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SEXA Pai Hmmm Como é o feminino de sexo O quê O feminino de sexo Não tem Sexo não tem feminino Não Só tem sexo masculino É Quer dizer não Existem dois sexos Masculino e feminino E como é o feminino de sexo Não tem feminino Sexo é sempre masculino Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino O sexo pode ser masculino ou feminino A palavra sexo é masculina O sexo masculino o sexo feminino Não devia ser a sexa Não Por que não Porque não Desculpe Porque não Sexo é sempre masculino O sexo da mulher é masculino É Não O sexo da mulher é feminino E como é o feminino Sexo mesmo Igual ao do homem O sexo da mulher é igual ao do homem É Quer dizer Olha aqui Tem o sexo masculino e o sexo feminino certo Certo São duas coisas diferentes Então como é o feminino de sexo É igual ao masculino Mas não são diferentes Não Ou são Mas a palavra é a mesma Muda o sexo mas não muda a palavra Mas então não muda o sexo É sempre masculino A palavra é masculina Não A palavra é feminino Se fosse masculina seria o pal Chega Vai brincar vai O garoto sai e a mãe entra O pai comenta Temos que ficar de olho nesse guri Por quê Ele só pensa em gramática Luis Fernando Verissimo é jornalista escritor humorista cartunista e quadrinista vive em Porto Alegre Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 22 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 A QUEDA DO GÊNERO NEUTRO DO LATIM QUESTIÚNCULAS SOBRE A DIVERGÊNCIA ENTRE O GÊNERO REAL E O GÊNERO GRAMATICAL Thiago Soares de Oliveira UENF sothiagohotmailcom RESUMO Considerando que em latim não havia uma lógica de emprego do neutro essa ca tegoria de gênero desapareceu deixando apenas traços no português moderno A partir dessa discussão introdutória este artigo objetiva refletir sobre a extinção do gênero neutro da língua latina pontuando as questiúnculas relativas às divergências causadas pela necessidade de diferenciação entre o gênero real dos seres e o gênero gramatical que lhes é atribuído Para tanto adotase a pesquisa bibliográfica a partir da consulta tanto a obras impressas quanto a digitais como metodologia construtiva da base teórica necessária à articulação das concepções trazidas pelos diversos estudiosos acerca do gê nero neutro latino Palavraschave Letras clássicas Gramática latina Gênero latino 1 Introdução Este trabalho tenciona a reflexão acerca da extinção do gênero neu tro que juntamente com o masculino e o feminino compunha as catego rias de gênero da língua latina Em que pese ao desaparecimento do neutro na língua portuguesa é possível notar indícios desse gênero em pleno uso na língua portuguesa Com o intuito de dar conta desse propósito dividese este artigo em duas seções ambas reflexivas e amparadas em aspectos históricos a pri meira trata da divergência entre o gênero real e o gênero gramatical dos seres a segunda de como essa divergência contribuiu para o desapareci mento do neutro Essa fragmentação do trabalho em duas seções específi cas é propositada e tem o objetivo de organizar a discussão proposta de tal forma que o tema seja tratado de forma palatável para todos os leitores servindo inclusive como trabalho introdutório sobre a questão do gênero latino para alunos dos cursos de letras Nesse sentido adotase como recurso metodológico apropriado à pesquisa bibliográfica a literatura especializada constante em artigos e obras de autores e estudiosos da língua latina da língua portuguesa e da filologia que se mostra adequada à fonte de dados escolhida propiciando Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 23 a construção de um trabalho teórico que se insere na seara das letras clás sicas cuja discussão adere a um tom mais reflexivo e revisional comum nessa área de estudo Ainda que o latim seja considerado uma língua morta é importante justificar a relevância desta pesquisa na medida em que além de se tratar de disciplina obrigatória nas grades do curso de Letras e estar presente em inúmeros fluxogramas de filosofia e teologia o conhecimento e o estudo da língua latina fornecem ao estudioso subsídios históricoanalíticos im portantes ao entendimento do mecanismo de funcionamento da língua por tuguesa o que com efeito é de grande valia para os indivíduos que pre tendem adentrar na ampla seara das letras Por isso esta pesquisa mostra se relevante acadêmica e socialmente Por fim é preciso ressaltar que não se tenciona esgotar o assunto acerca do estudo do gênero neutro da língua latina mas fornecer um con tributo teórico aos iniciantes e estudiosos das letras clássicas demons trando principalmente a partir da obra de autores tais como Almeida 1992 2005 Bagno 2007 Bechara 2009 Cardoso 2003 Faria 1958 e Santos Sobrinho 2013 que o latim continua marcado na língua portuguesa 2 Questões divergentes sobre o gênero dos seres Diferentemente da língua portuguesa que se estrutura inicialmente a partir de duas categorias de gênero a saber o masculino e o feminino a língua latina além desses inclui o gênero neutro cujo emprego não segue exatamente um padrão dada a diferenciação entre o gênero gramatical atribuído pela normapadrão e o sexo real dos seres Obviamente essa distinção tornase mais simples quando a análise da flexão genérica recai sobre seres animados ou seja seres vivos do que quando se trata de seres inanimados Segundo Almeida 2005 p 98 gênero gramatical é a indicação do sexo real ou suposto dos seres motivo pelo qual fica claro que por haver dois sexos dois devem ser os gêneros gramaticais o gênero mascu lino e o gênero feminino Nesse sentido na língua portuguesa a oposição de palavras como boi e vaca cavalo e égua gato e gata é de simples en tendimento considerando que a oposição de sexo coincide com a oposição do gênero gramatical ou seja se a vaca é a fêmea do boi e este é o macho da vaca analogia que também pode ser aplicada a outros animais podese Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 24 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 concluir que boi seria um nome do gênero masculino e vaca do gênero feminino Nessa linha de raciocínio quando as palavras especificam seres vi vos a gramática da língua portuguesa lhes atribui o gênero masculino ou feminino ou uma das subdivisões da flexão genérica como os epicenos denominação dos nomes de animais que possuem um só gênero gramati cal para designar um e outro sexo CUNHA CINTRA 2012 p 209 tais como águia baleia e borboleta os sobrecomuns que têm um só gênero gramatical para designar pessoas de ambos os sexos op cit p 209 como carrasco indivíduo e vítima ou comum de dois gêneros que apre sentam uma só forma para os dois gêneros mas distinguem o masculino do feminino pelo gênero do artigo ou de outro determinativo acompa nhante op cit 2012 p 210 assim como ocorre entre o pianista x a pianista o colega x a colega o estudante x a estudante Na verdade no português a anteposição do artigo ao nome muito explica o gênero gramatical o que no latim não é possível em razão da inexistência dessa categoria da gramática normativa Logo o gênero das palavrasnúcleo das expressões o homem e a mulher estaria justificado por meio do gênero do artigo que as antecede ainda que não se pudesse deter minar o sexo desses seres A partir da anteposição do artigo é possível também no português determinar que casa é uma palavra do gênero fe minino mesmo não sendo desse sexo haja vista a impossibilidade de atri buir uma categoria de sexo a um ser inanimado Como adotar ou atribuir então um gênero a um nome que designa um ser inanimado Eis um dos motivos da existência do gênero neutro no latim utilizado para indicar que as coisas não têm nenhum dos dois sexos ALMEIDA 2012 p 99 o que não esgota contudo a peculiaridade de tal gênero eis que o em prego do neutro não é lógico em latim CARDOSO 2003 p 20 De acordo com Almeida 1992 p 26 neutro quer dizer nem um nem outro isto é nem masculino nem feminino Assim bellum guerra flumen rio caput cabeça são palavras neutras com terminações es peciais em certos casos Ocorre que distintamente do latim o Português assim como outras línguas neolatinas não possui flexão de caso valendo se de preposições artigos e outros recursos em substituição aos casos AL MEIDA 2012 Por caso entendese a marcação morfológica para iden tificar a função sintática de um termo de maneira simples é a forma como um nome termina ou cai de casus que quer dizer queda fim SANTOS SOBRINHO 2013 p 376 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 25 Já que o latim é uma língua sintética cuja função sintática dos no mes é identificada pela terminação vocabular o gênero neutro acaba por ser mais bem identificado pelo conhecimento dos casos latinos casus no minatiuus que é o caso do sujeito e do predicativo do sujeito bem como do adjunto adnominal do sujeito ou do predicativo representado por adje tivo ou pronome CARDOSO 2003 p 22 casus uocatiuus que repre senta o vocativo em língua portuguesa casus genitiuus que exerce a fun ção básica de adjunto adnominal restritivo do complemento nominal do substantivo e do partitivo op cit p 22 casus datiuus que desempenha a função sintática de objeto indireto causus ablatiuus que exerce a função de adjunto adverbial ou complemento circunstantical de agente da pas siva de complemento de comparação de sujeito de particípio em orações reduzidas e casus accusatiuus considerado este o responsável pela lexi cogênese porque deu origem aos vocábulos da língua portuguesa funcio nando como objeto direto podendo também ser o caso dos adjuntos ad verbiais introduzidos por preposições especiais o da exclamação o do su jeito e o do predicativo nas orações infinitivas op cit p 22 Assim corpo veio do latim corpus acusativo neutro da terceira declinação ár vore de arborem acusativo feminino da mesma declinação etc AL MEIDA 2012 p 98 Consoante Santos Sobrinho 2013 p 376 em latim os nomes costumam ser organizados em cinco grupos chamados declinações que são identificadas pela desinência acoplada ao nome no genitivo singular sendo ae i is us e ei as terminações desse caso Conhecendo o sistema de casos e declinações latino é possível identificar diversos nomes do gênero neutro os quais figuram em algumas declinações específicas e apresen tam formas específicas de flexão casual CARDOSO 2003 p 20 já que nem sempre o gênero natural corresponde ao gênero gramatical Por esse motivo vale ressalvar que Muitos substantivos que designam objetos e sêres inanimados pertencem ao gênero masculino ou feminino mensa mesa pirus pereira manus mão memoria memória etc são femininos enquanto que pes pé riuus regato ager campo mensis mês etc são masculinos A forma da palavra também não é bastante para determinar o gênero gramatical de um vocábulo Lupus pirus e uirus veneno todos da mesma forma e pertencentes à mesma declina ção à segunda são entretanto de gêneros diferentes lupus é masculino pirus feminino e uirus neutro O gênero gramatical é uma simples relação que une o substantivo ao adjetivo que a êle se refere sendo pois a concordância dêste adjetivo que determina com precisão e clareza o gênero gramatical do substan tivo Assim sabemos que os substantivos lupus pes riuus ager mensis etc são masculinos porque só podem vir acompanhados de uma forma masculina de adjetivo bonus lupus bonus pes bonus riuus bonus ager bonus mensis Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 26 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 pirus mensa manus memoria e mais nurus nora e origo origem são femi ninos porque só podem vir acompanhados de uma forma feminina de adjetivo bona pirus bona mensa bona manus bona memoria bona nurus bona origo Assim os