tempos históricos diferentes o passado atrasado e o progresso e diante dos quais era necessário escolher Essa ideia dos dois países em um será extraordinariamente longeva foi parte do arcabouço discursivo do movimento de reordenamento monetário e fiscal pelo qual passaria o Brasil sob o governo de Fernando Henrique Cardoso na década de 1990 O percurso intelectual de Cardoso é digno de nota nos 1960 mostrava que tendo experimentado uma incompatibilidade estrutural entre o escravismo e o capitalismo no final do século XIX CARDOSO 1977 a elite brasileira optou pelo desenvolvimento socioeconômico no entanto no século XX estava satisfeita com seu lugar subordinado na divisão internacional do trabalho Idem 1972 a produção agrária voltada para a exportação e envolvendo concentração de capital relativamente baixa Trinta anos depois assumindo a presidência Cardoso adequaria sua visão à necessidade imperiosa de sob a liderança exclusiva e inevitável dessa elite acomodar emergencialmente a economia brasileira ao passo financeirizado do capitalismo internacional Para arrematar intelectuais ligados ao seu partido caracterizariam a oposição a sua política como pensamento arcaizante desconectado das exigências da modernização no capitalismo contemporâneo Crítica do dualismo Na recapitulação sugerida por Arantes o raciocínio dualista sofreu uma inflexão com os autores da Teoria da Dependência ligados à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CEPAL organismo da ONU cuja criação coincide com a alvorada do progressismo brasileiro Sua atenção recairá não tanto sobre a oposição mas sobre a combinação entre desenvolvimento e arcaísmo Celso Furtado formulou um conceito rigoroso de subdesenvolvimento FURTADO 1964 atentando à noção trotskista de desenvolvimento desigual e combinado e explicitando a necessidade econômicosocial que ligava os processos econômicos arcaicos e os modernos em especial o trabalho remunerado e formal e o trabalho informal e de subsistência no campo a tecnologia industrial e as técnicas primitivas de cultivo a produção racionalizada no espaço urbano e os processos econômicos espontâneos no interior Na década de 1970 o dualismo começa a ser ultrapassado por um questionamento das consequências da modernização autoritária sob o governo militar Arantes observa que duas obras paradigmáticas aí são Florestan Fernandes 1976 e Francisco de Oliveira 1972 A industrialização avançava Dissertatio 53 101143 2021 119 mas os traços arcaicos não só não haviam sido superados como se aprofundavam Nas cidades a favelização galopante mostrava o perfil do assalariamento brasileiro No campo a brutal concentração de terra continuava dotando a elite latifundiária de poder de vida e morte sobre uma população economicamente desvalida politicamente impotente e largamente analfabeta O contexto social econômico e político permitia ver que o arcaísmo não era uma espécie de percalço histórico peculiar de um país desajustado mas um traço intrínseco à modernização capitalista e um resultado dela Com isso parte da intelectualidade brasileira se distanciou do dualismo desenvolvimentista do PCB incorporando a ideia marxista do paradoxo do desenvolvimento econômico capitalista e fazendoo não como quem paga tributo a um cânone mas a partir de uma exigência da especificidade dos problemas históricos da realidade brasileira Na leitura de Arantes Fernando Novais 1986 deu um passo ulterior nesse sentido Novais refletiu o paradoxo do desenvolvimento simultaneamente sobre o passado colonial brasileiro e sobre a totalidade mundial do capital Em suas formulações o papel central da economia escravista brasileira no desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu revelava o núcleo de exploração da modernização capitalista Nas palavras do autor enquanto na Europa moderna o desenvolvimento capitalista libertava os produtores diretos da servidão medieval e integravaos como assalariados na nova estrutura de produção que camuflava a exploração do trabalho as economias coloniais periféricas montadas exatamente como alavancas do crescimento do capitalismo e integradas nas suas linhas de força punham a nu essa mesma exploração na sua crueza mais negra NOVAIS p 101 Arantes frisa que a contribuição de Roberto Schwarz é fulcral nesse ponto Schwarz 1997 2000 mostrou que muito antes de alcançar uma formulação teórica plena a consciência dialética da modernização havia recebido formulação literária enquanto princípio organizador do texto de Machado de Assis Esquematicamente em um momento inicial os romances de Machado aliavamse com a mentalidade progressista do final do século XIX Personagens caracteristicamente femininos eram situados no problemático espaço social de pessoas livres porém desprovidas de propriedade na sociedade escravocrata Devido à estrutura econômica e política arcaica da sociedade imperial essas mulheres tinham suas ambições e perspectivas existenciais limitadas e seus talentos desperdiçados em um mercado de trabalho inexistente Mas a narrativa machadiana fazia com que sua situação de dependência financeira e social entrasse em choque com seu valor moral impedindoas de se beneficiarem da cultura de favorecimento que Pedro Rocha de Oliveira 120 regia as relações sociais prémodernas A digna obstinação e valente resignação das personagens obrigava os poderosos com os quais conviviam a enxergarem a indecência intrínseca ao seu próprio privilégio permitindolhes a oportunidade de se reformarem moralmente Tal reforma subjetiva dos senhores acabava abrindo o espaço para um engajamento civilizado com a vida por parte das mulheres antes vergonhosamente subjugadas Tratase portanto de uma literatura inserida num programa de transformação cultural da elite o ideário é o mesmo que alimentava o discurso esclarecedor abolicionista Numa segunda fase inaugurada pelo Memórias Póstumas de Brás Cubas 1881 Machado abandona o projeto de reforma intelectual e moral da elite Aí o tema central da fase anterior a passagem do arcaísmo hierárquico à civilização moderna reaparece como uma prerrogativa dos poderosos é ao privilégio econômico e social que remonta a capacidade da elite de optar entre pautar sua atividade pela norma civilizada ou não Assim aquela passagem é ela mesma uma espécie de artigo de luxo O contato externo e arbitrário com o padrão social moderno marca tanto a relação entre a elite e a alta cultura que ela consome e ostenta como se vê nas constantes citações a um tempo doutas e disparatadas do personagem que dá nome à supracitada obra quanto entre a atividade econômica na periferia do capitalismo e aquela no centro Assim por exemplo o escravismo é praticado para permitir acúmulo de riqueza através da venda de mercadorias e portanto precisa operar contabilmente dentro da racionalidade capitalista Por isso o senhor de escravos pode evocar o liberalismo de Adam Smith para atacar a política imperial abolicionista sendo que não é possível predicar a bizarra contradição contida aí a alguma suposta falta de coerência intelectual por parte dos latifundiários Ao contrário sua adesão conveniente à norma civilizada no caso o discurso econômico moderno depreendese de uma elasticidade intrínseca à modernidade capitalista Assim a inicialmente anômala combinação brasileira entre o moderno e o arcaico consiste numa expressão da fratura constitutiva da normalidade moderna metropolitana Na síntese de Arantes como a atualidade mundial expunha seus segredos na periferia do capital que não era resíduo mas parte integrante de uma evolução de conjunto por assim dizer constituíamos uma figura viva da Dialética da Ilustração 1992 p 967 Com isso a discussão da consciência teórica sobre modernização capitalista na periferia deságua na compreensão da unidade entre o centro e a periferia A modernização deixa de parecer uma alternativa às relações sociais arcaicas afinal depende delas e as reproduz Se ademais ambos os momentos estão conectados internacionalmente na realidade total do capitalismo mundial Dissertatio 53 101143 2021 121 então a modernização da periferia é a única modernização que há e ela é ao mesmo tempo uma modernização precária e uma modernização plena Essa modernidade abortada ou consumada ARANTES 2004 p 66 é tema recorrente em toda a obra de Arantes 5 A brasilianização do mundo O que ocupa Arantes portanto é uma dissociação histórica entre o programa da modernização burguesa e a dialética que permitiria por um lado o pacto de classe e a consequente identidade entre desenvolvimento econômico e abolição da alienação social e por outro lado a interrupção revolucionária da socialização capitalista esquematicamente a adequação das relações de produção às forças produtivas verdadeiramente modernas Essa adequação mútua entre os dois termos da fórmula marxianaengelsiana é o tema de fundo da leitura de Arantes a respeito do capitalismo contemporâneo a começar por suas discussões em torno do fenômeno da globalização neoliberal ARANTES 2004 Neoliberalismo brasileiro Arantes toma essas conceitos como chaves para referirse a um quadro geral de expansão do mercado financeiro internacional nos anos 1990 e da consequência adequação política monetária e fiscal das economias nacionais ao fluxo dos capitais especulativos No Brasil elites nacionais exerceram pressão política para conformar a administração pública aos interesses do capital transnacional do qual visavam tornarse operadoras locais O resultado foi uma imagem eloquente da modernização contemporânea realizada à despeito do pacto de classe com as massas Em seu cerne estavam as privatizações de empresas públicas da infraestrutura produtiva e energética e da circulação e comunicações as quais tinham sua origem remota nos projetos de modernização autoritária do varguismo O discurso da redução da máquina estatal que até hoje deixa incólumes os aparatos de vigilância e repressão e também de controle financeiro também teria efeitos sobre serviços públicos tais como a educação e a saúde desde sempre fundamentais no Brasil para a manutenção do nível de vida de uma população amplamente subempregada e empobrecida De modo geral portanto tratouse de um projeto de aprofundamento da desigualdade socioeconômica Discurso norteamericano da brasilianização Pedro Rocha de Oliveira 122 Simultaneamente contudo Arantes identifica o surgimento em pleno Norte desenvolvido de um discurso teórico que falava da terceiromundialização ou da brasilianização do mundo LUTTWAK 1993 LIND 1995 GRAY 1998 O fenômeno seria caracterizado por uma reversão do aburguesamento do proletariado que havia tido lugar na Europa e nos EUA do pósguerra a desindustrialização e concomitante financeirização da economia a expansão da pobreza e aumento do abismo entre ricos e pobres A imobilidade socioeconômica e a resultante estratificação social combinadas ao encarceramento em massa explicitava uma dessolidarização nacional nos termos empregados por Richard Rorty 1998 e se não um esgotamento ao menos uma interrupção do paralelo entre acumulação capitalista e desenvolvimento social Arantes enxerga aí o surgimento no centro do capitalismo de uma consciência oblíqua da modernidade abortada a qual ecoa de forma cifrada o tema central do discurso periférico antidualista que havia surgido no Brasil da década de 1970 Ao mesmo tempo a identificação de uma dessolidarização nacional nos países centrais impacta o cerne do pensamento progressista periférico que imaginava nos termos do populismo uma coalização nacional para o desenvolvimento que colocaria o Brasil nos trilhos do progresso Europeu e Norteamericano no limite a regulação keynesiana dos sistemas econômicos nacionais que aparece entretanto abortada O colapso do horizonte civilizatório burguês Ademais Arantes salienta os impactos mais amplos da evocação da categoria da nação por Rorty e a despeito dele Afinal a unidade nacional era um dos baluartes do pensamento social burguês O pacto de classes de que falava o universalismo da filosofia moderna tinha afinal sua origem histórica na unidade política dos estratos inferiores em sua guerra contra a ordem social rígida do Antigo Regime visando o controle do Estado Moderno nacional A própria anonimidade dos raciocínios universais que estão no fundamento da racionalidade moderna dependem de uma crença subjacente na comunidade de destino contida na ideia de nação Se os fenômenos predicados à globalização e ao neoliberalismo conspiram para uma fragmentação da unidade nacional eles removem nada mais nada menos do que a base real da racionalidade moderna de modo que o universalismo sofre então uma segunda morte Em outros termos Arantes exibe sob mais um ângulo como foram historicamente revogadas as tensões internas da modernidade que produziram Dissertatio 53 101143 2021 123 de um lado através do ressentimento intelectual uma tradição de crítica à alienação e de outro lado uma promessa civilizatória As consequências disso para a teoria social aparecem nos ensaios às vezes satíricos dedicados à intelectualidade brasileira que ligouse ao projeto neoliberal do governo de F H Cardoso Aí Arantes ataca a mesquinhez que se apossa do pensamento que nessas condições persiste na afirmação de sua afinidade com a modernização capitalista Desprovidos de qualquer perspectiva que extrapole a própria governabilidade esses ideólogos sem ideologia renunciam as promessas clássicas do desenvolvimentismo ao mesmo tempo saudando a modernização da economia e pretendendo encarar de olhos abertos a catástrofe social que as privatizações retração de direitos trabalhistas e flexibilização financeira acarretariam bem na linha do que o próprio Cardoso faria quando numa entrevista à Folha de São Paulo afirmou sem pudores o caráter excludente do programa que não obstante era sua missão aplicar2 Esse realismo cínico para denominação do qual Arantes pega emprestado a expressão pensamento único ARANTES 2004 p 115 torna dispensável a crítica da ideologia em sua forma tradicional uma vez que admite como as economias nacionais estão mesmo nas mãos dos investidores internacionais e o que se faz necessário é tornar competitivas as condições locais para sua operação independentemente do custo afinal ruim com eles pior sem eles Consequências para o imaginário socialista O tecnicismo neoliberal consiste nesse sentido num sintoma do becosemsaída em que se encontra a racionalidade burguesa Ao mesmo tempo o caráter das transformações que colocaram essa última nessa posição é amplo o bastante para atingir o ideário socialista que tradicionalmente procurava fazerlhe oposição partindo de seu interior ficou desprovido de seu trampolim dialético É importante recordar que as políticas neoliberais tinham em seu centro a exemplo do thatcherismo a necessidade de quebrar politicamente o movimento sindical o qual conforme observa Arantes vinha numa notável onda de ascenso desde a explosão europeia do 1968 Tal movimento alimentavase da retração econômica quando do encerramento da reconstrução europeia do pósguerra como também de uma frustração com a política de conciliação de classes sugerida pelos mesmos partidos de esquerda que se comportavam de maneira ambígua diante dos rumos autoritários do socialismo soviético Em meio a crises de dívida e ao turbilhão econômico dos 2 FREIRE V T FHC Exclusivo In Folha de São Paulo Caderno Mais 13 de outubro de 1996 Pedro Rocha de Oliveira 124 choques do petróleo e do dólar a política neoliberal impingiu à esquerda mundial paradigmáticas derrotas políticas coroadas pela sucessão de golpes militares na América Latina Um dos pontos de partida de Arantes para refletir sobre essas derrotas é um argumento que partindo de Singer e Machado 1996 busca reconstruir a consciência teórica sobre as limitações internas da política socialista Em resumo o programa socialista modernizador interpretara a alienação na sociedade burguesa parcialmente em termos de uma anarquia a ser superada por uma racionalização econômica análoga àquela que a centralização monopolista permitia ao capitalista a partir do fim do século XIX Assim o imaginário socialista aparece em sua dependência para com o momento positivo do pensamento burguês o desenvolvimento das forças produtivas Isso ia de encontro à metodologia política em dois passos WALLERSTEIN 2004 segundo a qual a implementação do socialismo era o segundo e o primeiro consistia em tomar o aparelho do Estado Enquanto dependia da técnica e da forma política burguesas o ideário socialista é afetado pelo seu esgotamento histórico Com isso escrevendo na virada dos anos 1990 para 2000 Arantes descreve a modernização como uma questão meramente técnica tendo sido historicamente revogada ou pelo menos adiada a possibilidade de bifurcação que foi concretamente vislumbrada em momentos paradigmáticos da história da socialização capitalista Nas esferas onde circulava a ideia do desenvolvimento econômico nacional passa a vigorar a ideologia neoliberal que se limita a pregar a funcionalização das economias nacionais para a valorização financeira do capital transnacional de bom grado exibindo o caráter ameaçador e destrutivo do capitalismo A provocativa ideia marxiana de que o capital seria a acumulação como fim em si mesma deixa de ser particular à crítica da economia política tornandose lema da economia oficial 6 Administração social armada Um dos caminhos tomados por Arantes 2007 para sublinhar a especificidade de uma modernização colapsada que segue a pleno vapor é atentando para certas alterações na prática contemporânea da guerra paradigmaticamente visíveis nas guerras preventivas protagonizadas pelos EUA a partir da década de 1990 Por um lado se a guerra historicamente desempenha um papel fundamental na compreensão do capitalismo parece a Arantes notável que a ocupação militar e a destruição classicamente funcionais como meios para o controle de economias nacionais são convertidas com a Dissertatio 53 101143 2021 125 falência da perspectiva do desenvolvimento nacional na finalidade mesma da guerra As operações destroem países inteiros e ato contínuo os submetem a um regime marcial tendencialmente permanente onde a combinação entre ocupação militar e reconstrução garante a distribuição de monopólios econômicos que redundam numa titânica absorção de recursos públicos por meia dúzia de corporações Bombas inteligentes intelectuais estúpidos Simultaneamente uma intelectualidade autointitulada cosmopolita embora há tempos tornada obsoleta pelo caráter autocentrado da modernização resolve demonstrar um entusiasmo bizarro pelo fato de que as guerras preventivas assumem a forma de um exercício de vontade por parte de seus agentes Esse sentido volitivo deriva do contraste com o período anterior durante a Guerra Fria o arsenal nuclear tinha a característica fundamental de não ser utilizável o primeiro ato de guerra seria o último Mas o equipamento bélico de alta tecnologia desenvolvido desde então é ao contrário altamente utilizável seu caráter cirúrgico tende a diminuir consideravelmente as baixas proporcionais no lado dos operadores da guerra Com isso é possível tomar a decisão de fazer guerra e a própria ideia de uma guerra preventiva está imbuída desse caráter decisional Contudo em vista das atuais condições políticas e econômicas elencadas essa decisão não tem nada em que basearse exceto considerações meramente contábeis como ademais todo o resto do processo de modernização colapsado Não obstante de modo a preservarse da consciência de sua própria obsolescência inventando um sentido histórico transcendente para brutal operação econômica autocentrada a dita intelectualidade saudou eloquentemente a reaparição da decisão de guerrear como renascimento do ato político nacional É assim que J Habermas 1999 M Walzer 1992 N Bobbio 1991 e A Honneth 1997 entre outros respectivamente aclamaram a racionalidade cosmopolita a nobreza a justiça e a moralidade da Primeira Guerra do Golfo Guerra justa e assimetria militar Por outro lado atentando para a dialética da doutrina da guerra justa Arantes salienta sua adequação oblíqua para descrever a situação contemporânea De acordo com a formulação original de Agostinho na Cidade de Deus o caráter justo da guerra entre os príncipes derivava do arbítrio moral Pedro Rocha de Oliveira 126 da Igreja Católica Na medida que transcendia as fronteiras políticas humanas estando portanto supostamente distante de seus interesses materiais a Igreja tinha a superioridade moral necessária para arbitrar a justiça mundana Essa superioridade moral encontra um bizarro paralelo laico na assimetria econômica e militar dos EUA perante o resto do mundo Essa assimetria exime as coalizões militares de que os EUA participam de prestarem contas sobre suas atividades É uma característica constitutiva do maior aparato bélico do mundo não ter que dar satisfações a ninguém visto não poder ser obrigado a respeitar qualquer autoridade Assimetria e exceção Ora Arantes