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O Banqueiro Anarquista Fernando Pessoa Fonte httpwwwcfhufscbrmagnobancanarcohtm Tínhamos acabado de jantar Defronte de mim o meu amigo o banqueiro grande comerciante e açambarcador notável fumava como quem não pensa A conversa que fora amortecendo jazia morta entra nós Procurei reanimála ao acaso servindome de uma idéia que me passou pela meditação Volteime para ele sorrindo É verdade disseramme há dias que V em tempos foi anarquista Fui não fui e sou Não mudei a esse respeito Sou anarquista Essa é boa V anarquista Em que é que V é anarquista Só se V dá à palavra qualquer sentido diferente Do vulgar Não não dou Emprego a palavra no sentido vulgar Quer V dizer então que é anarquista exatamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das organizações operárias Então entre V e esses tipos da bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma Diferença diferença há Evidentemente que há diferença Mas não é a que V julga V duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles Ah já percebo V quanto às teorias é anarquista quanto à prática Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias E quanto à prática sou mais sou muito mais anarquista que esses tipos que V citou Toda a minha vida o mostra Hein Toda a minha vida o mostra filho V é que nunca deu a esta cousas uma atenção lúcida Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira ou então estou brincando consigo Ó homem eu não percebo nada A não ser a não ser que V julgue a sua vida dissolvente e antisocial e dê esse sentido ao anarquismo Já lhe disse que não isto é já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar Está bem Continuo sem perceber Ó homem V querme dizer que não há diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida a prática da sua vida como ela é agora V quer que eu acredite que V tem uma vida exatamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas Não não é isso O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma mas uma conformidade absoluta Lá que não tenho uma vida como a dos tipo dos sindicatos e das bombas isso é verdade Mas é a vida deles que está fora do anarquismo fora dos ideais deles A minha não Em mim sim em mim banqueiro grande comerciante açambarcador se V quiser em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas V comparoume a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles Sou mas a diferença é esta eles sim eles e não eu são anarquistas só na teoria eu sou o na teoria e na prática Eles são anarquistas e estúpidos eu anarquista e inteligente Isto é meu velho eu é que sou o verdadeiro anarquista Eles os dos sindicatos e das bombas eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo eles são o lixo do anarquismo os fêmeas da grande doutrina libertária Essa nem ao diabo a ouviram Isso é espantoso Mas como concilia V a sua vida quero dizer a sua vida bancária e comercial coma as teorias anarquistas Como o concilia V se diz que por teoria anarquista entende exatamente o que os anarquistas vulgares entendem E V ainda por cima me diz que é diferente deles por ser mais anarquista do que eles não é verdade Exatamente Não percebo nada Mas V tem empenho em perceber Todo o empenho Ele tirou da boca o charuto que se apagara reacendeuo lentamente tirou o fósforo que se extinguia depôlo ao de leve no cinzeiro depois erguendo a cabeça um momento abaixada disse Oiça Eu nasci do povo e na classe operária da cidade De bom não herdei como pode imaginar nem a condição nem as circunstâncias Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte Mas esses eram doms naturais que o meu baixo nascimento me não podia tirar Fui operário trabalhei vivi uma vida apertada fui em resumo o que a maioria da gente é naquele meio Não digo que absolutamente passasse fome mas andei lá perto De resto podia têla passado que isso não alterava nada do que se seguiu ou do que lhe vou expor nem do que foi a minha vida nem do que ela é agora Fui um operário vulgar em suma como todos trabalhava porque tinha que trabalhar e trabalhava o menos possível O que eu era era inteligente Sempre que podia lia coisas discutia coisas e como não era tolo nasceume uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim Já lhe disse que em boa verdade o meu destino podia ter sido pior do que era mas naquela altura pareciame a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer Isto era aí pelos meus vinte anos vinte e um o máximo que foi quando me tornei anarquista Parou um momento Voltouse um pouco mais para mim Continuou inclinandose mais um pouco Fui sempre mais ou menos lúcido Sentime revoltado Quis perceber a minha revolta Torneime anarquista consciente e convicto o anarquista consciente e convicto que hoje sou E a teoria que V tem hoje é a mesma que tinha nessa altura A mesma A teoria anarquista a verdadeira teoria é só uma Tenho a que sempre tive desde que me tornei anarquista V já vai ver Ia eu dizendo que como era lúcido por natureza me tornei anarquista consciente Ora o que é um anarquista É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente no fundo é só isto E de aí resulta como é de ver a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico isto é como é que a gente se torna anarquista já vamos à parte teórica do assunto Por agora compreenda V bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minhas circunstâncias O que é que ele vê pelo mundo Um nasce filho de um milionário protegido desde o berço contra aqueles infortúnios e não são poucos que o dinheiro pode evitar ou atenuar outro nasce miserável a ser quando criança uma boca a mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver Um nasce conde ou marquês e tem por isso a consideração de toda a gente faça ele o que fizer outro nasce assim como eu e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos tratado como gente Uns nascem em tais condições que podem estudar viajar instruirse tornar se podese dizer mais inteligentes que outros que naturalmente o são mais E assim por aí adiante e em tudo As injustiças da Natureza vá não as podemos evitar Agora as da sociedade e das suas convenções essas por que não evitálas Aceito não tenho mesmo outro remédio que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu o talento a força a energia não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças com que não saiu do ventre da mãe mas que lhe aconteceram por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora a riqueza a posição social a vida facilitada etc Foi da revolta que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de então o anarquismo que já lhe disse mantenho hoje sem alteração nenhuma Parou outra vez um momento como a pensar como prosseguiria Fumou e soprou o fumo lentamente para o lado oposto ao meu Voltouse e ia a prosseguir Eu porém interrompio Uma pergunta por curiosidade Por que é que V se tornou propriamente anarquista V podia terse tornado socialista ou qualquer outra cousa avançada que não fosse tão longe Tudo isso estava dentro da sua revolta Deduzo do que V disse que por anarquismo V entende e acho que está bem como definição do anarquismo a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a abolição de todas Isso mesmo Por que escolheu V essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras das intermédias Eu lhe digo Eu meditei tudo isso É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias Escolhi a teoria anarquista a teoria extrema como V muito bem diz pelas razões que vou dizer em duas palavras Fitou um momento cousa nenhuma Depois voltouse para mim O mal verdadeiro o único mal são as convenções e as ficções sociais que se sobrepõem às realidades naturais tudo desce a família ao dinheiro desde a religião ao Estado A gente nasce homem ou mulher quero dizer nasce para ser em adulto homem ou mulher não nasce em boa justiça natural nem para ser marido nem para ser rico ou pobre como também não nasce para ser católico ou protestante ou português ou inglês É todas estas coisas em virtude das ficções sociais Ora essas ficções sociais são más por quê Porque são ficções porque não são naturais Tão mau é o dinheiro como o Estado a constituição de família como as religiões Se houvesse outras que não fossem estas seriam igualmente más porque também seriam ficções porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais Ora qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista completamente é uma ficção também Empregar todo o nosso desejo todo o nosso esforço toda a nossa inteligência para implantar ou contribuir para implantar uma ficção social em vez de outra é um absurdo quando não seja mesmo um crime porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma Se achamos injustas as ficções sociais porque esmagam e oprimem o que é natural no homem para que empregar o nosso esforço em substituirlhes outras ficções se o podemos empregar para as destruir todas Isto pareceme que é concludente Mas suponhamos que o não é suponhamos que nos objetam que isto tudo estará muito certo mas que o sistema anarquista não é realizável na prática Vamos lá a examinar essa parte do problema Por que é que o sistema anarquista não seria realizável Nós partimos todos os avançados do princípio não só de que o atual sistema é injusto mas de que há vantagem porque há injustiça em substituílo por outro mais justo Se não pensamos assim não somos avançados mas burgueses Ora de onde vem este critério de justiça Do que é natural e verdadeiro em oposição às ficções sociais e às mentiras da convenção Ora o que é natural é o que é inteiramente natural não é metade ou um quarto ou um oitavo de natural Muito bem Ora de duas coisas uma ou o natural é realizável socialmente ou não é em outras palavras ou a sociedade pode ser natural ou a sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma Se a sociedade pode ser natural então pode haver a sociedade anarquista ou livre e deve haver porque é ela a sociedade inteiramente natural Se a sociedade não pode ser natural se por qualquer razão que não importa tem por força que ser ficção então do mal o menos façamola dentro desse ficção inevitável o mais natural possível Qual é a ficção mais natural Nenhuma é natural em si porque é ficção a mais natural neste nosso caso será aquela que pareça mais natural que se sinta como mais natural É aquela que estamos habituados V compreende o que é natural é o que é do instinto e o que não sendo instinto se parece em tudo com o instinto é o hábito Fumar não é natural não é uma necessidade do instinto Ora qual é a ficção social que constitui um hábito nosso É o atual sistema o sistema burguês Temos pois em boa lógica que ou achamos a sociedade natural e seremos defensores do anarquismo ou não a julgamos possível e seremos defensores do regime burguês Não há hipótese intermédia Percebeu Sim senhor isso é concludente Ainda não é bem concludente Ainda há uma outra objeção do meu gênero a liquidar Pode concordarse que o sistema anarquista é realizável mas pode duvidar se que ele seja realizável de chofre isto é que se possa passar da sociedade burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes intermédios Quem fizer essa objeção aceita como boa e como realizável a sociedade anarquista mas palpitalhe que tem que haver um estado qualquer de transição entre a sociedade burguesa e ela Ora muito bem Suponhamos que assim é O que é esse estado intermédio O nosso fim é a sociedade anarquista ou livre esse intermédio só pode ser portanto um estado de preparação da humanidade para a sociedade livre Essa preparação ou é material ou é simplesmente mental isto é ou é uma série de realizações materiais ou sociais que vão adaptando a humanidade à sociedade livre ou é uma simples propaganda gradualmente crescente e influente que vai preparando mentalmente a desejála ou aceitála Vamos ao primeiro caso a adaptação gradual e material da humanidade à sociedade livre É impossível é mais que impossível é absurdo Não há adaptação material senão uma cousa que já há Nenhum de nós se pode adaptar materialmente ao meio social do século XXIII mesmo que saiba o que ele será e não se pode adaptar materialmente porque o século XXIII e o seu meio social não existem materialmente ainda Assim chegamos à conclusão que na passagem da sociedade burguesa para a sociedade livre a única parte que pode haver de adaptação de evolução ou de transição é mental é a gradual adaptação dos espíritos à idéia da sociedade livre Em todo o caso no campo da adaptação material ainda há uma hipótese Irra com tanta hipótese Ó filho o homem lúcido tem que examinar todas as objeções possíveis e de as refutar antes de se poder dizer seguro da sua doutrina E de mais a mais isto tudo é em resposta a uma pergunta que V me fez Está bem No campo da adaptação material dizia eu há em todo o caso um outra hipótese É a da ditadura revolucionária Da ditadura revolucionária como Como eu lhe expliquei não pode haver adaptação material a uma coisa que não existe materialmente ainda Mas se por um movimento brusco se fizer a revolução social fica implantada já não a sociedade livre porque para essa não pode a humanidade ter ainda preparação mas uma ditadura daqueles que querem implantar a sociedade livre Mas existe já ainda que em esboço ou em começo existe já materialmente qualquer coisa da sociedade livre Há já portanto uma coisa material a que a humanidade se adapte É este o argumento com que as bestas que defendem a ditadura do proletariado a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de pensar O argumento é claro não é deles é meu Ponhoo como objeção a mim mesmo E como lhe vou mostrar é falso Um regime revolucionário enquanto existe e seja qual for o fim a que visa ou a idéia que o conduz é materialmente só uma coisa um regime revolucionário Ora um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra ou nas verdadeira palavras um regime militar despótico porque o estado de guerra é imposta à sociedade por uma parte dela aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder O que é que resulta Resulta que quem se adaptar a esse regime como a única coisa que ele é materialmente imediatamente é um regime militar despótico adaptase a um regime militar despótico A idéia que conduziu os revolucionários o fim a que visaram desapareceu por completo da realidade social que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária e tanto mais completamente sairá quanto mais tempo essa ditadura durar é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial isto é um despotismo militar Nem mesmo podia ser outra coisa E foi sempre assim Eu não sei muita história mas o que sei acerta com isto nem podia deixar de acertar O que saiu das agitações políticas de Roma O Império Romano e seu despotismo militar O que saiu da Revolução Francesa Napoleão e seu despotismo militar E V verá o que sai da Revolução Russa Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre Também o que era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos Enfim isto já está fora de conversa V percebeu o meu argumento Percebi perfeitamente V compreende portanto que eu cheguei a esta conclusão Fim a sociedade anarquista a sociedade livre meio a passagem sem transição da sociedade burguesa para a sociedade livre Esta passagem seria preparada e tornada possível por uma propaganda intensa completa absorvente de modo a predispor todos os espíritos e enfraquecer todas as resistências É claro que por propaganda não entendo só a pela palavra escrita e falada entendo tudo ação indireta ou direta quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda Assim não tendo quase resistência nenhuma que vencer a revolução social quando viesse seria rápida fácil e não teria que estabelecer nenhuma ditadura revolucionária por não ter contra quem aplicala Se isto não pode ser assim é que o anarquismo é irrealizável e se o anarquismo é irrealizável só é defensável e justa como já lhe provei a sociedade burguesa Ora aí tem V por que e como eu me tornei anarquista e por que e como rejeitei como falsas e antinaturais as outras doutrinas sociais de menor ousadia E pronto Vamos lá continuar a minha história Fez explodir um fósforo e acendeu lentamente o charuto Concentrouse e de aí a pouco prosseguiu Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu A maioria era de operários mas havia um ou outro que o não era o que todos éramos era pobres e que me lembre não éramos muito estúpidos A gente tinha uma certa vontade de propaganda de espalhar as nossas idéias Queríamos para nós e para os outros para a humanidade inteira uma sociedade nova livre destes preconceitos todos que fazem os homens desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades sofrimentos estreitezas que a Natureza lhes não tinha imposto Por mim o que eu lia confirmava me nestas opiniões Em livros libertários baratos os que havia ao tempo e eram já bastantes li quase tudo Fui a conferências e comícios dos propagandistas do tempo Cada livro e cada discurso me convencia mais da certeza e da justiça das minhas idéias O que eu pensava então repitolhe meu amigo é o que penso hoje a única diferença é que então pensavao só hoje pensoo e praticoo Pois sim isso até onde vai está muito bem Está muito certo que V se tornasse anarquista assim e vejo perfeitamente que V era anarquista Não preciso mais provas disso como é que saiu de aí sem contradição Isto é mais ou menos já calculo Não não calcula nada Eu sei o que V quer dizer V baseiase nos argumentos que acaba de ouvir e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso como lhe disse só defensável e justa a sociedade burguesa não é Sim calculei que fosse mais ou menos isso Mas como o podia ser se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que sou anarquista que não só o fui mas o continuo sendo Se eu me tivesse tornado banqueiro e comerciante pela razão que V julga eu não era anarquista era burguês Sim V tem razão Mas então como diabo Vá lá vá dizendo Como lhe disse eu era fui sempre mais ou menos lúcido e também um homem de ação Essas são qualidades naturais não mas puseram no berço se é que tive berço eu é que as levei para lá Pois bem Sendo anarquista eu achava insuportável ser anarquista passivamente só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos Não era preciso fazer qualquer coisa Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos oprimidos e das vítimas das convenções sociais Decidi meter ombros a isso conforme pudesse Pusme a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária Pusme a traçar o meu plano de ação O que quer o anarquista Liberdade a liberdade para si e para os outros para a humanidade inteira Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais quer ser livre tal qual nasceu e pareceu no mundo que é como em justiça deve ser e quer essa liberdade para si e para todos os mais Nem todos podem ser iguais perante a Natureza uns nascem altos outros baixos uns fortes outros fracos uns mais inteligentes outros menos Mas todos podem ser iguais de aí em diante só as ficções sociais o evitam Essas ficções sociais é que era preciso destruir Era preciso destruílas Mas não me escapou uma coisa era preciso destruílas mas em proveito da liberdade e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade ou preparar o caminho da liberdade como para estabelecer outras ficções sociais diferentes igualmente más porque igualmente ficções Aqui é que era preciso cuidado Era preciso acertar com um processo de ação qualquer que fosse a sua violência ou a sua nãoviolência porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem ao mesmo tempo estorvar a criação da liberdade futura criando já mesmo caso fosse possível alguma coisa da liberdade futura É claro que esta liberdade que deve haver cuidado em não estorvar é a liberdade futura e no presente a liberdade dos oprimidos pelas ficções sociais Claro está que não temos que olhar a não estorvar a liberdade dos poderosos dos bem situados de todos que representam as ficções sociais e têm vantagens delas Essa não é liberdade é a liberdade de tiranizar que é o contrário da liberdade Essa pelo contrário é o que mais devíamos pensar em estorvar e em combater Pareceme que isto está claro Está claríssimo Continue Para quem quer o anarquismo a liberdade Para a humanidade inteira Qual é a maneira de se conseguir a liberdade para a humanidade inteira Destruir por completo todas as ficções sociais Já lhe antecipei a explicação quando por causa da sua pergunta discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e por que era anarquista V lembrase da minha conclusão Lembro Uma revolução social súbita brusca esmagadora fazendo a sociedade passar de um salto do regime burguês para a sociedade livre Esta revolução social preparada por um trabalho intenso e contínuo de ação direta e indireta tendente a dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre e a enfraquecer até ao estado comatoso todas as resistências da burguesia Escuso de lhe repetir as razões que levam inevitavelmente a esta conclusão a dentro do anarquismo já lhe expus e V já a percebeu Sim Essa revolução seria preferivelmente mundial simultânea em todos os pontos ou os pontos importantes do mundo ou não sendo assim partindo rapidamente de uns para outros mas em todo o caso em cada ponto isto é em cada nação fulminante e completa Muito bem O que poderia eu fazer para esse fim Só por mim não a poderia fazer a ela à revolução mundial nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao país onde estava O que podia era trabalhar na inteira medida do meu esforço para fazer a preparação para essa revolução Já lhe expliquei como combatendo por rodos os meios acessíveis as ficções sociais não estorvando nunca ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre nem a liberdade futura nem a liberdade presente dos oprimidos criando já sendo possível qualquer coisa da futura liberdade Puxou fumo fez uma leve pausa recomeçou Ora aqui meu amigo pus eu a minha lucidez em ação Trabalhar para o futuro está bem pensei eu trabalhar para os outros terem liberdade está certo Mas então eu Eu não sou ninguém Se eu fosse cristão trabalhava alegre mente pelo futuro dos outros porque lá tinha a minha recompensa no céu mas também se eu fosse cristão não era anarquista porque então as tais desigualdades sociais não tinham importância na nossa curta vida eram só condições da nossa provação e lá seriam compensadas na vida eterna Mas eu não era cristão como não sou e perguntava me mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo Mais ainda por que é que eu me vou sacrificar Vieramme momentos de descrença e V compreende que era justificada Sou materialista pensava eu não tenho mais vida que esta para que hei de ralarme com propagandas e desigualdades sociais e outras histórias quando posso gozar e entreterme muito mais se não me preocupar com isso Quem tem só esta vida quem não crê na vida eterna quem não admite lei senão a Natureza quem se opõe ao Estado porque ele não é natural ao casamento porque ele não é natural ao dinheiro porque ele não é natural porque cargasdágua é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros ou pela humanidade se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais Sim a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado ou para ser português ou para ser rico ou pobre mostrame também que ele não nasce para ser solidário que ele não nasce senão para ser elepróprio e portanto o contrário de altruísta e solidário e portanto exclusivamente egoísta Eu discuti a questão comigo mesmo Repara tu dizia eu para mim que nascemos pertencentes à espécie humana e que temos o dever de ser solidários com todos os homens Mas a idéia de dever era natural De onde é que vinha esta idéia de dever Se esta idéia de dever me obrigava a sacrificar o meu bemestar a minha comodidade o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais em que divergia a ação dessa idéia da ação de qualquer ficção social que produz em nós exatamente o mesmo efeito Esta idéia de dever isto de solidariedade humana só podia considerarse natural se trouxesse consigo uma compensação egoísta porque então embora em princípio contrariasse o egoísmo natural se dava a esse egoísmo uma compensação sempre no fim de contas o não contrariava Sacrificar um prazer simplesmente sacrificálo não é natural sacrificar um prazer a outro é que já está dentro da Natureza é entre duas cousas naturais que se não podem ter ambas escolher uma o que está bem Ora que compensação egoísta ou natural podia darme a dedicação à causa da sociedade livre e da futura felicidade humana Só a consciência de dever cumprido do esforço para um fim bom e nenhuma destas coisas é uma compensação egoísta nenhuma destas coisas é um prazer em si mas um prazer se o é nascido de uma ficção social como pode ser o prazer de ser imensamente rico ou o prazer de ter nascido em um boa posição social Confessolhe meu velho que me vieram momentos de descrença Sentime desleal à minha própria doutrina traidor a ela Mas em breve passei sobre tudo isto A idéia de justiça cá estava dentro de mim pensei eu Eu sentiaa natural Eu sentia que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino E fui para diante na minha intenção Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte V não resolveu a dificuldade V foi para diante por um impulso absolutamente sentimental Sem dúvida Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei anarquista e de como o continuei sendo e continuo Voulhe expondo lealmente as hesitações e as dificuldades que tive e como as venci Concordo que naquele momento venci a dificuldade lógica com o sentimento e não com o raciocínio Mas V há de ver que mais tarde quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista esta dificuldade até então logicamente sem resposta teve a sua solução completa e absoluta É curioso É Agora deixeme continuar na minha história Tive esta dificuldade e resolvia se bem que