substantivos uirus templum bellum calcar são neutros porque só pode vir acompanhados de uma forma de neutra de adjetivo malum uirus bo num templum pessimum bellum paruum calcar FARIA 1958 p 5758 Percebese nesse rumo de pensamento que segundo Faria 1958 o adjetivo determina precisa e claramente o gênero do substantivo quanto este é acompanhado daquele na formação da sentença Ocorre que não ha via artigos na língua latina o que os romanos faziam diante dessa falta era empregar o pronome demonstrativo antes de um substantivo próprio ou comum para indicar que ele era conhecido SILVA 2010 p 134 Além do mais ante a possibilidade de que nem sempre o substantivo venha especificado por uma forma adjetiva é preciso pontuar que tal forma ape sar de funcionar como facilitadora da identificação do gênero do substan tivo não resolve essa questão uma vez que a flexão quanto ao gênero não existe a rigor de forma absoluta e sim acidental CARDOSO 2003 p 20 Nesse sentido Bagno 2007 p 30 registra que o fato de o gênero neutro abarcar os seres inanimados em latim remonta à probabilidade de que no indoeuropeu primitivo o gênero gramatical dos nomes se funda mentasse no sexo biológico real Segundo o autor essa distinção com o tempo logo perdeu todo vínculo com a realidade objetiva e o gênero se tornou uma categoria exclusivamente gramatical e portanto arbitrária op cit p 30 posicionamento também acolhido por Cardoso 2003 Vale ressaltar nesse ponto que o caráter arbitrário do género sem qual quer motivação semântica verificase igualmente na mudança de género operada em certas palavras no seu percurso rumo às várias línguas ro mance ou na confusão a que estão sujeitas no uso COSTA CHOU PINA 2012 p 78 Em consonância aos pensamentos de Bagno 2007 e Cardoso 2003 afirma Faria 1958 de forma esclarecedora que A causa determinante da diferenciação dos gêneros na antiga língua indo européia não foi em absoluto a diferenciação dos sexos mas a oposição entre os sêres animados e os sêres inanimados ou coisas Assim a primitiva divisão dos gêneros seria esta os substantivos que designavam sêres vivos bem como os adjetivos ou pronomes que a êles se referissem pertenciam ao gênero ani mado enquanto que os substantivos que designassem coisas ou os adjetivos ou pronomes que a êles se referissem pertenciam ao gênero inanimado Dêste modo o gênero animado compreendia sem distinção o masculino e o feminino enquanto que o inanimado o neutro FARIA 1958 p 63 Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 27 A partir dessa exposição de Faria 1958 podese entender sobre por que Cardoso 2003 pontua a ilogicidade do emprego do gênero neutro De acordo com a autora alguns seres sexuados são designados por pala vras neutras como scortum prostituta ou mancipium escravo Os seres assexuados são designados indiferentemente por palavras masculinas fe mininas ou neutras CARDOSO 2013 p 20 3 O desaparecimento do neutro a partir da questão da flexão genérica A confusão relativa à flexão genérica só confirma que na verdade o gênero gramatical é suposto ou fictício nas palavras de Almeida 2012 Como o latim não pôde aplicar a todos os nomes de coisas o gênero neutro o seu desaparecimento nas línguas neolatinas foi uma consequên cia bastante natural Nesse contexto Bechara 2009 registra que A inconsistência do gênero gramatical fica patente quando se compara a distribuição do gênero em duas ou mais línguas e até no âmbito de uma mesma língua histórica na sua diversidade temporal regional social e estilística Assim é que para nós o sol é masculino e para os alemães é feminino die Sonne a lua é feminino e para eles masculino das Weib Sal e leite são masculinos em português e femininos em espanhol la sal e la leche Sangue é masculino em português e francês e feminino em espanhol le sang fr e la sangre esp BECHARA 2009 p 133 É nesse cenário marcado pela substituição do gênero natural atri buído pelo sentido pelo gênero gramatical apontado pela terminação com o consequente processo de esvaziamento semântico da noção de gênero JESUS 2007 p 2080 que o gênero neutro foi desaparecendo deixando de existir como categoria gramatical Aliás consoante Faria 1958 p 65 o neutro já tendia a ser eliminado desde a época mais arcaica visto que a distinção dos gêneros animado e inanimado isto é do masculinofeminino e do neutro não tinha uma estabilidade precisa e acrescenta Enquanto que a distinção de masculino para feminino se fazia via de regra por meio de uma alteração do próprio tema femininos geralmente pertencentes ao tema em a a diferença de masculino para o neutro só se efetuava pela de sinência caracterizandose os neutros pelo uso da desinência zero no nomina tivoacusativo FARIA 1958 p 65 Bagno 2007 a propósito disso descreve alguns fatores que po dem ter condicionado o desaparecimento do neutro tais como Os nomes que compunham a 1ª declinação cuja terminação se dava em a eram quase todos femininos não havendo nomes Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 28 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 neutros motivo pelo qual essa terminação passou a designar os nomes femininos em Português Os nomes que compunham a segunda declinação eram em sua maioria masculinos e neutros Logo a terminação em o acusa tivo singular um u o acabou por se tornar a característica dos nomes masculinos os neutros por sua vez devido à seme lhança de sua desinência com os nomes masculinos também pas saram a esse gênero como em templum templu templo Quando no plural em razão da terminação a houve confusões com o gênero feminino Portanto as palavras neutras plurais do latim passaram a femininas singulares no Português como em ova neutro plural ova feminino singular folia neutro plural folha feminino singular lignea neutro plural lenha femi nino singular Como havia alguns nomes neutros na 3ª declinação estes passa ram para a 2ª assumindo em consequência o gênero masculino Conquanto o gênero neutro tenha deixado de existir como categoria gramatical na língua portuguesa ressalvados alguns vestígios tais como os pronomes demonstrativos isto isso aquilo e o os pronomes indefinidos tudo nada algo os adjetivos substantivados e os infinitivos substantiva dos BAGNO 2007 SANTOS SOBRINHO 2013 esses resquícios têm funcionalidade e aplicabilidade plena no discurso sendo tais palavras de uso corrente Além dessas marcas citadas Silva 2010 p 117 acrescenta como vestígio do gênero neutro em Português as frases do tipo Limonada é bom e É proibido entrada em que o sujeito aparece indeterminado as severando que as causas do desaparecimento do gênero neutro foram fo néticas analogia das formas e psicológicas desnecessidade da oposição entre o gênero animado e o inanimado Na verdade a utilização do gênero neutro no latim apesar de iló gica não era totalmente flutuante Faria 1958 p 59 nesse sentido afirma que são do gênero neutro os nomes de frutos e metais bem como as palavras indeclináveis infinitivos verbais e termos e frases usados como se fossem substantivos Essa noção contudo com a própria evolu ção da língua foi sendo desconstruída pela confusão entre neutro e mas culino segundo Silva 2010 levando ao desaparecimento do neutro Uma das constatações atuais presente na obra de Costa e Choupina 2012 p 78 e que pode avalizar mais hodiernamente que o neutro não Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 29 sobreviveria é a de que gênero e sexo não têm em línguas como o Portu guês uma relação intrínseca entre si embora essa relação possa ser apli cada a alguns nomes Sob esse prisma é importante perceber que já em textos muito antigos datados dos anos de 1175 por exemplo escritos em língua portuguesa a morfologia flexional do latim clássico que marcava o número o gênero e a função sintática caso dos nomes já não estava mais presente MONARETTO PIRES 2012 p 157 demonstrando que a complexa morfologia flexional dos nomes em latim passou por um processo de simplificação durante a dialetação do latim para as línguas românicas op cit p 158 inclusive no que diz respeito ao gênero Além do mais juntamente com o neutro desapareceram nos adje tivos os sufixos de comparativo ior que acompanhava o masculino e o feminino e ius que se acoplava ao neutro o que demonstra que a flexão de grau também foi a reboque prejudicada Segundo Almeida 1992 o adjetivo poderia ser empregado no grau normal ou positivo no superlativo ou no comparativo sendo este cuja formação se dava pela aposição dos sufixos mencionados ao radical do adjetivo a atribuição de qualidade mais a um termo do que a outro Assim jucundus jucunda jucundum que re presentam o adjetivo agradável nas três formas da flexão genérica ao te rem acoplados ao seu radical os sufixos ior e ius tomariam a forma de jucundior para o masculino e para o feminino e jucundius para o neutro Ante a reflexão aqui impendida fica a observação final de que o desaparecimento completo do gênero neutro na passagem do latim para o Português evidencia na verdade um fator de evolução em que são aban donadas ou substituídas categorias que não mais servem ao propósito de uma língua De outra forma os vestígios ainda encontrados na língua por tuguesa como alguns pronomes e nomes substantivados funcionam como marcas da trajetória históricoevolutiva da línguamãe sinalizando a pre sença e a importância outrora desempenhada pelo gênero neutro 4 Conclusão Considerando a discussão trazida à baila neste trabalho teórico acerca da queda do neutro da língua latina e da existência de alguns traços desse gênero no Português percebese que as categorias gramaticais so brevivem quando correspondem a um propósito linguístico Apesar de ser considerada uma língua morta pois não é mais falada por um povo ainda que existam documentos escritos nesse idioma o latim se mantém vivo em partículas de uso corrente na língua portuguesa como alguns pronomes Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 30 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 demonstrativos e indefinidos além dos adjetivos e infinitivos substantiva dos Notase em outras palavras que a queda do neutro utilizado es sencialmente para designar os seres cujo sexo não poderia ser definido não alijou o português de expressões como O que é aquilo Isso não quer dizer nada Tudo isso é necessário Nesses casos de fato não é possível definir o sexo dos seres a que se referem as sentenças mas como não o era sempre possível determinálo também em latim a categoria gramatical neutra esgotouse semanticamente diante da impossibilidade de que o gê nero real sempre coincidisse com o gênero gramatical Isso pode ser per cebido inclusive pela utilização de o equivalente a aquilo também de valor neutro na oração anteriormente construída neste parágrafo pro vando a funcionalidade e a aplicabilidade do que restou desse gênero la tino De mais a mais não é de bom tom que passe imperceptível a ten dência já registrada por inúmeros autores de que o neutro estava fadado ao fim no português assinalando todavia que a evolução da língua nem sem pre obedece a uma regularidade Notese a princípio que a decadência da 4ª e da 5ª declinação ocorreu no latim vulgar em razão da confusão que alguns nomes causavam Basta verificar por exemplo a palavra domus que devido à terminação us poderia suscitar a declinação tanto pela 2ª domus i por parecer masculino final us na 2ª decl quanto pela 4ª domus us por ser palavra feminina já que a relação entre as termina ções nominais e as questões de gênero não eram muito claras em latim conforme já mencionado no corpo deste trabalho Assim traço claro de evolução linguística do latim clássico para o latim vulgar seria a fusão das declinações