percebe que a indiferença prática a instâncias julgadoras da moralidade e da justiça está no centro da teoria política da exceção de Carl Schmitt 1998 Schmitt define a soberania e a exceção em termos uma da outra soberano é quem decide sobre a exceção É preciso lembrar que o dispositivo jurídico da exceção o reconhecimento legal da possibilidade do governo agir fora da lei para garantir a preservação da ordem legal tem sua origem na consolidação do Estado francês durante o processo revolucionário especificamente a necessidade de garantir estabilidade política através da interrupção militar do levante popular simultaneamente organizando a mobilização para a resistência às invasões estrangeiras O dispositivo será evocado também na Revolução de Fevereiro de 1848 para viabilizar a resposta estatal à revolta operária que matou 5000 pessoas deportou sem julgamento 4000 e prendeu 15000 Reformulado em 1849 será a base do golpe de dezembro de 1851 e embutido na constituição de Weimer o fundamento jurídico da implantação do Terceiro Reich A exceção será o atributo específico do Estado em seu exercício constitutivo e constitucional de assimetria ou seja quando a falência do pacto de classes torna o monopólio estatal da violência o fato político mais significativo para a manutenção da administração social a nível nacional A administração social armada do território e a exceção permanente Assim também é importante levar em conta a dimensão socioeconômica da assimetria envolvida nas guerras justas e a alteração na divisão internacional do trabalho que elas anunciam Os alvos das operações militares são periferias comparativamente subdesenvolvidas que ao invés de serem incorporadas ao circuito internacional de acumulação através da Dissertatio 53 101143 2021 127 manutenção da dependência econômica como ocorria em períodos anteriores precisam ter sua estrutura social e produtiva destruídas para funcionar como fontes supridoras ALTVATER 1997 a preço suficientemente baixo Notavelmente no caso do Iraque e da Líbia tratamse de sociedades em que a estrutura produtiva funcionava no registro da nação dessolidarizada ou seja era mantida por aparatos estatais militarizados Nesses casos é como se a imperiosa necessidade de baixar o custo da base econômica do sistema petroleocêntrico precisasse abrir mão da mediação desses aparatos nacionais Em outros casos ao contrário a incorporação no circuito internacional de valorização financeira depende dessa mediação contudo também funcionando no registro do pacto social colapsado e portanto da violência sistêmica É o caso de periferias financeirizadas como o Brasil onde a modernização neoliberal combina o desmonte do equipamento estatal de serviço social a reestruturação das instituições federais de direção financeira visando adequação às exigências do capital internacional no caso a autonomia política e administrativa do Banco Central e a militarização incremental da polícia Nesse sentido dáse uma bizarra ressignificação prática da categoria burguesa clássica do Estado nacional Vedado o caminho da modernização em condições de proporcionar o pacto social em torno do desenvolvimento civilizacional e também vedado provisoriamente no mínimo o caminho de rompimento com a acumulação capitalista a ideia de nação convertese de um suporte para a imaginação do progresso político em um conceito da administração territorial com fins a viabilizar a exploração econômica local mediante o controle militar e a vigilância E o Estado diante da retração de direitos e da prestação de serviços públicos reduzse ao coordenador primordial daquela administração Essa gestão estratégica doméstica do território tem ademais um desdobramento transnacional na figura das guerras cosmopolitas ZOLO 1997 Assim sob a ótica do Estado como aparato de administração social armada do território a manutenção da explorabilidade econômica necessariamente se dá em parte através de uma espécie de guerra permanente contra as periferias contra uma população cujo numerário não é todo diretamente necessário à atividade econômica e que portanto se não é eliminável em sua totalidade é composta por indivíduos virtualmente matáveis Em paralelo o exército dos EUA funcionando como uma espécie de cavalaria global para citar a formulação de um think thank neoconservador AEI 2003 também se coloca diante de um espaço global de difícil regionalização em que Estados falidos desde o ponto de vista da economia de espoliação mineral e da valorização financeira os interstícios da Pedro Rocha de Oliveira 128 globalização para citar Neil Smith 2003 aparecem como múltiplas periferias para as populações das quais a modernização redentora já não é uma opção 7 O capitalismo na temporalidade estacionada Em O Novo Tempo do Mundo seu livro mais recente Arantes 2014 condensa as consequências dos argumentos que desenvolve nas duas obras anteriores focando sua atenção na maneira como retroagem sobre as categorias clássicas do pensamento e da organização social burgueses em especial a temporalidade e o trabalho Modernidade e temporalidade de elite Um dos traços fundacionais do ideário burguês é a consciência de uma dimensão ampla da atividade social humana a qual começou a articularse na época da derrubada do Antigo Regime e foi destilada no conceito de modernidade na leitura de Koselleck 2004 de que Arantes se apropria neue Zeit o tempo da novidade histórica O termo expressava uma inauguração da conexão entre aquela dimensão ampla e a passagem do tempo e teria uma expressão libertária sob a forma da imagem universalista da humanidade tomando as rédeas de seu próprio destino Porém enraizada concretamente na capacidade administrativa do Estado Moderno sua capacidade real de centralizar a intervenção sociopolítica na vida de milhões de pessoas tais imagens estavam conectadas com a atividade de uma elite minúscula para quem em contraste o palco de operações projetado eram territórios comparativamente gigantescos e virtualmente o mundo como um todo O veículo principal daquela atividade foi desde o início a acumulação capitalista seja sob a forma das operações industriais que desdobrandose em complexas cadeias produtivas desencadeavam uma brutal transformação da forma de vida de populações milenarmente enraizada em práticas locais e agrárias até através da colonização a imposição da lógica comercial sobre povos distantes e seu extermínio e escravização para a funcionalização econômica do território Universalismo progresso e normalização da mudança social Nesse sentido a descoberta moderna da temporalidade enquanto história mundial consistia na fundação conflitiva de um lado da temporalidade intencional da elite que através do aparato do Estado Moderno consolidava e Dissertatio 53 101143 2021 129 expandia a acumulação capitalista e de outro de uma temporalidade estacionada e tediosa de alcance exclusivamente privado porém rigidamente e necessariamente controlada a imposição do trabalho O universalismo burguês e a sua imagem de uma sociedade coesa representava a possibilidade de unificar essas duas temporalidades numa experiência de construção histórica coletiva o progresso social Na medida que as primeiras instituições políticas burguesas em tese permitiam a participação da plebe no processo político e que essa possibilidade de participação transbordou limites geográficos e de classe Arantes menciona a rebelião negra de São Domingos em 1791 a imagem do progresso vinha representar a ação históricas nos termos moralizantes do trabalho apresentando a possibilidade de uma normalização da mudança social que prescindisse de um ruptura revolucionária Regimes de guerra civil normal Contudo na descrição de Arantes esse regime de mudança social normal é a outra face do pacto de classes rompido aqui expresso em termos das temporalidades divergentes Assim seu complemento histórico é uma sucessão de regimes de opressão popular ou de guerra civil declarada pelo estado contra as populações paradigmaticamente definidos a partir do extermínio colonial da formalização da exceção como recurso das elites econômicopolíticas da nova administração social imperialista do final do século XIX AGAMBEN 2005 ARENDT 1968 do regime de exceção nacionalsocialista NEUMAN 2009 DEJOURS 1998 TORRENTE 2002 e do Estado penal contemporâneo WACQUANT 2009 A argumentação de Arantes se desenvolve num vai e vem em torno desses paradigmas Um dos ramos centrais dessa argumentação articula a desestruturação da nação como espaço do pacto social à longa luta das elites políticoeconômicas contra o movimento de trabalhadores a partir da segunda metade do 1800 o surgimento do nacionalismo beligerante instrumentalizado pela guerra total de 1914 e as medidas domésticas de mobilização e emergência que durante o conflito ampliaram os poderes dos governos aplicando na Europa técnicas de administração social que haviam sido desenvolvidos durante a experiência colonial do século anterior No Reino Unido por exemplo os poderes de emergência atribuídos ao governo durante a guerra foram prolongados na década de 1920 tornando legal a resposta estatal violenta à organização sindical Em meio à crise social e econômica que sucedeu o Primeira Guerra a Revolução Russa e as reverberações na Alemanha e na Espanha a dimensão civil do conflito bélico foi prolongada e o Pedro Rocha de Oliveira 130 NacionalSocialismo deulhe forma estável Com isso a discussão empreendida em Extinção ARANTES 2007 é revisitada numa perspectiva histórica não sistemática mas de longo fôlego O trabalho subjetivo da exceção No regime nazista Arantes vai buscar uma caracterização paradigmática da experiência social do trabalho não tanto na escravidão dos campos de concentração mas na forma da submissão racional daqueles que confrontados com a ameaça do extermínio tornavamse colaboradores do regime A lógica desse ato a um só turno voluntário e involuntário visto que o exercício da vontade é posto em cheque pela possibilidade palpável de aniquilação é comensurável com aquela que através da expansão violenta da acumulação capitalista impõe historicamente a relação contratual da venda da força de trabalho como opção à incapacidade de participar dos processos de troca dos quais depende a manutenção da vida A imersão das pessoas comuns na temporalidade do trabalho constitui assim reação a uma ameaça Sob o nacionalsocialismo o conteúdo repetitivo massacrante e tedioso daquela temporalidade elevado a potências impensáveis devido ao conteúdo repulsivo do trabalho sujo do extermínio exige ademais um tipo de engajamento subjetivo que através do desenvolvimento pessoal de macetes nãoprotocolares possa encurtar a duração das tarefas O efeito colateral desse investimento pessoal de energia criativa é evidentemente o aumento da eficiência O exemplo extremo do que está em jogo aqui é a técnica de tiro na cabeça desenvolvida pelos soldados do Terceiro Reich de modo a evitar o respingamento de sangue e o repulsivo contorcimento da vítima e de quebra o gasto ulterior de munição DEJOURS 1998 Contudo uma vez que a repulsão e a violência são tratos constitutivos do trabalho para a maior parte da humanidade a lógica do improviso e do macete extrapola os exemplos extremos e pode ser estendida para uma caracterização quotidiana do trabalho Isso tem implicações sobre o problema da exceção como traço fundamental da operação estatal na contemporaneidade A burocracia é expressão da modernização em sua dimensão de desenvolvimento técnico da administração social racional mas por outro lado o trabalho da burocracia consiste na apoteose da repetição tediosa e protocolar nesse sentido o trabalho burocrático é a quintessência do trabalho Na administração pública a improvisação que resulta do investimento subjetivo visando a contração da temporalidade massacrante corresponde à quebra do protocolo Em escalas Dissertatio 53 101143 2021 131 territoriais amplas em que decisões administrativas de impacto gigantesco se concentram nas mãos de uns poucos burocratas e especialmente na dimensão militar e policial da administração social a quebra de protocolo se converte na arbitrariedade improvisada dos comandos de exceção É importante notar que essa arbitrariedade é consequência da formalização moderna do trabalho na burocracia e não seu avesso pré moderna Ela é ao mesmo tempo a marca essencial do aparato estatal superdesenvolvido do Nacional Socialismo NEUMAN 2009 mas também do aparato estatal desenvolvido tout court Quanto mais racionalizado o Estado mais poderosos e ao mesmo tempo mais arbitrários os burocratas e também os policiais os operadores de drones os funcionários do sistema carcerário o que imprime um nuance sinistro à imagem weberiana da jaula de ferro Nesse sentido para além da incorporação do regime formal do estado de exceção a modernização normaliza uma experiência social de medidas de exceção O Estado Penal Depois da Segunda Guerra o investimento estatal pesado na reconstrução europeia e na Guerra Fria sustentou o pacto de classes keynesiano A mobilização total e os gastos governamentais tornaram possível a combinação da prontidão militar ao sistema bemestar Marcuse 1966 mas esse esquema teve curta duração como vimos acima na discussão do neoliberalismo Arantes analisa o desmonte do sistema de bemestar pelas lentes do argumento de Loïc Wacquant 2009 que narra a transformação do welfare no prisonfare No período keynesiano as populações empobrecidas nos países centrais eram o alvo dos serviços de assistência que deveriam conserválas aptas para o trabalho Eventualmente eram submetidas a um sistema carcerário que historicamente as imbuía com a disciplina da obediência fundamental à participação eficiente no mundo do trabalho As transformações políticas e econômicas a partir da década de 1970 na Europa e nos EUA culminam na altura dos anos 1990 num quadro de retração de direitos trabalhistas e sociais precarização do trabalho e depressão do mercado de trabalho As populações empobrecidas passam a ser administradas como excedentes numéricos que por um lado têm o acesso à assistência social condicionado à submissão a condições de trabalho aviltantes e por outro são ameaçadas por um sistema punitivo puramente destrutivo Wacquant 2009 demonstra que os princípios de organização interna Pedro Rocha de Oliveira 132 desse sistema punitivo visam crescentemente a produção do sofrimento o que no limite contribui para a destruição da capacidade subjetiva para o trabalho Por outro lado a expansão dos mecanismos de controle e vigilância ligados a uma miríade de formas de liberdade condicional atreladas às redes públicas de informações sobre condenações avidamente consultadas pelos empregadores tornam partes crescentes dessa populações virtualmente inempregáveis Isso reverbera uma faceta da administração social militarizada dos países periféricos onde sistemas carcerários superlotados e altos índices de mortandade por ação policial expressam com clareza os limites da funcionalização econômica da população pelo capitalismo contemporâneo bem como o perfil de classe da ação governamental Decomposição sem superação De fato um dos últimos pontos tratados por Arantes 2014 é o caráter abertamente ilegítimo do governo pelas elites no capitalismo contemporâneo Afora círculos acadêmicos restritos a falação sobre democracia vem generalizandose uma experiência social da violência como componente normal do funcionamento das sociedades ocidentais Essa violência tem um lado policial e outro econômico as estatísticas divulgam continuamente o crescimento da concentração de riqueza e da desigualdade socioeconômica O complemento disso é uma rotinização do protesto social números para os primeiros anos do século XXI falam de uma média de dezenas de carros queimados por noite nas periferias parisienses 2014 p 223 Para falar nos termos dos fundamentos ideológicos da sociedade burguesa clássica aquela rotinização por um lado reflete a falência do progresso social e do pacto de classes que seria capaz de manter a coesão social Ao mesmo tempo justamente essa mesma falência como vimos autonomiza a manutenção da acumulação capitalista dissociandoa das promessas civilizatórias que no século XIX pareciam estar contidas no desenvolvimento técnico das formas de produzir e administrar Eximida de sua relação com as pessoas comuns a dimensão histórica da vida sob o capitalismo fica resumida a um privilégio das elites o qual entretanto não pode nem precisa ser exercido na forma de uma transformação consciente e fundamental da realidade social apenas de sua intensificação exponencial Nesse mundo a projeção racional de atividade de longo prazo e com alcance transcontinental será experimentada pela maioria das pessoas como obra de outrem e como ameaça é assim que acordos de engravatados lobbies de empresas de energia construção e logística e modelos matemáticos Dissertatio 53 101143 2021 133 sobre flutuações do mercado orientam as coalizões militares que transformam países inteiros em campos permanentes de exercícios de gastos estatais com artefatos de destruição e reconstrução Do lado das pessoas comuns a temporalidade histórica recusase a ser expressa nos termos do existente As amarras estreitas impostas a qualquer administração pública pelo endividamento cíclico infinito resumem os problemas do controle do Estado a meras questões contábeis O discurso político realista é eximido de qualquer transcendência pelo monstruoso impasse imposto por um aparato de produção obviamente destrutivo do qual não obstante hoje depende fundamentalmente a vida humana em sua forma corrente Ao mesmo tempo essa dependência caçoa do caráter vão de toda idealização política incapaz de encontrar na reprodução do capitalismo um trampolim para sua abolição Nesse quadro a obra de Arantes contribui para o desrecalque do enraizamento histórico e ideológico dessa falta de perspectivas a demonstração de que não foi algum percalço mas consequência da consistência específica da modernização Epílogo A filosofia a despeito de si mesma um departamento francês em ultramar Um item tipicamente presente nos inventários dos esforços de modernização enraizado nas formulações originárias do iluminismo francês é o projeto de transformação social pela educação Figuras desse projeto são abordados por Arantes em diversos momentos de sua obra e em nossa leitura consistem na preocupação central do Um departamento francês de ultramar ARANTES 1994 No que se segue procuraremos reconstruir uma determinada linha de raciocínio que percorre esse livro peculiar Como vimos nas seções 1 e 2 acima Arantes procura mostrar que o pensamento filosófico moderno com ambições mais grandiosas o idealismo alemão e derivados teve sua gênese e seu ocaso atrelados à brecha histórica que abrindose no desenvolvimento capitalista primevo pareceu por um breve momento apontar para a superação de sua violência socioeconômica intrínseca Também vimos por outro lado que o colapso daquele horizonte de expectativas ao mesmo tempo que revogou a relevância política e social imediata da filosofia também condicionoua a seu despretensioso lugar de disciplina acadêmica ou seja a uma sobrevida dissociada do ressentimento e das aspirações de outrora Dessa sobrevida participa ainda hoje uma intelectualidade insistente que se mantém viva para empregar a sentença de Pedro Rocha de Oliveira 134 Theodor Adorno por piedade desmazelo e cálculo ADORNO 1993 p 57 e que ocasionalmente não deixou de tentar levar a sério sem sorte porque num tempo errado o papel central que sua disciplina reclamara um dia para a construção da sociedade O capítulo paulista dessa intelectualidade em tensão mutuamente esclarecedora com sua contraparte francesa é o assunto de Arantes no Um departamento francês de ultramar Contextualizado no problema central que nas páginas precedentes procuramos atribuir à obra de Arantes esse livro uma espécie de história do departamento de filosofia da USP não discute apenas um capítulo da formação intelectual brasileira mas consiste numa análise da manutenção de uma relação entre o pensamento filosófico e a formação nacional Tal leitura faz sentido parecenos na medida que o período que baliza a história acadêmica contada por Arantes está marcado por três momentos especialmente significativos da história do capitalismo brasileiro o desencadeamento pelo governo de Getúlio Vargas da modernização na década de 1930 quando o departamento é fundado o populismo e a radicalização política nos anos 1950 e o regime militar instaurado pelo golpe de 1964 Esses três momentos dão ocasião para pensar aquele que conforme vimos é um motivo particularmente recorrente e longevo da imaginação política brasileira a ideia de superação tardia do subdesenvolvimento Essa ideia funcionou como catalisadora dos interesses políticos na sociedade brasileira nos períodos em questão e depois deles Desde o ponto de vista da prismática estratégia