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Processo Penal
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Texto de pré-visualização
MICHEL FOUCAULT A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS 3ª edição NAU EDITORA Copyright 1973 by Departamento de Letras da PUCRio A editora utilizou a tradução e a supervisão final do texto coordenada pelo Departamento de Letras da PUCRio para publicação nos Cadernos da PUCRio nº16 1974 A tradução foi realizada por Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais e a supervisão final do texto foi trabalho de Léa Porto de Abreu Novaes Cleonice Berardinelli Roberto Balalai Vera Maria Palmeira de Paulo Kátia Chalita Mattar Maria Teresa Horta e Sampaio Fernandes Capa Design Ana Lopes CIPBRASIL Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ F86v Foucault Michel 19261984 A verdade e as formas jurídicas Michel Foucault tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes et al J Rio de Janeiro NAU Editora 2002 160p Tradução de La vérité et les formes juridiques Conferências de Michel Foucault na PUCRio de 21 a 25 de maio de 1973 ISBN 8585936487 1 Direito Filosofia I Título 960291 CDU 3401 1ª edição 1996 1ª reimpressão 1998 2ª edição 1999 1ª reimpressão 2000 2ª reimpressão 2001 3ª edição 2002 NAU EDITORA Editora Trarepa Ltda Av Nossa Senhora de Fátima 155 Centro Engº Paulo de Frontin RJ CEP 26650000 Telefax 21 2542 4272 email naualternexcombr Não encontrando este livro na livraria pedir via fax ou email Esta obra foi composta pela Editora Trarepa Ltda em Agaramond e impressa na Gráfica Vozes em maio de 2002 em papel off set 90 gm² para o miolo e papel cartão supremo 250 gm² para a capa Sumário I Conferência 1 7 II Conferência 2 29 III Conferência 3 53 IV Conferência 4 79 V Conferência 5 103 VI Mesa redonda 127 I O que gostaria de dizerlhes nestas conferências são coisas possivelmente inexatas falsas erróneas que apresentarei a título de hipótese de trabalho hipótese de trabalho para um trabalho futuro Pediria para tanto sua indulgência e mais do que isto sua maldade Isto é gostaria muito que ao fim de cada conferência me fizessem perguntas críticas e objeções para que na medida do possível e na medida em que meu espírito não é ainda rígido demais possa pouco a pouco adaptarme a elas e que possamos assim ao final dessas cinco conferências ter feito em conjunto um trabalho ou eventualmente algum progresso Apresentarei hoje uma reflexão metodológica para introduzir esse problema que sob o título de A Verdade e as Formas Jurídicas podelhes parecer um tanto enigmático Tentarei apresentarlhes o que no fundo é o ponto de convergência de três ou quatro séries de pesquisas existentes já exploradas já inventariadas para confrontálas e reunilas em uma espécie de pesquisa não digo original mas pelo menos renovadora Em primeiro lugar uma pesquisa propriamente histórica ou seja como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais A questão é a seguinte existe uma tendência que poderíamos chamar um tanto ironicamente de marxismo acadêmico que consiste em procurar de que maneira as condições econômicas de existência podem encontrar na consciência dos homens o seu reflexo e expressão Pareceme que essa forma de análise tradicional no marxismo universitário da França e da Europa apresenta um defeito muito grave o de supor no fundo que o sujeito humano o sujeito de conhecimento as próprias formas do conhecimento são de certo modo dados prévia e definitivamente e que as condições econômicas sociais e políticas da existência não fazem mais do que depositarse ou imprimirse neste sujeito definitivamente dado Meu objetivo será mostrarlhes como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos novos conceitos novas técnicas mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento O próprio sujeito de conhecimento tem uma história a relação do sujeito com o objeto ou mais claramente a própria verdade tem uma história Assim gostaria particularmente de mostrar como se pôde formar no século XIX um certo saber do homem da individualidade do indivíduo normal ou anormal dentro ou fora da regra saber este que na verdade nasceu das práticas sociais das práticas sociais do controle e da vigilância E como de certa maneira esse saber não se impôs a um sujeito de conhecimento não se propôs a ele nem se imprimiu nele mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento Podemos dizer que a história dos domínios do saber em relação com as práticas sociais excluída a preeminência de um sujeito de conhecimento dado definitivamente é um dos primeiros eixos de pesquisa que agora lhes proponho 4 O segundo eixo de pesquisa é um eixo metodológico que poderíamos chamar de análise dos discursos Ainda aqui existe pareceme em uma tradição recente mas já aceita nas universidades européias uma tendência a tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção Há alguns anos foi original e importante dizer e mostrar que o que era feito com a linguagem poesia literatura filosofia discurso em geral obedecia a um certo número de leis ou regularidades internas as leis e regularidades da linguagem O caráter linguístico dos fatos de linguagem foi uma descoberta que teve importância em determinada época Teria então chegado o momento de considerar esses fatos de discurso não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico mas de certa forma e aqui me inspiro nas pesquisas realizadas pelos angloamericanos como jogos games jogos estratégicos de ação e de reação de pergunta e de resposta de dominação e de esquiva como também de luta O discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível e polêmicos e estratégicos em outro Essa análise do discurso como jogo estratégico e polêmico é a meu ver um segundo eixo de pesquisa Enfim o terceiro eixo de pesquisa que lhes proponho e que vai definir por seu encontro com os dois primeiros o ponto de convergência em que me situo consistiria em uma reelaboração da teoria do sujeito Essa teoria foi profundamente modificada e renovada ao longo dos últimos anos por um certo número de teorias ou ainda mais seriamente por um certo número de práticas entre as quais é claro a psicanálise se situa em primeiro plano A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou da maneira mais fundamental 5 a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes Há dois ou três séculos a filosofia ocidental postulava explícita ou implicitamente o sujeito como fundamento como núcleo central de todo conhecimento como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia explodir Ora pareceme que a psicanálise pôs em questão de maneira enfática essa posição absoluta do sujeito Mas se a psicanálise o fez em compensação no domínio do que poderíamos chamar teoria do conhecimento ou no da epistemologia ou no da história das ciências ou ainda no da história das idéias pareceme que a teoria do sujeito permaneceu ainda muito filosófica muito cartesiana e kantiana pois ao nível de generalidade em que me situo não faço por enquanto diferença entre as concepções cartesiana e kantiana Atualmente quando se faz história história das idéias do conhecimento ou simplesmente história atemomos a esse sujeito de conhecimento a este sujeito da representação como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece Seria interessante tentar ver como se dá através da história a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história e que é a cada instante fundado e refundado pela história É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir Para retomar meu ponto de partida podemos ver como em uma certa tradição universitária ou acadêmica do marxismo esta concepção filosoficamente tradicional do sujeito não foi ainda sustentada Ora a meu ver isso é que deve ser feito a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais Esse é o fundo teórico dos problemas que gostaria de levantar Pareceume que entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade as práticas jurídicas ou mais precisamente as práticas judiciárias estão entre as mais importantes A hipótese que gostaria de propor é que no fundo há duas histórias da verdade A primeira é uma espécie de história interna da verdade a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências Por outro lado pareceme que existem na sociedade ou pelo menos em nossas sociedades vários outros lugares onde a verdade se forma onde um certo número de regras de jogo são definidas regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade certos domínios de objeto certos tipos de saber e por conseguinte podemos a partir daí fazer uma história externa exterior da verdade As práticas judiciárias a maneira pela qual entre os homens se arbitrarn os danos e as responsabilidades o modo pelo qual na história do Ocidente se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras todas essas regras ou se quiserem todas essas práticas regulares é claro mas também modificadas sem cessar através da história me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade formas de saber e por conseguinte relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver as formas jurídicas e por conseguinte sua evolução no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade Tentarei mostrarlhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal Pois o que chamamos de inquérito enquête inquérito tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII e também por cientistas fossem eles geógrafos botânicos zoólogos economistas é uma forma bem característica da verdade em nossas sociedades Ora onde encontramos a origem do inquérito Nós a encontramos em uma prática política e administrativa de que irei falarlhes mas a encontramos também em prática judiciária E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica Foi para saber exatamente quem fez o quê em que condições e em que momento que o Ocidente elaborou as complexas técnicas do inquérito que puderam em seguida ser utilizadas na ordem científica e na ordem da reflexão filosófica Da mesma forma no século XIX também se inventaram a partir de problemas jurídicos judiciários penais formas de análise bem curiosas que chamaria de exame examen e não mais de inquérito Tais formas de análise deram origem à Sociologia à Psicologia à Psicopatologia à Criminologia à Psicanálise Tentarei mostrarlhes como ao procurarmos a origem destas formas vemos que elas nasceram em ligação direta com a formação de um certo número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista no final do século XIX Temos assim em linhas gerais a formulação do que será tratado nas conferências seguintes Na próxima falarei sobre o nascimento do inquérito no pensamento grego em algo que nem é totalmente um mito nem inteiramente uma tragédia a história de Édipo Falarei da história de Édipo não como ponto de origem de formulação do desejo ou das formas do desejo do homem mas ao contrário como episódio bastante curioso da história do saber e ponto de emergência do inquérito Na conferência subsequente tratarei da relação que se estabeleceu na Idade Média do conflito da oposição entre o regime da prova épreuve e o sistema do inquérito Finalmente nas duas últimas falarei do nascimento do que chamo o exame ou as ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista No momento gostaria de retomar de forma diferente as reflexões metodológicas puramente abstratas de que falava há pouco Teria sido possível e talvez mais honesto citar apenas um nome o de Nietzsche pois o que digo aqui só tem sentido se relacionado à obra de Nietzsche que me parece ser entre os modelos de que podemos lançar mão para as pesquisas que proponho o melhor o mais eficaz e o mais atual Em Nietzsche pareceme encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a análise histórica da própria formação do sujeito a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento O que me proponho agora é seguir na obra de Nietzsche os lineamentos que nos podem servir de modelo para as análises em questão Tomarei como ponto de partida um texto de Nietzsche datado de 1873 e só publicado postumamente Diz o texto Em algum ponto perdido deste universo cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares houve uma vez um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal Nesse texto extremamente rico e difícil deixarei de lado várias coisas até mesmo e sobretudo a célebre e difícil frase Foi o instante da maior mentira Considerarei inicialmente e de bom grado a insolência a desenvoltura de Nietzsche ao dizer que o conhecimento foi inventado sobre um astro e em um determinado momento Falo de insolência nesse texto de Nietzsche porque não devemos esquecer que em 1873 estamos senão em pleno kantismo pelo menos em pleno neokantismo E a idéia de que o tempo e o espaço podem preexistir ao conhecimento a idéia de que o tempo e o espaço não são formas do conhecimento mas pelo contrário espécie de rochas primitivas sobre as quais o conhecimento vem se fixar é para a época absolutamente inadmissível É a isso que gostaria de me ater fixandome primeiramente no próprio termo invenção Nietzsche afirma que em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo animais inteligentes inventaram o conhecimento a palavra que emprega invenção o termo alemão é Erfindung é frequentemente retomada em seus textos e sempre com sentido e intenção polémicos Quando fala de invenção Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção a palavra origem Quando diz invenção é para não dizer origem quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung Temse um certo número de provas disto Apresentarei duas ou três Por exemplo em um texto que é segundo creio da Gaia Ciência em que fala de Schopenhauer reprovandolhe sua análise da religião Nietzsche diz que Schopenhauer cometeu o erro de procurar a origem Ursprung da religião em um sentimento metafísico que estaria presente em todos os homens e conteria por antecipação o núcleo de toda religião seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial Nietzsche afirma eis uma análise da história da religião que é totalmente falsa pois admitir que a religião tem origem em um sentimento metafísico significa pura e simplesmente que a religião já estava dada ao menos em estado implícito envolta nesse sentimento metafísico Ora diz Nietzsche a história não é isso não é dessa maneira que se faz história não é dessa maneira que as coisas se passaram Pois a religião não tem origem não tem Ursprung ela foi inventada houve uma Erfindung da religião Em um dado momento algo aconteceu que fez aparecer a religião A religião foi fabricada Ela não existia anteriormente Entre a grande continuidade da Ursprung descrita por Schopenhauer e a ruptura que caracteriza a Erfindung de Nietzsche há uma oposição fundamental Falando a respeito da poesia sempre na Gaia Ciência Nietzsche afirma haver quem procure a origem Ursprung da poesia quando na verdade não há Ursprung da poesia há somente uma invenção da poesia Um dia alguém teve a idéia bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar para impor suas palavras para estabelecer através de suas palavras uma certa relação de poder sobre os outros Também a poesia foi inventada ou fabricada Existe ainda a famosa passagem no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral em que Nietzsche se refere a essa espécie de grande fábrica de grande usina em que se produz o ideal O ideal não tem origem Ele também foi inventado fabricado produzido por uma série de mecanismos de pequenos mecanismos A invenção Erfindung para Nietzsche é por um lado uma ruptura por outro algo que possui um pequeno começo baixo mesquinho inconfessável Este é o ponto crucial da Erfindung Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada Foi igualmente por puras obscuras rela ções de poder que a religião foi inventada Vilania portanto de todos estes começos quando são opostos à solenidade da origem tal como é vista pelos filósofos O historiador não deve temer as mesquinharias pois foi de mesquinharia em mesquinharia de pequena em pequena coisa que finalmente as grandes coisas se formaram À solenidade de origem é necessário opor em bom método histórico a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações dessas invenções O conhecimento foi portanto inventado Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem É dizer de maneira mais precisa por mais paradoxal que seja que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem ou inversamente não há no comportamento humano no apetite humano no instinto humano algo como um germe do conhecimento De fato diz Nietzsche o conhecimento tem relação com os instintos mas não pode estar presente neles nem mesmo por ser um instinto entre os outros o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo do afrontamento da junção da luta e do compromisso entre os instintos É porque os instintos se encontram se batem e chegam finalmente ao término de suas batalhas a um compromisso que algo se produz Este algo é o conhecimento Portanto para Nietzsche o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos não é como que o refinamento dos próprios instintos O conhecimento tem por fundamento por base e por ponto de partida os instintos mas instintos em confronto entre si de que ele é apenas o resultado em sua superfície O conhecimento é como um clarão como uma luz que se irradia mas que é produzido por mecanismos ou realidades que são de natureza totalmente diversa O conhecimento é o efeito dos instintos é como um lance de sorte ou como o resultado de um longo compromisso Ele é ainda diz Nietzsche como uma centelha entre duas espadas mas que não é do mesmo ferro que as duas espadas Efeito de superfície não delineado de antemão na natureza humana o conhecimento vem atuar diante dos instintos acima deles no meio deles ele os comprime traduz um certo estado de tensão ou de apaziguamento entre os instintos Mas não se pode deduzir o conhecimento de maneira analítica segundo uma espécie de derivação natural Não se pode de modo necessário deduzilo dos próprios instintos O conhecimento no fundo não faz parte da natureza humana É a luta o combate o resultado do combate e consequentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento O conhecimento não é instintivo é contrainstintivo assim como ele não é natural é contranatural Este é o primeiro sentido que pode ser dado à idéia de que o conhecimento é uma invenção e não tem origem Mas o outro sentido que pode ser dado a esta afirmação seria o de que o conhecimento além de não estar ligado à natureza humana de não derivar da natureza humana nem mesmo é aparentado por um direito de origem com o mundo a conhecer Não há no fundo segundo Nietzsche nenhuma semelhança nenhuma afinidade prévia entre conhecimento e essas coisas que seria necessário conhecer Em termos mais rigorosamente kantianos seria necessário dizer que as condições de experiência e as condições do objeto de experiência são totalmente heterogêneas Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da filosofia ocidental quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência e do objeto de experiência eram idênticas Nietzsche pensa ao contrário que entre conhecimento e mundo a conhecer há tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza humana Temos então uma natureza humana um mundo e algo entre os dois que se chama o conhecimento não havendo entre eles nenhuma afinidade semelhança ou mesmo elos de natureza O conhecimento não tem relações de afinidade com o mundo a conhecer diz Nietzsche frequentemente Citarei apenas um texto da Gaia Ciência parágrafo 109 O caráter do mundo é o de um caos eterno não devido à ausência de necessidade mas devido à ausência de ordem de encadeamento de formas de beleza e de sabedoria O mundo não procura absolutamente imitar o homem ele ignora toda lei Abstenhamonos de dizer que existem leis na natureza É contra um mundo sem ordem sem encadeamento sem formas sem beleza sem sabedoria sem harmonia sem lei que o conhecimento tem de lutar É com ele que o conhecimento se relaciona Não há nada no conhecimento que o habilite por um direito qualquer a conhecer esse mundo Não é natural à natureza ser conhecida E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade mas uma relação de luta de dominação de subserviência de compensação etc da mesma forma entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural Só pode haver uma relação de violência de dominação de poder e de força de violação O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção reconhecimento identificação delas com elas Pareceme haver nessa análise de Nietzsche uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental e cuja lição devemos conservar A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas O que efetivamente na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro ilusão arbitrariedade O que garantia isto na filosofia ocidental senão Deus Deus certamente desde Descartes para não ir mais além e ainda mesmo em Kant é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado em verdade nas coisas do mundo Descartes precisou afirmar a existência de Deus Se não existe mais relação entre o conhecimento e as coisas a conhecer se a relação entre o conhecimento e as coisas conhecidas é arbitrária de poder e de violência a existência de Deus não é mais indispensável no centro do sistema de conhecimento Na mesma passagem da Gaia Ciência em que evoca a ausência de ordem de encadeamento de formas de beleza do mundo Nietzsche pergunta precisamente quando cessaremos de ser obscurecidos por todas essas sombras de deus quando conseguiremos desdivinizar completamente a natureza A ruptura da teoria do conhecimento com a teologia começa de maneira estrita com uma análise como a de Nietzsche Em segundo lugar diria que se é verdade que entre o conhecimento e os instintos tudo o que faz tudo o que trama o animal humano há somente ruptura relações de dominação e subserviência relações de poder desaparece então não mais Deus mas o sujeito em sua unidade e soberania Remontando à tradição filosófica a partir de Descartes para não ir mais longe vemos que a unidade do sujeito humano era assegurada pela continuidade que vai do desejo ao conhecer do instinto ao saber do corpo à verdade Tudo isto assegurava a existência do sujeito Se é verdade que há por um lado os mecanismos do instinto os jogos do desejo os afrontamentos da mecânica do corpo e da vontade e por outro lado a um nível de natureza totalmente diferente o conhecimento então não se tem mais necessidade da unidade do sujeito humano Podemos admitir sujeitos ou podemos admitir que o sujeito não existe Eis em que o texto de Nietzsche que citei consagrado à invenção do conhecimento me parece estar em ruptura com a tradição filosófica mais antiga e mais estabelecida na filosofia ocidental Ora quando Nietzsche diz que o conhecimento é o resultado dos instintos mas não é um instinto nem deriva diretamente dos instintos que quer dizer ele exatamente e como concebe este curioso mecanismo pelo qual os instintos sem ter nenhuma relação de natureza com o conhecimento podem por seu simples jogo produzir fabricar inventar um conhecimento que nada tem a ver com eles Eis a segunda série de problemas que gostaria de abordar Existe um texto da Gaia Ciência parágrafo 333 que podemos considerar como uma das análises mais estritas que Nietzsche fez dessa fabricação dessa invenção do conhecimento Nesse longo texto intitulado Que significa conhecer Nietzsche retoma um texto de Spinoza onde este opunha intelligere compreender a ridere lugere detestari Spinoza dizia que se quisermos compreender as coisas se quisermos efetivamente compreendêlas em sua natureza em sua essência e portanto em sua verdade é necessário que nos abstenhamos de rir delas de deplorálas ou de detestálas Somente quando estas paixões se apaziguam podemos enfim compreender Nietzsche diz que isto não somente não é verdade mas é exatamente o contrário que acontece Intelligere compreender não é nada mais que um certo jogo ou melhor o resultado de um certo jogo de uma certa composição ou compensação entre ridere rir lugere deplorar e detestari detestar Nietzsche diz que só compreendemos porque há por trás de tudo isso o jogo e a luta desses três instintos desses três mecanismos ou dessas três paixões que são o rir o deplorar e o detestar o ódio Com relação a isso é preciso considerar algumas coisas Inicialmente devemos considerar que essas três paixões ou esses três impulsos rir detestar e deplorar têm em comum o fato de serem uma maneira não de se aproximar do objeto de se identificar com ele mas ao contrário de conservar o objeto à distância de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele de se proteger dele pelo riso desvalorizálo pela deploração afastálo e eventualmente destruílo pelo ódio Portanto todos esses impulsos que estão na raiz do conhecimento e o produzem têm em comum o distanciamento do objeto uma vontade de se afastar dele e de afastálo ao mesmo tempo enfim de destruílo Atrás do conhecimento há uma vontade sem dúvida obscura não de trazer o objeto para si de se assemelhar a ele mas ao contrário uma vontade obscura de se afastar dele e de destruílo maldade radical do conhecimento Chegamos assim a uma segunda idéia importante A de que esses impulsos rir deplorar detestar são todos da ordem das más relações Atrás do conhecimento na raiz do conhecimento Nietzsche não coloca uma espécie de afeição de impulso ou de paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer mas ao contrário impulsos que nos colocam em posição de ódio desprezo ou temor diante de coisas que são ameaçadoras e presunçosas 21 Se esses três impulsos rir deplorar e odiar chegam a produzir o conhecimento não é segundo Nietzsche porque se apaziguaram como em Spinoza ou se reconciliaram ou chegaram a uma unidade É ao contrário porque lutaram entre si porque se confrontaram É porque esses impulsos se combateram porque tentaram como diz Nietzsche prejudicar uns aos outros é porque estão em estado de guerra em uma estabilização momentânea desse estado de guerra que eles chegam a uma espécie de estado de corte onde finalmente o conhecimento vai aparecer como a centelha entre duas espadas Não há portanto no conhecimento uma adequação ao objeto uma relação de assimilação mas ao contrário uma relação de distância e dominação não há no conhecimento algo como felicidade e amor mas ódio e hostilidade não há unificação mas sistema precário de poder Os grandes temas tradicionalmente apresentados na filosofia ocidental foram inteiramente questionados no texto citado de Nietzsche A filosofia ocidental e desta vez não é preciso referirnos a Descartes podemos remontar a Platão sempre caracterizou o conhecimento pelo logocentrismo pela semelhança pela adequação pela beatitude pela unidade Todos esses grandes temas são agora postos em questão Daí se compreende porque é a Spinoza que Nietzsche se refere pois Spinoza de todos os filósofos ocidentais foi quem levou mais longe essa concepção do conhecimento como adequação beatitude e unidade Nietzsche coloca no cerne na raiz do conhecimento algo como o ódio a luta a relação de poder Compreendese então porque Nietzsche afirma que o filósofo é aquele que mais facilmente se engana sobre a natureza do conhecimento por pensálo sempre na forma da adequação do amor da unidade da pacificação Ora se quisermos saber o que é o conhecimento não é preciso nos aproximarmos da forma de vida de existência de ascetismo própria ao filósofo Se quisermos realmente conhecer o conhecimento saber o que ele é apreendêlo em sua raiz em sua fabricação devemos nos aproximar não dos filósofos mas dos políticos devemos compreender quais são as relações de luta e de poder E é somente nessas relações de luta e de poder na maneira como as coisas entre si os homens entre si se odeiam lutam procuram dominar uns aos outros querem exercer uns sobre os outros relações de poder que compreendemos em que consiste o conhecimento Podese então compreender como uma análise desse tipo nos introduz de maneira eficaz em uma história política do conhecimento dos fatos de conhecimento e do sujeito do conhecimento Mas antes gostaria de responder a uma possível objeção tudo isso é muito bonito mas não está em Nietzsche foi seu delírio sua obsessão de encontrar em toda parte relações de poder em introduzir essa dimensão do político até na história do conhecimento ou na história da verdade que lhe fez acreditar que Nietzsche dizia isto Eu responderia duas coisas Primeiramente tomei este texto de Nietzsche em função de meus interesses não para mostrar que era essa a concepção nietzscheana do conhecimento pois há inúmeros textos bastante contraditórios entre si a esse respeito mas apenas para mostrar que existe em Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica do que eu chamaria a política da verdade É um modelo que encontramos efetivamente em Nietzsche e penso mesmo que ele constitui em 23 sua obra um dos modelos mais importantes para a compreensão de alguns elementos aparentemente contraditórios da sua concepção do conhecimento Com efeito se admitimos ser isto que Nietzsche entende por descoberta do conhecimento se todas essas relações estão por trás do conhecimento que de certa forma é apenas seu resultado podemos então compreender determinados textos de Nietzsche De início todos aqueles em que Nietzsche afirma que não há conhecimento em si Mais uma vez é preciso pensar em Kant aproximálos e verificar todas as diferenças O que a crítica kantiana colocava em questão era a possibilidade de um conhecimento do emsi um conhecimento sobre uma verdade ou uma realidade emsi Nietzsche diz em A genealogia da moral Abstenhamonos senhores filósofos dos tentáculos das noções contraditórias tais como razão pura espiritualidade absoluta conhecimento emsi Ou ainda em A vontade de poder Nietzsche afirma que não há ser emsi como também não pode haver conhecimento emsi E quando diz isso designa algo totalmente diferente do que Kant compreendia por conhecimento emsi Nietzsche quer dizer que não há uma natureza do conhecimento uma essência do conhecimento condições universais para o conhecimento mas que o conhecimento é cada vez o resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem do conhecimento O conhecimento é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob o signo do conhecer O conhecimento não é uma faculdade nem uma estrutura universal Mesmo quando utiliza um certo número de elementos que podem passar por universais esse conhecimento será apenas da ordem do resultado do acontecimento do efeito Assim podemos compreender a série de textos em que Nietzsche afirma que o conhecimento tem um caráter perspectivo Quando Nietzsche diz que o conhecimento é sempre uma perspectiva ele não quer dizer no que seria uma mistura de kantismo e empirismo que o conhecimento se encontra limitado no homem por um certo número de condições de limites derivados da natureza humana do corpo humano ou da própria estrutura do conhecimento Quando fala do caráter perspectivo do conhecimento Nietzsche quer designar o fato de que só há conhecimento sob a forma de um certo número de atos que são diferentes entre si e múltiplos em sua essência atos pelos quais o ser humano se apodera violentamente de um certo número de coisas reage a um certo número de situações lhes impõe relações de força Ou seja o conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado É essa relação estratégica que vai definir o efeito de conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial oblíquo perspectivo O caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana mas sempre do caráter polémico e estratégico do conhecimento Podese falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha É por isso que encontramos em Nietzsche a idéia que volta constantemente de que o conhecimento é ao mesmo tempo o que há de mais generalizante e de mais particular O conhecimento esquematiza ignora as diferenças assimila as coisas entre si e isto sem nenhum fundamento em verdade Devido a isso o conhecimento é sempre um desconhecimento Por outro lado é sempre algo que visa maldosa insidiosa e 25 agressivamente indivíduos coisas situações Só há conhecimento na medida em que entre o homem e o que ele conhece se estabelece se trama algo como uma luta singular um têteàtête um duelo Há sempre no conhecimento alguma coisa que é da ordem do duelo e que faz com que ele seja sempre singular Este é o caráter contraditório do conhecimento tal como é definido nos textos de Nietzsche que aparentemente se contradizem generalizante e sempre singular Eis portanto como através dos textos de Nietzsche podemos restituir não uma teoria geral do conhecimento mas um modelo que permite abordar o objeto destas conferências o problema da formação de um certo número de domínios de saber a partir de relações de força e de relações políticas na sociedade Retomo agora meu ponto de partida Em uma certa concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em uma certa concepção do marxismo que se impôs à universidade há sempre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força as condições econômicas as relações sociais são dadas previamente aos indivíduos mas ao mesmo tempo se impõem a um sujeito de conhecimento que permanece idêntico salvo em relação às ideologias tomadas como erros Chegamos assim a esta noção muito importante e ao mesmo tempo muito embaraçosa de ideologia Nas análises marxistas tradicionais a ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se traduz o fato de que a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente a relação de conhecimento é perturbada obscurecida velada pelas condições de existência por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento A ideologia é a marca o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre um sujeito de conhecimento que de direito deveria estar aberto à verdade O que pretendo mostrar nestas conferências é como de fato as condições políticas econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e por conseguinte as relações de verdade Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento certas ordens de verdade certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito os domínios de saber e as relações com a verdade Só se desembaraçando destes grandes temas do sujeito de conhecimento ao mesmo tempo originário e absoluto utilizando eventualmente o modelo nietzscheano poderemos fazer uma história da verdade Apresentarei alguns esboços desta história a partir das práticas judiciárias de onde nasceram os modelos de verdade que circulam ainda em nossa sociedade se impõem ainda a ela e valem não somente no domínio da política no domínio do comportamento quotidiano mas até na ordem da ciência Até na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao sujeito de conhecimento mas que são elas próprias constitutivas do sujeito de conhecimento II Gostaria hoje de falar da história de Édipo assunto que há um ano se tornou consideravelmente fora de moda A partir de Freud a história de Édipo vinha sendo considerada como relatando a fábula mais antiga de nosso desejo e de nosso inconsciente Ora a partir do livro de Deleuze e Guattari LAntiŒdipe publicado no ano passado a referência a Édipo desempenha um papel inteiramente diferente Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triângulo edipiano paimãefilho não revela uma verdade atemporal nem uma verdade profundamente histórica de nosso desejo Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiano constitui para os analistas que o manipulam no interior da cura uma certa maneira de conter o desejo de garantir que o desejo não venha se investir se difundir no mundo que nos circunda no mundo histórico que o desejo permaneça no interior da família e se desenrole como um pequeno drama quase burguês entre o pai a mãe e o filho Édipo não seria pois uma verdade de natureza mas um instrumento de limitação e coação que os psicanalistas a partir de Freud utilizam para conter o desejo e fazêlo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa sociedade em determinado momento Em outras palavras Édipo segundo Deleuze e Guattari não é o conteúdo secreto de nosso inconsciente mas a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso inconsciente Édipo é um instrumento de poder é uma certa maneira de poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e o inconsciente Confesso que um problema como este me atrai muito e que eu também me sinto tentado a pesquisar por trás do que se pretende que seja a história de Édipo alguma coisa que tem a ver não com a história indefinida sempre recomeçada do nosso desejo e do nosso inconsciente mas com a história de um poder um poder político Faço um parêntese para lembrar que tudo que tento dizer tudo que Deleuze com mais profundidade mostrou em seu LAntiŒdipe faz parte de um conjunto de pesquisas que não dizem respeito ao contrário do que se diz nos jornais ao que tradicionalmente se chama de estrutura Nem Deleuze nem Lyotard nem Guattari nem eu nunca fazemos análise de estrutura não somos absolutamente estruturalistas Se me perguntassem o que faço e o que outros fazem melhor do que eu diria que não fazemos pesquisa de estrutura Faria um jogo de palavras e diria que fazemos pesquisas de dinastia Diria jogando com as palavras gregas δύναμις δυναστεία que procuramos fazer aparecer o que na história de nossa cultura permaneceu até agora escondido mais oculto mais profundamente investido as relações de poder Curiosamente as estruturas econômicas de nossa sociedade são melhor conhecidas mais inventariadas melhor destacadas que as estruturas de poder político Gostaria de mostrar nessa série de conferências de que maneira relações políticas se estabeleceram e se investiram profundamente na nossa cultura dando lugar a uma série de fenômenos que não podem ser explicados a não ser que os relacionemos não às estruturas econômicas às relações econômicas de produção mas a relações políticas que investem toda a trama de nossa existência Pretendo mostrar como a tragédia de Édipo a que se pode ler em Sófocles deixarei de lado o problema do fundo mítico a que ela se liga é representativa e de certa maneira instauradora de um determinado tipo de relação entre poder e saber entre poder político e conhecimento de que nossa civilização ainda não se libertou Pareceme que há realmente um complexo de Édipo na nossa civilização Mas ele não diz respeito ao nosso inconsciente e ao nosso desejo nem às relações entre desejo e inconsciente Se existe complexo de Édipo ele se dá não ao nível individual mas coletivo não a propósito de desejo e inconsciente mas de poder e de saber É esta espécie de complexo que eu gostaria de analisar A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas Como todo mundo sabe tratase de uma história em que pessoas um soberano um povo ignorando uma certa verdade conseguem por uma série de técnicas de que falaremos descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano A tragédia de Édipo é portanto a história de uma pesquisa da verdade é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época Por esta razão o primeiro problema que se coloca é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da verdade O primeiro testemunho que temos da pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego remonta à Ilíada Tratase da história da contestação entre Antíloço e Menelau durante os jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo Entre esses jogos houve uma corrida de carros que como de costume se desenrolava em um circuito com ida e volta passando por um marco que era preciso contornar o mais próximo possível Os organizadores dos jogos tinham colocado neste lugar alguém que deveria ser o responsável pela regularidade da corrida que Homero sem o nomear pessoalmente diz ser uma testemunha ἵστωρ aquele que está lá para ver A corrida se desenrola e os dois primeiros que estão na frente no momento da curva são Antíloco e Menelau Ocorre uma irregularidade e quando Antíloco chega primeiro Menelau introduz uma contestação e diz ao juiz ou júri que deve dar o prêmio que Antíloco cometeu uma irregularidade Contestação litígio como estabelecer a verdade Curiosamente nesse texto de Homero não se faz apelo àquele que viu à famosa testemunha que estava junto ao marco e que deveria atestar o que aconteceu Não se convoca o seu testemunho e nenhuma pergunta lhe é feita Há somente contestação entre os adversários Menelau e Antíloco Esta se desenvolve da seguinte maneira depois da acusação de Menelau tu cometeste uma irregularidade e da defesa de Antíloco eu não cometi irregularidade Menelau lança um desafio Põe tua mão direita na testa do teu cavalo segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade Nesse momento Antíloco diante deste desafio que é uma prova épreuve renuncia à prova renuncia a jurar e reconhece assim que cometeu irregularidade Eis uma maneira singular de produzir a verdade de estabelecer a verdade jurídica não se passa pela testemunha mas por uma espécie de jogo de prova de desafio lançado por um adversário ao outro Um lança um desafio o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar Se por acaso tivesse aceito o risco se tivesse realmente jurado imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses E seria Zeus punindo o falso juramento se fosse o caso que teria com seu raio manifestado a verdade Eis a velha e bastante arcaica prática da prova da verdade em que esta é estabelecida judicialmente não por uma constatação uma testemunha um inquérito ou uma inquisição mas por um jogo de prova A prova é característica da sociedade grega arcaica Vamos também reencontrála na Alta Idade Média É evidente que quando Édipo e toda a cidade de Tebas procuram a verdade não é este modelo que utilizam Os séculos passaram É entretanto interessante observar que encontramos ainda na tragédia de Sófocles um ou dois restos da prática de estabelecimento da verdade pela prova Primeiro na cena entre Creonte e Édipo quando Édipo critica seu cunhado por ter truncado a resposta de Oráculo de Delfos dizendo Tu inventaste tudo isto simplesmente para tomar meu poder para me substituir E Creonte responde sem que procure estabelecer a verdade através de testemunhas Bem vamos jurar E eu vou jurar que não fiz nenhum complô contra ti Isto é dito em presença de Jocasta que aceita o jogo que é como que responsável pela regularidade do jogo Creonte responde a Édipo segundo a velha fórmula do litígio entre guerreiros Poderíamos dizer em segundo lugar que em toda a peça encontramos esse sistema do desafio e da prova Édipo ao saber que a peste de Tebas era devida à maldição dos deuses em consequência de conspurcação e assassinato responde dizendo que se compromete a exilar a pessoa que tiver cometido este crime sem saber naturalmente que ele mesmo o cometera Ele está assim implicado pelo próprio juramento do modo como nas rivalidades entre guerreiros arcaicos os adversários se incluíam nos juramentos de promessa e maldição Estes restos da 32 33 velha tradição reaparecem algumas vezes ao longo da peça Mas na verdade toda a tragédia de Édipo se fundamenta em um mecanismo inteiramente diferente É esse mecanismo de estabelecimento da verdade que gostaria de expor Pareceme que esse mecanismo da verdade obedece inicialmente a uma lei uma espécie de pura forma que poderíamos chamar de lei das metades É por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede em Édipo Édipo manda consultar o deus de Delfos o rei Apolo A resposta de Apolo quando a examinamos em detalhe é dada em duas partes Apolo começa por dizer O país está atingido por uma conspurcação A esse primeira resposta falta de certa forma uma metade há uma conspurcação mas quem conspurcou ou o que conspurcou Portanto há necessidade de se fazer uma segunda pergunta e Édipo força Creonte a dar a segunda resposta perguntando a que é devida a conspurcação A segunda metade aparece o que causou a conspurcação foi um assassinato Mas quem diz assassinato diz duas coisas Diz quem foi assassinado e o assassino Perguntase a Apolo quem foi assassinado A resposta é Laio o antigo rei Perguntase quem assassinou Nesse momento o rei Apolo se recusa a responder e como diz Édipo não se pode forçar a verdade dos deuses Fica portanto faltando uma metade À conspurcação correspondia a metade do assassinato Ao assassinato correspondia a primeira metade Quem foi assassinado Mas falta a segunda metade o nome do assassino Para saber o nome do assassino vai ser preciso apelar para alguma coisa para alguém já que não se pode forçar a vontade dos deuses Este outro o duplo de Apolo seu duplo humano sua sombra mortal é o adivinho Tirésias que como Apolo é alguém divino θεῖος μάντις o divino adivinho Ele está muito próximo de Apolo também é chamado rei ἀναξ mas é perecível enquanto Apolo é imortal e sobretudo ele é cego está mergulhado na noite enquanto Apolo é o deus do Sol Ele é a metade de sombra da verdade divina o duplo que o deus luz projeta em negro sobre a superfície da Terra É esta metade que se vai interrogar É Tirésias responde a Édipo dizendo Foste tu quem matou Laio Por conseguinte podemos dizer que desde a segunda cena de Édipo tudo está dito e representado Temse a verdade já que Édipo é efetivamente designado pelo conjunto constituído das respostas de Apolo por um lado e da resposta de Tirésias por outro O jogo das metades está completo conspurcação assassinato quem foi morto quem matou Temos tudo Mas na forma bem particular da profecia da predicão da prescrição O adivinho Tirésias não diz exatamente a Édipo Foste tu quem o matou Ele diz Prometeste banir aquele que tivesse matado ordeno que cumpras teu voto e expulses a ti mesmo Do mesmo modo Apolo não havia dito exatamente Há conspurcação e é por isto que a cidade está mergulhada na peste Apolo disse Se quiseres que a peste acabe é preciso lavar a conspurcação Tudo isso foi dito na forma do futuro da prescrição da predicão nada se refere à atualidade do presente nada é apontado Temos toda a verdade mas na forma prescritiva