em virtude dos gêneros Por fim a questão da não coincidência entre o gênero real dos seres e gênero gramatical que lhes é atribuído pela norma linguística merece destaque como o grande fator desencadeante da queda do neutro ainda que outras questões possam ser levantadas a respeito assunto A decadên cia dos sufixos ius e ior nos adjetivos foi consequência do sumiço do neutro principalmente o primeiro sufixo que se lhe acoplava caracteri zando que uma evolução linguística pontual pode conduzir a outras evolu ções De qualquer forma fica consignado que o estudo do desapareci mento do neutro tem muito a fornecer àquele que deseja se debruçar his tórica e gramaticalmente sobre os meandros da língua Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA N M de Gramática latina curso único e completo 24 ed São Paulo Saraiva 1992 Gramática metódica da língua portuguesa 45 ed São Paulo Sa raiva 2005 BAGNO M Gramática histórica do latim ao português brasileiro Bra sília UnB 2007 Disponível em wwwgpesdcombrbai xarphpfile100 Acesso em 05082015 BECHARA E Moderna gramática portuguesa 37 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2009 CARDOSO Z de A Iniciação ao latim 5 ed São Paulo Ática 2003 COSTA J A CHOUPINA C M A história e as histórias do género em português percursos diacrónicos sincrónicos e pedagógicos EXEDRA Revista Científica da Escola Superior de Educação do Instituto Politéc nico do Porto número atemático dezembro de 2012 Disponível em httpwwwexedrajournalcomexedrajournalwpcontentuplo ads20130106numerotematico2012pdf Acesso em 06082015 CUNHA C CINTRA F L Nova gramática do português contemporâ neo 5 ed Rio de Janeiro Lexicon 2012 FARIA E Gramática superior da língua latina Rio de Janeiro Acadê mica 1958 JESUS S N de Contextualização histórica do léxico da língua latina A constituição linguística e suas variantes formais In CELLI COLÓ QUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS 3 2007 Ma ringá Anais Maringá 2009 p 20702087 Disponível em httpwwwpleuembr3cellianaistrabalhosestudoslinguisti cospfdlinguisticos097pdf Acesso em 09082015 MONARETTO V N de O PIRES C de C O que aconteceu com o gênero neutro latino Mudança da estrutura morfossintática do sistema fle xional nominal durante a dialetação do latim ao português atual Revista Mundo Antigo Ano I vol 01 n 02 dez2012 Disponível em httpwwwnehmaatuffbrrevista20122artigo0920122pdf Acesso em 10082015 SANTOS SOBRINHO J A Dois tempos da cultura escrita em latim no Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos 32 Revista Philologus Ano 21 N 63 Rio de Janeiro CiFEFiL setdez2015 Brasil o tempo da conservação e o tempo da produção 2013 Tese Dou torado Programa de Pósgraduação em Língua e Cultura Universidade Federal da Bahia Salvador Disponível em httppctcapesgovbrte ses201328001010078P1TESPDF Acesso em 11082015 SILVA J P Gramática histórica da língua portuguesa Rio de Janeiro Intragráfica 2010 174 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados Desobediência linguística por uma epistemologia liminar que rasure a normatividade da língua portuguesa Linguistic Disobedience towards a liminal epistemology that shaves the Portuguese language normativity Tânia Ferreira Rezende1 Daniel Marra da Silva2 Resumo Num quadro teórico em que a linguagem é entendida como conhecimento e como ação política a normatividade linguística é considerada parte da tradição cultural reguladora da sociedade Nesta discussão as questões que nos inquietam são Quais as razões que levam à e que mantêm a obediência epistêmica e linguística e Como promover rachaduras na normatividade linguística sustentada em normas socioculturais de base ideológica A discussão que ora se desenvolve motivada por essa problematização tem como objetivo mostrar que a linguagem incluindo a língua como sistema concebida como ação política pode tanto ser verificadora quanto geradora de democracia Para sustentar a problematização e evidenciar a discussão dessas questões e para mostrar como as epistemologias liminares podem promover manchas e rachaduras na rígida normatividade da língua portuguesa e ao mesmo tempo como a obediência social enfrenta e resiste essas investiduras decidimos abordar a ideologia de gênero e para tanto selecionamos um problema sociolinguístico a relação entre as manifestações social e linguística de gênerosexualidade refletida na expressão gramatical de gênero pelo uso de na escrita O objetivo da discussão é refletir sobre a ação política das práticas sociolinguísticas como geradora e como verificadora dos princípios democráticos Palavraschave Ideologia de gênero Normatividade Democracia Desobediência linguística Tensões Epistemológicas Abstract In a theoretical framework in which language is understood as knowledge and as political action linguistic normativity is considered as part of the societys cultural regulatory tradition In this discussion we are concerned about the following questions What are the reasons that lead to and maintain epistemic and linguistic obedience and How do we promote cracks in linguistic normativity based on sociocultural norms of ideological basis Inspired by this problematization the present discussion aims to show that language including language as a system conceived as political action can be both a verifier and a generator of democracy To support the problematization and to highlight the discussion of these questions and to show how the liminal epistemologies can promote stains and cracks in the rigid normativity of the Portuguese language and at the same time to show how social obedience faces and resists these investitures we have decided to address gender ideology and for that we have selected a sociolinguistic problem the relationship between social and linguistic manifestations of gendersexuality reflected in the grammatical expression of gender through the use of in writing The aim of the discussion is to reflect on the political action of sociolinguistic practices as a generator and as a verifier of democratic principles 1 Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais Professora Associada da Universidade Federal de Goiás lotada no Departamento de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Letras líder do Obiah Grupo T de Estudos I da Linguagem taniaferreirarezendegmailcom 2 Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás Professor do Instituto Federal do Tocantins e do PPGLetras da Universidade Federal do Tocantins Visiting Research Fellow The University of Sydney danielmarraiftoedubr 175 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados Keywords Gender ideology Normativity Democracy Linguistic disobedience Epistemological tensions Recebido em 15 de janeiro de 2018 Aprovado em 10 de março de 2018 Introdução A noção de desobediência está contida em e implica a noção de obediência além de evocar o enfrentamento a normas regras e leis Tratase de uma construção conceitual no bojo de um quadro sóciopolítico conflituoso a construção de uma teoria sociolinguística ancorada nos Direitos Humanos e no enfrentamento a um Estado de direitos regulatório As noções de sociedade de norma de regra e de lei nesse quadro teórico epistemológico e sóciopolítico estão em processo de tensionamento devido à própria reconfiguração da sociedade dadas as reconfigurações do mundo depois da Segunda Guerra Mundial 19391945 da queda do muro de Berlim em 1989 com o fim da Guerra Fria em 1991 e com a globalização possibilitado pelas conquistas sociais engendradas pelas convenções pós Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 Encontramse em tensionamento também a noção e o processo de democracia Nesta discussão democracia não significa harmonia nem ausência de conflitos Tendo em vista que o bem maior do ser humano é a vida todo ser humano seja qual for sua origem social étnica e cultural tem igualmente direito à existência Considerando se os seres humanos em sua pluralidade as pessoas diferentes existem e têm direito à existência ainda que isso implique conflitos A democracia portanto somente pode se efetivar sobre sólidas bases ancoradas nos direitos humanos plurais cujos pilares são a liberdade a igualdade e a solidariedade Portanto democracia é a convivência de pessoas diferentes mesmo que em conflito Apesar dos avanços no campo dos direitos humanos desde 1948 uma grande parcela de seres humanos vive ainda à margem da sociedade em condições miseráveis de vida e sem nenhuma dignidade situada num verdadeiro umbral da sobrevivência MEJÍA 2014 34 Para tirar essa parcela de seres humanos subumanizados desse umbral da sobrevivência para que possam ir além e alcançar uma efetiva participação nas possibilidades de vida que condicione a intervenção política que incida 176 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados diretamente sobre o exercício dos direitos políticos dos grupos subalternizados um Estado democrático deve garantir a toda pessoa o direito a a existir direito humano fundamental direito à vida e à existência b a falar e a ser escutada direito à voz c a participar politicamente para além do sufrágio universal pois este direito já foi conquistado mesmo que não seja ainda efetivamente universal Com a promulgação da Constituição de 1988 o Brasil entrou em processo de redemocratização depois de 20 anos de regime militar de governo e passou a ser signatário da maior parte das convenções e dos pactos internacionais em defesa do planeta e dos Direitos Humanos das populações minorizadas e dos grupos em riscos sociais Desde então muitas políticas e ações têm sido implementadas para promover a justiça social no país A linguagem língua idioma performances corporais grafismos canções etc e as práticas sociolinguísticas diversas é uma forma de ação e de participação política para a promoção de justiça social A implementação dos direitos linguísticos OLIVEIRA 2003 visando à democratização das práticas sociolinguísticas como uma das políticas de consolidação dos Direitos Humanos é uma ação política nos termos de Mejía 2014 A linguagem é entendida como um modo de ser e de estar no mundo e como a significação e a avaliação do modo como as pessoas são e estão no mundo Assim os usos da linguagem as práticas sociolinguísticas das diferentes pessoas são identificados com seus modos de existência e passam a produzir avaliações sobre suas existências As práticas sociolinguísticas identificadoras dos seres passam a ser parâmetros de avaliação desses seres e credenciais de valoração de suas práticas sociais em geral Apoiandonos em Boaventura de Sousa Santos 2006 defendemos que a linguagem sendo um modo de construir ausências é também um modo de construir presença ou seja a linguagem é um modo de construir a existência dopara o que está inexistente Por isso a linguagem é ação política para a construção da democracia Considerando portanto a situação de enunciação construída até aqui perguntamos 1 por que falar em desobediência civil política epistêmica linguística em um país democrático 177 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados 2 por que as pessoas obedecem e defendem a normas consensuais que aprovam a injustiça e a iniquidade Para desenvolver a problematização proposta e mostrar como as epistemologias liminares podem promover manchas e rachaduras na rígida normatividade da língua portuguesa e ao mesmo tempo como a obediência social enfrenta e resiste essas investiduras escolhemos abordar a ideologia de gênero por meio de um problema sociolinguístico3 a relação entre as manifestações social e linguística de gênerosexualidade refletida no uso do e outros similares como insurgente expressão gramatical do