argumentativa de Arantes contudo a atenção sobre a maneira como a ideia da superação do subdesenvolvimento inspirou a atividade dos profissionais do pensamento não diz respeito apenas à relação pitoresca entre filosofia e sociedade na periferia do capitalismo mas tange o problema mais geral das condições históricas da racionalidade da sociedade capitalista Para começar é importante retomar o quadro sociológico que esboçamos acima para caracterizar o governo autoritário de Getúlio Vargas Devido às especificidades do crescimento econômico do período a elite educada paulista mantevese fundamentalmente isolada mesmo enquanto beneficiavase da expansão econômica posicionada que estava entre um governo fechado e uma população empobrecida e largamente analfabeta Ao mesmo tempo que estava condicionada a esse duplo isolamento sua função social objetiva de empreendedores e a fundação da nova instituição de ensino a USP colocava essa elite em trilhos esquematicamente análogos aos que haviam sido percorridos pelos intelectuais alemães na virada do 1700 para o 1800 Desenvolvendose tecnicamente e culturalmente mas em grande medida impedida politicamente de canalizar esses ganhos do espírito na administração social a atividade intelectual da elite assume essencialmente a Dissertatio 53 101143 2021 135 forma de um solilóquio palestrante exercido em rituais de fruição e exibição da cultura adquirida Tais rituais marcavam sobretudo a experiência acadêmica na faculdade de direito onde o privilégio cultural juntavase ao status de classe atrelado ao poder do jurista mas era emulado mesmo por figuras bem intencionadas do departamento de filosofia Nesse sentido na década de 1940 a experiência universitária não era sobretudo científica mas proporcionava a seus participantes vivências de socialização culta O público oligárquico e pequeno burguês procurava naqueles cursos uma espécie de alforria ARANTES 1994 p 69 Esse aspecto vivencial tem forte presença no relato de Antonio Candido resgatado por nosso autor a Universidade de São Paulo dos primeiros tempos com suas missões estrangeiras e o seu êxito mundano era um luxo da oligarquia e se prestava à piada De fato em nosso tempo de estudantes havia matinés dançantes no Hotel Esplanada de que participavam alunos e professores estrangeiros e todo mundo ia tomar chá na Confeitaria Vienense CANDIDO Apud ARANTES 1994 p 70 Nas palavras de Gilda de Mello e Souza tudo isso nos envolvia numa doce miragem civilizada apud ARANTES 1994 p 71 Ora o conteúdo especificamente intelectual dessa vivência universitária estava objetivamente marcado por uma certa frivolidade as descrições elencadas por nosso autor mostram uma mistura de fascinação local pelas sofisticações acadêmicas produzidas nas metrópoles espirituais europeias de um lado e um apetite apressado por assimilar suas produção mais recentes por outro Nessa mistura o leitor familiarizado com a obra de Roberto Schwarz não demora em reconhecer ecos da figura machadiana do Brás Cubas Sensível à sua raiz sociológica Arantes não obstante interpretará essa frivolidade num sentido parcialmente positivo na medida que aponta nela a fonte de uma salutar desconfiança frente à produção acadêmica autocentrada tecnificada e a partir dessa desconfiança a origem remota do ensaísmo frutífero de seu amigo Bento Prado Júnior Nossas preocupações entretanto não nos colocam no rumo dessa linha de raciocínio mas exigem que nos voltemos para a maneira como a consciência progressista refletiria os primeiros esforços de modernização intelectual paulistana Na medida em que estava enraizado no quadro de privilégio econômicosocial tal atividade intelectual rescindia ao que a ideologia progressista chamaria de atraso a defasagem do Brasil frente às nações Pedro Rocha de Oliveira 136 capitalistas industrializadas creditável a seu tragicamente persistente passado colonial agroexportador Desde a perspectiva progressista a modernização econômica e social precisava incluir um projeto de combate ao atraso cultural através de uma honestidade intelectual a ser buscada aplicandose um raciocínio significativamente análogo ao que predominava no campo político econômico da mesma forma que se tratava de importar a tecnologia que traria junto com ela o sucesso econômico e civilizacional também se tratava de importar o modelo educacional dos países desenvolvidos Isso incluiu desde estruturas acadêmicas e conteúdos disciplinares até profissionais de ensino Olhando obliquamente para a dimensão cultural do progressismo fica claro o quão intimamente implicados estavam a modernização e a dependência econômica e cultural Para efeitos de nossa exposição o antídoto paradigmático buscado nos píncaros da filosofia profissional francesa para combater a volubilidade intelectual da elite letrada foi a obra de Martial Gueroult Segundo Arantes o que a mentalidade filosófica universitária progressista buscou aí foi a defesa do conhecimento sólido da história da filosofia como ferramenta para colocar num encadeamento necessário a coleção de sistemas intelectuais que floresciam entre nós sob o signo vão do modismo Uma vez ordenados os fragmentos de pensamento transplantados seriam ademais resgatados em sua devida densidade conceitual pelo procedimento também gueroultiano da leitura imanente a análise da estrutura argumentativa dos sistemas filosóficos em sua especificidade filosófica ou seja naquilo que os separava da linguagem ordinária O que a obra de Gueroult oferecia portanto era um método de produção de seriedade intelectual É claro que tal método estava baseado em questões filosóficas consideravelmente mais antigas que a obra do próprio Gueroult como sugere Arantes 1994 p 20 remonta sobretudo à famosa observação kantiana feita na Crítica da Razão Pura no Capítulo 3 da seção sobre a Doutrina Transcendental do Método de que não é possível aprender filosofia é possível fazer uma história da filosofia e no máximo aprender a filosofar Kant 1998 p 694 Nos remeteremos aqui ao papel que o sistema kantiano desempenha na argumentação do Ressentimento da Dialética exposta acima Aquele que deseja aplicar com cuidado e rigor suas faculdades racionais à tarefa de conhecer não pode aceitar o conteúdo de verdade da autointitulada filosofia produzida ao longo do tempo mas precisa submetêlo ao crivo da questão sobre os limites e possibilidades das faculdades racionais Com isso e aqui tratase de identificar desde fora do sistema kantiano qual é o seu sentido o filósofo acaba tendo que deixar de lado o impulso de voltarse para a Dissertatio 53 101143 2021 137 cognição direta da realidade vira um ordenador de opiniões filosóficas das quais desconfia e que trata com salutar distanciamento Tornase um especialista na forma da filosofia cujas sutilezas técnicas interessamno mais do que os conteúdos que ao contrário captam a atenção dos intelectos ordinários Gueroult reatualizava essa postura e seria esse distanciamento preconizado que inocularia o estudante sério contra o modismo volúvel que até então afligira uma elite ávida de vivências intelectuais sofisticadas Aquilo sobre o que o texto de Arantes chama atenção é o sentido sociológico da importação dessa abordagem que esquematicamente designaremos gueroultiana Para início de conversa é importante situar essa abordagem em seu ambiente original Sua função na França do pósguerra era exatamente a de preservar a especificidade técnica e acadêmica do pensamento filosófico num quadro em que tal especificidade era percebida como ameaçada por uma contaminação com os temas mundanos A origem de tal contaminação era a rápida expansão do ensino superior a ampliação da indústria editorial e o consequente entrecruzamento entre os interesses da alta cultura e os objetos da cultura de massa Tal entrecruzamento encontrava uma característica expressão filosófica no Existencialismo que ao contrário das típicas questões técnicas da filosofia tradicional debruçavase sobre os temas do diaadia o cinema a música popular a sexualidade a conversa de bar etc Assim o procedimento gueroultiano de historização da filosofia e leitura imanente funcionava como antídoto à volubilidade também no seu ecossistema nativo Contudo é importante notar que a volubilidade francesa tinha um sentido sociológico oposto ao da volubilidade brasileira que advinha não da massificação do discurso filosófico mas ao contrário de sua restrição a uma elite minúscula que era volúvel porque autocentrada Mas o progressismo filosófico uspiano no que se colocava contra a volubilidade atrasada tinha que ser também antielitista fundamentalmente simpático a uma reforma intelectual capaz de incluir as massas e não alijarse delas politicamente contrário portanto à função endógena do tecnicismo gueroultiano O fato de que acabou inspirandose nesse tecnicismo consistia portanto num paradoxo tragicômico Penetremos mais profundamente nesse paradoxo A filosofia era reduzida a uma técnica de avaliar a si mesma através do mesmo movimento que colocava para segundo plano a disposição para encarar o mundo como filosoficamente penetrável Ao mesmo tempo a tecnificação era um antídoto para a postura intelectual frívola que por sua vez era igualmente incapaz de honrar a antiquíssima pretensão dogmática diria o criticismo de dizer o que é e responder com rigor a respeito da veracidade ou da falsidade dos juízos Pedro Rocha de Oliveira 138 filosóficos Uma conexão forte entre a realidade e o discurso filosófico é incompatível com uma postura intelectual volúvel Contudo ao buscarmos as raízes modernas da pretensão filosófica de dizer o que é o que encontramos novamente retomando nossa exposição da seção 1 é a origem extrafilosófica da filosofia o fato de que para ficarmos no âmbito da modernidade esse peculiar discurso sobre o universal está enraizado em processos sociais e políticos que remontam à consolidação dos estados nacionais modernos e tal enraizamento coloca o problema da realização sociopolítica da filosofia na frente do problema de sua adequação técnica Curiosamente a consideração de tal enraizamento material da filosofia de fato não estava ausente do projeto gueroultiano Tratavase afinal de voltarse à filosofia para salvar a França da decadência cultural Sua ênfase na história da filosofia consistia num esforço de resgate dos fundamentos conceituais das instituições francesas no contexto político de laicização da III República e da cuidadosa administração da expansão da educação superior Isso quer dizer que embora a leitura imanente com sua sensibilidade aos meandros técnicos do sistema desse as costas ao material extrafilosófico ao mesmo tempo estava sustentada por essas origens extrafilosóficas profundamente embutidas na vida institucional europeia e também se dirigia para elas Esse quadro duplamente paradoxal é o que está por trás do absurdo projeto de se tentar salvar as instituições francesas através de um método de bempensar o qual transplantado tornouse referência para a mentalidade progressista uspiana A preocupação de Arantes contudo não é ridicularizar a bizarria desse transplante entre os dois universos teóricosociais contrastantes mas sublinhar o fundamento sociológico dele atestada pelo funcionamento da crítica imanente entre nós Seus praticantes investiram na fundamentação metodológica do conhecimento no caso o conhecimento que importava ao progressismo radical o marxismo No departamento de filosofia segundo consta do Um departamento francês de ultramar e também do Sentimento de dialética produziramse complexos trabalhos que abordavam a particularidade do suposto método marxiano de falar sobre a realidade ou tratavam com sofisticação de delimitar o lugar epistêmico do marxismo Ou seja a gente esforçada do departamento assumiu seu papel na reforma da sociedade brasileira produzindo filosofia academicamente sofisticada Arantes sublinha o contraste entre esse legado propriamente filosófico e as produções de que foram capazes os intelectuais que inclusive por suas diferentes filiações departamentais ficaram incólumes ao tecnicismo metodologista Quando o populismo dos anos 1950 foi derrotado pelo golpe Dissertatio 53 101143 2021 139 militar de 1964 que recolocou o Brasil nos trilhos do desenvolvimentismo autoritário o subsequente divórcio policialmente produzido entre a intelectualidade e o movimento de massas fez com que os acadêmicos das diversas ciências humanas pusessemse a questionar a ideia de desenvolvimento nacional de atraso econômico e do próprio populismo Enquanto isso a faculdade de filosofia hegemonicamente ocupouse com as sutilezas dos sistemas clássicos inclusive o de Karl Marx adiando indefinidamente sua confrontação com a demanda intelectual urgente oriunda do tenebroso momento histórico concentrando seus esforços em prolegômenos epistemológicos de obras históricas e sociológicas com os conteúdos das quais no fim das contas relacionavamse apenas externamente Ou seja através da leitura imanente a filosofia conseguiu tudo menos dizer o que é Assim dáse um fracasso uspiano em produzir filosofia sobre o Brasil o qual não se deve à má aplicação do método importado mas ao sucesso em fazêlo Mas então como sugere o argumento de Arantes o ridículo do projeto periférico foi herdado do projeto metropolitano Afinal o fato de que na Europa a conexão entre a filosofia e as instituições que ela supostamente fundamentaria e viceversa parecia dependente de um método de pensar era um sinal de que os vínculos reais entre a filosofia e a realidade social já estavam dissolvidos Em outros termos se na perspectiva da reformada gueroultiana francesa o que revogava a seriedade da filosofia e sua utilidade para as instituições era a sua relação com a cultura de massa aos olhos de qualquer materialista que se prese o problema não devia ser exatamente cognitivo mas históricoeconômico Afinal a cultura de massa que se insurgia contra a filosofia séria consiste na ampliação do escopo da produção capitalista para o ramo das coisas culturais parcialmente resultante no caso francês de uma determinada política estatal de educação Tratase de um fenômeno socioeconômico complexo que claramente extrapola as questões cognitivas Portanto o que ficava de fora do exercício da postura gueroultiana na França era a hipótese de que a volubilidade filosófica fosse oriunda de transformações sociais Da mesma forma é como consequência de fenômenos dessa ordem que nos anos 1960 o pensamento filosófico por lá e por aqui sofre o que Arantes descreve como uma guinada estetizante marcada por uma espécie de celebração extática de um inespecífico ato de escrever ARANTES 1994 p 198 Tal guinada deslocava a centralidade do sentido que caracterizava as filosofias do sujeito o Iluminismo e seus defensores o marxismo e o Existencialismo Tratavase da irrupção do pósestruturalismo desde a perspectiva gueroultiana o fracasso da reforma cognitiva que procurara empreender O novo fenômeno intelectual penetrou na USP através da obra de Pedro Rocha de Oliveira 140 Michel Foucault e dos escritos e aulas de Gérard Lebrun que falava de uma similitude entre a filosofia a literatura e a experiência do jogo É verdade que embasado numa constatação da crise da significação de decidir a cerca de conteúdos de verdade o pósestruturalismo encarava de frente o problema da incapacidade da filosofia de dizer o que é no quadro europeu que os gueroultianos haviam tentado reverter Por outro lado essa filosofia não disse nenhuma palavra sobre o campo histórico de forças na origem dessa crise ARANTES 1994 p 201 permanecendo tão insensível ao contexto extrafilosófico quanto o tecnicismo gueroultiano O pós estruturalismo nesse sentido é um outra variedade de projeto de transformação cognitiva da sociedade a despeito do fato de que não acredita nem em cognição nem em transformação social para tomar emprestado um dito de Terry Eagleton Importado pelo departamento uspiano o pós estruturalismo ajudouo a se manter atualizado com os desenvolvimento teóricos de ponta mas não a superar o metodologismo que o incapacitava para refletir sobre a realidade nacional ao contrário mergulhouo ainda mais profundamente e com um profissionalismo crescentemente afiado nas questões técnicas da epistemologia O ponto fundamental aí é que a insensibilidade desses discursos filosóficos franceses ao conteúdo extrafilosófico que os produziu é condição de possibilidade de sua transplantação e adoção entusiasmada pelo departamento uspiano Na medida que configuram meras técnicas de pensar estão tão distanciados de seu público nativo quanto de qualquer outro público do mundo Reações cognitivas à realidade da cultura de massas são parte constitutiva da cultura de massas o que segundo Arantes é espelhado no caso foucaultiano pela empolgação com a pura produtividade do pensamento e portanto podem ser consumidas por qualquer elite educada do capitalismo transnacional independentemente de sua realidade social específica como qualquer mercadoria do espírito Assim através do transplante do pensamento de ponta metropolitano para a periferia algo essencial sobre o pensamento de ponta aparece novamente lêse o Norte através do Sul O contexto específico brasileiro em que o transplante se deu contribui especialmente para isso A radicalização do populismo projetava uma conflagração social que reuniria amplos setores da sociedade e apontavam para um projeto nacional que esquematicamente falando não teria sido inexprimível em termos da linguagem universal sempre que ela abandonasse o elitismo metodológico Ocorre que como vimos estava impedida de fazêlo visto que a modernização intelectual exigia exatamente a seriedade da sofisticação conceitual caminho de negação da Dissertatio 53 101143 2021 141 volubilidade Assim a produção filosófica caiu numa armadilha ideológica autopreparada inspirada pelo discurso filosófico francês que de sua parte também era impotente diante dos problemas que se colocava Enquanto viravam as costas para os problemas extrafilosóficos tanto o formalismo gueroultiano quanto o pósestruturalismo reafirmaram entre nós o alheamento acadêmico da filosofia frente ao resto da sociedade reintroduzindo o problema do bacharelismo só que dessa vez sob o verniz da seriedade profissional e da atualidade acadêmica Para mal ou para bem contudo Arantes deixa indicado que a filosofia inábil não deixou marcas no progressismo Tendo sido derrotada apenas policialmente pelo golpe militar de 1964 e não no campo das ideias a ideologia progressista e populista expressouse amplamente na cultura de massa e em outros ramos da produção acadêmica Até hoje afirmou Arantes recentemente não foi devidamente pensada e criticada No momento em que colocamos o ponto final nesse texto parecenos que talvez estejamos perdendo mais uma boa oportunidade de fazêlo enquanto assistimos ao provável sepultamento de sua terceira encarnação ou requentamento a figura ornitorríntica do lulopetismo com suas limitações que já deixam saudades Referências ADORNO T Minima Moralia Rio de Janeiro Ática 1993 AGAMBEN G State of exception Chicago University of Chicago Press 2005 ALTVATER E The price of wealth Economies and institutions in the Middle East Ithaca Cornell University Press 1997 AEI American Enterprise Institute Toward a global cavalar 2003 Disponível em wwwaeiorgpublicationspubID17783pubdetailasp Acesso em Agosto de 2017 ARANTES P Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 Um departamento francês de ultramar Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana Uma experiência nos anos 60 Rio de Janeiro Paz e Terra 1994 Ressentimento da dialética Rio de Janeiro Paz e Terra 1996a O fio da meada Rio de Janeiro Paz e Terra 1996b Zero à esquerda São Paulo Conrad 2004 Extinção São Paulo Boitempo 2007 O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência São Paulo Boitempo 2014 Pedro Rocha de Oliveira 142 ARENDT H Imperialism New York Harcourt Brace Jovanovich 1968 BOBBIO N Una guerra giusta Veneza Marsilio 1991 Brecht Bertolt Werke Große kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe Band 21 Berlin Suhrkamp 1988 CARDOSO F H Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil São Paulo Difusão Européia do Livro 1972 Capitalismo e escravidão no Brasil meridional Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 DEJOURS C Souffrance en France la banalisation de linjustice sociale Paris Seuil 1998 FERNANDES F A revolução burguesa no Brasil Rio de Janeiro Zahar 1976 FURTADO C Dialética do desenvolvimento Rio de Janeiro Fundo de Cultura 1964 GRAY J False dawn London Granta 1998 HABERMAS J The Gulf War 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GÊNESE E ESTRUTURA DO FIO DA MEADA UM PANORAMA DA OBRA DE PAULO ARANTES Pedro Rocha de Oliveira Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Resumo No presente texto procuramos apresentar um panorama da obra de Paulo Arantes analisando os pontos de contato entre sete de suas principais