e profética que é característica ao mesmo tempo do oráculo e do adivinho A esta verdade que de certa forma é completa total em que tudo foi dito falta entretanto alguma coisa que é a dimensão do presente da atualidade da designação de alguém Falta o testemunho do que realmente se passou Curiosamente toda esta velha história é formulada pelo adivinho e pelo deus na forma do futuro Precisamos agora do presente e do testemunho do passado testemunho presente do que realmente aconteceu 34 35 Esta segunda metade passado e presente desta prescrição e desta previsão é dada no resto da peça Ela também é dada por um estranho jogo de metades Inicialmente é preciso estabelecer quem matou Laio Isto é obtido no decorrer da peça pelo acoplamento de dois testemunhos O primeiro é dado espontaneamente e inadvertidamente por Jocasta ao dizer Vês bem que não foste tu Édipo quem matou Laio contrariamente ao que diz o adivinho A melhor prova disto é que Laio foi morto por vários homens no entroncamento de três caminhos A este testemunho vai responder a inquietude já quase a certeza de Édipo Matar um homem no entroncamento de três caminhos é exatamente o que eu fiz eu me lembro que ao chegar a Tebas matei alguém no entroncamento de três caminhos Assim pelo jogo dessas duas metades que se completam a lembrança de Jocasta e a lembrança de Édipo temos esta verdade quase completa a verdade do assassinato de Laio Quase completa pois falta ainda um pequeno fragmento o de saber se ele foi morto por um só ou por vários o que aliás não é resolvido na peça Mas isto é somente a metade da história de Édipo pois Édipo não é apenas aquele que matou o rei Laio é também quem matou o próprio pai e casou com a própria mãe depois de o ter matado Esta segunda metade da história falta ainda depois do acoplamento dos testemunhos de Jocasta e de Édipo O que falta é exatamente o que lhes dá uma espécie de esperança pois o deus predisse que Laio não seria morto por qualquer um mas por seu filho Portanto enquanto não se provar que Édipo é filho de Laio a predicão não estará realizada Esta segunda metade é necessária para que a totalidade da predição seja estabelecida na última parte da peça pelo acoplamento de dois testemunhos diferentes Um será o do escravo que vem de Corinto anunciar a Édipo que Políbio morreu Édipo que não chora a morte de seu pai se alegra dizendo Ah Mas pelo menos eu não o matei contrariamente ao que diz a predição E o escravo replica Políbio não era teu pai Temos assim um novo elemento Édipo não é filho de Políbio É então que intervém o último escravo o que havia fugido depois do drama o que havia se escondido no fundo do Citerão o que havia escondido a verdade em sua cabana o pastor de ovelhas que é chamado para ser interrogado sobre o que aconteceu e diz Com efeito dei outrora a este mensageiro uma criança que vinha do palácio de Jocasta e que me disseram que era seu filho Vemos que falta ainda a última certeza pois Jocasta não está presente para atestar que foi ela quem deu a criança ao escravo Mas excetuando esta pequena dificuldade agora o ciclo está completo Sabemos que Édipo era filho de Laio e Jocasta que ele foi dado a Políbio que foi ele pensando ser filho de Políbio e voltando para escapar da profecia a Tebas que ele não sabia que era sua pátria que matou no entroncamento de três caminhos o rei Laio seu verdadeiro pai O ciclo está fechado Ele se fechou por uma série de encaixes de metades que se ajustam umas às outras Como se toda esta longa e complexa história da criança ao mesmo tempo exilada e fugindo da profecia exilada por causa da profecia tivesse sido quebrada em dois e em seguida cada fragmento partido de novo em dois e todos esses fragmentos repartidos em mãos diferentes Foi preciso esta reunião do deus e do seu profeta de Jocasta e de Édipo do escravo de Corinto e do escravo do Citerão para que todas estas metades e metades de metades viessem ajustarse umas às outras adaptarse encaixarse e reconstituir o perfil total da história 36 37 Esta forma realmente impressionante no Édipo de Sófocles não é apenas uma forma retórica Ela é ao mesmo tempo religiosa e política Ela consiste na famosa técnica do σύμβολον o símbolo grego Um instrumento de poder de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder quebrar em duas partes um objeto qualquer de cerâmica etc guardar uma das partes e confiar a outra parte a alguém que deve levar a mensagem ou atestar sua autenticidade É pelo ajustamento destas duas metades que se poderá reconhecer a autenticidade da mensagem isto é a continudade do poder que se exerce O poder se manifesta completa seu ciclo mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos separados uns dos outros de um mesmo conjunto de um único objeto cuja configuração geral é a forma manifesta do poder A história de Édipo é a fragmentação desta peça de que a posse integral reunificada autentifica a detenção do poder e as ordens dadas por ele As mensagens os mensageiros que ele envia e que devem retornar autentificarão sua ligação ao poder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peça e poder ajustálo aos outros fragmentos Esta é a técnica jurídica política e religiosa do que os gregos chamam σύμβολον o símbolo A história de Édipo tal como é representada na tragédia de Sófocles obedece a este σύμβολον não uma forma retórica mas religiosa política quase mágica do exercício do poder Se observarmos agora não a forma deste mecanismo ou o jogo de metades que se fragmentam e terminam por se ajustar mas o efeito que é produzido por esses ajustamentos recíprocos veremos uma série de coisas Inicialmente uma espécie de deslocamento à medida que as metades se ajustam O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei Apolo e do divino adivinho Tirésias o nível da profecia ou dos deuses Em seguida a segunda série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta Seus dois testemunhos se encontram no meio da peça É o nível dos reis dos soberanos Finalmente a última dupla de testemunhos que intervém a última metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem pelos reis mas pelos servidores e escravos O mais humilde escravo de Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho Temos assim um resultado curioso O que havia sido dito em termos de profecia no começo da peça vai ser redito sob forma de testemunho pelos dois pastores E assim como a peça passa dos deuses aos escravos os mecanismos de enunciado da verdade ou a forma na qual a verdade se enuncia mudam igualmente Quando o deus e o adivinho falam a verdade se formula em forma de prescrição e profecia na forma de um olhar eterno e todo poderoso do deus Sol na forma do olhar do adivinho que apesar de cego vê o passado o presente e o futuro É esta espécie de olhar mágicoreligioso que faz brilhar no começo da peça uma verdade em que Édipo e o coro não querem acreditar No nível mais baixo encontramos também o olhar Pois se os dois escravos podem testemunhar é porque viram Um viu Jocasta lhe entregar uma criança para que a levasse para a floresta e lá a abandonasse O outro viu a criança na floresta viu seu companheiro escravo lhe entregar esta criança e se lembra de têla levado ao palácio de Políbio Tratase aqui ainda do olhar Não mais do grande olhar eterno iluminador ofuscante fulgurante do deus e de seu adivinho mas o de pessoas que viram e se lembram de ter visto com seus olhos humanos É o olhar do testemunho É a este olhar que Homero não fazia referência ao falar do conflito e do litígio entre Antíloco e Menelau Podemos dizer portanto que toda a peça de Édipo é uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso de ordem retrospectiva não mais da ordem da profecia mas do testemunho É ainda uma certa maneira de deslocar o brilho ou a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar de certa forma empírico e quotidiano dos pastores Há uma correspondência entre os pastores e os deuses Eles dizem a mesma coisa eles vêem a mesma coisa mas não na mesma linguagem nem com os mesmos olhos Em toda a tragédia vemos esta mesma verdade que se apresenta e se formula de duas maneiras diferentes com outras palavras em outro discurso com outro olhar Mas esses olhares se correspondem um ao outro Os pastores respondem exatamente aos deuses e podemos dizer até que os pastores os simbolizam O que dizem os pastores é no fundo mas de outra forma o que os deuses já haviam dito Temos aí um dos traços mais fundamentais da tragédia de Édipo a comunicação entre os pastores e os deuses entre a lembrança dos homens e as profecias divinas Esta correspondência define a tragédia e estabelece um mundo simbólico em que a lembrança e o discurso dos homens são como que uma imagem empírica da grande profecia dos deuses Eis um dos pontos sobre os quais devemos insistir para compreender este mecanismo da progressão da verdade em Édipo De um lado estão os deuses do outro os pastores Mas entre os dois há o nível dos reis ou melhor o nível de Édipo Qual é seu nível de saber que significa seu olhar A este respeito é preciso retificar algumas coisas Habitualmente se diz quando se analisa a peça que Édipo é aquele que nada sabia que era cego que tinha os olhos vendados e a memória bloqueada pois nunca havia mencionado e parecia ter esquecido os próprios gestos ao matar o rei no entroncamento dos três caminhos Édipo homem do esquecimento homem do nãosaber homem do inconsciente para Freud Conhecemos todos os jogos de palavras que foram feitos com o nome de Édipo Mas não esqueçamos que estes jogos são múltiplos e que mesmo os gregos já haviam notado que em Οιδίπους temos a palavra οϊδα que significa ao mesmo tempo ter visto e saber Gostaria de mostrar que Édipo dentro desse mecanismo do σύμβολον de metades que se comunicam jogo de respostas entre os pastores e os deuses não é aquele que não sabia mas ao contrário é aquele que sabia demais Aquele que unia seu saber e seu poder de uma certa maneira condenável e que a história de Édipo devia expulsar definitivamente da história O título mesmo da tragédia de Sófocles é interessante Édipo é ÉdipoRei Οιδίπους τύραννος É difícil traduzir esta palavra τύραννος A tradução não dá conta do significado exato da palavra Édipo é o homem do poder homem que exerce um certo poder E é característico que o título da peça de Sófocles não seja Édipo o incestuoso nem Édipo o assassino de seu pai mas ÉdipoRei Que significa a realeza de Édipo Podemos notar a importância da temática do poder no decorrer de toda a peça Durante toda a peça o que está em questão é essencialmente o poder de Édipo e é isso que faz com que ele se sinta ameaçado Édipo em toda a tragédia nunca dirá que é inocente que talvez tenha feito algo mas que foi contra a vontade que quando matou aquele homem não sabia que se tratava de Laio Essa defesa ao nível da inocência e da inconsciência nunca é feita pelo personagem de Sófocles em ÉdipoRei Somente em Édipo em Colona se verá um Édipo cego e miserável gemer ao longo da peça dizendo Eu nada podia os deuses me pegaram em uma armadilha que eu desconhecia Em ÉdipoRei ele não se defende de maneira alguma ao nível de sua inocência Seu problema é apenas o poder Poderá guardar o poder É este poder que está em jogo do começo ao fim da peça Na primeira cena é na condição de soberano que os habitantes de Tebas recorrem a Édipo contra a peste Tu tens o poder deves curarnos da peste E ele responde dizendo Tenho grande interesse em curálos da peste porque esta peste que vos atinge me atinge também em minha soberania e minha realeza É interessado em manter a própria realeza que Édipo quer buscar a solução do problema E quando começa a se sentir ameaçado pelas respostas que surgem em sua volta quando o oráculo o designa e o adivinho diz de maneira mais clara ainda que é ele o culpado sem responder em termos de inocência Édipo diz a Tirésias Tu queres meu poder tu armaste um complô contra mim para me privar de meu poder Ele não se assusta com a idéia de que poderia ter matado o pai ou o rei O que o assusta é perder o próprio poder No momento da grande disputa com Creonte ele lhe diz Trouxeste um oráculo de Delfos mas esse oráculo tu o falseaste porque filho de Laio tu reinvindicas um poder que me foi dado Ainda aqui Édipo se sente ameaçado por Creonte ao nível do poder e não ao nível de sua inocência ou culpabilidade O que está em questão em todos estes defrontamentos do começo da peça é o poder E quando no fim da peça a verdade vai ser descoberta quando o escravo de Corinto diz a Édipo Não te inquietes não és o filho de Políbio Édipo não pensará que não sendo filho de Políbio poderá ser filho de um outro e talvez de Laio Ele diz Disse isso para me envergonhar para fazer o povo acreditar que eu sou filho de um escravo mas mesmo que eu seja filho de um escravo isto não me impedirá de exercer o poder eu sou um rei como os outros Ainda aqui é do poder que se trata É como chefe de justiça como soberano que Édipo nesse momento convocará a última testemunha o escravo do Citerão É como soberano que ele ameaçandoo de tortura lhe arrancará a verdade E quando a verdade é arrancada quando se sabe quem era Édipo e o que fez assassinato do pai incesto com a mãe que diz o povo de Tebas Nós te chamávamos nosso rei Isto significando que o povo de Tebas ao mesmo tempo em que reconhece em Édipo quem foi seu rei pelo uso do imperfeito chamávamos o declara agora destituído da realeza O que está em questão é a queda do poder de Édipo A prova é que quando Édipo perde o poder para Creonte as últimas réplicas da peça ainda giram em torno do poder A última palavra dirigida a Édipo antes que o levem para o interior do palácio é pronunciada pelo novo rei Creonte Não procures mais ser o senhor A palavra empregada é κρατείν O que quer dizer que Édipo não deve mais comandar E Creonte acrescenta ainda ἀκράτησας uma palavra que quer dizer depois de ter chegado ao cume mas que é também um jogo de palavras em que ο α tem um sentido privativo não possuindo mais o poder ἀκράτησας significa ao mesmo tempo tu que subiste até o cume e que agora não tens mais o poder Depois disso o povo intervém e saúda Édipo pela última vez dizendo Tu que eras κράτιστος isto é tu que estavas no cume do poder Ora a primeira saudação do povo de Tebas a Édipo era ῶ κρατύνων Οιδίπους isto é Édipo todo poderoso Entre essas duas saudações do povo se desenvolveu toda a tragédia A tragédia do poder e da detenção do poder político Mas o que é este poder de Édipo Como se caracteriza Suas características estão presentes no pensamento na história e na filosofia grega da época Édipo é chamado de βασιλεύς ἀναξ o primeiro dos homens aquele que tem a κράτεια aquele que detém o poder e mesmo de τύραννος Tirano não deve aqui ser entendido em seu sentido estrito tanto que Políbio Laio e todos os outros foram chamados também de τύραννος Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo Édipo tem o poder Mas o obteve através de uma série de histórias de aventuras que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável criança expulsa perdida viajante errante e em seguida o homem mais poderoso Ele conheceu um destino desigual Conheceu a miséria e a glória Esteve no ponto mais alto quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no ponto mais baixo quando se tornou um personagem errante de cidade em cidade Mais tarde de novo ele atingiu o cume Os anos que cresceram comigo diz ele ora me rebaixaram ora me exaltaram Esta alternância do destino é um traço característico de dois tipos de personagens O personagem lendário do herói épico que perdeu sua cidadania e sua pátria e que depois de um certo número de provas reencontra a glória e o personagem histórico do tirano grego do fim do VI e início do V séculos O tirano era aquele que depois de ter conhecido várias aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdêlo A irregularidade do destino é característica do personagem do tirano tal como é descrito nos textos gregos desta época Édipo é aquele que após ter conhecido a miséria conheceu a glória aquele que se tornou rei após ter sido herói Mas se ele se tornou rei é porque tinha curado a cidade de Tebas matando a Divina Cantora a Cadela que devorava todos aqueles que não decifravam seus enigmas Ele tinha curado a cidade lhe havia permitido como diz que ela se reerguesse que ela respirasse no momento em que havia perdido o fôlego Para designar esta cura da cidade Édipo emprega a expressão ὀρθωσαν reerguer ἀνὀρθωσαν πόλιν reerguer a cidade Ora é esta expressão que encontramos no texto de Sólon Sólon que não é bem um tirano mas o legislador se vangloriava de ter reerguido a cidade ateniense no fim do século VI Esta é também a característica de todos os tiranos que surgiram na Grécia durante os séculos VII e VI Eles não somente conheceram os altos e baixos da sorte mas também desempenharam nas cidades o papel de reerguêla através de uma distribuição econômica justa como Cípselo em Corinto ou através de leis justas como Sólon em Atenas Eis portanto duas características fundamentais do tirano grego tal como nos mostram os textos da época de Sófocles ou mesmo anteriores Encontramos também em Édipo um série de características não mais positivas mas negativas da tirania Várias coisas são reprovadas em Édipo em suas discussões com Tirésias e Creonte e até mesmo com o povo Creonte por exemplo lhe diz Estás errado tu te identificas com esta cidade cidade em que não nasceste imaginas que és esta cidade e que ela te pertence eu também faço parte desta cidade ela não é somente tua Ora se consideramos as histórias que Heródoto por exemplo contava sobre os velhos tiranos gregos em particular sobre Cípselo de Corinto vemos que se trata de alguém que julgava possuir a cidade Cípselo dizia que Zeus lhe havia dado a cidade e que ele a havia devolvido aos cidadãos Encontramos exatamente a mesmo coisa na tragédia de Sófocles Do mesmo modo Édipo é aquele que não dá importância às leis e que as substitui por suas vontades e suas ordens Ele o diz claramente Quando Creonte o reprovava por querer exilálo dizendo que sua decisão não era justa Édipo responde Pouco me importa que seja justo ou não é preciso obedecer assim mesmo Sua vontade será a lei da cidade É por isto que no momento em que se inicia sua queda o coro do povo reprovará Édipo por ter desprezado a δίκη a justiça É preciso portanto reconhecer em Édipo um personagem historicamente bem definido assinalado catalogado caracterizado pelo pensamento grego do século V o tirano Este personagem do tirano não é só caracterizado pelo poder como também por um certo tipo de saber O tirano grego não era simplesmente o que tomava o poder Era aquele que tomava o poder porque detinha ou fazia valer o fato de deter um certo saber superior em eficácia ao dos outros Este é precisamente o caso de Édipo Édipo é aquele que conseguiu resolver por seu pensamento por seu saber o famoso enigma da esfinge E assim como Sólon pode dar efetivamente a Atenas leis justas assim como Sólon pode reerguer a cidade porque era σοφός sábio assim também Édipo pode resolver o enigma da esfinge porque era σοφός O que é este saber de Édipo Como se caracteriza O saber de Édipo está caracterizado no decorrer de toda a peça Édipo diz a todo momento que venceu os outros que resolveu o enigma da esfinge que curou a cidade por meio do que chama de γνώμη seu conhecimento ou sua τέχνη Outras vezes para designar seu modo de saber ele se diz aquele que encontrou ᾐὗρηκα Esta é a palavra que Édipo mais frequentemente utiliza para designar o que fez outrora e está tentando fazer agora Se Édipo resolveu o enigma da esfinge é porque encontrou Se quiser salvar de novo Tebas é preciso novamente encontrar εὐρίσκειν O que significa εὐρίσκειν Esta atividade de encontrar é caracterizada inicialmente na peça como algo que se faz sozinho Édipo insiste nisso incessantemente Quando resolvi o enigma da esfinge não me dirigi a ninguém diz ele ao povo e ao adivinho Ele diz ao povo Não me pudeste ajudar de maneira nenhuma a resolver o enigma da esfinge não podias fazer nada contra a Divina Cantora E diz a Tirésias Mas que adivinhὁ és tu que nem foste capaz de libertar Tebas da esfinge Enquanto todos estavam mergulhados no terror eu libertei Tebas sozinho não aprendi nada com ninguém não me servi de nenhum mensageiro vim pessoalmente Encontrar é algo que se faz sozinho Encontrar é também o que se faz quando se abrem os olhos É Édipo é o homem que não cessa de dizer Eu inquiri e como ninguém foi capaz de me dar informações abri os olhos e os ouvidos eu vi O verbo οίδα que significa ao mesmo tempo saber e ver é frequentemente utilizado por Édipo Οἰδίπους é aquele que é capaz desta atividade de ver e saber Ele é o homem do ver o homem do olhar e o será até o fim Se Édipo cai em uma armadilha é precisamente porque em sua vontade de encontrar ele prolongou o testemunho a lembrança a procura das pessoas que viram até o momento em que foi desenterrado do fundo do Citerão o escravo que havia assistido a tudo e que sabia a verdade O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência É ao mesmo tempo este saber solitário de conhecimento do homem que sozinho sem se apoiar no que se diz sem ouvir ninguém quer ver com seus próprios olhos Saber autocrático do tirano que por si só pode e é capaz de governar a cidade A metáfora do que governa do que pilota é frequentemente utilizada por Édipo para designar o que ele faz Édipo é o piloto aquele que na proa do navio abre os olhos para ver E é precisamente porque abre os olhos sobre o que está acontecendo que encontra o acidente o inesperado o destino a τύχη Porque foi este homem do olhar autocrático aberto sobre as coisas Édipo caiu na armadilha O que gostaria de mostrar é que no fundo Édipo representa na peça de Sófocles um certo tipo do que eu chamaria saberepoder poderesaber É porque ele exerce um certo poder tirânico e solitário desviado tanto do oráculo dos deuses que ele não quer ouvir quanto do que diz e quer o povo que em sua sede de poder e saber em sua sede de governar descobrindo por si só ele encontra em última instância os testemunhos daqueles que viram Vemos assim como o jogo das metades pôde funcionar e como Édipo é no fim da peça um personagem supérfluo Isto na medida em que este saber tirânico este saber de quem quer ver com seus próprios olhos sem escutar nem os deuses nem os homens permite o ajustamento exato do que haviam dito os deuses e do que sabia o povo Édipo sem querer consegue estabelecer a união entre a profecia de deus e a memória dos homens O saber edipiano o excesso de poder o excesso de saber foram tais que ele se tornou inútil o círculo se fechou sobre ele ou melhor os dois fragmentos da téssera se ajustaram e Édipo em seu poder solitário se tornou inútil Nos dois fragmentos ajustados a imagem de Édipo se tornou monstruosa Édipo podia demais por seu poder tirânico sabia demais em seu saber solitário Neste excesso ele era ainda o esposo de sua mãe e irmão de seus filhos Édipo é o homem do excesso homem que tem tudo demais em seu poder em seu saber em sua família em sua sexualidade Édipo homem duplo que sobrava em relação à transparência simbólica do que sabiam os pastores e haviam dito os deuses A tragédia de Édipo está bem próxima portanto do que será alguns anos depois a filosofia platônica Para Platão na verdade o saber dos escravos memória empírica do que foi visto será desvalorizado em proveito de uma memória mais profunda essencial que é a memória do que foi visto no céu inteligível Mas o importante é o que vai ser fundamentalmente desvalorizado desqualificado tanto na tragédia de Sófocles quanto na República de Platão é o tema ou melhor o personagem a forma de um saber político ao mesmo tempo privilegiado e exclusivo Quem é visado pela tragédia de Sófocles ou pela filosofia de Platão quando situadas em uma dimensão histórica quem é visado por trás de Édipo σοφός Édipo o sábio o tirano que sabe o homem da τέχνη da γνώμη é o famoso sofista profissional do poder político e do saber que existia efetivamente na sociedade ateniense da época de Sófocles Mas por trás dele quem é fundamentalmente visado por Platão e por Sófocles é uma outra categoria de personagem do que o sofista era como que o pequeno representante continuação e fim histórico o personagem do tirano Este nos séculos VI e VII era o homem do poder e do saber aquele que dominava tanto pelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía Finalmente sem que esteja presente no texto de Platão ou no de Sófocles quem é visado por trás de tudo é o grande personagem histórico que existiu efetivamente ainda que tomado em um contexto lendário o famoso rei assírio Nas sociedades indoeuropéias do leste mediterrâneo no final do segundo e início do primeiro milênios o poder político era sempre detentor de um certo tipo de saber O rei e os que o cercavam pelo fato de deterem o poder detinham um saber que não podia e não devia ser comunicado aos outros grupos sociais Saber e poder eram exatamente correspondentes correlativos superpostos Não podia haver saber sem poder E não podia haver poder político sem a detenção de um certo saber especial É esta forma de podersaber que Dumézil em seus estudos sobre as três funções isolou ao mostrar que a primeira função a do poder político era a de um poder político mágico e religioso O saber dos deuses o saber da ação que se pode exercer sobre os deuses ou sobre nós todo esse saber mágicoreligioso está presente na função política O que aconteceu na origem da sociedade grega na origem da idade grega do século V na origem de nossa civilização foi o desmantelamento desta grande unidade de um poder político que seria ao mesmo tempo um saber Foi o desmantelamento desta unidade de um poder mágicoreligioso que existia nos grandes impérios assírios que os tiranos gregos impregnados de civilização oriental tentaram reabilitar em seu proveito e que os sofistas dos séculos V e VI ainda utilizaram como podiam em forma de lições retribuídas em dinheiro Assistimos a essa longa decomposição durante os cinco ou seis séculos da Grécia arcaica E quando a Grécia clássica aparece Sófocles representa a data inicial o ponto de eclosão o que deve desaparecer para que esta sociedade exista é a união do poder e do saber A partir deste momento o homem do poder será o homem da ignorância Finalmente o que aconteceu a Édipo foi que por saber demais nada sabia A partir desse momento Édipo vai funcionar como o homem do poder cego que não sabia e não sabia porque poderia demais Assim enquanto o poder é taxado de ignorância inconsciência esquecimento obscuridade haverá por um lado o adivinho e o filósofo em comunicação com a verdade verdades eternas dos deuses ou do espírito e por outro lado o povo que sem nada deter do poder possui em si a lembrança ou pode ainda dar testemunho da verdade Assim para além de um poder que se tornou monumentalmente cego como Édipo há os pastores que se lembram e os adivinhos que dizem a verdade O Ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político de que o poder político é cego de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contacto com os deuses ou nos recordamos das coisas quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou Com Platão se inicia um grande mito ocidental o de que há antinomia entre saber e poder Se há o saber é preciso que ele renuncie ao poder Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura não pode mais haver poder político Esse grande mito precisa ser liquidado Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar em numerosos textos já citados que por trás de todo saber de todo conhecimento o que está em jogo é uma luta de poder O poder político não está ausente do saber ele é tramado com o saber o testemunho do que viu pode contestar e abater o orgulho do rei ou a presunção do tirano A testemunha a humilde testemunha por meio unicamente do jogo da verdade que ela viu e enuncia pode sozinha vencer os mais poderosos ÉdipoRei é uma espécie de resumo da história do direito grego Muitas peças de Sófocles como Antígona e Electra são uma espécie de ritualização teatral da história do direito Esta dramatização da história do direito grego nos apresenta um resumo de uma das grandes conquistas da democracia ateniense a história do processo através do qual o povo se apoderou do direito de julgar do direito de dizer a verdade de opor a verdade aos seus próprios senhores de julgar aqueles que os governam Esta grande conquista da democracia grega este direito de testemunhar de opor a verdade ao poder se constituiu em um longo processo nascido e instaurado de forma definitiva em Atenas ao longo do século V Este direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma série de grandes formas culturais características da sociedade grega Primeiramente a elaboração do que se poderia chamar formas racionais da prova e da demonstração como produzir a verdade em que condições que formas observar que regras aplicar São elas a Filosofia os sistemas racionais os sistemas científicos Em segundo lugar e mantendo uma relação com as formas anteriores desenvolvese uma arte de persuadir de convencer as pessoas da verdade do que se diz de obter a vitória para a verdade ou ainda pela verdade Temse aqui o problema da retórica grega Em terceiro lugar há o desenvolvimento de um novo tipo de conhecimento conhecimento por testemunho por lembrança por inquérito Saber de inquérito que os historiadores como Heródoto pouco antes de Sófocles os naturalistas os botânicos os geógrafos os viajantes gregos vão desenvolver e Aristóteles vai totalizar e tornar enciclopédico Houve na Grécia portanto uma espécie de grande revolução que através de uma série de lutas e contestações políticas resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária jurídica da verdade Esta constitui a matriz o modelo a partir do qual uma série de outros saberes filosóficos retóricos e empíricos puderam se desenvolver e caracterizar o pensamento grego Muito curiosamente a historia do nascimento do inquérito permaneceu esquecida e se perdeu tendo sido retomada sob outras formas vários séculos mais tarde na Idade Média Na Idade Média européia assistese a uma espécie de segundo nascimento do inquérito mais obscuro e lento mas que obteve um sucesso bem mais efetivo que o primeiro O método grego do inquérito havia estacionado não chegara à fundação de um conhecimento racional capaz de se desenvolver indefinidamente Em compensação o inquérito que nasce na Idade Média terá dimensões extraordinárias Seu destino será praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura dita européia ou ocidental O velho Direito Germânico que regulamentava os litígios entre os indivíduos nas sociedade germânicas no momento em que estas entram em contato com o Império Romano era em certo sentido muito próximo em algumas de suas formas do Direito Grego Arcaico Era um direito no qual o sistema do inquérito não existia pois os litígios entre os indivíduos eram regulamentados pelo jogo da prova Podese caracterizar esquematicamente o antigo Direito Germânico da época em que Tácito começa a analisar essa curiosa civilização que se estende até as portas do Império do Na conferência anterior fiz referência a duas formas ou tipos de regulamento judiciário de litígio de contestação ou de disputa presentes na civilizacão grega A primeira forma bastante arcaica é encontrada em Homero Dois guerreiros se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo quem havia violado o direito do outro A tarefa de resolver esta questão cabia a uma disputa regulamentada um desafio entre os dois guerreiros Um lançava ao outro o seguinte desafio És capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo Em um procedimento como este não há juiz sentença verdade inquérito nem testemunho para saber quem disse a verdade Confiase o encargo de decidir não quem disse a verdade mas quem tem razão à luta ao desafio ao risco que cada um vai correr A segunda forma é a que se desenrola ao longo de ÉdipoRei Para resolver um problema que é também em um certo sentido um problema de contestação um litígio criminal quem matou o rei Laio aparece um personagem novo em relação ao velho procedimento de Homero o pastor No fundo de sua cabana embora sendo um homem sem importância um escravo o pastor viu e porque detém em suas mãos esse pequeno fragmento de lembrança porque traz em seu discurso seguinte modo Em primeiro lugar não há ação pública isto é não há ninguém representando a sociedade o grupo o poder ou quem detém o poder encarregado de fazer acusações contra os indivíduos Para haver um processo de ordem penal era necessário que tivesse havido dano que alguém ao menos pretendesse ter sofrido dano ou se apresentasse como vítima e que esta pretensa vítima designasse seu adversário a vítima podendo ser a pessoa diretamente ofendida ou alguém que pertencesse a sua família e assumisse a causa do parente O que caracterizava uma ação penal era sempre uma espécie de duelo de oposição entre indivíduos entre famílias ou grupos Não havia intervenção de nenhum representante da autoridade Tratavase de uma reclamação feita por um indivíduo a outro só havendo intervenção destes dois personagens aquele que se defende e aquele que acusa Conhecemos apenas dois casos bastante curiosos em que havia uma espécie de ação pública a traição e a homossexualidade A comunidade então intervinha considerandose lesada e exigia coletivamente reparação a um indivíduo Portanto a primeira condição para que houvesse ação penal no velho direito germânico era a existência de dois personagens e nunca de três A segunda condição era que uma vez introduzida a ação penal uma vez que um indivíduo se declarasse vítima e reclamasse reparação a um outro a liquidação judiciária devia se fazer como uma espécie de continuação da luta entre os indivíduos Uma espécie de guerra particular individual se desenvolve e o procedimento penal será apenas a ritualização dessa luta entre os indivíduos O Direito Germânico não opõe a guerra à justiça não identifica justiça e paz Mas ao contrário supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança O direito é pois uma maneira regulamentada de fazer a guerra Por exemplo quando alguém é morto um de seus parentes próximos pode exercer a prática judiciária da vingança não significando isso renunciar a matar alguém em princípio o assassino Entrar no domínio do direito significa matar o assassino mas matálo segundo certas regras certas formas Se o assassino cometeu o crime desta ou daquela maneira será preciso matálo cortandoo em pedaços ou cortandolhe a cabeça e colocandoa em uma estaca na entrada de sua casa Esses atos vão ritualizar o gesto de vingança e caracterizálo como vingança judiciária O direito é portanto a forma ritual da guerra A terceira condição é que se é verdade que não há oposição entre direito e guerra não é menos verdade que é possível chegar a um acordo isto é interromper essas hostilidades regulamentadas O antigo Direito Germânico oferece sempre a possibilidade ao longo dessa série de vinganças recíprocas e rituais de se chegar a uma acordo a uma transação Podese interromper a série de vinganças com um pacto Nesse momento os dois adversários recorrem a um árbitro que de acordo com eles e com seu consentimento mútuo vai estabelecer uma soma em dinheiro que constitui o resgate Não o resgate da falta pois não há falta mas unicamente dano e vingança Nesse procedimento do Direito Germânico um dos dois adversários resgata o direito de ter a paz de escapar à possível vingança de seu adversário Ele resgata sua própria vida e não o sangue que derramou pondo assim fim à guerra A interrupção da guerra ritual é o terceiro ato ou o ato terminal do drama judiciário no velho Direito Germânico O sistema que regulamenta os conflitos e litígios nas sociedades germânicas daquela época é portanto inteiramente governado pela luta e pela transação é uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica Tratase de um procedimento que não permite a intervenção de um terceiro indivíduo que se coloque entre os dois como elemento neutro procurando a verdade tentando saber qual dos dois disse a verdade um procedimento de inquérito uma pesquisa da verdade nunca intervém em um sistema desse tipo Foi desta forma que o velho Direito Germânico se constituiu antes da invasão do Império Romano Não me deterei na longa série de peripécias que fez com que esse Direito Germânico tivesse entrado em rivalidade em concorrência às vezes em cumplicidade com o Direito Romano que reinava nos territórios ocupados pelo Império Romano Entre os séculos V e X de nossa era houve uma série de penetrações peripécias e conflitos entre esses dois sistemas de direito Cada vez que sobre as ruínas do Império Romano um Estado começa a se esboçar cada vez que uma estrutura estatal começa a nascer então o Direito Romano velho direito de estado se revitaliza É assim que nos reinos merovíngios sobretudo na época do Império Carolíngio o Direito Romano sobrepujou de certa forma o Direito Germânico Por outro lado cada vez que há dissolução desses embriões desses lineamentos de estados o velho Direito Germânico triunfa e o Direito Romano cai por vários séculos no esquecimento só reaparecendo lentamente no fim do século XII e no curso do século XIII Assim o direito feudal é essencialmente de tipo germânico Ele não apresenta nenhum dos elementos dos procedimentos de inquérito de estabelecimento da verdade das sociedades gregas ou do Império Romano No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema da prova épreuve Quando um indivíduo se apresentava como portador de uma reivindicação de uma contestação acusando um outro de ter matado ou roubado o litígio entre os dois era resolvido por uma série de provas aceitas por ambos e a que os dois eram submetidos Esse sistema era uma maneira de provar não a verdade mas a força o peso a importância de quem dizia Havia em primeiro lugar provas sociais provas da importância social de um indivíduo No velho direito da Borgonha do século XI quando alguém era acusado de assassinato podia perfeitamente estabelecer sua inocência reunindo à sua volta doze testemunhas que juravam não ter ele cometido o assassinato O juramento não se fundava por exemplo no fato de terem visto com vida a pretensa vítima ou em um álibi para o pretenso assassino Para prestar juramento testemunhar que um indivíduo não tinha matado era necessário ser parente do acusado Era preciso ter com ele relações sociais de parentesco que garantiam não sua inocência mas sua importância social Isto mostrava a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter seu peso sua influência a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiálo em uma batalha ou em um conflito A prova da inocência a prova de não se ter cometido o ato em questão não era de forma alguma o testemunho Havia em segundo lugar provas de tipo verbal Quando um indivíduo era acusado de alguma coisa roubo ou assassinato devia responder a esta acusação com um certo número de fórmulas garantindo que não havia cometido assassinato ou roubo Ao pronunciar estas fórmulas podiase fracassar ou ter sucesso Em alguns casos pronunciavase a fórmula e perdiase Não por haver dito uma inverdade ou por se provar que havia mentido mas por não ter pronunciado a fórmula como devia Um erro de gramática uma troca de palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal é que no caso de um menor de uma mulher ou de um padre o acusado podia ser substituído por outra pessoa Essa outra pessoa que mais tarde se tornaria na história do direito o advogado era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado Se ele se enganava ao pronunciálas aquele em nome de quem falava perdia o processo Havia em terceiro lugar as velhas provas mágicoreligiosas do juramento Pediase ao acusado que prestasse juramento e caso não ousasse ou hesitasse perdia o processo Havia finalmente as famosas provas corporais físicas chamadas ordálios que consistiam em submeter um pessoa a uma espécie de jogo de luta com seu próprio corpo para constatar se venceria ou fracassaria Por exemplo na época do Império Carolíngio havia uma prova célebre imposta a quem fosse acusado de assassinato em certas regiões do norte da França O acusado devia andar sobre ferro em brasa e dois dias depois se ainda tivesse cicatrizes perdia o processo Havia ainda outras provas como o ordálio da água que consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirála na água Se ela não se afogasse perdia o processo porque a própria água não a recebia bem e se ela se afogasse teria ganho o processo visto que a água não a teria rejeitado Todos estes afrontamentos do indivíduo ou de seu corpo com os elementos naturais são um transposição simbólica cuja semântica deveria ser estudada da própria luta dos indivíduos entre si No fundo tratase sempre de uma batalha tratase sempre de saber quem é o mais forte No velho Direito Germânico o processo é apenas a continuação regulamentada ritualizada da guerra Poderia ter dado exemplos mais convincentes tais como as lutas entre dois adversários ao longo de um processo lutas físicas os famosos Julgamentos de Deus Quando dois indivíduos se afrontavam por causa da propriedade de um bem ou por causa de um assassinato era sempre possível se estivessem de acordo lutar obedecendo a determinadas regras duração da luta tipo de armas diante de uma assistência presente apenas para assegurar a regularidade do que acontecia Quem ganhasse a luta ganhava o processo sem que lhe fosse dada a possibilidade de dizer a verdade ou antes sem que lhe fosse pedido que provasse a verdade de sua pretensão No sistema da prova judiciária feudal tratase não da pesquisa da verdade mas de uma espécie de jogo de estrutura binária O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela Se renuncia se não quer tentar a prova perde o processo de antemão Havendo a prova vence ou fracassa Não há outra possibilidade A forma binária é a primeira característica da prova A segunda característica é que a prova termina por uma vitória ou por um fracasso Há sempre alguém que ganha e alguém que perde o mais forte e o mais fraco um desfecho favorável ou desfavorável Em nenhum momento aparece algo como a sentença tal como aconteceria a partir do fim do século XII e início do século XIII A sentença consiste na enunciação por um terceiro do seguinte certa pessoa tendo dito a verdade tem razão uma outra tendo dito uma mentira não tem razão A sentença portanto não existe a separação da verdade e do erro entre os indivíduos não desempenha nenhum papel existe simplesmente vitória ou fracasso A terceira característica é que esta prova é de certa maneira automática Não é necessário haver a presença de um terceiro personagem para distinguir os dois adversários É o equilíbrio das forças o jogo a sorte o vigor a resistência física a agilidade intelectual que vão distinguir os indivíduos segundo um mecanismo que se desenvolve automaticamente A autoridade só intervém como testemunha da regularidade do procedimento No momento em que essas provas judiciárias se desenvolvem está presente alguém que tem o nome de juiz o soberano político ou alguém designado com o consentimento mútuo dos dois adversários simplesmente para constatar que a luta se desenvolveu regularmente O juiz não testemunha sobre a verdade mas sobre a regularidade do procedimento A quarta característica é que nesse mecanismo a prova serve não para nomear localizar aquele que disse a verdade mas para estabelecer que o mais forte é ao mesmo tempo quem tem razão Em uma guerra ou prova não judiciária um dos dois é sempre o mais forte mas isso não prova que ele tenha razão A prova judiciária é uma maneira de ritualizar a guerra ou de transpôla simbolicamente É uma maneira de lhe dar um certo número de formas derivadas e teatrais de modo que o mais forte será designado por esse motivo como o que tem razão A prova é um operador de direito um permutador da força pelo direito espécie de shifter que permite a passagem da força ao direito Ela não tem uma função apofântica não tem a função de designar manifestar ou fazer aparecer a verdade É um operador de direito e não um operador de verdade ou operador apofântico Eis em que consiste a prova no velho Direito Feudal Esse sistema de práticas judiciárias desaparece no fim do século XI e no curso do século XIII Toda a segunda metade da Idade Média vai assistir à transformação destas velhas práticas e à invenção de novas formas de justiça de novas formadas práticas é procedimentos judiciários Formas que são absolutamente capitais para a história da Europa e para a história do mundo inteiro na medida em que a Europa impôs violentamente o seu jugo a toda a superfície da terra O que foi inventado nessa reelaboração do Direito é algo que no fundo concerne não tanto aos conteúdos mas às formas e condições de possibilidade do saber O que se inventou no Direito dessa época foi uma determinada maneira de saber uma condição de possibilidade de saber cujo destino vai ser capital no mundo ocidental Esta modalidade de saber é o inquérito que apareceu pela primeira vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda do Império Romano durante vários séculos O inquérito que ressurge nos séculos XII e XIII é entretanto de tipo bastante diferente daquele cujo exemplo vimos em Édipo Por que a velha forma judiciária da qual lhes apresentei alguns traços fundamentais desaparece nessa época Podese dizer esquematicamente que um dos traços fundamentais da sociedade feudal européia ocidental é que a circulação dos bens é relativamente pouco assegurada pelo comércio Ela é assegurada por mecânismos de herança ou de transmissão testamentária e sobretudo pela contestação belicosa militar extrajudiciária ou judiciária Um dos meios mais importantes de assegurar a circulação dos bens na Alta Idade Média era a guerra a rapina a ocupação da terra de um castelo ou de uma cidade Estamos em uma fronteira fluida entre o direito e a guerra na medida em que o direito é uma certa maneira de continuar a guerra Por exemplo alguém que dispõe de força armada