gênero social na escrita O objetivo da discussão é refletir sobre a ação política das práticas sociolinguísticas ao mesmo tempo como geradora e como verificadora dos princípios democráticos 1 Opções teóricas A racionalidade eurocêntrica ordena o mundo a partir de classificações binárias que contêm hierarquias naturalizadas homemmulher branconegro ricopobre culturanatureza científicoliterário conhecimentotradição capitaltrabalho ensinoaprendizagem etc Na Linguística descritiva pares mínimos imperfeitos como nobrepobre barãovarão dentre outros são reveladores de hierarquias históricas camufladas pela forma da língua porque língua é forma não é substância exatamente para camuflar as ideologias Além da dicotomização hierarquizante do mundo a racionalidade eurocêntrica em nome da objetividade da neutralidade e do rigor apregoa uma ciência descorporificada e descomprometida alinhada com as oposições corpomente homemnatureza sistematizadas pelo cogito ego sum de Descartes Esse raciocínio invalida o estudo de determinados sujeitos os racializados situados nas regiões também racializadas MIGNOLO 2009 Por isso pelo critério da imparcialidade o homem é mais credenciado para falar sobre mulher a pessoa branca é menos afetada ao falar sobre negritude e a pessoa heterossexual é mais gabaritada para discutir sobre sexualidade Dessa forma mantémse a perspectiva hegemônica que não é neutra mas é assim considerada porque é legitimada e naturalizada como objetiva e imparcial dado 3 Um problema sociolinguístico é um problema de demanda tanto social quanto linguística A questão de gênero correlaciona o social e o linguístico sobretudo na escrita 178 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados que o corpo masculino branco hetero corresponde ao padrão normativo de descorporificação Nossa proposta não é ignorar ou negar as dicotomias uma vez que elas organizam o mundo e nossa visão sobre o mundo Propomos desnaturalizar as dicotomias para pensar sobre visões alternativas que possibilitem mesmo em um mundo organizado por relações binárias não ser visto de forma binária e hierarquizada É urgente o enfrentamento da premissa que concebe os corpos marcados pela diferença colonial e afetados pela ferida colonial somente como objeto de estudo cedendose às práticas de pilhagem de saberes estimuladas e autorizadas pelas universidades e agências de fomentos sem nunca poderem ser protagonistas e autoresas dos seus conhecimentos Assim as teorias são fortalecidas a retórica científica avança e as pessoas informantes e coletoresas continuam conservadas cada uma em seu respectivo lugar de pertencimento social e acadêmico É importante que as dicotomias hierarquizantes as oposições inferiorizantes a descorporificação e a suposta imparcialidade não comprometimento político sejam reveladas problematizadas e discutidas para serem desnaturalizadas e desmitificadas Por isso neste artigo fazemos a opção decolonial trazendo para o debate ainda que parcial e minimamente o corpopolítico com a ferida colonial MIGNOLO 2003 2009 e as sequelas da cultura e dos valores patriarcais eurocristãos brancofalo cêntricos Nosso lugar de existência é marcado o da mulher afroindígena com consciência conflituosa da tripla subjetividade situada na periferia do centro Brasil portanto um corpopolítico com as feridas coloniais do feminino não branco periférico em uma mulher heterocisgênero e o do homem pardo com consciência conflituosa da sua dupla subjetividade situado na periferia do norte do Brasil um corpopolítico marcado pelo masculino não branco periférico em um homem heterocisgênero ela e ele situadao na borda geossocial brasileira mas não mais subalternizadao e neste momento falam do lugar de linguistas doutora e doutor professora e professor de instituições federais de ensino superior com atuação sócio política em defesa de grupos subalternizados e em defesa do reconhecimento de normas subalternizadas do português brasileiro Tratase de zonas interseccionadas de opressões e de conforto de exclusão e de privilégio de destituição e de garantia de voz e de lugar Esses lugares e essas marcas em intersecção e em ebulição atuam sobre a interpretação 179 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados do problema tratado e sobre a construção dos sentidos aqui expostos Em resumo o problema é abordado por especialistas em linguagem que consideram o corpo como parte da enunciação da perspectiva da diferença colonial mas sem a vivência da ferida colonial aqui tematizada a corporeidade LGBTI inscrita e escrita na e pela língua O quadro teórico escolhido para sustentar a problematização proposta nos termos adotados neste artigo é construído a partir das palavraschave normatividade democracia desobediência linguística ideologia de gênero e tensões epistemológicas As escolhas teóricas e metodológicas e os conceitos selecionados para a elaboração dos argumentos não são aquelases consideradasos melhores ou mais adequadasos que outrasos ElasEles têm o intuito apenas de tentar mudar os termos da conversa MIGNOLO 2009 e refletem as preferências de quem escreve o trabalho e não há dúvidas de que essa preferência só se pode fundar metaepistemologicamente ou seja por considerações culturais políticas ou éticas SANTOS 2006 129 As escolhas feitas nesta discussão portanto pretendem ser coerentes se possível com o tema em discussão4 com os objetivos com a responsabilidade social do campo de pesquisa mas principalmente com o compromisso ético com a causa política assumida 11 O corpopolítico subalternizado pela normatividade modernacolonial A modernidadecolonial inventou a América sustentada na classificação binária do mundo e nas ideologias de raça gênero e classe QUIJANO 2010 criando a periferia do centro do sistemamundo WALLERSTEIN 1974 dominado pela Europa Depois da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos da América passaram a integrar o centro do sistemamundo e inventouse o ocidente O domínio ocidental do mundo liderado pelos EUA principalmente depois da Guerra Fria substituiu os princípios e os valores vinculados à colonizaçãocivilização visto que o EUA é uma excolônia pela ideologia do desenvolvimento ainda subsidiado pelas línguas e conhecimentos imperialistas MIGNOLO 2003 2007 2009 Em resumo a geopolítica de poder mundial é também a geopolítica do conhecimento e da linguagem As normas do centro de poder do sistemamundo são impostas como corretas e como o padrão a ser seguido pelo restante do mundo Os traços fenotípicos do homem e 4 Consideremos que tematizar o problema é diferente de vivenciar o problema conforme problematizado no parágrafo precedente 180 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados da mulher desse centro de poder considerados modelares são difundidos como o padrão de beleza para o mundo as categorias racionais eurocêntricas de pensamento de conhecimento e das línguas imperiais são os modelos paradigmáticos para ser seguidos mais fortemente a partir do Iluminismo da mesma forma as normas de conduta moral e social eurocêntricas fundadas no patriarcalismo cristão são as normas corretas a serem seguidas Nessa visão de mundo e concepção de conhecimento o corpo é subjugado pela mente e tudo o que o centro de poder não reconhece ou legitima como parte do padrão é tido como inexistente SANTOS 2006 inferior ou indigno primitivo ignorante inculto incorreto inválido deficiente especiais As raças grupos e corpos consideradasos inferiores às margens do centro geopolítico devem ser salvasos ou curadasos pela civilização por meio do conhecimento da palavra divina e das letras a razão europeia No interior dessas margens existem o seu centro e as suas margens internas Estar à margem de um centro geográfico ou do centro de poder não significa necessariamente estar na subalternidade De acordo com Mignolo 2003 e Spivak 2010 pessoas subalternizadas são aquelas pertencentes às margens do centro do geopoder mundial e mesmo nas periferias são as pertencentes às camadas marginalizadas e excluídas dos meios de acesso aos direitos bens e serviços básicos as pessoas excluídas do mercado de trabalho ou relegadas aos subempregos e às baixas remunerações são aquelas impedidas de participar das representações políticas e das esferas de tomadas de decisão São as pessoas não representadas ou subrepresentadas Em um universo de povos de culturas orais como a América Latina os conhecimentos legítimos foram na colonização definidos como aqueles documentados nas línguas de cultura por meio da escrita alfabética sob a ideologia da pureza e da correção linguísticas O projeto modernocolonial de nação e de sociedade passa pela homogeneidade e pela pureza linguística cultural e epistêmica construídas pela escola Assim somamse à pureza de raça e de corpos e à imposição de gênero e de classe que estabelecem como padrão de dominação o masculino branco e rico com capital cultural vinculado à escrita alfabética e à escolarização O corpo subalternizado na América Latina é racializado sexualizado e consequentemente empobrecido A esse corpo subalternizado são negados os capitais culturais exigidos para o exercício da plena cidadania garantida a todos os demais corpos É uma trama muito bem tecida para 181 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados manter a pessoa subalternizada na subalternidade e cobrar dela pelo mérito que não se restringe ao conhecimento escolar seu deslocamento individual da subalternidade Tratase da colonialidade do ser para a manutenção da colonialidade do poder 12 A opção decolonial A opção decolonial é o enfrentamento do conhecimento racional eurocêntrico como única forma legitimada e autorizada de construir conhecimento Diferentemente do penso logo existo de Descarte na decolonialidade epistêmica assumese que corpos engendrados na matriz colonial de poder e marcados patriarcal e racialmentemente em espaços geohistóricos marcados percebem e aproveitam a oportunidade de se manifestar MIGNOLO 2009 FANON 1952 2008 Todo conhecimento tanto o racional eurocêntrico hegemônico quanto os demais subalternizados pela modernidade é marcado pelo corpo e pelo espaço de sua construção embora a colonialidade epistêmica defenda e exija a cisão entre sujeito e objeto do conhecimento como garantia de neutralidade científica Assim como os corpos os espaços também são racializados além de sofrerem as pressões da força do sistema patriarcal O corpopolítico e o espaço geohistórico MIGNOLO 2007 2009 de construção do conhecimento racional ilustrado são marcados e imprimem suas marcas no conhecimento construído Equivale a dizer que os corpos e os espaços fazem parte do conhecimento Em resumo muito mais do que o enunciado como produto considerase nesta perspectiva a enunciação da qual faz parte o corpo ferido pela intervenção colonial Assumimos nesta discussão que não existe neutralidade na língua nem na ciência não há neutralidade de conhecimento nem de discurso científico ou acadêmico Como em qualquer outro trabalho este é um trabalho afetado politicamente e pelo lugar de existência de sua produção pois defendese neste trabalho uma causa social e política e não uma teoria Apesar disso nenhuma das obras citadas é tomada como um texto sagrado e osas autoresas não são tomadosas como inquestionáveis Estamos em diálogo e diálogo é instauração de conflito de interpretação é compartilhamento de percepções Como ponto de partida retomamos mais uma vez a produção da nãoexistência de Boaventura de Sousa Santos para quem a monocultura do saber 182 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados é o modo de produção de não existência mais poderoso Consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética respectivamente A cumplicidade que une as duas culturas reside no facto de ambas se arrogarem ser cada uma no seu tempo cânones exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística Tudo o que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente A nãoexistência assume aqui a forma de ignorância ou de incultura SANTOS 2006 p 96 destaque no original Com base no pressuposto da construção da nãoexistência o enfrentamento do padrão linguístico escrito da língua de cultura é parte da opção decolonial e tem o propósito de produzir politicamente a existência dos corpos inexistentes O padrão escrito utilizado pela minoria social culta é definido como o padrão linguístico correto a ser seguido por todo mundo Com base nesse padrão criouse uma tradição linguística forçosamente tomada como norma que se converteu em capital simbólico cujo prestígio e poder equivocadamente atribuído à língua tem sua origem nas relações de poder HANKS 2008 entre opressores e oprimidos No mundo moderno a razão e o saber pressupunham a pureza e a gramática de uma língua e sem mencionar o fato a epistemologia se entrelaçou com as ideologias nacionais MIGNOLO 2003 p 341 Essas ideologias ainda subsistem Por isso para Mignolo 2003 p 239 negar que escrevemos falamos pensamos e sentimos como povos cuja consciência foi formada nas tramas e nas lamas do patriarcado colonial ocidental eurocristão seria como negar nossa história e nossa própria subjetividade O desafio na América Latina é garantir o direito de existir dessa consciência como um pensamento liminar Mignolo 2003 subalternizado pela força do patriarcado heteronormativista e enfrentar suas regras a partir da insurgência de regras e práticas de linguagens outras mais democráticas que promovam a reexistência de corpos e a resistência política de vidas insurgentes 13 Democracia e desobediência A partir da opção decolonial e do enfrentamento das categorias linguísticas e das metalinguagens inventadas pela modernidade colonial e da insurgência de categorias e metalinguagens as noções de democracia e de desobediência são introduzidas na sociolinguística como lócus de enunciação mais que como conceito e categoria de análise 183 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados A noção de desobediência implica a noção de obediência e diz respeito ao enfrentamento a normas regras e leis Tratase de uma construção conceitual no bojo de um quadro sóciopolítico conflituoso a construção de uma teoria sociolinguística na construção de um Estado de direitos regulatórios fundado sob os Direitos Humanos Para Rancière 1998 p 54 política não é feita de relações de poder é feita de relações de mundos Por isso para esta discussão mais importante que entender as relações de poder na sociedade é urgente perceber a colonialidade do poder QUIJANO 2005 2007 para a domesticação dos mundos e assim a dominação das relações entre os mundos Pensar portanto a democracia como igualdade e igualdade como democracia é uma ilusão fatal porque é conceber a democracia como consenso Significa parar no remanso ideológico do patriarcado eurocristão que prega a harmonia e a humildade como estratégias de docilização dos corpos e contenção das atitudes É o mesmo que o ofereça a outra face sem erguer a cabeça nem levantar a voz lute seja engajadoa mas não seja radical Ocorre que isso se aplica a alguns grupos não a todos O erro o desvio a rebeldia ou o radicalismo que são expressões do pecado para alguns grupos devem ser e são corrigidos5 A igualdade é o encobrimento da diferença pela padronização porque o consenso é a soberania da vontade dos mais poderosos e a tolerância é a caridade intelectual do poderoso RAMADAN 2011 p 396 Democracia nesta discussão não significa ausência de conflitos Significa a inclusão dosas nãoconsideradosas RANCIÈRE 1998 a copresença entre corpos existentes e nãoexistentes estes como alternativas aos demais SANTOS 2006 Se o bem maior do ser humano é a vida todo ser humano seja quem for e seja qual for sua origem social étnica e cultural independente de gênerosexualidade tem igualmente direito à vida e à existência Considerandose os seres humanos em sua pluralidade as diferenças e os seres diferentes existem e têm direito à coexistência ainda que isso implique conflitos e isso sempre implica conflitos A democracia portanto somente 5 Há casos extremos de assassinatos bárbaros porque o preço do pecado é a morte Segundo dados do Atlas da Violência no Brasil do Ipea CERQUEIRA et al 2017 de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil 71 são negras as pessoas negras portanto têm 235 mais risco de serem assassinadas que as demais destacase o assassinato de mulheres negras 653 das mulheres assassinadas no Brasil no último ano eram negras na evidência de que a combinação entre desigualdade de gênero e racismo é extremamente perversa e configura variável fundamental para compreendermos a violência letal contra a mulher no país CERQUEIRA et al 2017 p 39 Não há informações sobre a violência contra homossexuais Essas taxas e a não taxa mostram quem tem e quem não tem direito à existência no Brasil Documento disponível em httpwwwipeagovbrportalimages170609atlasdaviolencia2017pdf Acesso em 10 mar 2018 6 Tolerance is the intellectual charity of the powerful RAMADAN 2011 p 39 tradução minha 184 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados pode se efetivar sobre sólidas bases ancoradas nos direitos humanos cujos pilares são a liberdade a igualdade e a solidariedade considerando convivência com os conflitos gerados pelo direito à existência e pela efetiva existência entre os diferentes corpos Entretanto para a convivência com a diversidade e com a pluralidade de práticas sociolinguísticas é fundamental entender que democracia não é consenso é divisão e que existe uma tendência a identificar o consenso como a característica essencial da democracia Mas se é certo que a democracia se deve à justiça social se tem com esta uma obrigação primeira e é às vezes permitida por ela então a Constituição democrática terá sempre que desafiar um consenso que aprove a injustiça e a inequidade seja porque essas condições se deem devido à falta de recursos constitucionais seja por omissão e passividade seja por práticas diárias nas quais a desigualdade social se marca se pronuncia e se prolonga Assim os princípios de justiça teriam de libertarse de um vínculo necessário com o consenso MEJÍA 2014 37 Divisão aqui não é representatividade políticopartidária dividida em partidoslegendas políticosas Tratase da partilha entre os grupos da sociedade do direito de participar dos parlamentos das esferas políticas e administrativas e principalmente do direito inquestionável de todas as pessoas de existir de estar no mundo de ir e vir de participar e de agir social cultural e politicamente tratase enfim e é isso que interessa aqui do direito que todas as pessoas têm de falar e de ser escutadas em suas línguas ou práticas sociolinguísticas e em suas formas de dizer A ação política por sua vez é entendida como verificadora e como geradora dos princípios democráticos Para Andrea Mejía 2014 pp 3940 há ação política quando tanto as propostas legislativas como as ações governamentais se veem interceptadas por movimentos sociais às vezes espontâneos às vezes fruto do trabalho e da paciência daqueles que não ocupam em princípio cargos de poder A ação política se apresenta em um espaço no qual convergem os que habitualmente detêm o poder político e legislativo com aqueles que não participam da vida pública a partir de uma posição de poder A ação política não se mede portanto somente em termos de participação institucionalmente regulada e não pode ficar delimitada por um marco jurídico definitivo Nesse sentido a linguagem inclusive a língua como sistema é ação política e é também geradora e verificadora dos princípios democráticos Em uma democracia portanto em uma época de liberdade em um Estado de direitos ainda que em construção 185 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados 1 por que falar em desobediência civil política epistêmica linguística 2 por que há obediência e até defesa de a normas consensuais que aprovam a injustiça e a iniquidade Em um sistema regido por normas e valores esperase que as normas e os valores sejam seguidos Por isso não é tão estranho falar em desobediência mesmo em uma sociedade democrática livre Entretanto quando as normas e os valores do sistema são injustos e ferem os princípios humanos de igualdade tornandose iníquasos as desobediências passam a ser vistas como tensões e como ações políticas em busca de justiça Ocorre que mesmo nos casos de desobediência como busca por justiça muitas pessoas resistem em desobedecer às normas e aos valores injustos passando assim a serem cúmplices das iniquidades por isso há as tensões e os conflitos Carlos Pereda 2014 pp 1820 aponta algumas razões que levam à obediência a regras cuja desobediência concorre para a construção da democracia e da justiça social Para ele nesses casos em que a obediência é cúmplice da injustiça as pessoas obedecem a por medo referese ao temor que as pessoas têm das sanções coercitivas das instituições b por socialização tratase do processo de conversão do animal homem em cidadão por uma questão de integração c pelo acordo democrático básico relativo à defesa da liberdade e da própria democracia por algo que se acredita que vale a pena defender d por prudência concernente à relação custo e benefício em que vencem a cautela o bom senso e a expectativa de retorno material de preferência financeiro Para desenvolver a problematização proposta com base nas práticas sociais e políticas brasileiras e para mostrar como as epistemologias liminares podem promover manchas e rachaduras na rígida normatividade da língua portuguesa e ao mesmo tempo como a obediência social enfrenta e resiste essas investiduras é abordada a ideologia modernocolonial de gênero por meio da relação entre a manifestação social e linguística de gênerosexualidade em sua expressão escrita O objetivo da discussão 186 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados é refletir sobre a ação política das práticas linguísticas como geradora e verificadora dos princípios democráticos 13 Desobediência epistêmica e linguística Parafraseando Boaventura de Sousa Santos 2010 defendemos que não há justiça social global sem justiça sociolinguística global Sem poder dizer por suas palavras o seu dizer as pessoas sem parcela e sem direito se calam Dado que somente pessoas interessadas lutarão pela transformação da ordem do dizer para que todas elas tenham garantido e efetivado seu direito de dizer RANCIÈRE 1998 para a garantia do direito de fala é fundamental mudar a ordem do dizer ou os termos da conversa conforme Mignolo 2009 pela ação política da desobediência linguística que pressupõe e promove a desobediência epistêmica A ação política se faz por atos de desobediência sejam civis sociais epistêmicas ou outras As convenções normas regras e leis que não atendam às demandas reais da sociedade promovem rasuras em seus textos que levam a ações de transformação desses textos por parte da sociedade Essas ações são entendidas muitas vezes como desobediências Mas em geral elas são apenas ajustes nas normatizações e mais raramente nas normalizações7 quando as partes interessadas percebem que reformar não é transformar MIGNOLO 2009 Por isso a ação política que surge com determinadas exigências sociais deve poder alcançar e apelar continuamente à esfera legislativa do Estado que em nenhum momento deve esquecer que seu objetivo é