mal como lhe disse Logo a seguir e na linha dos meus pensamentos surgiume outra dificuldade que também me atrapalhou bastante Estava bem vamos lá que estivesse disposto a sacrificarme sem recompensa nenhuma propriamente pessoal isto é sem recompensa nenhuma verdadeiramente natural Mas suponhamos que a sociedade futura não dava em nada do que eu esperava que nunca havia a sociedade livre e que diabo é que eu nesse case me estava sacrificando Sacrificarme a uma idéia sem recompensa pessoal sem eu ganhar nada com o meu esforço por essa idéia vá mas sacrificarme sem ao menos ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava existiria um dia sem que a própria idéia ganhasse com o meu esforço isso era um pouco mais forte Desde já lhe digo que resolvi a dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra mas advirtoo também que do mesmo modo que a outra resolvi esta pela lógica automaticamente quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu anarquismo V depois verá Na altura do que lhe estou contando saíme do apuro com uma ou duas frases ocas Eu fazia o meu dever para com o futuro o futuro que fizesse o seu para comigo Isto ou cousa que o valha Expus esta conclusão ou antes estas conclusões aos meus camaradas e eles concordaram todos comigo concordaram todos que era preciso ir para a frente e fazer tudo pela sociedade livre É a verdade que um ou outro dos mais inteligentes ficaram um pouco abalados com a exposição não porque não concordassem mas porque nunca tinham visto as coisas assim claras nem os bicos que estas coisas têm Mas enfim concordaram todos Iríamos todos trabalhar pela grande revolução social pela sociedade livre quer o futuro nos justificasse quer não Formamos um grupo entre gente certa e começamos uma grande propaganda grande é claro dentro dos limites doo que podíamos fazer Durante bastante tempo no meio de dificuldades embrulhadas e por vezes perseguições lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista O banqueiro chegado aqui fez uma pausa um pouco mais longa Não acendeu o charuto que estava outra vez apagado De repente teve um leve sorriso e com o ar de quem chega ao ponto importante fitoume com mais insistência e prosseguiu clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras Nesta altura disse ele apareceu uma coisa nova Nesta altura é modo de dizer Quero dizer que depois de alguns meses desta propaganda comecei a reparar numa nova complicação e esta é que era a mais séria de todas esta é que era séria a valer V recordase não é verdade Daquilo em que eu por um raciocínio rigoroso assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas Um processo ou processos quaisquer pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem ao mesmo tempo estorvar a criação da liberdade futura sem portanto estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais um processo que sendo possível criasse já alguma coisa da liberdade futura Pois bem uma vez assente este critério nunca mais deixei de o ter presente Ora na altura da nossa propaganda em que estou falando descobri uma coisa No grupo de propaganda não éramos muitos éramos quarenta salvo erro davase este caso criavase tirana Criavase tirania Criavase tirania como Da seguinte maneira Uns mandavam em outros e levavamnos para onde queriam uns impunhamse a outros e obrigavamnos a ser o que eles queriam uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam Não digo que fizessem isto em coisas graves mesmo não havia coisas graves ali em que o fizessem Mas o fato é que isto acontecia sempre e todos os dias e davase não só em assuntos relacionados com a propaganda como fora deles em assuntos vulgares da vida Uns iam insensivelmente para chefes outros insensivelmente para subordinados Uns eram chefes por imposição outros eram chefes por manha No fato mais simples isto se via Por exemplo dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora chegavam ao fim da rua e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda cada um tinha conveniência em ir para o seu lado Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro venha V comigo por aqui o outro respondia e era verdade Homem não posso tenho que ir por ali por esta ou aquela razão Mas afinal contra sua vontade e sua conveniência lá ia com o outro para a esquerda Isto era uma vez por persuasão outra vez por simples insistência uma terceira vez por um outro motivo qualquer Isto é nunca era por uma razão lógica havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo de como que instintivo E como neste caso simples em todos os outros casos desde os menos até aos mais importantes V vê bem o caso Vejo Mas que diabos há de estranho nisso Isso é tudo quanto há de mais natural Será Já vamos a isso O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da doutrina anarquista Repare bem que isto se passava num grupo pequeno num grupo sem influência nem importância num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto E repare que se passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim anarquista isto é para combate tanto quando possível as ficções sociais e criar tanto quando possível a liberdade futura V reparou bem nestes dois pontos Reparei Veja agora bem o que isto representa Um grupo pequeno de gente sincera garantolhe que era sincera estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade tinha no fim de uns meses conseguido só uma coisa de positivo e concreto a criação entre si de tirania E repare que tirania Não era uma tirania derivada da ação das ficções sociais que embora lamentável seria desculpável até certo ponto ainda que menos em nós que combatíamos essas ficções que em outras pessoas mas enfim vivíamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de todo fugir à sua ação Mas não era isso Os que mandavam nos outros ou os levavam para onde queriam não faziam isso pela força do dinheiro ou da posição social ou de qualquer autoridade de natureza fictícia que se arrogassem faziamno por uma ação de qualquer espécie fora das ficções sociais uma tirania nova E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais Era ainda por cima tirania exercida entre si por gente cujo intuido sincero não era senão destruir tirania e criar liberdade Agora ponha o caso num grupo muito maior muito mais influente tratando já de questões importantes e de decisões de caráter fundamental Ponha esse grupo a encaminha os seus esforços como o nosso para a formação de um sociedade livre E agora digame se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V entrevê qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um humanidade digna de si própria Sim isso é muito curioso É curioso não éE olhe que há pontos secundários também muito curiosos Por exemplo a tirania do auxílio A quê A tirania do auxílio Havia entre nós quem em vez de mandar nos outros em vez de se impor aos outros pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia Parece o contrário não é verdade Pois olhe que é o mesmo É a mesma tirania nova É do mesmo modo ir contra os princípios anarquistas Essa é boa Em quê Auxiliar alguém meu amigo é tomar alguém por incapaz se esse alguém não é incapaz é ou fazêlo tal ou supôlo tal e isto é no primeiro caso uma tirania e no segundo um desprezo Num caso cerceiase a liberdade de outrem no outro caso partese pelo menos inconscientemente do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade Voltemos ao nosso caso V vê bem que este ponto era gravíssimo Vá que trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse ou arriscandonos mesmo a que ela nunca viesse Tudo isso vá Mas o que era demais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos de positivo mais que criar tirania e não só tirania mas tirania nova e tirania exercida por nós os oprimidos uns sobre os outros Ora isto é que não pode ser Pusme a pensar Aqui havia um erro um desvio qualquer Os nossos intuitos eram bons as nossas doutrinas pareciam certas seriam errados os nossos processos Com certeza que deveriam ser Mas onde diabo estava o erro Pusme a pensar nisso e ia dando em doido Um dia de repente como acontece sempre nestas coisas dei com a solução Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas o dia em que descobri por assim dizer a técnica do anarquismo Olhoume um momento sem me olhar Depois continuou no mesmo tom Pensei assim Temos aqui uma tirania nova uma tirania que não é derivada das ficções sociais Então de onde é que ela derivada Será derivada das qualidades naturais Se é adeus sociedade livre Se uma sociedade onde estão em operação apenas as qualidades naturais dos homens aquelas qualidades com que eles nascem que devem só à Natureza e sobre as quais não temos poder nenhum se uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa sociedade Tirania por tirania fique a que está que ao menos é aquela a que estamos habituados e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma tirania nova e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente da Natureza o não haver revolta possível contra ela como não há revolução contra ter que morrer ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido alto Mesmo eu já lhe provei que se por qualquer razão não é realizável a sociedade anarquista então deve existir por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela a sociedade burguesa Mas seria esta tirania que nascia assim entre nós realmente derivada das qualidades naturais Ora o que são as qualidades naturais São o grau de inteligência de imaginação de vontade etc com que cada um nasce isto no campo mental é claro porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso Ora um tipo que sem ser por uma razão derivada das ficções sociais manda noutro por força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais Dominao pelo emprego das suas qualidades naturais Mas há uma coisa a ver esse emprego das qualidades naturais será legítimos isto é será natural Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais O servir os fins naturais da nossa personalidade Ora dominar alguém será um fim natural da nossa personalidade Pode sêlo há um caso em que pode sêlo é quando esse alguém está para nós num lugar de inimigo Para o anarquista é claro quem está num lugar de inimigo é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania mais ninguém porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas naturais Ora V bem vê o caso da tirania que tínhamos estado criando era exercida sobre homens como nós camaradas naturais e mais ainda sobre homens duas vezes nossos camaradas porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal Conclusão esta nossa tirania se não era derivada das ficções sociais também não era derivada das qualidades naturais era derivada duma aplicação errada duma perversão das qualidades naturais E essa perversão de onde é que provinha Tinha que provir de uma de duas cousas ou de o homem ser naturalmente mau e portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas ou de uma perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de ficções sociais todas elas criadoras de tirania e tendente portanto a tornar já instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais Ora destas duas hipóteses qual é que seria a verdadeira De um modo satisfatório isto é rigorosamente lógico ou científico era impossível determinar O raciocínio não pode entrar com o problema porque ele é de ordem histórica ou científica e depende do conhecimento de fatos Por seu lado a ciência também nos não ajuda porque por mais longe que recuemos na história encontramos sempre o homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social e portanto sempre num estado que nos não permite averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente naturais Não havendo maneira de determinar ao certo temos que pender para o lado da maior probabilidade e a maior probabilidade está na segunda hipótese É mais natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais pervertidas no sentido de tiranizar do que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente pervertidas o que de certo modo representa una contradição Por isso o pensador decidese como eu me decidi com uma quase absoluta segurança pela segunda hipótese Temos pois que uma coisa é evidente No estado social presente não é possível um grupo de homens por bem intencionados que estejam todos por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania sem criar entre si uma tirania nova suplementar à das ficções sociais sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria sem involutariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover O que há a fazer É muito simples É trabalharmos todos para o mesmo fim mas separados Separados Sim V não seguiu o meu argumento Segui E não acha lógica não acha fatal esta conclusão Acho sim claro Disse eu trabalharmos todos para o mesmo fim mas separados Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista cada um contribui com o seu esforço para a destruição das ficções sociais que é para onde o dirige e para a criação da sociedade livre do futuro e trabalhando separados não podemos de modo nenhum criar tirania nova porque nenhum tem ação sobre o outro e não pode portanto nem dominandoo diminuirlhe a liberdade nem auxiliandoo apagarlha Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista temos as duas vontades a do esforço e a da não criação de tirania nova Continuamos unidos porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim continuamos anarquistas porque cada um trabalha para a sociedade livre mas deixamos de ser traidores voluntários ou involuntários à nossa cousa deixamos mesmo de poder sêlo porque nos colocamos pelo trabalho anarquista isolado fora da influência deletéria das ficções sociais no seu reflexo hereditário sobre as qualidades que a Natureza deu É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação para a revolução social Arruinadas as defesas burguesas e reduzida a sociedade inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas faltando só fazer a revolução social então para o golpe final é que não pode continuar a ação separada Mas nessa altura já a sociedade livre estará virtualmente chagada já as coisas serão de outra maneira A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em meio da sociedade burguesa como agora como no grupo a que eu pertencia Era esse até que enfim o verdadeiro processo anarquista Juntos nada valíamos que importasse e ainda por cima nos tiranizávamos e nos estorvávamos uns aos outros e às nossas teorias Separados pouco também conseguiríamos mas ao menos não estorvávamos a liberdade não criávamos tirania nova o que conseguíamos pouco que fosse era realmente conseguido sem desvantagem nem perda E de mais a mais trabalhávamos assim separados aprendíamos a confiar mais em nós mesmos a não nos encostarmos uns aos outros a tornarmonos mais livres já a prepararmonos tanto pessoalmente como aos outros pelo nosso exemplo para o futuro Fiquei radiante com essa descoberta Fui logo expôla aos meus camaradas Foi uma das poucas vezes em que fui estúpido na minha vida Imagine V que eu estava tão cheio da minha descoberta que esperava que eles concordassem Não concordaram é claro Repontaram meu amigo repontaram todos Uns mais outros menos tudo protestou Não era isso Isso não podia ser Mas ninguém dizia o que era ou o que é que havia de ser Argumentei e argumentei e em resposta aos meus argumentos não obtive senão frases lixo coisas como essas que os ministros respondem nas câmaras quando não têm resposta nenhuma Então é que eu vi com que bestas e com que covardões estava metido Desmascararamse Aquela corja tinha nascido para escravos Queriam ser anarquistas à custa alheia Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem logo que lhe fosse dada como um rei dá um título Quase todos eles são assim os grandes lacaios E V escamouse Se me escamei Enfurecime Pusme aos coices Dei por paus e por pedras Quase que me peguei com dois ou três deles E acabei por me vir embora Isoleime Veiome um nojo àquela carneirada toda que V não imagina Quase que descri no anarquismo Quase que decidi não me importar mais com tudo aquilo Mas passados uns dias voltei a mim Pensei que o ideal anarquista estava acima destas quizílas Eles não queriam só brincar aos libertários Não estava eu para brincar num caso desses Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros e criando entre si um simulacro novo da tirania que diziam querer combater Pois que o fizessem os parvos se não serviam para mais Eu é que não ia ser burguês por tão pouco Estava estabelecido que no verdadeiro anarquismo cada um tem que por sua própria forças criar liberdade e combater as ficções sociais Pois por minha própria forças eu ia criar liberdade e combater as ficções sociais Ninguém queria seguirme no verdadeiro caminho anarquista Seguiria eu por ele Iria eu só com os meus recursos com a minha fé desacompanhado até do apoio mental dos que tinham sido meus camaradas contra as ficções sociais inteiras Não digo que fosse um belo gesto nem um gesto heróico Foi simplesmente um gesto natural Se o caminho tinha que ser seguido por cada um separadamente eu não precisava de mais ninguém para o seguir Bastava o meu ideal Foi baseado nestes princípios e nestas circunstâncias que decidi por mim só combater as ficções sociais Suspendeu um pouco o discurso que se lhe tornara quente e fluido Retomouo de ali a pouco com a voz já mais sossegada É um estado de guerra pensei eu entre mim e as ficções sociais Muito bem O que posso eu fazer contra as ficções sociais Trabalho sozinho para não poder de modo nenhum criar qualquer tirania Como posso eu colaborar sozinho na preparação da revolução social na preparação da humanidade para a sociedade livre Tenho que escolher um de dois processos dos dois processos que há caso é claro não possa servirme de ambos Os dois processos são a ação indireta isto é a propaganda e a ação direta de qualquer espécie Pensei primeiro na ação indireta isto é na propaganda Que propaganda poderia eu fazer só por mim À parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em conversa com este ou aquele ao acaso e servindonos de todas as oportunidades o que eu queria saber era se a ação indireta era um caminho por onde eu pudesse encaminhar a minha atividade de anarquista energicamente isto é de modo a produzir resultados sensíveis Vi logo que não podia ser Não sou orador e não sou escritor Quero dizer sou capaz de falar em público se for preciso e sou capaz de escrever um artigo de jornal mas o que eu queria averiguar era se o meu feitio natural indicava que especializandome na ação indireta de qualquer das duas espécies ou em ambas eu poderia obter resultados mais positivos para a idéia anarquista que especializando os meus esforços em qualquer outro sentido Ora a ação é sempre mais proveitosa que a propaganda exceto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como propagandistas os grandes oradores capazes de eletrizar multidões e arrastálas atrás de si ou os grandes escritores capazes de fascinar e convencer com os seus livros Não me parece que eu seja muito vaidoso mas se o sou não me dá pelo menos para me envaidecer daquelas qualidades que não tenho E como lhe disse nunca me deu para me julgar orador ou escritor Por isso abandonei a idéia da ação indireta como caminho a dar à minha atividade anarquista Por exclusão de partes era forçado a escolher a ação direta isto é o esforço aplicado à prática da vida à vida real Não era a inteligência mas a ação Muito bem Assim seria Tinha eu pois que aplicar à vida prática o processo fundamental de ação anarquista que eu já tinha esclarecido combater as ficções sociais sem criar tirania nova criando já caso fosse possível qualquer coisa da liberdade futura Ora como diabo se faz isso na prática Ora o que é combater na prática Combater na prática é a guerra é uma guerra pelo menos Como é que se faz guerra às ficções sociais Antes de mais nada como é que se faz guerra Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra De uma de duas maneiras ou matandoo isto é destruindoo ou aprisionandoo isto é subjugandoo reduzindoo à inatividade Destruir as ficções sociais não podia eu fazer destruir as ficções sociais só o podia fazer a revolução social Até ali as ficções sociais podiam estar abaladas cambaleando por um fio mas destruídas só o estariam com a vinda da sociedade livre e a queda positiva da sociedade burguesa O mais que eu poderia fazer nesse sentido era destruir destruir no sentido físico de matar um ou outro membro da classes representativas da sociedade burguesa Estudei o caso e vi que era asneira Suponha V que eu matava um ou dois ou uma dúzia de representante da tirania das ficções sociais O resultado As ficções sociais ficariam abaladas Não ficariam As ficções sociais não são como um situação política que pode depender de um pequeno número de homens de um só homem por vezes O que há de mau nas ficções sociais são elas no seu conjunto e não os indivíduos que as representam senão por serem representantes delas Depois um atentado de ordem social produz sempre uma reação não só tudo fica na mesma mas as mais das vezes piora E ainda por cima suponha como é natural que depois de um atentado eu era caçado era caçado e liquidado de uma maneira ou outra E suponha que eu tinha dado cabo de uma dúzia de capitalistas Em que vinha isso tudo dar e resumo Com a minha liquidação ainda que não por morte mas por simples prisão ou degredo a causa anarquista pedia um elemento de combate e os doze capitalistas que eu teria estendido não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha perdido porque os elementos componentes da sociedade burguesa não são elementos de combate mas elementos puramente passivos pois o combate está não nos membros da sociedade burguesa mas no conjunto de ficções sociais em que essa sociedade assenta Ora as ficções sociais não são gente em quem se possa dar tiros V compreende bem Não era como o soldado de um exercito que mata doze soldados de um exército contrário era como um soldado que mata doze civis da nação do outro exército É matar estupidamente porque não se elimina combatente nenhum Eu não podia portanto pensar em destruir nem no todo nem em nenhuma parte ficções sociais Tinha então que subjugálas que vencêlas subjugandoas reduzindoas à inatividade Apontou para mim o indicador direito súbito Foi o que eu fiz Retirou logo o gesto e continuou Procurei ver qual era a primeira a mais importante das ficções sociais Seria a essa que me cumpria mais que a nenhuma outra tentar subjugar tentar reduzir à inatividade A mais importante da nossa época pelo menos é o dinheiro Como subjugar o dinheiro ou em palavras mais precisas a força ou a tirania do dinheiro Tornandome livre da sua influência da sua força superior portanto à influência reduzindoo à inatividade pelo que me dizia respeito a mim Pelo que me dizia respeito a mim compreende V porque eu é que o combatia se fosse reduzilo à inatividade pelo que respeita a toda a gente isso não seria já subjugálo mas destruílo porque seria acabar de todo com a ficção do dinheiro Ora eu já lhe provei que qualquer ficção social só pode ser destruída pela revolução social arrastada com as outras na queda da sociedade burguesa Como podia eu tornarme superior à força do dinheiro O processo mais simples era afastarme da esfera da sua influência isto é da civilização ir para um campo comer raízes e beber água das nascentes andar nu e viver como animal Mas isto mesmo que não houvesse dificuldade em fazêlo não era combater uma ficção social não era mesmo combater era fugir Realmente quem se esquiva a travar um combate não é derrotado nele Mas moralmente é derrotado porque não se bateu O processo tinha que ser outro um processo de combate e não de fuga Como subjugar o dinheiro combatendoo Como furtarme à sua influência e tirania não evitando o seu encontro O processo era só um adquirilo adquirilo em quantidades bastante para lhe não sentir a influência e em quanto mais quantidade o adquirisse tanto mais livre eu estaria dessa influência Foi quando vi isto claramente com toda a força da minha convicção de anarquista e toda a minha lógica de homem lúcido que entrei na fase atual a comercial e bancária meu amigo do meu anarquismo Descansou um momento da violência novamente crescente do seu entusiasmo pela sua exposição Depois continuou ainda com um certo calor a sua narrativa Ora V lembrasse daquelas duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me haviam surgido na princípio da minha carreira de anarquista consciente E V lembrase de eu lhe dizer que naquela altura as resolvi artificialmente pelo sentimento e não pela lógica Isto é V mesmo notou e muito bem que eu não as tinha resolvido pela lógica Lembrome sim E V lembrase de eu lhe dizer que mais tarde quando acertei por fim com o verdadeiro processo anarquista as resolvi então de vez isto é pela lógica Sim Ora veja como ficaram resolvidas As dificuldades eram estas não é natural trabalhar por qualquer coisa seja o que for sem uma compensação natural isto é egoísta e não é natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que esse fim se atinge As duas dificuldades eram estas ora repare como ficam resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a descobrir como sendo o único verdadeiro O processo dá em resultado eu enriquecer portanto compensação egoísta O processo visa ao conseguimento da liberdade ora eu tornandome superior à força do dinheiro isto é libertandome dela consigo liberdade Consigo liberdade só para mim é certo mas é que como já lhe provei a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais pela revolução social O ponto concreto é este viso liberdade consigo liberdade consigo a liberdade que posso E veja V à parte o raciocínio que determina este processo anarquista como o único verdadeiro o fato que ele resolve automaticamente as dificuldades lógicas que se