obras Ressentimento da dialética Sentimento de dialética O fio da meada Zero à esquerda Extinção O novo tempo do mundo e Um departamento francês de ultramar Procurando ressaltar a preocupação fundamental que alinhava a diversidade temática dessas obras nos esforçamos em reconstruir a argumentação de Arantes em especial na medida que lida com o problema dos limites da modernização capitalista a relação entre esses limites e a racionalidade moderna e a bizarra sobrevida civilizacional para além deles Esse tríplice problema é várias vezes recolocado na obra de Arantes na medida que a atenção do autor oscila entre sua manifestação na periferia mundial e nas metrópoles capitalistas Palavraschave Arantes obras gênese estrutura Abstract We present an overview of the work of Brazilian philosopher Paulo Arantes analyzing the points of contact between seven of his main works Ressentimento da Dialética Sentimento da Dialética O Fio da Meada Zero à Esquerda Extinção O Novo Tempo do Mundo and Um Departamento Francês de Ultramar Reconstructing Arantes arguments we suggest fundamental concerns behind the thematic diversity of those works the limits of capitalist modernization the relationship between those limits and modern rationality and the bizarre form of extended life consequently in vogue This triple problem is repeated several times in Arantes work as the authors attention oscillates between its manifestation in the world periphery and in capitalist metropolises Keywords Arantes works genesis structure Nascido na década de 1940 Paulo Arantes pertence a uma geração que se intelectualizou e politizou no vivaz e turbulento ambiente político brasileiro que antecedeu ao golpe de 1964 Embora às vezes se defina como materialista vulgar sua referência teórica principal é sem dúvida a obra do crítico literário brasileiro Roberto Schwarz a quem credita repetidamente ter desvendado a xarada da experiência intelectual brasileira Ao mesmo tempo nomes tais como Gyorgy Lukács Theodor Adorno JeanPaul Sartre Herbert Marcuse e Hannah Arendt mas também Francis Fukuyama Jürgen Habermas Frenand Braudel e Carl Schmitt figuram também em sua obra seus textos são usualmente construídos em termos de análises críticas frequentemente simultâneas de autores os mais variados e contrastantes Mas Dissertatio 53 101143 2021 Pedro Rocha de Oliveira 102 quando traz à baila esses autores consagrados o objetivo de Arantes não é posicionarse publicamente diante das suas ideias Vale para o todo de sua obra a epígrafe brechtiana de um de seus livros 1996b ele pensava dentro de outras cabeças BRECHT 1988 p 420 A uma primeira vista os temas desse pensamento heterocefálico variaram consideravelmente ao longo do tempo Nos anos 197080 Arantes preocupouse com a gênese do pensamento burguês e da crítica da economia política Nos anos 1990 refletiu a respeito da conexão entre os projetos nacionais de modernização socioeconômica das décadas anteriores e o imaginário socialista Na virada da década de 1990 para 2000 atentou para os processos de polarização econômica e política subjacentes aos discursos do neoliberalismo e da globalização salientando a conexão entre os caminhos da modernização capitalista financeirizada e militarizada e o eclipse do conteúdo civilizatório do discurso burguês clássico Desde então Arantes vem se preocupando em mapear historicamente a relação entre esse eclipse e a substituição da política de pacto social pelas práticas policiais de gestão territorial a nível nacional e internacional Seus livros têm a forma de coleções de ensaios com títulos jocosos Uma questão de tato O pensamento único e o marxista distraído Pensando por fora às vezes subdivididos em enigmáticas partes numeradas elas mesmas sem título O tom do próprio texto também tem algo de enigmático abordagens indiretas parênteses dentro de parênteses fechados com duplas negativas argumentos longuíssimos às vezes encerrados com tiradas propositalmente inconclusivas Mas a escolha permanente por essa forma peculiar não é um capricho estilístico exprime segundo cremos as idas vindas e aporias impostas pelo problema que ocupou nosso autor continuamente embora às vezes subterraneamente desde os primeiros escritos a maneira como a relação complexa entre o ideário burguês clássico do desenvolvimento socioeconômico e a intensificação histórica das relações sociais capitalistas por um lado inspiraram um imaginário radical de transformação social e por outro colapsaram numa reafirmação brutal da acumulação capitalista como fim em si mesma Ou nos seus termos caracteristicamente aforísticos a modernização abortada ou consumada tanto faz ARANTES 2004 p 66 Além da unidade formal condicionada pelo objeto também há como veremos uma certa unidade de abordagem que vem sendo mantida desde seus trabalhos dos anos 1970 Para problematizar a modernização capitalista Arantes consistentemente adota uma perspectiva bifronte que procura por um lado considerar a socialização burguesa como um projeto ou um processo Dissertatio 53 101143 2021 103 aberto e potencialmente emancipador mas por outro como um logro cujo fracasso foi clara e constantemente exibido pelo caminho que tomou nas periferias do capitalismo Esse bifrontismo é herança clara do pensamento de Roberto Schwarz tratase de compreender o capitalismo contemporâneo à luz do papel cognitivamente privilegiado que a periferia desempenha dentro dele ler o Norte através do Sul na expressão de Neil Larsen 1995 No presente texto procuraremos resgatar e encadear raciocínios desenvolvidos por Arantes em suas obras que consideramos ser mais representativas desse esforço de intelecção da dialética da modernização capitalista Assim nosso objetivo não será esgotar o conteúdo dessas obras mas achar o fio da meada ARANTES 1996b entre elas Nossa exposição será organizada em sete passos Primeiro 1 debruçandonos sobre uma série de ensaios de Arantes a respeito da gênese dos pensamentos de Hegel e Marx atentaremos aos fundamentos sociológicos da consciência da dialética da modernização burguesa conforme formulada pelo Idealismo e o Romantismo alemães Em seguida 2 relacionaremos esse pensamento dialético às possibilidades políticas da sociedade moderna atentando à leitura que Arantes faz do 1848 francês como paradigmático fechamento histórico daquelas possibilidades Daí 3 passaremos a uma leitura do processo de modernização brasileiro sobretudo da inflexão autoritária a partir do golpe militar de 1964 e 4 da análise de nosso autor a respeito dos rumos tomados pela consciência teórica que refletiu sobre ele Essa reflexão tem implicações sobre 5 um diagnóstico do capitalismo global contemporâneo em especial no que tange a dissociação entre desenvolvimento econômico e progresso civilizacional com 6 a consequente identidade entre violência e administração social e 7 a superação prática do papel que a temporalidade classicamente desempenhava no ideário políticoeconômico burguês 1 Consciência social e modernização Teoria formação nacional e modernidade política Conforme uma formulação do Ressentimento da Dialética ARANTES 1996a p 365 uma das descobertas fundamentais de Marx e Engels teria sido a imbricação entre a gênese da teoria social burguesa e o caráter de classe do processo de socialização capitalista Isso teria sido expresso na Sagrada Família e na Ideologia Alemã Sob o capitalismo dependendo da complexidade da sociedade civil o volume e a diversidade de perfil das classes proprietárias o processo de consolidação das sociedade nacionais demandou um esforço de Pedro Rocha de Oliveira 104 formulação discursivo capaz de converter os interesses particulares de todos os setores sociais envolvidos em torno do objetivo único da formação de um país Nesse discurso o funcionamento do capitalismo que impõe aos atores econômicos o comportamento da competição e a tendência à concentração de riqueza exclusão econômica e constituição de monopólios precisa ser momentaneamente representado sob o aspecto pactual do interesse comum da vantagem e da viabilidade gerais Isso equivale a dizer que a formação nacional precisa aparecer sob a forma de um projeto mais ou menos consciente balizado por uma linguagem universal sociologia economia científica filosofia política etc O que Arantes argumenta contudo é que na Alemanha do final do século XVIII a formação nacional burguesa não havia se completado o que por vias tortas terminou por dotar o pensamento alemão de sua sensibilidade dialética Ressentimento intelectual na periferia da sociedade burguesa clássica A ideia básica é que o Idealismo germinou num ambiente marcado pela frustração dos intelectuais com a penetração social de sua própria obra a qual incorporou constitutivamente essa frustração em meados do século XVIII Essa conceitualização da frustração baseouse na apreciação de como a Alemanha comparavase desfavoravelmente com a França iluminista em termos do alcance social da produção de ideias o que ficou registrado na obra de autores como Goethe Importando o discurso francês do papel fundamental do intelectual na civilização moderna aquela comparação converteuse num diagnóstico da sociedade alemã como arcaica prémoderna atrasada o que deu à frustração a forma final do ressentimento que dá título à obra de Arantes se os intelectuais não eram ouvidos na Alemanha o problema era da sociedade alemã que não lhes dava o valor que sua sofisticação merecia O lastro real desse diagnóstico ressentido era duplo Por um lado a fragmentação política e a concentração de autoridade que marcavam o cenário alemão tornavam o pensamento e a opinião da classe média dispensável para a administração pública Ao mesmo tempo a ausência de mecanismos de participação política tornavam o povo indiferente à consequência política das ideias uma vez que encontravase de qualquer forma incapaz de exercitálas Assim a classe média letrada encontravase na desconfortável situação de depender umbilicalmente de uma aristocracia cujo poderio inconteste tornava as ideias politicamente irrelevantes Era obrigada à intelectualização pelas suas funções socioeconômicas específicas as profissões liberais a universidade a burocracia mas tinha que exercêlas às margens do aparato estatal Dissertatio 53 101143 2021 105 Sem produção endógena intelectualizarse consistia para um alemão entrar em contato com a cultura estrangeira A filosofia exportada da França sob a forma do discurso cosmopolita e universalizante expressava um momento fundamental da realidade europeia a possibilidade de um projeto de modernização social através da racionalização do Estado Moderno O pensamento inglês decifrava a operação econômica anônima e privada em contraste por mais que se identificasse com esses projetos a intelligentsia alemã estava privada da oportunidade social de fazer o pensamento entrar em choque problemático com a realidade não existia uma classe interessa em suas ideias nem estruturas políticas sociedade civil capazes de realizálas Assim a Alemanha desenvolverá um discurso filosófico autocentrado cujo critério de verdade poderá ser apenas a capacidade de seu conteúdo de sobreviver no espaço paradoxal entre o conservadorismo político e a modernidade intelectual evitando os excessos do iluminismo tanto no entusiasmo formal quanto no conteúdo radical uma cultura do tato Schiller expressou loquazmente essa demanda nas suas Cartas para a educação estética do homem de 1794 onde exigia do mérito a bela aparência e da verdade interior a forma agradável ARANTES 1996a p 180 Ao mesmo tempo Goethe descreveu essa polidez forçada como uma forma de defesa contra a situação social desfavorável da Alemanha Nesse sentido a aparência agradável seria apenas aparência um subterfúgio para permitir a sobrevivência no interior da alma humana dos ideais verdadeiros que a sociedade rejeitava Ora no iluminismo francês a luta contra as boas maneiras forçadas dos salões que recobriam a verdade do absolutismo era um dos temas do teatro iluminista de Diderot em sua cruzada contra a libertinagem da nobreza Na Alemanha essa perspectiva estava barrada pela falta de público letrado e pela censura política O Romantismo a fuga para o interior e a ironia objetiva Com a realidade social vedada o pensamento voltase com o Romantismo para um discurso a respeito da superioridade do sentimento e da cultura interior Esse discurso era na prática expressão da luta por reconhecimento profissional do homem de letras Ao mesmo tempo afirmava a inferioridade da realidade arcaica e opaca frente à plenitude subjetiva A ironia foi o seu recurso formal privilegiado possibilitava ao mesmo tempo dar vazão à sofisticação cultural e manter distanciamento crítico frente à cultura moderna Os alvos preferidos dessa crítica mordaz eram os escritores entusiasmados ou seja os que levavam as ideias à sério relatos Pedro Rocha de Oliveira 106 contemporâneos dão conta de uma reunião de salão na qual a leitura do projeto de Schiller de reformar esteticamente a humanidade ocasionou uma contagiante e infindável crise de riso nos presentes Ao mesmo tempo o desprezo pelas ideias era atributo dos inteligentes e o teor essencialmente exibicionista dessa forma foi expresso por A W Schlegel que afirmava a necessidade do homem realmente culto de mudar de ideia várias vezes por dia como alguém cuja mente afiada permite tratar qualquer pensamento singular como limitado demais para seu intelecto superior Tal afirmação de superioridade era marcada pelo ressentimento no entanto seu caráter compensatório ficou evidente para Schlegel que leua como expressão de malestar causado pelo cerceamento da individualidade e a potencialização das capacidades intelectuais Esse desencaixe na leitura de Schlegel seria um sintoma da sociedade moderna em geral o qual aparece mais intensamente na Alemanha arcaica onde as ideias estão fora de lugar do que na França avançada onde as ilusões do autoinebriamento da razão são catalisadas por uma vida social que tampouco será capaz de fazerlhes justiça Ao mesmo tempo nas palavras de Arantes a conversão irônica da impotência histórica e socialmente determinada do pensador em uma convicção pessoal cegavao para a ironia objetiva ARANTES 1996a p 230 o fato de que o progresso da sociedade moderna através da divisão do trabalho e da racionalização estatal ao mesmo tempo criava as condições para a existência de uma classe intelectualizada e tornava inofensivas as ideias que essa classe produzia Essa ironia objetiva será a base persistente da sociologia das ideias que Arantes estenderá até o pensamento marxiano passando por Hegel e pela tradição idealista A relação problemática entre ideias e realidade no Idealismo A interiorização da impotência objetiva do pensamento combinada à sua potencialização subjetiva também foi expressa pela leitura alemão do ceticismo No criticismo de Immanuel Kant a célebre influência do empirismo radical de David Hume havia sido convertida no tabu sobre a coisa em si Sintomaticamente tal tabu não se estendia à essencialidade do próprio ser humano esta sim cognoscível porém em termos de um sujeito transcendental comensurável com uma individualidade em geral ou seja um sujeito histórica e socialmente descontextualizado Isso formava sistema com a dissociação entre a filosofia no sentido técnico e a produção filosófica de interesse geral a filosofia não tinha o que dizer do mundo das relações históricas e sociais exceto no que se depreendiam da metafísica do sujeito Dissertatio 53 101143 2021 107 transcendental que constituía seu verdadeiro objeto Isso também casava com a famosa distinção entre o uso público e o uso privado da razão aspectos do discurso kantiano de limitação do exercício racional que encaixavam com as condições políticas e sociais da produção do pensamento na Alemanha No fim das contas o pensamento rigoroso podia ocuparse livremente de questões morais e com a teoria do conhecimento todo o resto estava submetido a pudores de diversas ordens além de cair fora de um discurso racional verdadeiramente científico Nas recepção de F H Jacobi ao criticismo kantiano era como se na prática as coisas realmente existentes a coisaemsi estivesses proibidas ao pensamento e a inteligência só pudesse se entreter com o mundo das meras aparências ou seja no fundo com o nada Contudo essa anulação transcendental das coisas assumiria em J G Fichte o sentido oposto ao de uma afirmação da impotência do pensamento Fichte converteria a kantiana anulação transcendental da realidade no exercício da vontade subjetiva de impor sentido à realidade Isso incluía uma releitura do ressentimento romântico A realidade não era exatamente indiferente às ideias antes era vazia de ideias porque antes das ideias não era nada Ao mesmo tempo a Razão colocava as ideias como única destinação da realidade de tal modo que o nada deveria tornarse algo conforme estava inscrito no caráter prático e teleológico das ideias que na realidade social não tinham realidade mas não tinhamna ainda Fichte e as massas anuladas Fichte enraizava esse esquema filosófico na situação social europeia e alemã Em especial o niilismo que está em seu centro a realidade anulada corresponderia à inércia política e social das massas Entretanto no sistema filosófico fichteano essa inércia é desprovida de densidade sociológica sendo representada apenas como o espaço vazio para a ação das ideias ou seja para a prática política do intelectual O atraso alemão ou mesmo a dissociação moderna entre o pensamento e a ação política existiam apenas para que o intelectual enquanto professor Lehrer cumprisse seu papel civilizador algo que está inscrito no título da obra magna a Doutrina da Ciência Wissenschaftslehre Caracteristicamente Fichte deixava de lado o problema extrafilosófico da dissociação entre a massa politicamente neutralizada e a classe intelectual espertíssima ou seja o problema sociológico da diferenciação intelectual Por outro lado ao contrário do que ocorria na má consciência romântica existe aqui um lugar para o ideal reformador Pedro Rocha de Oliveira 108 Contudo esse ideal é exclusivamente intelectual didático A plebe tão ignorante quanto empobrecida e alijada da política oscila entre a passividade e a revolta para evitar esses extremos é preciso desencadear um processo lento de reforma baseada na educação Hegel teoria social e pacto de classes Sabemos que essa preocupação com a possibilidade de uma revolta popular à francesa e sua resposta reformista foi uma constante no Idealismo Alemão Contudo Arantes registra a peculiaridade da contribuição da obra de Hegel para esse consenso Escrevendo em 1798 Hegel reconhecia a precariedade da sociedade alemã a perda de poder e dignidade da vida existente na qual não se encontra mais a satisfação apud Arantes 1996a 324 Mas diferentemente da tradição idealista que o precedeu ao invés de pretender restaurar imediatamente essa dignidade através da cultura o jovem Hegel demorouse naquele momento negativo expressandoo como uma experiência social compartilhada pelas classes cultas e pelo povo Em outros termos a massa e os intelectuais no fundo padeciam do mesmo problema e queriam a mesma coisa Nas palavras do autor alemão citadas por Arantes A crescente contradição entre o desconhecido que os homens inconscientemente procuram e a vida que lhes é oferecida e consentida e que de fato é a sua própria vida e a nostalgia da vida daqueles que elevaram em si mesmos a natureza à condição da Ideia carrega em si um impulso de aproximação recíproca A necessidade dos primeiros de aceder à consciência do que os aprisiona e ao desconhecido pelo qual aspiram vai ao encontro da necessidade dos segundos de introduzir na vida a Ideia que elaboraram idem Ao mesmo tempo aquela vida vazia e passiva das massas não havia sido sempre o caso mas tinha ela mesma uma densidade histórica No texto sobre a Positividade da Religião Cristã Hegel aponta para a Reforma Protestante como uma conflagração social animada pelo sentimento de um direito duradouro o direito de seguir as próprias opiniões religiosas as convicções que cada um formou por si mesmo HEGEL 1996 p 146 evidência portanto não apenas de uma pulsão popular para o saber sob a forma religiosa da convicção individual de todo modo tão cara ao ideário iluminista mas de uma capacidade de levar essa pulsão a cabo através da transformação social Contudo essa unidade entre os ideais e a ação política de massas foi historicamente desperdiçada aniquilada pela forma que a sociedade alemã tomou posteriormente de tal modo que é como se os poderosos da Igreja e do Estado se sentissem felizes ao ver que em nós dormita ou mesmo carece Dissertatio 53 101143 2021 109 de vida a lembrança do que outrora sentiram nossos antepassados do seu direito e por cuja afirmação milhares deles arriscaram suas vidas HEGEL 1996 p 147 Com o passar dos anos Hegel emprestará ênfase crescentemente diminuída ao momento de simpatia popular de