ocupa uma terra uma floresta uma propriedade qualquer e nesse momento faz prevalecer seus direitos Iniciase uma longa contestação no fim da qual aquele que não possui a força armada e quer a recuperação de sua terra só obtém a partida do invasor mediante um pagamento Este acordo se situa na fronteira entre o judiciário e o belicoso e é uma das maneiras mais frequentes de alguém enriquecer A circulação a troca de bens as falências os enriquecimentos foram feitos em sua maioria na alta feudalidade segundo esse mecanismo É interessante aliás comparar a sociedade feudal na Europa e as sociedades ditas primitivas estudadas atualmente pelos etnólogos Nestas a troca de bens se faz através de contestação e rivalidade dadas sobretudo em forma de prestígio ao nível das manifestações e dos signos Na sociedade feudal a circulação dos bens se faz igualmente em forma de rivalidade e contestação Mas rivalidade e contestação não mais de prestígio e sim belicosas Nas sociedades ditas primitivas as riquezas se trocam em prestações de rivalidade porque são não somente bens mas também signos Nas sociedades feudais as riquezas se trocam não apenas porque são bens e signos mas porque são bens signos e armas A riqueza é o meio pelo qual se pode exercer tanto a violência quanto o direito de vida e de morte sobre os outros Guerra litígio judiciário e circulação de bens fazem parte ao longo da Idade Média de um grande processo único e flutuante Há portanto uma dupla tendência característica da sociedade feudal Por um lado há uma concentração de armas em mãos dos mais poderosos que tendem a impedir sua utilização pelos menos poderosos Vencer alguém é priválo de suas armas derivando daí uma concentração do poder armado que deu mais força nos estados feudais aos mais poderosos e finalmente ao mais poderoso de todos o monarca Por outro lado e simultaneamente há as ações e os litígios judiciários que eram uma maneira de fazer circular os bens Compreendese assim porque os mais poderosos procuravam controlar os litígios judiciários impedindo que eles se desenvolvessem espontaneamente entre os indivíduos e porque tentaram apostarse da circulação judiciária e litigiosa dos bens o que implicou a concentração das armas e do poder judiciário que se formava na época nas mãos dos mesmos indivíduos A existência de poder executivo legislativo e judiciário é uma idéia aparentemente bastante velha no Direito Constitucional Na verdade tratase de um idéia recente que data mais ou menos de Montesquieu O que nos interessa aqui porém é ver como se formou algo como um poder judiciário 31 Na alta Idade Média não havia poder judiciário A liquidação era feita entre indivíduos Pediase ao mais poderoso ou àquele que exercia a soberania não que fizesse justiça mas que constatasse em função de seus poderes políticos mágicos e religiosos a regularidade do procedimento Não havia poder judiciário autônomo nem mesmo poder judiciário nas mãos de quem detinha o poder das armas o poder político Na medida em que a contestação judiciária assegurava a circulação dos bens o direito de ordenar e controlar essa contestação judiciária por ser um meio de acumular riquezas foi confiscado pelos mais ricos e mais poderosos A acumulação da riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário nas mãos de alguns é um mesmo processo que vigerou na Alta Idade Média e alcançou seu amadurecimento no momento da formação da primeira grande monarquia medieval no meio ou final do século XII Nesse momento aparecem coisas totalmente novas em relação à sociedade feudal ao Império Carolíngio e às velhas regras do Direito Romano 1 Uma justiça que não é mais contestação entre indivíduos e livre aceitação por esses indivíduos de um certo número de regras de liquidação mas que ao contrário vaise impor do alto aos indivíduos aos oponentes aos partidos Os indivíduos então não terão mais o direito de resolver regular ou irregularmente seus litígios deverão submeterse a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder político 2 Aparece um personagem totalmente novo sem precedente no Direito Romano o procurador Esse curioso personagem que aparece na Europa por volta do século XII vai se apresentar como o representante do soberano do rei ou do senhor Havendo crime delito ou contestação entre dois 32 indivíduos ele se apresenta como representante de um poder lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um crime O procurador vai dublar a vítima vai estar por trás daquele que deveria dar a queixa dizendo Se é verdade que este homem lesou um outro eu representante do soberano posso afirmar que o soberano seu poder a ordem que ele faz reinar a lei que ele estabeleceu foram igualmente lesados por esse indivíduo Assim eu também me coloco contra ele O soberano o poder político vêm desta forma dublar e pouco a pouco substituir a vítima Este fenômeno absolutamente novo vai permitir ao poder político apossarse dos procedimentos judiciários O procurador portanto se apresenta como o representante do soberano lesado pelo dano 3 Uma noção absolutamente nova aparece a infração Enquanto o drama judiciário se desenrolava entre dois indivíduos vítima e acusado tratavase apenas de dano que um indivíduo causava a outro A questão era a de saber se houve dano quem tinha razão A partir do momento em que o soberano ou seu representante o procurador dizem Também fui lesado pelo dano isto significa que o dano não é somente um ofensa de um indivíduo a outro mas também uma ofensa de um indivíduo ao Estado ao soberano como representante do Estado um ataque não ao indivíduo mas à própria lei do Estado Assim na noção de crime a velha noção de dano será substituída pela de infração A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra outro é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem ao Estado à lei à sociedade à soberania ao soberano A infração é uma das grandes invenções do pensamento medieval Vemos assim como o poder estatal vai confiscando todo o procedimento judiciário todo o mecanismo de liquidação interindividual dos litígios da Alta Idade Média 4 Há ainda uma última descoberta uma última invenção tão diabólica quanto a do procurador e da infração o Estado ou melhor o soberano já que não se pode falar de Estado nessa época é não somente a parte lesada mas a que exige reparação Quando um indivíduo perde o processo é declarado culpado e deve ainda uma reparação a sua vítima Mas esta reparação não é absolutamente a do antigo Direito Feudal ou do antigo Direito Germânico Não se trata mais de resgatar sua paz dando satisfação a seu adversário Vaise exigir do culpado não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano o Estado a lei É assim que aparece com o mecanismo das multas o grande mecanismo das confiscações Confiscações dos bens que são para as monarquias nascentes um dos grandes meios de enriquecer e alargar suas propriedades As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscação Eis o pano de fundo político desta transformação É necessário agora explicar o estabelecimento da sentença explicar como se chega ao final de um processo em que um dos personagens principais é o procurador Se a principal vítima de uma infração é o rei se é o procurador que se queixa em primeiro lugar compreendese que a liquidação judiciária não pode mais ser obtida pelos mecanismos da prova O rei ou seu representante o procurador não podem arriscar suas próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime é cometido Não é em pé de igualdade como em uma luta entre dois indivíduos que o acusado eo procurador se defrontam É preciso encontrar um novo mecanismo que não seja mais o da prova da luta entre dois adversários para saber se alguém é culpado ou não O modelo belicoso não pode ser mais aplicado Que modelo então se vai adotar Este é um dos grandes momentos da história do Ocidente Havia dois modelos para resolver o problema Em primeiro lugar um modelo intrajurídico No próprio Direito Feudal no Direito Germânico Antigo havia um caso em que a coletividade em sua totalidade podia intervir acusar alguém e obter sua condenação era o flagrante delito caso em que um indivíduo era surpreendido no exato momento em que cometia o crime Nesse momento as pessoas que o surpreendiam tinham o direito de leválo ao soberano ao detentor de um poder político e dizer Nós o vimos fazendo tal coisa e consequentemente é preciso punilo ou exigirlhe reparação Havia assim na própria esfera do Direito um modelo de intervenção coletiva e de decisão autoritária para a liquidação de um litígio de ordem judiciária Era o caso do flagrante delito quando o crime era surpreendido na sua atualidade Esse modelo evidentemente não podia ser utilizado quando o que é mais frequente não se surpreende o indivíduo no momento em que comete o crime O problema era então o de saber em que condições podiase generalizar o modelo do flagrante delito e utilizálo nesse novo sistema do Direito que estava nascendo inteiramente comandado pela soberania política e pelos representantes do soberano político Preferiuse utilizar um segundo modelo extrajudiciário que por sua vez se subdivide em dois ou melhor que tinha nessa época uma existência dupla uma dupla inserção Tratase do modelo do inquérito que tinha existido na época do Império Carolíngio Quando os representantes do soberano tinham de solucionar um problema de direito de poder ou uma questão de impostos de costumes de foro ou de propriedade procediase a algo perfeitamente ritualizado e regular a inquisitio o inquérito O representante do poder chamava pessoas consideradas capazes de conhecer os costumes o Direito ou os títulos de propriedade Reunia estas pessoas fazia com que jurassem dizer a verdade o que conheciam o que tinham visto ou o que sabiam por ter ouvido dizer Em seguida deitadas à sós estas pessoas deliberavam Ao final dessa deliberação pediase a solução do problema Este era um método de gestão administrativa que os funcionários do Império Carolíngio praticavam regularmente Ele foi ainda empregado depois de sua dissolução por Guilherme o Conquistador na Inglaterra Em 1096 os conquistadores normandos ocuparam a Inglaterra se apoderaram dos bens anglosaxões e entraram em litígio com a população autóctone e entre si visando à posse desses bens Guilherme o Conquistador para por tudo em ordem para integrar a nova população normanda à antiga população anglosaxônica fez um enorme inquérito sobre o estado das propriedades os estados dos impostos o sistema de foro etc Tratase do famoso Domesday único exemplo global que possuímos desses inquéritos que eram uma velha prática administrativa de imperadores carolíngios Esse procedimento de inquérito administrativo tem algumas características importantes 1 O poder político é o personagem essencial 2 O poder se exerce primeiramente fazendo perguntas questionando Não sabe a verdade e procura sabêla 3 O poder para determinar a verdade dirigese aos notáveis pessoas consideradas capazes de saber devido à situação idade riqueza notabilidade etc 4 Ao contrário do que se vê no final de ÉdipoRei o poder consulta os notáveis sem forçálos a dizer a verdade pelo uso da violência da pressão ou da tortura Pedese que se reúnam livremente e que dêem uma opinião coletiva Deixase que coletivamente digam o que consideram ser a verdade Temos assim um tipo de estabelecimento da verdade totalmente ligado à gestão administrativa da primeira grande forma de estado conhecida no Ocidente Esses procedimentos de inquérito foram no entanto esquecidos durante os séculos X e XI na Europa da alta feudalidade e teriam sido totalmente esquecidos se a Igreja não os tivesse utilizado na gestão de seus próprios bens Será necessário entretanto complicar um pouco a análise Pois se a Igreja utilizou novamente o método carolíngio de inquérito foi porque já o tinha praticado antes do Império Carolíngio por razões mais espirituais que administrativas Havia com efeito uma prática de inquérito na Igreja da Alta Idade Média na Igreja Merovíngia e Carolíngia Esse método se chamava visitatio e consistia na visita que o bispo devia estatutariamente fazer percorrendo sua diocese e que foi retomado em seguida pelas grandes ordens monásticas Ao chegar em um determinado lugar o bispo instituía em primeiro lugar a inquisitio generalis inquisição geral perguntando a todos os que deviam saber os notáveis os mais idosos os mais sábios os mais virtuosos o que tinha acontecido na sua ausência sobretudo se tinha havido falta crime etc Se esse inquérito chegasse a uma resposta positiva o bispo passava ao segundo estágio à inquisitio specialis inquisição especial que consistia em apurar quem tinha feito o que em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato Finalmente um terceiro ponto a confissão do culpado podia interromper a inquisição em qualquer estágio em sua forma geral ou especial Aquele que tivesse cometido o crime poderia apresentarse e proclamar publicamente Sim Um crime foi cometido consistiu nisso eu sou o seu autor Esta forma espiritual essencialmente religiosa do inquérito eclesiástico subsistiu durante toda a Idade Média tendo adquirido funções administrativas e econômicas Quando a Igreja se tornou o único corpo econômicopolítico coerente da Europa nos séculos X XI e XII a inquisição eclesiástica foi ao mesmo tempo inquérito espiritual sobre os pecados faltas e crimes cometidos e inquérito administrativo sobre a maneira como os bens da Igreja eram administrados e os proveitos reunidos acumulados distribuídos etc Este modelo ao mesmo tempo religioso e administrativo do inquérito subsistiu até o século XII quando o Estado que nascia ou antes a pessoa do soberano que surgia como fonte de todo o poder passa a confiscar os procedimentos judiciários Estes procedimentos judiciários não podem mais funcionar segundo o sistema da prova De que maneira então o procurador vai estabelecer que alguém é ou não culpado O modelo espiritual e administrativo religioso e político maneira de gerir e de vigiar e controlar as almas se encontra na Igreja inquérito entendido como olhar tanto sobre os bens e as riquezas quanto sobre os corações os atos as intenções etc É esse modelo que vai ser retomado no procedimento judiciário O procurador do Rei vai fazer o mesmo que os visitantes eclesiásticos faziam nas paróquias dioceses e comunidades Vai procurar estabelecer por inquisitio por inquérito se houve crime qual foi ele e quem o cometeu Esta é a hipótese que gostaria de lançar O inquérito teve uma dupla origem Origem administrativa ligada ao surgimento do Estado na época carolíngia origem religiosa eclesiástica mais constantemente presente durante a Idade Média É este procedimento de inquérito que o procurador do rei a justiça monárquica nascente utilizou para preencher a função do flagrante delito de que falei anteriormente O problema era o de saber como generalizar o flagrante delito a crimes que não eram de domínio do campo da atualidade como podia o procurador do rei trazer o culpado diante de uma instância judiciária que detinha o poder se não sabia quem era o culpado uma vez que não houvera flagrante delito O inquérito vai ser o substituto do flagrante delito Se com efeito se consegue reunir pessoas que podem sob juramento garantir que viram que sabem que estão a par se é possível estabelecer por meio delas que algo aconteceu realmente terseá indiretamente através do inquérito por intermédio das pessoas que sabem o equivalente ao flagrante delito E se poderá tratar de gestos atos delitos crimes que não estão mais no campo da atualidade como se fossem apreendidos em flagrante delito Temse aí uma nova maneira de prorrogar a atualidade de transferila de uma época para outra e de oferecêla ao olhar ao saber como se ela ainda estivesse presente Esta inserção do procedimento do inquérito reatualizando tornando presente sensível imediato verdadeiro o que aconteceu como se o estivéssemos presenciando constitui uma descoberta capital Podemos tirar desta análise algumas conclusões 1 Costumase opor as velhas provas do direito bárbaro ao novo procedimento racional do inquérito Evoquei acima as diferentes maneiras pelas quais se tentava estabelecer quem tinha razão na Alta Idade Média Temos a impressão de serem sistemas bárbaros arcaicos irracionais Ficase impressionado com o fato de ter sido necessário esperar até o século XII para finalmente se chegar com o procedimento do inquérito a um sistema racional de estabelecimento da verdade Não creio no entanto que o procedimento de inquérito seja simplesmente o resultado de uma espécie de progresso da racionalidade Não foi racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao procedimento do inquérito Foi toda uma transformação política uma nova estrutura política que tornou não só possível mas necessária a utilização desse procedimento no domínio judiciário O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo uma técnica de administração uma modalidade de gestão em outras palavras o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer Estaríamos enganados se víssemos no inquérito o resultado natural de uma razão que atua sobre si mesma se elabora faz seus próprios progressos se víssemos o efeito de um conhecimento de um sujeito de conhecimento se elaborando Nenhuma história feita em termos de progresso da razão de refinamento do conhecimento pode dar conta da aquisição da racionalidade do inquérito Seu aparecimento é um fenômeno político complexo É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica como por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes Nenhuma referência a um sujeito de conhecimento e a sua história interna daria conta deste fenômeno Somente a análise dos jogos de força política das relações de poder pode explicar o surgimento do inquérito 2 O inquérito deriva de um certo tipo de relações de poder de uma maneira de exercer o poder Ele se introduz no Direito a partir da Igreja e consequentemente é impregnado de categorias religiosas Na concepção da Alta Idade Média o essencial era o dano o que tinha se passado entre dois indivíduos não havia falta nem infração A falta o pecado a culpabilidade moral absolutamente não intervinham O problema era o de saber se houve ofensa quem a praticou e se aquele que pretende ter sofrido a ofensa é capaz de suportar a prova que ele propõe a seu adversário Não há erro culpabilidade nem relação com o pecado Ao contrário a partir do momento em que o inquérito se introduz na prática judiciária traz consigo a importante noção de infração Quando um indivíduo causa dano a um outro há sempre a fortiori dano à soberania à lei ao poder Por outro lado devido a todas as implicações e conotações religiosas do inquérito o dano será uma falta moral quase religiosa ou com conotação religiosa Temse assim por volta do século XII uma curiosa conjunção entre a lesa à lei e a falta religiosa Lesar o soberano e cometer um pecado são duas coisas que começam a se reunir Elas estarão unidas profundamente no Direito Clássico Dessa conjunção ainda não estamos totalmente livres 3 O inquérito que aparece no século XII em consequência desta transformação nas estruturas políticas e nas relações de poder reorganizou inteiramente ou em sua volta se reorganizaram todas as práticas judiciárias da Idade Média da época clássica e até da época moderna De maneira mais geral este inquérito judiciário se difundiu em muitos outros domínios de práticas sociais econômicas e em muitos domínios do saber Foi a partir desses inquéritos judiciários conduzidos pelos procuradores do rei que a partir do século XIII se difundiu uma série de procedimentos de inquérito Alguns eram principalmente administrativos ou econômicos Foi assim que graças a inquéritos sobre o estado da população o nível das riquezas a quantidade de dinheiro e de recursos os agentes reais asseguraram estabeleceram e aumentaram o poder real Foi desta forma que todo um saber econômico de administração econômica dos estados se acumulou no fim da Idade Média e nos séculos XVII e XVIII Foi a partir daí que nasceu uma forma regular de administração dos estados de transmissão e de continuidade do poder político e nasceram ciências como a Economia Política a Estatística etc Estas técnicas de inquérito difundiramse igualmente em domínios não diretamente ligados aos domínios de exercício de poder domínio do saber ou do conhecimento no sentido tradicional da palavra A partir dos séculos XIV e XV aparecem tipos de inquérito que procuraram estabelecer a verdade a partir de um certo número de testemunhos cuidadosamente recolhidos em domínios como o da Geografia da Astronomia do conhecimento dos climas etc Aparece em particular uma técnica de viagem empreendimento político de exercício de poder e empreendimento de curiosidade e de aquisição de saber que conduziu finalmente ao descobrimento da América Todos os grandes inquéritos que dominaram o fim da Idade Média são no fundo a explosão e a dispersão dessa primeira forma desta matriz que nasceu no século XII Até mesmo domínios como o da Medicina da Botânica da Zoologia a partir dos séculos XVI e XVII são irradiações desse processo Todo o grande movimento cultural que depois do século XII começa a preparar o Renascimento pode ser definido em grande parte como o desenvolvimento o florescimento do inquérito como forma geral de saber Enquanto o inquérito se desenvolve como forma geral de saber no interior do qual o Renascimento eclodirá a prova tende a desaparecer Dela só encontraremos os elementos os restos na forma da famosa tortura mas já mesclada com a preocupação de obter uma confissão prova de verificação Podese fazer toda uma história da tortura situandoa entre os procedimentos da prova e do inquérito A prova tende a desaparecer na prática judiciária ela desaparece também nos domínios do saber Poderíamos indicar dois exemplos Em primeiro lugar a Alquimia A Alquimia é um saber que tem por modelo a prova Não se trata de fazer um inquérito para saber o que se passa para saber a verdade Tratase essencialmente de um afrontamento entre duas forças a do alquimista que procura e a da natureza que esconde seus segredos da sombra e da luz do bem e do mal de Satã e de Deus O alquimista realiza uma espécie de luta em que ele é ao mesmo tempo o espectador aquele que verá o desfecho do combate e um dos combatentes visto que pode ganhar ou perder Podese dizer que a Alquimia é uma forma química naturalista da prova Temse a confirmação de que o saber alquímico é essencialmente uma prova no fato de que ele absolutamente não se transmitiu não se acumulou como um resultado de inquéritos que permitissem chegar à verdade O saber alquímico se transmitiu unicamente em forma de regras secretas ou públicas de procedimento eis como se deve fazer eis como se deve agir eis que princípios respeitar eis que preces fazer que textos ler que códigos devem estar presentes A Alquimia constitui essencialmente um corpus de regras jurídicas de procedimentos O desaparecimento da Alquimia o fato de que um saber de tipo novo se tenha constituído absolutamente fora do seu domínio devese a que esse novo saber tomou como modelo a matriz do inquérito Todo saber de inquérito saber naturalista botânico mineralógico filológico é absolutamente estranho ao saber alquímico que obedece aos modelos judiciários da prova Em segundo lugar a crise da universidade medieval no fim da Idade Média pode também ser analisada em termos de oposição entre o inquérito e a prova Na universidade medieval o saber se manifestava se transmitia e se autentificava através de determinados rituais dos quais o mais célebre e mais conhecido era a disputatio a disputa Tratavase do afrontamento de dois adversários que utilizavam a arma verbal os processos retóricos e demonstrações baseadas essencialmente no apelo à autoridade Apelavase não para testemunhas de verdade mas para testemunhas de força Na disputatio quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade de força de gravidade e não testemunhos de verdade maior possibilidade ele teria de sair vencedor A disputatio é uma forma de prova de manifestação do saber da autentificação do saber que obedece ao esquema geral da prova O saber medieval e sobretudo o saber enciclopédico do Renascimento do tipo de Pico della Mirandola que vai se chocar com a forma medieval da universidade será precisamente do tipo do inquérito Ter visto ter lido os textos saber o que efetivamente foi dito conhecer tão bem o que foi dito quanto a natureza a respeito da qual algo foi dito verificar o que os autores disseram pela constatação da natureza utilizar os autores não mais como autoridade mas como testemunho tudo isto vai constituir uma das grandes revoluções na forma de transmissão do saber O desaparecimento da Alquimia e da disputatio ou melhor o fato desta última ter sido relegada a formas universitárias completamente esclerósadas e não apresentar a partir do século XVI mais nenhuma atualidade nenhuma eficácia nas formas de autentificação real do saber são alguns dos numerosos sinais do conflito entre o inquérito e a prova e do triunfo do inquérito sobre a prova no fim da Idade Média Como conclusão poderíamos dizer o inquérito não é absolutamente um conteúdo mas a forma de saber Forma de saber situada na junção de um tipo de poder e de certo número de conteúdos de conhecimentos Aqueles que querem estabelecer uma relação entre o que é conhecido e as formas políticas sociais ou econômicas que servem de contexto a esse conhecimento costumam estabelecer essa relação por intermédio da consciência ou do sujeito de conhecimento Pareceme que a verdadeira junção entre processos econômicopolíticos e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber O inquérito é precisamente uma forma política uma forma de gestão de exercício do poder que por meio da instituição judiciária veio a ser uma maneira na cultura ocidental de autentificar a verdade de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir O inquérito é uma forma de saberpoder É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações enonômicopolíticas IV Na conferência anterior procurei mostrar quais foram os mecanismos e os efeitos da estatização da justiça penal na Idade Média Gostaria que nos situássemos agora em fins do século XVIII e início do século XIX no momento em que se constitui o que tentarei analisar nesta e na próxima conferência sob o nome de sociedade disciplinar A sociedade contemporânea por razões que explicarei merece o nome de sociedade disciplinar Gostaria de mostrar quais são as formas de práticas penais que caracterizam essa sociedade quais as relações de poder subjacentes a essas práticas penais quais as formas de saber os tipos de conhecimento os tipos de sujeito de conhecimento que emergem que aparecem a partir e no espaço desta sociedade disciplinar que é a sociedade contemporânea A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada pelo aparecimento no final do século XVIII e início do século XIX de dois fatos contraditórios ou melhor de um fato que tem dois aspectos dois lados aparentemente contraditórios a reforma a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e do mundo Esta transformação não apresenta as mesmas formas a mesma amplitude a mesma cronologia nos diferentes países Na Inglaterra por exemplo as formas de justiça permanecera relativamente estáveis enquanto que o conteúdo das leis o conjunto de condutas penalmente repreensíveis se modificou profundamente No século XVIII havia na Inglaterra 313 ou 315 condutas capazes de levar alguém à força ao cadafalso 315 casos punidos com a morte Isso tornava o código penal a lei penal o sistema penal inglês do século XVIII um dos mais selvagens e sangrentos que a história das civilizações conheceu Esta situação foi profundamente modificada no começo do século XIX sem que as formas e instituições judiciárias inglesas se modificassem profundamente Na França ao contrário ocorreram modificações muito profundas nas instituições penais sem que o conteúdo da lei penal se tenha modificado Em que consistem essas transformações dos sistemas penais Por um lado em uma reelaboração teórica da lei penal Ela pode ser encontrada em Beccaria Bentham Brissot e em legisladores que são os autores do 1 e do 2 Código Penal francês da época revolucionária O princípio fundamental do sistema teórico da lei penal definido por esses autores é que o crime no sentido penal do termo ou mais tecnicamente a infração não deve ter mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa A falta é uma infração à lei natural à lei religiosa à lei moral O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder político Para que haja infração é preciso haver um poder político uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada Antes da lei existir não pode haver infração Segundo esses teóricos só podem sofrer penalidade as condutas efetivamente definidas como repreensíveis pela lei Um segundo princípio é que essas leis positivas formuladas pelo poder político no interior de uma sociedade para serem boas leis não devem retranscrever em termos positivos a lei natural a lei religiosa ou a lei moral Uma lei penal deve simplesmente representar o que é útil para a sociedade A lei define como repreensível o que é nocivo à sociedade definindo assim negativamente o que é útil O terceiro princípio se deduz naturalmente dos dois primeiros uma definição clara e simples do crime O crime não é algo aparentado com o pecado e com a falta é algo que danifica a sociedade é um dano social uma perturbação um incômodo para toda a sociedade Há por conseguinte também uma nova definição do criminoso O criminoso é aquele que danifica perturba a sociedade O criminoso é o inimigo social Encontramos isso muito claramente em todos esses teóricos como também em Rousseau que afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto social Há identidade entre o crime e a ruptura do pacto social O criminoso é um inimigo interno Esta idéia do criminoso como inimigo interno como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido é uma definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade Se o crime é um dano social se o criminoso é o inimigo da sociedade como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime Se o crime é uma perturbação para a sociedade se o crime não tem mais nada a ver com a falta com a lei natural divina religiosa etc é claro que a lei penal não pode prescrever uma vingança a redenção de um pecado A lei penal deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade A lei penal deve ser feita de tal maneira que o dano causado pelo indivíduo à sociedade seja apagado se isso não for possível é preciso que o dano não possa mais ser recomeçado pelo indivíduo em questão ou por outro A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social Daí decorrem para esses teóricos quatro tipos possíveis de punição Primeiramente a punição expressa na afirmação você rompeu o pacto social você não pertence mais ao corpo social você mesmo se colocou fora do espaço da legalidade nós o expulsaremos do espaço social onde essa legalidade funciona É a idéia encontrada frequentemente nesses autores Beccaria Bentham etc de que no fundo a punição ideal seria simplesmente expulsar as pessoas exilálas banilas ou deportálas É a deportação A segunda possibilidade é uma espécie de exclusão no próprio local Seu mecanismo não é mais a deportação material a transferência para fora do espaço social mas o isolamento no interior do espaço moral psicológico público constituído pela opinião É a idéia das punições ao nível do escândalo da vergonha da humilhação de quem cometeu uma infração Publicase a sua falta mostrase a pessoa ao público suscitase no público uma reação de aversão de desprezo de condenação Esta era a pena Beccaria e outros inventaram mecanismos para provocar vergonha e humilhação A terceira pena é a reparação do dano social o trabalho forçado Ela consiste em forçar as pessoas a uma atividade útil ao Estado ou à sociedade de tal forma que o dano causado seja compensado Temse assim uma teoria do trabalho forçado Enfim em quarto lugar a pena consiste em fazer com que o dano não possa ser novamente cometido em fazer com que o indivíduo em questão ou os demais não possam mais ter vontade de causar à sociedade o dano anteriormente causado em fazêlos repugnar para sempre o crime que cometeram E para obter esse resultado a pena ideal que se ajusta na medida exata é a pena de talião Matase quem matou tomamse os bens de quem roubou quem cometeu uma violação para alguns dos teóricos do século XVIII deve sofrer algo semelhante Eis portanto uma bateria de penalidades deportação trabalho forçado vergonha escândalo público e pena de talião Projetos efetivamente apresentados não somente por teóricos puros como Beccaria mas também por legisladores como Brissot e Lepeletier de SaintFargeau que participaram da elaboração do 1 Código Penal Revolucionário Já se havia avançado bastante na organização da penalidade centrada na infração penal e na infração a uma lei representando a utilidade pública Tudo deriva daí até mesmo o quadro das penalidades e o modo como são aplicadas Têmse assim esses projetos esses textos e até esses decretos adotados pelas Assembléias Mas se observarmos o que realmente se passou como funcionou a penalidade algum tempo depois por volta de 1820 no momento da Restauração na França e da Santa Aliança na Europa percebemos que o sistema de penalidades adotado pelas sociedades industriais em vias de formação em vias de desenvolvimento foi inteiramente diferente do que tinha sido projetado alguns anos antes Não que a prática tenha desmentido a teoria porém ela se desviou rapidamente dos princípios teóricos que encontramos em Beccaria e Bentham Retomemos o sistema de penalidades A deportação desapareceu bem rapidamente o trabalho forçado foi geralmente uma pena simplesmente simbólica em sua função de reparação os mecanismos de escândalo nunca chegaram a ser postos em prática a pena de talião desapareceu rapidamente tendo sido denunciada como arcaica para uma sociedade suficientemente desenvolvida Esses projetos bem precisos de penalidade foram substituídos por uma pena bem curiosa de que Beccaria havia falado ligeiramente e que Brissot mencionava de forma bem marginal tratase do aprisionamento da prisão A prisão não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII Surge no início do século XIX como uma instituição de fato quase sem justificativa teórica Não só a prisão pena que vai efetivamente se generalizar no século XIX não estava prevista no programa do século XVIII como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria Com efeito a legislação penal desde o início do século XIX e de forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século vai se desviar do que podemos chamar a utilidade social ela não procurará mais visar ao que é socialmente útil mas pelo contrário procurará ajustarse ao indivíduo Podemos citar como exemplo às grandes reformas da legislação penal na França e demais países europeus entre 1825 e 185060 que consistem na organização do que chamamos circunstâncias atenuantes o fato da aplicação rigorosa da lei tal como se acha no Código poder ser modificada por determinação do juiz ou do júri e em função do indivíduo em julgamento O princípio de uma lei universal representando unicamente os interesses sociais é consideravelmente falseado pela utilização das circunstâncias atenuantes que vão assumindo importância cada vez maior Além disso a penalidade que se desenvolve no século XIX se propõe cada vez menos definir de modo abstrato e geral o que é nocivo à sociedade afastar os indivíduos que são nocivos à sociedade ou impedílos de recomeçar A penalidade no século XIX de maneira cada vez mais insistente tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos Esta é uma forma de penalidade totalmente diferente daquela prevista no século XVIII na medida em que o grande princípio da penalidade para Beccaria era o de que não haveria punição sem uma lei explícita e sem um comportamento explícito violando essa lei Enquanto não houvesse lei e infração explícita não poderia haver punição este era o princípio fundamental de Beccaria Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei mas ao nível do que podem fazer do que são capazes de fazer do que estão sujeitos a fazer do que estão na iminência de fazer Assim a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção em termos de teoria penal de periculosidade A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva mas das virtualidades de comportamento que elas representam O último ponto capital que a teoria penal coloca em questão ainda mais fortemente do que Beccaria é que para assegurar o controle dos indivíduos que não é mais reação penal ao que eles fizeram mas controle de seu comportamento no momento mesmo em que ele se esboça a instituição penal não pode mais estar inteiramente em mãos de um poder autônomo o poder judiciário Chegase assim à contestação da grande separação atribuída a Montesquieu ou pelo menos formulada por ele entre poder judiciário poder executivo e poder legislativo O contro le dos indivíduos essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça mas por uma série de outros poderes laterais à margem da justiça como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção a polícia para a vigilância as instituições psicológicas psiquiátricas criminológicas médicas pedagógicas para a correção É assim que no século XIX desenvolvese em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência instituições pedagógicas como a escola psicológicas ou psiquiátricas como o hospital o asilo a polícia etc Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento função não mais de punir as infrações dos indivíduos mas de corrigir suas virtualidades Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social Tratase de uma forma de poder de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente É a idade de controle social Entre os teóricos que há pouco citei alguém de certa forma previu e apresentou como que um esquema desta sociedade de vigilância da grande ortopedia social Tratase de Bentham Peço desculpas aos historiadores da filosofia por esta afirmação mas acredito que Bentham seja mais importante para nossa sociedade do que Kant Hegel etc Ele deveria ser homenageado em cada uma de nossas sociedades Foi ele que programou definiu e descreveu da maneira mais precisa as formas de poder em que vivemos e que apresentou um maravilhoso e célebre pequeno modelo desta sociedade da ortopedia generalizada o famoso Panopticon 43 Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o espírito uma espécie de instituição que deve valer para escolas hospitais prisões casas de correção hospícios fábricas etc O Panopticon era um edifício em forma de anel no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior Em cada uma dessas pequenas celas havia segundo o objetivo da instituição uma criança aprendendo a escrever um operário trabalhando um prisioneiro se corrigindo um louco atualizando sua loucura etc Na torre central havia um vigilante Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela não havia nela nenhum ponto de sombra e por conseguinte tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vêlo Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por uma série de instituições O Panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é no fundo a sociedade que atualmente conhecemos utopia que efetivamente se realizou Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo O panoptismo é uma forma de poder que repousa não mais sobre um inquérito mas sobre algo totalmente diferente que eu chamaria de exame O inquérito era um procedimento pelo qual na prática judiciária se procurava saber o que havia ocorrido Tratavase de reatualizar um acontecimento passado através de testemunhos apresentados por pessoas que por uma ou outra razão por sua sabedoria ou pelo fato de terem 44 presenciado o acontecimento eram tidas como capazes de saber No Panopticon vai se produzir algo totalmente diferente não há mais inquérito mas vigilância exame Não se trata de reconstituir um acontecimento mas de algo ou antes de alguém que se deve vigiar sem interrupção e totalmente Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder mestreescola chefe de oficina médico psiquiatra diretor de prisão e que enquanto exerce esse poder tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir sobre aqueles que vigia a respeito deles um saber Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou não mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve conforme ou não à regra se progride ou não etc Esse novo saber não se organiza mais em torno das questões isto foi feito quem o fez não se ordena em termos de presença ou ausência de existência ou não existência Ele se ordena em torno da norma em termos do que é normal ou não correto ou não do que se deve ou não fazer Temse portanto em oposição ao grande saber de inquérito organizado no meio da Idade Média através da confiscação estatal da justiça que consistia em obter os instrumentos de reatualização de fatos através do testemunho um novo saber de tipo totalmente diferente um saber de vigilância de exame organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência Esta é a base do poder a forma de saberpoder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito mas ao que chamamos ciências humanas Psiquiatria Psicologia Sociologia etc Gostaria agora de analisar como isso se deu Como se chegou a ter por um lado determinada teoria penal que programa claramente certo número de coisas e por outro uma prática real social que conduziu a resultados totalmente diferentes Tomarei sucessivamente dois exemplos que se encontram entre os mais importantes e determinantes deste processo o da Inglaterra e o da França deixarei de lado o exemplo dos Estados Unidos que é também importante Gostaria de mostrar como na França e sobretudo na Inglaterra existiu uma série de mecanismos de controle controle da população controle permanente do comportamento dos indivíduos Esses mecanismos se formaram obscuramente durante o século XVIII para responder a certo número de necessidades e assumindo cada vez maior importância se estenderam finalmente por toda a sociedade e se impuseram a uma prática penal Quais são de onde vêm e a que respondem esses mecanismos de controle Tomemos o exemplo da Inglaterra Desde a segunda metade do século XVIII se formaram em níveis relativamente baixos da escala social grupos espontâneos de pessoas que se atribuíam sem nenhuma delegação de um poder superior a tarefa de manter a ordem e criar para eles próprios novos instrumentos para assegurar a ordem Esses grupos eram numerosos e proliferaram durante todo o século XVIII Seguindo uma ordem cronológica houve em primeiro lugar comunidades religiosas dissidentes do anglicanismo os quakers os metodistas que se encarregavam de organizar sua própria polícia É assim que entre os metodistas Wesley por exemplo visitava um pouco como os bispos da Alta Idade Média as comunidades metodistas em viagem de inspeção A ele eram submetidos todos os casos de desordem embriaguez adultério recusa de trabalhar etc As sociedades de amigos de inspiração quaker funcionavam de forma semelhante Todas essas sociedades tinham a dupla tarefa de vigilância e de assistência Elas se atribuíam a tarefa de assistir os que não 45 possuíam meios de subsistência os que não podiam trabalhar porque eram muito velhos enfermos doentes mentais etc Mas ao mesmo tempo em que os assistiam elas se atribuíam a possibilidade e o direito de observar em que condições era dada a assistência observar se o indivíduo que não trabalhava estava efetivamente doente se sua pobreza e miséria eram devidas à devassidão à bebedeira aos vícios etc Tratavase portanto de grupos de vigilância espontânea com origem funcionamento e ideologia profundamente religiosos Houve em segundo lugar ao lado destas comunidades propriamente religiosas sociedades a elas aparentadas embora mantendo uma certa distância um certo afastamento Por exemplo em fins do século XVII em 1692 na Inglaterra deuse a fundação de uma sociedade que se chamava de forma bem característica Sociedade para a Reforma das Maneiras do comportamento da conduta Tratase de uma sociedade muito importante que tinha na época da morte de Guilherme III cem filiais na Inglaterra e dez na Irlanda apenas na cidade de Dublin Essa sociedade que desapareceu no início do século XVIII e reapareceu sob a influência de Wesley na segunda metade do século se propunha a reformar as maneiras fazer respeitar o domingo é em grande parte à ação dessas grandes sociedades que devemos o exciting domingo inglês impedir o jogo a bebedeira reprimir a prostituição o adultério as imprecações as blasfêmias tudo que pudesse manifestar desprezo para com Deus Tratavase como diz Wesley em seus sermões de impedir a classe mais baixa e mais vil de se aproveitar dos jovens sem experiência e lhes extorquir seu dinheiro Em fins do século XVIII esta sociedade é superada em importância por uma outra inspirada por um bispo e determi nados aristocratas da corte chamada Sociedade da Proclamação por ter conseguido do rei uma proclamação para o encorajamento da piedade e da virtude Essa sociedade em 1802 se transforma e recebe o título característico de Sociedade para a Supressão do Vício tendo por objetivo fazer respeitar o domingo impedir a circulação dos livros licenciosos e obscenos introduzir ações na justiça contra a má literatura e mandar fechar as casas de jogo e de prostituição Esta sociedade ainda que de funcionamento essencialmente moral próxima dos grupos religiosos já era entretanto um pouco laicizada Em terceiro lugar encontramos no século XVIII na Inglaterra outros grupos mais interessantes e mais inquietantes grupos de autodefesa de caráter paramilitar Eles surgiram em resposta às primeiras grandes agitações sociais não ainda proletárias aos grandes movimentos políticos sociais ainda com forte conotação religiosa do fim do século XVIII na Inglaterra