podem opor a qualquer processo anarquista mais prova que ele é o verdadeiro Pois foi este o processo que eu segui Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro enriquecendo Consegui Levou um certo tempo porque a luta foi grande mas consegui Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária Podia ser interessante em certos pontos sobretudo mas já não pertence ao assunto Trabalhei lutei ganhei dinheiro trabalhei mais lutei mais ganhei mais dinheiro ganhei muito dinheiro por fim Não olhei o processo confessolhe meu amigo que não olhei o processo empreguei tudo quanto há o açambarcamento o sofisma financeiro a própria concorrência desleal O quê Eu combatia as ficções sociais imorais e antinaturais por excelência e havia de olhar a processos Eu trabalhava pela liberdade e havia de olhar as armas com que combatia a tirania O anarquista estúpido que atira bombas e dá tiros bem sabe que mata e bem sabe que as suas doutrinas não incluem a pena de morte Ataca uma imoralidade com um crime porque acha que essa imoralidade pede um crime para se destruir Ele é estúpido quanto ao processo porque como já lhe mostrei esse processo é errado e contraproducente como processo anarquista agora quanto à moral do processo ele é inteligente Ora o meu processo estava certo e eu serviame legitimamente como anarquista de todos os meios para enriquecer Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido Sou livre Faço o que quero dentro é claro do que é possível fazer O meu lema de anarquista era a liberdade pois bem tenho a liberdade a liberdade que por enquanto na nossa sociedade imperfeita é possível ter Quis combater as forças sociais combatias e o que é mais vencias Alto lá Alto lá disse eu Isso estará tudo muito bem mas há uma cousa que V não viu As condições do seu processo eram como V provou não só criar liberdade mas também não criar tirania Ora V criou tirania V como açambarcador como banqueiro como financeiro sem escrúpulos V desculpe mas V é que disse V criou tirania V criou tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais que V diz que combate Não meu velho V enganase Eu não criei tirania A tirania que pode ter resultado da minha ação de combate contra as ficções sociais é uma tirania que não parte de mim que portanto eu não criei está nas ficções sociais eu não ajuntei a elas Essa tirania é a própria tirania das ficções sociais e eu não podia nem me propus destruir as ficções sociais Pela centésima vez lhe repito só a revolução social pode destruir as ficções sociais antes disso a ação anarquista perfeita como a minha só pode subjugar as ficções sociais subjugálas em relação só ao anarquista que põe esse processo em prática porque esse processo não permite uma mais larga sujeição dessas ficções Não é de não criar tirania que se trata é de não criar tirania nova tirania onde não estava Os anarquistas trabalhando em conjunto influenciandose uns aos outros como eu lhe disse criam entre si fora e à parte das ficções sociais uma tirania essa é que é uma tirania nova Essa eu não a criei Não a podia mesmo criar pelas próprias condições do meu processo Não meu amigo eu só criei liberdade Libertei um Liberteime a mim É que o meu processo que é como lhe provei o único verdadeiro processo anarquista me não permitiu libertar mais O que pude libertar libertei Está bem Concordo Mas olhe que por esse argumento a gente quase que é levado a crer que nenhum representante das ficções sociais exerce a tirania E não exerce A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encarnam esses são por assim dizer os meios de que as ficções se servem para tiranizar como a faca é o meio que se pode servir o assassino E V decerto não julga que abolindo as facas abole os assassinos Olhe Destrua V todos os capitalistas do mundo mas sem destruir o capital No dia seguinte o capital já nas mãos de outros continuará por meio desses a sua tirania Destrua não os capitalistas mas o capital quantos capitalistas ficam Vê Sim V tem razão Ó filho o máximo o máximo o máximo que V me pode acusar de fazer é de aumentar um pouco muito muito pouco a tirania das ficções sociais O argumento é absurdo porque como já lhe disse a tirania que eu não devia criar e não criei é outra Mas tem mais um ponto fraco é que pelo mesmo raciocínio V pode acusar um general que trava combate pelo seu país de causar ao seu país o prejuízo do número de homens do seu próprio exercito que teve que sacrificar para vencer Quem vai à guerra dá e leva Consigase o principal o resto Está muito bem Mas olhe lá outra coisa O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si mas também para os outros Pareceme que quer a liberdade para a humanidade inteira Sem dúvida Mas eu já lhe disse que pelo processo que descobri que era o único processo anarquista cada um tem de libertarse a si próprio Eu liberteime a mim fiz o meu dever simultaneamente pra comigo e para com a liberdade Por que é que os outros os meus camaradas não fizeram o mesmo Eu não os impedi Esse é que teria sido o crime se os tivesse impedido Mas eu nem sequer os impedi ocultando lhes o verdadeiro processo anarquista logo que descobri o processo disseo claramente a todos O próprio processo me impedia de fazer mais Que mais podia fazer Compelilos a seguir o caminho Mesmo que o pudesse fazer não o faria porque seria tirarlhes a liberdade e isso era contra os meus princípios anarquistas Auxiliálos Também não podia ser pela mesma razão Eu nunca ajudei nem ajudo ninguém porque isso sendo diminuir a liberdade alheia é também contra os meus princípios V o que me está censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só Por que me censura o cumprimento do meu dever de libertar até onde eu o podia cumprir Por que não os censura antes a eles por não terem cumprido o deles Pois sim homem Mas esses homens não fizeram o que V fez naturalmente porque eram menos inteligentes que V ou menos fortes de vontade ou Ah meu amigo essas são já as desigualdades naturais e não sociais Com essas é que o anarquismo não tem nada O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é com ele e com a Natureza as próprias ficções sociais não põem praí nem prego nem estopa Há qualidade naturais como eu já lhe disse que se pode presumir que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais mas a perversão não está no grau da qualidade que é absolutamente dado pela Natureza mas na aplicação da qualidade Ora uma questão de estupidez ou de falta de vontade não tem que ver com a aplicação dessas qualidade mas só com o grau delas Por isso lhe digo essas são já absolutamente as desigualdades naturais e sobre essas ninguém tem poder nenhum nem há modificação social que a modifique como não me pode tornar a mim alto ou a V baixo A não ser A não ser que no caso desses tipos a perversão hereditária das qualidades naturais vá tão longe que atinja o próprio fundo do temperamento Sim que um tipo nasça para escravo nasça naturalmente escravo e portanto incapaz de qualquer esforço no sentido de se libertar Mas nesse caso nesse caso que têm eles que ver com a sociedade livre ou com a liberdade Se um homem nasceu para escravo a liberdade sendo contrária à sua índole será para ele uma tirania Houve uma pequena pausa De repente ria alto Realmente disse eu V é anarquista Em todo o caso dá vontade de rir mesmo depois de o ter ouvido compara o que V é com o que são os anarquistas que praí há Meu amigo eu já lho disse já lho provei e agora repitolho A diferença é só esta eles são anarquistas só teóricos eu sou teórico e prático eles são anarquistas místicos e eu científico eles são anarquistas que se agacham eu sou um anarquista que combate e liberta Em uma palavra eles são pseudoanarquistas e eu sou anarquista E levantamosnos da mesa Lisboa janeiro de 1922 Mensagem Fernando Pessoa Fonte httpwwwcfhufscbrmagnomensagemhtm Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum Nota Preliminar O entendimento dos símbolos e dos rituais simbólicos exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições sem as quais os símbolos serão para ele mortos e ele um morto para eles A primeira é a simpatia não direi a primeira em tempo mas a primeira conforme vou citando e cito por graus de simplicidade Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar A segunda é a intuição A simpatia pode auxiliála se ela já existe porém não criá la Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo sem que se veja A terceira é a inteligência A inteligência analisa decompõe reconstrói noutro nível o símbolo tem porém que fazêlo depois que no fundo é tudo o mesmo Não direi erudição como poderia no exame dos símbolos é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação se a intuição a não tiver estabelecido Então a inteligência de discursiva que naturalmente é se tornará analógica e o símbolo poderá ser interpretado A quarta é a compreensão entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes relacionado com vários outros símbolos pois que no fundo é tudo o mesmo Não direi erudição como poderia ter dito pois a erudição é uma soma nem direi cultura pois a cultura é uma síntese e a compreensão é uma vida Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes ou no mesmo tempo o entendimento de símbolos diferentes A quinta é a menos definível Direi talvez falando a uns que é a graça falando a outros que é a mão do Superior Incógnito falando a terceiros que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda entendendo cada uma destas coisas que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam falando ou escrevendo PRIMEIRA PARTE BRASÃO Bellum sine bello I OS CAMPOS PRIMEIRO O DOS CASTELOS A Europa jaz posta nos cotovelos De Oriente a Ocidente jaz fitando E toldamlhe românticos cabelos Olhos gregos lembrando O cotovelo esquerdo é recuado O direito é em ângulo disposto Aquele diz Itália onde é pousado Este diz Inglaterra onde afastado A mão sustenta em que se apoia o rosto Fita com olhar sphyngico e fatal O Ocidente futuro do passado O rosto com que fita é Portugal SEGUNDO O DAS QUINAS Os Deuses vendem quando dão Comprase a glória com desgraça Ai dos felizes porque são Só o que passa Baste a quem baste o que Ihe basta O bastante de Ihe bastar A vida é breve a alma é vasta Ter é tardar Foi com desgraça e com vileza Que Deus ao Cristo definiu Assim o opôs à Natureza E Filho o ungiu II OS CASTELOS PRIMEIRO ULISSES O mytho é o nada que é tudo O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo O corpo morto de Deus Vivo e desnudo Este que aqui aportou Foi por não ser existindo Sem existir nos bastou Por não ter vindo foi vindo E nos criou Assim a lenda se escorre A entrar na realidade E a fecundála decorre Em baixo a vida metade De nada morre SEGUNDO VIRIATO Se a alma que sente e faz conhece Só porque lembra o que esqueceu Vivemos raça porque houvesse Memória em nós do instinto teu Nação porque reencarnaste Povo porque ressuscitou Ou tu ou o de que eras a haste Assim se Portugal formou Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada E é ja o ir a haver o dia Na antemanhã confuso nada TERCEIRO O CONDE D HENRIOUE Todo começo é involuntáario Deus é o agente O herói a si assiste vário E inconsciente À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce Que farei eu com esta espada Erguestea e fezse QUARTO D TAREJA As naçôes todas são mystérios Cada uma é todo o mundo a sós Ó mãe de reis e avó de impérios Vela por nós Teu seio augusto amamentou Com bruta e natural certeza O que imprevisto Deus fadou Por ele reza Dê tua prece outro destino A quem fadou o instinto teu O homem que foi o teu menino Envelheceu Mas todo vivo é eterno infante Onde estás e não há o dia No antigo seio vigilante De novo o cria QUINTO D AFONSO HENRIQUES Pai foste cavaleiro Hoje a vigília é nossa Dános o exemplo inteiro E a tua inteira força Dá contra a hora em que errada Novos infiéis vençam A bênção como espada A espada como benção SEXTO D DINIS Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver E ouve um silêncio múrmuro consigo É o rumor dos pinhais que como um trigo De Império ondulam sem se poder ver Arroio esse cantar jovem e puro Busca o oceano por achar E a fala dos pinhais marulho obscuro É o som presente desse mar futuro É a voz da terra ansiando pelo mar SÉTIMO I D JOÃO O PRIMEIRO O homem e a hora são um só Quando Deus faz e a história é feita O mais é carne cujo pó A terra espreita Mestre sem o saber do Templo Que Portugal foi feito ser Que houveste a glória e deste o exemplo De o defender Teu nome eleito em sua fama É na ara da nossa alma interna A que repele eterna chama A sombra eterna SÉTIMO II D FILIPA DE LENCASTRE Que enigma havia em teu seio Que só gênios concebia Que arcanjo teus sonhos veio Velar maternos um dia Volve a nós teu rosto sério Princesa do Santo Graal Humano ventre do Império Madrinha de Portugal III AS QUINAS PRIMEIRA D DUARTE REI DE PORTUGAL Meu dever fezme como Deus ao mundo A regra de ser Rei almou meu ser Em dia e letra escrupuloso e fundo Firme em minha tristeza tal vivi Cumpri contra o Destino o meu dever Inutilmente Não porque o cumpri SEGUNDA D FERNANDO INFANTE DE PORTUGAL Deume Deus o seu gládio porque eu faça A sua santa guerra Sagroume seu em honra e em desgraça Às horas em que um frio vento passa Por sobre a fria terra Pôsme as mãos sobre os ombros e doiroume A fronte com o olhar E esta febre de Além que me consome E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar E eu vou e a luz do gládio erguido dá Em minha face calma Cheio de Deus não temo o que virá Pois venha o que vier nunca será Maior do que a minha alma TERCEIRA D PEDRO REGENTE DE PORTUGAL Claro em pensar e claro no sentir É claro no querer Indiferente ao que há em conseguir Que seja só obter Dúplice dono sem me dividir De dever e de ser Não me podia a Sorte dar guarida Por não ser eu dos seus Assim vivi assim morri a vida Calmo sob mudos céus Fiel à palavra dada e à idéia tida Tudo o mais é com Deus QUARTA D JOÃO INFANTE DE PORTUGAL Não fui alguém Minha alma estava estreita Entre tão grandes almas minhas pares Inutilmente eleita Virgemmente parada Porque é do português pai de amplos mares Querer poder só isto O inteiro mar ou a orla vã desfeita O todo ou o seu nada QUINTA D SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL Louco sim louco porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá Não coube em mim minha certeza Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve não o que há Minha loucura outros que me a tomem Com o que nela ia Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria IV A COROA NUNÁLVARES PEREIRA Que auréola te cerca É a espada que volteando Faz que o ar alto perca Seu azul negro e brando Mas que espada é que erguida Faz esse halo no céu É Excalibur a ungida Que o Rei Artur te deu Sperança consumada S Portugal em ser Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver V O TIMBRE A CABEÇA DO GRIFO O INFANTE D HENRIOUE Em seu trono entre o brilho das esferas Com seu manto de noite e solidão Tem aos pés o mar novo e as mortas eras O único imperador que tem deveras O globo mundo em sua mão UMA ASA DO GRIFO D JOÃO O SEGUNDO Braços cruzados fita além do mar Parece em promontório uma alta serra O limite da terra a dominar O mar que possa haver além da terra Seu formidavel vulto solitário Enche de estar presente o mar e o céu E parece temer o mundo vário Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu A OUTRA ASA DO GRIFO AFONSO DE ALBUQUEROUE De pé sobre os países conquistados Desce os olhos cansados De ver o mundo e a injustiça e a sorte Não pensa em vida ou morte Tão poderoso que não quer o quanto Pode que o querer tanto Calcara mais do que o submisso mundo Sob o seu passo fundo Três impérios do chão lhe a Sorte apanha Criouos como quem desdenha SEGUNDA PARTE MAR PORTUGUEZ Possessio maris I O INFANTE Deus quer o homem sonha a obra nasce Deus quis que a terra fosse toda uma Que o mar unisse já não separasse Sagroute e foste desvendando a espuma E a orla branca foi de ilha em continente Clareou correndo até ao fim do mundo E viuse a terra inteira de repente Surgir redonda do azul profundo Quem te sagrou crioute portuguez Do mar e nós em ti nos deu sinal Cumpriuse o Mar e o Império se desfez Senhor falta cumprirse Portugal II HORIZONTE O mar anterior a nós teus medos Tinham coral e praias e arvoredos Desvendadas a noite e a cerração As tormentas passadas e o mistério Abria em flor o Longe e o Sul sidério Splendia sobre as naus da iniciação Linha severa da longínqua costa Quando a nau se aproxima erguese a encosta Em árvores onde o Longe nada tinha Mais perto abrese a terra em sons e cores E no desembarcar há aves flores Onde era só de longe a abstrata linha O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa e com sensíveis Movimentos da esprança e da vontade Buscar na linha fria do horizonte A árvore a praia a flor a ave a fonte Os beijos merecidos da Verdade III PADRÃO O esforço é grande e o homem é pequeno Eu Diogo Cão navegador deixei Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei A alma é divina e a obra é imperfeita Este padrão sinala ao vento e aos céus Que da obra ousada é minha a parte feita O porfazer é só com Deus E ao imenso e possível oceano Ensinam estas Quinas que aqui vês Que o mar com fim será grego ou romano O mar sem fim é português E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma E faz a febre em mim de navegar Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar IV O MOSTRENGO mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueuse a voar A roda da nau voou três vezes Voou três vezes a chiar E disse Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo Meus tetos negros do fim do mundo E o homem do leme disse tremendo ElRei D João Segundo De quem são as velas onde me roço De quem as quilhas que vejo e ouço Disse o mostrengo e rodou três vezes Três vezes rodou imundo e grosso Quem vem poder o que só eu posso Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo E o homem do leme tremeu e disse ElRei D João Segundo Três vezes do leme as mãos ergueu Três vezes ao leme as reprendeu E disse no fim de tremer três vezes Aqui ao leme sou mais do que eu Sou um povo que quer o mar que é teu E mais que o mostrengo que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo Manda a vontade que me ata ao leme De ElRei D João Segundo V EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS Jaz aqui na pequena praia extrema O Capitão do Fim Dobrado o Assombro O mar é o mesmo já ninguém o tema Atlas mostra alto o mundo no seu ombro Vl OS COLOMBOS Outros haverão de ter O que houvermos de perder Outros poderão achar O que no nosso encontrar Foi achado ou não achado Segundo o destino dado Mas o que a eles não toca É a Magia que evoca O Longe e faz dele história E por isso a sua glória É justa auréola dada Por uma luz emprestada VII OCIDENTE Com duas mãos o Ato e o Destino DesvendAmos No mesmo gesto ao céu Uma ergue o fecho trêmulo e divino E a outra afasta o véu Fosse a hora que haver ou a que havia A mão que ao Ocidente o véu rasgou Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia Da mão que desvendou Fosse Acaso ou Vontade ou Temporal A mão que ergueu o facho que luziu Foi Deus a alma e o corpo Portugal Da mão que o conduziu VIII FERNÃO DE MAGALHÃES No vale clareia uma fogueira Uma dança sacode a terra inteira E sombras desformes e descompostas Em clarões negros do vale vão Subitamente pelas encostas Indo perderse na escuridão De quem é a dança que a noite aterra São os Titãs os filhos da Terra Que dançam na morte do marinheiro Que quis cingir o materno vulto Cingiuo dos homens o primeiro Na praia ao longe por fim sepulto Dançam nem sabem que a alma ousada Do morto ainda comanda a armada Pulso sem corpo ao leme a guiar As naus no resto do fim do espaço Que até ausente soube cercar A terra inteira com seu abraço Violou a Terra Mas eles não O sabem e dançam na solidão E sombras disformes e descompostas Indo perderse nos horizontes Galgam do vale pelas encostas Dos mudos montes IX ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra Suspendem de repente o ódio da sua guerra E pasmam Pelo vale onde se ascende aos céus Surge um silêncio e vai da névoa ondeando os véus Primeiro um movimento e depois um assombro Ladeiamno ao durar os medos ombro a ombro E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões Em baixo onde a terra é o pastor gela e a flauta Cailhe e em êxtase vê à luz de mil trovôes O céu abrir o abismo à alma do Argonauta X MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal Por te cruzarmos quantas mães choraram Quantos filhos em vão rezaram Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso ó mar Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu XI A ÚLTIMA NAU Levando a bordo ElRei D Sebastião E erguendo como um nome alto o pendão Do Império Foise a última nau ao sol azíago Erma e entre choros de ânsia e de presago Mistério Não voltou mais A que ilha indescoberta Aportou Voltará da sorte incerta Que teve Deus guarda o corpo e a forma do futuro Mas Sua luz projectao sonho escuro E breve Ah quanto mais ao povo a alma falta Mais a minha alma atlântica se exalta E entorna E em mim num mar que não tem tempo ou spaço Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna Não sei a hora mas sei que há a hora Demorea Deus chamelhe a alma embora Mistério Surges ao sol em mim e a névoa finda A mesma e trazes o pendão ainda Do Império XII PRECE Senhor a noite veio e a alma é vil Tanta foi a tormenta e a vontade Restamnos hoje no silêncio hostil O mar universal e a saudade Mas a chama que a vida em nós criou Se ainda há vida ainda não é finda O frio morto em cinzas a ocultou A mão do vento pode erguêla ainda Dá o sopro a aragem ou desgraça ou ânsia Com que a chama do esforço se remoça E outra vez conquistaremos a Distância Do mar ou outra mas que seja nossa TERCEIRA PARTE O ENCOBERTO Pax in excelsis I OS SÍMBOLOS PRIMEIRO D SEBASTIÃO Sperai Cai no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei É O que eu me sonhei que eterno dura É Esse que regressarei SEGUNDO O QUINTO IMPÉRIO Triste de quem vive em casa Contente com o seu lar Sem que um sonho no erguer de asa Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar Triste de quem é feliz Vive porque a vida dura Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem Ser descontente é ser homem Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem E assim passados os quatro Tempos do ser que sonhou A terra será teatro Do dia claro que no atro Da erma noite começou Grécia Roma Cristandade Europa os quatro se vão Para onde vai toda idade Quem vem viver a verdade Que morreu D Sebastião TERCEIRO O DESEJADO Onde quer que entre sombras e dizeres Jazas remoto sentete sonhado E erguete do fundo de nãoseres Para teu novo fado Vem Galaaz com pátria erguer de novo Mas já no auge da suprema prova A alma penitente do teu povo À Eucaristia Nova Mestre da Paz ergue teu gládio ungido Excalibur do Fim em jeito tal Que sua Luz ao mundo dividido Revele o Santo Graal QUARTO AS ILHAS AFORTUNADAS Que voz vem no som das ondas Que não é a voz do mar E a voz de alguém que nos fala Mas que se escutarmos cala Por ter havido escutar E só se meio dormindo Sem saber de ouvir ouvimos Que ela nos diz a esperança A que como uma criança Dormente a dormir sorrimos São ilhas afortunadas São terras sem ter lugar Onde o Rei mora esperando Mas se vamos despertando Cala a voz e há só o mar QUINTO O ENCOBERTO Que símbolo fecundo Vem na aurora ansiosa Na Cruz Morta do Mundo A Vida que é a Rosa Que símbolo divino Traz o dia já visto Na Cruz que é o Destino A Rosa que é o Cristo Que símbolo final Mostra o sol já desperto Na Cruz morta e fatal A Rosa do Encoberto II OS AVISOS PRIMEIRO O BANDARRA Sonhava anônimo e disperso O Império por Deus mesmo visto Confuso como o Universo E plebeu como Jesus Cristo Não foi nem santo nem herói Mas Deus sagrou com Seu sinal Este cujo coração foi Não português mas Portugal SEGUNDO ANTÓNIO VIEIRA O céu strela o azul e tem grandeza Este que teve a fama e à glória tem Imperador da língua portuguesa Foinos um céu também No imenso espaço seu de meditar Constelado de forma e de visão Surge prenúncio claro do luar ElRei D Sebastião Mas não não é luar é luz do etéreo É um dia e no céu amplo de desejo A madrugada irreal do Quinto Império Doira as margens do Tejo TERCEIRO Screvo meu livro à beiramágoa Meu coração não tem que ter Tenho meus olhos quentes de água Só tu Senhor me dás viver Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura Mas quando quererás voltar Quando é o Rei Quando é a Hora Quando virás a ser o Cristo De a quem morreu o falso Deus E a despertar do mal que existo A Nova Terra e os Novos Céus Quando virás ó Encoberto Sonho das eras português Tornarme mais que o sopro incerto De um grande anseio que Deus fez Ah quando quererás voltando Fazer minha esperança amor Da névoa e da saudade quando Quando meu Sonho e meu Senhor III OS TEMPOS PRIMEIRO NOITE A nau de um deles tinhase perdido No mar indefinido O segundo pediu licença ao Rei De na fé e na lei Da descoberta ir em procura Do irmão no mar sem fim e a névoa escura Tempo foi Nem primeiro nem segundo Volveu do fim profundo Do mar ignoto à pátria por quem dera O enigma que fizera Então o terceiro a ElRei rogou Licença de os buscar e ElRei negou Como a um cativo o ouvem a passar Os servos do solar E quando o vêem vêem a figura Da febre e da amargura Com fixos olhos rasos de ânsia Fitando a proibida azul distância Senhor os dois irmãos do nosso Nome O Poder e o Renome Ambos se foram pelo mar da idade À tua eternidade E com eles de nós se foi O que faz a alma poder ser de herói Queremos ir buscálos desta vil Nossa prisão servil É a busca de quem somos na distância De nós e em febre de ânsia A Deus as mãos alçamos Mas Deus não dá licença que partamos SEGUNDO TORMENTA Que jaz no abismo sob o mar que se ergue Nós Portugal o poder ser Que inquietação do fundo nos soergue O