seu pensamento Guardará de tais formulações sobretudo a ideia resultante da massa coagida e incapaz e o enrijecimento da burocracia estatal que impedia às classes esclarecidas dedicar todas as suas capacidades à modernização da sociedade alemã Aquela incapacitação popular em seus textos de maturidade tornam pouco recomendável a generalização do sufrágio e os resquícios feudais que oprimiam a população alemã só poderiam ser superados através de um pacto de classes expresso numa democracia de notáveis representando os interesses da modernidade Mas permanecerá viva na obra de Hegel a ideia de uma religião popular como lugar de um pacto intelectual de classes ela seria patriótica a ponto de despertar na alma do povo o sentimento de sua dignidade e ao mesmo tempo suficientemente elevada para que dela não se envergonhassem as classes educadas ARANTES 1996a p 317 O proletariado como verdadeiro herdeiro do ressentimento burguês Em Hegel portanto está pautada a reflexão sobre o discurso que através da pactuação social é capaz de atingir uma universalidade politicamente eficaz A maneira como Hegel apresenta essa impregnação deixa claro que não se trata apenas de uma teoria brilhante mas sobretudo de uma teoria capaz de responder a uma necessidade das massas Nos últimos ensaios do Ressentimento Arantes sugere que em certo sentido a obra de Marx direcionouse a essa mesma exigência Entretanto a crítica da ideologia burguesa embasada no reconhecimento do caráter de classe do universalismo permitia inserir uma problematização importante na ideia do pensamento que produz um pacto de classes Arantes interpreta a base sociológica daquela crítica nos seguintes termos Devido à complexidade numérica e operacional do Estado e do mercado a administração pública precisa adquirir traços técnicocientíficos É em função dessa exigência operacional que aparecem as condições materiais de manter um setor social exclusivamente dedicado ao pensamento o qual diversificase sob a forma de uma intelectualidade em sentido amplo O pensamento que esse setor social produz está impregnado por um lado de vícios atrelados à manutenção da ordem das coisas manifestos nos impulsos reformistas dos profissionais do espírito alemães e ao mesmo tempo de Pedro Rocha de Oliveira 110 uma ressentida negatividade intelectual ligada ao fato de que não podem identificarse totalmente com a administração social a qual por definição é restritiva hierarquizada etc Nesse sentido esses setores intelectualizados estavam tão alienados da determinação dos rumos históricos da sociedade quanto as populações administradas Aí estão as raízes do imaginário burguês universalista o qual tinha em seu cerne a ideia de uma realidade inteiramente permeável ao pensamento e à ação das pessoas comuns A crítica marxista da ideologia consistiria em afirmar que aquela ideia era em si mesma verdadeira ou seja representava um ideal político válido mas que diante dela a realidade da sociedade burguesa era falsa Em termos históricos o universalismo havia tido como lema unificar as classes em luta contra o absolutismo mas a sociedade burguesa se apropriara do Estado Moderno empregandoo para a manutenção e aprofundamento das relações de produção capitalistas amparadas na propriedade privada Com isso ficava aquém do universalismo que prometia de tal modo que o problema da alienação social continuava vivo para os setores sociais que padeciam sob a administração social para o capital a classe trabalhadora era a herdeira do ressentimento burguês mas num momento histórico em que a racionalidade já não podia ser representada como mero atributo subjetivo uma vez que o processo de modernização social havia sido desencadeado pela burguesia Assim a alienação que o Romantismo e o Idealismo viam em termos de um abismo entre capacidades racionais e a realidade será reinterpretado historicamente no Manifesto Comunista em termos de uma contradição entre as relações de produção o Estado Moderno e seu sistema políticojurídico administrativo amparado na propriedade privada e as forças produtivas a tecnologia e o maquinário e os saberes administrativos associados Vista desse ângulo a revolta das massas no que apontava para o ressentimento com a alienação e portanto para a negatividade do pensamento burguês também apontava para a potencial ampliação do momento positivamente moderno ou científico dele a modernização 2 Limites e possibilidades da modernização burguesa O paradigmático 1848 Em O Fio da Meada Arantes 1996b retorna ao problema da gênese do pensamento marxiano abordandoo através da análise do 1848 francês a Revolução de Fevereiro e seus desdobramentos no 18 Brumário de Luís Bonaparte Em resumo na leitura que Arantes faz de Marx o episódio Dissertatio 53 101143 2021 111 desempenha o papel da alvorada da política burguesa que contudo foi natimorta ARANTES 1996b p 31 A pressão pela reorganização democrática do sistema político francês implodiu na medida que as classes proprietárias voltaramse contra o sufrágio temendo as consequências da crescente radicalização popular tornando evidente o caráter particularista ou de classe do discurso universalista burguês da Revolução de 1789 O pacto de classes projetado pelo universalismo é sepultado sob os cadáveres dos fuzilados nas barricadas o diálogo entre o ideário e as necessidades populares e o pensamento burguês é inviabilizado Na medida que o movimento de massas derrotado em 1848 envolvia não apenas o proletariado organizado mas também a pequena burguesia intelectualizada aquela derrota representa também uma inflexão no perfil hegemônico do capital que supera a fase do livre empreendedorismo os vitoriosos de 1848 são a alta burguesia industrial e financeira Assim a filosofia moderna socialmente relevante teria sido um devaneio da sociedade burguesa competitiva revogada pelo curso modernizador que nas décadas seguintes desaguará no capitalismo monopolista Na apropriação que Arantes faz do argumento marxiano tal revogamento transforma o momento positivo do pensamento burguês Em conexão com a crítica da alienação o impulso de modernização continha uma relação com a ideia da sociedade civil ampla Expressa nos termos universalistas essa relação apontara para o conteúdo democrático do ideário burguês mas com os acontecimentos políticos de 1848 esse conteúdo fica suprimido Levando isso em conta e voltando nossa atenção para a formulação do Manifesto Comunista podemos dizer que o 1848 coloca a modernização numa configuração nãocontraditória junto às relações sociais burguesas a partir de então ambas tenderiam à característica potencialização da concentração de poder econômico e político Dessa forma a esterilização do universalismo burguês parece indicar também a esterilização política da sociedade capitalista inclusive de sua contradição histórica esquemática que obedecendo as exigências do materialismo enraizava a revolução social no mundo existente A filosofia sem objeto e a crítica da economia política Com o 1848 portanto a filosofia literalmente ficou sem assunto perdeu de vez o seu objeto ARANTES 1996b p 31 ou seja teve historicamente revogada sua função de articular o pacto de classes em torno da transformação da realidade Mas a perda de objeto não impede a filosofia de Pedro Rocha de Oliveira 112 continuar funcionando Deixando de lado os aspectos de teoria social que havia herdado do pensamento hegeliano a filosofia afirmase definitivamente como especialidade universitária mergulhando na epistemologia e nas questões de demarcação sempre ameaçada de um lado pelo fantasma da extinta metafísica e de outro pelo sistema das ciências e algumas novas disciplinas como a psicologia a lógica formal as várias epistemologias científicas etc ARANTES 1996b p 32 Tal percurso levaa do neokantismo ao formalismo da virada linguística Por outro lado a inviabilização de uma filosofia com implicações políticas diretas não significa a paralisação do pensamento crítico O surgimento da Crítica da Economia Política se encaixa exatamente nesse contexto em que o imperativo da transformação social se dissocia da exigência de universalidade do ideário burguês lançando luz retrospectiva sobre o passado da ilusão filosófica anterior ARANTES 1996b p 40 O flerte com a filosofia burguesa é superado pela descoberta de uma racionalidade alienada em si mesma o Capital e pela demonstração de seu núcleo violento de dominação social com o que fica expresso o limite político do pacto de classes na sociedade burguesa Esse é segundo nosso autor o caminho da obra marxiana depois de 1852 Ao mesmo tempo aquela a dissociação entre filosofia e transformação social não foi permanente G Lukács e toda uma tropa de filósofos marxistas reerguerão o problema do universal dentro do discurso da Crítica da Economia Política A Arantes interessa o contexto históricosocial desse chamado marxismo ocidental contra o pano de fundo do qual História e Consciência de Classe destoa claramente Tratase de um modelo irrepetível escrito em um momento de estado de graça histórico 1996b p 45 as possibilidades abertas para a organização popular pela Revolução Bolchevique A perspectiva política da classe trabalhadora aparece em termos do problema do fetichismo da mercadoria e atrelada a uma crítica social total enraizada na sociologia da modernização weberiana Nesse sentido a filosofia socialmente crítica reaparece em conexão com um processo político real de alcance potencialmente mundial numa abertura histórica em breve encerrada pela vitória do Nacional Socialismo na Alemanha Notavelmente foi justamente nas vésperas desse ocaso europeu que o ideário socialista começou a ser apropriado pela intelectualidade de esquerda brasileira Dissertatio 53 101143 2021 113 3 Intelectualidade e modernização na periferia Problema da intelectualidade socialista brasileira Seguindo formulações de Antonio Candido e Roberto Schwarz Arantes considera que problema constitutivo de nossa intelligentsia foi desde sempre a ausência de uma produção intelectual endógena capaz de fazer uma leitura crítica da modernização brasileira Daí apostou na capacidade do ideário socialista de desempenhar essa função e consequentemente precisou converter em termos nacionais uma teoria originalmente formulada para dar conta de uma realidade completamente diferente Ora vimos acima como Arantes enraíza a gênese do pensamento marxiano num discurso filosófico alimentado pela reflexão sobre o caráter periférico da sociedade alemã e conclui com um questionamento sobre a relação entre a aplicabilidade histórica daquele pensamento e os limites políticos e civilizatórios da socialização capitalista Como transparece na argumentação de O Fio da Meada aquele caráter periférico e estes limites serão a chave empregada por Arantes para pensar a recepção brasileira do ideário socialista Modernização e progressismo Em primeiro lugar é preciso atentar para o contexto histórico daquela recepção que se deu à época do esforço industrializante impulsionado e mediado pelo governo de Getúlio Vargas 193019451 Seu desenvolvimentismo corporatista nacionalista e autoritário tinha por um lado afinidades ideológicas com a extremadireita europeia mas por outro prescindia da sua modalidade de mobilização popular radical que ademais era impossível no Brasil de então A população estava majoritariamente ocupada em atividades rurais que envolviam relações sociais de dependência econômica e política características do caudilhismo latifundista A estratégia fundamental de Vargas enraizavase nesse quadro políticoeconômico o subsídio à exportação de café era combinado a um controle estatal rígido das divisas obtidas dessa exportação de modo a concentrar a riqueza necessária para importar bens de produção e promover a indústria de base Isso projetava uma mudança de ênfase na economia brasileira bem como uma reorganização da 1 A recapitulação história que se segue não está pautada em trabalhos do próprio Arantes mas segundo esperamos ajuda a amparar nossa interpretação deles Pedro Rocha de Oliveira 114 relação entre os setores produtivos o capital bancário e uma nova classe trabalhadora que seria organizada desde cima por sindicatos tutelados pelo Ministério do Trabalho O tom modernizador do governo Vargas legou permanentemente ao pensamento político brasileiro a ideia do progresso como princípio norteador para uma administração pública pautada pelo desenvolvimento econômicosocial O mote original desse progressismo era a superação do atraso comparativo entre o Brasil e as potências industriais do hemisfério norte A ele aderiam setores intelectualizados do estado de São Paulo sede da elite cafeicultora Contudo esses setores tinham uma relação dúbia com o governo Vargas Por um lado a modernização econômica consolidaria a classe média paulista e a Universidade de São Paulo onde Arantes foi aluno e é professor foi fundada para atender sua demanda de formação técnica e cultural Ao mesmo tempo o governo autoritário prescindia de um setor intelectualizado amplo Vargas governava cercado de conselheiros técnicos escolhidos pelo próprio executivo de modo que a classe proprietária interessada no desenvolvimento do capitalismo embora parcialmente identificada com o discurso do progresso e beneficiária da administração pública em que estava enraizado não era amplamente consultada para a gestão desse desenvolvimento Ademais uma vez que orbitava direta ou indiretamente a economia agrária de exportação a classe média dependia da desigualdade econômica que tornava contabilmente possível acumular as divisas que desencadearia o desejado progresso uma gigantesca concentração de terra salários e condições de trabalho aviltantes De todo modo nas décadas de 1930 e 40 a intelectualidade socialista em grande parte oriunda daquelas classes privilegiadas adotou hegemonicamente o discurso progressista apostando no ganho civilizatório e político trazido pela industrialização A formação de um proletariado o desenvolvimento das forças produtivas e portanto de uma burguesia nacional combinados à estratégia das frentes políticas estabelecida pela Terceira Internacional fundamentavam uma esperança esquemática de que a modernização autoritária de Vargas ajudaria a colocar o Brasil no caminho da revolução socialista A dialética do populismo De fato no período que se seguiu ao ímpeto de modernização varguista a industrialização trouxe a reboque a formalização e a expansão do Dissertatio 53 101143 2021 115 trabalho assalariado Tal expansão entretanto contrastava com as limitações políticas do sindicalismo tutelado pelo Estado e com a manutenção de condições de vida miseráveis no campo A partir dos últimos anos da década de 1940 uma crescente mobilização popular emprestou ao progressismo a inflexão populista que é usualmente empregada pela historiografia como chave para o compreensão política do período entre o fim do primeiro governo Vargas e o golpe militar de 1964 A ideologia populista representava a reforma social como consequência da confiança da população em um governo voltado para o desenvolvimento econômico e o consequente aprimoramento da qualidade de vida A reforma agrária o controle de preços os direitos trabalhistas e o salário mínimo entravam e saíam constantemente da agenda política Assim eram projetadas alianças entre setores sociais que eram produtos da modernização autoritária varguista a classe média que havia se desenvolvido nas universidades e nos conselhos técnicos do aparelho estatal uma burguesia industrial historicamente recente e os trabalhadores organizados a partir da estrutura sindical do Ministério do Trabalho Ao mesmo tempo o populismo tinha uma dialética interna A capacidade organizativa para a reivindicação política entrava em choque com os limites do sindicalismo tutelado O processo de formalização do emprego resultante da industrialização promovida pela ação estatal e a incorporação de direitos trabalhistas básicos havia dotado a classe trabalhadora de um chão desde o qual lançarse para lutas mais amplas não apenas no campo salarial e contra a carestia mas também pela liberdade sindical e política Em paralelo no campo pipocavam os movimentos de reforma agrária Na academia as ciências sociais em grande parte inspiradas por debates internacionais entre correntes políticoteóricas socialistas já acumulavam uma certa reflexão endógena sobre o próprio desenvolvimento econômico em parte visto como problemático uma vez que até então tinha sido compatível com a manutenção da miséria e até mesmo dependia dela conforme o conceito de desenvolvimento desigual e combinado permitia ver Jovens progressistas saíam das universidades para contribuir com campanhas de alfabetização popular que aliavam o conhecimento das letras com a conscientização política Organizações políticas de esquerda articulavam essas lutas e nelas transitava a intelectualidade radical em grande parte equipada com o ideário da revolução socialista No discurso dessa intelectualidade o progressismo combinava a modernização econômica superação do subdesenvolvimento e a luta política Quando a ebulição social resultante entrou em contradição com a Pedro Rocha de Oliveira 116 manutenção da ordem econômicopolítica vigente ela precisou ser sufocada através de um golpe militar arquitetado com apoio de importantes fatias da burguesia industrial e desencadeado em 1964 para conter o avanço dos movimentos populares A máquina partidária populista foi dissolvida as organizações de esquerda postas na ilegalidade as lideranças políticas assassinadas os intelectuais exilados etc Parte da intelectualidade e das organizações de esquerda apostou em guerrilhas rurais e urbanas que através do exemplo despertariam para a ação revolucionária uma consciência política popular latente Mas em 1974 a iniciativa de luta armada já havia sido derrotada pelo governo militar Ditadura e mais modernização autoritária No entanto Arantes sublinha que caracteristicamente a interrupção política do populismo a reconfiguração do pacto de classe e também a inviabilização da alternativa socialista não significariam para o governo militar de 196485 a interrupção do processo de modernização Ao contrário a ditadura imprimiu ao processo de industrialização no Brasil uma intensificação jamais vista antes ou desde então Ou seja a história brasileira oferece uma oportunidade privilegiada de perceber como o desenvolvimento das forças produtivas pode ocorrer independentemente do desenvolvimento social e político Nos termos esquemáticos das discussões que reconstruímos acima a ditadura modernizadora brasileira reapresenta o processo de esterilização da dialética da socialização capitalista a solução autoritária da contradição entre forças produtivas e relações de produção Com isso o ideário progressista da esquerda construído em termos das tensões do populismo fica sem objeto e sem perspectivas 4 A consciência teórica brasileira sobre a dialética da modernização Dualismo Arantes debruçase sobre a gênese e o desenvolvimento da perplexidade intelectual do progressismo brasileiro no Sentimento de Dialética 1992 O livro apresenta uma história crítica da consciência teórica brasileira sobre a modernização partindo das apreciações sobre as desvantagens coloniais que na linguagem progressista teriam condenado o país ao atraso e terminando em reflexões sobre o subdesenvolvimento e seu lugar específico dentro do capitalismo como um todo A exposição de Arantes é construída em Dissertatio 53 101143 2021 117 torno do conceito de dualismo Os dualistas originariamente progressistas dos anos 194050 diagnosticavam os problemas da sociedade brasileira em termos de um déficit civilizacional diante das potências econômicas do hemisfério Norte o qual cumprianos superar Na narrativa de Arantes um dos exemplos avant la lettre desse raciocínio foi o eminente abolicionista Joaquim Nabuco que falava do Brasil do século XIX em termos de uma vocação para a modernização atravancada por uma elite escravista estupidamente apegada às relações de trabalho arcaica e cega às vantagens econômicas da modernização capitalista No caso o que faltava era o esclarecimento das classes proprietárias o qual adviria do contato com as ideias modernas estrangeiras Assim por razões culturais o Brasil encontravase no lado desfavorável de um dualismo global de atraso e modernidade No século XX autores ligados ao Partido Comunista Brasileiro PCB então membro da Terceira Internacional também empregavam raciocínios dualistas embora dotados de certa densidade sociológica A agricultura de exportação era herdeira de um feudal arcaísmo colonial escravista O problema esquemático da revolução socialista no Brasil esbarrava assim no problema de que por aqui o capitalismo e portanto uma sociedade civil e um Estado modernos ainda não havia se constituído ou só se havia constituído precariamente Assim o PCB lia a história brasileira em termos de uma dualidade entre