a incidência direta na vida de pessoas concretas e que seu dever é permanecer à escuta dessa realidade MEJÍA 2014 p 41 A realidade não é um organismo com vida e vontade próprias é formada por agrupamento de pessoas com interesses coletivos Os interesses daqueles que se julgam com mais poder tendem a se sobrepor aos demais Os demais podem se sentir em prejuízo e requerer a reparação Nesse ponto se impõe o conflito e entra em questão a política representada pelo Estado RANCIÈRE 1998 ou outras organizações para escutar as partes Escutar a realidade portanto é escutar as pessoas que demandam na realidade as pessoas que não aceitam a ordem única do dizer na oralidade ou na 7 Entendese por normatização o processo de construção e deliberação das normas de normas regras e por normalização o processo de naturalização das normas o tornar as normas normais de normal natural por esse processo as normas deixam de ser vistas como convenções criações e passam a ser vistas como naturais 187 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados escrita O conflito RANCIÈRE 1998 se instaura com a não aceitação da forma única de dizer falar ou escrever o corpo napela língua 2 Enunciação e discussão do problema A organização do sistemamundo tal como discutido em 1 com base em Wallerstein 1974 e em Quijano 2005 2007 conforme exposto na introdução exige o controle dos corpos hierarquia normatização da aparência distribuição social e ocupação de lugares postos de trabalho cargos no trabalho etc definindo o valor dos corpos com base na corraça no gênerosexualidade na classe social e na localização geopolítica Para Santos 2006 p 96 a lógica da classificação social que se assenta na monocultura da naturalização da diferença consiste na distribuição da população por categorias que naturalizam hierarquias Existe uma gramática que categoriza e enuncia essas hierarquias sem revelar os seus critérios A linguagem indica lugares e expressa um modo de ser e de estar no mundo e constrói significações desse modo de ser e estar no mundo das e pelas pessoas As diversas práticas sociolinguísticas dos diferentes grupos são identificadas com seus modos de existência e passam a identificar os grupos e seus integrantes e a produzir avaliações tanto sobre o grupo quanto sobre as pessoas individualmente Ou seja as práticas sociolinguísticas identificadoras de grupos e indivíduos passam a ser referenciais de avaliação e credenciais de circulação dos corpos e das vozes das pessoas por espaços sociais A língua sua estrutura gramatical e seu léxico seus recursos de combinação e de construçãopercepção de sentidos não é machista nem feminista nem racista nem homofóbica embora construa efeitos de sentido que o são A língua reflete as regras socioculturais da sociedade e constroem fixam e sustentam valores e ideologias Os recursos estão disponíveis as opções que fazemos são reguladas pelas normas da sociedade e da cultura que herdamos A língua portuguesa é normatizada por regras culturais de orientação patriarcal eurocristã não há dúvidas Por isso a gramática da língua portuguesa é uma gramática de categorias binárias hierarquizantes falo heteronormativas euroouvintistas branco e grafocentradas O grupo social que criou legitimou e ainda legitima a gramática normativa da língua portuguesa defende esses valores 188 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados Apesar de todos os centramentos ideológicos da gramática e do padrão normativo de uso da língua portuguesa há recursos estruturais e opções diferentes oferecidas pela língua para além do padrão normativo único que a sustenta Nossa desatenção às opções menos usuais no cotidiano ou não contempladas pela escola deve se à rigidez da normatização social herdada à colonização O núcleo temático desta discussão é a ideologia modernacolonial de gênero legitimada pela gramática normativa da língua portuguesa há séculos ou seja o falso genérico que é o uso do masculino para expressar neutralidade ou forma genérica Tratase da manifestação linguística da cultura patriarcal eurocristã como norma entendase única forma aceita como correta em um território plural em que uma grande parcela da população não é cristã e não fala original ou unicamente línguas de base românica línguas derivadas do latim a língua de difusão do Cristianismo Na bíblia a lei da criação do mundo por meio do verbo divino o mundo depois de criado do nada caos nihil começou a ser habitado com a criação do homem Em seguida Deus criou a mulher derivandoa do homem de sua costela Nas línguas clássicas referência para as línguas vernáculas todos os seres são classificados em masculino ou feminino e os não seres são enquadrados no gênero neutro No latim a línguamãe do português em geral a forma do masculino se assemelha à forma do masculino que é a expressão de genericidade As línguas vernáculas em sua formação em contexto de contatos entre povos muito diversos com conflito e violência perderam o neutro8 Com a perda do neutro e por não distinguirem ou por terem diferentes regras de distribuição dos corpos e dos objetos pelas categorias de masculino e feminino os povos distribuíram e agruparam diferentemente o léxico das línguas vernáculas Por exemplo leite e sangue são masculino em português e feminino em espanhol água é feminino em português e masculino em espanhol duas línguas neolatinas formadas na Península Ibérica 8 Para muitos povos subalternizados pela diferença colonial não existe a dicotomia sernão ser nem a marcação gramatical binária de masculino e feminino Por isso para muitos povos o gênero neutro e a dicotomia gramatical feminino e masculino não fazem sentido Isso dentre outros fatores levou à perda do neutro em algumas línguas e acelerou a perda do neutro em outras línguas Há língua diferentemente em que a diferença entre masculino e feminino é marcada por outras formas Para mais informações recomendo a leitura de BORGES Mônica Veloso Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpliamesarticleview14281418 sobre as falas masculina e feminina na língua Karajá Inyrubè 189 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados Assim atualmente e desde o início na gramática a lei da língua da língua portuguesa o feminino a é derivado do masculino o assim como a mulher foi derivada do homem O masculino é a forma não marcada o princípio aquele que tudo gera apesar de não gerar vida O feminino é a forma marcada porque a mulher é derivada gerada de apesar de ser a geradora de vida Na regra de formação do plural os resultados de masculino masculino e de masculino feminino são masculino Pedro e João são ambos pardos e Pedro e Elizabete são ambos pardos porque o masculino tem supremacia A norma declara o masculino como produto da soma entre masculino e feminino mas não proíbe em lugar algum a explicitação da forma feminina Pedro e Elizabete são pardo e parda não é uma construção proibida O costume pela obediência de acatar qualquer regra ou imposição sem interpretar e refletir criticamente sobre suas razões necessidades ou justiça é uma herança colonialcatequética que ou temos medo de enfrentar ou defendemos pelo prestígio da norma imposta Tratase de obediência por colonialidade linguística Ainda que na gênese e no Gênese a geração e a povoação do mundo considerem os corpos os seres sexosexualidade na gramática e na ciência da linguagem no gênero não se pode confundir regra de uso da língua com o sexo do ser CÂMARA JR 1985 isto é não se devem envolver os corpos A cisão entre corpo e razão sujeito e objeto defendida pela Igreja pela ciência teológica pela universidade secular e ilustrada é a base da eliminação do corpo da ciência e da cisão entre sexo gênero sexualidade e linguagem Os movimentos sociais dentre eles os movimentos em defesa dos direitos das mulheres nas últimas décadas têm impactado os usos da linguagem É muito comum em falas públicas ouvirse o cumprimento dirigido a todas e a todos ou pelo menos a todas as pessoas presentes Esse tipo de democratização do uso da linguagem com o objetivo de visibilizar as mulheres embora mantenha a classificação binária de gênero atingiu a escrita acadêmica um espaço conservador de poder e já se encontra aceito A expressão binária explícita na escrita eleselas cantoras e cantores etc é importante politicamente porque visibiliza o feminino mas epistemologicamente incomoda pouco por manter o binarismo O feminino e o masculino existem no mundo são previstos na gramática e regulados pela norma É um enfrentamento do uso e por mais importante que seja não mostra que no mundo existe mais que masculino e 190 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados feminino e que esse mais não énão pode ser o neutro ou o genérico Não cria a copresença porque não tornam presentes pela escrita corpos ausentes Mais recente e mais polêmico mais radical é o uso de símbolos tais como o e o x para desbinarizar a expressão de gênero na escrita Beatriz Preciado 2002 Larissa Pelúcio 2016 e UrzêdaFreitas 2018 empregam x para expressar tanto a pluralidade de gênerosexualidade quanto o apagamento da marcação gramatical de gênero Tendo em vista a complexidade das questões de gênero e sexualidade e que na Lógica o x representa a incógnita essa é uma interpretação muito democrática O e o x dão existência pela escrita a corpos que se quer inexistentes e assim põem em copresença a corpos presentes os corpos ausentes Esses símbolos são alternativas às categorias gramaticais binárias e à hegemonia linguística normativa Os opositores9 ao uso desses símbolos opositores à existência dos corpos que eles representam apelam para sua afonia A contrapartida oral do enfrentamento da expressão binária de gênero uma vez que os símbolos empregados o e o x não têm sonoridade é o emprego de e por exemplo amigue no lugar de amiga ou amigo que pode ser usado na oralidade e na escrita O uso de e como expressão de gênerosexualidade por sua possibilidade de manifestação oral é uma solução à afonia dos símbolos e o x e ao mesmo tempo uma aliança com o patriarcado por não ser radical favorecendo a manutenção da colonialidade da linguagem É uma solução ambivalente e como tal é inquietante Tratase de uma mudança sem transformação amigue remete a formas tais como presidente discutida adiante amigues amores cantores autores em suma coincide com as expressões do masculino genérico previsto na língua Com esse uso a estrutura patriarcal subjacente à gramática e assegurada pela norma da língua não é desestabilizada Por isso que é mais tranquilo porque não incomoda Esta é apenas uma problematização da questão não queremos com isso fazer parecer que um uso é melhor ou mais adequado que outro As pessoas têm o direito de usar o que quiserem O uso de e de x na escrita um espaço de poder significa a inscrição gramatical de corpos existentes no mundo mas não reconhecidos em sua corporeidade e em seu direito de estar no mundo e de ser falado e escrito pela gramática da língua que escreve esse mundo Esses símbolos põem os corpos presentes e ausentes em 9 A expressão não binária de gênero neste ponto da discussão é consciente e proposital e tem o propósito de situar esses interlocutores na trama patriarcal de enunciação da polêmica 191 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados copresença e por isso eles têm sentido e valor ontoepistemológico Esses símbolos enfim criam o dissenso de suma importância para a abertura ontoepistemológica e a partir daí para a reestruturação da gramática ao invés da manutenção do padrão Ao defender o direito do uso do e do x como marcas gramaticais de gênerosexualidade na escrita defendemos o direito de