desejar poder querer Isto e o mistério de que a noite é o fausto Mas súbito onde o vento ruge O relâmpago farol de Deus um hausto Brilha e o mar scuro struge TERCEIRO CALMA Que costa é que as ondas contam E se não pode encontrar Por mais naus que haja no mar O que é que as ondas encontram E nunca se vê surgindo Este som de o mar praiar Onde é que está existindo lha próxima e remota Que nos ouvidos persiste Para a vista não existe Que nau que armada que frota Pode encontrar o caminho A praia onde o mar insiste Se à vista o mar é sozinho Haverá rasgões no espaço Que dêem para outro lado E que um deles encontrado Aqui onde há só sargaço Surja uma ilha velada O país afortunado Que guarda o Rei desterrado Em sua vida encantada QUARTO ANTEMANHÃ O mostrengo que está no fim do mar Veio das trevas a procurar A madrugada do novo dia Do novo dia sem acabar E disse Quem é que dorme a lembrar Que desvendou o Segundo Mundo Nem o Terceiro quere desvendar E o som na treva de ele rodar Faz mau o sono triste o sonhar Rodou e foise o mostrengo servo Que seu senhor veio aqui buscar Que veio aqui seu senhor chamar Chamar Aquele que está dormindo E foi outrora Senhor do Mar QUINTO NEVOEIRO Nem rei nem lei nem paz nem guerra Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer Brilho sem luz e sem arder Como o que o fogofátuo encerra Ninguém sabe que coisa quer Ninguém conhece que alma tem Nem o que é mal nem o que é bem Que ânsia distante perto chora Tudo é incerto e derradeiro Tudo é disperso nada é inteiro Ó Portugal hoje és nevoeiro É a Hora Valete Frates Antologia Seleção de excertos ref alguns heterônimos de Fernando Pessoa 1 Poema de Álvaro de Campos 5 OPIÁRIO Ao senhor Mário de SáCarneiro É antes do ópio que a minhalma é doente Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente Esta vida de bordo háde matarme São dias só de febre na cabeça E por mais que procure até que adoeça Já não encontro a mola pra adaptarme Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos douro a minha vida Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal É por um mecanismo de desastres Uma engrenagem com volantes falsos Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar sem hastes Vou cambaleando através do lavor Duma vidainterior de renda e laca Tenho a impressão de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor Ando expiando um crime numa mala Que um avô meu cometeu por requinte Tenho os nervos na forca vinte a vinte E caí no ópio como numa vala Ao toque adormecido da morfina Percome em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Erguese a lua como a minha Sina Eu que fui sempre um mau estudante agora Não faço mais que ver o navio ir 1 Os excertos ref sempre as edições brasileiras da Companhia das Letras Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida ânfora na aurora Perdi os dias que já aproveitara Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara E fui criança como toda a gente Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure Mas é impossível que esta vida dure Se nesta viagem nem houve procelas A vida a bordo é uma coisa triste Embora a gente se divirta às vezes Falo com alemães suecos e ingleses E a minha mágoa de viver persiste Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver Por isso eu tomo ópio É um remédio Sou um convalescente do Momento Moro no résdochão do pensamento E ver passar a Vida fazme tédio Fumo Canso Ah uma terra aonde enfim Muito a leste não fosse o oeste já Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim Sou desgraçado por meu morgadio Os ciganos roubaram minha Sorte Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte Um lugar que me abrigue do meu frio Eu fingi que estudei engenharia Vivi na Escócia Visitei a Irlanda Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmola às portas da Alegria Não chegues a PortSaid navio de ferro Volta à direita nem eu sei para onde Passo os dias no smokingroom com o conde Um escroc francês conde de fim de enterro Volto à Europa descontente e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes Gostava de ter crenças e dinheiro Ser vária gente insípida que vi Hoje afinal não sou senão aqui Num navio qualquer um passageiro Não tenho personalidade alguma É mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alçado De laird escocês há dias em jejum Não posso estar em parte alguma A minha Pátria é onde não estou Sou doente e fraco O comissário de bordo é velhaco Viume coa sueca e o resto ele adivinha Um dia faço escândalo cá a bordo Só para dar que falar de mim aos mais Não posso com a vida e acho fatais As iras com que às vezes me debordo Levo o dia a fumar a beber coisas Drogas americanas que entontecem E eu já tão bêbado sem nada Dessem Melhor cérebro aos meus nervos como rosas Escrevo estas linhas Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta O facto é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível Os ingleses são feitos pra existir Não há gente como esta pra estar feita Com a Tranquilidade A gente deita Um vintém e sai um deles a sorrir Pertenço a um género de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta Ficaram sem trabalho A morte é certa Tenho pensado nisto muitas vezes Leve o diabo a vida e a gente têla Nem leio o livro à minha cabeceira Enojame o Oriente É um esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela Caio no ópio por força Lá querer Que eu leve a limpo uma vida destas Não se pode exigir Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer Que um raio as parta E isto afinal é inveja Porque estes nervos são a minha morte Não haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o não veja Ora Eu cansavame do mesmo modo Quria outro ópio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo Febre Se isto que tenho não é febre Não sei como é que se tem febre e sente O facto essencial é que estou doente Está corrida amigos esta lebre Veio a noite Tocou já a primeira Corneta pra vestir para o jantar Vida social por cima Isso E marchar Até que a gente saia pla coleira Porque isto acaba mal e háde haver Olá sangue e um revólver lá prò fim Deste desassossego que há em mim E não há forma de se resolver E quem me olhar háde me achar banal A mim e à minha vida Ora um rapaz O meu próprio monóculo me faz Pertencer a um tipo universal Ah quanta alma haverá que ande metida Assim como eu na Linha e como eu mística Quantos sob a casaca característica Não terão como eu o horror à vida Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro Vou no Maelstrom cada vez mais prò centro Não fazer nada é a minha perdição Um inútil Mas é tão justo sêlo Pudesse a gente desprezar os outros E ainda que coos cotovelos rotos Ser herói doido amaldiçoado ou belo Tenho vontade de levar as mãos À boca e morder nelas fundo e a mal Era uma ocupação original E distraía os outros os tais sãos O absurdo como uma flor da tal Índia Que não vim encontrar na Índia nasce No meu cérebro farto de cansarse A minha vida mudea Deus ou findea Deixeme estar aqui nesta cadeira Até virem meterme no caixão Nasci pra mandarim de condição Mas faltamme o sossego o chá e a esteira Ah que bom que era ir daqui de caída Prà cova por um alçapão de estouro A vida sabeme a tabaco louro Nunca fiz mais do que fumar a vida E afinal o que quero é fé é calma E não ter essas sensações confusas Deus que acabe com isto Abra as eclusas E basta de comédias na minhalma 1914 Março No canal de Suez a bordo Poema de Ricardo Reis 1 Mestre são plácidas Todas as horas Que nós perdemos Se no perdêlas Qual numa jarra Nós pomos flores Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida Assim saibamos Sábios incautos Não a viver Mas decorrêla Tranquilos plácidos Tendo as crianças Por nossas mestras E os olhos cheios De Natureza À beirario À beiraestrada Conforme calha Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo O Tempo passa Não nos diz nada Envelhecemos Saibamos quasi Maliciosos Sentirnos ir Não vale a pena Fazer um gesto Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre Colhamos flores Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos Para aprendermos Calma também Girassóis sempre Fitando o sol Da vida iremos Tranquilos tendo Nem o remorso De ter vivido 1261914 Poema de Alberto Caieiro O GUARDADOR DE REBANHOS I Eu nunca guardei rebanhos Mas é como se os guardasse Minha alma é como um pastor Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentarse a meu lado Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada Os meus pensamentos são contentes Só tenho pena de saber que eles são contentes Porque se o não soubesse Em vez de serem contentes e tristes Seriam alegres e contentes Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho E se desejo às vezes Por imaginar ser cordeirinho Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora Quando me sento a escrever versos Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos Escrevo versos num papel que está no meu pensamento Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende Saúdo todos os que me lerem Tirandolhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro Saúdoos e desejolhes sol E chuva quando a chuva é precisa E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predilecta Onde se sentem lendo os meus versos E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural Por exemplo a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque cansados de brincar E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado Excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa 1 Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido sem saber porquê E então porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus Pertenço porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem nem veem só a multidão de que são senão também os grandes espaços que há ao lado Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improvável poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Humanidade sendo uma mera ideia biológica e não significando mais que a espécie animal humana não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivescência dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabeças de animais Assim não sabendo crer em Deus e não podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência A Decadência é a perda total da inconsciência porque a inconsciência é o fundamento da vida O coração se pudesse pensar pararia A quem como eu assim vivendo não sabe ter vida que resta senão como a meus poucos pares a renúncia por modo e a contemplação por destino Não sabendo o que é a vida religiosa nem podendo sabê lo porque se não tem fé com a razão não podendo ter fé na abstração do homem nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós ficava nos como motivo de ter alma a contemplação estética da vida E assim alheios à solenidade de todos os mundos indiferentes ao divino e desprezadores do humano entregamo nos futilmente à sensação sem propósito cultivada num epicurismo subtilizado como convém aos nossos nervos cerebrais 48 Retendo da ciência somente aquele seu preceito central de que tudo é sujeito a leis fatais contra as quais se não reage independentemente porque reagir é elas terem feito que reagíssemos e verificando como esse preceito se ajusta ao outro mais antigo da divina fatalidade das coisas abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas e curvamo nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida Não tomando nada a sério nem considerando que nos fosse dada por certa outra realidade que não as nossas sensações nelas nos abrigamos e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos E se nos empregamos assiduamente não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados é que a prosa ou o verso que escrevemos destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade é apenas como o falar alto de quem lê feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos Mas imperfeito é tudo nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar nos um sono mais calmo ainda E assim contempladores iguais das montanhas e das estátuas gozando os dias como os livros sonhando tudo sobretudo para o converter na nossa íntima substância faremos também descrições e análises que uma vez feitas passarão a ser coisas alheias que podemos gozar como se viessem na tarde Não é este o conceito dos pessimistas como aquele de Vigny1 para quem a vida é uma cadeia onde ele tecia palha para se distrair Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico e essa atitude é um exagero e um incómodo Não temos é certo um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos Produzimo la é certo para nos distrair porém não como o preso que tece a palha para se distrair do Destino senão da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo Não sei onde ela me levará porque não sei nada Poderia considerar esta estalagem uma prisão porque estou compelido a aguardar nela poderia considerá la um lugar de sociáveis porque aqui me encontro com outros Não sou porém nem impaciente nem comum Deixo 49 ao que são os que se fecham no quarto deitados moles na cama onde esperam sem sono deixo ao que fazem os que conversam nas salas de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim Sento me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem e canto lento para mim só vagos cantos que componho enquanto espero Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá la e não interrogo mais nem procuro Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder relido um dia por outros entretê los também na passagem será bem Se não o lerem nem se entretiverem será bem também 1999 p479 Proposta 2 A8 Discuta as técnicas das Vanguardas europeias e o contexto do Modernismo em Portugal analisando ao menos dois aspectos da obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos em prosa oue verso A8 Modernismo em Portugal o caso Fernando Pessoa Curso Letras Língua Portuguesa Docente Andrea Muraro LLP320232 Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena httpsindependentacademiaeduPe ssoaPlural Cartas com Mario de Sá Carneiro PERRONEMOSÉS Leyla Fernando Pessoa aquém do eu além do outro 3 ed São Paulo Martins Fontes 2001 MOISÉS Carlos Filipe O poema e as máscaras microestrutura e macroestrutura na poesia de Fernando Pessoa Coimbra Almedina 1981 Bibliografia 691 P567p CP Modernismo no Brasil e em Portugal Fragmentação resgate de ideias das vanguardas europeias Síntese Busca pela linguagem oralidades coloquialidade Nacionalismo Ironia humor e paródia Relato do cotidiano Revisão crítica do passado histórico e cultural Subjetivismo Versos livres Metalinguagem Vertentes em Portugal Orfismo Presencismo Neorrealismo Excerto de Dispersão de Mario de Sá Carneiro Perdime dentro de mim Porque eu era labirinto E Hoje quando me sinto E com saudade de mim Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar Na ânsia de ultrapassar nem dei pela minha vida Excerto de Frisos de Almada Negreiros Notícias da guerra choros lá dentro e crepes no brasão Ardem círios serpentinas Há mãos postas entre as flores E a torre morena canta molenga doze vezes a mesma dor JOSÉ DE ALMADANEGREIROS K4 ACABA DE APARECER o quadrado AZUL POESIA TERMINUS DIZSE AQUI O SEGREDO DO GENIO INTRANSMISSÍVEL LISBOA 1917 EUROPA MODELO 1920 EDITORES Almada e André José ALMADA Cardoso Passagem d O Marinheiro de Fernando Pessoa X MAR PORTUGUÊS da obra Mensagem 1934 de Fernando Pessoa Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal Por te cruzarmos quantas mães choraram Quantos filhos em vão rezaram Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso ó mar Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu heteronímia heterônimo ia substantivo feminino 1 Literatura Criação ou uso de nomes e personagens por um autor para assinar obras suas com estilos literários diferentes 2 Literatura Conjunto dos heterônimos de um escritor 3 Linguística Relação entre palavras que formam uma estrutura semântica mas que têm raízes diferentes ex há heteronímia no gênero de substantivos como vaca feminino e boi masculino ou no número de pronomes como eu singular e nós plural 4 Linguística Estudo sobre heterônimos Fernando Pessoa e os heterônimos Excerto de ODE TRIUNFAL de Álvaro de Campos À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo Escrevo rangendo os dentes fera para a beleza disto Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos Ó rodas ó engrenagens rrrrrrr eterno Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria Em fúria fora e dentro de mim Por todos os meus nervos dissecados fora Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto Tenho os lábios secos ó grandes ruídos modernos De vos ouvir demasiadamente de perto E ardeme a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações Com um excesso contemporâneo de vós ó máquinas II Excerto de O guardador de rebanhos de Alberto Caieiro O meu olhar é nítido como um girassol Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda E de vez em quando olhando para trás E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto E eu sei dar por isso muito bem Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se ao nascer Reparasse que nascera deveras Sintome nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo Creio no Mundo como num malmequer Porque o vejo Mas não penso nele Porque pensar é não compreender O Mundo não se fez para pensarmos nele Pensar é estar doente dos olhos Cada um é um mundo e como em cada fonte Cada um é um mundo e como em cada fonte Uma deidade vela em cada homem Porque não há de haver Um deus só de ele homem Na encoberta sucessão das cousas Só o sábio sente que não foi mais nada Que a vida que deixou sd Poemas de Ricardo Reis Fernando Pessoa Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1994 184 httpswwwyoutubecomwatchvmYAKpDliA6o teaser do filme baseado na obra de Saramago O narrador principal mas não exclusivo das centenas de fragmentos que compõem este livro é o semiheterônimo Bernardo Soares Livro do desassossego Ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa ele escreve sem encadeamento narrativo claro sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida Ainda assim foi nesta obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo a elucidação de estados psíquicos a descrição das coisas através dos efeitos que elas exercem sobre a mente reflexões e devaneios sobre a paixão a moral o conhecimento Dono do mundo em mim como de terras que não posso trazer comigo escreve o narrador Seu tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso Do press release da Companhia das letras edição de 1999 O contexto do conto Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa httpsmodernismoptindexphpb473obanqueiroanarquista Pedrinho de Pessoa EDGAR ALLAN POE O CORVO httpswwwcasafernandopessoaptptcfppoesiaestendida2024 httpswwwyoutubecomwatchva1IBpsuCI14 httpswwwyoutubecomwatchvvGqnZL0FOc Obra de Fernando Pessoa Expedições livres para amantes e estudiosos httparquivopessoanet O ensaio A carroça o bonde e o poeta modernista está na edição de Que horas são Há 12 exemplares no CP As técnicas das Vanguardas europeias e contexto do Modernismo em Portugal As Vanguardas Europeias foram movimentos artísticos que surgiram no início do século XX e buscavam romper com as tradições estéticas vigentes promovendo a experimentação e a inovação nas diversas formas de expressão artística No contexto do Modernismo em Portugal o movimento teve início na década de 1910 e se estendeu até meados do século XX O Modernismo em Portugal foi marcado pela busca por uma identidade cultural própria influenciada pelas vanguardas europeias e pela valorização da individualidade e da subjetividade Os escritores modernistas portugueses buscavam romper com as tradições literárias e experimentar novas formas de expressão Fernando Pessoa é um dos principais expoentes do Modernismo em Portugal sendo conhecido não apenas por sua própria obra mas também pela criação de diversos heterônimos cada um com características e estilos literários distintos Dois aspectos importantes de sua obra são a heteronímia e a reflexão sobre a identidade e a subjetividade A heteronímia consiste na criação de diferentes personalidades literárias cada uma com seu próprio estilo e visão de mundo Os principais heterônimos de Pessoa são Alberto Caeiro Álvaro de Campos Ricardo Reis e Bernardo Soares Cada um desses heterônimos representa uma faceta distinta da personalidade de Pessoa e produz uma obra singular com características próprias Além da heteronímia a obra de Fernando Pessoa também se destaca pela profunda reflexão sobre a identidade e a subjetividade Em seus poemas e textos em prosa Pessoa aborda questões relacionadas à multiplicidade do eu à busca pela essência do ser e à complexidade da experiência humana Sua obra reflete a inquietação e a angústia do homem moderno diante de um mundo em transformação A obra Mensagem assinada por Fernando Pessoa é um exemplo marcante do impacto das Vanguardas Europeias no contexto do Modernismo em Portugal Nesse livro Pessoa explora a temática nacionalista e mítica utilizando uma linguagem simbólica e alegórica para abordar a história e a identidade de Portugal A obra reflete a influência do simbolismo e do surrealismo características das vanguardas na maneira como Pessoa constrói sua poesia Por meio do heterônimo Álvaro de Campos Pessoa também incorpora elementos das vanguardas em seus poemas Em Opiário por exemplo Campos expressa uma sensibilidade modernista ao abordar temas como a melancolia a busca por sentido na existência e a experiência da vida urbana A linguagem fragmentada e a exploração de estados emocionais intensos são características que refletem a influência das vanguardas europeias na obra de Pessoa Outro heterônimo relevante é Ricardo Reis que se destaca pela influência do neoclassicismo em sua poesia Em seus versos Reis adota uma linguagem mais contida e formal refletindo a busca por equilíbrio e serenidade característica desse movimento artístico Através de Ricardo Reis Pessoa dialoga com as tradições clássicas enquanto incorpora elementos modernistas em sua abordagem poética Já Alberto Caeiro representa uma ruptura com as convenções estilísticas propondo uma visão mais naturalista e sensorial da realidade Em O Guardador de Rebanhos Caeiro manifesta uma conexão profunda com a natureza e uma abordagem despojada da linguagem poética o que o coloca em diálogo com as vanguardas que buscavam romper com as formas tradicionais de expressão A obra O Banqueiro Anarquista é um exemplo da abordagem literária de Pessoa em relação às questões sociais e políticas No texto o protagonista do diálogo revela sua identidade como anarquista e discute a relação entre suas teorias sociais e sua prática de vida como banqueiro e comerciante Ele argumenta que suas teorias anarquistas estão alinhadas com sua prática de vida afirmando que a conformidade entre teoria e prática é absoluta Além disso ele questiona as convenções sociais que criam desigualdades e injustiças expressando sua revolta contra essas condições Através do diálogo Fernando Pessoa aborda questões fundamentais do anarquismo como a luta contra as convenções sociais que perpetuam desigualdades e a busca por liberdade individual e coletiva A obra reflete as preocupações sociais e políticas do período modernista em Portugal bem como a complexidade das reflexões de Pessoa sobre essas questões As Vanguardas Europeias foram movimentos artísticos e literários que surgiram no início do século XX caracterizados pela ruptura com as tradições estéticas e pela busca por novas formas de expressão Dentre as principais técnicas utilizadas por esses movimentos destacamse o uso da fragmentação da simultaneidade do nonsense do automatismo da colagem da experimentação linguística entre outras As vanguardas buscavam romper com a lógica tradicional explorando o inconsciente as emoções e a subjetividade Em suas obras Pessoa explorou diversas técnicas vanguardistas como a fragmentação a pluralidade de vozes a experimentação linguística e a busca por uma nova forma de expressão poética No excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa podemos observar a influência das Vanguardas na prosa de Pessoa O texto revela uma visão existencialista e melancólica característica do Modernismo e apresenta uma reflexão profunda sobre a condição humana e a busca por sentido na vida A linguagem é densa e introspectiva demonstrando a influência das técnicas vanguardistas na construção da narrativa Os poemas As Quinas apresentam aspectos importantes da obra de Fernando Pessoa Os poemas refletem a preocupação do autor com a identidade nacional e a história de Portugal temas recorrentes no Modernismo português Através dos versos Pessoa explora a dualidade entre o dever e a tristeza entre a honra e a desgraça revelando uma profunda reflexão sobre o papel do indivíduo na sociedade e na história Através da experimentação formal da busca por novas formas de expressão e da reflexão sobre a condição humana Pessoa contribuiu para a renovação da literatura portuguesa e para a consolidação do Modernismo como um movimento marcante na história cultural do país As obras de Fernando Pessoa e seus heterônimos exemplificam essa busca por novas formas de expressão e pela reflexão sobre a identidade e a condição humana no mundo moderno
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Texto de pré-visualização