particularmente o dos partidários de Lord Gordon Em resposta a essas grandes agitações populares os meios mais afortunados a aristocracia a burguesia se organizam em grupos de autodefesa É assim que uma série de associações a Infantaria Militar de Londres a Companhia de Artilharia etc se organizam espontaneamente sem apoio ou com apoio lateral do poder Elas têm por função fazer reinar a ordem política penal ou simplesmente a ordem em um bairro uma cidade uma região ou um condado Em uma última categoria de sociedade estão as sociedades propriamente econômicas As grandes companhias as grandes sociedades comerciais se organizam em sociedades de polícia de polícia privada para defender seu patrimônio seu estoque suas mercadorias os barcos ancorados no porto de Londres contra os amotinadores o banditismo a pilhagem cotidiana os pequenos ladrões Estas polícias dividiam bairros de Londres ou de grandes cidades como Liverpool em organizações privadas Essas sociedades respondiam a uma necessidade demográfica ou social à urbanização ao grande deslocamento de populações do campo para as cidades respondiam também e voltaremos a esse assunto a uma transformação econômica importante a uma nova forma de acumulação da riqueza na medida em que quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque de mercadoria armazenada de máquinas tornase necessário guardar vigiar e garantir sua segurança respondiam enfim a uma nova situação política às novas formas de revoltas populares que de origem essencialmente camponesa nos séculos XVI e XVII se tornam agora grandes revoltas urbanas populares e em seguida proletárias É interessante observar a evolução dessas associações espontâneas na Inglaterra do século XVIII Há um triplo deslocamento ao longo desta história Consideremos o primeiro deslocamento No início estes grupos eram quase populares da pequena burguesia Os quakers e metodistas do fim do século XVII e início do século XVIII que se organizavam para tentar tentar suprimir os vícios reformar as maneiras eram pequenos burgueses que se agrupavam visando evidentemente fazer reinar a ordem entre eles e em volta deles Mas essa vontade de fazer reinar a ordem era no fundo uma forma de escapar ao poder político pois este detinha um instrumento formidável aterrorizador e sanguinário sua legislação penal Em mais de 300 casos com efeito se podia ser enforcado Isto significa que era muito fácil para o poder para a aristocracia para os que detinham o aparelho judiciário exercer pressões terríveis sobre as camadas populares Compreendese como os grupos religiosos dissidentes tinham interesse em tentar escapar desse poder judiciário tão sanguinário e ameaçador Para escapar desse poder judiciário os indivíduos se organizavam em sociedades de reforma moral proibiam a embriaguez a prostituição o roubo etc tudo o que permitisse ao poder atacar o grupo destruilo usar algum pretexto para enviar à força Tratase portanto mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva Esse reforço da penalidade autônoma era uma maneira de escapar à penalidade estatal Ora no decorrer do século XVIII esses grupos vão mudar de inserção social e cada vez mais abandonar seu recrutamento popular ou pequeno burguês No fim do século XVIII são a aristocracia os bispos os duques as pessoas mais ricas que vão suscitar esses grupos de autodefesa moral essas ligas para a supressão dos vícios Temse assim um deslocamento social que indica perfeitamente como esse empreendimento de reforma moral deixa de ser uma autodefesa penal para se tornar ao contrário um reforço do poder da própria autoridade penal Ao lado do temível instrumento penal que possu i o poder vai se atribuir esses instrumentos de pressão de controle Tratase de certo modo de um mecanismo de estatização dos grupos de controle O segundo deslocamento consiste no seguinte enquanto no primeiro grupo tratavase de fazer reinar uma ordem moral diferente da lei que permitisse aos indivíduos escapar à lei no fim do século XVIII esses grupos agora controlados animados pelos aristocratas e pessoas ricas têm como objetivo essencial obter do poder político novas leis que ratificarão esse esforço moral Temse assim um deslocamento da moralidade à penalidade Em terceiro lugar podese dizer que a partir de então esse controle moral vai ser exercido pelas classes mais altas pelos detentores do poder pelo próprio poder sobre as camadas mais baixas mais pobres as camadas populares Ele se torna assim um instrumento de poder das classes ricas sobre as classes pobres das classes que exploram sobre as classes exploradas o que confere uma nova polaridade política e social a essas instâncias de controle Citarei um texto datado de 1804 do fim dessa evolução que tento delinear escrito por um bispo chamado Watson e que pregava perante a Sociedade para a Supressão dos Vícios As leis são boas mas infelizmente são burladas pelas classes mais baixas As classes mais altas certamente não as levam muito em consideração Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas Impossível ser mais claro as leis são boas para os pobres infelizmente os pobres escapam às leis o que é realmente detestável Os ricos também escapam às leis porém isso não tem importância alguma pois as leis não foram feitas para eles No entanto isso tem como consequência que os pobres seguem o exemplo dos ricos para não respeitar as leis Daí o bispo Watson dizer aos ricos Peçolhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres Podemos observar nesta estatização progressiva neste deslocamento das instâncias de controle das mãos dos grupos de pequena burguesia tentando escapar ao poder para as do grupo social que detém efetivamente o poder em toda essa evolução como se introduz e se difunde em um sistema penal estatizado que ignorava por definição a moral e pretendia cortar os laços com a moralidade e a religião uma moralidade de origem religiosa A ideologia religiosa surgida e fomentada nos pequenos grupos quakers metodistas etc na Inglaterra do fim do século XVII vem agora despontar no outro pólo na outra extremidade da escala social do lado do poder como instrumento de controle de cima para baixo Autodefesa no século XVII instrumento de poder no início do século XIX Este é o mecanismo do processo que podemos observar na Inglaterra Na França ocorreu um processo bastante diferente Isto se explica pelo fato de que a França país de monarquia absoluta possuía um forte aparelho de Estado que a Inglaterra do século XVIII já não possuía na medida em que havia sido abalado em parte pela revolução burguesa do século XVII A Inglaterra havia se libertado dessa monarquia absoluta saltando esta etapa em que a França permaneceu durante cento e cinquenta anos Esse forte aparelho do estado monárquico na França estava apoiado em um duplo instrumento um instrumento judiciário clássico os parlamentares as cortes etc e um instrumento parajudiciário a polícia cuja invenção é privilégio da França Uma polícia que comportava os intendentes o corpo de polícia montada os tenentes de polícia que era dotada de instrumentos arquiteturais como a Bastilha Bicêtre as grandes prisões etc que possuía também seus aspectos institucionais como as curiosas lettresdecachet A lettredecachet não era uma lei ou um decreto mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa individualmente obrigandoa a fazer alguma coisa Podiase até mesmo obrigar alguém a se casar pela lettredecachet Na maioria das vezes porém ela era um instrumento de punição Podiase exilar alguém pela lettredecachet priválo de alguma função prendêlo etc Ela era um dos grandes instrumentos de poder da monarquia absoluta As lettresdecachet foram bastante estudadas na França e se tornou comum classificálas como algo temível instrumento de arbitrariedade real abatendose sobre alguém como um raio podendo prendêlo para sempre É preciso ser mais prudente e dizer que as lettresdecachet não funcionaram apenas desta forma Tal como vimos ocorrer com as sociedades de moralidade que eram uma maneira de escapar ao direito podemos observar a respeito das lettresdecachet um jogo bastante curioso Ao examinar as lettresdecachet mandadas pelo rei em quantidade bastante numerosa notamos que na maioria das vezes não era ele que tomava a decisão de enviálas Ele o fazia em alguns casos como nos assuntos de Estado Mas a maioria delas as dezenas de milhares de lettresdecachet enviadas pela monarquia eram na verdade solicitadas por indivíduos diversos maridos ultrajados por suas esposas pais de família descontentes com seus filhos famílias que queriam se livrar de um indivíduo comunidades religiosas perturbadas por alguém uma comuna descontente com seu cura etc Todos esses indivíduos ou pequenos grupos pediam ao intendente do rei uma lettredecachet este fazia um inquérito para saber se o pedido era justificado Quando isto ocorria ele escrevia ao ministro do rei encarregado do assunto solicitando enviar uma lettredecachet permitindo a alguém mandar prender sua mulher que o engana seu filho que é muito gastador sua filha que se prostitui ou o cura da cidade que não demonstra boa conduta etc De forma que a lettredecachet se apresenta sob seu aspecto de instrumento terrível da arbitrariedade real investida de uma espécie de contra poder poder que vinha de baixo e que permitia a grupos comunidades famílias ou indivíduos exercer um poder sobre alguém Eram instrumentos de controle de certa forma espontâneos controle por baixo que a sociedade a comunidade exercia sobre si mesma A lettredecachet consistia portanto em uma forma de regulamentar a moralidade cotidiana da vida social uma maneira do grupo ou dos grupos familiares religiosos paroquiais regionais locais etc assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem Observando as condutas que suscitavam o pedido de lettredecachet e que eram sancionadas por ela podemos distinguir três categorias Em primeiro lugar a categoria do que poderíamos chamar de condutas de imoralidade devassidão adultério sodomia bebedeira etc Tais condutas provocavam da parte das famílias e comunidades um pedido de lettredecachet que era imediatamente aceito Temos portanto aqui a repressão moral Em segundo lugar há as lettresdecachet enviadas para sancionar condutas religiosas julgadas perigosas e dissidentes Desta forma é que se prendiam os feiticeiros que há bastante tempo não eram mais mortos nas fogueiras Em terceiro lugar é interessante notar que no século XVIII as lettresdecachet foram bastante utilizadas em casos de conflitos de trabalho Quando os empregadores patrões ou mestres não estavam satisfeitos com seus aprendizes ou operários nas corporações podiam se descartar deles expulsandoos ou em casos mais raros solicitando uma lettredecachet A primeira greve da história da França que pode assim ser caracterizada foi a dos relojoeiros em 1724 Os patrões relojoeiros reagiram a ela localizando os que eles consideravam líderes e em seguida escreveram ao rei solicitando uma lettredecachet que foi logo enviada Algum tempo depois o ministro do rei quis anular a lettredecachet e libertar os operários grevistas Foi a própria corporação dos relojoeiros que então solicitou ao rei que não libertasse os operários e fosse mantida a lettredecachet Vemos portanto como os controles sociais relativos aqui não mais à moralidade ou à religião mas a problemas de trabalho se exercem por baixo e por intermédio do sistema de lettredecachet sobre a população operária que está surgindo No caso da lettredecachet ser punitiva ela tinha como resultado a prisão do indivíduo É interessante notar que a prisão não era uma pena do direito no sistema penal dos séculos XVII e XVIII Os le g i s l a s são perfeitamente claros a este respeito Eles afirmam que quando a lei pune alguém a punição será a condenação à morte a ser queimado a ser esquartejado a ser marcado a ser banido a pagar uma multa etc A prisão não é uma punição A prisão que vai se tornar a grande punição do século XIX tem sua origem precisamente nesta prática parajudiciária da lettredecachet utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos Quando uma lettredecachet era enviada contra alguém esse alguém não era enforcado nem marcado nem tinha de pagar uma multa Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente Raramente a lettredecachet dizia que alguém deveria ficar preso por seis meses ou um ano por exemplo Em geral ele determinava que alguém deveria ficar retido até nova ordem e a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a lettredecachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinha se corrigido Esta idéia de aprisionar para corrigir de conservar a pessoa presa até que se corrija essa idéia paradoxal bizarra sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano tem origem precisamente nesta prática 99 Aparece também a idéia de uma penalidade que tem por função não ser uma resposta a uma infração mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos de suas atitudes de suas disposições do perigo que apresentam das virtualidades possíveis Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos de penalidade que procura corrigilos pela reclusão e pelo internamento não pertence na verdade ao universo do Direito não nasce da teoria jurídica do crime não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria Essa idéia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma idéia policial nascida paralelamente à justiça fora da justiça em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder Gostaria agora depois dessas duas análises de tirar algumas conclusões provisórias que procurarei utilizar na próxima conferência Os dados do problema são os seguintes Como o conjunto teórico das reflexões sobre o direito penal que deveria conduzir a determinadas conclusões foi de fato posto em desordem e encoberto por uma prática penal totalmente diferente que teve sua própria elaboração teórica no século XIX quando a teoria da punição a criminologia etc foram retomadas Como a grande lição de Beccaria pode ser esquecida relegada e finalmente abafada por uma prática da penalidade totalmente diferente baseada nos indivíduos em seus comportamentos e virtualidades com a função de corrigilos Pareceme que a origem disso se encontra em uma prática extrapenal Na Inglaterra foram os próprios grupos que para escapar ao direito penal se atribuíram instrumentos de controle que foram finalmente confiscados pelo poder central Na França onde a estrutura do poder político era 100 diferente os instrumentos estatais estabelecidos no século XVII pelo poder real para controlar a aristocracia a burguesia e os amotinadores foram reutilizados de baixo para cima por grupos sociais É então que se põe a questão de saber o por que desse movimento desses grupos de controle a questão de saber a que eles respondiam Vimos a que necessidades originárias eles respondiam mas porque tiveram esse destino por que sofreram esse deslocamento por que o poder ou aqueles que o detinham retomaram esses mecanismos de controle situados ao nível mais baixo da população Para tanto é preciso levar em consideração um fenômeno importante a nova forma assumida pela produção O que está na origem do processo que procurei analisar é a materialidade da riqueza Na verdade o que surge na Inglaterra do fim do século XVIII muito mais aliás do que na França é o fato da fortuna da riqueza se investir cada vez mais no interior de um capital que não é mais pura e simplesmente monetário A riqueza dos séculos XVI e XVII era essencialmente constituída pela fortuna de terras por espécies monetárias ou eventualmente por letras de câmbio que os indivíduos podiam trocar No século XVIII aparece uma forma de riqueza que é agora investida no interior de um novo tipo de materialidade não mais monetária que é investida em mercadorias estoques máquinas oficinas matériasprimas mercadorias que estão para ser expedidas etc E o nascimento do capitalismo ou a transformação e aceleração da instalação do capitalismo vai se traduzir neste novo modo da fortuna se investir materialmente Ora essa fortuna constituída de estoques matériasprimas objetos importados máquinas oficinas etc está diretamente exposta à depredação Toda essa população de gente pobre de desempregados de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de contato direto físico com a fortuna com a riqueza O roubo dos navios a pilhagem dos armazéns e dos estoques as depredações nas oficinas tornaramse comuns no fim do século XVIII na Inglaterra E justamente o grande problema do poder na Inglaterra nesta época é o de instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material da fortuna Daí se compreende porque o criador da polícia na Inglaterra Colquhoun era alguém que a princípio foi comerciante sendo depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres A polícia de Londres nasceu da necessidade de proteger as docas entrepostos armazéns estoques etc Esta é a primeira razão muito mais forte na Inglaterra do que na França do aparecimento da necessidade absoluta desse controle Em outras palavras esta é a razão porque esse controle com um funcionamento de base quase popular foi retomado de cima em determinado momento A segunda razão é que tanto na França quanto na Inglaterra a propriedade de terras vai mudar igualmente de forma com a multiplicação da pequena propriedade a divisão e delimitação das propriedades O fato de não mais haver a partir daí grandes espaços desertos ou quase não cultivados nem terras comuns sobre as quais todos podem viver vai dividir a propriedade fragmentála fechála em si mesma e expor cada proprietário a depredações E sobretudo entre os franceses haverá essa perpétua idéia fixa da pilhagem camponesa da pilhagem da terra desses vagabundos e trabalhadores agrícolas frequentemente desempregados na miséria vivendo como podem roubando cavalos frutas legumes etc Um dos grandes problemas da Revolução Francesa foi o de fazer desaparecer esse tipo de rapina campo 102 nesa As grandes revoltas políticas da 2ª parte da Revolução Francesa na Vendéia e na Provença foram de certa forma o resultado político de um malestar dos pequenos camponeses dos trabalhadores agrícolas que não encontravam mais nesse novo sistema de divisão da propriedade os meios de existência que tinham no regime de grandes propriedades agrícolas Foi portanto essa nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou necessários novos controles sociais no fim do século XVIII Esses novos sistemas de controle social agora estabelecidos pelo poder pela classe industrial pela classe dos proprietários foram justamente tomados dos controles de origem popular ou semipopular a que foi dada uma versão autoritária e estatal Esta é a meu ver a origem da sociedade disciplinar Tentarei explicar na próxima conferência como esse movimento de que mostrei apenas o esboço no século XVIII foi institucionalizado e se tornou uma forma de relação política interna da sociedade do século XIX 103 V Na última conferência procurei definir o que chamei de panoptismo O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção isto é de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas Este tríplice aspecto do panoptismo vigilância controle e correção parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade Em uma sociedade como a sociedade feudal não se encontra nada de semelhante ao panoptismo Isto não quer dizer que em uma sociedade de tipo feudal ou nas sociedades européias do século XVII não tenha havido instâncias de controle social e de punição e recompensa Entretanto a maneira pela qual elas se distribuíam era completamente diferente da maneira através da qual elas se instalaram no fim do século XVIII e no começo do século XIX Vivemos hoje em uma sociedade programada no fundo por Bentham uma sociedade panóptica sociedade onde reina o panoptismo Tentarei mostrar nesta conferência que o aparecimento do panoptismo comporta uma espécie de paradoxo No mo mento mesmo em que ele aparece ou mais exatamente nos anos que precederam imediatamente seu surgimento vemos formarse uma certa teoria do Direito Penal da penalidade da punição de que Beccaria é o representante mais importante que se funda essencialmente em um legalismo estrito Esta teoria da punição subordina o fato de punir a possibilidade de punir à existência de uma lei explícita à constatação explícita de uma infração a esta lei e finalmente a uma punição que teria por função reparar ou prevenir na medida do possível o dano causado pela infração à sociedade Esta teoria legalista teoria propriamente social quase coletiva se opõe inteiramente ao panoptismo No panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz mas do que se é não do que se faz mas do que se pode fazer Nele a vigilância tende cada vez mais a individualizar o autor do ato deixando de considerar a natureza jurídica a qualificação penal do próprio ato O panoptismo opõese portanto à teoria legalista que se formara nos anos precedentes De fato o que é importante observar e o que constitui um fato histórico importante é que esta teoria legalista foi duplicada em um primeiro momento e posteriormente encoberta e totalmente obscurecida pelo panoptismo que se formara à sua margem ou a seu lado É o nascimento do panoptismo que se forma e que é movido por uma força de deslocamento desde o século XVII até o século XIX ao longo do espaço social é esta retomada pelo poder central dos mecanismos populares de controle que caracteriza a evolução do século XVIII e que explica como começa no início do século XIX a era de um panoptismo que vai ofuscar toda a prática e até certo ponto toda a teoria do Direito Penal Para justificar as teses que estou apresentando gostaria de referirme a algumas autoridades As pessoas do começo do século XIX ou pelo menos algumas delas não ignoraram o aparecimento do que chamei um pouco arbitrariamente mas em todo caso em homenagem a Bentham de panoptismo Na verdade várias pessoas refletiram e ficaram muito intrigadas com o que estava acontecendo em sua época com a organização da penalidade ou da moral estatal Há um autor muito importante na época professor na Universidade de Berlim e colega de Hegel que escreveu e publicou em 1830 um grande tratado em vários volumes chamado Lições sobre as Prisões Este homem chamado Giulius cuja leitura lhes recomendo e que durante vários anos deu um curso em Berlim sobre as prisões é um personagem extraordinário que tinha em certos momentos um fôlego quase hegeliano Nas Lições sobre as Prisões há uma passagem que diz Os arquitetos modernos estão descobrindo uma forma que não era conhecida antigamente Outrora diz ele referindose à civilização grega a grande preocupação dos arquitetos era de resolver o problema de como possibilitar o espetáculo de um acontecimento de um gesto de um único indivíduo ao maior número possível de pessoas É o caso diz Giulius do sacrifício religioso acontecimento único de que deve participar o maior número possível de pessoas é também o caso do teatro que deriva aliás do sacrifício dos jogos circenses dos oradores e dos discursos Ora diz ele esse problema presente na sociedade grega na medida em que esta era uma comunidade que participava dos acontecimentos fortes que formavam a sua unidade sacrifícios religiosos teatro ou discursos políticos continuou a dominar a civilização ocidental até a época moderna O problema das igrejas é ainda exatamente o mesmo Todos devem presenciar ou todos devem servir de audiência no caso do sacrifício da missa ou da palavra do padre Atualmente continua Giulius o problema fundamental que se apresenta para a arquitetura moderna é o inverso Querse fazer com que o maior número de pessoas seja oferecido como espetáculo a um só indivíduo encarregado de vigiálas Ao escrever isto Giulius estava pensando no Panopticon de Bentham e de maneira geral na arquitetura das prisões e até certo ponto dos hospitais das escolas etc Ele estava se referindo ao problema de uma arquitetura não mais do espetáculo como a grega mas de uma arquitetura da vigilância que permite a um único olhar percorrer o maior número de rostos de corpos de atitudes o maior número de celas possíveis Ora diz Giulius o aparecimento deste problema arquitetônico é correlato ao desaparecimento de uma sociedade que vivia sob a forma de uma comunidade espiritual e religiosa e ao aparecimento de uma sociedade estatal O Estado se apresenta como uma certa disposição espacial e social dos indivíduos em que todos estão submetidos a uma única vigilância Ao concluir sua explanação sobre estes dois tipos de arquitetura Giulius afirma que não se trata de um simples problema de arquitetura e que esta diferença é capital na história do espírito humano Giulius não foi o único a perceber no seu tempo este fenômeno da inversão do espetáculo em vigilância ou do nascimento de uma sociedade do panoptismo Em muitos textos encontramse análises do mesmo tipo Citarei apenas um destes textos escrito por Treilhard conselheiro de Estado jurista do Império que é a apresentação do Código de Instrução Criminal de 1808 Neste texto Treilhard afirma O Código de Instrução Criminal que lhes apresento constitui uma verdadeira novidade não somente na história da justiça da prática judiciária mas das sociedades humanas Nele nós damos ao procurador que representa o poder estatal ou o poder social frente aos acusados um papel completamente novo E Treilhard utiliza uma metáfora O procurador não deve ter como função apenas perseguir os indivíduos que cometeram infrações sua função principal e primeira deve ser a de vigiar os indivíduos antes mesmo que a infração seja cometida O procurador não é apenas o agente da lei que age quando esta é violada o procurador é antes de tudo um olhar um olho perpetuamente aberto sobre a população O olho do procurador deve transmitir as informações ao olho do Procurador Geral que por sua vez as transmite ao grande olho da vigilância que era na época o Ministro da Polícia Este último transmite as informações ao olho daquele que se encontra no ponto mais alto da sociedade o imperador que precisamente na época era simbolizado por um olho O imperador é o olho universal voltado sobre a sociedade em toda a sua extensão Olho auxiliado por uma série de olhares dispostos em forma de pirâmide a partir do olho imperial e que vigiam toda a sociedade Para Treilhard para os legistas do Império para aqueles que fundaram o Direto Penal francês que teve infelizmente muita influência no mundo inteiro esta grande pirâmide de olhares consistia na nova forma de justiça Não analisarei aqui todas as instituições em que são atualizadas essas características do panoptismo próprias da sociedade moderna industrial capitalista Gostaria simplesmente de apreender este panoptismo esta vigilância na base no lugar em que aparece talvez menos claramente em que está mais afastado do centro da decisão do poder do Estado mostrar como este panoptismo existe ao nível mais simples e no funcionamento quotidiano de instituições que enquadram a vida e os corpos dos indivíduos o panoptismo ao nível portanto da existência individual Em que consistia e sobretudo para que servia o panoptismo Vou propor uma adivinhação Apresentarei o regulamento de uma instituição que realmente existiu nos anos 184045 na França no começo portanto do período que estou analisando Darei o regulamento sem dizer se é uma fábrica uma prisão um hospital psiquiátrico um convento uma escola um quartel é preciso adivinhar de que instituição se trata Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não eram casadas e que deviam levantarse todas as manhãs às cinco horas às cinco e cinquenta deveriam ter terminado de fazer a toilette a cama e ter tomado o café às seis horas começava o trabalho obrigatório que terminava às oito e quinze da noite com uma hora de intervalo para o almoço às oito e quinze jantar oração coletiva o recolhimento aos dormitórios era às nove horas em ponto O domingo era um dia especial o artigo cinco do regulamento desta instituição dizia Queremos guardar o espírito que o domingo deve ter isto é dedicálo ao cumprimento do dever religioso e ao repouso Entretanto como o tédio não demoraria a tornar o domingo mais cansativo do que os outros dias da semana deverão ser feitos exercícios diferentes de modo a passar este dia cristã e alegremente de manhã exercícios religiosos em seguida exercícios de leitura e de escrita e finalmente recreação às últimas horas da manhã à tarde catecismo as vésperas e passeio depois das quatro horas se não fizesse frio Caso fizesse frio leitura em comum Os exercícios religiosos e a missa não eram assistidos na igreja próxima porque isto permitiria aos pensionistas deste estabelecimento terem contato com o mundo exterior assim para que nem mesmo a igreja fosse o lugar ou o pretexto de um contato com o mundo exterior os serviços religiosos tinham lugar em um capela construída no interior do estabelecimento A igreja paroquial diz ainda este regulamento poderia ser um ponto de contato com o mundo e por isso uma capela foi consagrada no interior do estabelecimento Os fiéis de fora não eram sequer admitidos Os pensionistas só podiam sair do estabelecimento durante os passeios de domingo mas sempre sob a vigilância do pessoal religioso Este pessoal vigiava os passeios os dormitórios e assegurava a vigilância e a exploração das oficinas O pessoal religioso garantia portanto não só o controle do trabalho e da moralidade mas também o controle econômico Estes pensionistas não recebiam salários mas um prêmio uma soma global estipulada entre 40 e 80 francos por ano que somente lhes era dado no momento em que saíam No caso de uma pessoa de outro sexo precisar entrar no estabelecimento por razões materiais econômicas etc deveria ser escolhida com o maior cuidado e permanecer por muito pouco tempo O silêncio lhes era imposto sob pena de expulsão De um modo geral os dois princípios de organização segundo o regulamento eram os pensionistas nunca deveriam estar sozinhos no dormitório no refeitório na oficina ou no pátio e deveria ser evitada qualquer mistura com o mundo exterior devendo reinar no estabelecimento um único espírito Que instituição era esta No fundo a questão não tem importância pois poderia ser indiferentemente qualquer uma uma instituição para homens ou para mulheres para jovens ou para adultos uma prisão um internato uma escola ou uma casa de correção Não é um hospital pois falase muito em trabalho Também não é um quartel pois se trabalha Poderia ser um hospital psiquiátrico ou mesmo uma casa de tolerância Na verdade era simplesmente uma fábrica Uma fábrica de mulheres que existia na região do Ródano e que comportava quatrocentos operárias Alguém poderia dizer que este é um exemplo caricatural que faz rir uma espécie de utopia As fábricasprisões as fábricasconventos fábricas sem salário onde o tempo do operário é inteiramente comprado de uma vez por todas por um prêmio anual que só é recebido na saída Tratase de um sonho de patrão ou do que o desejo do capitalista sempre produziu ao nível dos fantasmas um casolimite que nunca teve existência histórica real A isso eu responderia Este sonho patronal este Panopticon industrial existiu realmente e em larga escala no início do século XIX Em uma única região da França no sudeste havia 40000 operárias téxteis que trabalhavam neste regime o que era naquele momento um número evidentemente considerável Existiu também o mesmo tipo de instituições em outras regiões e em outros países na Suíça em particular e na Inglaterra Aliás foi assim que Owen teve a idéia de suas reformas Nos Estados Unidos havia um complexo inteiro de fábricas téxteis organizadas segundo o modelo das fábricasprisões fábricaspensionatos fábricasconventos Tratase pois de um fenômeno que teve na época uma amplitude econômica e demográfica muito grande De tal maneira que podemos dizer que não somente tudo isso foi o sonho do patronato mas foi o sonho realizado do patronato De fato há duas espécies de utopia as utopias proletárias socialistas que têm a propriedade de nunca se realizarem e as utopias capitalistas que têm a má tendência de se realizarem frequentemente A utopia de que falo a fábricaprisão foi realmente realizada E não somente foi realizada na indústria mas em uma série de instituições que surgiam na mesma época Instituições que no fundo obedeciam aos mesmos modelos e aos mesmos princípios de funcionamento instituições do tipo pedagógico como escolas orfanatos centros de formação instituições correcionais como a prisão a casa de recuperação a casa de correção instituições ao mesmo tempo correcionais e terapêuticas como o hospital o hospital psiquiátrico tudo o que os americanos chamam de asylums asilos e que um historiador americano analisou em um livro recente Neste livro se procurou analisar como nos Estados Unidos apareceram esses edifícios e essas instituições que se espalharam por toda a sociedade ocidental Esta história começa a ser feita para os Estados Unidos será preciso fazêla também para outros países tentando sobretudo dar a medida de sua importância medir sua amplitude política e econômica É preciso ir ainda mais longe Não somente houve estas instituições industriais e a seu lado uma série de outras instituições mas de fato o que se passou foi que estas instituições industriais foram em um certo sentido aperfeiçoadas foi na sua construção que se concentraram os esforços imediatamente elas é que estavam sendo visadas pelo capitalismo No entanto muito depressa elas pareceram não ser viáveis nem governáveis A carga econômica destas instituições revelouse imediatamente muito pesada e a estrutura rígida dessas fábricasprisões levou muito depressa muitas delas à ruína Finalmente todas desapareceram Com efeito no momento em que houve uma crise de produção em que foi preciso desempregar um certo número de operários em que foi preciso readaptar a produção no momento em que o ritmo do crescimento da produção se acelerou essas casas enormes com um número fixo de operários e uma aparelhagem montada de forma definitiva revelaramse absolutamente não válidas Preferiuse fazer desaparecer estas instituições conservandose de algum modo certas funções que elas desempenhavam Organizaramse técnicas laterais ou marginais para assegurar no mundo industrial as funções de internamento de reclusão de fixação da classe operária desempenhadas inicialmente por estas instituições rígidas quiméricas um pouco utópicas Foram tomadas então medidas como a da criação de cidades operárias de caixas econômicas de caixas de assistência etc de uma série de meios pelos quais se tentou fixar a população operária o 55 proletariado em formação no corpo mesmo do aparelho de produção A pergunta que precisaria ser respondida é a seguinte A que é que se visava com esta instituição da reclusão em suas duas formas a forma compacta forte encontrada no início do século XIX e mesmo depois em instituições como escolas hospitais psiquiátricos casas de correção prisões etc e em seguida a reclusão em sua forma branda difusa encontrada em instituições como a cidade operária a caixa econômica a caixa de assistência etc À primeira vista poderseia dizer que esta reclusão moderna que aparece no século XIX nas instituições a que me refiro é uma herança direta das duas correntes ou tendências que encontramos no século XVIII Por um lado a técnica francesa do internamento e por outro o procedimento de controle de tipo inglês Na conferência anterior se tentou mostrar como na Inglaterra a vigilância social tivera origem no controle exercido no interior do grupo religioso pelo próprio grupo e isto especialmente nos grupos religiosos dissidentes e como na França a vigilância e o controle social eram exercidos por um aparelho de Estado aliás fortemente investido de interesses particulares que tinha como sanção principal o internamento nas prisões ou em outras instituições de reclusão Portanto poderseia dizer que a reclusão do século XIX é uma combinação de controle moral e social nascido na Inglaterra com a instituição propriamente francesa e estatal da reclusão em um local em um edifício em uma instituição em uma arquitetura Entretanto o fenômeno que aparece no século XIX se apresenta apesar disso tudo como uma novidade tanto em relação ao modo de controle inglês quanto em relação à reclusão francesa No sistema inglês do século XVIII o controle é exercido pelo grupo sobre um indivíduo ou sobre indivíduos pertencentes a este grupo Esta era a situação ao menos em seu momento inicial no fim do século XVII e início do século XVIII Os quakers os metodistas exerciam o controle sempre sobre aqueles que pertenciam aos seus próprios grupos ou sobre aqueles que se encontravam no espaço social ou econômico do próprio grupo Só mais tarde é que as instâncias deslocaramse para cima e para o Estado Era o fato de um indivíduo pertencer a um grupo que fazia com que ele pudesse ser vigiado e vigiado pelo próprio grupo Já nas instituições que se formam no século XIX não é de forma alguma na qualidade de membro de um grupo que o indivíduo é vigiado ao contrário é justamente por ser um indivíduo que ele se encontra colocado em uma instituição sendo esta instituição que vai constituir o grupo a coletividade que será vigiada É enquanto indivíduo que se entra na escola é enquanto indivíduo que se entra no hospital ou que se entra na prisão A prisão o hospital a escola a oficina não são formas de vigilância do próprio grupo É a estrutura de vigilância que chamando para si os indivíduos tomandoos individualmente integrandoos vai constituilos secundariamente enquanto grupo Vemos portanto como na relação entre a vigilância e o grupo há um diferença capital entre os dois momentos No que se refere ao modelo francês também o internamento do século XIX é bastante diferente do que havia na França no século XVIII Nesta época quando alguém era internado tratavase sempre de um indivíduo marginalizado em relação à família ao grupo social à comunidade local a que pertencia alguém que não estava dentro da regra e que se tornara marginal por sua conduta sua desordem a irregularidade de sua vida O internamento respondia a essa marginalização de fato com uma espécie de marginalização de segundo 56 grau de punição Era como se se dissesse ao indivíduo Já que você se separou de seu grupo vamos separálo definitiva e provisoriamente da sociedade Havia portanto na França desta época uma reclusão de exclusão Na época atual todas essas instituições fábrica escola hospital psiquiátrico hospital prisão têm por finalidade não excluir mas ao contrário fixar os indivíduos A fábrica não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de produção A escola não exclui os indivíduos mesmo fechandoos ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de correção a um aparelho de normalização dos indivíduos O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do indivíduo elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens A fábrica a escola a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção de formação ou de correção dos produtores Tratase de garantir a produção ou os produtores em função de uma determinada norma Podese portanto opor a reclusão do século XVIII que exclui os indivíduos do círculo social à reclusão que aparece no século XIX que tem por função ligar os indivíduos aos aparelhos de produção formação reformação ou correção de produtores Tratase portanto de uma inclusão por exclusão Eis porque oporei a reclusão ao sequestro a reclusão do século XVIII que tem por função essencial a exclusão dos marginais ou o reforço da marginalidade e o sequestro do século XIX que tem por finalidade a inclusão e a normalização Existe finalmente um terceiro conjunto de diferenças em relação ao século XVIII que dá uma configuração original à reclusão no século XIX Na Inglaterra no século XVIII havia um processo de controle que era no começo nitidamente extraestatal e mesmo antiestatal uma espécie de reação de defesa dos grupos religiosos à dominação do Estado pelo qual eles asseguravam seu próprio controle Na França havia ao contrário um aparelho fortemente estatizado pelo menos em sua forma e seus instrumentos na medida em que ele consistia essencialmente na instituição das lettresdecachet Havia portanto uma fórmula absolutamente extraestatal na Inglaterra e uma fórmula absolutamente estatal na França No século XIX aparece algo novo e muito mais brando e rico uma série de instituições escolas fábricas etc de que é difícil dizer se são francamente estatais ou extraestatais se fazem parte ou não do aparelho do Estado De fato dependendo das instituições dos países e das circunstâncias algumas destas instituições são controladas diretamente pelo aparelho do Estado Na França por exemplo houve um conflito para que as instituições pedagógicas essenciais fossem controladas pelo aparelho do Estado fezse disso um jogo político Mas o nível em que me situo não leva em consideração essa questão não me parece que esta diferença seja muito importante O que é novo o que é interessante é que no fundo o Estado e o que não é estatal vêm confundirse entrecruzarse no interior destas instituições Mais do que instituições estatais ou não estatais é preciso dizer que existe uma rede institucional de sequestro que é intraestatal a diferença entre aparelho de Estado e o que não é aparelho de Estado não me parece importante para analisar as funções deste aparelho geral de sequestro desta rede de sequestro no interior da qual nossa existência se encontra aprisionada Para que servem essa rede e essas instituições Podemos caracterizar a função destas instituições da seguinte maneira Primeiramente estas instituiçõespedagógicas médicas penais ou industriais têm a propriedade muito curiosa de implica rem o controle a responsabilidade sobre a totalidade ou a quase totalidade do tempo dos indivíduos são portanto instituições que de certa forma se encarregam de toda a dimensão temporal da vida dos indivíduos Creio que a esse respeito é possível opor a sociedade moderna à sociedade feudal Na sociedade feudal e em muitas sociedades que os etnólogos chamam de primitivas o controle dos indivíduos se faz essencialmente a partir da inserção local do fato de pertencerem a um determinado lugar O poder feudal se exerce sobre os homens na medida em que pertencem a uma certa terra A inscrição geográfica local é um meio de exercício do poder Este se inscreve sobre os homens por intermédio da sua localização Ao contrário a sociedade moderna que se forma no começo do século XIX é no fundo indiferente ou relativamente indiferente à pertinência espacial dos indivíduos ela não se interessa pelo controle espacial dos indivíduos na forma de sua pertinência a uma terra a um lugar mas simplesmente na medida em que tem necessidade de que os homens coloquem à sua disposição seu tempo É preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de produção que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida o tempo de existência dos homens É para isso e desta forma que o controle se exerce São necessárias duas coisas para que se forme a sociedade industrial Por um lado é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado oferecido aos que o querem comprar e comprálo em troca de um salário e é preciso por outro lado que este tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho É por isso que em uma série de instituições encontramos o problema e as técnicas da extração máxima do tempo Vimos no exemplo a que me referi este fenômeno em sua forma compacta em seu estado puro O tempo exaustivo da vida dos trabalhadores da manhã à noite e da noite à manhã é comprado de uma vez por todas pelo preço de um prêmio por uma instituição Encontramos o mesmo fenômeno em outras instituições nas instituições pedagógicas fechadas que se abrirão pouco a pouco durante o século casas de correção orfanatos e prisões Além disso temos uma porção de formas difusas em particular a partir do momento em que se percebeu que não era possível gerir estas fábricasprisões quando se foi obrigado a voltar a um tipo de trabalho em que as pessoas viriam pela manhã trabalhariam e deixariam o trabalho à noite Vemos multiplicarse então instituições em que o tempo das pessoas se encontra controlado mesmo não sendo efetivamente extraído em sua totalidade para tornarse tempo de trabalho No correr do século XIX uma série de medidas será adotada visando suprimir as festas e diminuir o tempo de descanso uma técnica muito sutil se elabora ao longo do século para controlar a economia dos operários Para que a economia por um lado tivesse a flexibilidade necessária era preciso havendo necessidade poder desempregar os indivíduos mas por outro lado para que os operários pudessem depois do tempo de desemprego indispensável recomeçar a trabalhar sem que neste intervalo morressem de fome era preciso que tivessem reservas e economias Daí o aumento dos salários que vemos claramente se esboçar na Inglaterra nos anos 40 e na França nos anos 50 Mas a partir do momento em que os operários têm dinheiro é preciso que eles não utilizem suas economias antes do momento em que estiverem desempregados Eles não devem utilizar suas economias no momento em que desejarem para fazer greve ou para festejar Surge então a necessidade de controlar as economias do operário Daí a criação na década de 1820 e sobretudo a partir dos anos 40 e 50 de caixas econômicas de caixas de assistências etc que permitem drenar as economias dos operários e controlar a maneira como são utilizadas Desta forma o tempo do operário não apenas o tempo do seu dia de trabalho mas o de sua vida inteira poderá efetivamente ser utilizado da melhor forma pelo aparelho de produção É assim que sob a forma destas instituições aparentemente de proteção e de segurança se estabelece um mecanismo pelo qual o tempo inteiro da existência humana é posto à disposição de um mercado de trabalho e das exigências do trabalho A extração da totalidade do tempo é a primeira função destas instituições de sequestro Seria possível mostrar igualmente como nos países desenvolvidos este controle geral do tempo é exercido pelo mecanismo do consumo e da publicidade A segunda função das instituições de sequestro é não mais a de controlar o tempo dos indivíduos mas a de controlar simplesmente seus corpos Existe algo de muito curioso nestas instituições É que se aparentemente elas são todas especializadas as fábricas feitas para produzir os hospitais psiquiátricos ou não para curar as escolas para ensinar as prisões para punir o funcionamento destas instituições implica uma disciplina geral da existência que ultrapassa amplamente as suas finalidades aparentemente precisas É muito curioso observar por exemplo como a imoralidade a imoralidade sexual constituiu para os patrões das fábricas do começo do século XIX um problema considerável E isto não simplesmente em função dos problemas de natalidade que se controlava mal ao menos ao nível da incidência demográfica A razão é que o patronato não suportava a devassidão operária a sexualidade operária Podese perguntar igualmente porque nos hospitais psiquiátricos ou não que são feitos para curar o comportamento sexual a atividade sexual é proibida Podese invocar um certo número de razões de higiene Elas são no entanto marginais com relação a uma espécie de decisão geral fundamental universal de que um hospital psiquiátrico ou não deve se encarregar não só da função particular que exerce sobre os indivíduos mas também da totalidade da sua existência Por que nas escolas não se ensina somente a ler mas se obrigam as pessoas a se lavar Existe aqui uma espécie de polimorfismo de polivalência de indiscrição de nãodiscrição de sincretismo desta função de controle da existência Mas se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a existência dos indivíduos se encontra controlada por estas instituições vemos que se trata no fundo não somente de apropriação de extração da quantidade máxima de tempo mas também de controlar de formar de valorizar segundo um determinado sistema o corpo do indivíduo Se fizéssemos uma história do controle social do corpo poderíamos mostrar que até o século XVIII inclusive o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas o corpo era feito para ser supliciado e castigado Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX o corpo adquire uma significação totalmente diferente ele não é mais o que deve ser supliciado mas o que deve ser formado reformado corrigido o que deve adquirir aptidões receber um certo número de qualidades qualificarse como corpo capaz de trabalhar Vemos aparecer assim claramente a segunda função A primeira função do sequestro era de extrair o tempo fazendo com que o tempo dos homens o tempo de sua vida se transforme em tempo de trabalho Sua segunda função consiste em fazer com que o corpo dos homens se torne força de trabalho A função de transformação do corpo em força de trabalho responde à função de transformação do tempo em tempo de trabalho A terceira função destas instituições de sequestro consiste na criação de um novo e curioso tipo de poder Qual a forma de poder que se exerce nestas instituições Um poder polimorfo polivalente Há por um lado em um certo número de casos um poder econômico No caso de uma fábrica o poder econômico oferece um salário em troca de um tempo de trabalho em um aparelho de produção que pertence ao proprietário Há além deste um poder econômico de outro tipo o caráter pago do tratamento em certo número de instituições hospitalares Mas por outro lado em todas essas instituições há um poder não somente econômico mas também político As pessoas que dirigem estas instituições se delegam o direito de dar ordens de estabelecer regulamentos de tomar medidas de expulsar indivíduos aceitar outros etc Em terceiro lugar este mesmo poder econômico e político é também um poder judiciário Nestas instituições não apenas se dão ordens se tomam decisões não somente se garantem funções como a produção a aprendizagem etc mas também se tem o direito de punir e recompensar se tem o poder de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento Este micropoder que funciona no interior destas instituições é ao mesmo tempo um poder judiciário O fato é surpreendente por exemplo no caso das prisões para onde os indivíduos são enviados porque foram julgados por um tribunal mas onde sua existência é colocada sob a observação de uma espécie de microtribunal de pequeno tribunal permanente constituído pelos guardiões e pelo diretor da prisão que da manhã à noite vai punilos segundo seu comportamento O sistema escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário A todo momento se pune e se recompensa se avalia se classifica se diz quem é o melhor quem é o pior Poder judiciário que por conseguinte duplica de maneira bastante arbitrária se não se considera sua função geral o modelo do poder judiciário Por que para ensinar alguma coisa a alguém se deve punir e recompensar Este sistema parece evidente mas se refletimos vemos que a evidência se dissolve se lemos Nietzsche vemos que se pode conceber um sistema de transmissão do saber que não esteja no interior de um aparelho de sistema de poder judiciário político econômico etc Finalmente há uma quarta característica do poder Poder que de certa forma atravessa e anima estes outros poderes Tratase de um poder epistemológico poder de extrair dos indivíduos um saber e extrair um saber sobre estes indivíduos submetidos ao olhar e já controlados por estes diferentes poderes Isto se dá portanto de duas maneiras Em uma instituição como uma fábrica por exemplo o trabalho operário e o saber do operário sobre seu próprio trabalho os melhoramentos técnicos as pequenas invenções e descobertas as microadaptações que ele puder fazer no decorrer do trabalho são imediatamente anotadas e registradas extraídas portanto da sua prática acumuladas pelo poder que se exerce sobre ele por intermédio da vigilância Desta forma pouco a pouco o trabalho do operário é assumido em um certo saber da produtividade ou um certo saber técnico da produção que vão permitir um reforço do controle Vemos portanto como se forma um saber extraído dos próprios indivíduos a partir do seu próprio comportamento Há além deste um segundo saber que se forma a partir desta situação Um saber sobre os indivíduos que nasce da observação dos indivíduos da sua classificação do registro e da análise dos seus comportamentos da sua comparação etc Vemos assim nascer ao lado desse saber tecnológico próprio a todas as instituições de sequestro um saber de observação um saber de certa forma clínico do tipo da psiquiatria da psicolo