existência dos corpos e dos seres que esses símbolos representam e defendemos a democracia o direito à existência e à copresença das diferenças ainda que para isso sejam produzidos conflitos 3 Normas em desvios desobediência linguísticatensões epistemológicas Texto 1 Cartaz Amigxs amigas amigos amigs e amigues da Hamburgueria São Carlos como muitos de vocês sabem nossas queridas parceiras da Mama Jambo foram vítimas de um infeliz furto Quadro 1 Fonte elaboração própria da autora e do autor a partir de dados da internet10 O Texto 1 é um chamado e dados o gênero a multimodalidade e o suporte ele reflete a urgência do falar FANON 2008 MIGNOLO 2009 Por essas razões a escolha desse texto para uma discussão acadêmica já é um ato de desobediência A legenda traz como vocativos amigxs amigas amigos amigs e amigues mostrando que esses usos estão em circulação pública ou seja em práticas sociais Além disso 10 Material disponível em httpswwwfacebookcomhamburgueriascphotos Acesso em 10 mar 2018 192 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados demonstra despreocupação com a gramática do gênero nem obedece a uma regra a correta nem impõe uma só regra a regra de enfrentamento Apesar do uso social de expressões plurais de gênero em sessão no STF do dia 10 de agosto de 2016 o ministro Lewandowski então presidente da Casa consultou a ministra Cármen Lúcia recémeleita para substituilo no cargo sobre como ela preferiria ser chamada em relação ao gênero se presidente ou presidenta11 Tratavase de direta alusão ao fato de a já afastada presidenta Dilma Rousseff a primeira mulher a presidir o Brasil fazer questão se ser chamada por presidenta com o feminino marcado Texto 2 Notícia de jornal Cármen Lúcia pede para ser chamada de presidente em vez de presidenta Ministra sucederá Lewandowski na presidência do STF a partir de setembro Sou amante da língua portuguesa disse rindo na sessão desta quarta A ministra Cármen Lúcia afirmou nesta quartafeira 10 durante sessão do Supremo Tribunal Federal que prefere ser chamada de presidente do STF em vez de presidenta como fazia questão a presidente da República afastada Dilma Rousseff Cármen Lúcia sucederá Ricardo Lewandowski na presidência do tribunal a partir de setembro Em meio a um julgamento nesta quarta Lewandowski passou a palavra à colega e perguntou Concedo a palavra à ministra Cármen Lúcia nossa presidenta eleita ou presidente Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa Acho que o cargo é de presidente não é não disse rindo É bom esclarecer desde logo não é brincou Lewandowski De acordo com o professor Sérgio Nogueira autor do blog Dicas de Português no G1 as duas formas presidente e presidenta são corretas O termo presidenta foi inaugurado no vocabulário político brasileiro por Dilma quando ela foi eleita para o primeiro mandato em 2010 Na ocasião ela passou a orientar funcionários e assessores para que a chamassem de presidenta Ao fazer discursos se referia a si mesma como presidenta e também ao mencionar presidentes mulheres de outros países ou instituições Desde então os veículos de comunicação oficiais do governo como a TV NBR também passaram a chamála de presidenta Documentos oficiais também vinham com essa grafia e os servidores do governo também se referiam a ela como presidenta O termo costumava dizer a petista dava ênfase à condição feminina da ocupante do cargo Quadro 2 Fonte elaboração própria da autora e do autor com base em G1 Notícias12 A ministra Cámen Lúcia a segunda mulher a presidir o STF a primeira foi Ellen Gracie em 2006 em sua cerimônia de posse chamou a atenção ao dispensar a tradicional 11 Vídeo disponível em httpswwwyoutubecomwatchvW6Tu7q38XWk Último acesso em 10 mar 2018 12 Material disponível em httpg1globocompoliticanoticia201608carmenluciapedeparaser chamadadepresidenteemvezdepresidentahtmlutmsourcefacebookutmmediumsharebar desktoputmcampaignsharebar Acesso em 10 mar 2018 193 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados festa ao convidar Caetano Veloso para cantar o hino nacional e em seu primeiro discurso como presidente do STF ao quebrar o protocolo e cumprimentar o cidadão brasileiro designandoo por autoridade suprema de todos nós servidores públicos para só depois cumprimentar o presidente da República Michel Temer presente à cerimônia Esses atos de transgressão da Ministra não surpreenderam Em 2007 Cármen Lúcia chamou a atenção por quebrar a rígida tradição dos trajes do STF e usar calças no plenário do tribunal Nessa época o Supremo era composto por 11 ministros dos quais 2 duas eram mulheres e uma delas Ellen Gracie presidia a Casa Essas duas mulheres ocuparam o lugar e reformaram o espaço que ocuparam Apesar de tudo isso do seu lugar de poder a ministra Cármen Lúcia quando o assunto foi a estrutura da língua portuguesa ela que zela pela lei zelou pela norma conservandoa Houve uma proposta de negociação houve a possibilidade de escolha de exposição da preferência pela palavra dada pelo homem à mulher uma relação de poder em um espaço de poder Concedo a palavra à ministra Cármen Lúcia nossa presidenta eleita ou presidente A mulher cedeu às regras Por isso que é colonialidade do poder QUIJANO 2005 como uma relação entre mundos RANCIÈRE 1998 mais que relação de poder O ministro deu a ela não somente a palavra mas a oportunidade da escolha o espaço para a tomada de decisão de um lugar de poder ocupado pela segunda vez depois de dez anos por uma mulher Esse foi o momento da instauração da linguagem como ação política para a verificação e para a geração da democracia Ela respondeu a mulher que foi a primeira a usar calças no plenário do tribunal do STF e a segunda a presidir a Casa a que viria a convidar Caetano Veloso para cantar o hino nacional e a que cumprimentaria o cidadão antes do presidente da República respondeu Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa Acho que o cargo é de presidente não é não disse rindo Com os mundos em relação de dominação o poder estava colonizado A mulher não cedeu ao feminino porque não desobedece à norma falocêntrica nem mesmo estando em um espaço de poder e tendo o poder de decisão O poder está colonizado Assim a consulta que o Ministro Lewandowski faz à Ministra Cármen Lúcia naquela situação enunciativa pode ser entendida como um princípio verificador da 194 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados democracia pela linguagem A resposta da Ministra se tivesse sido outra teria sido também geradora de democracia mas como não foi só possibilita a verificação dos princípios democráticos e todas as razões apontadas por Pereda se aplicam a esse caso Em comentário explicativo no programa Na Ponta da Língua da Rádio CBN do dia 14 de novembro do mesmo 2016 o professor consultor da rádio renomado professor de gramática da língua portuguesa contestou o emprego de bom dia a todos e a todas considerandoo um erro gramatical Seu argumento de autoridade é a gramática do latim a línguamãe da língua portuguesa Texto 3 Textualização de áudio Não estou falando desse todos pronome que está ao lado de um substantivo p e todos os homens né esse todos concorda com homens todas as mulheres esse todas concorda com mulheres não Eu tô falando do todos que substitui o nome p e homens e mulheres saíram Como é que eu poderia substituir homens e mulheres Pelo pronome TO DOS Todos Ora o que seria esse todos Esse todos seria um pronome substantivo indefinido É bom lembrar que no latim ou ou do latim As línguas neolatinas não pegaram o que nós chamamos de forma neutra então o masculino plural É essa forma neutra o que significa dizer que quando eu digo bom dia ou boa tarde ou boa noite a todos gramaticalmente estaria falando a homens e eu estaria falando a mulheres aos dois O que ocorre no geral é que o chamado politicamente correto advindo aí principalmente da década de 80 do século passado até um certo expresidente inaugurou isso né bom dia ou boa noite a brasileiros e brasileiras isso pegou inclusive está até no chamado pronome indefinido e hoje em dia há essa história de todos e todas Bem É possível é comum mas gramaticalmente nem pensar O ideal seria bom dia a todos e esse todos está ligado tanto a homens quanto a mulheres mas em razão do politicamente correto está aí bom dia a todos e a todas Quadro 3 Fonte elaboração da autora e do autor transcrição de vídeo disponibilizado na internet13 A explicação dada merece alguns esclarecimentos gênero neutro e masculino plural usado como falso genérico são categorias diferentes o masculino plural nesse caso não corresponde à forma neutra do latim uma vez que o exemplo dado se refere a homens e mulheres isto é a seres humanos seres lógicos o uso de todos e todas não é um mero cumprimento do protocolo politicamente correto como o interlocutor quer fazer parecer nem decorre de imitação a um certo expresidente a referência é ao expresidente José Sarney Tratase de ação política para geração da democracia porque visa a incluir e a visibilizar o feminino encoberto pelo masculino 13 Vídeo disponível em httpwwwcbngoianiacombrprogramascbngoianianapontadalinguana pontadalC3ADngua1619370bomdiaatodoseatodassaibaseessafraseestC3A1correta 11179620 Acesso em 1o mar 2018 195 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados falsamente declarado como genérico não como neutro masculino plural encobrindo a junção de masculino e feminino e pronome indefinido são diferentes e não se confundem com gênero neutro14 O mais importante entretanto é a tensão que se instala entre politicamente correto e gramaticalmente incorreto em que politicamente correto tem a tonalidade negativa isto é soa como incorreto O locutor mobiliza discursos de autoridade como a gramática latina e a norma culta do português para combater o politicamente correto que é a ação política geradora da democracia que como verificadora dos princípios democráticos permite constatar a indisposição para a democracia sociolinguística do Consultor da Rádio Assim as quatro razões apontadas por Pereda para justificar a obediência às regras iníquas se aplicam ao caso Outra contestação muito enfatizada é em relação à expressão do feminino nos diplomas das universidades Mesmo as pessoas progressistas nesse caso sentemse incomodadas com a inscrição de bacharela mestra doutora nos diplomas Eu ser tratada por mestra ou por doutora acho que tudo bem não é o problema mas escrever em diploma mestra doutora e até bacharela é demais Afirmação de uma professora de Sociolinguística Ou seja mexer na estrutura da sociedade é aceitável mas na estrutura da língua em espaços de poder diploma universitário incomoda Houve pela marcação do feminino em um espaço de poder a verificação da indisposição para a instauração da democracia sociolinguística Texto 4 Capa do Jornal UFG online 14 A afirmação de que as línguas românicas não herdaram o gênero neutro deve ser repensada devido aos resíduos como nos pronomes indefinidos por exemplo todotodos mas todatodas fem e tudo neut nos demonstrativos esseesses masc essaessas fem e isso neut 196 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados Quadro 4 Fonte elaboração da autora e do autor a partir do Jornal da UFG Online15 O Texto 4 é a capa da edição de agosto de 2017 do Jornal Online da UFG A matéria de capa é de Patrícia da Veiga e tem como título Ensinando a pensar A redação da matéria se caracteriza pelo uso não sexista da linguagem A UFG é marcada pela atuação das e dos estudantes desde sua fundação Elas e eles tiveram papel importante por exemplo na articulação que antecedeu a aprovação da Lei 3843 C que autorizou a criação da universidade destaques nossos Além e apesar da capa