O Banqueiro Anarquista Fernando Pessoa Fonte httpwwwcfhufscbrmagnobancanarcohtm Tínhamos acabado de jantar Defronte de mim o meu amigo o banqueiro grande comerciante e açambarcador notável fumava como quem não pensa A conversa que fora amortecendo jazia morta entra nós Procurei reanimála ao acaso servindome de uma idéia que me passou pela meditação Volteime para ele sorrindo É verdade disseramme há dias que V em tempos foi anarquista Fui não fui e sou Não mudei a esse respeito Sou anarquista Essa é boa V anarquista Em que é que V é anarquista Só se V dá à palavra qualquer sentido diferente Do vulgar Não não dou Emprego a palavra no sentido vulgar Quer V dizer então que é anarquista exatamente no mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das organizações operárias Então entre V e esses tipos da bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma Diferença diferença há Evidentemente que há diferença Mas não é a que V julga V duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles Ah já percebo V quanto às teorias é anarquista quanto à prática Quanto à prática sou tão anarquista como quanto às teorias E quanto à prática sou mais sou muito mais anarquista que esses tipos que V citou Toda a minha vida o mostra Hein Toda a minha vida o mostra filho V é que nunca deu a esta cousas uma atenção lúcida Por isso lhe parece que estou dizendo uma asneira ou então estou brincando consigo Ó homem eu não percebo nada A não ser a não ser que V julgue a sua vida dissolvente e antisocial e dê esse sentido ao anarquismo Já lhe disse que não isto é já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar Está bem Continuo sem perceber Ó homem V querme dizer que não há diferença entre as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida a prática da sua vida como ela é agora V quer que eu acredite que V tem uma vida exatamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas Não não é isso O que eu quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma mas uma conformidade absoluta Lá que não tenho uma vida como a dos tipo dos sindicatos e das bombas isso é verdade Mas é a vida deles que está fora do anarquismo fora dos ideais deles A minha não Em mim sim em mim banqueiro grande comerciante açambarcador se V quiser em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas V comparoume a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente deles Sou mas a diferença é esta eles sim eles e não eu são anarquistas só na teoria eu sou o na teoria e na prática Eles são anarquistas e estúpidos eu anarquista e inteligente Isto é meu velho eu é que sou o verdadeiro anarquista Eles os dos sindicatos e das bombas eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo eles são o lixo do anarquismo os fêmeas da grande doutrina libertária Essa nem ao diabo a ouviram Isso é espantoso Mas como concilia V a sua vida quero dizer a sua vida bancária e comercial coma as teorias anarquistas Como o concilia V se diz que por teoria anarquista entende exatamente o que os anarquistas vulgares entendem E V ainda por cima me diz que é diferente deles por ser mais anarquista do que eles não é verdade Exatamente Não percebo nada Mas V tem empenho em perceber Todo o empenho Ele tirou da boca o charuto que se apagara reacendeuo lentamente tirou o fósforo que se extinguia depôlo ao de leve no cinzeiro depois erguendo a cabeça um momento abaixada disse Oiça Eu nasci do povo e na classe operária da cidade De bom não herdei como pode imaginar nem a condição nem as circunstâncias Apenas me aconteceu ter uma inteligência naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte Mas esses eram doms naturais que o meu baixo nascimento me não podia tirar Fui operário trabalhei vivi uma vida apertada fui em resumo o que a maioria da gente é naquele meio Não digo que absolutamente passasse fome mas andei lá perto De resto podia têla passado que isso não alterava nada do que se seguiu ou do que lhe vou expor nem do que foi a minha vida nem do que ela é agora Fui um operário vulgar em suma como todos trabalhava porque tinha que trabalhar e trabalhava o menos possível O que eu era era inteligente Sempre que podia lia coisas discutia coisas e como não era tolo nasceume uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim Já lhe disse que em boa verdade o meu destino podia ter sido pior do que era mas naquela altura pareciame a mim que eu era um entre a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer Isto era aí pelos meus vinte anos vinte e um o máximo que foi quando me tornei anarquista Parou um momento Voltouse um pouco mais para mim Continuou inclinandose mais um pouco Fui sempre mais ou menos lúcido Sentime revoltado Quis perceber a minha revolta Torneime anarquista consciente e convicto o anarquista consciente e convicto que hoje sou E a teoria que V tem hoje é a mesma que tinha nessa altura A mesma A teoria anarquista a verdadeira teoria é só uma Tenho a que sempre tive desde que me tornei anarquista V já vai ver Ia eu dizendo que como era lúcido por natureza me tornei anarquista consciente Ora o que é um anarquista É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente no fundo é só isto E de aí resulta como é de ver a revolta contra as convenções sociais que tornam essa desigualdade possível O que lhe estou indicando agora é o caminho psicológico isto é como é que a gente se torna anarquista já vamos à parte teórica do assunto Por agora compreenda V bem qual seria a revolta de um tipo inteligente nas minhas circunstâncias O que é que ele vê pelo mundo Um nasce filho de um milionário protegido desde o berço contra aqueles infortúnios e não são poucos que o dinheiro pode evitar ou atenuar outro nasce miserável a ser quando criança uma boca a mais numa família onde as bocas são de sobra para o comer que pode haver Um nasce conde ou marquês e tem por isso a consideração de toda a gente faça ele o que fizer outro nasce assim como eu e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos tratado como gente Uns nascem em tais condições que podem estudar viajar instruirse tornar se podese dizer mais inteligentes que outros que naturalmente o são mais E assim por aí adiante e em tudo As injustiças da Natureza vá não as podemos evitar Agora as da sociedade e das suas convenções essas por que não evitálas Aceito não tenho mesmo outro remédio que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu o talento a força a energia não aceito que ele seja meu superior por qualidades postiças com que não saiu do ventre da mãe mas que lhe aconteceram por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora a riqueza a posição social a vida facilitada etc Foi da revolta que lhe estou figurando por estas considerações que nasceu o meu anarquismo de então o anarquismo que já lhe disse mantenho hoje sem alteração nenhuma Parou outra vez um momento como a pensar como prosseguiria Fumou e soprou o fumo lentamente para o lado oposto ao meu Voltouse e ia a prosseguir Eu porém interrompio Uma pergunta por curiosidade Por que é que V se tornou propriamente anarquista V podia terse tornado socialista ou qualquer outra cousa avançada que não fosse tão longe Tudo isso estava dentro da sua revolta Deduzo do que V disse que por anarquismo V entende e acho que está bem como definição do anarquismo a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço para a abolição de todas Isso mesmo Por que escolheu V essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras das intermédias Eu lhe digo Eu meditei tudo isso É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias Escolhi a teoria anarquista a teoria extrema como V muito bem diz pelas razões que vou dizer em duas palavras Fitou um momento cousa nenhuma Depois voltouse para mim O mal verdadeiro o único mal são as convenções e as ficções sociais que se sobrepõem às realidades naturais tudo desce a família ao dinheiro desde a religião ao Estado A gente nasce homem ou mulher quero dizer nasce para ser em adulto homem ou mulher não nasce em boa justiça natural nem para ser marido nem para ser rico ou pobre como também não nasce para ser católico ou protestante ou português ou inglês É todas estas coisas em virtude das ficções sociais Ora essas ficções sociais são más por quê Porque são ficções porque não são naturais Tão mau é o dinheiro como o Estado a constituição de família como as religiões Se houvesse outras que não fossem estas seriam igualmente más porque também seriam ficções porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais Ora qualquer sistema que não seja o puro sistema anarquista completamente é uma ficção também Empregar todo o nosso desejo todo o nosso esforço toda a nossa inteligência para implantar ou contribuir para implantar uma ficção social em vez de outra é um absurdo quando não seja mesmo um crime porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma Se achamos injustas as ficções sociais porque esmagam e oprimem o que é natural no homem para que empregar o nosso esforço em substituirlhes outras ficções se o podemos empregar para as destruir todas Isto pareceme que é concludente Mas suponhamos que o não é suponhamos que nos objetam que isto tudo estará muito certo mas que o sistema anarquista não é realizável na prática Vamos lá a examinar essa parte do problema Por que é que o sistema anarquista não seria realizável Nós partimos todos os avançados do princípio não só de que o atual sistema é injusto mas de que há vantagem porque há injustiça em substituílo por outro mais justo Se não pensamos assim não somos avançados mas burgueses Ora de onde vem este critério de justiça Do que é natural e verdadeiro em oposição às ficções sociais e às mentiras da convenção Ora o que é natural é o que é inteiramente natural não é metade ou um quarto ou um oitavo de natural Muito bem Ora de duas coisas uma ou o natural é realizável socialmente ou não é em outras palavras ou a sociedade pode ser natural ou a sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma Se a sociedade pode ser natural então pode haver a sociedade anarquista ou livre e deve haver porque é ela a sociedade inteiramente natural Se a sociedade não pode ser natural se por qualquer razão que não importa tem por força que ser ficção então do mal o menos façamola dentro desse ficção inevitável o mais natural possível Qual é a ficção mais natural Nenhuma é natural em si porque é ficção a mais natural neste nosso caso será aquela que pareça mais natural que se sinta como mais natural É aquela que estamos habituados V compreende o que é natural é o que é do instinto e o que não sendo instinto se parece em tudo com o instinto é o hábito Fumar não é natural não é uma necessidade do instinto Ora qual é a ficção social que constitui um hábito nosso É o atual sistema o sistema burguês Temos pois em boa lógica que ou achamos a sociedade natural e seremos defensores do anarquismo ou não a julgamos possível e seremos defensores do regime burguês Não há hipótese intermédia Percebeu Sim senhor isso é concludente Ainda não é bem concludente Ainda há uma outra objeção do meu gênero a liquidar Pode concordarse que o sistema anarquista é realizável mas pode duvidar se que ele seja realizável de chofre isto é que se possa passar da sociedade burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes intermédios Quem fizer essa objeção aceita como boa e como realizável a sociedade anarquista mas palpitalhe que tem que haver um estado qualquer de transição entre a sociedade burguesa e ela Ora muito bem Suponhamos que assim é O que é esse estado intermédio O nosso fim é a sociedade anarquista ou livre esse intermédio só pode ser portanto um estado de preparação da humanidade para a sociedade livre Essa preparação ou é material ou é simplesmente mental isto é ou é uma série de realizações materiais ou sociais que vão adaptando a humanidade à sociedade livre ou é uma simples propaganda gradualmente crescente e influente que vai preparando mentalmente a desejála ou aceitála Vamos ao primeiro caso a adaptação gradual e material da humanidade à sociedade livre É impossível é mais que impossível é absurdo Não há adaptação material senão uma cousa que já há Nenhum de nós se pode adaptar materialmente ao meio social do século XXIII mesmo que saiba o que ele será e não se pode adaptar materialmente porque o século XXIII e o seu meio social não existem materialmente ainda Assim chegamos à conclusão que na passagem da sociedade burguesa para a sociedade livre a única parte que pode haver de adaptação de evolução ou de transição é mental é a gradual adaptação dos espíritos à idéia da sociedade livre Em todo o caso no campo da adaptação material ainda há uma hipótese Irra com tanta hipótese Ó filho o homem lúcido tem que examinar todas as objeções possíveis e de as refutar antes de se poder dizer seguro da sua doutrina E de mais a mais isto tudo é em resposta a uma pergunta que V me fez Está bem No campo da adaptação material dizia eu há em todo o caso um outra hipótese É a da ditadura revolucionária Da ditadura revolucionária como Como eu lhe expliquei não pode haver adaptação material a uma coisa que não existe materialmente ainda Mas se por um movimento brusco se fizer a revolução social fica implantada já não a sociedade livre porque para essa não pode a humanidade ter ainda preparação mas uma ditadura daqueles que querem implantar a sociedade livre Mas existe já ainda que em esboço ou em começo existe já materialmente qualquer coisa da sociedade livre Há já portanto uma coisa material a que a humanidade se adapte É este o argumento com que as bestas que defendem a ditadura do proletariado a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de pensar O argumento é claro não é deles é meu Ponhoo como objeção a mim mesmo E como lhe vou mostrar é falso Um regime revolucionário enquanto existe e seja qual for o fim a que visa ou a idéia que o conduz é materialmente só uma coisa um regime revolucionário Ora um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra ou nas verdadeira palavras um regime militar despótico porque o estado de guerra é imposta à sociedade por uma parte dela aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder O que é que resulta Resulta que quem se adaptar a esse regime como a única coisa que ele é materialmente imediatamente é um regime militar despótico adaptase a um regime militar despótico A idéia que conduziu os revolucionários o fim a que visaram desapareceu por completo da realidade social que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária e tanto mais completamente sairá quanto mais tempo essa ditadura durar é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial isto é um despotismo militar Nem mesmo podia ser outra coisa E foi sempre assim Eu não sei muita história mas o que sei acerta com isto nem podia deixar de acertar O que saiu das agitações políticas de Roma O Império Romano e seu despotismo militar O que saiu da Revolução Francesa Napoleão e seu despotismo militar E V verá o que sai da Revolução Russa Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre Também o que era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos Enfim isto já está fora de conversa V percebeu o meu argumento Percebi perfeitamente V compreende portanto que eu cheguei a esta conclusão Fim a sociedade anarquista a sociedade livre meio a passagem sem transição da sociedade burguesa para a sociedade livre Esta passagem seria preparada e tornada possível por uma propaganda intensa completa absorvente de modo a predispor todos os espíritos e enfraquecer todas as resistências É claro que por propaganda não entendo só a pela palavra escrita e falada entendo tudo ação indireta ou direta quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda Assim não tendo quase resistência nenhuma que vencer a revolução social quando viesse seria rápida fácil e não teria que estabelecer nenhuma ditadura revolucionária por não ter contra quem aplicala Se isto não pode ser assim é que o anarquismo é irrealizável e se o anarquismo é irrealizável só é defensável e justa como já lhe provei a sociedade burguesa Ora aí tem V por que e como eu me tornei anarquista e por que e como rejeitei como falsas e antinaturais as outras doutrinas sociais de menor ousadia E pronto Vamos lá continuar a minha história Fez explodir um fósforo e acendeu lentamente o charuto Concentrouse e de aí a pouco prosseguiu Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu A maioria era de operários mas havia um ou outro que o não era o que todos éramos era pobres e que me lembre não éramos muito estúpidos A gente tinha uma certa vontade de propaganda de espalhar as nossas idéias Queríamos para nós e para os outros para a humanidade inteira uma sociedade nova livre destes preconceitos todos que fazem os homens desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades sofrimentos estreitezas que a Natureza lhes não tinha imposto Por mim o que eu lia confirmava me nestas opiniões Em livros libertários baratos os que havia ao tempo e eram já bastantes li quase tudo Fui a conferências e comícios dos propagandistas do tempo Cada livro e cada discurso me convencia mais da certeza e da justiça das minhas idéias O que eu pensava então repitolhe meu amigo é o que penso hoje a única diferença é que então pensavao só hoje pensoo e praticoo Pois sim isso até onde vai está muito bem Está muito certo que V se tornasse anarquista assim e vejo perfeitamente que V era anarquista Não preciso mais provas disso como é que saiu de aí sem contradição Isto é mais ou menos já calculo Não não calcula nada Eu sei o que V quer dizer V baseiase nos argumentos que acaba de ouvir e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso como lhe disse só defensável e justa a sociedade burguesa não é Sim calculei que fosse mais ou menos isso Mas como o podia ser se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que sou anarquista que não só o fui mas o continuo sendo Se eu me tivesse tornado banqueiro e comerciante pela razão que V julga eu não era anarquista era burguês Sim V tem razão Mas então como diabo Vá lá vá dizendo Como lhe disse eu era fui sempre mais ou menos lúcido e também um homem de ação Essas são qualidades naturais não mas puseram no berço se é que tive berço eu é que as levei para lá Pois bem Sendo anarquista eu achava insuportável ser anarquista passivamente só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos Não era preciso fazer qualquer coisa Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos oprimidos e das vítimas das convenções sociais Decidi meter ombros a isso conforme pudesse Pusme a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária Pusme a traçar o meu plano de ação O que quer o anarquista Liberdade a liberdade para si e para os outros para a humanidade inteira Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais quer ser livre tal qual nasceu e pareceu no mundo que é como em justiça deve ser e quer essa liberdade para si e para todos os mais Nem todos podem ser iguais perante a Natureza uns nascem altos outros baixos uns fortes outros fracos uns mais inteligentes outros menos Mas todos podem ser iguais de aí em diante só as ficções sociais o evitam Essas ficções sociais é que era preciso destruir Era preciso destruílas Mas não me escapou uma coisa era preciso destruílas mas em proveito da liberdade e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade ou preparar o caminho da liberdade como para estabelecer outras ficções sociais diferentes igualmente más porque igualmente ficções Aqui é que era preciso cuidado Era preciso acertar com um processo de ação qualquer que fosse a sua violência ou a sua nãoviolência porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem ao mesmo tempo estorvar a criação da liberdade futura criando já mesmo caso fosse possível alguma coisa da liberdade futura É claro que esta liberdade que deve haver cuidado em não estorvar é a liberdade futura e no presente a liberdade dos oprimidos pelas ficções sociais Claro está que não temos que olhar a não estorvar a liberdade dos poderosos dos bem situados de todos que representam as ficções sociais e têm vantagens delas Essa não é liberdade é a liberdade de tiranizar que é o contrário da liberdade Essa pelo contrário é o que mais devíamos pensar em estorvar e em combater Pareceme que isto está claro Está claríssimo Continue Para quem quer o anarquismo a liberdade Para a humanidade inteira Qual é a maneira de se conseguir a liberdade para a humanidade inteira Destruir por completo todas as ficções sociais Já lhe antecipei a explicação quando por causa da sua pergunta discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e por que era anarquista V lembrase da minha conclusão Lembro Uma revolução social súbita brusca esmagadora fazendo a sociedade passar de um salto do regime burguês para a sociedade livre Esta revolução social preparada por um trabalho intenso e contínuo de ação direta e indireta tendente a dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre e a enfraquecer até ao estado comatoso todas as resistências da burguesia Escuso de lhe repetir as razões que levam inevitavelmente a esta conclusão a dentro do anarquismo já lhe expus e V já a percebeu Sim Essa revolução seria preferivelmente mundial simultânea em todos os pontos ou os pontos importantes do mundo ou não sendo assim partindo rapidamente de uns para outros mas em todo o caso em cada ponto isto é em cada nação fulminante e completa Muito bem O que poderia eu fazer para esse fim Só por mim não a poderia fazer a ela à revolução mundial nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte referente ao país onde estava O que podia era trabalhar na inteira medida do meu esforço para fazer a preparação para essa revolução Já lhe expliquei como combatendo por rodos os meios acessíveis as ficções sociais não estorvando nunca ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre nem a liberdade futura nem a liberdade presente dos oprimidos criando já sendo possível qualquer coisa da futura liberdade Puxou fumo fez uma leve pausa recomeçou Ora aqui meu amigo pus eu a minha lucidez em ação Trabalhar para o futuro está bem pensei eu trabalhar para os outros terem liberdade está certo Mas então eu Eu não sou ninguém Se eu fosse cristão trabalhava alegre mente pelo futuro dos outros porque lá tinha a minha recompensa no céu mas também se eu fosse cristão não era anarquista porque então as tais desigualdades sociais não tinham importância na nossa curta vida eram só condições da nossa provação e lá seriam compensadas na vida eterna Mas eu não era cristão como não sou e perguntava me mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo Mais ainda por que é que eu me vou sacrificar Vieramme momentos de descrença e V compreende que era justificada Sou materialista pensava eu não tenho mais vida que esta para que hei de ralarme com propagandas e desigualdades sociais e outras histórias quando posso gozar e entreterme muito mais se não me preocupar com isso Quem tem só esta vida quem não crê na vida eterna quem não admite lei senão a Natureza quem se opõe ao Estado porque ele não é natural ao casamento porque ele não é natural ao dinheiro porque ele não é natural porque cargasdágua é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros ou pela humanidade se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais Sim a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado ou para ser português ou para ser rico ou pobre mostrame também que ele não nasce para ser solidário que ele não nasce senão para ser elepróprio e portanto o contrário de altruísta e solidário e portanto exclusivamente egoísta Eu discuti a questão comigo mesmo Repara tu dizia eu para mim que nascemos pertencentes à espécie humana e que temos o dever de ser solidários com todos os homens Mas a idéia de dever era natural De onde é que vinha esta idéia de dever Se esta idéia de dever me obrigava a sacrificar o meu bemestar a minha comodidade o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais em que divergia a ação dessa idéia da ação de qualquer ficção social que produz em nós exatamente o mesmo efeito Esta idéia de dever isto de solidariedade humana só podia considerarse natural se trouxesse consigo uma compensação egoísta porque então embora em princípio contrariasse o egoísmo natural se dava a esse egoísmo uma compensação sempre no fim de contas o não contrariava Sacrificar um prazer simplesmente sacrificálo não é natural sacrificar um prazer a outro é que já está dentro da Natureza é entre duas cousas naturais que se não podem ter ambas escolher uma o que está bem Ora que compensação egoísta ou natural podia darme a dedicação à causa da sociedade livre e da futura felicidade humana Só a consciência de dever cumprido do esforço para um fim bom e nenhuma destas coisas é uma compensação egoísta nenhuma destas coisas é um prazer em si mas um prazer se o é nascido de uma ficção social como pode ser o prazer de ser imensamente rico ou o prazer de ter nascido em um boa posição social Confessolhe meu velho que me vieram momentos de descrença Sentime desleal à minha própria doutrina traidor a ela Mas em breve passei sobre tudo isto A idéia de justiça cá estava dentro de mim pensei eu Eu sentiaa natural Eu sentia que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino E fui para diante na minha intenção Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte V não resolveu a dificuldade V foi para diante por um impulso absolutamente sentimental Sem dúvida Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei anarquista e de como o continuei sendo e continuo Voulhe expondo lealmente as hesitações e as dificuldades que tive e como as venci Concordo que naquele momento venci a dificuldade lógica com o sentimento e não com o raciocínio Mas V há de ver que mais tarde quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista esta dificuldade até então logicamente sem resposta teve a sua solução completa e absoluta É curioso É Agora deixeme continuar na minha história Tive esta dificuldade e resolvia se bem que mal como lhe disse Logo a seguir e na linha dos meus pensamentos surgiume outra dificuldade que também me atrapalhou bastante Estava bem vamos lá que estivesse disposto a sacrificarme sem recompensa nenhuma propriamente pessoal isto é sem recompensa nenhuma verdadeiramente natural Mas suponhamos que a sociedade futura não dava