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Texto de pré-visualização
MICHEL FOUCAULT A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS 3ª edição NAU EDITORA Copyright 1973 by Departamento de Letras da PUCRio A editora utilizou a tradução e a supervisão final do texto coordenada pelo Departamento de Letras da PUCRio para publicação nos Cadernos da PUCRio nº16 1974 A tradução foi realizada por Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais e a supervisão final do texto foi trabalho de Léa Porto de Abreu Novaes Cleonice Berardinelli Roberto Balalai Vera Maria Palmeira de Paulo Kátia Chalita Mattar Maria Teresa Horta e Sampaio Fernandes Capa Design Ana Lopes CIPBRASIL Catalogaçãonafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ F86v Foucault Michel 19261984 A verdade e as formas jurídicas Michel Foucault tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes et al J Rio de Janeiro NAU Editora 2002 160p Tradução de La vérité et les formes juridiques Conferências de Michel Foucault na PUCRio de 21 a 25 de maio de 1973 ISBN 8585936487 1 Direito Filosofia I Título 960291 CDU 3401 1ª edição 1996 1ª reimpressão 1998 2ª edição 1999 1ª reimpressão 2000 2ª reimpressão 2001 3ª edição 2002 NAU EDITORA Editora Trarepa Ltda Av Nossa Senhora de Fátima 155 Centro Engº Paulo de Frontin RJ CEP 26650000 Telefax 21 2542 4272 email naualternexcombr Não encontrando este livro na livraria pedir via fax ou email Esta obra foi composta pela Editora Trarepa Ltda em Agaramond e impressa na Gráfica Vozes em maio de 2002 em papel off set 90 gm² para o miolo e papel cartão supremo 250 gm² para a capa Sumário I Conferência 1 7 II Conferência 2 29 III Conferência 3 53 IV Conferência 4 79 V Conferência 5 103 VI Mesa redonda 127 I O que gostaria de dizerlhes nestas conferências são coisas possivelmente inexatas falsas erróneas que apresentarei a título de hipótese de trabalho hipótese de trabalho para um trabalho futuro Pediria para tanto sua indulgência e mais do que isto sua maldade Isto é gostaria muito que ao fim de cada conferência me fizessem perguntas críticas e objeções para que na medida do possível e na medida em que meu espírito não é ainda rígido demais possa pouco a pouco adaptarme a elas e que possamos assim ao final dessas cinco conferências ter feito em conjunto um trabalho ou eventualmente algum progresso Apresentarei hoje uma reflexão metodológica para introduzir esse problema que sob o título de A Verdade e as Formas Jurídicas podelhes parecer um tanto enigmático Tentarei apresentarlhes o que no fundo é o ponto de convergência de três ou quatro séries de pesquisas existentes já exploradas já inventariadas para confrontálas e reunilas em uma espécie de pesquisa não digo original mas pelo menos renovadora Em primeiro lugar uma pesquisa propriamente histórica ou seja como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais A questão é a seguinte existe uma tendência que poderíamos chamar um tanto ironicamente de marxismo acadêmico que consiste em procurar de que maneira as condições econômicas de existência podem encontrar na consciência dos homens o seu reflexo e expressão Pareceme que essa forma de análise tradicional no marxismo universitário da França e da Europa apresenta um defeito muito grave o de supor no fundo que o sujeito humano o sujeito de conhecimento as próprias formas do conhecimento são de certo modo dados prévia e definitivamente e que as condições econômicas sociais e políticas da existência não fazem mais do que depositarse ou imprimirse neste sujeito definitivamente dado Meu objetivo será mostrarlhes como as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos novos conceitos novas técnicas mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento O próprio sujeito de conhecimento tem uma história a relação do sujeito com o objeto ou mais claramente a própria verdade tem uma história Assim gostaria particularmente de mostrar como se pôde formar no século XIX um certo saber do homem da individualidade do indivíduo normal ou anormal dentro ou fora da regra saber este que na verdade nasceu das práticas sociais das práticas sociais do controle e da vigilância E como de certa maneira esse saber não se impôs a um sujeito de conhecimento não se propôs a ele nem se imprimiu nele mas fez nascer um tipo absolutamente novo de sujeito de conhecimento Podemos dizer que a história dos domínios do saber em relação com as práticas sociais excluída a preeminência de um sujeito de conhecimento dado definitivamente é um dos primeiros eixos de pesquisa que agora lhes proponho 4 O segundo eixo de pesquisa é um eixo metodológico que poderíamos chamar de análise dos discursos Ainda aqui existe pareceme em uma tradição recente mas já aceita nas universidades européias uma tendência a tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção Há alguns anos foi original e importante dizer e mostrar que o que era feito com a linguagem poesia literatura filosofia discurso em geral obedecia a um certo número de leis ou regularidades internas as leis e regularidades da linguagem O caráter linguístico dos fatos de linguagem foi uma descoberta que teve importância em determinada época Teria então chegado o momento de considerar esses fatos de discurso não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico mas de certa forma e aqui me inspiro nas pesquisas realizadas pelos angloamericanos como jogos games jogos estratégicos de ação e de reação de pergunta e de resposta de dominação e de esquiva como também de luta O discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível e polêmicos e estratégicos em outro Essa análise do discurso como jogo estratégico e polêmico é a meu ver um segundo eixo de pesquisa Enfim o terceiro eixo de pesquisa que lhes proponho e que vai definir por seu encontro com os dois primeiros o ponto de convergência em que me situo consistiria em uma reelaboração da teoria do sujeito Essa teoria foi profundamente modificada e renovada ao longo dos últimos anos por um certo número de teorias ou ainda mais seriamente por um certo número de práticas entre as quais é claro a psicanálise se situa em primeiro plano A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou da maneira mais fundamental 5 a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes Há dois ou três séculos a filosofia ocidental postulava explícita ou implicitamente o sujeito como fundamento como núcleo central de todo conhecimento como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia explodir Ora pareceme que a psicanálise pôs em questão de maneira enfática essa posição absoluta do sujeito Mas se a psicanálise o fez em compensação no domínio do que poderíamos chamar teoria do conhecimento ou no da epistemologia ou no da história das ciências ou ainda no da história das idéias pareceme que a teoria do sujeito permaneceu ainda muito filosófica muito cartesiana e kantiana pois ao nível de generalidade em que me situo não faço por enquanto diferença entre as concepções cartesiana e kantiana Atualmente quando se faz história história das idéias do conhecimento ou simplesmente história atemomos a esse sujeito de conhecimento a este sujeito da representação como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece Seria interessante tentar ver como se dá através da história a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história e que é a cada instante fundado e refundado pela história É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir Para retomar meu ponto de partida podemos ver como em uma certa tradição universitária ou acadêmica do marxismo esta concepção filosoficamente tradicional do sujeito não foi ainda sustentada Ora a meu ver isso é que deve ser feito a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais Esse é o fundo teórico dos problemas que gostaria de levantar Pareceume que entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade as práticas jurídicas ou mais precisamente as práticas judiciárias estão entre as mais importantes A hipótese que gostaria de propor é que no fundo há duas histórias da verdade A primeira é uma espécie de história interna da verdade a história de uma verdade que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências Por outro lado pareceme que existem na sociedade ou pelo menos em nossas sociedades vários outros lugares onde a verdade se forma onde um certo número de regras de jogo são definidas regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade certos domínios de objeto certos tipos de saber e por conseguinte podemos a partir daí fazer uma história externa exterior da verdade As práticas judiciárias a maneira pela qual entre os homens se arbitrarn os danos e as responsabilidades o modo pelo qual na história do Ocidente se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras todas essas regras ou se quiserem todas essas práticas regulares é claro mas também modificadas sem cessar através da história me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade formas de saber e por conseguinte relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas Eis aí a visão geral do tema que pretendo desenvolver as formas jurídicas e por conseguinte sua evolução no campo do direito penal como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade Tentarei mostrarlhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal Pois o que chamamos de inquérito enquête inquérito tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII e também por cientistas fossem eles geógrafos botânicos zoólogos economistas é uma forma bem característica da verdade em nossas sociedades Ora onde encontramos a origem do inquérito Nós a encontramos em uma prática política e administrativa de que irei falarlhes mas a encontramos também em prática judiciária E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica Foi para saber exatamente quem fez o quê em que condições e em que momento que o Ocidente elaborou as complexas técnicas do inquérito que puderam em seguida ser utilizadas na ordem científica e na ordem da reflexão filosófica Da mesma forma no século XIX também se inventaram a partir de problemas jurídicos judiciários penais formas de análise bem curiosas que chamaria de exame examen e não mais de inquérito Tais formas de análise deram origem à Sociologia à Psicologia à Psicopatologia à Criminologia à Psicanálise Tentarei mostrarlhes como ao procurarmos a origem destas formas vemos que elas nasceram em ligação direta com a formação de um certo número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista no final do século XIX Temos assim em linhas gerais a formulação do que será tratado nas conferências seguintes Na próxima falarei sobre o nascimento do inquérito no pensamento grego em algo que nem é totalmente um mito nem inteiramente uma tragédia a história de Édipo Falarei da história de Édipo não como ponto de origem de formulação do desejo ou das formas do desejo do homem mas ao contrário como episódio bastante curioso da história do saber e ponto de emergência do inquérito Na conferência subsequente tratarei da relação que se estabeleceu na Idade Média do conflito da oposição entre o regime da prova épreuve e o sistema do inquérito Finalmente nas duas últimas falarei do nascimento do que chamo o exame ou as ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista No momento gostaria de retomar de forma diferente as reflexões metodológicas puramente abstratas de que falava há pouco Teria sido possível e talvez mais honesto citar apenas um nome o de Nietzsche pois o que digo aqui só tem sentido se relacionado à obra de Nietzsche que me parece ser entre os modelos de que podemos lançar mão para as pesquisas que proponho o melhor o mais eficaz e o mais atual Em Nietzsche pareceme encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a análise histórica da própria formação do sujeito a análise histórica do nascimento de um certo tipo de saber sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de conhecimento O que me proponho agora é seguir na obra de Nietzsche os lineamentos que nos podem servir de modelo para as análises em questão Tomarei como ponto de partida um texto de Nietzsche datado de 1873 e só publicado postumamente Diz o texto Em algum ponto perdido deste universo cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares houve uma vez um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal Nesse texto extremamente rico e difícil deixarei de lado várias coisas até mesmo e sobretudo a célebre e difícil frase Foi o instante da maior mentira Considerarei inicialmente e de bom grado a insolência a desenvoltura de Nietzsche ao dizer que o conhecimento foi inventado sobre um astro e em um determinado momento Falo de insolência nesse texto de Nietzsche porque não devemos esquecer que em 1873 estamos senão em pleno kantismo pelo menos em pleno neokantismo E a idéia de que o tempo e o espaço podem preexistir ao conhecimento a idéia de que o tempo e o espaço não são formas do conhecimento mas pelo contrário espécie de rochas primitivas sobre as quais o conhecimento vem se fixar é para a época absolutamente inadmissível É a isso que gostaria de me ater fixandome primeiramente no próprio termo invenção Nietzsche afirma que em um determinado ponto do tempo e em um determinado lugar do universo animais inteligentes inventaram o conhecimento a palavra que emprega invenção o termo alemão é Erfindung é frequentemente retomada em seus textos e sempre com sentido e intenção polémicos Quando fala de invenção Nietzsche tem sempre em mente uma palavra que opõe a invenção a palavra origem Quando diz invenção é para não dizer origem quando diz Erfindung é para não dizer Ursprung Temse um certo número de provas disto Apresentarei duas ou três Por exemplo em um texto que é segundo creio da Gaia Ciência em que fala de Schopenhauer reprovandolhe sua análise da religião Nietzsche diz que Schopenhauer cometeu o erro de procurar a origem Ursprung da religião em um sentimento metafísico que estaria presente em todos os homens e conteria por antecipação o núcleo de toda religião seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial Nietzsche afirma eis uma análise da história da religião que é totalmente falsa pois admitir que a religião tem origem em um sentimento metafísico significa pura e simplesmente que a religião já estava dada ao menos em estado implícito envolta nesse sentimento metafísico Ora diz Nietzsche a história não é isso não é dessa maneira que se faz história não é dessa maneira que as coisas se passaram Pois a religião não tem origem não tem Ursprung ela foi inventada houve uma Erfindung da religião Em um dado momento algo aconteceu que fez aparecer a religião A religião foi fabricada Ela não existia anteriormente Entre a grande continuidade da Ursprung descrita por Schopenhauer e a ruptura que caracteriza a Erfindung de Nietzsche há uma oposição fundamental Falando a respeito da poesia sempre na Gaia Ciência Nietzsche afirma haver quem procure a origem Ursprung da poesia quando na verdade não há Ursprung da poesia há somente uma invenção da poesia Um dia alguém teve a idéia bastante curiosa de utilizar um certo número de propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para falar para impor suas palavras para estabelecer através de suas palavras uma certa relação de poder sobre os outros Também a poesia foi inventada ou fabricada Existe ainda a famosa passagem no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral em que Nietzsche se refere a essa espécie de grande fábrica de grande usina em que se produz o ideal O ideal não tem origem Ele também foi inventado fabricado produzido por uma série de mecanismos de pequenos mecanismos A invenção Erfindung para Nietzsche é por um lado uma ruptura por outro algo que possui um pequeno começo baixo mesquinho inconfessável Este é o ponto crucial da Erfindung Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada Foi igualmente por puras obscuras rela ções de poder que a religião foi inventada Vilania portanto de todos estes começos quando são opostos à solenidade da origem tal como é vista pelos filósofos O historiador não deve temer as mesquinharias pois foi de mesquinharia em mesquinharia de pequena em pequena coisa que finalmente as grandes coisas se formaram À solenidade de origem é necessário opor em bom método histórico a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações dessas invenções O conhecimento foi portanto inventado Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não tem origem É dizer de maneira mais precisa por mais paradoxal que seja que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza humana O conhecimento não constitui o mais antigo instinto do homem ou inversamente não há no comportamento humano no apetite humano no instinto humano algo como um germe do conhecimento De fato diz Nietzsche o conhecimento tem relação com os instintos mas não pode estar presente neles nem mesmo por ser um instinto entre os outros o conhecimento é simplesmente o resultado do jogo do afrontamento da junção da luta e do compromisso entre os instintos É porque os instintos se encontram se batem e chegam finalmente ao término de suas batalhas a um compromisso que algo se produz Este algo é o conhecimento Portanto para Nietzsche o conhecimento não é da mesma natureza que os instintos não é como que o refinamento dos próprios instintos O conhecimento tem por fundamento por base e por ponto de partida os instintos mas instintos em confronto entre si de que ele é apenas o resultado em sua superfície O conhecimento é como um clarão como uma luz que se irradia mas que é produzido por mecanismos ou realidades que são de natureza totalmente diversa O conhecimento é o efeito dos instintos é como um lance de sorte ou como o resultado de um longo compromisso Ele é ainda diz Nietzsche como uma centelha entre duas espadas mas que não é do mesmo ferro que as duas espadas Efeito de superfície não delineado de antemão na natureza humana o conhecimento vem atuar diante dos instintos acima deles no meio deles ele os comprime traduz um certo estado de tensão ou de apaziguamento entre os instintos Mas não se pode deduzir o conhecimento de maneira analítica segundo uma espécie de derivação natural Não se pode de modo necessário deduzilo dos próprios instintos O conhecimento no fundo não faz parte da natureza humana É a luta o combate o resultado do combate e consequentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento O conhecimento não é instintivo é contrainstintivo assim como ele não é natural é contranatural Este é o primeiro sentido que pode ser dado à idéia de que o conhecimento é uma invenção e não tem origem Mas o outro sentido que pode ser dado a esta afirmação seria o de que o conhecimento além de não estar ligado à natureza humana de não derivar da natureza humana nem mesmo é aparentado por um direito de origem com o mundo a conhecer Não há no fundo segundo Nietzsche nenhuma semelhança nenhuma afinidade prévia entre conhecimento e essas coisas que seria necessário conhecer Em termos mais rigorosamente kantianos seria necessário dizer que as condições de experiência e as condições do objeto de experiência são totalmente heterogêneas Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da filosofia ocidental quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência e do objeto de experiência eram idênticas Nietzsche pensa ao contrário que entre conhecimento e mundo a conhecer há tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza humana Temos então uma natureza humana um mundo e algo entre os dois que se chama o conhecimento não havendo entre eles nenhuma afinidade semelhança ou mesmo elos de natureza O conhecimento não tem relações de afinidade com o mundo a conhecer diz Nietzsche frequentemente Citarei apenas um texto da Gaia Ciência parágrafo 109 O caráter do mundo é o de um caos eterno não devido à ausência de necessidade mas devido à ausência de ordem de encadeamento de formas de beleza e de sabedoria O mundo não procura absolutamente imitar o homem ele ignora toda lei Abstenhamonos de dizer que existem leis na natureza É contra um mundo sem ordem sem encadeamento sem formas sem beleza sem sabedoria sem harmonia sem lei que o conhecimento tem de lutar É com ele que o conhecimento se relaciona Não há nada no conhecimento que o habilite por um direito qualquer a conhecer esse mundo Não é natural à natureza ser conhecida E assim como entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade mas uma relação de luta de dominação de subserviência de compensação etc da mesma forma entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continuidade natural Só pode haver uma relação de violência de dominação de poder e de força de violação O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção reconhecimento identificação delas com elas Pareceme haver nessa análise de Nietzsche uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental e cuja lição devemos conservar A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas O que efetivamente na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro ilusão arbitrariedade O que garantia isto na filosofia ocidental senão Deus Deus certamente desde Descartes para não ir mais além e ainda mesmo em Kant é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado em verdade nas coisas do mundo Descartes precisou afirmar a existência de Deus Se não existe mais relação entre o conhecimento e as coisas a conhecer se a relação entre o conhecimento e as coisas conhecidas é arbitrária de poder e de violência a existência de Deus não é mais indispensável no centro do sistema de conhecimento Na mesma passagem da Gaia Ciência em que evoca a ausência de ordem de encadeamento de formas de beleza do mundo Nietzsche pergunta precisamente quando cessaremos de ser obscurecidos por todas essas sombras de deus quando conseguiremos desdivinizar completamente a natureza A ruptura da teoria do conhecimento com a teologia começa de maneira estrita com uma análise como a de Nietzsche Em segundo lugar diria que se é verdade que entre o conhecimento e os instintos tudo o que faz tudo o que trama o animal humano há somente ruptura relações de dominação e subserviência relações de poder desaparece então não mais Deus mas o sujeito em sua unidade e soberania Remontando à tradição filosófica a partir de Descartes para não ir mais longe vemos que a unidade do sujeito humano era assegurada pela continuidade que vai do desejo ao conhecer do instinto ao saber do corpo à verdade Tudo isto assegurava a existência do sujeito Se é verdade que há por um lado os mecanismos do instinto os jogos do desejo os afrontamentos da mecânica do corpo e da vontade e por outro lado a um nível de natureza totalmente diferente o conhecimento então não se tem mais necessidade da unidade do sujeito humano Podemos admitir sujeitos ou podemos admitir que o sujeito não existe Eis em que o texto de Nietzsche que citei consagrado à invenção do conhecimento me parece estar em ruptura com a tradição filosófica mais antiga e mais estabelecida na filosofia ocidental Ora quando Nietzsche diz que o conhecimento é o resultado dos instintos mas não é um instinto nem deriva diretamente dos instintos que quer dizer ele exatamente e como concebe este curioso mecanismo pelo qual os instintos sem ter nenhuma relação de natureza com o conhecimento podem por seu simples jogo produzir fabricar inventar um conhecimento que nada tem a ver com eles Eis a segunda série de problemas que gostaria de abordar Existe um texto da Gaia Ciência parágrafo 333 que podemos considerar como uma das análises mais estritas que Nietzsche fez dessa fabricação dessa invenção do conhecimento Nesse longo texto intitulado Que significa conhecer Nietzsche retoma um texto de Spinoza onde este opunha intelligere compreender a ridere lugere detestari Spinoza dizia que se quisermos compreender as coisas se quisermos efetivamente compreendêlas em sua natureza em sua essência e portanto em sua verdade é necessário que nos abstenhamos de rir delas de deplorálas ou de detestálas Somente quando estas paixões se apaziguam podemos enfim compreender Nietzsche diz que isto não somente não é verdade mas é exatamente o contrário que acontece Intelligere compreender não é nada mais que um certo jogo ou melhor o resultado de um certo jogo de uma certa composição ou compensação entre ridere rir lugere deplorar e detestari detestar Nietzsche diz que só compreendemos porque há por trás de tudo isso o jogo e a luta desses três instintos desses três mecanismos ou dessas três paixões que são o rir o deplorar e o detestar o ódio Com relação a isso é preciso considerar algumas coisas Inicialmente devemos considerar que essas três paixões ou esses três impulsos rir detestar e deplorar têm em comum o fato de serem uma maneira não de se aproximar do objeto de se identificar com ele mas ao contrário de conservar o objeto à distância de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele de se proteger dele pelo riso desvalorizálo pela deploração afastálo e eventualmente destruílo pelo ódio Portanto todos esses impulsos que estão na raiz do conhecimento e o produzem têm em comum o distanciamento do objeto uma vontade de se afastar dele e de afastálo ao mesmo tempo enfim de destruílo Atrás do conhecimento há uma vontade sem dúvida obscura não de trazer o objeto para si de se assemelhar a ele mas ao contrário uma vontade obscura de se afastar dele e de destruílo maldade radical do conhecimento Chegamos assim a uma segunda idéia importante A de que esses impulsos rir deplorar detestar são todos da ordem das más relações Atrás do conhecimento na raiz do conhecimento Nietzsche não coloca uma espécie de afeição de impulso ou de paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer mas ao contrário impulsos que nos colocam em posição de ódio desprezo ou temor diante de coisas que são ameaçadoras e presunçosas 21 Se esses três impulsos rir deplorar e odiar chegam a produzir o conhecimento não é segundo Nietzsche porque se apaziguaram como em Spinoza ou se reconciliaram ou chegaram a uma unidade É ao contrário porque lutaram entre si porque se confrontaram É porque esses impulsos se combateram porque tentaram como diz Nietzsche prejudicar uns aos outros é porque estão em estado de guerra em uma estabilização momentânea desse estado de guerra que eles chegam a uma espécie de estado de corte onde finalmente o conhecimento vai aparecer como a centelha entre duas espadas Não há portanto no conhecimento uma adequação ao objeto uma relação de assimilação mas ao contrário uma relação de distância e dominação não há no conhecimento algo como felicidade e amor mas ódio e hostilidade não há unificação mas sistema precário de poder Os grandes temas tradicionalmente apresentados na filosofia ocidental foram inteiramente questionados no texto citado de Nietzsche A filosofia ocidental e desta vez não é preciso referirnos a Descartes podemos remontar a Platão sempre caracterizou o conhecimento pelo logocentrismo pela semelhança pela adequação pela beatitude pela unidade Todos esses grandes temas são agora postos em questão Daí se compreende porque é a Spinoza que Nietzsche se refere pois Spinoza de todos os filósofos ocidentais foi quem levou mais longe essa concepção do conhecimento como adequação beatitude e unidade Nietzsche coloca no cerne na raiz do conhecimento algo como o ódio a luta a relação de poder Compreendese então porque Nietzsche afirma que o filósofo é aquele que mais facilmente se engana sobre a natureza do conhecimento por pensálo sempre na forma da adequação do amor da unidade da pacificação Ora se quisermos saber o que é o conhecimento não é preciso nos aproximarmos da forma de vida de existência de ascetismo própria ao filósofo Se quisermos realmente conhecer o conhecimento saber o que ele é apreendêlo em sua raiz em sua fabricação devemos nos aproximar não dos filósofos mas dos políticos devemos compreender quais são as relações de luta e de poder E é somente nessas relações de luta e de poder na maneira como as coisas entre si os homens entre si se odeiam lutam procuram dominar uns aos outros querem exercer uns sobre os outros relações de poder que compreendemos em que consiste o conhecimento Podese então compreender como uma análise desse tipo nos introduz de maneira eficaz em uma história política do conhecimento dos fatos de conhecimento e do sujeito do conhecimento Mas antes gostaria de responder a uma possível objeção tudo isso é muito bonito mas não está em Nietzsche foi seu delírio sua obsessão de encontrar em toda parte relações de poder em introduzir essa dimensão do político até na história do conhecimento ou na história da verdade que lhe fez acreditar que Nietzsche dizia isto Eu responderia duas coisas Primeiramente tomei este texto de Nietzsche em função de meus interesses não para mostrar que era essa a concepção nietzscheana do conhecimento pois há inúmeros textos bastante contraditórios entre si a esse respeito mas apenas para mostrar que existe em Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica do que eu chamaria a política da verdade É um modelo que encontramos efetivamente em Nietzsche e penso mesmo que ele constitui em 23 sua obra um dos modelos mais importantes para a compreensão de alguns elementos aparentemente contraditórios da sua concepção do conhecimento Com efeito se admitimos ser isto que Nietzsche entende por descoberta do conhecimento se todas essas relações estão por trás do conhecimento que de certa forma é apenas seu resultado podemos então compreender determinados textos de Nietzsche De início todos aqueles em que Nietzsche afirma que não há conhecimento em si Mais uma vez é preciso pensar em Kant aproximálos e verificar todas as diferenças O que a crítica kantiana colocava em questão era a possibilidade de um conhecimento do emsi um conhecimento sobre uma verdade ou uma realidade emsi Nietzsche diz em A genealogia da moral Abstenhamonos senhores filósofos dos tentáculos das noções contraditórias tais como razão pura espiritualidade absoluta conhecimento emsi Ou ainda em A vontade de poder Nietzsche afirma que não há ser emsi como também não pode haver conhecimento emsi E quando diz isso designa algo totalmente diferente do que Kant compreendia por conhecimento emsi Nietzsche quer dizer que não há uma natureza do conhecimento uma essência do conhecimento condições universais para o conhecimento mas que o conhecimento é cada vez o resultado histórico e pontual de condições que não são da ordem do conhecimento O conhecimento é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob o signo do conhecer O conhecimento não é uma faculdade nem uma estrutura universal Mesmo quando utiliza um certo número de elementos que podem passar por universais esse conhecimento será apenas da ordem do resultado do acontecimento do efeito Assim podemos compreender a série de textos em que Nietzsche afirma que o conhecimento tem um caráter perspectivo Quando Nietzsche diz que o conhecimento é sempre uma perspectiva ele não quer dizer no que seria uma mistura de kantismo e empirismo que o conhecimento se encontra limitado no homem por um certo número de condições de limites derivados da natureza humana do corpo humano ou da própria estrutura do conhecimento Quando fala do caráter perspectivo do conhecimento Nietzsche quer designar o fato de que só há conhecimento sob a forma de um certo número de atos que são diferentes entre si e múltiplos em sua essência atos pelos quais o ser humano se apodera violentamente de um certo número de coisas reage a um certo número de situações lhes impõe relações de força Ou seja o conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado É essa relação estratégica que vai definir o efeito de conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial oblíquo perspectivo O caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana mas sempre do caráter polémico e estratégico do conhecimento Podese falar do caráter perspectivo do conhecimento porque há batalha e porque o conhecimento é o efeito dessa batalha É por isso que encontramos em Nietzsche a idéia que volta constantemente de que o conhecimento é ao mesmo tempo o que há de mais generalizante e de mais particular O conhecimento esquematiza ignora as diferenças assimila as coisas entre si e isto sem nenhum fundamento em verdade Devido a isso o conhecimento é sempre um desconhecimento Por outro lado é sempre algo que visa maldosa insidiosa e 25 agressivamente indivíduos coisas situações Só há conhecimento na medida em que entre o homem e o que ele conhece se estabelece se trama algo como uma luta singular um têteàtête um duelo Há sempre no conhecimento alguma coisa que é da ordem do duelo e que faz com que ele seja sempre singular Este é o caráter contraditório do conhecimento tal como é definido nos textos de Nietzsche que aparentemente se contradizem generalizante e sempre singular Eis portanto como através dos textos de Nietzsche podemos restituir não uma teoria geral do conhecimento mas um modelo que permite abordar o objeto destas conferências o problema da formação de um certo número de domínios de saber a partir de relações de força e de relações políticas na sociedade Retomo agora meu ponto de partida Em uma certa concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em uma certa concepção do marxismo que se impôs à universidade há sempre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força as condições econômicas as relações sociais são dadas previamente aos indivíduos mas ao mesmo tempo se impõem a um sujeito de conhecimento que permanece idêntico salvo em relação às ideologias tomadas como erros Chegamos assim a esta noção muito importante e ao mesmo tempo muito embaraçosa de ideologia Nas análises marxistas tradicionais a ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se traduz o fato de que a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente a relação de conhecimento é perturbada obscurecida velada pelas condições de existência por relações sociais ou por formas políticas que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento A ideologia é a marca o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre um sujeito de conhecimento que de direito deveria estar aberto à verdade O que pretendo mostrar nestas conferências é como de fato as condições políticas econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e por conseguinte as relações de verdade Só pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento certas ordens de verdade certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito os domínios de saber e as relações com a verdade Só se desembaraçando destes grandes temas do sujeito de conhecimento ao mesmo tempo originário e absoluto utilizando eventualmente o modelo nietzscheano poderemos fazer uma história da verdade Apresentarei alguns esboços desta história a partir das práticas judiciárias de onde nasceram os modelos de verdade que circulam ainda em nossa sociedade se impõem ainda a ela e valem não somente no domínio da política no domínio do comportamento quotidiano mas até na ordem da ciência Até na ciência encontramos modelos de verdade cuja formação releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao sujeito de conhecimento mas que são elas próprias constitutivas do sujeito de conhecimento II Gostaria hoje de falar da história de Édipo assunto que há um ano se tornou consideravelmente fora de moda A partir de Freud a história de Édipo vinha sendo considerada como relatando a fábula mais antiga de nosso desejo e de nosso inconsciente Ora a partir do livro de Deleuze e Guattari LAntiŒdipe publicado no ano passado a referência a Édipo desempenha um papel inteiramente diferente Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triângulo edipiano paimãefilho não revela uma verdade atemporal nem uma verdade profundamente histórica de nosso desejo Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiano constitui para os analistas que o manipulam no interior da cura uma certa maneira de conter o desejo de garantir que o desejo não venha se investir se difundir no mundo que nos circunda no mundo histórico que o desejo permaneça no interior da família e se desenrole como um pequeno drama quase burguês entre o pai a mãe e o filho Édipo não seria pois uma verdade de natureza mas um instrumento de limitação e coação que os psicanalistas a partir de Freud utilizam para conter o desejo e fazêlo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa sociedade em determinado momento Em outras palavras Édipo segundo Deleuze e Guattari não é o conteúdo secreto de nosso inconsciente mas a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso inconsciente Édipo é um instrumento de poder é uma certa maneira de poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e o inconsciente Confesso que um problema como este me atrai muito e que eu também me sinto tentado a pesquisar por trás do que se pretende que seja a história de Édipo alguma coisa que tem a ver não com a história indefinida sempre recomeçada do nosso desejo e do nosso inconsciente mas com a história de um poder um poder político Faço um parêntese para lembrar que tudo que tento dizer tudo que Deleuze com mais profundidade mostrou em seu LAntiŒdipe faz parte de um conjunto de pesquisas que não dizem respeito ao contrário do que se diz nos jornais ao que tradicionalmente se chama de estrutura Nem Deleuze nem Lyotard nem Guattari nem eu nunca fazemos análise de estrutura não somos absolutamente estruturalistas Se me perguntassem o que faço e o que outros fazem melhor do que eu diria que não fazemos pesquisa de estrutura Faria um jogo de palavras e diria que fazemos pesquisas de dinastia Diria jogando com as palavras gregas δύναμις δυναστεία que procuramos fazer aparecer o que na história de nossa cultura permaneceu até agora escondido mais oculto mais profundamente investido as relações de poder Curiosamente as estruturas econômicas de nossa sociedade são melhor conhecidas mais inventariadas melhor destacadas que as estruturas de poder político Gostaria de mostrar nessa série de conferências de que maneira relações políticas se estabeleceram e se investiram profundamente na nossa cultura dando lugar a uma série de fenômenos que não podem ser explicados a não ser que os relacionemos não às estruturas econômicas às relações econômicas de produção mas a relações políticas que investem toda a trama de nossa existência Pretendo mostrar como a tragédia de Édipo a que se pode ler em Sófocles deixarei de lado o problema do fundo mítico a que ela se liga é representativa e de certa maneira instauradora de um determinado tipo de relação entre poder e saber entre poder político e conhecimento de que nossa civilização ainda não se libertou Pareceme que há realmente um complexo de Édipo na nossa civilização Mas ele não diz respeito ao nosso inconsciente e ao nosso desejo nem às relações entre desejo e inconsciente Se existe complexo de Édipo ele se dá não ao nível individual mas coletivo não a propósito de desejo e inconsciente mas de poder e de saber É esta espécie de complexo que eu gostaria de analisar A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas Como todo mundo sabe tratase de uma história em que pessoas um soberano um povo ignorando uma certa verdade conseguem por uma série de técnicas de que falaremos descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano A tragédia de Édipo é portanto a história de uma pesquisa da verdade é um procedimento de pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época Por esta razão o primeiro problema que se coloca é o de saber o que era na Grécia arcaica a pesquisa judiciária da verdade O primeiro testemunho que temos da pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego remonta à Ilíada Tratase da história da contestação entre Antíloço e Menelau durante os jogos que se realizaram na ocasião da morte de Pátroclo Entre esses jogos houve uma corrida de carros que como de costume se desenrolava em um circuito com ida e volta passando por um marco que era preciso contornar o mais próximo possível Os organizadores dos jogos tinham colocado neste lugar alguém que deveria ser o responsável pela regularidade da corrida que Homero sem o nomear pessoalmente diz ser uma testemunha ἵστωρ aquele que está lá para ver A corrida se desenrola e os dois primeiros que estão na frente no momento da curva são Antíloco e Menelau Ocorre uma irregularidade e quando Antíloco chega primeiro Menelau introduz uma contestação e diz ao juiz ou júri que deve dar o prêmio que Antíloco cometeu uma irregularidade Contestação litígio como estabelecer a verdade Curiosamente nesse texto de Homero não se faz apelo àquele que viu à famosa testemunha que estava junto ao marco e que deveria atestar o que aconteceu Não se convoca o seu testemunho e nenhuma pergunta lhe é feita Há somente contestação entre os adversários Menelau e Antíloco Esta se desenvolve da seguinte maneira depois da acusação de Menelau tu cometeste uma irregularidade e da defesa de Antíloco eu não cometi irregularidade Menelau lança um desafio Põe tua mão direita na testa do teu cavalo segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade Nesse momento Antíloco diante deste desafio que é uma prova épreuve renuncia à prova renuncia a jurar e reconhece assim que cometeu irregularidade Eis uma maneira singular de produzir a verdade de estabelecer a verdade jurídica não se passa pela testemunha mas por uma espécie de jogo de prova de desafio lançado por um adversário ao outro Um lança um desafio o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar Se por acaso tivesse aceito o risco se tivesse realmente jurado imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses E seria Zeus punindo o falso juramento se fosse o caso que teria com seu raio manifestado a verdade Eis a velha e bastante arcaica prática da prova da verdade em que esta é estabelecida judicialmente não por uma constatação uma testemunha um inquérito ou uma inquisição mas por um jogo de prova A prova é característica da sociedade grega arcaica Vamos também reencontrála na Alta Idade Média É evidente que quando Édipo e toda a cidade de Tebas procuram a verdade não é este modelo que utilizam Os séculos passaram É entretanto interessante observar que encontramos ainda na tragédia de Sófocles um ou dois restos da prática de estabelecimento da verdade pela prova Primeiro na cena entre Creonte e Édipo quando Édipo critica seu cunhado por ter truncado a resposta de Oráculo de Delfos dizendo Tu inventaste tudo isto simplesmente para tomar meu poder para me substituir E Creonte responde sem que procure estabelecer a verdade através de testemunhas Bem vamos jurar E eu vou jurar que não fiz nenhum complô contra ti Isto é dito em presença de Jocasta que aceita o jogo que é como que responsável pela regularidade do jogo Creonte responde a Édipo segundo a velha fórmula do litígio entre guerreiros Poderíamos dizer em segundo lugar que em toda a peça encontramos esse sistema do desafio e da prova Édipo ao saber que a peste de Tebas era devida à maldição dos deuses em consequência de conspurcação e assassinato responde dizendo que se compromete a exilar a pessoa que tiver cometido este crime sem saber naturalmente que ele mesmo o cometera Ele está assim implicado pelo próprio juramento do modo como nas rivalidades entre guerreiros arcaicos os adversários se incluíam nos juramentos de promessa e maldição Estes restos da 32 33 velha tradição reaparecem algumas vezes ao longo da peça Mas na verdade toda a tragédia de Édipo se fundamenta em um mecanismo inteiramente diferente É esse mecanismo de estabelecimento da verdade que gostaria de expor Pareceme que esse mecanismo da verdade obedece inicialmente a uma lei uma espécie de pura forma que poderíamos chamar de lei das metades É por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede em Édipo Édipo manda consultar o deus de Delfos o rei Apolo A resposta de Apolo quando a examinamos em detalhe é dada em duas partes Apolo começa por dizer O país está atingido por uma conspurcação A esse primeira resposta falta de certa forma uma metade há uma conspurcação mas quem conspurcou ou o que conspurcou Portanto há necessidade de se fazer uma segunda pergunta e Édipo força Creonte a dar a segunda resposta perguntando a que é devida a conspurcação A segunda metade aparece o que causou a conspurcação foi um assassinato Mas quem diz assassinato diz duas coisas Diz quem foi assassinado e o assassino Perguntase a Apolo quem foi assassinado A resposta é Laio o antigo rei Perguntase quem assassinou Nesse momento o rei Apolo se recusa a responder e como diz Édipo não se pode forçar a verdade dos deuses Fica portanto faltando uma metade À conspurcação correspondia a metade do assassinato Ao assassinato correspondia a primeira metade Quem foi assassinado Mas falta a segunda metade o nome do assassino Para saber o nome do assassino vai ser preciso apelar para alguma coisa para alguém já que não se pode forçar a vontade dos deuses Este outro o duplo de Apolo seu duplo humano sua sombra mortal é o adivinho Tirésias que como Apolo é alguém divino θεῖος μάντις o divino adivinho Ele está muito próximo de Apolo também é chamado rei ἀναξ mas é perecível enquanto Apolo é imortal e sobretudo ele é cego está mergulhado na noite enquanto Apolo é o deus do Sol Ele é a metade de sombra da verdade divina o duplo que o deus luz projeta em negro sobre a superfície da Terra É esta metade que se vai interrogar É Tirésias responde a Édipo dizendo Foste tu quem matou Laio Por conseguinte podemos dizer que desde a segunda cena de Édipo tudo está dito e representado Temse a verdade já que Édipo é efetivamente designado pelo conjunto constituído das respostas de Apolo por um lado e da resposta de Tirésias por outro O jogo das metades está completo conspurcação assassinato quem foi morto quem matou Temos tudo Mas na forma bem particular da profecia da predicão da prescrição O adivinho Tirésias não diz exatamente a Édipo Foste tu quem o matou Ele diz Prometeste banir aquele que tivesse matado ordeno que cumpras teu voto e expulses a ti mesmo Do mesmo modo Apolo não havia dito exatamente Há conspurcação e é por isto que a cidade está mergulhada na peste Apolo disse Se quiseres que a peste acabe é preciso lavar a conspurcação Tudo isso foi dito na forma do futuro da prescrição da predicão nada se refere à atualidade do presente nada é apontado Temos toda a verdade mas na forma prescritiva e profética que é característica ao mesmo tempo do oráculo e do adivinho A esta verdade que de certa forma é completa total em que tudo foi dito falta entretanto alguma coisa que é a dimensão do presente da atualidade da designação de alguém Falta o testemunho do que realmente se passou Curiosamente toda esta velha história é formulada pelo adivinho e pelo deus na forma do futuro Precisamos agora do presente e do testemunho do passado testemunho presente do que realmente aconteceu 34 35 Esta segunda metade passado e presente desta prescrição e desta previsão é dada no resto da peça Ela também é dada por um estranho jogo de metades Inicialmente é preciso estabelecer quem matou Laio Isto é obtido no decorrer da peça pelo acoplamento de dois testemunhos O primeiro é dado espontaneamente e inadvertidamente por Jocasta ao dizer Vês bem que não foste tu Édipo quem matou Laio contrariamente ao que diz o adivinho A melhor prova disto é que Laio foi morto por vários homens no entroncamento de três caminhos A este testemunho vai responder a inquietude já quase a certeza de Édipo Matar um homem no entroncamento de três caminhos é exatamente o que eu fiz eu me lembro que ao chegar a Tebas matei alguém no entroncamento de três caminhos Assim pelo jogo dessas duas metades que se completam a lembrança de Jocasta e a lembrança de Édipo temos esta verdade quase completa a verdade do assassinato de Laio Quase completa pois falta ainda um pequeno fragmento o de saber se ele foi morto por um só ou por vários o que aliás não é resolvido na peça Mas isto é somente a metade da história de Édipo pois Édipo não é apenas aquele que matou o rei Laio é também quem matou o próprio pai e casou com a própria mãe depois de o ter matado Esta segunda metade da história falta ainda depois do acoplamento dos testemunhos de Jocasta e de Édipo O que falta é exatamente o que lhes dá uma espécie de esperança pois o deus predisse que Laio não seria morto por qualquer um mas por seu filho Portanto enquanto não se provar que Édipo é filho de Laio a predicão não estará realizada Esta segunda metade é necessária para que a totalidade da predição seja estabelecida na última parte da peça pelo acoplamento de dois testemunhos diferentes Um será o do escravo que vem de Corinto anunciar a Édipo que Políbio morreu Édipo que não chora a morte de seu pai se alegra dizendo Ah Mas pelo menos eu não o matei contrariamente ao que diz a predição E o escravo replica Políbio não era teu pai Temos assim um novo elemento Édipo não é filho de Políbio É então que intervém o último escravo o que havia fugido depois do drama o que havia se escondido no fundo do Citerão o que havia escondido a verdade em sua cabana o pastor de ovelhas que é chamado para ser interrogado sobre o que aconteceu e diz Com efeito dei outrora a este mensageiro uma criança que vinha do palácio de Jocasta e que me disseram que era seu filho Vemos que falta ainda a última certeza pois Jocasta não está presente para atestar que foi ela quem deu a criança ao escravo Mas excetuando esta pequena dificuldade agora o ciclo está completo Sabemos que Édipo era filho de Laio e Jocasta que ele foi dado a Políbio que foi ele pensando ser filho de Políbio e voltando para escapar da profecia a Tebas que ele não sabia que era sua pátria que matou no entroncamento de três caminhos o rei Laio seu verdadeiro pai O ciclo está fechado Ele se fechou por uma série de encaixes de metades que se ajustam umas às outras Como se toda esta longa e complexa história da criança ao mesmo tempo exilada e fugindo da profecia exilada por causa da profecia tivesse sido quebrada em dois e em seguida cada fragmento partido de novo em dois e todos esses fragmentos repartidos em mãos diferentes Foi preciso esta reunião do deus e do seu profeta de Jocasta e de Édipo do escravo de Corinto e do escravo do Citerão para que todas estas metades e metades de metades viessem ajustarse umas às outras adaptarse encaixarse e reconstituir o perfil total da história 36 37 Esta forma realmente impressionante no Édipo de Sófocles não é apenas uma forma retórica Ela é ao mesmo tempo religiosa e política Ela consiste na famosa técnica do σύμβολον o símbolo grego Um instrumento de poder de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder quebrar em duas partes um objeto qualquer de cerâmica etc guardar uma das partes e confiar a outra parte a alguém que deve levar a mensagem ou atestar sua autenticidade É pelo ajustamento destas duas metades que se poderá reconhecer a autenticidade da mensagem isto é a continudade do poder que se exerce O poder se manifesta completa seu ciclo mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos separados uns dos outros de um mesmo conjunto de um único objeto cuja configuração geral é a forma manifesta do poder A história de Édipo é a fragmentação desta peça de que a posse integral reunificada autentifica a detenção do poder e as ordens dadas por ele As mensagens os mensageiros que ele envia e que devem retornar autentificarão sua ligação ao poder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peça e poder ajustálo aos outros fragmentos Esta é a técnica jurídica política e religiosa do que os gregos chamam σύμβολον o símbolo A história de Édipo tal como é representada na tragédia de Sófocles obedece a este σύμβολον não uma forma retórica mas religiosa política quase mágica do exercício do poder Se observarmos agora não a forma deste mecanismo ou o jogo de metades que se fragmentam e terminam por se ajustar mas o efeito que é produzido por esses ajustamentos recíprocos veremos uma série de coisas Inicialmente uma espécie de deslocamento à medida que as metades se ajustam O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei Apolo e do divino adivinho Tirésias o nível da profecia ou dos deuses Em seguida a segunda série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta Seus dois testemunhos se encontram no meio da peça É o nível dos reis dos soberanos Finalmente a última dupla de testemunhos que intervém a última metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem pelos reis mas pelos servidores e escravos O mais humilde escravo de Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho Temos assim um resultado curioso O que havia sido dito em termos de profecia no começo da peça vai ser redito sob forma de testemunho pelos dois pastores E assim como a peça passa dos deuses aos escravos os mecanismos de enunciado da verdade ou a forma na qual a verdade se enuncia mudam igualmente Quando o deus e o adivinho falam a verdade se formula em forma de prescrição e profecia na forma de um olhar eterno e todo poderoso do deus Sol na forma do olhar do adivinho que apesar de cego vê o passado o presente e o futuro É esta espécie de olhar mágicoreligioso que faz brilhar no começo da peça uma verdade em que Édipo e o coro não querem acreditar No nível mais baixo encontramos também o olhar Pois se os dois escravos podem testemunhar é porque viram Um viu Jocasta lhe entregar uma criança para que a levasse para a floresta e lá a abandonasse O outro viu a criança na floresta viu seu companheiro escravo lhe entregar esta criança e se lembra de têla levado ao palácio de Políbio Tratase aqui ainda do olhar Não mais do grande olhar eterno iluminador ofuscante fulgurante do deus e de seu adivinho mas o de pessoas que viram e se lembram de ter visto com seus olhos humanos É o olhar do testemunho É a este olhar que Homero não fazia referência ao falar do conflito e do litígio entre Antíloco e Menelau Podemos dizer portanto que toda a peça de Édipo é uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso de ordem retrospectiva não mais da ordem da profecia mas do testemunho É ainda uma certa maneira de deslocar o brilho ou a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar de certa forma empírico e quotidiano dos pastores Há uma correspondência entre os pastores e os deuses Eles dizem a mesma coisa eles vêem a mesma coisa mas não na mesma linguagem nem com os mesmos olhos Em toda a tragédia vemos esta mesma verdade que se apresenta e se formula de duas maneiras diferentes com outras palavras em outro discurso com outro olhar Mas esses olhares se correspondem um ao outro Os pastores respondem exatamente aos deuses e podemos dizer até que os pastores os simbolizam O que dizem os pastores é no fundo mas de outra forma o que os deuses já haviam dito Temos aí um dos traços mais fundamentais da tragédia de Édipo a comunicação entre os pastores e os deuses entre a lembrança dos homens e as profecias divinas Esta correspondência define a tragédia e estabelece um mundo simbólico em que a lembrança e o discurso dos homens são como que uma imagem empírica da grande profecia dos deuses Eis um dos pontos sobre os quais devemos insistir para compreender este mecanismo da progressão da verdade em Édipo De um lado estão os deuses do outro os pastores Mas entre os dois há o nível dos reis ou melhor o nível de Édipo Qual é seu nível de saber que significa seu olhar A este respeito é preciso retificar algumas coisas Habitualmente se diz quando se analisa a peça que Édipo é aquele que nada sabia que era cego que tinha os olhos vendados e a memória bloqueada pois nunca havia mencionado e parecia ter esquecido os próprios gestos ao matar o rei no entroncamento dos três caminhos Édipo homem do esquecimento homem do nãosaber homem do inconsciente para Freud Conhecemos todos os jogos de palavras que foram feitos com o nome de Édipo Mas não esqueçamos que estes jogos são múltiplos e que mesmo os gregos já haviam notado que em Οιδίπους temos a palavra οϊδα que significa ao mesmo tempo ter visto e saber Gostaria de mostrar que Édipo dentro desse mecanismo do σύμβολον de metades que se comunicam jogo de respostas entre os pastores e os deuses não é aquele que não sabia mas ao contrário é aquele que sabia demais Aquele que unia seu saber e seu poder de uma certa maneira condenável e que a história de Édipo devia expulsar definitivamente da história O título mesmo da tragédia de Sófocles é interessante Édipo é ÉdipoRei Οιδίπους τύραννος É difícil traduzir esta palavra τύραννος A tradução não dá conta do significado exato da palavra Édipo é o homem do poder homem que exerce um certo poder E é característico que o título da peça de Sófocles não seja Édipo o incestuoso nem Édipo o assassino de seu pai mas ÉdipoRei Que significa a realeza de Édipo Podemos notar a importância da temática do poder no decorrer de toda a peça Durante toda a peça o que está em questão é essencialmente o poder de Édipo e é isso que faz com que ele se sinta ameaçado Édipo em toda a tragédia nunca dirá que é inocente que talvez tenha feito algo mas que foi contra a vontade que quando matou aquele homem não sabia que se tratava de Laio Essa defesa ao nível da inocência e da inconsciência nunca é feita pelo personagem de Sófocles em ÉdipoRei Somente em Édipo em Colona se verá um Édipo cego e miserável gemer ao longo da peça dizendo Eu nada podia os deuses me pegaram em uma armadilha que eu desconhecia Em ÉdipoRei ele não se defende de maneira alguma ao nível de sua inocência Seu problema é apenas o poder Poderá guardar o poder É este poder que está em jogo do começo ao fim da peça Na primeira cena é na condição de soberano que os habitantes de Tebas recorrem a Édipo contra a peste Tu tens o poder deves curarnos da peste E ele responde dizendo Tenho grande interesse em curálos da peste porque esta peste que vos atinge me atinge também em minha soberania e minha realeza É interessado em manter a própria realeza que Édipo quer buscar a solução do problema E quando começa a se sentir ameaçado pelas respostas que surgem em sua volta quando o oráculo o designa e o adivinho diz de maneira mais clara ainda que é ele o culpado sem responder em termos de inocência Édipo diz a Tirésias Tu queres meu poder tu armaste um complô contra mim para me privar de meu poder Ele não se assusta com a idéia de que poderia ter matado o pai ou o rei O que o assusta é perder o próprio poder No momento da grande disputa com Creonte ele lhe diz Trouxeste um oráculo de Delfos mas esse oráculo tu o falseaste porque filho de Laio tu reinvindicas um poder que me foi dado Ainda aqui Édipo se sente ameaçado por Creonte ao nível do poder e não ao nível de sua inocência ou culpabilidade O que está em questão em todos estes defrontamentos do começo da peça é o poder E quando no fim da peça a verdade vai ser descoberta quando o escravo de Corinto diz a Édipo Não te inquietes não és o filho de Políbio Édipo não pensará que não sendo filho de Políbio poderá ser filho de um outro e talvez de Laio Ele diz Disse isso para me envergonhar para fazer o povo acreditar que eu sou filho de um escravo mas mesmo que eu seja filho de um escravo isto não me impedirá de exercer o poder eu sou um rei como os outros Ainda aqui é do poder que se trata É como chefe de justiça como soberano que Édipo nesse momento convocará a última testemunha o escravo do Citerão É como soberano que ele ameaçandoo de tortura lhe arrancará a verdade E quando a verdade é arrancada quando se sabe quem era Édipo e o que fez assassinato do pai incesto com a mãe que diz o povo de Tebas Nós te chamávamos nosso rei Isto significando que o povo de Tebas ao mesmo tempo em que reconhece em Édipo quem foi seu rei pelo uso do imperfeito chamávamos o declara agora destituído da realeza O que está em questão é a queda do poder de Édipo A prova é que quando Édipo perde o poder para Creonte as últimas réplicas da peça ainda giram em torno do poder A última palavra dirigida a Édipo antes que o levem para o interior do palácio é pronunciada pelo novo rei Creonte Não procures mais ser o senhor A palavra empregada é κρατείν O que quer dizer que Édipo não deve mais comandar E Creonte acrescenta ainda ἀκράτησας uma palavra que quer dizer depois de ter chegado ao cume mas que é também um jogo de palavras em que ο α tem um sentido privativo não possuindo mais o poder ἀκράτησας significa ao mesmo tempo tu que subiste até o cume e que agora não tens mais o poder Depois disso o povo intervém e saúda Édipo pela última vez dizendo Tu que eras κράτιστος isto é tu que estavas no cume do poder Ora a primeira saudação do povo de Tebas a Édipo era ῶ κρατύνων Οιδίπους isto é Édipo todo poderoso Entre essas duas saudações do povo se desenvolveu toda a tragédia A tragédia do poder e da detenção do poder político Mas o que é este poder de Édipo Como se caracteriza Suas características estão presentes no pensamento na história e na filosofia grega da época Édipo é chamado de βασιλεύς ἀναξ o primeiro dos homens aquele que tem a κράτεια aquele que detém o poder e mesmo de τύραννος Tirano não deve aqui ser entendido em seu sentido estrito tanto que Políbio Laio e todos os outros foram chamados também de τύραννος Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo Édipo tem o poder Mas o obteve através de uma série de histórias de aventuras que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável criança expulsa perdida viajante errante e em seguida o homem mais poderoso Ele conheceu um destino desigual Conheceu a miséria e a glória Esteve no ponto mais alto quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no ponto mais baixo quando se tornou um personagem errante de cidade em cidade Mais tarde de novo ele atingiu o cume Os anos que cresceram comigo diz ele ora me rebaixaram ora me exaltaram Esta alternância do destino é um traço característico de dois tipos de personagens O personagem lendário do herói épico que perdeu sua cidadania e sua pátria e que depois de um certo número de provas reencontra a glória e o personagem histórico do tirano grego do fim do VI e início do V séculos O tirano era aquele que depois de ter conhecido várias aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdêlo A irregularidade do destino é característica do personagem do tirano tal como é descrito nos textos gregos desta época Édipo é aquele que após ter conhecido a miséria conheceu a glória aquele que se tornou rei após ter sido herói Mas se ele se tornou rei é porque tinha curado a cidade de Tebas matando a Divina Cantora a Cadela que devorava todos aqueles que não decifravam seus enigmas Ele tinha curado a cidade lhe havia permitido como diz que ela se reerguesse que ela respirasse no momento em que havia perdido o fôlego Para designar esta cura da cidade Édipo emprega a expressão ὀρθωσαν reerguer ἀνὀρθωσαν πόλιν reerguer a cidade Ora é esta expressão que encontramos no texto de Sólon Sólon que não é bem um tirano mas o legislador se vangloriava de ter reerguido a cidade ateniense no fim do século VI Esta é também a característica de todos os tiranos que surgiram na Grécia durante os séculos VII e VI Eles não somente conheceram os altos e baixos da sorte mas também desempenharam nas cidades o papel de reerguêla através de uma distribuição econômica justa como Cípselo em Corinto ou através de leis justas como Sólon em Atenas Eis portanto duas características fundamentais do tirano grego tal como nos mostram os textos da época de Sófocles ou mesmo anteriores Encontramos também em Édipo um série de características não mais positivas mas negativas da tirania Várias coisas são reprovadas em Édipo em suas discussões com Tirésias e Creonte e até mesmo com o povo Creonte por exemplo lhe diz Estás errado tu te identificas com esta cidade cidade em que não nasceste imaginas que és esta cidade e que ela te pertence eu também faço parte desta cidade ela não é somente tua Ora se consideramos as histórias que Heródoto por exemplo contava sobre os velhos tiranos gregos em particular sobre Cípselo de Corinto vemos que se trata de alguém que julgava possuir a cidade Cípselo dizia que Zeus lhe havia dado a cidade e que ele a havia devolvido aos cidadãos Encontramos exatamente a mesmo coisa na tragédia de Sófocles Do mesmo modo Édipo é aquele que não dá importância às leis e que as substitui por suas vontades e suas ordens Ele o diz claramente Quando Creonte o reprovava por querer exilálo dizendo que sua decisão não era justa Édipo responde Pouco me importa que seja justo ou não é preciso obedecer assim mesmo Sua vontade será a lei da cidade É por isto que no momento em que se inicia sua queda o coro do povo reprovará Édipo por ter desprezado a δίκη a justiça É preciso portanto reconhecer em Édipo um personagem historicamente bem definido assinalado catalogado caracterizado pelo pensamento grego do século V o tirano Este personagem do tirano não é só caracterizado pelo poder como também por um certo tipo de saber O tirano grego não era simplesmente o que tomava o poder Era aquele que tomava o poder porque detinha ou fazia valer o fato de deter um certo saber superior em eficácia ao dos outros Este é precisamente o caso de Édipo Édipo é aquele que conseguiu resolver por seu pensamento por seu saber o famoso enigma da esfinge E assim como Sólon pode dar efetivamente a Atenas leis justas assim como Sólon pode reerguer a cidade porque era σοφός sábio assim também Édipo pode resolver o enigma da esfinge porque era σοφός O que é este saber de Édipo Como se caracteriza O saber de Édipo está caracterizado no decorrer de toda a peça Édipo diz a todo momento que venceu os outros que resolveu o enigma da esfinge que curou a cidade por meio do que chama de γνώμη seu conhecimento ou sua τέχνη Outras vezes para designar seu modo de saber ele se diz aquele que encontrou ᾐὗρηκα Esta é a palavra que Édipo mais frequentemente utiliza para designar o que fez outrora e está tentando fazer agora Se Édipo resolveu o enigma da esfinge é porque encontrou Se quiser salvar de novo Tebas é preciso novamente encontrar εὐρίσκειν O que significa εὐρίσκειν Esta atividade de encontrar é caracterizada inicialmente na peça como algo que se faz sozinho Édipo insiste nisso incessantemente Quando resolvi o enigma da esfinge não me dirigi a ninguém diz ele ao povo e ao adivinho Ele diz ao povo Não me pudeste ajudar de maneira nenhuma a resolver o enigma da esfinge não podias fazer nada contra a Divina Cantora E diz a Tirésias Mas que adivinhὁ és tu que nem foste capaz de libertar Tebas da esfinge Enquanto todos estavam mergulhados no terror eu libertei Tebas sozinho não aprendi nada com ninguém não me servi de nenhum mensageiro vim pessoalmente Encontrar é algo que se faz sozinho Encontrar é também o que se faz quando se abrem os olhos É Édipo é o homem que não cessa de dizer Eu inquiri e como ninguém foi capaz de me dar informações abri os olhos e os ouvidos eu vi O verbo οίδα que significa ao mesmo tempo saber e ver é frequentemente utilizado por Édipo Οἰδίπους é aquele que é capaz desta atividade de ver e saber Ele é o homem do ver o homem do olhar e o será até o fim Se Édipo cai em uma armadilha é precisamente porque em sua vontade de encontrar ele prolongou o testemunho a lembrança a procura das pessoas que viram até o momento em que foi desenterrado do fundo do Citerão o escravo que havia assistido a tudo e que sabia a verdade O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência É ao mesmo tempo este saber solitário de conhecimento do homem que sozinho sem se apoiar no que se diz sem ouvir ninguém quer ver com seus próprios olhos Saber autocrático do tirano que por si só pode e é capaz de governar a cidade A metáfora do que governa do que pilota é frequentemente utilizada por Édipo para designar o que ele faz Édipo é o piloto aquele que na proa do navio abre os olhos para ver E é precisamente porque abre os olhos sobre o que está acontecendo que encontra o acidente o inesperado o destino a τύχη Porque foi este homem do olhar autocrático aberto sobre as coisas Édipo caiu na armadilha O que gostaria de mostrar é que no fundo Édipo representa na peça de Sófocles um certo tipo do que eu chamaria saberepoder poderesaber É porque ele exerce um certo poder tirânico e solitário desviado tanto do oráculo dos deuses que ele não quer ouvir quanto do que diz e quer o povo que em sua sede de poder e saber em sua sede de governar descobrindo por si só ele encontra em última instância os testemunhos daqueles que viram Vemos assim como o jogo das metades pôde funcionar e como Édipo é no fim da peça um personagem supérfluo Isto na medida em que este saber tirânico este saber de quem quer ver com seus próprios olhos sem escutar nem os deuses nem os homens permite o ajustamento exato do que haviam dito os deuses e do que sabia o povo Édipo sem querer consegue estabelecer a união entre a profecia de deus e a memória dos homens O saber edipiano o excesso de poder o excesso de saber foram tais que ele se tornou inútil o círculo se fechou sobre ele ou melhor os dois fragmentos da téssera se ajustaram e Édipo em seu poder solitário se tornou inútil Nos dois fragmentos ajustados a imagem de Édipo se tornou monstruosa Édipo podia demais por seu poder tirânico sabia demais em seu saber solitário Neste excesso ele era ainda o esposo de sua mãe e irmão de seus filhos Édipo é o homem do excesso homem que tem tudo demais em seu poder em seu saber em sua família em sua sexualidade Édipo homem duplo que sobrava em relação à transparência simbólica do que sabiam os pastores e haviam dito os deuses A tragédia de Édipo está bem próxima portanto do que será alguns anos depois a filosofia platônica Para Platão na verdade o saber dos escravos memória empírica do que foi visto será desvalorizado em proveito de uma memória mais profunda essencial que é a memória do que foi visto no céu inteligível Mas o importante é o que vai ser fundamentalmente desvalorizado desqualificado tanto na tragédia de Sófocles quanto na República de Platão é o tema ou melhor o personagem a forma de um saber político ao mesmo tempo privilegiado e exclusivo Quem é visado pela tragédia de Sófocles ou pela filosofia de Platão quando situadas em uma dimensão histórica quem é visado por trás de Édipo σοφός Édipo o sábio o tirano que sabe o homem da τέχνη da γνώμη é o famoso sofista profissional do poder político e do saber que existia efetivamente na sociedade ateniense da época de Sófocles Mas por trás dele quem é fundamentalmente visado por Platão e por Sófocles é uma outra categoria de personagem do que o sofista era como que o pequeno representante continuação e fim histórico o personagem do tirano Este nos séculos VI e VII era o homem do poder e do saber aquele que dominava tanto pelo poder que exercia quanto pelo saber que possuía Finalmente sem que esteja presente no texto de Platão ou no de Sófocles quem é visado por trás de tudo é o grande personagem histórico que existiu efetivamente ainda que tomado em um contexto lendário o famoso rei assírio Nas sociedades indoeuropéias do leste mediterrâneo no final do segundo e início do primeiro milênios o poder político era sempre detentor de um certo tipo de saber O rei e os que o cercavam pelo fato de deterem o poder detinham um saber que não podia e não devia ser comunicado aos outros grupos sociais Saber e poder eram exatamente correspondentes correlativos superpostos Não podia haver saber sem poder E não podia haver poder político sem a detenção de um certo saber especial É esta forma de podersaber que Dumézil em seus estudos sobre as três funções isolou ao mostrar que a primeira função a do poder político era a de um poder político mágico e religioso O saber dos deuses o saber da ação que se pode exercer sobre os deuses ou sobre nós todo esse saber mágicoreligioso está presente na função política O que aconteceu na origem da sociedade grega na origem da idade grega do século V na origem de nossa civilização foi o desmantelamento desta grande unidade de um poder político que seria ao mesmo tempo um saber Foi o desmantelamento desta unidade de um poder mágicoreligioso que existia nos grandes impérios assírios que os tiranos gregos impregnados de civilização oriental tentaram reabilitar em seu proveito e que os sofistas dos séculos V e VI ainda utilizaram como podiam em forma de lições retribuídas em dinheiro Assistimos a essa longa decomposição durante os cinco ou seis séculos da Grécia arcaica E quando a Grécia clássica aparece Sófocles representa a data inicial o ponto de eclosão o que deve desaparecer para que esta sociedade exista é a união do poder e do saber A partir deste momento o homem do poder será o homem da ignorância Finalmente o que aconteceu a Édipo foi que por saber demais nada sabia A partir desse momento Édipo vai funcionar como o homem do poder cego que não sabia e não sabia porque poderia demais Assim enquanto o poder é taxado de ignorância inconsciência esquecimento obscuridade haverá por um lado o adivinho e o filósofo em comunicação com a verdade verdades eternas dos deuses ou do espírito e por outro lado o povo que sem nada deter do poder possui em si a lembrança ou pode ainda dar testemunho da verdade Assim para além de um poder que se tornou monumentalmente cego como Édipo há os pastores que se lembram e os adivinhos que dizem a verdade O Ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a verdade nunca pertence ao poder político de que o poder político é cego de que o verdadeiro saber é o que se possui quando se está em contacto com os deuses ou nos recordamos das coisas quando olhamos o grande sol eterno ou abrimos os olhos para o que se passou Com Platão se inicia um grande mito ocidental o de que há antinomia entre saber e poder Se há o saber é preciso que ele renuncie ao poder Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura não pode mais haver poder político Esse grande mito precisa ser liquidado Foi esse mito que Nietzsche começou a demolir ao mostrar em numerosos textos já citados que por trás de todo saber de todo conhecimento o que está em jogo é uma luta de poder O poder político não está ausente do saber ele é tramado com o saber o testemunho do que viu pode contestar e abater o orgulho do rei ou a presunção do tirano A testemunha a humilde testemunha por meio unicamente do jogo da verdade que ela viu e enuncia pode sozinha vencer os mais poderosos ÉdipoRei é uma espécie de resumo da história do direito grego Muitas peças de Sófocles como Antígona e Electra são uma espécie de ritualização teatral da história do direito Esta dramatização da história do direito grego nos apresenta um resumo de uma das grandes conquistas da democracia ateniense a história do processo através do qual o povo se apoderou do direito de julgar do direito de dizer a verdade de opor a verdade aos seus próprios senhores de julgar aqueles que os governam Esta grande conquista da democracia grega este direito de testemunhar de opor a verdade ao poder se constituiu em um longo processo nascido e instaurado de forma definitiva em Atenas ao longo do século V Este direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade deu lugar a uma série de grandes formas culturais características da sociedade grega Primeiramente a elaboração do que se poderia chamar formas racionais da prova e da demonstração como produzir a verdade em que condições que formas observar que regras aplicar São elas a Filosofia os sistemas racionais os sistemas científicos Em segundo lugar e mantendo uma relação com as formas anteriores desenvolvese uma arte de persuadir de convencer as pessoas da verdade do que se diz de obter a vitória para a verdade ou ainda pela verdade Temse aqui o problema da retórica grega Em terceiro lugar há o desenvolvimento de um novo tipo de conhecimento conhecimento por testemunho por lembrança por inquérito Saber de inquérito que os historiadores como Heródoto pouco antes de Sófocles os naturalistas os botânicos os geógrafos os viajantes gregos vão desenvolver e Aristóteles vai totalizar e tornar enciclopédico Houve na Grécia portanto uma espécie de grande revolução que através de uma série de lutas e contestações políticas resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária jurídica da verdade Esta constitui a matriz o modelo a partir do qual uma série de outros saberes filosóficos retóricos e empíricos puderam se desenvolver e caracterizar o pensamento grego Muito curiosamente a historia do nascimento do inquérito permaneceu esquecida e se perdeu tendo sido retomada sob outras formas vários séculos mais tarde na Idade Média Na Idade Média européia assistese a uma espécie de segundo nascimento do inquérito mais obscuro e lento mas que obteve um sucesso bem mais efetivo que o primeiro O método grego do inquérito havia estacionado não chegara à fundação de um conhecimento racional capaz de se desenvolver indefinidamente Em compensação o inquérito que nasce na Idade Média terá dimensões extraordinárias Seu destino será praticamente coextensivo ao próprio destino da cultura dita européia ou ocidental O velho Direito Germânico que regulamentava os litígios entre os indivíduos nas sociedade germânicas no momento em que estas entram em contato com o Império Romano era em certo sentido muito próximo em algumas de suas formas do Direito Grego Arcaico Era um direito no qual o sistema do inquérito não existia pois os litígios entre os indivíduos eram regulamentados pelo jogo da prova Podese caracterizar esquematicamente o antigo Direito Germânico da época em que Tácito começa a analisar essa curiosa civilização que se estende até as portas do Império do Na conferência anterior fiz referência a duas formas ou tipos de regulamento judiciário de litígio de contestação ou de disputa presentes na civilizacão grega A primeira forma bastante arcaica é encontrada em Homero Dois guerreiros se afrontavam para saber quem estava errado e quem estava certo quem havia violado o direito do outro A tarefa de resolver esta questão cabia a uma disputa regulamentada um desafio entre os dois guerreiros Um lançava ao outro o seguinte desafio És capaz de jurar diante dos deuses que não fizeste o que eu afirmo Em um procedimento como este não há juiz sentença verdade inquérito nem testemunho para saber quem disse a verdade Confiase o encargo de decidir não quem disse a verdade mas quem tem razão à luta ao desafio ao risco que cada um vai correr A segunda forma é a que se desenrola ao longo de ÉdipoRei Para resolver um problema que é também em um certo sentido um problema de contestação um litígio criminal quem matou o rei Laio aparece um personagem novo em relação ao velho procedimento de Homero o pastor No fundo de sua cabana embora sendo um homem sem importância um escravo o pastor viu e porque detém em suas mãos esse pequeno fragmento de lembrança porque traz em seu discurso seguinte modo Em primeiro lugar não há ação pública isto é não há ninguém representando a sociedade o grupo o poder ou quem detém o poder encarregado de fazer acusações contra os indivíduos Para haver um processo de ordem penal era necessário que tivesse havido dano que alguém ao menos pretendesse ter sofrido dano ou se apresentasse como vítima e que esta pretensa vítima designasse seu adversário a vítima podendo ser a pessoa diretamente ofendida ou alguém que pertencesse a sua família e assumisse a causa do parente O que caracterizava uma ação penal era sempre uma espécie de duelo de oposição entre indivíduos entre famílias ou grupos Não havia intervenção de nenhum representante da autoridade Tratavase de uma reclamação feita por um indivíduo a outro só havendo intervenção destes dois personagens aquele que se defende e aquele que acusa Conhecemos apenas dois casos bastante curiosos em que havia uma espécie de ação pública a traição e a homossexualidade A comunidade então intervinha considerandose lesada e exigia coletivamente reparação a um indivíduo Portanto a primeira condição para que houvesse ação penal no velho direito germânico era a existência de dois personagens e nunca de três A segunda condição era que uma vez introduzida a ação penal uma vez que um indivíduo se declarasse vítima e reclamasse reparação a um outro a liquidação judiciária devia se fazer como uma espécie de continuação da luta entre os indivíduos Uma espécie de guerra particular individual se desenvolve e o procedimento penal será apenas a ritualização dessa luta entre os indivíduos O Direito Germânico não opõe a guerra à justiça não identifica justiça e paz Mas ao contrário supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança O direito é pois uma maneira regulamentada de fazer a guerra Por exemplo quando alguém é morto um de seus parentes próximos pode exercer a prática judiciária da vingança não significando isso renunciar a matar alguém em princípio o assassino Entrar no domínio do direito significa matar o assassino mas matálo segundo certas regras certas formas Se o assassino cometeu o crime desta ou daquela maneira será preciso matálo cortandoo em pedaços ou cortandolhe a cabeça e colocandoa em uma estaca na entrada de sua casa Esses atos vão ritualizar o gesto de vingança e caracterizálo como vingança judiciária O direito é portanto a forma ritual da guerra A terceira condição é que se é verdade que não há oposição entre direito e guerra não é menos verdade que é possível chegar a um acordo isto é interromper essas hostilidades regulamentadas O antigo Direito Germânico oferece sempre a possibilidade ao longo dessa série de vinganças recíprocas e rituais de se chegar a uma acordo a uma transação Podese interromper a série de vinganças com um pacto Nesse momento os dois adversários recorrem a um árbitro que de acordo com eles e com seu consentimento mútuo vai estabelecer uma soma em dinheiro que constitui o resgate Não o resgate da falta pois não há falta mas unicamente dano e vingança Nesse procedimento do Direito Germânico um dos dois adversários resgata o direito de ter a paz de escapar à possível vingança de seu adversário Ele resgata sua própria vida e não o sangue que derramou pondo assim fim à guerra A interrupção da guerra ritual é o terceiro ato ou o ato terminal do drama judiciário no velho Direito Germânico O sistema que regulamenta os conflitos e litígios nas sociedades germânicas daquela época é portanto inteiramente governado pela luta e pela transação é uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica Tratase de um procedimento que não permite a intervenção de um terceiro indivíduo que se coloque entre os dois como elemento neutro procurando a verdade tentando saber qual dos dois disse a verdade um procedimento de inquérito uma pesquisa da verdade nunca intervém em um sistema desse tipo Foi desta forma que o velho Direito Germânico se constituiu antes da invasão do Império Romano Não me deterei na longa série de peripécias que fez com que esse Direito Germânico tivesse entrado em rivalidade em concorrência às vezes em cumplicidade com o Direito Romano que reinava nos territórios ocupados pelo Império Romano Entre os séculos V e X de nossa era houve uma série de penetrações peripécias e conflitos entre esses dois sistemas de direito Cada vez que sobre as ruínas do Império Romano um Estado começa a se esboçar cada vez que uma estrutura estatal começa a nascer então o Direito Romano velho direito de estado se revitaliza É assim que nos reinos merovíngios sobretudo na época do Império Carolíngio o Direito Romano sobrepujou de certa forma o Direito Germânico Por outro lado cada vez que há dissolução desses embriões desses lineamentos de estados o velho Direito Germânico triunfa e o Direito Romano cai por vários séculos no esquecimento só reaparecendo lentamente no fim do século XII e no curso do século XIII Assim o direito feudal é essencialmente de tipo germânico Ele não apresenta nenhum dos elementos dos procedimentos de inquérito de estabelecimento da verdade das sociedades gregas ou do Império Romano No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema da prova épreuve Quando um indivíduo se apresentava como portador de uma reivindicação de uma contestação acusando um outro de ter matado ou roubado o litígio entre os dois era resolvido por uma série de provas aceitas por ambos e a que os dois eram submetidos Esse sistema era uma maneira de provar não a verdade mas a força o peso a importância de quem dizia Havia em primeiro lugar provas sociais provas da importância social de um indivíduo No velho direito da Borgonha do século XI quando alguém era acusado de assassinato podia perfeitamente estabelecer sua inocência reunindo à sua volta doze testemunhas que juravam não ter ele cometido o assassinato O juramento não se fundava por exemplo no fato de terem visto com vida a pretensa vítima ou em um álibi para o pretenso assassino Para prestar juramento testemunhar que um indivíduo não tinha matado era necessário ser parente do acusado Era preciso ter com ele relações sociais de parentesco que garantiam não sua inocência mas sua importância social Isto mostrava a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter seu peso sua influência a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiálo em uma batalha ou em um conflito A prova da inocência a prova de não se ter cometido o ato em questão não era de forma alguma o testemunho Havia em segundo lugar provas de tipo verbal Quando um indivíduo era acusado de alguma coisa roubo ou assassinato devia responder a esta acusação com um certo