não há nas matérias do jornal usos do ou de x O primeiro comentário quando o Jornal foi divulgado no Facebook é de um estudante jovem Obrigada por assassinar a língua portuguesa usando o E por assassinar o bom senso no geral pela escolha da foto e matéria da capa em um jornal que reflete a imagem da universidade Esse comentário representa muitas opiniões com o mesmo teor e entrelaça pela semiótica o a foto a matéria a imagem da universidade que narra o mundo pela imagem do antagônico eleito tornando visível o que deveria ficar invisível a copresença do que está autorizado a estar presente e do que deveria ficar ausente criando existência para o que deveria continuar inexistente 15 Disponível em httpsissuucomufgascomdocsjornalufg89pararevisao2 Acesso em 10 mar 2018 197 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados O Jornal em sua réplica convida o locutor à leitura da matéria O locutor leu Ele leu a semiótica do impossível pelo possível a semiótica da presença pela ausência e se negou a aceitar a semiótica do impossível e da copresença porque considera falta de bom senso trazer para a presença em um espaço que deve zelar pela imagem da universidade o não presentificável o corpo não mostrável representado pelo e pela foto do mascarado inimigo da ordem e do status quo O comentário é ambivalente e essa ambivalência favorece nosso argumento se um único uso estampagem do para expressar gênerosexualidade de estudantes na capa do Jornal representa o assassinato da língua portuguesa veja bem é da língua não é só da categoria gênero em um país onde ninguém lê é o que se afirmam na mídia o tempo todo então este é um índice muito potente é um dos mais poderosos geradores e verificadores da democracia na linguagem Invistamos nele O entrelaçamento entre o assassinato da língua portuguesa pelo uso do e o assassinato do bom senso pela visibilidade do estudante mascarado e do canário das manifestações assassinato um crime cometido pela universidade que põe em risco sua própria imagem traz à tona a semiótica das impossibilidades pela visibilidade legítima num espaço de legitimação e poder da ilegitimidade semiótica É a decolonialidade da linguagem pela semiótica decolonial Finalizações A opção decolonial é ontoepistêmica inexoravelmente e é uma construção Não se dorme sob as forças de uma formação colonial e por mágica se acorda sob as forças da decolonialidade Para a construção da decolonialidade é preciso coragem estudo e desobediência Para pensar a desobediência linguística e a desobediência epistêmica MIGNOLO 2009 é fundamental perguntar quem pode falar o que para quem onde sob quais condições Nesta discussão considerando que a escrita é um espaço de poder reservado a uma minoria a pergunta é quem pode escrever o que para quem onde sob quais condições e mais quem pode ter seu corpo inscrito nas categorias de gênerosexualidade da língua Os homens e as mulheres ou TODS A dilatação da estrutura gramatical da língua e a inserção de uma categoria que cria dissenso para dar 198 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados existência a um corpopolítico é mais que uma reforma na língua é efetivamente uma transformação sóciopolíticolinguística Em tempos de liberdade em uma democracia ainda em construção temos de falar em e defender as desobediências civis políticas epistêmicas linguísticas ainda que sejamos taxadosas de radicais porque o Estado é de direito mas é regulatório Um Estado regulatório de direitos com uma democracia imatura caminha sobre suas tradições e convenções e estas em geral são injustas porque representam a parcela privilegiada da sociedade Por isso temos de defender s desobedientes temos de insistir nas manchas e nas rachaduras ontoepistêmicas que aparecem como desobediência gramatical ou linguística temos de pelo menos tentar entender as epistemologias liminares para respeitar e defender principalmente s desobedientes As práticas sociolinguísticas concretas cotidianas são formas de ação política de participação política para a promoção e a potencialização da justiça social Nos estudos sociolinguísticos a linguagem é entendida e abordada tanto como verificação quanto como geração dos princípios democráticos MEJÍA 2014 O gênero é uma das ideologias modernascoloniais de classificação e distribuição dos corpos na sociedade Por isso o gênero gramatical é um forte argumento de autoridade no apagamento do direito à existência e à vivência do gênerosexualidade social e ao direito à escolha e à vivência da sexualidade A linguagem por ser ideológica é o termômetro mais sensível das mudanças sociais afirma Mikhail Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem 2006 É o que mostra o embate entre presidente e presidenta desde 2010 quando a Presidência da República do Brasil foi ocupada pela primeira vez por uma mulher e entre todos e todas das titulações acadêmicas bacharel bacharela mestre mestra doutor doutora Esses embates são o reflexo na língua de uma transformação social contemporânea irreversível O emprego de e de x para dar existência e instaurar a copresença na escrita em português dos corpos sufocados na ausência e na inexistência representa o dissenso social e ontoepistêmico que rasura a estrutura da língua e faz insurgir via escrita pela manifestação de gênerosexualidade esses corpos no mundo e na línguagem Essa problematização mostra uma grande tensão entre os princípios democráticos no que tange a gênerosexualidade sobretudo quando se trata da escrita que é um espaço de poder portanto conservador 199 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados A norma é a lei e em geral as pessoas são transgressoras mas não subversivas porque ser radicais equivale a ser mal comportadas e elas têm limites estão dispostas a aceitar mudanças desde que as mudanças não abalem as estruturas do poder constituído ou do status quo que elas almejam conquistar e não enfrentar para trasnformar Assim as pessoas admitem reformas são transgressoras mas não transformações não são subversivas Em resumo as pessoas transgressoras não admitem que sejam abaladas a jurisprudência romanocristão modernocolonial imperial patriarcal escravocrata lato senso a norma culta da língua legítima grecolatina modernocolonial imperial patriarcal escravocrata e a estética literária canônica grega modernocolonial imperial patriarcal escravocrata As normas de condutas consideradas civilizadas ou urbanas são derivadas do conjunto dessas regras subjetivadas e naturalizadas sob variados rótulos Por isso a prudência a cautela e o bom senso propõem e aceitam reformas desde que não levem a transformações Mas prossigamos sem muita fadiga porque o mundo agora parece que é plano Pelos exemplares de práticas linguísticas apresentadas e discutidas fica patente o desejo de mudança de reforma e de conquista do status quo Por isso não se deseja nem se aceita transformação A língua e a sociedade podem sofrer alterações desde que essas alterações sejam aparentes e não atinjam a estrutura E aí seguindo Mignolo o tema da conversa muda mas não seus termos e o que temos citando Ramadan 2011 é tolerância isto é a caridade intelectual de quem está com algum poder Pelo uso do foram verificados os princípios democráticos no que diz respeito a gênerosexualidade e o que percebemos foi pouca disposição sociolinguística para aceitar a abertura da categoria gramatical de gênero Com este artigo entretanto temos a oportunidade de pela linguagem gerar um pouco de democracia sociolinguística no que diz respeito a gênerosexualidade pelo uso de na escrita acadêmica Dos exemplares discutidos podese inferir que pessoas em posições de poder com maior possibilidade de privilégio relação custo e benefício mais evidente e acentuada tendem a ser mais conservadoras e a defenderem mais as normas hegemônicas As pessoas subversivas que lutam por abalar a jurisprudência a norma culta da língua legítima e a estética literária canônica as que tentam com o próprio corpo e muitas vezes às expensas da própria vida desestabilizar as normas de condutas consideradas civilizadas ou urbanas a prudência a cautela e o bom senso as 200 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados rotuladas de exageradas raivosas histéricas radicais são as subalternizadas as que não têm nada a perder e muito a ganhar as que estão situadas às margens subalternizadas dos centros de poder ou em zonas alternativas em que na relação custo e benefício têm mais a ganhar sendo subversivas do que sendo meramente transgressoras Quem quer transformação de fato são as pessoas que não estão preocupadas em manter o status quo inabalado porque almejam conquistálo são as as pessoas que querem desestabilizar o status quo a qualquer preço são as pessoas que já entenderam que não é possível fazer omelete sem quebrar os ovos as radicais Referências BAKHTIN Mikhail Marxismo e Filosofia da Linguagem São Paulo Hucitec 2006 CÂMARA JR Joaquim Mattoso História e estrutura da língua portuguesa Rio de Janeiro Padrão 1985 CERQUEIRA Daniel et al Atlas da violência no Brasil Rio de Janeiro IpeaFBSP 2017 HOYOS Luis Eduardo Ed Normatividad violencia y democracia Bogotá Universidad Nacional de Colombia Biblioteca Abierta 2014 MEJÍA Andrea Democracia y acción política In HOYOS Luis Eduardo Ed Normatividad violencia y democracia Bogotá Universidad Nacional de Colombia Biblioteca Abierta 2014 pp 2946 MIGNOLO Walter Histórias locaisprojetos globais Trad Solange Ribeiro de Oliveira Colonialidade saberes subalternos e pensamento liminar Belo Horizonte MG Ed UFMG 2003 MIGNOLO W Epistemic Disobediense independent thought and decolonial freedom Theory culture society Vol 26 N 78 pp 123 2009 201 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados OLIVEIRA Gilvan Müller de Org Declaração Universal dos Direitos Linguísticos novas perspectivas em política linguística CampinasSP Mercado de Letras Associação de Leitura do BrasilFlorianópolisSC Ipol 2003 PELÚCIO Larissa O cu dePreciado estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil Printemps Vol N 9 pp 123136 2016 PEREDA Carlos Cómo se construye una democracia In HOYOS Luis Eduardo Ed Normatividad violencia y democracia Bogotá Universidad Nacional de Colombia Biblioteca Abierta 2014 pp 1328 PRECIADO Beatriz Manifiesto contrasexual Madrid Opera Prima 2002 QUIJANO Aníbal Colonialidad del poder eurocentrismo y América Latina In LANDER E Org Colonialidad del saber Eurocentrismo y Ciências Sociales Perspectivas latinoamericanas Buenos Aires ClacsoUnesco 2005 QUIJANO Aníbal Colonialidade do poder e classificação social In Santos B de S Meneses M P Eds Epistemologias do Sul 2nd ed pp 73116 CoimbraPT Almedina 2010 RAMADAN Tariq On superdiverty Reflexions 2 New York Sternberg Press 2011 RANCIÈRE Jacques Disagreement politics and philosophy Trad Julie Rose MinneapolisLondon University of Mennesota Press 1998 REZENDE Tânia Ferreira Políticas de apagamento linguístico In BARROS D M SILVA K A CASSEBGALVÃO V C O ensino em quatro atos interculturalidade tecnologia de informação leitura e gramática CampinasSP Pontes Editores 2015 202 Revista Porto das Letras Vol 04 Nº 01 2018 Sociolinguística os Olhares do Sul na Desestabilização dos Modelos Herdados UNESCO Declaração Universal dos Direitos Humanos Disponível em httpunesdocunescoorgimages0013001394139423porpdf Último acesso em 30 ago 2017 URZÊDAFREITAS Marco Túlio de Letramento queer na formação de professorxs de línguas complicando e subvertendo identidades no fazer docente GoiâniaGO Universidade Federal de Goiás Tese de Doutorado 2018 278 p WALLERSTEIN Immanuel The modern worldsystem San DiegoNew York Academic Press Tomo I 1974