em nada do que eu esperava que nunca havia a sociedade livre e que diabo é que eu nesse case me estava sacrificando Sacrificarme a uma idéia sem recompensa pessoal sem eu ganhar nada com o meu esforço por essa idéia vá mas sacrificarme sem ao menos ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava existiria um dia sem que a própria idéia ganhasse com o meu esforço isso era um pouco mais forte Desde já lhe digo que resolvi a dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra mas advirtoo também que do mesmo modo que a outra resolvi esta pela lógica automaticamente quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu anarquismo V depois verá Na altura do que lhe estou contando saíme do apuro com uma ou duas frases ocas Eu fazia o meu dever para com o futuro o futuro que fizesse o seu para comigo Isto ou cousa que o valha Expus esta conclusão ou antes estas conclusões aos meus camaradas e eles concordaram todos comigo concordaram todos que era preciso ir para a frente e fazer tudo pela sociedade livre É a verdade que um ou outro dos mais inteligentes ficaram um pouco abalados com a exposição não porque não concordassem mas porque nunca tinham visto as coisas assim claras nem os bicos que estas coisas têm Mas enfim concordaram todos Iríamos todos trabalhar pela grande revolução social pela sociedade livre quer o futuro nos justificasse quer não Formamos um grupo entre gente certa e começamos uma grande propaganda grande é claro dentro dos limites doo que podíamos fazer Durante bastante tempo no meio de dificuldades embrulhadas e por vezes perseguições lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista O banqueiro chegado aqui fez uma pausa um pouco mais longa Não acendeu o charuto que estava outra vez apagado De repente teve um leve sorriso e com o ar de quem chega ao ponto importante fitoume com mais insistência e prosseguiu clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras Nesta altura disse ele apareceu uma coisa nova Nesta altura é modo de dizer Quero dizer que depois de alguns meses desta propaganda comecei a reparar numa nova complicação e esta é que era a mais séria de todas esta é que era séria a valer V recordase não é verdade Daquilo em que eu por um raciocínio rigoroso assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas Um processo ou processos quaisquer pelo qual se contribuisse para destruir as ficções sociais sem ao mesmo tempo estorvar a criação da liberdade futura sem portanto estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais um processo que sendo possível criasse já alguma coisa da liberdade futura Pois bem uma vez assente este critério nunca mais deixei de o ter presente Ora na altura da nossa propaganda em que estou falando descobri uma coisa No grupo de propaganda não éramos muitos éramos quarenta salvo erro davase este caso criavase tirana Criavase tirania Criavase tirania como Da seguinte maneira Uns mandavam em outros e levavamnos para onde queriam uns impunhamse a outros e obrigavamnos a ser o que eles queriam uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam Não digo que fizessem isto em coisas graves mesmo não havia coisas graves ali em que o fizessem Mas o fato é que isto acontecia sempre e todos os dias e davase não só em assuntos relacionados com a propaganda como fora deles em assuntos vulgares da vida Uns iam insensivelmente para chefes outros insensivelmente para subordinados Uns eram chefes por imposição outros eram chefes por manha No fato mais simples isto se via Por exemplo dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora chegavam ao fim da rua e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda cada um tinha conveniência em ir para o seu lado Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro venha V comigo por aqui o outro respondia e era verdade Homem não posso tenho que ir por ali por esta ou aquela razão Mas afinal contra sua vontade e sua conveniência lá ia com o outro para a esquerda Isto era uma vez por persuasão outra vez por simples insistência uma terceira vez por um outro motivo qualquer Isto é nunca era por uma razão lógica havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo de como que instintivo E como neste caso simples em todos os outros casos desde os menos até aos mais importantes V vê bem o caso Vejo Mas que diabos há de estranho nisso Isso é tudo quanto há de mais natural Será Já vamos a isso O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da doutrina anarquista Repare bem que isto se passava num grupo pequeno num grupo sem influência nem importância num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto E repare que se passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim anarquista isto é para combate tanto quando possível as ficções sociais e criar tanto quando possível a liberdade futura V reparou bem nestes dois pontos Reparei Veja agora bem o que isto representa Um grupo pequeno de gente sincera garantolhe que era sincera estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade tinha no fim de uns meses conseguido só uma coisa de positivo e concreto a criação entre si de tirania E repare que tirania Não era uma tirania derivada da ação das ficções sociais que embora lamentável seria desculpável até certo ponto ainda que menos em nós que combatíamos essas ficções que em outras pessoas mas enfim vivíamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de todo fugir à sua ação Mas não era isso Os que mandavam nos outros ou os levavam para onde queriam não faziam isso pela força do dinheiro ou da posição social ou de qualquer autoridade de natureza fictícia que se arrogassem faziamno por uma ação de qualquer espécie fora das ficções sociais uma tirania nova E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais Era ainda por cima tirania exercida entre si por gente cujo intuido sincero não era senão destruir tirania e criar liberdade Agora ponha o caso num grupo muito maior muito mais influente tratando já de questões importantes e de decisões de caráter fundamental Ponha esse grupo a encaminha os seus esforços como o nosso para a formação de um sociedade livre E agora digame se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V entrevê qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um humanidade digna de si própria Sim isso é muito curioso É curioso não éE olhe que há pontos secundários também muito curiosos Por exemplo a tirania do auxílio A quê A tirania do auxílio Havia entre nós quem em vez de mandar nos outros em vez de se impor aos outros pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia Parece o contrário não é verdade Pois olhe que é o mesmo É a mesma tirania nova É do mesmo modo ir contra os princípios anarquistas Essa é boa Em quê Auxiliar alguém meu amigo é tomar alguém por incapaz se esse alguém não é incapaz é ou fazêlo tal ou supôlo tal e isto é no primeiro caso uma tirania e no segundo um desprezo Num caso cerceiase a liberdade de outrem no outro caso partese pelo menos inconscientemente do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade Voltemos ao nosso caso V vê bem que este ponto era gravíssimo Vá que trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse ou arriscandonos mesmo a que ela nunca viesse Tudo isso vá Mas o que era demais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos de positivo mais que criar tirania e não só tirania mas tirania nova e tirania exercida por nós os oprimidos uns sobre os outros Ora isto é que não pode ser Pusme a pensar Aqui havia um erro um desvio qualquer Os nossos intuitos eram bons as nossas doutrinas pareciam certas seriam errados os nossos processos Com certeza que deveriam ser Mas onde diabo estava o erro Pusme a pensar nisso e ia dando em doido Um dia de repente como acontece sempre nestas coisas dei com a solução Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas o dia em que descobri por assim dizer a técnica do anarquismo Olhoume um momento sem me olhar Depois continuou no mesmo tom Pensei assim Temos aqui uma tirania nova uma tirania que não é derivada das ficções sociais Então de onde é que ela derivada Será derivada das qualidades naturais Se é adeus sociedade livre Se uma sociedade onde estão em operação apenas as qualidades naturais dos homens aquelas qualidades com que eles nascem que devem só à Natureza e sobre as quais não temos poder nenhum se uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa sociedade Tirania por tirania fique a que está que ao menos é aquela a que estamos habituados e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma tirania nova e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente da Natureza o não haver revolta possível contra ela como não há revolução contra ter que morrer ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido alto Mesmo eu já lhe provei que se por qualquer razão não é realizável a sociedade anarquista então deve existir por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela a sociedade burguesa Mas seria esta tirania que nascia assim entre nós realmente derivada das qualidades naturais Ora o que são as qualidades naturais São o grau de inteligência de imaginação de vontade etc com que cada um nasce isto no campo mental é claro porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso Ora um tipo que sem ser por uma razão derivada das ficções sociais manda noutro por força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais Dominao pelo emprego das suas qualidades naturais Mas há uma coisa a ver esse emprego das qualidades naturais será legítimos isto é será natural Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais O servir os fins naturais da nossa personalidade Ora dominar alguém será um fim natural da nossa personalidade Pode sêlo há um caso em que pode sêlo é quando esse alguém está para nós num lugar de inimigo Para o anarquista é claro quem está num lugar de inimigo é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania mais ninguém porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas naturais Ora V bem vê o caso da tirania que tínhamos estado criando era exercida sobre homens como nós camaradas naturais e mais ainda sobre homens duas vezes nossos camaradas porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal Conclusão esta nossa tirania se não era derivada das ficções sociais também não era derivada das qualidades naturais era derivada duma aplicação errada duma perversão das qualidades naturais E essa perversão de onde é que provinha Tinha que provir de uma de duas cousas ou de o homem ser naturalmente mau e portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas ou de uma perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de ficções sociais todas elas criadoras de tirania e tendente portanto a tornar já instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais Ora destas duas hipóteses qual é que seria a verdadeira De um modo satisfatório isto é rigorosamente lógico ou científico era impossível determinar O raciocínio não pode entrar com o problema porque ele é de ordem histórica ou científica e depende do conhecimento de fatos Por seu lado a ciência também nos não ajuda porque por mais longe que recuemos na história encontramos sempre o homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social e portanto sempre num estado que nos não permite averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente naturais Não havendo maneira de determinar ao certo temos que pender para o lado da maior probabilidade e a maior probabilidade está na segunda hipótese É mais natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais pervertidas no sentido de tiranizar do que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente pervertidas o que de certo modo representa una contradição Por isso o pensador decidese como eu me decidi com uma quase absoluta segurança pela segunda hipótese Temos pois que uma coisa é evidente No estado social presente não é possível um grupo de homens por bem intencionados que estejam todos por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania sem criar entre si uma tirania nova suplementar à das ficções sociais sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria sem involutariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover O que há a fazer É muito simples É trabalharmos todos para o mesmo fim mas separados Separados Sim V não seguiu o meu argumento Segui E não acha lógica não acha fatal esta conclusão Acho sim claro Disse eu trabalharmos todos para o mesmo fim mas separados Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista cada um contribui com o seu esforço para a destruição das ficções sociais que é para onde o dirige e para a criação da sociedade livre do futuro e trabalhando separados não podemos de modo nenhum criar tirania nova porque nenhum tem ação sobre o outro e não pode portanto nem dominandoo diminuirlhe a liberdade nem auxiliandoo apagarlha Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista temos as duas vontades a do esforço e a da não criação de tirania nova Continuamos unidos porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim continuamos anarquistas porque cada um trabalha para a sociedade livre mas deixamos de ser traidores voluntários ou involuntários à nossa cousa deixamos mesmo de poder sêlo porque nos colocamos pelo trabalho anarquista isolado fora da influência deletéria das ficções sociais no seu reflexo hereditário sobre as qualidades que a Natureza deu É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação para a revolução social Arruinadas as defesas burguesas e reduzida a sociedade inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas faltando só fazer a revolução social então para o golpe final é que não pode continuar a ação separada Mas nessa altura já a sociedade livre estará virtualmente chagada já as coisas serão de outra maneira A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em meio da sociedade burguesa como agora como no grupo a que eu pertencia Era esse até que enfim o verdadeiro processo anarquista Juntos nada valíamos que importasse e ainda por cima nos tiranizávamos e nos estorvávamos uns aos outros e às nossas teorias Separados pouco também conseguiríamos mas ao menos não estorvávamos a liberdade não criávamos tirania nova o que conseguíamos pouco que fosse era realmente conseguido sem desvantagem nem perda E de mais a mais trabalhávamos assim separados aprendíamos a confiar mais em nós mesmos a não nos encostarmos uns aos outros a tornarmonos mais livres já a prepararmonos tanto pessoalmente como aos outros pelo nosso exemplo para o futuro Fiquei radiante com essa descoberta Fui logo expôla aos meus camaradas Foi uma das poucas vezes em que fui estúpido na minha vida Imagine V que eu estava tão cheio da minha descoberta que esperava que eles concordassem Não concordaram é claro Repontaram meu amigo repontaram todos Uns mais outros menos tudo protestou Não era isso Isso não podia ser Mas ninguém dizia o que era ou o que é que havia de ser Argumentei e argumentei e em resposta aos meus argumentos não obtive senão frases lixo coisas como essas que os ministros respondem nas câmaras quando não têm resposta nenhuma Então é que eu vi com que bestas e com que covardões estava metido Desmascararamse Aquela corja tinha nascido para escravos Queriam ser anarquistas à custa alheia Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem logo que lhe fosse dada como um rei dá um título Quase todos eles são assim os grandes lacaios E V escamouse Se me escamei Enfurecime Pusme aos coices Dei por paus e por pedras Quase que me peguei com dois ou três deles E acabei por me vir embora Isoleime Veiome um nojo àquela carneirada toda que V não imagina Quase que descri no anarquismo Quase que decidi não me importar mais com tudo aquilo Mas passados uns dias voltei a mim Pensei que o ideal anarquista estava acima destas quizílas Eles não queriam só brincar aos libertários Não estava eu para brincar num caso desses Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros e criando entre si um simulacro novo da tirania que diziam querer combater Pois que o fizessem os parvos se não serviam para mais Eu é que não ia ser burguês por tão pouco Estava estabelecido que no verdadeiro anarquismo cada um tem que por sua própria forças criar liberdade e combater as ficções sociais Pois por minha própria forças eu ia criar liberdade e combater as ficções sociais Ninguém queria seguirme no verdadeiro caminho anarquista Seguiria eu por ele Iria eu só com os meus recursos com a minha fé desacompanhado até do apoio mental dos que tinham sido meus camaradas contra as ficções sociais inteiras Não digo que fosse um belo gesto nem um gesto heróico Foi simplesmente um gesto natural Se o caminho tinha que ser seguido por cada um separadamente eu não precisava de mais ninguém para o seguir Bastava o meu ideal Foi baseado nestes princípios e nestas circunstâncias que decidi por mim só combater as ficções sociais Suspendeu um pouco o discurso que se lhe tornara quente e fluido Retomouo de ali a pouco com a voz já mais sossegada É um estado de guerra pensei eu entre mim e as ficções sociais Muito bem O que posso eu fazer contra as ficções sociais Trabalho sozinho para não poder de modo nenhum criar qualquer tirania Como posso eu colaborar sozinho na preparação da revolução social na preparação da humanidade para a sociedade livre Tenho que escolher um de dois processos dos dois processos que há caso é claro não possa servirme de ambos Os dois processos são a ação indireta isto é a propaganda e a ação direta de qualquer espécie Pensei primeiro na ação indireta isto é na propaganda Que propaganda poderia eu fazer só por mim À parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em conversa com este ou aquele ao acaso e servindonos de todas as oportunidades o que eu queria saber era se a ação indireta era um caminho por onde eu pudesse encaminhar a minha atividade de anarquista energicamente isto é de modo a produzir resultados sensíveis Vi logo que não podia ser Não sou orador e não sou escritor Quero dizer sou capaz de falar em público se for preciso e sou capaz de escrever um artigo de jornal mas o que eu queria averiguar era se o meu feitio natural indicava que especializandome na ação indireta de qualquer das duas espécies ou em ambas eu poderia obter resultados mais positivos para a idéia anarquista que especializando os meus esforços em qualquer outro sentido Ora a ação é sempre mais proveitosa que a propaganda exceto para os indivíduos cujo feitio os indica essencialmente como propagandistas os grandes oradores capazes de eletrizar multidões e arrastálas atrás de si ou os grandes escritores capazes de fascinar e convencer com os seus livros Não me parece que eu seja muito vaidoso mas se o sou não me dá pelo menos para me envaidecer daquelas qualidades que não tenho E como lhe disse nunca me deu para me julgar orador ou escritor Por isso abandonei a idéia da ação indireta como caminho a dar à minha atividade anarquista Por exclusão de partes era forçado a escolher a ação direta isto é o esforço aplicado à prática da vida à vida real Não era a inteligência mas a ação Muito bem Assim seria Tinha eu pois que aplicar à vida prática o processo fundamental de ação anarquista que eu já tinha esclarecido combater as ficções sociais sem criar tirania nova criando já caso fosse possível qualquer coisa da liberdade futura Ora como diabo se faz isso na prática Ora o que é combater na prática Combater na prática é a guerra é uma guerra pelo menos Como é que se faz guerra às ficções sociais Antes de mais nada como é que se faz guerra Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra De uma de duas maneiras ou matandoo isto é destruindoo ou aprisionandoo isto é subjugandoo reduzindoo à inatividade Destruir as ficções sociais não podia eu fazer destruir as ficções sociais só o podia fazer a revolução social Até ali as ficções sociais podiam estar abaladas cambaleando por um fio mas destruídas só o estariam com a vinda da sociedade livre e a queda positiva da sociedade burguesa O mais que eu poderia fazer nesse sentido era destruir destruir no sentido físico de matar um ou outro membro da classes representativas da sociedade burguesa Estudei o caso e vi que era asneira Suponha V que eu matava um ou dois ou uma dúzia de representante da tirania das ficções sociais O resultado As ficções sociais ficariam abaladas Não ficariam As ficções sociais não são como um situação política que pode depender de um pequeno número de homens de um só homem por vezes O que há de mau nas ficções sociais são elas no seu conjunto e não os indivíduos que as representam senão por serem representantes delas Depois um atentado de ordem social produz sempre uma reação não só tudo fica na mesma mas as mais das vezes piora E ainda por cima suponha como é natural que depois de um atentado eu era caçado era caçado e liquidado de uma maneira ou outra E suponha que eu tinha dado cabo de uma dúzia de capitalistas Em que vinha isso tudo dar e resumo Com a minha liquidação ainda que não por morte mas por simples prisão ou degredo a causa anarquista pedia um elemento de combate e os doze capitalistas que eu teria estendido não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha perdido porque os elementos componentes da sociedade burguesa não são elementos de combate mas elementos puramente passivos pois o combate está não nos membros da sociedade burguesa mas no conjunto de ficções sociais em que essa sociedade assenta Ora as ficções sociais não são gente em quem se possa dar tiros V compreende bem Não era como o soldado de um exercito que mata doze soldados de um exército contrário era como um soldado que mata doze civis da nação do outro exército É matar estupidamente porque não se elimina combatente nenhum Eu não podia portanto pensar em destruir nem no todo nem em nenhuma parte ficções sociais Tinha então que subjugálas que vencêlas subjugandoas reduzindoas à inatividade Apontou para mim o indicador direito súbito Foi o que eu fiz Retirou logo o gesto e continuou Procurei ver qual era a primeira a mais importante das ficções sociais Seria a essa que me cumpria mais que a nenhuma outra tentar subjugar tentar reduzir à inatividade A mais importante da nossa época pelo menos é o dinheiro Como subjugar o dinheiro ou em palavras mais precisas a força ou a tirania do dinheiro Tornandome livre da sua influência da sua força superior portanto à influência reduzindoo à inatividade pelo que me dizia respeito a mim Pelo que me dizia respeito a mim compreende V porque eu é que o combatia se fosse reduzilo à inatividade pelo que respeita a toda a gente isso não seria já subjugálo mas destruílo porque seria acabar de todo com a ficção do dinheiro Ora eu já lhe provei que qualquer ficção social só pode ser destruída pela revolução social arrastada com as outras na queda da sociedade burguesa Como podia eu tornarme superior à força do dinheiro O processo mais simples era afastarme da esfera da sua influência isto é da civilização ir para um campo comer raízes e beber água das nascentes andar nu e viver como animal Mas isto mesmo que não houvesse dificuldade em fazêlo não era combater uma ficção social não era mesmo combater era fugir Realmente quem se esquiva a travar um combate não é derrotado nele Mas moralmente é derrotado porque não se bateu O processo tinha que ser outro um processo de combate e não de fuga Como subjugar o dinheiro combatendoo Como furtarme à sua influência e tirania não evitando o seu encontro O processo era só um adquirilo adquirilo em quantidades bastante para lhe não sentir a influência e em quanto mais quantidade o adquirisse tanto mais livre eu estaria dessa influência Foi quando vi isto claramente com toda a força da minha convicção de anarquista e toda a minha lógica de homem lúcido que entrei na fase atual a comercial e bancária meu amigo do meu anarquismo Descansou um momento da violência novamente crescente do seu entusiasmo pela sua exposição Depois continuou ainda com um certo calor a sua narrativa Ora V lembrasse daquelas duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me haviam surgido na princípio da minha carreira de anarquista consciente E V lembrase de eu lhe dizer que naquela altura as resolvi artificialmente pelo sentimento e não pela lógica Isto é V mesmo notou e muito bem que eu não as tinha resolvido pela lógica Lembrome sim E V lembrase de eu lhe dizer que mais tarde quando acertei por fim com o verdadeiro processo anarquista as resolvi então de vez isto é pela lógica Sim Ora veja como ficaram resolvidas As dificuldades eram estas não é natural trabalhar por qualquer coisa seja o que for sem uma compensação natural isto é egoísta e não é natural dar o nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que esse fim se atinge As duas dificuldades eram estas ora repare como ficam resolvidas pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a descobrir como sendo o único verdadeiro O processo dá em resultado eu enriquecer portanto compensação egoísta O processo visa ao conseguimento da liberdade ora eu tornandome superior à força do dinheiro isto é libertandome dela consigo liberdade Consigo liberdade só para mim é certo mas é que como já lhe provei a liberdade para todos só pode vir com a destruição das ficções sociais pela revolução social O ponto concreto é este viso liberdade consigo liberdade consigo a liberdade que posso E veja V à parte o raciocínio que determina este processo anarquista como o único verdadeiro o fato que ele resolve automaticamente as dificuldades lógicas que se podem opor a qualquer processo anarquista mais prova que ele é o verdadeiro Pois foi este o processo que eu segui Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro enriquecendo Consegui Levou um certo tempo porque a luta foi grande mas consegui Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida comercial e bancária Podia ser interessante em certos pontos sobretudo mas já não pertence ao assunto Trabalhei lutei ganhei dinheiro trabalhei mais lutei mais ganhei mais dinheiro ganhei muito dinheiro por fim Não olhei o processo confessolhe meu amigo que não olhei o processo empreguei tudo quanto há o açambarcamento o sofisma financeiro a própria concorrência desleal O quê Eu combatia as ficções sociais imorais e antinaturais por excelência e havia de olhar a processos Eu trabalhava pela liberdade e havia de olhar as armas com que combatia a tirania O anarquista estúpido que atira bombas e dá tiros bem sabe que mata e bem sabe que as suas doutrinas não incluem a pena de morte Ataca uma imoralidade com um crime porque acha que essa imoralidade pede um crime para se destruir Ele é estúpido quanto ao processo porque como já lhe mostrei esse processo é errado e contraproducente como processo anarquista agora quanto à moral do processo ele é inteligente Ora o meu processo estava certo e eu serviame legitimamente como anarquista de todos os meios para enriquecer Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido Sou livre Faço o que quero dentro é claro do que é possível fazer O meu lema de anarquista era a liberdade pois bem tenho a liberdade a liberdade que por enquanto na nossa sociedade imperfeita é possível ter Quis combater as forças sociais combatias e o que é mais vencias Alto lá Alto lá disse eu Isso estará tudo muito bem mas há uma cousa que V não viu As condições do seu processo eram como V provou não só criar liberdade mas também não criar tirania Ora V criou tirania V como açambarcador como banqueiro como financeiro sem escrúpulos V desculpe mas V é que disse V criou tirania V criou tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais que V diz que combate Não meu velho V enganase Eu não criei tirania A tirania que pode ter resultado da minha ação de combate contra as ficções sociais é uma tirania que não parte de mim que portanto eu não criei está nas ficções sociais eu não ajuntei a elas Essa tirania é a própria tirania das ficções sociais e eu não podia nem me propus destruir as ficções sociais Pela centésima vez lhe repito só a revolução social pode destruir as ficções sociais antes disso a ação anarquista perfeita como a minha só pode subjugar as ficções sociais subjugálas em relação só ao anarquista que põe esse processo em prática porque esse processo não permite uma mais larga sujeição dessas ficções Não é de não criar tirania que se trata é de não criar tirania nova tirania onde não estava Os anarquistas trabalhando em conjunto influenciandose uns aos outros como eu lhe disse criam entre si fora e à parte das ficções sociais uma tirania essa é que é uma tirania nova Essa eu não a criei Não a podia mesmo criar pelas próprias condições do meu processo Não meu amigo eu só criei liberdade Libertei um Liberteime a mim É que o meu processo que é como lhe provei o único verdadeiro processo anarquista me não permitiu libertar mais O que pude libertar libertei Está bem Concordo Mas olhe que por esse argumento a gente quase que é levado a crer que nenhum representante das ficções sociais exerce a tirania E não exerce A tirania é das ficções sociais e não dos homens que as encarnam esses são por assim dizer os meios de que as ficções se servem para tiranizar como a faca é o meio que se pode servir o assassino E V decerto não julga que abolindo as facas abole os assassinos Olhe Destrua V todos os capitalistas do mundo mas sem destruir o capital No dia seguinte o capital já nas mãos de outros continuará por meio desses a sua tirania Destrua não os capitalistas mas o capital quantos capitalistas ficam Vê Sim V tem razão Ó filho o máximo o máximo o máximo que V me pode acusar de fazer é de aumentar um pouco muito muito pouco a tirania das ficções sociais O argumento é absurdo porque como já lhe disse a tirania que eu não devia criar e não criei é outra Mas tem mais um ponto fraco é que pelo mesmo raciocínio V pode acusar um general que trava combate pelo seu país de causar ao seu país o prejuízo do número de homens do seu próprio exercito que teve que sacrificar para vencer Quem vai à guerra dá e leva Consigase o principal o resto Está muito bem Mas olhe lá outra coisa O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si mas também para os outros Pareceme que quer a liberdade para a humanidade inteira Sem dúvida Mas eu já lhe disse que pelo processo que descobri que era o único processo anarquista cada um tem de libertarse a si próprio Eu liberteime a mim fiz o meu dever simultaneamente pra comigo e para com a liberdade Por que é que os outros os meus camaradas não fizeram o mesmo Eu não os impedi Esse é que teria sido o crime se os tivesse impedido Mas eu nem sequer os impedi ocultando lhes o verdadeiro processo anarquista logo que descobri o processo disseo claramente a todos O próprio processo me impedia de fazer mais Que mais podia fazer Compelilos a seguir o caminho Mesmo que o pudesse fazer não o faria porque seria tirarlhes a liberdade e isso era contra os meus princípios anarquistas Auxiliálos Também não podia ser pela mesma razão Eu nunca ajudei nem ajudo ninguém porque isso sendo diminuir a liberdade alheia é também contra os meus princípios V o que me está censurando é eu não ser mais gente que uma pessoa só Por que me censura o cumprimento do meu dever de libertar até onde eu o podia cumprir Por que não os censura antes a eles por não terem cumprido o deles Pois sim homem Mas esses homens não fizeram o que V fez naturalmente porque eram menos inteligentes que V ou menos fortes de vontade ou Ah meu amigo essas são já as desigualdades naturais e não sociais Com essas é que o anarquismo não tem nada O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é com ele e com a Natureza as próprias ficções sociais não põem praí nem prego nem estopa Há qualidade naturais como eu já lhe disse que se pode presumir que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções sociais mas a perversão não está no grau da qualidade que é absolutamente dado pela Natureza mas na aplicação da qualidade Ora uma questão de estupidez ou de falta de vontade não tem que ver com a aplicação dessas qualidade mas só com o grau delas Por isso lhe digo essas são já absolutamente as desigualdades naturais e sobre essas ninguém tem poder nenhum nem há modificação social que a modifique como não me pode tornar a mim alto ou a V baixo A não ser A não ser que no caso desses tipos a perversão hereditária das qualidades naturais vá tão longe que atinja o próprio fundo do temperamento Sim que um tipo nasça para escravo nasça naturalmente escravo e portanto incapaz de qualquer esforço no sentido de se libertar Mas nesse caso nesse caso que têm eles que ver com a sociedade livre ou com a liberdade Se um homem nasceu para escravo a liberdade sendo contrária à sua índole será para ele uma tirania Houve uma pequena pausa De repente ria alto Realmente disse eu V é anarquista Em todo o caso dá vontade de rir mesmo depois de o ter ouvido compara o que V é com o que são os anarquistas que praí há Meu amigo eu já lho disse já lho provei e agora repitolho A diferença é só esta eles são anarquistas só teóricos eu sou teórico e prático eles são anarquistas místicos e eu científico eles são anarquistas que se agacham eu sou um anarquista que combate e liberta Em uma palavra eles são pseudoanarquistas e eu sou anarquista E levantamosnos da mesa Lisboa janeiro de 1922 Mensagem Fernando Pessoa Fonte httpwwwcfhufscbrmagnomensagemhtm Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum Nota Preliminar O entendimento dos símbolos e dos rituais simbólicos exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições sem as quais os símbolos serão para ele mortos e ele um morto para eles A primeira é a simpatia não direi a primeira em tempo mas a primeira conforme vou citando e cito por graus de simplicidade Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar A segunda é a intuição A simpatia pode auxiliála se ela já existe porém não criá la Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo sem que se veja A terceira é a inteligência A inteligência analisa decompõe reconstrói noutro nível o símbolo tem porém que fazêlo depois que no fundo é tudo o mesmo Não direi erudição como poderia no exame dos símbolos é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação se a intuição a não tiver estabelecido Então a inteligência de discursiva que naturalmente é se tornará analógica e o símbolo poderá ser interpretado A quarta é a compreensão entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes relacionado com vários outros símbolos pois que no fundo é tudo o mesmo Não direi erudição como poderia ter dito pois a erudição é uma soma nem direi cultura pois a cultura é uma síntese e a compreensão é uma vida Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes ou no mesmo tempo o entendimento de símbolos diferentes A quinta é a menos definível Direi talvez falando a uns que é a graça falando a outros que é a mão do Superior Incógnito falando a terceiros que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda entendendo cada uma destas coisas que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam falando ou escrevendo PRIMEIRA PARTE BRASÃO Bellum sine bello I OS CAMPOS PRIMEIRO O DOS CASTELOS A Europa jaz posta nos cotovelos De Oriente a Ocidente jaz fitando E toldamlhe românticos cabelos Olhos gregos lembrando O cotovelo esquerdo é recuado O direito é em ângulo disposto Aquele diz Itália onde é pousado Este diz Inglaterra onde afastado A mão sustenta em que se apoia o rosto Fita com olhar sphyngico e fatal O Ocidente futuro do passado O rosto com que fita é Portugal SEGUNDO O DAS QUINAS Os Deuses vendem quando dão Comprase a glória com desgraça Ai dos felizes porque são Só o que passa Baste a quem baste o que Ihe basta O bastante de Ihe bastar A vida é breve a alma é vasta Ter é tardar Foi com desgraça e com vileza Que Deus ao Cristo definiu Assim o opôs à Natureza E Filho o ungiu II OS CASTELOS PRIMEIRO ULISSES O mytho é o nada que é tudo O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo O corpo morto de Deus Vivo e desnudo Este que aqui aportou Foi por não ser existindo Sem existir nos bastou Por não ter vindo foi vindo E nos criou Assim a lenda se escorre A entrar na realidade E a fecundála decorre Em baixo a vida metade De nada morre SEGUNDO VIRIATO Se a alma que sente e faz conhece Só porque lembra o que esqueceu Vivemos raça porque houvesse Memória em nós do instinto teu Nação porque reencarnaste Povo porque ressuscitou Ou tu ou o de que eras a haste Assim se Portugal formou Teu ser é como aquela fria Luz que precede a madrugada E é ja o ir a haver o dia Na antemanhã confuso nada TERCEIRO O CONDE D HENRIOUE Todo começo é involuntáario Deus é o agente O herói a si assiste vário E inconsciente À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce Que farei eu com esta espada Erguestea e fezse QUARTO D TAREJA As naçôes todas são mystérios Cada uma é todo o mundo a sós Ó mãe de reis e avó de impérios Vela por nós Teu seio augusto amamentou Com bruta e natural certeza O que imprevisto Deus fadou Por ele reza Dê tua prece outro destino A quem fadou o instinto teu O homem que foi o teu menino Envelheceu Mas todo vivo é eterno infante Onde estás e não há o dia No antigo seio vigilante De novo o cria QUINTO D AFONSO HENRIQUES Pai foste cavaleiro Hoje a vigília é nossa Dános o exemplo inteiro E a tua inteira força Dá contra a hora em que errada Novos infiéis vençam A bênção como espada A espada como benção SEXTO D DINIS Na noite escreve um seu Cantar de Amigo O plantador de naus a haver E ouve um silêncio múrmuro consigo É o rumor dos pinhais que como um trigo De Império ondulam sem se poder ver Arroio esse cantar jovem e puro Busca o oceano por achar E a fala dos pinhais marulho obscuro É o som presente desse mar futuro É a voz da terra ansiando pelo mar SÉTIMO I D JOÃO O PRIMEIRO O homem e a hora são um só Quando Deus faz e a história é feita O mais é carne cujo pó A terra espreita Mestre sem o saber do Templo Que Portugal foi feito ser Que houveste a glória e deste o exemplo De o defender Teu nome eleito em sua fama É na ara da nossa alma interna A que repele eterna chama A sombra eterna SÉTIMO II D FILIPA DE LENCASTRE Que enigma havia em teu seio Que só gênios concebia Que arcanjo teus sonhos veio Velar maternos um dia Volve a nós teu rosto sério Princesa do Santo Graal Humano ventre do Império Madrinha de Portugal III AS QUINAS PRIMEIRA D DUARTE REI DE PORTUGAL Meu dever fezme como Deus ao mundo A regra de ser Rei almou meu ser Em dia e letra escrupuloso e fundo Firme em minha tristeza tal vivi Cumpri contra o Destino o meu dever Inutilmente Não porque o cumpri SEGUNDA D FERNANDO INFANTE DE PORTUGAL Deume Deus o seu gládio porque eu faça A sua santa guerra Sagroume seu em honra e em desgraça Às horas em que um frio vento passa Por sobre a fria terra Pôsme as mãos sobre os ombros e doiroume A fronte com o olhar E esta febre de Além que me consome E este querer grandeza são seu nome Dentro em mim a vibrar E eu vou e a luz do gládio erguido dá Em minha face calma Cheio de Deus não temo o que virá Pois venha o que vier nunca será Maior do que a minha alma TERCEIRA D PEDRO REGENTE DE PORTUGAL Claro em pensar e claro no sentir É claro no querer Indiferente ao que há em conseguir Que seja só obter Dúplice dono sem me dividir De dever e de ser Não me podia a Sorte dar guarida Por não ser eu dos seus Assim vivi assim morri a vida Calmo sob mudos céus Fiel à palavra dada e à idéia tida Tudo o mais é com Deus QUARTA D JOÃO INFANTE DE PORTUGAL Não fui alguém Minha alma estava estreita Entre tão grandes almas minhas pares Inutilmente eleita Virgemmente parada Porque é do português pai de amplos mares Querer poder só isto O inteiro mar ou a orla vã desfeita O todo ou o seu nada QUINTA D SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL Louco sim louco porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá Não coube em mim minha certeza Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve não o que há Minha loucura outros que me a tomem Com o que nela ia Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia Cadáver adiado que procria IV A COROA NUNÁLVARES PEREIRA Que auréola te cerca É a espada que volteando Faz que o ar alto perca Seu azul negro e brando Mas que espada é que erguida Faz esse halo no céu É Excalibur a ungida Que o Rei Artur te deu Sperança consumada S Portugal em ser Ergue a luz da tua espada Para a estrada se ver V O TIMBRE A CABEÇA DO GRIFO O INFANTE D HENRIOUE Em seu trono entre o brilho das esferas Com seu manto de noite e solidão Tem aos pés o mar novo e as mortas eras O único imperador que tem deveras O globo mundo em sua mão UMA ASA DO GRIFO D JOÃO O SEGUNDO Braços cruzados fita além do mar Parece em promontório uma alta serra O limite da terra a dominar O mar que possa haver além da terra Seu formidavel vulto solitário Enche de estar presente o mar e o céu E parece temer o mundo vário Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu A OUTRA ASA DO GRIFO AFONSO DE ALBUQUEROUE De pé sobre os países conquistados Desce os olhos cansados De ver o mundo e a injustiça e a sorte Não pensa em vida ou morte Tão poderoso que não quer o quanto Pode que o querer tanto Calcara mais do que o submisso mundo Sob o seu passo fundo Três impérios do chão lhe a Sorte apanha Criouos como quem desdenha SEGUNDA PARTE MAR PORTUGUEZ Possessio maris I O INFANTE Deus quer o homem sonha a obra nasce Deus quis que a terra fosse toda uma Que o mar unisse já não separasse Sagroute e foste desvendando a espuma E a orla branca foi de ilha em continente Clareou correndo até ao fim do mundo E viuse a terra inteira de repente Surgir redonda do azul profundo Quem te sagrou crioute portuguez Do mar e nós em ti nos deu sinal Cumpriuse o Mar e o Império se desfez Senhor falta cumprirse Portugal II HORIZONTE O mar anterior a nós teus medos Tinham coral e praias e arvoredos Desvendadas a noite e a cerração As tormentas passadas e o mistério Abria em flor o Longe e o Sul sidério Splendia sobre as naus da iniciação Linha severa da longínqua costa Quando a nau se aproxima erguese a encosta Em árvores onde o Longe nada tinha Mais perto abrese a terra em sons e cores E no desembarcar há aves flores Onde era só de longe a abstrata linha O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa e com sensíveis Movimentos da esprança e da vontade Buscar na linha fria do horizonte A árvore a praia a flor a ave a fonte Os beijos merecidos da Verdade III PADRÃO O esforço é grande e o homem é pequeno Eu Diogo Cão navegador deixei Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei A alma é divina e a obra é imperfeita Este padrão sinala ao vento e aos céus Que da obra ousada é minha a parte feita O porfazer é só com Deus E ao imenso e possível oceano Ensinam estas Quinas que aqui vês Que o mar com fim será grego ou romano O mar sem fim é português E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma E faz a febre em mim de navegar Só encontrará de Deus na eterna calma O porto sempre por achar IV O MOSTRENGO mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueuse a voar A roda da nau voou três vezes Voou três vezes a chiar E disse Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo Meus tetos negros do fim do mundo E o homem do leme disse tremendo ElRei D João Segundo De quem são as velas onde me roço De quem as quilhas que vejo e ouço Disse o mostrengo e rodou três vezes Três vezes rodou imundo e grosso Quem vem poder o que só eu posso Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo E o homem do leme tremeu e disse ElRei D João Segundo Três vezes do leme as mãos ergueu Três vezes ao leme as reprendeu E disse no fim de tremer três vezes Aqui ao leme sou mais do que eu Sou um povo que quer o mar que é teu E mais que o mostrengo que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo Manda a vontade que me ata ao leme De ElRei D João Segundo V EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS Jaz aqui na pequena praia extrema O Capitão do Fim Dobrado o Assombro O mar é o mesmo já ninguém o tema Atlas mostra alto o mundo no seu ombro Vl OS COLOMBOS Outros haverão de ter O que houvermos de perder Outros poderão achar O que no nosso encontrar Foi achado ou não achado Segundo o destino dado Mas o que a eles não toca É a Magia que evoca O Longe e faz dele história E por isso a sua glória É justa auréola dada Por uma luz emprestada VII OCIDENTE Com duas mãos o Ato e o Destino DesvendAmos No mesmo gesto ao céu Uma ergue o fecho trêmulo e divino E a outra afasta o véu Fosse a hora que haver ou a que havia A mão que ao Ocidente o véu rasgou Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia Da mão que desvendou Fosse Acaso ou Vontade ou Temporal A mão que ergueu o facho que luziu Foi Deus a alma e o corpo Portugal Da mão que o conduziu VIII FERNÃO DE MAGALHÃES No vale clareia uma fogueira Uma dança sacode a terra inteira E sombras desformes e descompostas Em clarões negros do vale vão Subitamente pelas encostas Indo perderse na escuridão De quem é a dança que a noite aterra São os Titãs os filhos da Terra Que dançam na morte do marinheiro Que quis cingir o materno vulto Cingiuo dos homens o primeiro Na praia ao longe por fim sepulto Dançam nem sabem que a alma ousada Do morto ainda comanda a armada Pulso sem corpo ao leme a guiar As naus no resto do fim do espaço Que até ausente soube cercar A terra inteira com seu abraço Violou a Terra Mas eles não O sabem e dançam na solidão E sombras disformes e descompostas Indo perderse nos horizontes Galgam do vale pelas encostas Dos mudos montes IX ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra Suspendem de repente o ódio da sua guerra E pasmam Pelo vale onde se ascende aos céus Surge um silêncio e vai da névoa ondeando os véus Primeiro um movimento e depois um assombro Ladeiamno ao durar os medos ombro a ombro E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões Em baixo onde a terra é o pastor gela e a flauta Cailhe e em êxtase vê à luz de mil trovôes O céu abrir o abismo à alma do Argonauta X MAR PORTUGUÊS Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal Por te cruzarmos quantas mães choraram Quantos filhos em vão rezaram Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso ó mar Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu XI A ÚLTIMA NAU Levando a bordo ElRei D Sebastião E erguendo como um nome alto o pendão Do Império Foise a última nau ao sol azíago Erma e entre choros de ânsia e de presago Mistério Não voltou mais A que ilha indescoberta Aportou Voltará da sorte incerta Que teve Deus guarda o corpo e a forma do futuro Mas Sua luz projectao sonho escuro E breve Ah quanto mais ao povo a alma falta Mais a minha alma atlântica se exalta E entorna E em mim num mar que não tem tempo ou spaço Vejo entre a cerração teu vulto baço Que torna Não sei a hora mas sei que há a hora Demorea Deus chamelhe a alma embora Mistério Surges ao sol em mim e a névoa finda A mesma e trazes o pendão ainda Do Império XII PRECE Senhor a noite veio e a alma é vil Tanta foi a tormenta e a vontade Restamnos hoje no silêncio hostil O mar universal e a saudade Mas a chama que a vida em nós criou Se ainda há vida ainda não é finda O frio morto em cinzas a ocultou A mão do vento pode erguêla ainda Dá o sopro a aragem ou desgraça ou ânsia Com que a chama do esforço se remoça E outra vez conquistaremos a Distância Do mar ou outra mas que seja nossa TERCEIRA PARTE O ENCOBERTO Pax in excelsis I OS SÍMBOLOS PRIMEIRO D SEBASTIÃO Sperai Cai no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei É O que eu me sonhei que eterno dura É Esse que regressarei SEGUNDO O QUINTO IMPÉRIO Triste de quem vive em casa Contente com o seu lar Sem que um sonho no erguer de asa Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar Triste de quem é feliz Vive porque a vida dura Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem Ser descontente é ser homem Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem E assim passados os quatro Tempos do ser que sonhou A terra será teatro Do dia claro que no atro Da erma noite começou Grécia Roma Cristandade Europa os quatro se vão Para onde vai toda idade Quem vem viver a verdade Que morreu D Sebastião TERCEIRO O DESEJADO Onde quer que entre sombras e dizeres Jazas remoto sentete sonhado E erguete do fundo de nãoseres Para teu novo fado Vem Galaaz com pátria erguer de novo Mas já no auge da suprema prova A alma penitente do teu povo À Eucaristia Nova Mestre da Paz ergue teu gládio ungido Excalibur do Fim em jeito tal Que sua Luz ao mundo dividido Revele o Santo Graal QUARTO AS ILHAS AFORTUNADAS Que voz vem no som das ondas Que não é a voz do mar E a voz de alguém que nos fala Mas que se escutarmos cala Por ter havido escutar E só se meio dormindo Sem saber de ouvir ouvimos Que ela nos diz a esperança A que como uma criança Dormente a dormir sorrimos São ilhas afortunadas São terras sem ter lugar Onde o Rei mora esperando Mas se vamos despertando Cala a voz e há só o mar QUINTO O ENCOBERTO Que símbolo fecundo Vem na aurora ansiosa Na Cruz Morta do Mundo A Vida que é a Rosa Que símbolo divino Traz o dia já visto Na Cruz que é o Destino A Rosa que é o Cristo Que símbolo final Mostra o sol já desperto Na Cruz morta e fatal A Rosa do Encoberto II OS AVISOS PRIMEIRO O BANDARRA Sonhava anônimo e disperso O Império por Deus mesmo visto Confuso como o Universo E plebeu como Jesus Cristo Não foi nem santo nem herói Mas Deus sagrou com Seu sinal Este cujo coração foi Não português mas Portugal SEGUNDO ANTÓNIO VIEIRA O céu strela o azul e tem grandeza Este que teve a fama e à glória tem Imperador da língua portuguesa Foinos um céu também No imenso espaço seu de meditar Constelado de forma e de visão Surge prenúncio claro do luar ElRei D Sebastião Mas não não é luar é luz do etéreo É um dia e no céu amplo de desejo A madrugada irreal do Quinto Império Doira as margens do Tejo TERCEIRO Screvo meu livro à beiramágoa Meu coração não tem que ter Tenho meus olhos quentes de água Só tu Senhor me dás viver Só te sentir e te pensar Meus dias vácuos enche e doura Mas quando quererás voltar Quando é o Rei Quando é a Hora Quando virás a ser o Cristo De a quem morreu o falso Deus E a despertar do mal que existo A Nova Terra e os Novos Céus Quando virás ó Encoberto Sonho das eras português Tornarme mais que o sopro incerto De um grande anseio que Deus fez Ah quando quererás voltando Fazer minha esperança amor Da névoa e da saudade quando Quando meu Sonho e meu Senhor III OS TEMPOS PRIMEIRO NOITE A nau de um deles tinhase perdido No mar indefinido O segundo pediu licença ao Rei De na fé e na lei Da descoberta ir em procura Do irmão no mar sem fim e a névoa escura Tempo foi Nem primeiro nem segundo Volveu do fim profundo Do mar ignoto à pátria por quem dera O enigma que fizera Então o terceiro a ElRei rogou Licença de os buscar e ElRei negou Como a um cativo o ouvem a passar Os servos do solar E quando o vêem vêem a figura Da febre e da amargura Com fixos olhos rasos de ânsia Fitando a proibida azul distância Senhor os dois irmãos do nosso Nome O Poder e o Renome Ambos se foram pelo mar da idade À tua eternidade E com eles de nós se foi O que faz a alma poder ser de herói Queremos ir buscálos desta vil Nossa prisão servil É a busca de quem somos na distância De nós e em febre de ânsia A Deus as mãos alçamos Mas Deus não dá licença que partamos SEGUNDO TORMENTA Que jaz no abismo sob o mar que se ergue Nós Portugal o poder ser Que inquietação do fundo nos soergue O desejar poder querer Isto e o mistério de que a noite é o fausto Mas súbito onde o vento ruge O relâmpago farol de Deus um hausto Brilha e o mar scuro struge TERCEIRO CALMA Que costa é que as ondas contam E se não pode