de um lado o atraso representado pela atuação socioeconômica da elite rural tecnicamente arcaica e voltada para exportação e subsistência e de outro o progresso desencadeado pela burguesia industrial Esta última teria sido protagonista sempre que a sociedade brasileira deu sinais de modernização os movimentos que culminaram na abolição da escravatura 1888 na Proclamação da República 1889 no nacionalismo republicano militar do início do século XX e até no movimento estético modernista que culminara na Semana de 1922 Essa visão missionária da burguesia nacional entraria em amargo choque com o papel desempenhado por essa burguesia no golpe de 1964 O dualismo também teve penetração nos meios populistas especificamente nos intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB criado em 1955 pelo presidente Juscelino Kubitschek Ignácio Rangel epígono do ISEB publicaria em 1953 a Dualidade básica da economia brasileira que projetaria nacionalmente o modelo da unidade entre o arcaico e o moderno as cidades brasileiras litorâneas tradicionalmente conectadas ao capital internacional seriam capitalistas enquanto o interior permaneceria arcaico Derivações dessa visão bebendo do funcionalismo norteamericano criariam a persistente imagem de um país dividido no qual Pedro Rocha de Oliveira 118 conviveriam tempos históricos diferentes o passado atrasado e o progresso e diante dos quais era necessário escolher Essa ideia dos dois países em um será extraordinariamente longeva foi parte do arcabouço discursivo do movimento de reordenamento monetário e fiscal pelo qual passaria o Brasil sob o governo de Fernando Henrique Cardoso na década de 1990 O percurso intelectual de Cardoso é digno de nota nos 1960 mostrava que tendo experimentado uma incompatibilidade estrutural entre o escravismo e o capitalismo no final do século XIX CARDOSO 1977 a elite brasileira optou pelo desenvolvimento socioeconômico no entanto no século XX estava satisfeita com seu lugar subordinado na divisão internacional do trabalho Idem 1972 a produção agrária voltada para a exportação e envolvendo concentração de capital relativamente baixa Trinta anos depois assumindo a presidência Cardoso adequaria sua visão à necessidade imperiosa de sob a liderança exclusiva e inevitável dessa elite acomodar emergencialmente a economia brasileira ao passo financeirizado do capitalismo internacional Para arrematar intelectuais ligados ao seu partido caracterizariam a oposição a sua política como pensamento arcaizante desconectado das exigências da modernização no capitalismo contemporâneo Crítica do dualismo Na recapitulação sugerida por Arantes o raciocínio dualista sofreu uma inflexão com os autores da Teoria da Dependência ligados à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CEPAL organismo da ONU cuja criação coincide com a alvorada do progressismo brasileiro Sua atenção recairá não tanto sobre a oposição mas sobre a combinação entre desenvolvimento e arcaísmo Celso Furtado formulou um conceito rigoroso de subdesenvolvimento FURTADO 1964 atentando à noção trotskista de desenvolvimento desigual e combinado e explicitando a necessidade econômicosocial que ligava os processos econômicos arcaicos e os modernos em especial o trabalho remunerado e formal e o trabalho informal e de subsistência no campo a tecnologia industrial e as técnicas primitivas de cultivo a produção racionalizada no espaço urbano e os processos econômicos espontâneos no interior Na década de 1970 o dualismo começa a ser ultrapassado por um questionamento das consequências da modernização autoritária sob o governo militar Arantes observa que duas obras paradigmáticas aí são Florestan Fernandes 1976 e Francisco de Oliveira 1972 A industrialização avançava Dissertatio 53 101143 2021 119 mas os traços arcaicos não só não haviam sido superados como se aprofundavam Nas cidades a favelização galopante mostrava o perfil do assalariamento brasileiro No campo a brutal concentração de terra continuava dotando a elite latifundiária de poder de vida e morte sobre uma população economicamente desvalida politicamente impotente e largamente analfabeta O contexto social econômico e político permitia ver que o arcaísmo não era uma espécie de percalço histórico peculiar de um país desajustado mas um traço intrínseco à modernização capitalista e um resultado dela Com isso parte da intelectualidade brasileira se distanciou do dualismo desenvolvimentista do PCB incorporando a ideia marxista do paradoxo do desenvolvimento econômico capitalista e fazendoo não como quem paga tributo a um cânone mas a partir de uma exigência da especificidade dos problemas históricos da realidade brasileira Na leitura de Arantes Fernando Novais 1986 deu um passo ulterior nesse sentido Novais refletiu o paradoxo do desenvolvimento simultaneamente sobre o passado colonial brasileiro e sobre a totalidade mundial do capital Em suas formulações o papel central da economia escravista brasileira no desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu revelava o núcleo de exploração da modernização capitalista Nas palavras do autor enquanto na Europa moderna o desenvolvimento capitalista libertava os produtores diretos da servidão medieval e integravaos como assalariados na nova estrutura de produção que camuflava a exploração do trabalho as economias coloniais periféricas montadas exatamente como alavancas do crescimento do capitalismo e integradas nas suas linhas de força punham a nu essa mesma exploração na sua crueza mais negra NOVAIS p 101 Arantes frisa que a contribuição de Roberto Schwarz é fulcral nesse ponto Schwarz 1997 2000 mostrou que muito antes de alcançar uma formulação teórica plena a consciência dialética da modernização havia recebido formulação literária enquanto princípio organizador do texto de Machado de Assis Esquematicamente em um momento inicial os romances de Machado aliavamse com a mentalidade progressista do final do século XIX Personagens caracteristicamente femininos eram situados no problemático espaço social de pessoas livres porém desprovidas de propriedade na sociedade escravocrata Devido à estrutura econômica e política arcaica da sociedade imperial essas mulheres tinham suas ambições e perspectivas existenciais limitadas e seus talentos desperdiçados em um mercado de trabalho inexistente Mas a narrativa machadiana fazia com que sua situação de dependência financeira e social entrasse em choque com seu valor moral impedindoas de se beneficiarem da cultura de favorecimento que Pedro Rocha de Oliveira 120 regia as relações sociais prémodernas A digna obstinação e valente resignação das personagens obrigava os poderosos com os quais conviviam a enxergarem a indecência intrínseca ao seu próprio privilégio permitindolhes a oportunidade de se reformarem moralmente Tal reforma subjetiva dos senhores acabava abrindo o espaço para um engajamento civilizado com a vida por parte das mulheres antes vergonhosamente subjugadas Tratase portanto de uma literatura inserida num programa de transformação cultural da elite o ideário é o mesmo que alimentava o discurso esclarecedor abolicionista Numa segunda fase inaugurada pelo Memórias Póstumas de Brás Cubas 1881 Machado abandona o projeto de reforma intelectual e moral da elite Aí o tema central da fase anterior a passagem do arcaísmo hierárquico à civilização moderna reaparece como uma prerrogativa dos poderosos é ao privilégio econômico e social que remonta a capacidade da elite de optar entre pautar sua atividade pela norma civilizada ou não Assim aquela passagem é ela mesma uma espécie de artigo de luxo O contato externo e arbitrário com o padrão social moderno marca tanto a relação entre a elite e a alta cultura que ela consome e ostenta como se vê nas constantes citações a um tempo doutas e disparatadas do personagem que dá nome à supracitada obra quanto entre a atividade econômica na periferia do capitalismo e aquela no centro Assim por exemplo o escravismo é praticado para permitir acúmulo de riqueza através da venda de mercadorias e portanto precisa operar contabilmente dentro da racionalidade capitalista Por isso o senhor de escravos pode evocar o liberalismo de Adam Smith para atacar a política imperial abolicionista sendo que não é possível predicar a bizarra contradição contida aí a alguma suposta falta de coerência intelectual por parte dos latifundiários Ao contrário sua adesão conveniente à norma civilizada no caso o discurso econômico moderno depreendese de uma elasticidade intrínseca à modernidade capitalista Assim a inicialmente anômala combinação brasileira entre o moderno e o arcaico consiste numa expressão da fratura constitutiva da normalidade moderna metropolitana Na síntese de Arantes como a atualidade mundial expunha seus segredos na periferia do capital que não era resíduo mas parte integrante de uma evolução de conjunto por assim dizer constituíamos uma figura viva da Dialética da Ilustração 1992 p 967 Com isso a discussão da consciência teórica sobre modernização capitalista na periferia deságua na compreensão da unidade entre o centro e a periferia A modernização deixa de parecer uma alternativa às relações sociais arcaicas afinal depende delas e as reproduz Se ademais ambos os momentos estão conectados internacionalmente na realidade total do capitalismo mundial Dissertatio 53 101143 2021 121 então a modernização da periferia é a única modernização que há e ela é ao mesmo tempo uma modernização precária e uma modernização plena Essa modernidade abortada ou consumada ARANTES 2004 p 66 é tema recorrente em toda a obra de Arantes 5 A brasilianização do mundo O que ocupa Arantes portanto é uma dissociação histórica entre o programa da modernização burguesa e a dialética que permitiria por um lado o pacto de classe e a consequente identidade entre desenvolvimento econômico e abolição da alienação social e por outro lado a interrupção revolucionária da socialização capitalista esquematicamente a adequação das relações de produção às forças produtivas verdadeiramente modernas Essa adequação mútua entre os dois termos da fórmula marxianaengelsiana é o tema de fundo da leitura de Arantes a respeito do capitalismo contemporâneo a começar por suas discussões em torno do fenômeno da globalização neoliberal ARANTES 2004 Neoliberalismo brasileiro Arantes toma essas conceitos como chaves para referirse a um quadro geral de expansão do mercado financeiro internacional nos anos 1990 e da consequência adequação política monetária e fiscal das economias nacionais ao fluxo dos capitais especulativos No Brasil elites nacionais exerceram pressão política para conformar a administração pública aos interesses do capital transnacional do qual visavam tornarse operadoras locais O resultado foi uma imagem eloquente da modernização contemporânea realizada à despeito do pacto de classe com as massas Em seu cerne estavam as privatizações de empresas públicas da infraestrutura produtiva e energética e da circulação e comunicações as quais tinham sua origem remota nos projetos de modernização autoritária do varguismo O discurso da redução da máquina estatal que até hoje deixa incólumes os aparatos de vigilância e repressão e também de controle financeiro também teria efeitos sobre serviços públicos tais como a educação e a saúde desde sempre fundamentais no Brasil para a manutenção do nível de vida de uma população amplamente subempregada e empobrecida De modo geral portanto tratouse de um projeto de aprofundamento da desigualdade socioeconômica Discurso norteamericano da brasilianização Pedro Rocha de Oliveira 122 Simultaneamente contudo Arantes identifica o surgimento em pleno Norte desenvolvido de um discurso teórico que falava da terceiromundialização ou da brasilianização do mundo LUTTWAK 1993 LIND 1995 GRAY 1998 O fenômeno seria caracterizado por uma reversão do aburguesamento do proletariado que havia tido lugar na Europa e nos EUA do pósguerra a desindustrialização e concomitante financeirização da economia a expansão da pobreza e aumento do abismo entre ricos e pobres A imobilidade socioeconômica e a resultante estratificação social combinadas ao encarceramento em massa explicitava uma dessolidarização nacional nos termos empregados por Richard Rorty 1998 e se não um esgotamento ao menos uma interrupção do paralelo entre acumulação capitalista e desenvolvimento social Arantes enxerga aí o surgimento no centro do capitalismo de uma consciência oblíqua da modernidade abortada a qual ecoa de forma cifrada o tema central do discurso periférico antidualista que havia surgido no Brasil da década de 1970 Ao mesmo tempo a identificação de uma dessolidarização nacional nos países centrais impacta o cerne do pensamento progressista periférico que imaginava nos termos do populismo uma coalização nacional para o desenvolvimento que colocaria o Brasil nos trilhos do progresso Europeu e Norteamericano no limite a regulação keynesiana dos sistemas econômicos nacionais que aparece entretanto abortada O colapso do horizonte civilizatório burguês Ademais Arantes salienta os impactos mais amplos da evocação da categoria da nação por Rorty e a despeito dele Afinal a unidade nacional era um dos baluartes do pensamento social burguês O pacto de classes de que falava o universalismo da filosofia moderna tinha afinal sua origem histórica na unidade política dos estratos inferiores em sua guerra contra a ordem social rígida do Antigo Regime visando o controle do Estado Moderno nacional A própria anonimidade dos raciocínios universais que estão no fundamento da racionalidade moderna dependem de uma crença subjacente na comunidade de destino contida na ideia de nação Se os fenômenos predicados à globalização e ao neoliberalismo conspiram para uma fragmentação da unidade nacional eles removem nada mais nada menos do que a base real da racionalidade moderna de modo que o universalismo sofre então uma segunda morte Em outros termos Arantes exibe sob mais um ângulo como foram historicamente revogadas as tensões internas da modernidade que produziram Dissertatio 53 101143 2021 123 de um lado através do ressentimento intelectual uma tradição de crítica à alienação e de outro lado uma promessa civilizatória As consequências disso para a teoria social aparecem nos ensaios às vezes satíricos dedicados à intelectualidade brasileira que ligouse ao projeto neoliberal do governo de F H Cardoso Aí Arantes ataca a mesquinhez que se apossa do pensamento que nessas condições persiste na afirmação de sua afinidade com a modernização capitalista Desprovidos de qualquer perspectiva que extrapole a própria governabilidade esses ideólogos sem ideologia renunciam as promessas clássicas do desenvolvimentismo ao mesmo tempo saudando a modernização da economia e pretendendo encarar de olhos abertos a catástrofe social que as privatizações retração de direitos trabalhistas e flexibilização financeira acarretariam bem na linha do que o próprio Cardoso faria quando numa entrevista à Folha de São Paulo afirmou sem pudores o caráter excludente do programa que não obstante era sua missão aplicar2 Esse realismo cínico para denominação do qual Arantes pega emprestado a expressão pensamento único ARANTES 2004 p 115 torna dispensável a crítica da ideologia em sua forma tradicional uma vez que admite como as economias nacionais estão mesmo nas mãos dos investidores internacionais e o que se faz necessário é tornar competitivas as condições locais para sua operação independentemente do custo afinal ruim com eles pior sem eles Consequências para o imaginário socialista O tecnicismo neoliberal consiste nesse sentido num sintoma do becosemsaída em que se encontra a racionalidade burguesa Ao mesmo tempo o caráter das transformações que colocaram essa última nessa posição é amplo o bastante para atingir o ideário socialista que tradicionalmente procurava fazerlhe oposição partindo de seu interior ficou desprovido de seu trampolim dialético É importante recordar que as políticas neoliberais tinham em seu centro a exemplo do thatcherismo a necessidade de quebrar politicamente o movimento sindical o qual conforme observa Arantes vinha numa notável onda de ascenso desde a explosão europeia do 1968 Tal movimento alimentavase da retração econômica quando do encerramento da reconstrução europeia do pósguerra como também de uma frustração com a política de conciliação de classes sugerida pelos mesmos partidos de esquerda que se comportavam de maneira ambígua diante dos rumos autoritários do socialismo soviético Em meio a crises de dívida e ao turbilhão econômico dos 2 FREIRE V T FHC Exclusivo In Folha de São Paulo Caderno Mais 13 de outubro de 1996 Pedro Rocha de Oliveira 124 choques do petróleo e do dólar a política neoliberal impingiu à esquerda mundial paradigmáticas derrotas políticas coroadas pela sucessão de golpes militares na América Latina Um dos pontos de partida de Arantes para refletir sobre essas derrotas é um argumento que partindo de Singer e Machado 1996 busca reconstruir a consciência teórica sobre as limitações internas da política socialista Em resumo o programa socialista modernizador interpretara a alienação na sociedade burguesa parcialmente em termos de uma anarquia a ser superada por uma racionalização econômica análoga àquela que a centralização monopolista permitia ao capitalista a partir do fim do século XIX Assim o imaginário socialista aparece em sua dependência para com o momento positivo do pensamento burguês o desenvolvimento das forças produtivas Isso ia de encontro à metodologia política em dois passos WALLERSTEIN 2004 segundo a qual a implementação do socialismo era o segundo e o primeiro consistia em tomar o aparelho do Estado Enquanto dependia da técnica e da forma política burguesas o ideário socialista é afetado pelo seu esgotamento histórico Com isso escrevendo na virada dos anos 1990 para 2000 Arantes descreve a modernização como uma questão meramente técnica tendo sido historicamente revogada ou pelo menos adiada a possibilidade de bifurcação que foi concretamente vislumbrada em momentos paradigmáticos da história da socialização capitalista Nas esferas onde circulava a ideia do desenvolvimento econômico nacional passa a vigorar a ideologia neoliberal que se limita a pregar a funcionalização das economias nacionais para a valorização financeira do capital transnacional de bom grado exibindo o caráter ameaçador e destrutivo do capitalismo A provocativa ideia marxiana de que o capital seria a acumulação como fim em si mesma deixa de ser particular à crítica da economia política tornandose lema da economia oficial 6 Administração social armada Um dos caminhos tomados por Arantes 2007 para sublinhar a especificidade de uma modernização colapsada que segue a pleno vapor é atentando para certas alterações na prática contemporânea da guerra paradigmaticamente visíveis nas guerras preventivas protagonizadas pelos EUA a partir da década de 1990 Por um lado se a guerra historicamente desempenha um papel fundamental na compreensão do capitalismo parece a Arantes notável que a ocupação militar e a destruição classicamente funcionais como meios para o controle de economias nacionais são convertidas com a Dissertatio 53 101143 2021 125 falência da perspectiva do desenvolvimento nacional na finalidade mesma da guerra As operações destroem países inteiros e ato contínuo os submetem a um regime marcial tendencialmente permanente onde a combinação entre ocupação militar e reconstrução garante a distribuição de monopólios econômicos que redundam numa titânica absorção de recursos públicos por meia dúzia de corporações Bombas inteligentes intelectuais estúpidos Simultaneamente uma intelectualidade autointitulada cosmopolita embora há tempos tornada obsoleta pelo caráter autocentrado da modernização resolve demonstrar um entusiasmo bizarro pelo fato de que as guerras preventivas assumem a forma de um exercício de vontade por parte de seus agentes Esse sentido volitivo deriva do contraste com o período anterior durante a Guerra Fria o arsenal nuclear tinha a característica fundamental de não ser utilizável o primeiro ato de guerra seria o último Mas o equipamento bélico de alta tecnologia desenvolvido desde então é ao contrário altamente utilizável seu caráter cirúrgico tende a diminuir consideravelmente as baixas proporcionais no lado dos operadores da guerra Com isso é possível tomar a decisão de fazer guerra e a própria ideia de uma guerra preventiva está imbuída desse caráter decisional Contudo em vista das atuais condições políticas e econômicas elencadas essa decisão não tem nada em que basearse exceto considerações meramente contábeis como ademais todo o resto do processo de modernização colapsado Não obstante de modo a preservarse da consciência de sua própria obsolescência inventando um sentido histórico transcendente para brutal operação econômica autocentrada a dita intelectualidade