número de fórmulas garantindo que não havia cometido assassinato ou roubo Ao pronunciar estas fórmulas podiase fracassar ou ter sucesso Em alguns casos pronunciavase a fórmula e perdiase Não por haver dito uma inverdade ou por se provar que havia mentido mas por não ter pronunciado a fórmula como devia Um erro de gramática uma troca de palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal é que no caso de um menor de uma mulher ou de um padre o acusado podia ser substituído por outra pessoa Essa outra pessoa que mais tarde se tornaria na história do direito o advogado era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado Se ele se enganava ao pronunciálas aquele em nome de quem falava perdia o processo Havia em terceiro lugar as velhas provas mágicoreligiosas do juramento Pediase ao acusado que prestasse juramento e caso não ousasse ou hesitasse perdia o processo Havia finalmente as famosas provas corporais físicas chamadas ordálios que consistiam em submeter um pessoa a uma espécie de jogo de luta com seu próprio corpo para constatar se venceria ou fracassaria Por exemplo na época do Império Carolíngio havia uma prova célebre imposta a quem fosse acusado de assassinato em certas regiões do norte da França O acusado devia andar sobre ferro em brasa e dois dias depois se ainda tivesse cicatrizes perdia o processo Havia ainda outras provas como o ordálio da água que consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atirála na água Se ela não se afogasse perdia o processo porque a própria água não a recebia bem e se ela se afogasse teria ganho o processo visto que a água não a teria rejeitado Todos estes afrontamentos do indivíduo ou de seu corpo com os elementos naturais são um transposição simbólica cuja semântica deveria ser estudada da própria luta dos indivíduos entre si No fundo tratase sempre de uma batalha tratase sempre de saber quem é o mais forte No velho Direito Germânico o processo é apenas a continuação regulamentada ritualizada da guerra Poderia ter dado exemplos mais convincentes tais como as lutas entre dois adversários ao longo de um processo lutas físicas os famosos Julgamentos de Deus Quando dois indivíduos se afrontavam por causa da propriedade de um bem ou por causa de um assassinato era sempre possível se estivessem de acordo lutar obedecendo a determinadas regras duração da luta tipo de armas diante de uma assistência presente apenas para assegurar a regularidade do que acontecia Quem ganhasse a luta ganhava o processo sem que lhe fosse dada a possibilidade de dizer a verdade ou antes sem que lhe fosse pedido que provasse a verdade de sua pretensão No sistema da prova judiciária feudal tratase não da pesquisa da verdade mas de uma espécie de jogo de estrutura binária O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela Se renuncia se não quer tentar a prova perde o processo de antemão Havendo a prova vence ou fracassa Não há outra possibilidade A forma binária é a primeira característica da prova A segunda característica é que a prova termina por uma vitória ou por um fracasso Há sempre alguém que ganha e alguém que perde o mais forte e o mais fraco um desfecho favorável ou desfavorável Em nenhum momento aparece algo como a sentença tal como aconteceria a partir do fim do século XII e início do século XIII A sentença consiste na enunciação por um terceiro do seguinte certa pessoa tendo dito a verdade tem razão uma outra tendo dito uma mentira não tem razão A sentença portanto não existe a separação da verdade e do erro entre os indivíduos não desempenha nenhum papel existe simplesmente vitória ou fracasso A terceira característica é que esta prova é de certa maneira automática Não é necessário haver a presença de um terceiro personagem para distinguir os dois adversários É o equilíbrio das forças o jogo a sorte o vigor a resistência física a agilidade intelectual que vão distinguir os indivíduos segundo um mecanismo que se desenvolve automaticamente A autoridade só intervém como testemunha da regularidade do procedimento No momento em que essas provas judiciárias se desenvolvem está presente alguém que tem o nome de juiz o soberano político ou alguém designado com o consentimento mútuo dos dois adversários simplesmente para constatar que a luta se desenvolveu regularmente O juiz não testemunha sobre a verdade mas sobre a regularidade do procedimento A quarta característica é que nesse mecanismo a prova serve não para nomear localizar aquele que disse a verdade mas para estabelecer que o mais forte é ao mesmo tempo quem tem razão Em uma guerra ou prova não judiciária um dos dois é sempre o mais forte mas isso não prova que ele tenha razão A prova judiciária é uma maneira de ritualizar a guerra ou de transpôla simbolicamente É uma maneira de lhe dar um certo número de formas derivadas e teatrais de modo que o mais forte será designado por esse motivo como o que tem razão A prova é um operador de direito um permutador da força pelo direito espécie de shifter que permite a passagem da força ao direito Ela não tem uma função apofântica não tem a função de designar manifestar ou fazer aparecer a verdade É um operador de direito e não um operador de verdade ou operador apofântico Eis em que consiste a prova no velho Direito Feudal Esse sistema de práticas judiciárias desaparece no fim do século XI e no curso do século XIII Toda a segunda metade da Idade Média vai assistir à transformação destas velhas práticas e à invenção de novas formas de justiça de novas formadas práticas é procedimentos judiciários Formas que são absolutamente capitais para a história da Europa e para a história do mundo inteiro na medida em que a Europa impôs violentamente o seu jugo a toda a superfície da terra O que foi inventado nessa reelaboração do Direito é algo que no fundo concerne não tanto aos conteúdos mas às formas e condições de possibilidade do saber O que se inventou no Direito dessa época foi uma determinada maneira de saber uma condição de possibilidade de saber cujo destino vai ser capital no mundo ocidental Esta modalidade de saber é o inquérito que apareceu pela primeira vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda do Império Romano durante vários séculos O inquérito que ressurge nos séculos XII e XIII é entretanto de tipo bastante diferente daquele cujo exemplo vimos em Édipo Por que a velha forma judiciária da qual lhes apresentei alguns traços fundamentais desaparece nessa época Podese dizer esquematicamente que um dos traços fundamentais da sociedade feudal européia ocidental é que a circulação dos bens é relativamente pouco assegurada pelo comércio Ela é assegurada por mecânismos de herança ou de transmissão testamentária e sobretudo pela contestação belicosa militar extrajudiciária ou judiciária Um dos meios mais importantes de assegurar a circulação dos bens na Alta Idade Média era a guerra a rapina a ocupação da terra de um castelo ou de uma cidade Estamos em uma fronteira fluida entre o direito e a guerra na medida em que o direito é uma certa maneira de continuar a guerra Por exemplo alguém que dispõe de força armada ocupa uma terra uma floresta uma propriedade qualquer e nesse momento faz prevalecer seus direitos Iniciase uma longa contestação no fim da qual aquele que não possui a força armada e quer a recuperação de sua terra só obtém a partida do invasor mediante um pagamento Este acordo se situa na fronteira entre o judiciário e o belicoso e é uma das maneiras mais frequentes de alguém enriquecer A circulação a troca de bens as falências os enriquecimentos foram feitos em sua maioria na alta feudalidade segundo esse mecanismo É interessante aliás comparar a sociedade feudal na Europa e as sociedades ditas primitivas estudadas atualmente pelos etnólogos Nestas a troca de bens se faz através de contestação e rivalidade dadas sobretudo em forma de prestígio ao nível das manifestações e dos signos Na sociedade feudal a circulação dos bens se faz igualmente em forma de rivalidade e contestação Mas rivalidade e contestação não mais de prestígio e sim belicosas Nas sociedades ditas primitivas as riquezas se trocam em prestações de rivalidade porque são não somente bens mas também signos Nas sociedades feudais as riquezas se trocam não apenas porque são bens e signos mas porque são bens signos e armas A riqueza é o meio pelo qual se pode exercer tanto a violência quanto o direito de vida e de morte sobre os outros Guerra litígio judiciário e circulação de bens fazem parte ao longo da Idade Média de um grande processo único e flutuante Há portanto uma dupla tendência característica da sociedade feudal Por um lado há uma concentração de armas em mãos dos mais poderosos que tendem a impedir sua utilização pelos menos poderosos Vencer alguém é priválo de suas armas derivando daí uma concentração do poder armado que deu mais força nos estados feudais aos mais poderosos e finalmente ao mais poderoso de todos o monarca Por outro lado e simultaneamente há as ações e os litígios judiciários que eram uma maneira de fazer circular os bens Compreendese assim porque os mais poderosos procuravam controlar os litígios judiciários impedindo que eles se desenvolvessem espontaneamente entre os indivíduos e porque tentaram apostarse da circulação judiciária e litigiosa dos bens o que implicou a concentração das armas e do poder judiciário que se formava na época nas mãos dos mesmos indivíduos A existência de poder executivo legislativo e judiciário é uma idéia aparentemente bastante velha no Direito Constitucional Na verdade tratase de um idéia recente que data mais ou menos de Montesquieu O que nos interessa aqui porém é ver como se formou algo como um poder judiciário 31 Na alta Idade Média não havia poder judiciário A liquidação era feita entre indivíduos Pediase ao mais poderoso ou àquele que exercia a soberania não que fizesse justiça mas que constatasse em função de seus poderes políticos mágicos e religiosos a regularidade do procedimento Não havia poder judiciário autônomo nem mesmo poder judiciário nas mãos de quem detinha o poder das armas o poder político Na medida em que a contestação judiciária assegurava a circulação dos bens o direito de ordenar e controlar essa contestação judiciária por ser um meio de acumular riquezas foi confiscado pelos mais ricos e mais poderosos A acumulação da riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário nas mãos de alguns é um mesmo processo que vigerou na Alta Idade Média e alcançou seu amadurecimento no momento da formação da primeira grande monarquia medieval no meio ou final do século XII Nesse momento aparecem coisas totalmente novas em relação à sociedade feudal ao Império Carolíngio e às velhas regras do Direito Romano 1 Uma justiça que não é mais contestação entre indivíduos e livre aceitação por esses indivíduos de um certo número de regras de liquidação mas que ao contrário vaise impor do alto aos indivíduos aos oponentes aos partidos Os indivíduos então não terão mais o direito de resolver regular ou irregularmente seus litígios deverão submeterse a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder político 2 Aparece um personagem totalmente novo sem precedente no Direito Romano o procurador Esse curioso personagem que aparece na Europa por volta do século XII vai se apresentar como o representante do soberano do rei ou do senhor Havendo crime delito ou contestação entre dois 32 indivíduos ele se apresenta como representante de um poder lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um crime O procurador vai dublar a vítima vai estar por trás daquele que deveria dar a queixa dizendo Se é verdade que este homem lesou um outro eu representante do soberano posso afirmar que o soberano seu poder a ordem que ele faz reinar a lei que ele estabeleceu foram igualmente lesados por esse indivíduo Assim eu também me coloco contra ele O soberano o poder político vêm desta forma dublar e pouco a pouco substituir a vítima Este fenômeno absolutamente novo vai permitir ao poder político apossarse dos procedimentos judiciários O procurador portanto se apresenta como o representante do soberano lesado pelo dano 3 Uma noção absolutamente nova aparece a infração Enquanto o drama judiciário se desenrolava entre dois indivíduos vítima e acusado tratavase apenas de dano que um indivíduo causava a outro A questão era a de saber se houve dano quem tinha razão A partir do momento em que o soberano ou seu representante o procurador dizem Também fui lesado pelo dano isto significa que o dano não é somente um ofensa de um indivíduo a outro mas também uma ofensa de um indivíduo ao Estado ao soberano como representante do Estado um ataque não ao indivíduo mas à própria lei do Estado Assim na noção de crime a velha noção de dano será substituída pela de infração A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra outro é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem ao Estado à lei à sociedade à soberania ao soberano A infração é uma das grandes invenções do pensamento medieval Vemos assim como o poder estatal vai confiscando todo o procedimento judiciário todo o mecanismo de liquidação interindividual dos litígios da Alta Idade Média 4 Há ainda uma última descoberta uma última invenção tão diabólica quanto a do procurador e da infração o Estado ou melhor o soberano já que não se pode falar de Estado nessa época é não somente a parte lesada mas a que exige reparação Quando um indivíduo perde o processo é declarado culpado e deve ainda uma reparação a sua vítima Mas esta reparação não é absolutamente a do antigo Direito Feudal ou do antigo Direito Germânico Não se trata mais de resgatar sua paz dando satisfação a seu adversário Vaise exigir do culpado não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano o Estado a lei É assim que aparece com o mecanismo das multas o grande mecanismo das confiscações Confiscações dos bens que são para as monarquias nascentes um dos grandes meios de enriquecer e alargar suas propriedades As monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação da justiça que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscação Eis o pano de fundo político desta transformação É necessário agora explicar o estabelecimento da sentença explicar como se chega ao final de um processo em que um dos personagens principais é o procurador Se a principal vítima de uma infração é o rei se é o procurador que se queixa em primeiro lugar compreendese que a liquidação judiciária não pode mais ser obtida pelos mecanismos da prova O rei ou seu representante o procurador não podem arriscar suas próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime é cometido Não é em pé de igualdade como em uma luta entre dois indivíduos que o acusado eo procurador se defrontam É preciso encontrar um novo mecanismo que não seja mais o da prova da luta entre dois adversários para saber se alguém é culpado ou não O modelo belicoso não pode ser mais aplicado Que modelo então se vai adotar Este é um dos grandes momentos da história do Ocidente Havia dois modelos para resolver o problema Em primeiro lugar um modelo intrajurídico No próprio Direito Feudal no Direito Germânico Antigo havia um caso em que a coletividade em sua totalidade podia intervir acusar alguém e obter sua condenação era o flagrante delito caso em que um indivíduo era surpreendido no exato momento em que cometia o crime Nesse momento as pessoas que o surpreendiam tinham o direito de leválo ao soberano ao detentor de um poder político e dizer Nós o vimos fazendo tal coisa e consequentemente é preciso punilo ou exigirlhe reparação Havia assim na própria esfera do Direito um modelo de intervenção coletiva e de decisão autoritária para a liquidação de um litígio de ordem judiciária Era o caso do flagrante delito quando o crime era surpreendido na sua atualidade Esse modelo evidentemente não podia ser utilizado quando o que é mais frequente não se surpreende o indivíduo no momento em que comete o crime O problema era então o de saber em que condições podiase generalizar o modelo do flagrante delito e utilizálo nesse novo sistema do Direito que estava nascendo inteiramente comandado pela soberania política e pelos representantes do soberano político Preferiuse utilizar um segundo modelo extrajudiciário que por sua vez se subdivide em dois ou melhor que tinha nessa época uma existência dupla uma dupla inserção Tratase do modelo do inquérito que tinha existido na época do Império Carolíngio Quando os representantes do soberano tinham de solucionar um problema de direito de poder ou uma questão de impostos de costumes de foro ou de propriedade procediase a algo perfeitamente ritualizado e regular a inquisitio o inquérito O representante do poder chamava pessoas consideradas capazes de conhecer os costumes o Direito ou os títulos de propriedade Reunia estas pessoas fazia com que jurassem dizer a verdade o que conheciam o que tinham visto ou o que sabiam por ter ouvido dizer Em seguida deitadas à sós estas pessoas deliberavam Ao final dessa deliberação pediase a solução do problema Este era um método de gestão administrativa que os funcionários do Império Carolíngio praticavam regularmente Ele foi ainda empregado depois de sua dissolução por Guilherme o Conquistador na Inglaterra Em 1096 os conquistadores normandos ocuparam a Inglaterra se apoderaram dos bens anglosaxões e entraram em litígio com a população autóctone e entre si visando à posse desses bens Guilherme o Conquistador para por tudo em ordem para integrar a nova população normanda à antiga população anglosaxônica fez um enorme inquérito sobre o estado das propriedades os estados dos impostos o sistema de foro etc Tratase do famoso Domesday único exemplo global que possuímos desses inquéritos que eram uma velha prática administrativa de imperadores carolíngios Esse procedimento de inquérito administrativo tem algumas características importantes 1 O poder político é o personagem essencial 2 O poder se exerce primeiramente fazendo perguntas questionando Não sabe a verdade e procura sabêla 3 O poder para determinar a verdade dirigese aos notáveis pessoas consideradas capazes de saber devido à situação idade riqueza notabilidade etc 4 Ao contrário do que se vê no final de ÉdipoRei o poder consulta os notáveis sem forçálos a dizer a verdade pelo uso da violência da pressão ou da tortura Pedese que se reúnam livremente e que dêem uma opinião coletiva Deixase que coletivamente digam o que consideram ser a verdade Temos assim um tipo de estabelecimento da verdade totalmente ligado à gestão administrativa da primeira grande forma de estado conhecida no Ocidente Esses procedimentos de inquérito foram no entanto esquecidos durante os séculos X e XI na Europa da alta feudalidade e teriam sido totalmente esquecidos se a Igreja não os tivesse utilizado na gestão de seus próprios bens Será necessário entretanto complicar um pouco a análise Pois se a Igreja utilizou novamente o método carolíngio de inquérito foi porque já o tinha praticado antes do Império Carolíngio por razões mais espirituais que administrativas Havia com efeito uma prática de inquérito na Igreja da Alta Idade Média na Igreja Merovíngia e Carolíngia Esse método se chamava visitatio e consistia na visita que o bispo devia estatutariamente fazer percorrendo sua diocese e que foi retomado em seguida pelas grandes ordens monásticas Ao chegar em um determinado lugar o bispo instituía em primeiro lugar a inquisitio generalis inquisição geral perguntando a todos os que deviam saber os notáveis os mais idosos os mais sábios os mais virtuosos o que tinha acontecido na sua ausência sobretudo se tinha havido falta crime etc Se esse inquérito chegasse a uma resposta positiva o bispo passava ao segundo estágio à inquisitio specialis inquisição especial que consistia em apurar quem tinha feito o que em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato Finalmente um terceiro ponto a confissão do culpado podia interromper a inquisição em qualquer estágio em sua forma geral ou especial Aquele que tivesse cometido o crime poderia apresentarse e proclamar publicamente Sim Um crime foi cometido consistiu nisso eu sou o seu autor Esta forma espiritual essencialmente religiosa do inquérito eclesiástico subsistiu durante toda a Idade Média tendo adquirido funções administrativas e econômicas Quando a Igreja se tornou o único corpo econômicopolítico coerente da Europa nos séculos X XI e XII a inquisição eclesiástica foi ao mesmo tempo inquérito espiritual sobre os pecados faltas e crimes cometidos e inquérito administrativo sobre a maneira como os bens da Igreja eram administrados e os proveitos reunidos acumulados distribuídos etc Este modelo ao mesmo tempo religioso e administrativo do inquérito subsistiu até o século XII quando o Estado que nascia ou antes a pessoa do soberano que surgia como fonte de todo o poder passa a confiscar os procedimentos judiciários Estes procedimentos judiciários não podem mais funcionar segundo o sistema da prova De que maneira então o procurador vai estabelecer que alguém é ou não culpado O modelo espiritual e administrativo religioso e político maneira de gerir e de vigiar e controlar as almas se encontra na Igreja inquérito entendido como olhar tanto sobre os bens e as riquezas quanto sobre os corações os atos as intenções etc É esse modelo que vai ser retomado no procedimento judiciário O procurador do Rei vai fazer o mesmo que os visitantes eclesiásticos faziam nas paróquias dioceses e comunidades Vai procurar estabelecer por inquisitio por inquérito se houve crime qual foi ele e quem o cometeu Esta é a hipótese que gostaria de lançar O inquérito teve uma dupla origem Origem administrativa ligada ao surgimento do Estado na época carolíngia origem religiosa eclesiástica mais constantemente presente durante a Idade Média É este procedimento de inquérito que o procurador do rei a justiça monárquica nascente utilizou para preencher a função do flagrante delito de que falei anteriormente O problema era o de saber como generalizar o flagrante delito a crimes que não eram de domínio do campo da atualidade como podia o procurador do rei trazer o culpado diante de uma instância judiciária que detinha o poder se não sabia quem era o culpado uma vez que não houvera flagrante delito O inquérito vai ser o substituto do flagrante delito Se com efeito se consegue reunir pessoas que podem sob juramento garantir que viram que sabem que estão a par se é possível estabelecer por meio delas que algo aconteceu realmente terseá indiretamente através do inquérito por intermédio das pessoas que sabem o equivalente ao flagrante delito E se poderá tratar de gestos atos delitos crimes que não estão mais no campo da atualidade como se fossem apreendidos em flagrante delito Temse aí uma nova maneira de prorrogar a atualidade de transferila de uma época para outra e de oferecêla ao olhar ao saber como se ela ainda estivesse presente Esta inserção do procedimento do inquérito reatualizando tornando presente sensível imediato verdadeiro o que aconteceu como se o estivéssemos presenciando constitui uma descoberta capital Podemos tirar desta análise algumas conclusões 1 Costumase opor as velhas provas do direito bárbaro ao novo procedimento racional do inquérito Evoquei acima as diferentes maneiras pelas quais se tentava estabelecer quem tinha razão na Alta Idade Média Temos a impressão de serem sistemas bárbaros arcaicos irracionais Ficase impressionado com o fato de ter sido necessário esperar até o século XII para finalmente se chegar com o procedimento do inquérito a um sistema racional de estabelecimento da verdade Não creio no entanto que o procedimento de inquérito seja simplesmente o resultado de uma espécie de progresso da racionalidade Não foi racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao procedimento do inquérito Foi toda uma transformação política uma nova estrutura política que tornou não só possível mas necessária a utilização desse procedimento no domínio judiciário O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo uma técnica de administração uma modalidade de gestão em outras palavras o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer Estaríamos enganados se víssemos no inquérito o resultado natural de uma razão que atua sobre si mesma se elabora faz seus próprios progressos se víssemos o efeito de um conhecimento de um sujeito de conhecimento se elaborando Nenhuma história feita em termos de progresso da razão de refinamento do conhecimento pode dar conta da aquisição da racionalidade do inquérito Seu aparecimento é um fenômeno político complexo É a análise das transformações políticas da sociedade medieval que explica como por que e em que momento aparece este tipo de estabelecimento da verdade a partir de procedimentos jurídicos completamente diferentes Nenhuma referência a um sujeito de conhecimento e a sua história interna daria conta deste fenômeno Somente a análise dos jogos de força política das relações de poder pode explicar o surgimento do inquérito 2 O inquérito deriva de um certo tipo de relações de poder de uma maneira de exercer o poder Ele se introduz no Direito a partir da Igreja e consequentemente é impregnado de categorias religiosas Na concepção da Alta Idade Média o essencial era o dano o que tinha se passado entre dois indivíduos não havia falta nem infração A falta o pecado a culpabilidade moral absolutamente não intervinham O problema era o de saber se houve ofensa quem a praticou e se aquele que pretende ter sofrido a ofensa é capaz de suportar a prova que ele propõe a seu adversário Não há erro culpabilidade nem relação com o pecado Ao contrário a partir do momento em que o inquérito se introduz na prática judiciária traz consigo a importante noção de infração Quando um indivíduo causa dano a um outro há sempre a fortiori dano à soberania à lei ao poder Por outro lado devido a todas as implicações e conotações religiosas do inquérito o dano será uma falta moral quase religiosa ou com conotação religiosa Temse assim por volta do século XII uma curiosa conjunção entre a lesa à lei e a falta religiosa Lesar o soberano e cometer um pecado são duas coisas que começam a se reunir Elas estarão unidas profundamente no Direito Clássico Dessa conjunção ainda não estamos totalmente livres 3 O inquérito que aparece no século XII em consequência desta transformação nas estruturas políticas e nas relações de poder reorganizou inteiramente ou em sua volta se reorganizaram todas as práticas judiciárias da Idade Média da época clássica e até da época moderna De maneira mais geral este inquérito judiciário se difundiu em muitos outros domínios de práticas sociais econômicas e em muitos domínios do saber Foi a partir desses inquéritos judiciários conduzidos pelos procuradores do rei que a partir do século XIII se difundiu uma série de procedimentos de inquérito Alguns eram principalmente administrativos ou econômicos Foi assim que graças a inquéritos sobre o estado da população o nível das riquezas a quantidade de dinheiro e de recursos os agentes reais asseguraram estabeleceram e aumentaram o poder real Foi desta forma que todo um saber econômico de administração econômica dos estados se acumulou no fim da Idade Média e nos séculos XVII e XVIII Foi a partir daí que nasceu uma forma regular de administração dos estados de transmissão e de continuidade do poder político e nasceram ciências como a Economia Política a Estatística etc Estas técnicas de inquérito difundiramse igualmente em domínios não diretamente ligados aos domínios de exercício de poder domínio do saber ou do conhecimento no sentido tradicional da palavra A partir dos séculos XIV e XV aparecem tipos de inquérito que procuraram estabelecer a verdade a partir de um certo número de testemunhos cuidadosamente recolhidos em domínios como o da Geografia da Astronomia do conhecimento dos climas etc Aparece em particular uma técnica de viagem empreendimento político de exercício de poder e empreendimento de curiosidade e de aquisição de saber que conduziu finalmente ao descobrimento da América Todos os grandes inquéritos que dominaram o fim da Idade Média são no fundo a explosão e a dispersão dessa primeira forma desta matriz que nasceu no século XII Até mesmo domínios como o da Medicina da Botânica da Zoologia a partir dos séculos XVI e XVII são irradiações desse processo Todo o grande movimento cultural que depois do século XII começa a preparar o Renascimento pode ser definido em grande parte como o desenvolvimento o florescimento do inquérito como forma geral de saber Enquanto o inquérito se desenvolve como forma geral de saber no interior do qual o Renascimento eclodirá a prova tende a desaparecer Dela só encontraremos os elementos os restos na forma da famosa tortura mas já mesclada com a preocupação de obter uma confissão prova de verificação Podese fazer toda uma história da tortura situandoa entre os procedimentos da prova e do inquérito A prova tende a desaparecer na prática judiciária ela desaparece também nos domínios do saber Poderíamos indicar dois exemplos Em primeiro lugar a Alquimia A Alquimia é um saber que tem por modelo a prova Não se trata de fazer um inquérito para saber o que se passa para saber a verdade Tratase essencialmente de um afrontamento entre duas forças a do alquimista que procura e a da natureza que esconde seus segredos da sombra e da luz do bem e do mal de Satã e de Deus O alquimista realiza uma espécie de luta em que ele é ao mesmo tempo o espectador aquele que verá o desfecho do combate e um dos combatentes visto que pode ganhar ou perder Podese dizer que a Alquimia é uma forma química naturalista da prova Temse a confirmação de que o saber alquímico é essencialmente uma prova no fato de que ele absolutamente não se transmitiu não se acumulou como um resultado de inquéritos que permitissem chegar à verdade O saber alquímico se transmitiu unicamente em forma de regras secretas ou públicas de procedimento eis como se deve fazer eis como se deve agir eis que princípios respeitar eis que preces fazer que textos ler que códigos devem estar presentes A Alquimia constitui essencialmente um corpus de regras jurídicas de procedimentos O desaparecimento da Alquimia o fato de que um saber de tipo novo se tenha constituído absolutamente fora do seu domínio devese a que esse novo saber tomou como modelo a matriz do inquérito Todo saber de inquérito saber naturalista botânico mineralógico filológico é absolutamente estranho ao saber alquímico que obedece aos modelos judiciários da prova Em segundo lugar a crise da universidade medieval no fim da Idade Média pode também ser analisada em termos de oposição entre o inquérito e a prova Na universidade medieval o saber se manifestava se transmitia e se autentificava através de determinados rituais dos quais o mais célebre e mais conhecido era a disputatio a disputa Tratavase do afrontamento de dois adversários que utilizavam a arma verbal os processos retóricos e demonstrações baseadas essencialmente no apelo à autoridade Apelavase não para testemunhas de verdade mas para testemunhas de força Na disputatio quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade de força de gravidade e não testemunhos de verdade maior possibilidade ele teria de sair vencedor A disputatio é uma forma de prova de manifestação do saber da autentificação do saber que obedece ao esquema geral da prova O saber medieval e sobretudo o saber enciclopédico do Renascimento do tipo de Pico della Mirandola que vai se chocar com a forma medieval da universidade será precisamente do tipo do inquérito Ter visto ter lido os textos saber o que efetivamente foi dito conhecer tão bem o que foi dito quanto a natureza a respeito da qual algo foi dito verificar o que os autores disseram pela constatação da natureza utilizar os autores não mais como autoridade mas como testemunho tudo isto vai constituir uma das grandes revoluções na forma de transmissão do saber O desaparecimento da Alquimia e da disputatio ou melhor o fato desta última ter sido relegada a formas universitárias completamente esclerósadas e não apresentar a partir do século XVI mais nenhuma atualidade nenhuma eficácia nas formas de autentificação real do saber são alguns dos numerosos sinais do conflito entre o inquérito e a prova e do triunfo do inquérito sobre a prova no fim da Idade Média Como conclusão poderíamos dizer o inquérito não é absolutamente um conteúdo mas a forma de saber Forma de saber situada na junção de um tipo de poder e de certo número de conteúdos de conhecimentos Aqueles que querem estabelecer uma relação entre o que é conhecido e as formas políticas sociais ou econômicas que servem de contexto a esse conhecimento costumam estabelecer essa relação por intermédio da consciência ou do sujeito de conhecimento Pareceme que a verdadeira junção entre processos econômicopolíticos e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber O inquérito é precisamente uma forma política uma forma de gestão de exercício do poder que por meio da instituição judiciária veio a ser uma maneira na cultura ocidental de autentificar a verdade de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir O inquérito é uma forma de saberpoder É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações enonômicopolíticas IV Na conferência anterior procurei mostrar quais foram os mecanismos e os efeitos da estatização da justiça penal na Idade Média Gostaria que nos situássemos agora em fins do século XVIII e início do século XIX no momento em que se constitui o que tentarei analisar nesta e na próxima conferência sob o nome de sociedade disciplinar A sociedade contemporânea por razões que explicarei merece o nome de sociedade disciplinar Gostaria de mostrar quais são as formas de práticas penais que caracterizam essa sociedade quais as relações de poder subjacentes a essas práticas penais quais as formas de saber os tipos de conhecimento os tipos de sujeito de conhecimento que emergem que aparecem a partir e no espaço desta sociedade disciplinar que é a sociedade contemporânea A formação da sociedade disciplinar pode ser caracterizada pelo aparecimento no final do século XVIII e início do século XIX de dois fatos contraditórios ou melhor de um fato que tem dois aspectos dois lados aparentemente contraditórios a reforma a reorganização do sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e do mundo Esta transformação não apresenta as mesmas formas a mesma amplitude a mesma cronologia nos diferentes países Na Inglaterra por exemplo as formas de justiça permanecera relativamente estáveis enquanto que o conteúdo das leis o conjunto de condutas penalmente repreensíveis se modificou profundamente No século XVIII havia na Inglaterra 313 ou 315 condutas capazes de levar alguém à força ao cadafalso 315 casos punidos com a morte Isso tornava o código penal a lei penal o sistema penal inglês do século XVIII um dos mais selvagens e sangrentos que a história das civilizações conheceu Esta situação foi profundamente modificada no começo do século XIX sem que as formas e instituições judiciárias inglesas se modificassem profundamente Na França ao contrário ocorreram modificações muito profundas nas instituições penais sem que o conteúdo da lei penal se tenha modificado Em que consistem essas transformações dos sistemas penais Por um lado em uma reelaboração teórica da lei penal Ela pode ser encontrada em Beccaria Bentham Brissot e em legisladores que são os autores do 1 e do 2 Código Penal francês da época revolucionária O princípio fundamental do sistema teórico da lei penal definido por esses autores é que o crime no sentido penal do termo ou mais tecnicamente a infração não deve ter mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa A falta é uma infração à lei natural à lei religiosa à lei moral O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder político Para que haja infração é preciso haver um poder político uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada Antes da lei existir não pode haver infração Segundo esses teóricos só podem sofrer penalidade as condutas efetivamente definidas como repreensíveis pela lei Um segundo princípio é que essas leis positivas formuladas pelo poder político no interior de uma sociedade para serem boas leis não devem retranscrever em termos positivos a lei natural a lei religiosa ou a lei moral Uma lei penal deve simplesmente representar o que é útil para a sociedade A lei define como repreensível o que é nocivo à sociedade definindo assim negativamente o que é útil O terceiro princípio se deduz naturalmente dos dois primeiros uma definição clara e simples do crime O crime não é algo aparentado com o pecado e com a falta é algo que danifica a sociedade é um dano social uma perturbação um incômodo para toda a sociedade Há por conseguinte também uma nova definição do criminoso O criminoso é aquele que danifica perturba a sociedade O criminoso é o inimigo social Encontramos isso muito claramente em todos esses teóricos como também em Rousseau que afirma que o criminoso é aquele que rompeu o pacto social Há identidade entre o crime e a ruptura do pacto social O criminoso é um inimigo interno Esta idéia do criminoso como inimigo interno como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido é uma definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade Se o crime é um dano social se o criminoso é o inimigo da sociedade como a lei penal deve tratar esse criminoso ou deve reagir a esse crime Se o crime é uma perturbação para a sociedade se o crime não tem mais nada a ver com a falta com a lei natural divina religiosa etc é claro que a lei penal não pode prescrever uma vingança a redenção de um pecado A lei penal deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade A lei penal deve ser feita de tal maneira que o dano causado pelo indivíduo à sociedade seja apagado se isso não for possível é preciso que o dano não possa mais ser recomeçado pelo indivíduo em questão ou por outro A lei penal deve reparar o mal ou impedir que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social Daí decorrem para esses teóricos quatro tipos possíveis de punição Primeiramente a punição expressa na afirmação você rompeu o pacto social você não pertence mais ao corpo social você mesmo se colocou fora do espaço da legalidade nós o expulsaremos do espaço social onde essa legalidade funciona É a idéia encontrada frequentemente nesses autores Beccaria Bentham etc de que no fundo a punição ideal seria simplesmente expulsar as pessoas exilálas banilas ou deportálas É a deportação A segunda possibilidade é uma espécie de exclusão no próprio local Seu mecanismo não é mais a deportação material a transferência para fora do espaço social mas o isolamento no interior do espaço moral psicológico público constituído pela opinião É a idéia das punições ao nível do escândalo da vergonha da humilhação de quem cometeu uma infração Publicase a sua falta mostrase a pessoa ao público suscitase no público uma reação de aversão de desprezo de condenação Esta era a pena Beccaria e outros inventaram mecanismos para provocar vergonha e humilhação A terceira pena é a reparação do dano social o trabalho forçado Ela consiste em forçar as pessoas a uma atividade útil ao Estado ou à sociedade de tal forma que o dano causado seja compensado Temse assim uma teoria do trabalho forçado Enfim em quarto lugar a pena consiste em fazer com que o dano não possa ser novamente cometido em fazer com que o indivíduo em questão ou os demais não possam mais ter vontade de causar à sociedade o dano anteriormente causado em fazêlos repugnar para sempre o crime que cometeram E para obter esse resultado a pena ideal que se ajusta na medida exata é a pena de talião Matase quem matou tomamse os bens de quem roubou quem cometeu uma violação para alguns dos teóricos do século XVIII deve sofrer algo semelhante Eis portanto uma bateria de penalidades deportação trabalho forçado vergonha escândalo público e pena de talião Projetos efetivamente apresentados não somente por teóricos puros como Beccaria mas também por legisladores como Brissot e Lepeletier de SaintFargeau que participaram da elaboração do 1 Código Penal Revolucionário Já se havia avançado bastante na organização da penalidade centrada na infração penal e na infração a uma lei representando a utilidade pública Tudo deriva daí até mesmo o quadro das penalidades e o modo como são aplicadas Têmse assim esses projetos esses textos e até esses decretos adotados pelas Assembléias Mas se observarmos o que realmente se passou como funcionou a penalidade algum tempo depois por volta de 1820 no momento da Restauração na França e da Santa Aliança na Europa percebemos que o sistema de penalidades adotado pelas sociedades industriais em vias de formação em vias de desenvolvimento foi inteiramente diferente do que tinha sido projetado alguns anos antes Não que a prática tenha desmentido a teoria porém ela se desviou rapidamente dos princípios teóricos que encontramos em Beccaria e Bentham Retomemos o sistema de penalidades A deportação desapareceu bem rapidamente o trabalho forçado foi geralmente uma pena simplesmente simbólica em sua função de reparação os mecanismos de escândalo nunca chegaram a ser postos em prática a pena de talião desapareceu rapidamente tendo sido denunciada como arcaica para uma sociedade suficientemente desenvolvida Esses projetos bem precisos de penalidade foram substituídos por uma pena bem curiosa de que Beccaria havia falado ligeiramente e que Brissot mencionava de forma bem marginal tratase do aprisionamento da prisão A prisão não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII Surge no início do século XIX como uma instituição de fato quase sem justificativa teórica Não só a prisão pena que vai efetivamente se generalizar no século XIX não estava prevista no programa do século XVIII como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria Com efeito a legislação penal desde o início do século XIX e de forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século vai se desviar do que podemos chamar a utilidade social ela não procurará mais visar ao que é socialmente útil mas pelo contrário procurará ajustarse ao indivíduo Podemos citar como exemplo às grandes reformas da legislação penal na França e demais países europeus entre 1825 e 185060 que consistem na organização do que chamamos circunstâncias atenuantes o fato da aplicação rigorosa da lei tal como se acha no Código poder ser modificada por determinação do juiz ou do júri e em função do indivíduo em julgamento O princípio de uma lei universal representando unicamente os interesses sociais é consideravelmente falseado pela utilização das circunstâncias atenuantes que vão assumindo importância cada vez maior Além disso a penalidade que se desenvolve no século XIX se propõe cada vez menos definir de modo abstrato e geral o que é nocivo à sociedade afastar os indivíduos que são nocivos à sociedade ou impedílos de recomeçar A penalidade no século XIX de maneira cada vez mais insistente tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos Esta é uma forma de penalidade totalmente diferente daquela prevista no século XVIII na medida em que o grande princípio da penalidade para Beccaria era o de que não haveria punição sem uma lei explícita e sem um comportamento explícito violando essa lei Enquanto não houvesse lei e infração explícita não poderia haver punição este era o princípio fundamental de Beccaria Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei mas ao nível do que podem fazer do que são capazes de fazer do que estão sujeitos a fazer do que estão na iminência de fazer Assim a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção em termos de teoria penal de periculosidade A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva mas das virtualidades de comportamento que elas representam O último ponto capital que a teoria penal coloca em questão ainda mais fortemente do que Beccaria é que para assegurar o controle dos indivíduos que não é mais reação penal ao que eles fizeram mas controle de seu comportamento no momento mesmo em que ele se esboça a instituição penal não pode mais estar inteiramente em mãos de um poder autônomo o poder judiciário Chegase assim à contestação da grande separação atribuída a Montesquieu ou pelo menos formulada por ele entre poder judiciário poder executivo e poder legislativo O contro le dos indivíduos essa espécie de controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça mas por uma série de outros poderes laterais à margem da justiça como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção a polícia para a vigilância as instituições psicológicas psiquiátricas criminológicas médicas pedagógicas para a correção É assim que no século XIX desenvolvese em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência instituições pedagógicas como a escola psicológicas ou psiquiátricas como o hospital o asilo a polícia etc Toda essa rede de um poder que não é judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento função não mais de punir as infrações dos indivíduos mas de corrigir suas virtualidades Entramos assim na idade do que eu chamaria de ortopedia social Tratase de uma forma de poder de um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente É a idade de controle social Entre os teóricos que há pouco citei alguém de certa forma previu e apresentou como que um esquema desta sociedade de vigilância da grande ortopedia social Tratase de Bentham Peço desculpas aos historiadores da filosofia por esta afirmação mas acredito que Bentham seja mais importante para nossa sociedade do que Kant Hegel etc Ele deveria ser homenageado em cada uma de nossas sociedades Foi ele que programou definiu e descreveu da maneira mais precisa as formas de poder em que vivemos e que apresentou um maravilhoso e célebre pequeno modelo desta sociedade da ortopedia generalizada o famoso Panopticon 43 Uma forma de arquitetura que permite um tipo de poder do espírito sobre o espírito uma espécie de