encontrar Por mais naus que haja no mar O que é que as ondas encontram E nunca se vê surgindo Este som de o mar praiar Onde é que está existindo lha próxima e remota Que nos ouvidos persiste Para a vista não existe Que nau que armada que frota Pode encontrar o caminho A praia onde o mar insiste Se à vista o mar é sozinho Haverá rasgões no espaço Que dêem para outro lado E que um deles encontrado Aqui onde há só sargaço Surja uma ilha velada O país afortunado Que guarda o Rei desterrado Em sua vida encantada QUARTO ANTEMANHÃ O mostrengo que está no fim do mar Veio das trevas a procurar A madrugada do novo dia Do novo dia sem acabar E disse Quem é que dorme a lembrar Que desvendou o Segundo Mundo Nem o Terceiro quere desvendar E o som na treva de ele rodar Faz mau o sono triste o sonhar Rodou e foise o mostrengo servo Que seu senhor veio aqui buscar Que veio aqui seu senhor chamar Chamar Aquele que está dormindo E foi outrora Senhor do Mar QUINTO NEVOEIRO Nem rei nem lei nem paz nem guerra Define com perfil e ser Este fulgor baço da terra Que é Portugal a entristecer Brilho sem luz e sem arder Como o que o fogofátuo encerra Ninguém sabe que coisa quer Ninguém conhece que alma tem Nem o que é mal nem o que é bem Que ânsia distante perto chora Tudo é incerto e derradeiro Tudo é disperso nada é inteiro Ó Portugal hoje és nevoeiro É a Hora Valete Frates Antologia Seleção de excertos ref alguns heterônimos de Fernando Pessoa 1 Poema de Álvaro de Campos 5 OPIÁRIO Ao senhor Mário de SáCarneiro É antes do ópio que a minhalma é doente Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente Esta vida de bordo háde matarme São dias só de febre na cabeça E por mais que procure até que adoeça Já não encontro a mola pra adaptarme Em paradoxo e incompetência astral Eu vivo a vincos douro a minha vida Onda onde o pundonor é uma descida E os próprios gozos gânglios do meu mal É por um mecanismo de desastres Uma engrenagem com volantes falsos Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar sem hastes Vou cambaleando através do lavor Duma vidainterior de renda e laca Tenho a impressão de ter em casa a faca Com que foi degolado o Precursor Ando expiando um crime numa mala Que um avô meu cometeu por requinte Tenho os nervos na forca vinte a vinte E caí no ópio como numa vala Ao toque adormecido da morfina Percome em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Erguese a lua como a minha Sina Eu que fui sempre um mau estudante agora Não faço mais que ver o navio ir 1 Os excertos ref sempre as edições brasileiras da Companhia das Letras Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida ânfora na aurora Perdi os dias que já aproveitara Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara E fui criança como toda a gente Nasci numa província portuguesa E tenho conhecido gente inglesa Que diz que eu sei inglês perfeitamente Gostava de ter poemas e novelas Publicados por Plon e no Mercure Mas é impossível que esta vida dure Se nesta viagem nem houve procelas A vida a bordo é uma coisa triste Embora a gente se divirta às vezes Falo com alemães suecos e ingleses E a minha mágoa de viver persiste Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China A terra é semelhante e pequenina E há só uma maneira de viver Por isso eu tomo ópio É um remédio Sou um convalescente do Momento Moro no résdochão do pensamento E ver passar a Vida fazme tédio Fumo Canso Ah uma terra aonde enfim Muito a leste não fosse o oeste já Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim Sou desgraçado por meu morgadio Os ciganos roubaram minha Sorte Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte Um lugar que me abrigue do meu frio Eu fingi que estudei engenharia Vivi na Escócia Visitei a Irlanda Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmola às portas da Alegria Não chegues a PortSaid navio de ferro Volta à direita nem eu sei para onde Passo os dias no smokingroom com o conde Um escroc francês conde de fim de enterro Volto à Europa descontente e em sortes De vir a ser um poeta sonambólico Eu sou monárquico mas não católico E gostava de ser as coisas fortes Gostava de ter crenças e dinheiro Ser vária gente insípida que vi Hoje afinal não sou senão aqui Num navio qualquer um passageiro Não tenho personalidade alguma É mais notado que eu esse criado De bordo que tem um belo modo alçado De laird escocês há dias em jejum Não posso estar em parte alguma A minha Pátria é onde não estou Sou doente e fraco O comissário de bordo é velhaco Viume coa sueca e o resto ele adivinha Um dia faço escândalo cá a bordo Só para dar que falar de mim aos mais Não posso com a vida e acho fatais As iras com que às vezes me debordo Levo o dia a fumar a beber coisas Drogas americanas que entontecem E eu já tão bêbado sem nada Dessem Melhor cérebro aos meus nervos como rosas Escrevo estas linhas Parece impossível Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta O facto é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível Os ingleses são feitos pra existir Não há gente como esta pra estar feita Com a Tranquilidade A gente deita Um vintém e sai um deles a sorrir Pertenço a um género de portugueses Que depois de estar a Índia descoberta Ficaram sem trabalho A morte é certa Tenho pensado nisto muitas vezes Leve o diabo a vida e a gente têla Nem leio o livro à minha cabeceira Enojame o Oriente É um esteira Que a gente enrola e deixa de ser bela Caio no ópio por força Lá querer Que eu leve a limpo uma vida destas Não se pode exigir Almas honestas Com horas pra dormir e pra comer Que um raio as parta E isto afinal é inveja Porque estes nervos são a minha morte Não haver um navio que me transporte Para onde eu nada queira que o não veja Ora Eu cansavame do mesmo modo Quria outro ópio mais forte pra ir de ali Para sonhos que dessem cabo de mim E pregassem comigo nalgum lodo Febre Se isto que tenho não é febre Não sei como é que se tem febre e sente O facto essencial é que estou doente Está corrida amigos esta lebre Veio a noite Tocou já a primeira Corneta pra vestir para o jantar Vida social por cima Isso E marchar Até que a gente saia pla coleira Porque isto acaba mal e háde haver Olá sangue e um revólver lá prò fim Deste desassossego que há em mim E não há forma de se resolver E quem me olhar háde me achar banal A mim e à minha vida Ora um rapaz O meu próprio monóculo me faz Pertencer a um tipo universal Ah quanta alma haverá que ande metida Assim como eu na Linha e como eu mística Quantos sob a casaca característica Não terão como eu o horror à vida Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro Vou no Maelstrom cada vez mais prò centro Não fazer nada é a minha perdição Um inútil Mas é tão justo sêlo Pudesse a gente desprezar os outros E ainda que coos cotovelos rotos Ser herói doido amaldiçoado ou belo Tenho vontade de levar as mãos À boca e morder nelas fundo e a mal Era uma ocupação original E distraía os outros os tais sãos O absurdo como uma flor da tal Índia Que não vim encontrar na Índia nasce No meu cérebro farto de cansarse A minha vida mudea Deus ou findea Deixeme estar aqui nesta cadeira Até virem meterme no caixão Nasci pra mandarim de condição Mas faltamme o sossego o chá e a esteira Ah que bom que era ir daqui de caída Prà cova por um alçapão de estouro A vida sabeme a tabaco louro Nunca fiz mais do que fumar a vida E afinal o que quero é fé é calma E não ter essas sensações confusas Deus que acabe com isto Abra as eclusas E basta de comédias na minhalma 1914 Março No canal de Suez a bordo Poema de Ricardo Reis 1 Mestre são plácidas Todas as horas Que nós perdemos Se no perdêlas Qual numa jarra Nós pomos flores Não há tristezas Nem alegrias Na nossa vida Assim saibamos Sábios incautos Não a viver Mas decorrêla Tranquilos plácidos Tendo as crianças Por nossas mestras E os olhos cheios De Natureza À beirario À beiraestrada Conforme calha Sempre no mesmo Leve descanso De estar vivendo O Tempo passa Não nos diz nada Envelhecemos Saibamos quasi Maliciosos Sentirnos ir Não vale a pena Fazer um gesto Não se resiste Ao deus atroz Que os próprios filhos Devora sempre Colhamos flores Molhemos leves As nossas mãos Nos rios calmos Para aprendermos Calma também Girassóis sempre Fitando o sol Da vida iremos Tranquilos tendo Nem o remorso De ter vivido 1261914 Poema de Alberto Caieiro O GUARDADOR DE REBANHOS I Eu nunca guardei rebanhos Mas é como se os guardasse Minha alma é como um pastor Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentarse a meu lado Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada Os meus pensamentos são contentes Só tenho pena de saber que eles são contentes Porque se o não soubesse Em vez de serem contentes e tristes Seriam alegres e contentes Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho E se desejo às vezes Por imaginar ser cordeirinho Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora Quando me sento a escrever versos Ou passeando pelos caminhos ou pelos atalhos Escrevo versos num papel que está no meu pensamento Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende Saúdo todos os que me lerem Tirandolhes o chapéu largo Quando me vêem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro Saúdoos e desejolhes sol E chuva quando a chuva é precisa E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predilecta Onde se sentem lendo os meus versos E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural Por exemplo a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque cansados de brincar E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado Excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa 1 Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido sem saber porquê E então porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus Pertenço porém àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem nem veem só a multidão de que são senão também os grandes espaços que há ao lado Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles nem aceitei nunca a Humanidade Considerei que Deus sendo improvável poderia ser podendo pois dever ser adorado mas que a Humanidade sendo uma mera ideia biológica e não significando mais que a espécie animal humana não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal Este culto da Humanidade com seus ritos de Liberdade e Igualdade pareceu me sempre uma revivescência dos cultos antigos em que animais eram como deuses ou os deuses tinham cabeças de animais Assim não sabendo crer em Deus e não podendo crer numa soma de animais fiquei como outros da orla das gentes naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência A Decadência é a perda total da inconsciência porque a inconsciência é o fundamento da vida O coração se pudesse pensar pararia A quem como eu assim vivendo não sabe ter vida que resta senão como a meus poucos pares a renúncia por modo e a contemplação por destino Não sabendo o que é a vida religiosa nem podendo sabê lo porque se não tem fé com a razão não podendo ter fé na abstração do homem nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós ficava nos como motivo de ter alma a contemplação estética da vida E assim alheios à solenidade de todos os mundos indiferentes ao divino e desprezadores do humano entregamo nos futilmente à sensação sem propósito cultivada num epicurismo subtilizado como convém aos nossos nervos cerebrais 48 Retendo da ciência somente aquele seu preceito central de que tudo é sujeito a leis fatais contra as quais se não reage independentemente porque reagir é elas terem feito que reagíssemos e verificando como esse preceito se ajusta ao outro mais antigo da divina fatalidade das coisas abdicamos do esforço como os débeis do entretimento dos atletas e curvamo nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida Não tomando nada a sério nem considerando que nos fosse dada por certa outra realidade que não as nossas sensações nelas nos abrigamos e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos E se nos empregamos assiduamente não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados é que a prosa ou o verso que escrevemos destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade é apenas como o falar alto de quem lê feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos Mas imperfeito é tudo nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar nos um sono mais calmo ainda E assim contempladores iguais das montanhas e das estátuas gozando os dias como os livros sonhando tudo sobretudo para o converter na nossa íntima substância faremos também descrições e análises que uma vez feitas passarão a ser coisas alheias que podemos gozar como se viessem na tarde Não é este o conceito dos pessimistas como aquele de Vigny1 para quem a vida é uma cadeia onde ele tecia palha para se distrair Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico e essa atitude é um exagero e um incómodo Não temos é certo um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos Produzimo la é certo para nos distrair porém não como o preso que tece a palha para se distrair do Destino senão da menina que borda almofadas para se distrair sem mais nada Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo Não sei onde ela me levará porque não sei nada Poderia considerar esta estalagem uma prisão porque estou compelido a aguardar nela poderia considerá la um lugar de sociáveis porque aqui me encontro com outros Não sou porém nem impaciente nem comum Deixo 49 ao que são os que se fecham no quarto deitados moles na cama onde esperam sem sono deixo ao que fazem os que conversam nas salas de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim Sento me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem e canto lento para mim só vagos cantos que componho enquanto espero Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá la e não interrogo mais nem procuro Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder relido um dia por outros entretê los também na passagem será bem Se não o lerem nem se entretiverem será bem também 1999 p479 Proposta 2 A8 Discuta as técnicas das Vanguardas europeias e o contexto do Modernismo em Portugal analisando ao menos dois aspectos da obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos em prosa oue verso A8 Modernismo em Portugal o caso Fernando Pessoa Curso Letras Língua Portuguesa Docente Andrea Muraro LLP320232 Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena httpsindependentacademiaeduPe ssoaPlural Cartas com Mario de Sá Carneiro PERRONEMOSÉS Leyla Fernando Pessoa aquém do eu além do outro 3 ed São Paulo Martins Fontes 2001 MOISÉS Carlos Filipe O poema e as máscaras microestrutura e macroestrutura na poesia de Fernando Pessoa Coimbra Almedina 1981 Bibliografia 691 P567p CP Modernismo no Brasil e em Portugal Fragmentação resgate de ideias das vanguardas europeias Síntese Busca pela linguagem oralidades coloquialidade Nacionalismo Ironia humor e paródia Relato do cotidiano Revisão crítica do passado histórico e cultural Subjetivismo Versos livres Metalinguagem Vertentes em Portugal Orfismo Presencismo Neorrealismo Excerto de Dispersão de Mario de Sá Carneiro Perdime dentro de mim Porque eu era labirinto E Hoje quando me sinto E com saudade de mim Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar Na ânsia de ultrapassar nem dei pela minha vida Excerto de Frisos de Almada Negreiros Notícias da guerra choros lá dentro e crepes no brasão Ardem círios serpentinas Há mãos postas entre as flores E a torre morena canta molenga doze vezes a mesma dor JOSÉ DE ALMADANEGREIROS K4 ACABA DE APARECER o quadrado AZUL POESIA TERMINUS DIZSE AQUI O SEGREDO DO GENIO INTRANSMISSÍVEL LISBOA 1917 EUROPA MODELO 1920 EDITORES Almada e André José ALMADA Cardoso Passagem d O Marinheiro de Fernando Pessoa X MAR PORTUGUÊS da obra Mensagem 1934 de Fernando Pessoa Ó mar salgado quanto do teu sal São lágrimas de Portugal Por te cruzarmos quantas mães choraram Quantos filhos em vão rezaram Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso ó mar Valeu a pena Tudo vale a pena Se a alma não é pequena Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor Deus ao mar o perigo e o abismo deu Mas nele é que espelhou o céu heteronímia heterônimo ia substantivo feminino 1 Literatura Criação ou uso de nomes e personagens por um autor para assinar obras suas com estilos literários diferentes 2 Literatura Conjunto dos heterônimos de um escritor 3 Linguística Relação entre palavras que formam uma estrutura semântica mas que têm raízes diferentes ex há heteronímia no gênero de substantivos como vaca feminino e boi masculino ou no número de pronomes como eu singular e nós plural 4 Linguística Estudo sobre heterônimos Fernando Pessoa e os heterônimos Excerto de ODE TRIUNFAL de Álvaro de Campos À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo Escrevo rangendo os dentes fera para a beleza disto Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos Ó rodas ó engrenagens rrrrrrr eterno Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria Em fúria fora e dentro de mim Por todos os meus nervos dissecados fora Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto Tenho os lábios secos ó grandes ruídos modernos De vos ouvir demasiadamente de perto E ardeme a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações Com um excesso contemporâneo de vós ó máquinas II Excerto de O guardador de rebanhos de Alberto Caieiro O meu olhar é nítido como um girassol Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda E de vez em quando olhando para trás E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto E eu sei dar por isso muito bem Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se ao nascer Reparasse que nascera deveras Sintome nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo Creio no Mundo como num malmequer Porque o vejo Mas não penso nele Porque pensar é não compreender O Mundo não se fez para pensarmos nele Pensar é estar doente dos olhos Cada um é um mundo e como em cada fonte Cada um é um mundo e como em cada fonte Uma deidade vela em cada homem Porque não há de haver Um deus só de ele homem Na encoberta sucessão das cousas Só o sábio sente que não foi mais nada Que a vida que deixou sd Poemas de Ricardo Reis Fernando Pessoa Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda 1994 184 httpswwwyoutubecomwatchvmYAKpDliA6o teaser do filme baseado na obra de Saramago O narrador principal mas não exclusivo das centenas de fragmentos que compõem este livro é o semiheterônimo Bernardo Soares Livro do desassossego Ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa ele escreve sem encadeamento narrativo claro sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida Ainda assim foi nesta obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo a elucidação de estados psíquicos a descrição das coisas através dos efeitos que elas exercem sobre a mente reflexões e devaneios sobre a paixão a moral o conhecimento Dono do mundo em mim como de terras que não posso trazer comigo escreve o narrador Seu tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso Do press release da Companhia das letras edição de 1999 O contexto do conto Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa httpsmodernismoptindexphpb473obanqueiroanarquista Pedrinho de Pessoa EDGAR ALLAN POE O CORVO httpswwwcasafernandopessoaptptcfppoesiaestendida2024 httpswwwyoutubecomwatchva1IBpsuCI14 httpswwwyoutubecomwatchvvGqnZL0FOc Obra de Fernando Pessoa Expedições livres para amantes e estudiosos httparquivopessoanet O ensaio A carroça o bonde e o poeta modernista está na edição de Que horas são Há 12 exemplares no CP As técnicas das Vanguardas europeias e contexto do Modernismo em Portugal As Vanguardas Europeias foram movimentos artísticos que surgiram no início do século XX e buscavam romper com as tradições estéticas vigentes promovendo a experimentação e a inovação nas diversas formas de expressão artística No contexto do Modernismo em Portugal o movimento teve início na década de 1910 e se estendeu até meados do século XX O Modernismo em Portugal foi marcado pela busca por uma identidade cultural própria influenciada pelas vanguardas europeias e pela valorização da individualidade e da subjetividade Os escritores modernistas portugueses buscavam romper com as tradições literárias e experimentar novas formas de expressão Fernando Pessoa é um dos principais expoentes do Modernismo em Portugal sendo conhecido não apenas por sua própria obra mas também pela criação de diversos heterônimos cada um com características e estilos literários distintos Dois aspectos importantes de sua obra são a heteronímia e a reflexão sobre a identidade e a subjetividade A heteronímia consiste na criação de diferentes personalidades literárias cada uma com seu próprio estilo e visão de mundo Os principais heterônimos de Pessoa são Alberto Caeiro Álvaro de Campos Ricardo Reis e Bernardo Soares Cada um desses heterônimos representa uma faceta distinta da personalidade de Pessoa e produz uma obra singular com características próprias Além da heteronímia a obra de Fernando Pessoa também se destaca pela profunda reflexão sobre a identidade e a subjetividade Em seus poemas e textos em prosa Pessoa aborda questões relacionadas à multiplicidade do eu à busca pela essência do ser e à complexidade da experiência humana Sua obra reflete a inquietação e a angústia do homem moderno diante de um mundo em transformação A obra Mensagem assinada por Fernando Pessoa é um exemplo marcante do impacto das Vanguardas Europeias no contexto do Modernismo em Portugal Nesse livro Pessoa explora a temática nacionalista e mítica utilizando uma linguagem simbólica e alegórica para abordar a história e a identidade de Portugal A obra reflete a influência do simbolismo e do surrealismo características das vanguardas na maneira como Pessoa constrói sua poesia Por meio do heterônimo Álvaro de Campos Pessoa também incorpora elementos das vanguardas em seus poemas Em Opiário por exemplo Campos expressa uma sensibilidade modernista ao abordar temas como a melancolia a busca por sentido na existência e a experiência da vida urbana A linguagem fragmentada e a exploração de estados emocionais intensos são características que refletem a influência das vanguardas europeias na obra de Pessoa Outro heterônimo relevante é Ricardo Reis que se destaca pela influência do neoclassicismo em sua poesia Em seus versos Reis adota uma linguagem mais contida e formal refletindo a busca por equilíbrio e serenidade característica desse movimento artístico Através de Ricardo Reis Pessoa dialoga com as tradições clássicas enquanto incorpora elementos modernistas em sua abordagem poética Já Alberto Caeiro representa uma ruptura com as convenções estilísticas propondo uma visão mais naturalista e sensorial da realidade Em O Guardador de Rebanhos Caeiro manifesta uma conexão profunda com a natureza e uma abordagem despojada da linguagem poética o que o coloca em diálogo com as vanguardas que buscavam romper com as formas tradicionais de expressão A obra O Banqueiro Anarquista é um exemplo da abordagem literária de Pessoa em relação às questões sociais e políticas No texto o protagonista do diálogo revela sua identidade como anarquista e discute a relação entre suas teorias sociais e sua prática de vida como banqueiro e comerciante Ele argumenta que suas teorias anarquistas estão alinhadas com sua prática de vida afirmando que a conformidade entre teoria e prática é absoluta Além disso ele questiona as convenções sociais que criam desigualdades e injustiças expressando sua revolta contra essas condições Através do diálogo Fernando Pessoa aborda questões fundamentais do anarquismo como a luta contra as convenções sociais que perpetuam desigualdades e a busca por liberdade individual e coletiva A obra reflete as preocupações sociais e políticas do período modernista em Portugal bem como a complexidade das reflexões de Pessoa sobre essas questões As Vanguardas Europeias foram movimentos artísticos e literários que surgiram no início do século XX caracterizados pela ruptura com as tradições estéticas e pela busca por novas formas de expressão Dentre as principais técnicas utilizadas por esses movimentos destacamse o uso da fragmentação da simultaneidade do nonsense do automatismo da colagem da experimentação linguística entre outras As vanguardas buscavam romper com a lógica tradicional explorando o inconsciente as emoções e a subjetividade Em suas obras Pessoa explorou diversas técnicas vanguardistas como a fragmentação a pluralidade de vozes a experimentação linguística e a busca por uma nova forma de expressão poética No excerto do Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares ajudante de guardalivros na cidade de Lisboa podemos observar a influência das Vanguardas na prosa de Pessoa O texto revela uma visão existencialista e melancólica característica do Modernismo e apresenta uma reflexão profunda sobre a condição humana e a busca por sentido na vida A linguagem é densa e introspectiva demonstrando a influência das técnicas vanguardistas na construção da narrativa Os poemas As Quinas apresentam aspectos importantes da obra de Fernando Pessoa Os poemas refletem a preocupação do autor com a identidade nacional e a história de Portugal temas recorrentes no Modernismo português Através dos versos Pessoa explora a dualidade entre o dever e a tristeza entre a honra e a desgraça revelando uma profunda reflexão sobre o papel do indivíduo na sociedade e na história Através da experimentação formal da busca por novas formas de expressão e da reflexão sobre a condição humana Pessoa contribuiu para a renovação da literatura portuguesa e para a consolidação do Modernismo como um movimento marcante na história cultural do país As obras de Fernando Pessoa e seus heterônimos exemplificam essa busca por novas formas de expressão e pela reflexão sobre a identidade e a condição humana no mundo moderno