saudou eloquentemente a reaparição da decisão de guerrear como renascimento do ato político nacional É assim que J Habermas 1999 M Walzer 1992 N Bobbio 1991 e A Honneth 1997 entre outros respectivamente aclamaram a racionalidade cosmopolita a nobreza a justiça e a moralidade da Primeira Guerra do Golfo Guerra justa e assimetria militar Por outro lado atentando para a dialética da doutrina da guerra justa Arantes salienta sua adequação oblíqua para descrever a situação contemporânea De acordo com a formulação original de Agostinho na Cidade de Deus o caráter justo da guerra entre os príncipes derivava do arbítrio moral Pedro Rocha de Oliveira 126 da Igreja Católica Na medida que transcendia as fronteiras políticas humanas estando portanto supostamente distante de seus interesses materiais a Igreja tinha a superioridade moral necessária para arbitrar a justiça mundana Essa superioridade moral encontra um bizarro paralelo laico na assimetria econômica e militar dos EUA perante o resto do mundo Essa assimetria exime as coalizões militares de que os EUA participam de prestarem contas sobre suas atividades É uma característica constitutiva do maior aparato bélico do mundo não ter que dar satisfações a ninguém visto não poder ser obrigado a respeitar qualquer autoridade Assimetria e exceção Ora Arantes percebe que a indiferença prática a instâncias julgadoras da moralidade e da justiça está no centro da teoria política da exceção de Carl Schmitt 1998 Schmitt define a soberania e a exceção em termos uma da outra soberano é quem decide sobre a exceção É preciso lembrar que o dispositivo jurídico da exceção o reconhecimento legal da possibilidade do governo agir fora da lei para garantir a preservação da ordem legal tem sua origem na consolidação do Estado francês durante o processo revolucionário especificamente a necessidade de garantir estabilidade política através da interrupção militar do levante popular simultaneamente organizando a mobilização para a resistência às invasões estrangeiras O dispositivo será evocado também na Revolução de Fevereiro de 1848 para viabilizar a resposta estatal à revolta operária que matou 5000 pessoas deportou sem julgamento 4000 e prendeu 15000 Reformulado em 1849 será a base do golpe de dezembro de 1851 e embutido na constituição de Weimer o fundamento jurídico da implantação do Terceiro Reich A exceção será o atributo específico do Estado em seu exercício constitutivo e constitucional de assimetria ou seja quando a falência do pacto de classes torna o monopólio estatal da violência o fato político mais significativo para a manutenção da administração social a nível nacional A administração social armada do território e a exceção permanente Assim também é importante levar em conta a dimensão socioeconômica da assimetria envolvida nas guerras justas e a alteração na divisão internacional do trabalho que elas anunciam Os alvos das operações militares são periferias comparativamente subdesenvolvidas que ao invés de serem incorporadas ao circuito internacional de acumulação através da Dissertatio 53 101143 2021 127 manutenção da dependência econômica como ocorria em períodos anteriores precisam ter sua estrutura social e produtiva destruídas para funcionar como fontes supridoras ALTVATER 1997 a preço suficientemente baixo Notavelmente no caso do Iraque e da Líbia tratamse de sociedades em que a estrutura produtiva funcionava no registro da nação dessolidarizada ou seja era mantida por aparatos estatais militarizados Nesses casos é como se a imperiosa necessidade de baixar o custo da base econômica do sistema petroleocêntrico precisasse abrir mão da mediação desses aparatos nacionais Em outros casos ao contrário a incorporação no circuito internacional de valorização financeira depende dessa mediação contudo também funcionando no registro do pacto social colapsado e portanto da violência sistêmica É o caso de periferias financeirizadas como o Brasil onde a modernização neoliberal combina o desmonte do equipamento estatal de serviço social a reestruturação das instituições federais de direção financeira visando adequação às exigências do capital internacional no caso a autonomia política e administrativa do Banco Central e a militarização incremental da polícia Nesse sentido dáse uma bizarra ressignificação prática da categoria burguesa clássica do Estado nacional Vedado o caminho da modernização em condições de proporcionar o pacto social em torno do desenvolvimento civilizacional e também vedado provisoriamente no mínimo o caminho de rompimento com a acumulação capitalista a ideia de nação convertese de um suporte para a imaginação do progresso político em um conceito da administração territorial com fins a viabilizar a exploração econômica local mediante o controle militar e a vigilância E o Estado diante da retração de direitos e da prestação de serviços públicos reduzse ao coordenador primordial daquela administração Essa gestão estratégica doméstica do território tem ademais um desdobramento transnacional na figura das guerras cosmopolitas ZOLO 1997 Assim sob a ótica do Estado como aparato de administração social armada do território a manutenção da explorabilidade econômica necessariamente se dá em parte através de uma espécie de guerra permanente contra as periferias contra uma população cujo numerário não é todo diretamente necessário à atividade econômica e que portanto se não é eliminável em sua totalidade é composta por indivíduos virtualmente matáveis Em paralelo o exército dos EUA funcionando como uma espécie de cavalaria global para citar a formulação de um think thank neoconservador AEI 2003 também se coloca diante de um espaço global de difícil regionalização em que Estados falidos desde o ponto de vista da economia de espoliação mineral e da valorização financeira os interstícios da Pedro Rocha de Oliveira 128 globalização para citar Neil Smith 2003 aparecem como múltiplas periferias para as populações das quais a modernização redentora já não é uma opção 7 O capitalismo na temporalidade estacionada Em O Novo Tempo do Mundo seu livro mais recente Arantes 2014 condensa as consequências dos argumentos que desenvolve nas duas obras anteriores focando sua atenção na maneira como retroagem sobre as categorias clássicas do pensamento e da organização social burgueses em especial a temporalidade e o trabalho Modernidade e temporalidade de elite Um dos traços fundacionais do ideário burguês é a consciência de uma dimensão ampla da atividade social humana a qual começou a articularse na época da derrubada do Antigo Regime e foi destilada no conceito de modernidade na leitura de Koselleck 2004 de que Arantes se apropria neue Zeit o tempo da novidade histórica O termo expressava uma inauguração da conexão entre aquela dimensão ampla e a passagem do tempo e teria uma expressão libertária sob a forma da imagem universalista da humanidade tomando as rédeas de seu próprio destino Porém enraizada concretamente na capacidade administrativa do Estado Moderno sua capacidade real de centralizar a intervenção sociopolítica na vida de milhões de pessoas tais imagens estavam conectadas com a atividade de uma elite minúscula para quem em contraste o palco de operações projetado eram territórios comparativamente gigantescos e virtualmente o mundo como um todo O veículo principal daquela atividade foi desde o início a acumulação capitalista seja sob a forma das operações industriais que desdobrandose em complexas cadeias produtivas desencadeavam uma brutal transformação da forma de vida de populações milenarmente enraizada em práticas locais e agrárias até através da colonização a imposição da lógica comercial sobre povos distantes e seu extermínio e escravização para a funcionalização econômica do território Universalismo progresso e normalização da mudança social Nesse sentido a descoberta moderna da temporalidade enquanto história mundial consistia na fundação conflitiva de um lado da temporalidade intencional da elite que através do aparato do Estado Moderno consolidava e Dissertatio 53 101143 2021 129 expandia a acumulação capitalista e de outro de uma temporalidade estacionada e tediosa de alcance exclusivamente privado porém rigidamente e necessariamente controlada a imposição do trabalho O universalismo burguês e a sua imagem de uma sociedade coesa representava a possibilidade de unificar essas duas temporalidades numa experiência de construção histórica coletiva o progresso social Na medida que as primeiras instituições políticas burguesas em tese permitiam a participação da plebe no processo político e que essa possibilidade de participação transbordou limites geográficos e de classe Arantes menciona a rebelião negra de São Domingos em 1791 a imagem do progresso vinha representar a ação históricas nos termos moralizantes do trabalho apresentando a possibilidade de uma normalização da mudança social que prescindisse de um ruptura revolucionária Regimes de guerra civil normal Contudo na descrição de Arantes esse regime de mudança social normal é a outra face do pacto de classes rompido aqui expresso em termos das temporalidades divergentes Assim seu complemento histórico é uma sucessão de regimes de opressão popular ou de guerra civil declarada pelo estado contra as populações paradigmaticamente definidos a partir do extermínio colonial da formalização da exceção como recurso das elites econômicopolíticas da nova administração social imperialista do final do século XIX AGAMBEN 2005 ARENDT 1968 do regime de exceção nacionalsocialista NEUMAN 2009 DEJOURS 1998 TORRENTE 2002 e do Estado penal contemporâneo WACQUANT 2009 A argumentação de Arantes se desenvolve num vai e vem em torno desses paradigmas Um dos ramos centrais dessa argumentação articula a desestruturação da nação como espaço do pacto social à longa luta das elites políticoeconômicas contra o movimento de trabalhadores a partir da segunda metade do 1800 o surgimento do nacionalismo beligerante instrumentalizado pela guerra total de 1914 e as medidas domésticas de mobilização e emergência que durante o conflito ampliaram os poderes dos governos aplicando na Europa técnicas de administração social que haviam sido desenvolvidos durante a experiência colonial do século anterior No Reino Unido por exemplo os poderes de emergência atribuídos ao governo durante a guerra foram prolongados na década de 1920 tornando legal a resposta estatal violenta à organização sindical Em meio à crise social e econômica que sucedeu o Primeira Guerra a Revolução Russa e as reverberações na Alemanha e na Espanha a dimensão civil do conflito bélico foi prolongada e o Pedro Rocha de Oliveira 130 NacionalSocialismo deulhe forma estável Com isso a discussão empreendida em Extinção ARANTES 2007 é revisitada numa perspectiva histórica não sistemática mas de longo fôlego O trabalho subjetivo da exceção No regime nazista Arantes vai buscar uma caracterização paradigmática da experiência social do trabalho não tanto na escravidão dos campos de concentração mas na forma da submissão racional daqueles que confrontados com a ameaça do extermínio tornavamse colaboradores do regime A lógica desse ato a um só turno voluntário e involuntário visto que o exercício da vontade é posto em cheque pela possibilidade palpável de aniquilação é comensurável com aquela que através da expansão violenta da acumulação capitalista impõe historicamente a relação contratual da venda da força de trabalho como opção à incapacidade de participar dos processos de troca dos quais depende a manutenção da vida A imersão das pessoas comuns na temporalidade do trabalho constitui assim reação a uma ameaça Sob o nacionalsocialismo o conteúdo repetitivo massacrante e tedioso daquela temporalidade elevado a potências impensáveis devido ao conteúdo repulsivo do trabalho sujo do extermínio exige ademais um tipo de engajamento subjetivo que através do desenvolvimento pessoal de macetes nãoprotocolares possa encurtar a duração das tarefas O efeito colateral desse investimento pessoal de energia criativa é evidentemente o aumento da eficiência O exemplo extremo do que está em jogo aqui é a técnica de tiro na cabeça desenvolvida pelos soldados do Terceiro Reich de modo a evitar o respingamento de sangue e o repulsivo contorcimento da vítima e de quebra o gasto ulterior de munição DEJOURS 1998 Contudo uma vez que a repulsão e a violência são tratos constitutivos do trabalho para a maior parte da humanidade a lógica do improviso e do macete extrapola os exemplos extremos e pode ser estendida para uma caracterização quotidiana do trabalho Isso tem implicações sobre o problema da exceção como traço fundamental da operação estatal na contemporaneidade A burocracia é expressão da modernização em sua dimensão de desenvolvimento técnico da administração social racional mas por outro lado o trabalho da burocracia consiste na apoteose da repetição tediosa e protocolar nesse sentido o trabalho burocrático é a quintessência do trabalho Na administração pública a improvisação que resulta do investimento subjetivo visando a contração da temporalidade massacrante corresponde à quebra do protocolo Em escalas Dissertatio 53 101143 2021 131 territoriais amplas em que decisões administrativas de impacto gigantesco se concentram nas mãos de uns poucos burocratas e especialmente na dimensão militar e policial da administração social a quebra de protocolo se converte na arbitrariedade improvisada dos comandos de exceção É importante notar que essa arbitrariedade é consequência da formalização moderna do trabalho na burocracia e não seu avesso pré moderna Ela é ao mesmo tempo a marca essencial do aparato estatal superdesenvolvido do Nacional Socialismo NEUMAN 2009 mas também do aparato estatal desenvolvido tout court Quanto mais racionalizado o Estado mais poderosos e ao mesmo tempo mais arbitrários os burocratas e também os policiais os operadores de drones os funcionários do sistema carcerário o que imprime um nuance sinistro à imagem weberiana da jaula de ferro Nesse sentido para além da incorporação do regime formal do estado de exceção a modernização normaliza uma experiência social de medidas de exceção O Estado Penal Depois da Segunda Guerra o investimento estatal pesado na reconstrução europeia e na Guerra Fria sustentou o pacto de classes keynesiano A mobilização total e os gastos governamentais tornaram possível a combinação da prontidão militar ao sistema bemestar Marcuse 1966 mas esse esquema teve curta duração como vimos acima na discussão do neoliberalismo Arantes analisa o desmonte do sistema de bemestar pelas lentes do argumento de Loïc Wacquant 2009 que narra a transformação do welfare no prisonfare No período keynesiano as populações empobrecidas nos países centrais eram o alvo dos serviços de assistência que deveriam conserválas aptas para o trabalho Eventualmente eram submetidas a um sistema carcerário que historicamente as imbuía com a disciplina da obediência fundamental à participação eficiente no mundo do trabalho As transformações políticas e econômicas a partir da década de 1970 na Europa e nos EUA culminam na altura dos anos 1990 num quadro de retração de direitos trabalhistas e sociais precarização do trabalho e depressão do mercado de trabalho As populações empobrecidas passam a ser administradas como excedentes numéricos que por um lado têm o acesso à assistência social condicionado à submissão a condições de trabalho aviltantes e por outro são ameaçadas por um sistema punitivo puramente destrutivo Wacquant 2009 demonstra que os princípios de organização interna Pedro Rocha de Oliveira 132 desse sistema punitivo visam crescentemente a produção do sofrimento o que no limite contribui para a destruição da capacidade subjetiva para o trabalho Por outro lado a expansão dos mecanismos de controle e vigilância ligados a uma miríade de formas de liberdade condicional atreladas às redes públicas de informações sobre condenações avidamente consultadas pelos empregadores tornam partes crescentes dessa populações virtualmente inempregáveis Isso reverbera uma faceta da administração social militarizada dos países periféricos onde sistemas carcerários superlotados e altos índices de mortandade por ação policial expressam com clareza os limites da funcionalização econômica da população pelo capitalismo contemporâneo bem como o perfil de classe da ação governamental Decomposição sem superação De fato um dos últimos pontos tratados por Arantes 2014 é o caráter abertamente ilegítimo do governo pelas elites no capitalismo contemporâneo Afora círculos acadêmicos restritos a falação sobre democracia vem generalizandose uma experiência social da violência como componente normal do funcionamento das sociedades ocidentais Essa violência tem um lado policial e outro econômico as estatísticas divulgam continuamente o crescimento da concentração de riqueza e da desigualdade socioeconômica O complemento disso é uma rotinização do protesto social números para os primeiros anos do século XXI falam de uma média de dezenas de carros queimados por noite nas periferias parisienses 2014 p 223 Para falar nos termos dos fundamentos ideológicos da sociedade burguesa clássica aquela rotinização por um lado reflete a falência do progresso social e do pacto de classes que seria capaz de manter a coesão social Ao mesmo tempo justamente essa mesma falência como vimos autonomiza a manutenção da acumulação capitalista dissociandoa das promessas civilizatórias que no século XIX pareciam estar contidas no desenvolvimento técnico das formas de produzir e administrar Eximida de sua relação com as pessoas comuns a dimensão histórica da vida sob o capitalismo fica resumida a um privilégio das elites o qual entretanto não pode nem precisa ser exercido na forma de uma transformação consciente e fundamental da realidade social apenas de sua intensificação exponencial Nesse mundo a projeção racional de atividade de longo prazo e com alcance transcontinental será experimentada pela maioria das pessoas como obra de outrem e como ameaça é assim que acordos de engravatados lobbies de empresas de energia construção e logística e modelos matemáticos Dissertatio 53 101143 2021 133 sobre flutuações do mercado orientam as coalizões militares que transformam países inteiros em campos permanentes de exercícios de gastos estatais com artefatos de destruição e reconstrução Do lado das pessoas comuns a temporalidade histórica recusase a ser expressa nos termos do existente As amarras estreitas impostas a qualquer administração pública pelo endividamento cíclico infinito resumem os problemas do controle do Estado a meras questões contábeis O discurso político realista é eximido de qualquer transcendência pelo monstruoso impasse imposto por um aparato de produção obviamente destrutivo do qual não obstante hoje depende fundamentalmente a vida humana em sua forma corrente Ao mesmo tempo essa dependência caçoa do caráter vão de toda idealização política incapaz de encontrar na reprodução do capitalismo um trampolim para sua abolição Nesse quadro a obra de Arantes contribui para o desrecalque do enraizamento histórico e ideológico dessa falta de perspectivas a demonstração de que não foi algum percalço mas consequência da consistência específica da modernização Epílogo A filosofia a despeito de si mesma um departamento francês em ultramar Um item tipicamente presente nos inventários dos esforços de modernização enraizado nas formulações originárias do iluminismo francês é o projeto de transformação social pela educação Figuras desse projeto são abordados por Arantes em diversos momentos de sua obra e em nossa leitura consistem na preocupação central do Um departamento francês de ultramar ARANTES 1994 No que se segue procuraremos reconstruir uma determinada linha de raciocínio que percorre esse livro peculiar Como vimos nas seções 1 e 2 acima Arantes procura mostrar que o pensamento filosófico moderno com ambições mais grandiosas o idealismo alemão e derivados teve sua gênese e seu ocaso atrelados à brecha histórica que abrindose no desenvolvimento capitalista primevo pareceu por um breve momento apontar para a superação de sua violência socioeconômica intrínseca Também vimos por outro lado que o colapso daquele horizonte de expectativas ao mesmo tempo que revogou a relevância política e social imediata da filosofia também condicionoua a seu despretensioso lugar de disciplina acadêmica ou seja a uma sobrevida dissociada do ressentimento e das aspirações de outrora Dessa sobrevida participa ainda hoje uma intelectualidade insistente que se mantém viva para empregar a sentença de Pedro Rocha de Oliveira 134 Theodor Adorno por piedade desmazelo e cálculo ADORNO 1993 p 57 e que ocasionalmente não deixou de tentar levar a sério sem sorte porque num tempo errado o papel central que sua disciplina reclamara um dia para a construção da sociedade O capítulo paulista dessa intelectualidade em tensão mutuamente esclarecedora com sua contraparte francesa é o assunto de Arantes no Um departamento francês de ultramar Contextualizado no problema central que nas páginas precedentes procuramos atribuir à obra de Arantes esse livro uma espécie de história do departamento de filosofia da USP não discute apenas um capítulo da formação intelectual brasileira mas consiste numa análise da manutenção de uma relação entre o pensamento filosófico e a formação nacional Tal leitura faz sentido parecenos na medida que o período que baliza a história acadêmica contada por Arantes está marcado por três momentos especialmente significativos da história do capitalismo brasileiro o desencadeamento pelo governo de Getúlio Vargas da modernização na década de 1930 quando o departamento é fundado o populismo e a radicalização política nos anos 1950 e o regime militar instaurado pelo golpe de 1964 Esses três momentos dão ocasião para pensar aquele que conforme vimos é um motivo particularmente recorrente e longevo da imaginação política brasileira a ideia de superação tardia do subdesenvolvimento Essa ideia funcionou como catalisadora dos interesses políticos na sociedade brasileira nos períodos em questão e depois deles Desde o ponto de vista da prismática estratégia argumentativa de Arantes contudo a atenção sobre a maneira como a ideia da superação do subdesenvolvimento inspirou a atividade dos profissionais do pensamento não diz respeito apenas à relação pitoresca entre filosofia e sociedade na periferia do capitalismo mas tange o problema mais geral das condições históricas da racionalidade da sociedade capitalista Para começar é importante retomar o quadro sociológico que esboçamos acima para caracterizar o governo autoritário de Getúlio Vargas Devido às especificidades do crescimento econômico do período a elite educada paulista mantevese fundamentalmente isolada mesmo enquanto beneficiavase da expansão econômica posicionada que estava entre um governo fechado e uma população empobrecida e largamente analfabeta Ao mesmo tempo que estava condicionada a esse duplo isolamento sua função social objetiva de empreendedores e a fundação da nova instituição de ensino a USP colocava essa elite em trilhos esquematicamente análogos aos que haviam sido percorridos pelos intelectuais alemães na virada do 1700 para o 1800 Desenvolvendose tecnicamente e culturalmente mas em grande medida impedida politicamente de canalizar esses ganhos do espírito na administração social a atividade intelectual da elite assume essencialmente a Dissertatio 53 101143 2021 135 forma de um solilóquio palestrante exercido em rituais de fruição e exibição da cultura adquirida Tais rituais marcavam sobretudo a experiência acadêmica na faculdade de direito onde o privilégio cultural juntavase ao status de classe atrelado ao poder do jurista mas era emulado mesmo por figuras bem intencionadas do departamento de filosofia Nesse sentido na década de 1940 a experiência universitária não era sobretudo científica mas proporcionava a seus participantes vivências de socialização culta O público oligárquico e pequeno burguês procurava naqueles cursos uma espécie de alforria ARANTES 1994 p 69 Esse aspecto vivencial tem forte presença no relato de Antonio Candido resgatado por nosso autor a Universidade de São Paulo dos primeiros tempos com suas missões estrangeiras e o seu êxito mundano era um luxo da oligarquia e se prestava à piada De fato em nosso tempo de estudantes havia matinés dançantes no Hotel Esplanada de que participavam alunos e professores estrangeiros e todo mundo ia tomar chá na Confeitaria Vienense CANDIDO Apud ARANTES 1994 p 70 Nas palavras de Gilda de Mello e Souza tudo isso nos envolvia numa doce miragem civilizada apud ARANTES 1994 p 71 Ora o conteúdo especificamente intelectual dessa vivência universitária estava objetivamente marcado por uma certa frivolidade as descrições elencadas por nosso autor mostram uma mistura de fascinação local pelas sofisticações acadêmicas produzidas nas metrópoles espirituais europeias de um lado e um apetite apressado por assimilar suas produção mais recentes por outro Nessa mistura o leitor familiarizado com a obra de Roberto Schwarz não demora em reconhecer ecos da figura machadiana do Brás Cubas Sensível à sua raiz sociológica Arantes não obstante interpretará essa frivolidade num sentido parcialmente positivo na medida que aponta nela a fonte de uma salutar desconfiança frente à produção acadêmica autocentrada tecnificada e a partir dessa desconfiança a origem remota do ensaísmo frutífero de seu amigo Bento Prado Júnior Nossas preocupações entretanto não nos colocam no rumo dessa linha de raciocínio mas exigem que nos voltemos para a maneira como a consciência progressista refletiria os primeiros esforços de modernização intelectual paulistana Na medida em que estava enraizado no quadro de privilégio econômicosocial tal atividade intelectual rescindia ao que a ideologia progressista chamaria de atraso a defasagem do Brasil frente às nações Pedro Rocha de Oliveira 136 capitalistas industrializadas creditável a seu tragicamente persistente passado colonial agroexportador Desde a perspectiva progressista a modernização econômica e social precisava incluir um projeto de combate ao atraso cultural através de uma honestidade intelectual a ser buscada aplicandose um raciocínio significativamente análogo ao que predominava no campo político econômico da mesma forma que se tratava de importar a tecnologia que traria junto com ela o sucesso econômico e civilizacional também se tratava de importar o modelo educacional dos países desenvolvidos Isso incluiu desde estruturas acadêmicas e conteúdos disciplinares até profissionais de ensino Olhando obliquamente para a dimensão cultural do progressismo fica claro o quão intimamente implicados estavam a modernização e a dependência econômica e cultural Para efeitos de nossa exposição o antídoto paradigmático buscado nos píncaros da filosofia profissional francesa para combater a volubilidade intelectual da elite letrada foi a obra de Martial Gueroult Segundo Arantes o que a mentalidade filosófica universitária progressista buscou aí foi a defesa do conhecimento sólido da história da filosofia como ferramenta para colocar num encadeamento necessário a coleção de sistemas intelectuais que floresciam entre nós sob o signo vão do modismo Uma vez ordenados os fragmentos de pensamento transplantados seriam ademais resgatados em sua devida densidade conceitual pelo procedimento também gueroultiano da leitura imanente a análise da estrutura argumentativa dos sistemas filosóficos em sua especificidade filosófica ou seja naquilo que os separava da linguagem ordinária O que a obra de Gueroult oferecia portanto era um método de produção de seriedade intelectual É claro que tal método estava baseado em questões filosóficas consideravelmente mais antigas que a obra do próprio Gueroult como sugere Arantes 1994 p 20 remonta sobretudo à famosa observação kantiana feita na Crítica da Razão Pura no Capítulo 3 da seção sobre a Doutrina Transcendental do Método de que não é possível aprender filosofia é possível fazer uma história da filosofia e no máximo aprender a filosofar Kant 1998 p 694 Nos remeteremos aqui ao papel que o sistema kantiano desempenha na argumentação do Ressentimento da Dialética exposta acima Aquele que deseja aplicar com cuidado e rigor suas faculdades racionais à tarefa de conhecer não pode aceitar o conteúdo de verdade da autointitulada filosofia produzida ao longo do tempo mas precisa submetêlo ao crivo da questão sobre os limites e possibilidades das faculdades racionais Com isso e aqui tratase de identificar desde fora do sistema kantiano qual é o seu sentido o filósofo acaba tendo que deixar de lado o impulso de voltarse para a Dissertatio 53 101143 2021 137 cognição direta da realidade vira um ordenador de opiniões filosóficas das quais desconfia e que trata com salutar distanciamento Tornase um especialista na forma da filosofia cujas sutilezas técnicas interessamno mais do que os conteúdos que ao contrário captam a atenção dos intelectos ordinários Gueroult reatualizava essa postura e seria esse distanciamento preconizado que inocularia o estudante sério contra o modismo volúvel que até então afligira uma elite ávida de vivências intelectuais sofisticadas Aquilo sobre o que o texto de Arantes chama atenção é o sentido sociológico da importação dessa abordagem que esquematicamente designaremos gueroultiana Para início de conversa é importante situar essa abordagem em seu ambiente original Sua função na França do pósguerra era exatamente a de preservar a especificidade técnica e acadêmica do pensamento filosófico num quadro em que tal especificidade era percebida como ameaçada por uma contaminação com os temas mundanos A origem de tal contaminação era a rápida expansão do ensino superior a ampliação da indústria editorial e o consequente entrecruzamento entre os interesses da alta cultura e os objetos da cultura de massa Tal entrecruzamento encontrava uma característica expressão filosófica no Existencialismo que ao contrário das típicas questões técnicas da filosofia tradicional debruçavase sobre os temas do diaadia o cinema a música popular a sexualidade a conversa de bar etc Assim o procedimento gueroultiano de historização da filosofia e leitura imanente funcionava como antídoto à volubilidade também no seu ecossistema nativo Contudo é importante notar que a volubilidade francesa tinha um sentido sociológico oposto ao da volubilidade brasileira que advinha não da massificação do discurso filosófico mas ao contrário de sua restrição a uma elite minúscula que era volúvel porque autocentrada Mas o progressismo filosófico uspiano no que se colocava contra a volubilidade atrasada tinha que ser também antielitista fundamentalmente simpático a uma reforma intelectual capaz de incluir as massas e não alijarse delas politicamente contrário portanto à função endógena do tecnicismo gueroultiano O fato de que acabou inspirandose nesse tecnicismo consistia portanto num paradoxo tragicômico Penetremos mais profundamente nesse paradoxo A filosofia era reduzida a uma técnica de avaliar a si mesma através do mesmo movimento que colocava para segundo plano a disposição para encarar o mundo como filosoficamente penetrável Ao mesmo tempo a tecnificação era um antídoto para a postura intelectual frívola que por sua vez era igualmente incapaz de honrar a antiquíssima pretensão dogmática diria o criticismo de dizer o que é e responder com rigor a respeito da veracidade ou da falsidade dos juízos Pedro Rocha de Oliveira 138 filosóficos Uma conexão forte entre a realidade e o discurso filosófico é incompatível com uma postura intelectual volúvel Contudo ao buscarmos as raízes modernas da pretensão filosófica de dizer o que é o que encontramos novamente retomando nossa exposição da seção 1 é a origem extrafilosófica da filosofia o fato de que para ficarmos no âmbito da modernidade esse peculiar discurso sobre o universal está enraizado em processos sociais e políticos que remontam à consolidação dos estados nacionais modernos e tal enraizamento coloca o problema da realização sociopolítica da filosofia na frente do problema de sua adequação técnica Curiosamente a consideração de tal enraizamento material da filosofia de fato não estava ausente do projeto gueroultiano Tratavase afinal de voltarse à filosofia para salvar a França da decadência cultural Sua ênfase na história da filosofia consistia num esforço de resgate dos fundamentos conceituais das instituições francesas no contexto político de laicização da III República e da cuidadosa administração da expansão da educação superior Isso quer dizer que embora a leitura imanente com sua sensibilidade aos meandros técnicos do sistema desse as costas ao material extrafilosófico ao mesmo tempo estava sustentada por essas origens extrafilosóficas profundamente embutidas na vida institucional europeia e também se dirigia para elas Esse quadro duplamente paradoxal é o que está por trás do absurdo projeto de se tentar salvar as instituições francesas através de um método de bempensar o qual transplantado tornouse referência para a mentalidade progressista uspiana A preocupação de Arantes contudo não é ridicularizar a bizarria desse transplante entre os dois universos teóricosociais contrastantes mas sublinhar o fundamento sociológico dele atestada pelo funcionamento da crítica imanente entre nós Seus praticantes investiram na fundamentação metodológica do conhecimento no caso o conhecimento que importava ao progressismo radical o marxismo No departamento de filosofia segundo consta do Um departamento francês de ultramar e também do Sentimento de dialética produziramse complexos trabalhos que abordavam a particularidade do suposto método marxiano de falar sobre a realidade ou tratavam com sofisticação de delimitar o lugar epistêmico do marxismo Ou seja a gente esforçada do departamento assumiu seu papel na reforma da sociedade brasileira produzindo filosofia academicamente sofisticada Arantes sublinha o contraste entre esse legado propriamente filosófico e as produções de que foram capazes os intelectuais que inclusive por suas diferentes filiações departamentais ficaram incólumes ao tecnicismo metodologista Quando o populismo dos anos 1950 foi derrotado pelo golpe Dissertatio 53 101143 2021 139 militar de 1964 que recolocou o Brasil nos trilhos do desenvolvimentismo autoritário o subsequente divórcio policialmente produzido entre a intelectualidade e o movimento de massas fez com que os acadêmicos das diversas ciências humanas pusessemse a questionar a ideia de desenvolvimento nacional de atraso econômico e do próprio populismo Enquanto isso a faculdade de filosofia hegemonicamente ocupouse com as sutilezas dos sistemas clássicos inclusive o de Karl Marx adiando indefinidamente sua confrontação com a demanda intelectual urgente oriunda do tenebroso momento histórico concentrando seus esforços em prolegômenos epistemológicos de obras históricas e sociológicas com os conteúdos das quais no fim das contas relacionavamse apenas externamente Ou seja através da leitura imanente a filosofia conseguiu tudo menos dizer o que é Assim dáse um fracasso uspiano em produzir filosofia sobre o Brasil o qual não se deve à má aplicação do método importado mas ao sucesso em fazêlo Mas então como sugere o argumento de Arantes o ridículo do projeto periférico foi herdado do projeto metropolitano Afinal o fato de que na Europa a conexão entre a filosofia e as instituições que ela supostamente fundamentaria e viceversa parecia dependente de um método de pensar era um sinal de que os vínculos reais entre a filosofia e a realidade social já estavam dissolvidos Em outros termos se na perspectiva da reformada gueroultiana francesa o que revogava a seriedade da filosofia e sua utilidade para as instituições era a sua relação com a cultura de massa aos olhos de qualquer materialista que se prese o problema não devia ser exatamente cognitivo mas históricoeconômico Afinal a cultura de massa que se insurgia contra a filosofia séria consiste na ampliação do escopo da produção capitalista para o ramo das coisas culturais parcialmente resultante no caso francês de uma determinada política estatal de educação Tratase de um fenômeno socioeconômico complexo que claramente extrapola as questões cognitivas Portanto o que ficava de fora do exercício da postura gueroultiana na França era a hipótese de que a volubilidade filosófica fosse oriunda de transformações sociais Da mesma forma é como consequência de fenômenos dessa ordem que nos anos 1960 o pensamento filosófico por lá e por aqui sofre o que Arantes descreve como uma guinada estetizante marcada por uma espécie de celebração extática de um inespecífico ato de escrever ARANTES 1994 p 198 Tal guinada deslocava a centralidade do sentido que caracterizava as filosofias do sujeito o Iluminismo e seus defensores o marxismo e o Existencialismo Tratavase da irrupção do pósestruturalismo desde a perspectiva gueroultiana o fracasso da reforma cognitiva que procurara empreender O novo fenômeno intelectual penetrou na USP através da obra de Pedro Rocha de Oliveira 140 Michel Foucault e dos escritos e aulas de Gérard Lebrun que falava de uma similitude entre a filosofia a literatura e a experiência do jogo É verdade que embasado numa constatação da crise da significação de decidir a cerca de conteúdos de verdade o pósestruturalismo encarava de frente o problema da incapacidade da filosofia de dizer o que é no quadro europeu que os gueroultianos haviam tentado reverter Por outro lado essa filosofia não disse nenhuma palavra sobre o campo histórico de forças na origem dessa crise ARANTES 1994 p 201 permanecendo tão insensível ao contexto extrafilosófico quanto o tecnicismo gueroultiano O pós estruturalismo nesse sentido é um outra variedade de projeto de transformação cognitiva da sociedade a despeito do fato de que não acredita nem em cognição nem em transformação social para tomar emprestado um dito de Terry Eagleton Importado pelo departamento uspiano o pós estruturalismo ajudouo a se manter atualizado com os desenvolvimento teóricos de ponta mas não a superar o metodologismo que o incapacitava para refletir sobre a realidade nacional ao contrário mergulhouo ainda mais profundamente e com um profissionalismo crescentemente afiado nas questões técnicas da epistemologia O ponto fundamental aí é que a insensibilidade desses discursos filosóficos franceses ao conteúdo extrafilosófico que os produziu é condição de possibilidade de sua transplantação e adoção entusiasmada pelo departamento uspiano Na medida que configuram meras técnicas de pensar estão tão distanciados de seu público nativo quanto de qualquer outro público do mundo Reações cognitivas à realidade da cultura de massas são parte constitutiva da cultura de massas o que segundo Arantes é espelhado no caso foucaultiano pela empolgação com a pura produtividade do pensamento e portanto podem ser consumidas por qualquer elite educada do capitalismo transnacional independentemente de sua realidade social específica como qualquer mercadoria do espírito Assim através do transplante do pensamento de ponta metropolitano para a periferia algo essencial sobre o pensamento de ponta aparece novamente lêse o Norte através do Sul O contexto específico brasileiro em que o transplante se deu contribui especialmente para isso A radicalização do populismo projetava uma conflagração social que reuniria amplos setores da sociedade e apontavam para um projeto nacional que esquematicamente falando não teria sido inexprimível em termos da linguagem universal sempre que ela abandonasse o elitismo metodológico Ocorre que como vimos estava impedida de fazêlo visto que a modernização intelectual exigia exatamente a seriedade da sofisticação conceitual caminho de negação da Dissertatio 53 101143 2021 141 volubilidade Assim a produção filosófica caiu numa armadilha ideológica autopreparada inspirada pelo discurso filosófico francês que de sua parte também era impotente diante dos problemas que se colocava Enquanto viravam as costas para os problemas extrafilosóficos tanto o formalismo gueroultiano quanto o pósestruturalismo reafirmaram entre nós o alheamento acadêmico da filosofia frente ao resto da sociedade reintroduzindo o problema do bacharelismo só que dessa vez sob o verniz da seriedade profissional e da atualidade acadêmica Para mal ou para bem contudo Arantes deixa indicado que a filosofia inábil não deixou marcas no progressismo Tendo sido derrotada apenas policialmente pelo golpe militar de 1964 e não no campo das ideias a ideologia progressista e populista expressouse amplamente na cultura de massa e em outros ramos da produção acadêmica Até hoje afirmou Arantes recentemente não foi devidamente pensada e criticada No momento em que colocamos o ponto final nesse texto parecenos que talvez estejamos perdendo mais uma boa oportunidade de fazêlo enquanto assistimos ao provável sepultamento de sua terceira encarnação ou requentamento a figura ornitorríntica do lulopetismo com suas limitações que já deixam saudades Referências ADORNO T Minima Moralia Rio de Janeiro Ática 1993 AGAMBEN G State of exception Chicago University of Chicago Press 2005 ALTVATER E The price of wealth Economies and institutions in the Middle East Ithaca Cornell University Press 1997 AEI American Enterprise Institute Toward a global cavalar 2003 Disponível em wwwaeiorgpublicationspubID17783pubdetailasp Acesso em Agosto de 2017 ARANTES P Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 Um departamento francês de ultramar Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana Uma experiência nos anos 60 Rio de Janeiro Paz e 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