instituição que deve valer para escolas hospitais prisões casas de correção hospícios fábricas etc O Panopticon era um edifício em forma de anel no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior Em cada uma dessas pequenas celas havia segundo o objetivo da instituição uma criança aprendendo a escrever um operário trabalhando um prisioneiro se corrigindo um louco atualizando sua loucura etc Na torre central havia um vigilante Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela não havia nela nenhum ponto de sombra e por conseguinte tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vêlo Para Bentham esta pequena e maravilhosa astúcia arquitetônica podia ser utilizada por uma série de instituições O Panopticon é a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que é no fundo a sociedade que atualmente conhecemos utopia que efetivamente se realizou Este tipo de poder pode perfeitamente receber o nome de panoptismo Vivemos em uma sociedade onde reina o panoptismo O panoptismo é uma forma de poder que repousa não mais sobre um inquérito mas sobre algo totalmente diferente que eu chamaria de exame O inquérito era um procedimento pelo qual na prática judiciária se procurava saber o que havia ocorrido Tratavase de reatualizar um acontecimento passado através de testemunhos apresentados por pessoas que por uma ou outra razão por sua sabedoria ou pelo fato de terem 44 presenciado o acontecimento eram tidas como capazes de saber No Panopticon vai se produzir algo totalmente diferente não há mais inquérito mas vigilância exame Não se trata de reconstituir um acontecimento mas de algo ou antes de alguém que se deve vigiar sem interrupção e totalmente Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder mestreescola chefe de oficina médico psiquiatra diretor de prisão e que enquanto exerce esse poder tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir sobre aqueles que vigia a respeito deles um saber Um saber que tem agora por característica não mais determinar se alguma coisa se passou ou não mas determinar se um indivíduo se conduz ou não como deve conforme ou não à regra se progride ou não etc Esse novo saber não se organiza mais em torno das questões isto foi feito quem o fez não se ordena em termos de presença ou ausência de existência ou não existência Ele se ordena em torno da norma em termos do que é normal ou não correto ou não do que se deve ou não fazer Temse portanto em oposição ao grande saber de inquérito organizado no meio da Idade Média através da confiscação estatal da justiça que consistia em obter os instrumentos de reatualização de fatos através do testemunho um novo saber de tipo totalmente diferente um saber de vigilância de exame organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência Esta é a base do poder a forma de saberpoder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito mas ao que chamamos ciências humanas Psiquiatria Psicologia Sociologia etc Gostaria agora de analisar como isso se deu Como se chegou a ter por um lado determinada teoria penal que programa claramente certo número de coisas e por outro uma prática real social que conduziu a resultados totalmente diferentes Tomarei sucessivamente dois exemplos que se encontram entre os mais importantes e determinantes deste processo o da Inglaterra e o da França deixarei de lado o exemplo dos Estados Unidos que é também importante Gostaria de mostrar como na França e sobretudo na Inglaterra existiu uma série de mecanismos de controle controle da população controle permanente do comportamento dos indivíduos Esses mecanismos se formaram obscuramente durante o século XVIII para responder a certo número de necessidades e assumindo cada vez maior importância se estenderam finalmente por toda a sociedade e se impuseram a uma prática penal Quais são de onde vêm e a que respondem esses mecanismos de controle Tomemos o exemplo da Inglaterra Desde a segunda metade do século XVIII se formaram em níveis relativamente baixos da escala social grupos espontâneos de pessoas que se atribuíam sem nenhuma delegação de um poder superior a tarefa de manter a ordem e criar para eles próprios novos instrumentos para assegurar a ordem Esses grupos eram numerosos e proliferaram durante todo o século XVIII Seguindo uma ordem cronológica houve em primeiro lugar comunidades religiosas dissidentes do anglicanismo os quakers os metodistas que se encarregavam de organizar sua própria polícia É assim que entre os metodistas Wesley por exemplo visitava um pouco como os bispos da Alta Idade Média as comunidades metodistas em viagem de inspeção A ele eram submetidos todos os casos de desordem embriaguez adultério recusa de trabalhar etc As sociedades de amigos de inspiração quaker funcionavam de forma semelhante Todas essas sociedades tinham a dupla tarefa de vigilância e de assistência Elas se atribuíam a tarefa de assistir os que não 45 possuíam meios de subsistência os que não podiam trabalhar porque eram muito velhos enfermos doentes mentais etc Mas ao mesmo tempo em que os assistiam elas se atribuíam a possibilidade e o direito de observar em que condições era dada a assistência observar se o indivíduo que não trabalhava estava efetivamente doente se sua pobreza e miséria eram devidas à devassidão à bebedeira aos vícios etc Tratavase portanto de grupos de vigilância espontânea com origem funcionamento e ideologia profundamente religiosos Houve em segundo lugar ao lado destas comunidades propriamente religiosas sociedades a elas aparentadas embora mantendo uma certa distância um certo afastamento Por exemplo em fins do século XVII em 1692 na Inglaterra deuse a fundação de uma sociedade que se chamava de forma bem característica Sociedade para a Reforma das Maneiras do comportamento da conduta Tratase de uma sociedade muito importante que tinha na época da morte de Guilherme III cem filiais na Inglaterra e dez na Irlanda apenas na cidade de Dublin Essa sociedade que desapareceu no início do século XVIII e reapareceu sob a influência de Wesley na segunda metade do século se propunha a reformar as maneiras fazer respeitar o domingo é em grande parte à ação dessas grandes sociedades que devemos o exciting domingo inglês impedir o jogo a bebedeira reprimir a prostituição o adultério as imprecações as blasfêmias tudo que pudesse manifestar desprezo para com Deus Tratavase como diz Wesley em seus sermões de impedir a classe mais baixa e mais vil de se aproveitar dos jovens sem experiência e lhes extorquir seu dinheiro Em fins do século XVIII esta sociedade é superada em importância por uma outra inspirada por um bispo e determi nados aristocratas da corte chamada Sociedade da Proclamação por ter conseguido do rei uma proclamação para o encorajamento da piedade e da virtude Essa sociedade em 1802 se transforma e recebe o título característico de Sociedade para a Supressão do Vício tendo por objetivo fazer respeitar o domingo impedir a circulação dos livros licenciosos e obscenos introduzir ações na justiça contra a má literatura e mandar fechar as casas de jogo e de prostituição Esta sociedade ainda que de funcionamento essencialmente moral próxima dos grupos religiosos já era entretanto um pouco laicizada Em terceiro lugar encontramos no século XVIII na Inglaterra outros grupos mais interessantes e mais inquietantes grupos de autodefesa de caráter paramilitar Eles surgiram em resposta às primeiras grandes agitações sociais não ainda proletárias aos grandes movimentos políticos sociais ainda com forte conotação religiosa do fim do século XVIII na Inglaterra particularmente o dos partidários de Lord Gordon Em resposta a essas grandes agitações populares os meios mais afortunados a aristocracia a burguesia se organizam em grupos de autodefesa É assim que uma série de associações a Infantaria Militar de Londres a Companhia de Artilharia etc se organizam espontaneamente sem apoio ou com apoio lateral do poder Elas têm por função fazer reinar a ordem política penal ou simplesmente a ordem em um bairro uma cidade uma região ou um condado Em uma última categoria de sociedade estão as sociedades propriamente econômicas As grandes companhias as grandes sociedades comerciais se organizam em sociedades de polícia de polícia privada para defender seu patrimônio seu estoque suas mercadorias os barcos ancorados no porto de Londres contra os amotinadores o banditismo a pilhagem cotidiana os pequenos ladrões Estas polícias dividiam bairros de Londres ou de grandes cidades como Liverpool em organizações privadas Essas sociedades respondiam a uma necessidade demográfica ou social à urbanização ao grande deslocamento de populações do campo para as cidades respondiam também e voltaremos a esse assunto a uma transformação econômica importante a uma nova forma de acumulação da riqueza na medida em que quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque de mercadoria armazenada de máquinas tornase necessário guardar vigiar e garantir sua segurança respondiam enfim a uma nova situação política às novas formas de revoltas populares que de origem essencialmente camponesa nos séculos XVI e XVII se tornam agora grandes revoltas urbanas populares e em seguida proletárias É interessante observar a evolução dessas associações espontâneas na Inglaterra do século XVIII Há um triplo deslocamento ao longo desta história Consideremos o primeiro deslocamento No início estes grupos eram quase populares da pequena burguesia Os quakers e metodistas do fim do século XVII e início do século XVIII que se organizavam para tentar tentar suprimir os vícios reformar as maneiras eram pequenos burgueses que se agrupavam visando evidentemente fazer reinar a ordem entre eles e em volta deles Mas essa vontade de fazer reinar a ordem era no fundo uma forma de escapar ao poder político pois este detinha um instrumento formidável aterrorizador e sanguinário sua legislação penal Em mais de 300 casos com efeito se podia ser enforcado Isto significa que era muito fácil para o poder para a aristocracia para os que detinham o aparelho judiciário exercer pressões terríveis sobre as camadas populares Compreendese como os grupos religiosos dissidentes tinham interesse em tentar escapar desse poder judiciário tão sanguinário e ameaçador Para escapar desse poder judiciário os indivíduos se organizavam em sociedades de reforma moral proibiam a embriaguez a prostituição o roubo etc tudo o que permitisse ao poder atacar o grupo destruilo usar algum pretexto para enviar à força Tratase portanto mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva Esse reforço da penalidade autônoma era uma maneira de escapar à penalidade estatal Ora no decorrer do século XVIII esses grupos vão mudar de inserção social e cada vez mais abandonar seu recrutamento popular ou pequeno burguês No fim do século XVIII são a aristocracia os bispos os duques as pessoas mais ricas que vão suscitar esses grupos de autodefesa moral essas ligas para a supressão dos vícios Temse assim um deslocamento social que indica perfeitamente como esse empreendimento de reforma moral deixa de ser uma autodefesa penal para se tornar ao contrário um reforço do poder da própria autoridade penal Ao lado do temível instrumento penal que possu i o poder vai se atribuir esses instrumentos de pressão de controle Tratase de certo modo de um mecanismo de estatização dos grupos de controle O segundo deslocamento consiste no seguinte enquanto no primeiro grupo tratavase de fazer reinar uma ordem moral diferente da lei que permitisse aos indivíduos escapar à lei no fim do século XVIII esses grupos agora controlados animados pelos aristocratas e pessoas ricas têm como objetivo essencial obter do poder político novas leis que ratificarão esse esforço moral Temse assim um deslocamento da moralidade à penalidade Em terceiro lugar podese dizer que a partir de então esse controle moral vai ser exercido pelas classes mais altas pelos detentores do poder pelo próprio poder sobre as camadas mais baixas mais pobres as camadas populares Ele se torna assim um instrumento de poder das classes ricas sobre as classes pobres das classes que exploram sobre as classes exploradas o que confere uma nova polaridade política e social a essas instâncias de controle Citarei um texto datado de 1804 do fim dessa evolução que tento delinear escrito por um bispo chamado Watson e que pregava perante a Sociedade para a Supressão dos Vícios As leis são boas mas infelizmente são burladas pelas classes mais baixas As classes mais altas certamente não as levam muito em consideração Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas Impossível ser mais claro as leis são boas para os pobres infelizmente os pobres escapam às leis o que é realmente detestável Os ricos também escapam às leis porém isso não tem importância alguma pois as leis não foram feitas para eles No entanto isso tem como consequência que os pobres seguem o exemplo dos ricos para não respeitar as leis Daí o bispo Watson dizer aos ricos Peçolhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres Podemos observar nesta estatização progressiva neste deslocamento das instâncias de controle das mãos dos grupos de pequena burguesia tentando escapar ao poder para as do grupo social que detém efetivamente o poder em toda essa evolução como se introduz e se difunde em um sistema penal estatizado que ignorava por definição a moral e pretendia cortar os laços com a moralidade e a religião uma moralidade de origem religiosa A ideologia religiosa surgida e fomentada nos pequenos grupos quakers metodistas etc na Inglaterra do fim do século XVII vem agora despontar no outro pólo na outra extremidade da escala social do lado do poder como instrumento de controle de cima para baixo Autodefesa no século XVII instrumento de poder no início do século XIX Este é o mecanismo do processo que podemos observar na Inglaterra Na França ocorreu um processo bastante diferente Isto se explica pelo fato de que a França país de monarquia absoluta possuía um forte aparelho de Estado que a Inglaterra do século XVIII já não possuía na medida em que havia sido abalado em parte pela revolução burguesa do século XVII A Inglaterra havia se libertado dessa monarquia absoluta saltando esta etapa em que a França permaneceu durante cento e cinquenta anos Esse forte aparelho do estado monárquico na França estava apoiado em um duplo instrumento um instrumento judiciário clássico os parlamentares as cortes etc e um instrumento parajudiciário a polícia cuja invenção é privilégio da França Uma polícia que comportava os intendentes o corpo de polícia montada os tenentes de polícia que era dotada de instrumentos arquiteturais como a Bastilha Bicêtre as grandes prisões etc que possuía também seus aspectos institucionais como as curiosas lettresdecachet A lettredecachet não era uma lei ou um decreto mas uma ordem do rei que concernia a uma pessoa individualmente obrigandoa a fazer alguma coisa Podiase até mesmo obrigar alguém a se casar pela lettredecachet Na maioria das vezes porém ela era um instrumento de punição Podiase exilar alguém pela lettredecachet priválo de alguma função prendêlo etc Ela era um dos grandes instrumentos de poder da monarquia absoluta As lettresdecachet foram bastante estudadas na França e se tornou comum classificálas como algo temível instrumento de arbitrariedade real abatendose sobre alguém como um raio podendo prendêlo para sempre É preciso ser mais prudente e dizer que as lettresdecachet não funcionaram apenas desta forma Tal como vimos ocorrer com as sociedades de moralidade que eram uma maneira de escapar ao direito podemos observar a respeito das lettresdecachet um jogo bastante curioso Ao examinar as lettresdecachet mandadas pelo rei em quantidade bastante numerosa notamos que na maioria das vezes não era ele que tomava a decisão de enviálas Ele o fazia em alguns casos como nos assuntos de Estado Mas a maioria delas as dezenas de milhares de lettresdecachet enviadas pela monarquia eram na verdade solicitadas por indivíduos diversos maridos ultrajados por suas esposas pais de família descontentes com seus filhos famílias que queriam se livrar de um indivíduo comunidades religiosas perturbadas por alguém uma comuna descontente com seu cura etc Todos esses indivíduos ou pequenos grupos pediam ao intendente do rei uma lettredecachet este fazia um inquérito para saber se o pedido era justificado Quando isto ocorria ele escrevia ao ministro do rei encarregado do assunto solicitando enviar uma lettredecachet permitindo a alguém mandar prender sua mulher que o engana seu filho que é muito gastador sua filha que se prostitui ou o cura da cidade que não demonstra boa conduta etc De forma que a lettredecachet se apresenta sob seu aspecto de instrumento terrível da arbitrariedade real investida de uma espécie de contra poder poder que vinha de baixo e que permitia a grupos comunidades famílias ou indivíduos exercer um poder sobre alguém Eram instrumentos de controle de certa forma espontâneos controle por baixo que a sociedade a comunidade exercia sobre si mesma A lettredecachet consistia portanto em uma forma de regulamentar a moralidade cotidiana da vida social uma maneira do grupo ou dos grupos familiares religiosos paroquiais regionais locais etc assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem Observando as condutas que suscitavam o pedido de lettredecachet e que eram sancionadas por ela podemos distinguir três categorias Em primeiro lugar a categoria do que poderíamos chamar de condutas de imoralidade devassidão adultério sodomia bebedeira etc Tais condutas provocavam da parte das famílias e comunidades um pedido de lettredecachet que era imediatamente aceito Temos portanto aqui a repressão moral Em segundo lugar há as lettresdecachet enviadas para sancionar condutas religiosas julgadas perigosas e dissidentes Desta forma é que se prendiam os feiticeiros que há bastante tempo não eram mais mortos nas fogueiras Em terceiro lugar é interessante notar que no século XVIII as lettresdecachet foram bastante utilizadas em casos de conflitos de trabalho Quando os empregadores patrões ou mestres não estavam satisfeitos com seus aprendizes ou operários nas corporações podiam se descartar deles expulsandoos ou em casos mais raros solicitando uma lettredecachet A primeira greve da história da França que pode assim ser caracterizada foi a dos relojoeiros em 1724 Os patrões relojoeiros reagiram a ela localizando os que eles consideravam líderes e em seguida escreveram ao rei solicitando uma lettredecachet que foi logo enviada Algum tempo depois o ministro do rei quis anular a lettredecachet e libertar os operários grevistas Foi a própria corporação dos relojoeiros que então solicitou ao rei que não libertasse os operários e fosse mantida a lettredecachet Vemos portanto como os controles sociais relativos aqui não mais à moralidade ou à religião mas a problemas de trabalho se exercem por baixo e por intermédio do sistema de lettredecachet sobre a população operária que está surgindo No caso da lettredecachet ser punitiva ela tinha como resultado a prisão do indivíduo É interessante notar que a prisão não era uma pena do direito no sistema penal dos séculos XVII e XVIII Os le g i s l a s são perfeitamente claros a este respeito Eles afirmam que quando a lei pune alguém a punição será a condenação à morte a ser queimado a ser esquartejado a ser marcado a ser banido a pagar uma multa etc A prisão não é uma punição A prisão que vai se tornar a grande punição do século XIX tem sua origem precisamente nesta prática parajudiciária da lettredecachet utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos Quando uma lettredecachet era enviada contra alguém esse alguém não era enforcado nem marcado nem tinha de pagar uma multa Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente Raramente a lettredecachet dizia que alguém deveria ficar preso por seis meses ou um ano por exemplo Em geral ele determinava que alguém deveria ficar retido até nova ordem e a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a lettredecachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinha se corrigido Esta idéia de aprisionar para corrigir de conservar a pessoa presa até que se corrija essa idéia paradoxal bizarra sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano tem origem precisamente nesta prática 99 Aparece também a idéia de uma penalidade que tem por função não ser uma resposta a uma infração mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos de suas atitudes de suas disposições do perigo que apresentam das virtualidades possíveis Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos de penalidade que procura corrigilos pela reclusão e pelo internamento não pertence na verdade ao universo do Direito não nasce da teoria jurídica do crime não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria Essa idéia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma idéia policial nascida paralelamente à justiça fora da justiça em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder Gostaria agora depois dessas duas análises de tirar algumas conclusões provisórias que procurarei utilizar na próxima conferência Os dados do problema são os seguintes Como o conjunto teórico das reflexões sobre o direito penal que deveria conduzir a determinadas conclusões foi de fato posto em desordem e encoberto por uma prática penal totalmente diferente que teve sua própria elaboração teórica no século XIX quando a teoria da punição a criminologia etc foram retomadas Como a grande lição de Beccaria pode ser esquecida relegada e finalmente abafada por uma prática da penalidade totalmente diferente baseada nos indivíduos em seus comportamentos e virtualidades com a função de corrigilos Pareceme que a origem disso se encontra em uma prática extrapenal Na Inglaterra foram os próprios grupos que para escapar ao direito penal se atribuíram instrumentos de controle que foram finalmente confiscados pelo poder central Na França onde a estrutura do poder político era 100 diferente os instrumentos estatais estabelecidos no século XVII pelo poder real para controlar a aristocracia a burguesia e os amotinadores foram reutilizados de baixo para cima por grupos sociais É então que se põe a questão de saber o por que desse movimento desses grupos de controle a questão de saber a que eles respondiam Vimos a que necessidades originárias eles respondiam mas porque tiveram esse destino por que sofreram esse deslocamento por que o poder ou aqueles que o detinham retomaram esses mecanismos de controle situados ao nível mais baixo da população Para tanto é preciso levar em consideração um fenômeno importante a nova forma assumida pela produção O que está na origem do processo que procurei analisar é a materialidade da riqueza Na verdade o que surge na Inglaterra do fim do século XVIII muito mais aliás do que na França é o fato da fortuna da riqueza se investir cada vez mais no interior de um capital que não é mais pura e simplesmente monetário A riqueza dos séculos XVI e XVII era essencialmente constituída pela fortuna de terras por espécies monetárias ou eventualmente por letras de câmbio que os indivíduos podiam trocar No século XVIII aparece uma forma de riqueza que é agora investida no interior de um novo tipo de materialidade não mais monetária que é investida em mercadorias estoques máquinas oficinas matériasprimas mercadorias que estão para ser expedidas etc E o nascimento do capitalismo ou a transformação e aceleração da instalação do capitalismo vai se traduzir neste novo modo da fortuna se investir materialmente Ora essa fortuna constituída de estoques matériasprimas objetos importados máquinas oficinas etc está diretamente exposta à depredação Toda essa população de gente pobre de desempregados de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de contato direto físico com a fortuna com a riqueza O roubo dos navios a pilhagem dos armazéns e dos estoques as depredações nas oficinas tornaramse comuns no fim do século XVIII na Inglaterra E justamente o grande problema do poder na Inglaterra nesta época é o de instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material da fortuna Daí se compreende porque o criador da polícia na Inglaterra Colquhoun era alguém que a princípio foi comerciante sendo depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres A polícia de Londres nasceu da necessidade de proteger as docas entrepostos armazéns estoques etc Esta é a primeira razão muito mais forte na Inglaterra do que na França do aparecimento da necessidade absoluta desse controle Em outras palavras esta é a razão porque esse controle com um funcionamento de base quase popular foi retomado de cima em determinado momento A segunda razão é que tanto na França quanto na Inglaterra a propriedade de terras vai mudar igualmente de forma com a multiplicação da pequena propriedade a divisão e delimitação das propriedades O fato de não mais haver a partir daí grandes espaços desertos ou quase não cultivados nem terras comuns sobre as quais todos podem viver vai dividir a propriedade fragmentála fechála em si mesma e expor cada proprietário a depredações E sobretudo entre os franceses haverá essa perpétua idéia fixa da pilhagem camponesa da pilhagem da terra desses vagabundos e trabalhadores agrícolas frequentemente desempregados na miséria vivendo como podem roubando cavalos frutas legumes etc Um dos grandes problemas da Revolução Francesa foi o de fazer desaparecer esse tipo de rapina campo 102 nesa As grandes revoltas políticas da 2ª parte da Revolução Francesa na Vendéia e na Provença foram de certa forma o resultado político de um malestar dos pequenos camponeses dos trabalhadores agrícolas que não encontravam mais nesse novo sistema de divisão da propriedade os meios de existência que tinham no regime de grandes propriedades agrícolas Foi portanto essa nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou necessários novos controles sociais no fim do século XVIII Esses novos sistemas de controle social agora estabelecidos pelo poder pela classe industrial pela classe dos proprietários foram justamente tomados dos controles de origem popular ou semipopular a que foi dada uma versão autoritária e estatal Esta é a meu ver a origem da sociedade disciplinar Tentarei explicar na próxima conferência como esse movimento de que mostrei apenas o esboço no século XVIII foi institucionalizado e se tornou uma forma de relação política interna da sociedade do século XIX 103 V Na última conferência procurei definir o que chamei de panoptismo O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção isto é de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas Este tríplice aspecto do panoptismo vigilância controle e correção parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade Em uma sociedade como a sociedade feudal não se encontra nada de semelhante ao panoptismo Isto não quer dizer que em uma sociedade de tipo feudal ou nas sociedades européias do século XVII não tenha havido instâncias de controle social e de punição e recompensa Entretanto a maneira pela qual elas se distribuíam era completamente diferente da maneira através da qual elas se instalaram no fim do século XVIII e no começo do século XIX Vivemos hoje em uma sociedade programada no fundo por Bentham uma sociedade panóptica sociedade onde reina o panoptismo Tentarei mostrar nesta conferência que o aparecimento do panoptismo comporta uma espécie de paradoxo No mo mento mesmo em que ele aparece ou mais exatamente nos anos que precederam imediatamente seu surgimento vemos formarse uma certa teoria do Direito Penal da penalidade da punição de que Beccaria é o representante mais importante que se funda essencialmente em um legalismo estrito Esta teoria da punição subordina o fato de punir a possibilidade de punir à existência de uma lei explícita à constatação explícita de uma infração a esta lei e finalmente a uma punição que teria por função reparar ou prevenir na medida do possível o dano causado pela infração à sociedade Esta teoria legalista teoria propriamente social quase coletiva se opõe inteiramente ao panoptismo No panoptismo a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz mas do que se é não do que se faz mas do que se pode fazer Nele a vigilância tende cada vez mais a individualizar o autor do ato deixando de considerar a natureza jurídica a qualificação penal do próprio ato O panoptismo opõese portanto à teoria legalista que se formara nos anos precedentes De fato o que é importante observar e o que constitui um fato histórico importante é que esta teoria legalista foi duplicada em um primeiro momento e posteriormente encoberta e totalmente obscurecida pelo panoptismo que se formara à sua margem ou a seu lado É o nascimento do panoptismo que se forma e que é movido por uma força de deslocamento desde o século XVII até o século XIX ao longo do espaço social é esta retomada pelo poder central dos mecanismos populares de controle que caracteriza a evolução do século XVIII e que explica como começa no início do século XIX a era de um panoptismo que vai ofuscar toda a prática e até certo ponto toda a teoria do Direito Penal Para justificar as teses que estou apresentando gostaria de referirme a algumas autoridades As pessoas do começo do século XIX ou pelo menos algumas delas não ignoraram o aparecimento do que chamei um pouco arbitrariamente mas em todo caso em homenagem a Bentham de panoptismo Na verdade várias pessoas refletiram e ficaram muito intrigadas com o que estava acontecendo em sua época com a organização da penalidade ou da moral estatal Há um autor muito importante na época professor na Universidade de Berlim e colega de Hegel que escreveu e publicou em 1830 um grande tratado em vários volumes chamado Lições sobre as Prisões Este homem chamado Giulius cuja leitura lhes recomendo e que durante vários anos deu um curso em Berlim sobre as prisões é um personagem extraordinário que tinha em certos momentos um fôlego quase hegeliano Nas Lições sobre as Prisões há uma passagem que diz Os arquitetos modernos estão descobrindo uma forma que não era conhecida antigamente Outrora diz ele referindose à civilização grega a grande preocupação dos arquitetos era de resolver o problema de como possibilitar o espetáculo de um acontecimento de um gesto de um único indivíduo ao maior número possível de pessoas É o caso diz Giulius do sacrifício religioso acontecimento único de que deve participar o maior número possível de pessoas é também o caso do teatro que deriva aliás do sacrifício dos jogos circenses dos oradores e dos discursos Ora diz ele esse problema presente na sociedade grega na medida em que esta era uma comunidade que participava dos acontecimentos fortes que formavam a sua unidade sacrifícios religiosos teatro ou discursos políticos continuou a dominar a civilização ocidental até a época moderna O problema das igrejas é ainda exatamente o mesmo Todos devem presenciar ou todos devem servir de audiência no caso do sacrifício da missa ou da palavra do padre Atualmente continua Giulius o problema fundamental que se apresenta para a arquitetura moderna é o inverso Querse fazer com que o maior número de pessoas seja oferecido como espetáculo a um só indivíduo encarregado de vigiálas Ao escrever isto Giulius estava pensando no Panopticon de Bentham e de maneira geral na arquitetura das prisões e até certo ponto dos hospitais das escolas etc Ele estava se referindo ao problema de uma arquitetura não mais do espetáculo como a grega mas de uma arquitetura da vigilância que permite a um único olhar percorrer o maior número de rostos de corpos de atitudes o maior número de celas possíveis Ora diz Giulius o aparecimento deste problema arquitetônico é correlato ao desaparecimento de uma sociedade que vivia sob a forma de uma comunidade espiritual e religiosa e ao aparecimento de uma sociedade estatal O Estado se apresenta como uma certa disposição espacial e social dos indivíduos em que todos estão submetidos a uma única vigilância Ao concluir sua explanação sobre estes dois tipos de arquitetura Giulius afirma que não se trata de um simples problema de arquitetura e que esta diferença é capital na história do espírito humano Giulius não foi o único a perceber no seu tempo este fenômeno da inversão do espetáculo em vigilância ou do nascimento de uma sociedade do panoptismo Em muitos textos encontramse análises do mesmo tipo Citarei apenas um destes textos escrito por Treilhard conselheiro de Estado jurista do Império que é a apresentação do Código de Instrução Criminal de 1808 Neste texto Treilhard afirma O Código de Instrução Criminal que lhes apresento constitui uma verdadeira novidade não somente na história da justiça da prática judiciária mas das sociedades humanas Nele nós damos ao procurador que representa o poder estatal ou o poder social frente aos acusados um papel completamente novo E Treilhard utiliza uma metáfora O procurador não deve ter como função apenas perseguir os indivíduos que cometeram infrações sua função principal e primeira deve ser a de vigiar os indivíduos antes mesmo que a infração seja cometida O procurador não é apenas o agente da lei que age quando esta é violada o procurador é antes de tudo um olhar um olho perpetuamente aberto sobre a população O olho do procurador deve transmitir as informações ao olho do Procurador Geral que por sua vez as transmite ao grande olho da vigilância que era na época o Ministro da Polícia Este último transmite as informações ao olho daquele que se encontra no ponto mais alto da sociedade o imperador que precisamente na época era simbolizado por um olho O imperador é o olho universal voltado sobre a sociedade em toda a sua extensão Olho auxiliado por uma série de olhares dispostos em forma de pirâmide a partir do olho imperial e que vigiam toda a sociedade Para Treilhard para os legistas do Império para aqueles que fundaram o Direto Penal francês que teve infelizmente muita influência no mundo inteiro esta grande pirâmide de olhares consistia na nova forma de justiça Não analisarei aqui todas as instituições em que são atualizadas essas características do panoptismo próprias da sociedade moderna industrial capitalista Gostaria simplesmente de apreender este panoptismo esta vigilância na base no lugar em que aparece talvez menos claramente em que está mais afastado do centro da decisão do poder do Estado mostrar como este panoptismo existe ao nível mais simples e no funcionamento quotidiano de instituições que enquadram a vida e os corpos dos indivíduos o panoptismo ao nível portanto da existência individual Em que consistia e sobretudo para que servia o panoptismo Vou propor uma adivinhação Apresentarei o regulamento de uma instituição que realmente existiu nos anos 184045 na França no começo portanto do período que estou analisando Darei o regulamento sem dizer se é uma fábrica uma prisão um hospital psiquiátrico um convento uma escola um quartel é preciso adivinhar de que instituição se trata Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não eram casadas e que deviam levantarse todas as manhãs às cinco horas às cinco e cinquenta deveriam ter terminado de fazer a toilette a cama e ter tomado o café às seis horas começava o trabalho obrigatório que terminava às oito e quinze da noite com uma hora de intervalo para o almoço às oito e quinze jantar oração coletiva o recolhimento aos dormitórios era às nove horas em ponto O domingo era um dia especial o artigo cinco do regulamento desta instituição dizia Queremos guardar o espírito que o domingo deve ter isto é dedicálo ao cumprimento do dever religioso e ao repouso Entretanto como o tédio não demoraria a tornar o domingo mais cansativo do que os outros dias da semana deverão ser feitos exercícios diferentes de modo a passar este dia cristã e alegremente de manhã exercícios religiosos em seguida exercícios de leitura e de escrita e finalmente recreação às últimas horas da manhã à tarde catecismo as vésperas e passeio depois das quatro horas se não fizesse frio Caso fizesse frio leitura em comum Os exercícios religiosos e a missa não eram assistidos na igreja próxima porque isto permitiria aos pensionistas deste estabelecimento terem contato com o mundo exterior assim para que nem mesmo a igreja fosse o lugar ou o pretexto de um contato com o mundo exterior os serviços religiosos tinham lugar em um capela construída no interior do estabelecimento A igreja paroquial diz ainda este regulamento poderia ser um ponto de contato com o mundo e por isso uma capela foi consagrada no interior do estabelecimento Os fiéis de fora não eram sequer admitidos Os pensionistas só podiam sair do estabelecimento durante os passeios de domingo mas sempre sob a vigilância do pessoal religioso Este pessoal vigiava os passeios os dormitórios e assegurava a vigilância e a exploração das oficinas O pessoal religioso garantia portanto não só o controle do trabalho e da moralidade mas também o controle econômico Estes pensionistas não recebiam salários mas um prêmio uma soma global estipulada entre 40 e 80 francos por ano que somente lhes era dado no momento em que saíam No caso de uma pessoa de outro sexo precisar entrar no estabelecimento por razões materiais econômicas etc deveria ser escolhida com o maior cuidado e permanecer por muito pouco tempo O silêncio lhes era imposto sob pena de expulsão De um modo geral os dois princípios de organização segundo o regulamento eram os pensionistas nunca deveriam estar sozinhos no dormitório no refeitório na oficina ou no pátio e deveria ser evitada qualquer mistura com o mundo exterior devendo reinar no estabelecimento um único espírito Que instituição era esta No fundo a questão não tem importância pois poderia ser indiferentemente qualquer uma uma instituição para homens ou para mulheres para jovens ou para adultos uma prisão um internato uma escola ou uma casa de correção Não é um hospital pois falase muito em trabalho Também não é um quartel pois se trabalha Poderia ser um hospital psiquiátrico ou mesmo uma casa de tolerância Na verdade era simplesmente uma fábrica Uma fábrica de mulheres que existia na região do Ródano e que comportava quatrocentos operárias Alguém poderia dizer que este é um exemplo caricatural que faz rir uma espécie de utopia As fábricasprisões as fábricasconventos fábricas sem salário onde o tempo do operário é inteiramente comprado de uma vez por todas por um prêmio anual que só é recebido na saída Tratase de um sonho de patrão ou do que o desejo do capitalista sempre produziu ao nível dos fantasmas um casolimite que nunca teve existência histórica real A isso eu responderia Este sonho patronal este Panopticon industrial existiu realmente e em larga escala no início do século XIX Em uma única região da França no sudeste havia 40000 operárias téxteis que trabalhavam neste regime o que era naquele momento um número evidentemente considerável Existiu também o mesmo tipo de instituições em outras regiões e em outros países na Suíça em particular e na Inglaterra Aliás foi assim que Owen teve a idéia de suas reformas Nos Estados Unidos havia um complexo inteiro de fábricas téxteis organizadas segundo o modelo das fábricasprisões fábricaspensionatos fábricasconventos Tratase pois de um fenômeno que teve na época uma amplitude econômica e demográfica muito grande De tal maneira que podemos dizer que não somente tudo isso foi o sonho do patronato mas foi o sonho realizado do patronato De fato há duas espécies de utopia as utopias proletárias socialistas que têm a propriedade de nunca se realizarem e as utopias capitalistas que têm a má tendência de se realizarem frequentemente A utopia de que falo a fábricaprisão foi realmente realizada E não somente foi realizada na indústria mas em uma série de instituições que surgiam na mesma época Instituições que no fundo obedeciam aos mesmos modelos e aos mesmos princípios de funcionamento instituições do tipo pedagógico como escolas orfanatos centros de formação instituições correcionais como a prisão a casa de recuperação a casa de correção instituições ao mesmo tempo correcionais e terapêuticas como o hospital o hospital psiquiátrico tudo o que os americanos chamam de asylums asilos e que um historiador americano analisou em um livro recente Neste livro se procurou analisar como nos Estados Unidos apareceram esses edifícios e essas instituições que se espalharam por toda a sociedade ocidental Esta história começa a ser feita para os Estados Unidos será preciso fazêla também para outros países tentando sobretudo dar a medida de sua importância medir sua amplitude política e econômica É preciso ir ainda mais longe Não somente houve estas instituições industriais e a seu lado uma série de outras instituições mas de fato o que se passou foi que estas instituições industriais foram em um certo sentido aperfeiçoadas foi na sua construção que se concentraram os esforços imediatamente elas é que estavam sendo visadas pelo capitalismo No entanto muito depressa elas pareceram não ser viáveis nem governáveis A carga econômica destas instituições revelouse imediatamente muito pesada e a estrutura rígida dessas fábricasprisões levou muito depressa muitas delas à ruína Finalmente todas desapareceram Com efeito no momento em que houve uma crise de produção em que foi preciso desempregar um certo número de operários em que foi preciso readaptar a produção no momento em que o ritmo do crescimento da produção se acelerou essas casas enormes com um número fixo de operários e uma aparelhagem montada de forma definitiva revelaramse absolutamente não válidas Preferiuse fazer desaparecer estas instituições conservandose de algum modo certas funções que elas desempenhavam Organizaramse técnicas laterais ou marginais para assegurar no mundo industrial as funções de internamento de reclusão de fixação da classe operária desempenhadas inicialmente por estas instituições rígidas quiméricas um pouco utópicas Foram tomadas então medidas como a da criação de cidades operárias de caixas econômicas de caixas de assistência etc de uma série de meios pelos quais se tentou fixar a população operária o 55 proletariado em formação no corpo mesmo do aparelho de produção A pergunta que precisaria ser respondida é a seguinte A que é que se visava com esta instituição da reclusão em suas duas formas a forma compacta forte encontrada no início do século XIX e mesmo depois em instituições como escolas hospitais psiquiátricos casas de correção prisões etc e em seguida a reclusão em sua forma branda difusa encontrada em instituições como a cidade operária a caixa econômica a caixa de assistência etc À primeira vista poderseia dizer que esta reclusão moderna que aparece no século XIX nas instituições a que me refiro é uma herança direta das duas correntes ou tendências que encontramos no século XVIII Por um lado a técnica francesa do internamento e por outro o procedimento de controle de tipo inglês Na conferência anterior se tentou mostrar como na Inglaterra a vigilância social tivera origem no controle exercido no interior do grupo religioso pelo próprio grupo e isto especialmente nos grupos religiosos dissidentes e como na França a vigilância e o controle social eram exercidos por um aparelho de Estado aliás fortemente investido de interesses particulares que tinha como sanção principal o internamento nas prisões ou em outras instituições de reclusão Portanto poderseia dizer que a reclusão do século XIX é uma combinação de controle moral e social nascido na Inglaterra com a instituição propriamente francesa e estatal da reclusão em um local em um edifício em uma instituição em uma arquitetura Entretanto o fenômeno que aparece no século XIX se apresenta apesar disso tudo como uma novidade tanto em relação ao modo de controle inglês quanto em relação à reclusão francesa No sistema inglês do século XVIII o controle é exercido pelo grupo sobre um indivíduo ou sobre indivíduos pertencentes a este grupo Esta era a situação ao menos em seu momento inicial no fim do século XVII e início do século XVIII Os quakers os metodistas exerciam o controle sempre sobre aqueles que pertenciam aos seus próprios grupos ou sobre aqueles que se encontravam no espaço social ou econômico do próprio grupo Só mais tarde é que as instâncias deslocaramse para cima e para o Estado Era o fato de um indivíduo pertencer a um grupo que fazia com que ele pudesse ser vigiado e vigiado pelo próprio grupo Já nas instituições que se formam no século XIX não é de forma alguma na qualidade de membro de um grupo que o indivíduo é vigiado ao contrário é justamente por ser um indivíduo que ele se encontra colocado em uma instituição sendo esta instituição que vai constituir o grupo a coletividade que será vigiada É enquanto indivíduo que se entra na escola é enquanto indivíduo que se entra no hospital ou que se entra na prisão A prisão o hospital a escola a oficina não são formas de vigilância do próprio grupo É a estrutura de vigilância que chamando para si os indivíduos tomandoos individualmente integrandoos vai constituilos secundariamente enquanto grupo Vemos portanto como na relação entre a vigilância e o grupo há um diferença capital entre os dois momentos No que se refere ao modelo francês também o internamento do século XIX é bastante diferente do que havia na França no século XVIII Nesta época quando alguém era internado tratavase sempre de um indivíduo marginalizado em relação à família ao grupo social à comunidade local a que pertencia alguém que não estava dentro da regra e que se tornara marginal por sua conduta sua desordem a irregularidade de sua vida O internamento respondia a essa marginalização de fato com uma espécie de marginalização de segundo 56 grau de punição Era como se se dissesse ao indivíduo Já que você se separou de seu grupo vamos separálo definitiva e provisoriamente da sociedade Havia portanto na França desta época uma reclusão de exclusão Na época atual todas essas instituições fábrica escola hospital psiquiátrico hospital prisão têm por finalidade não excluir mas ao contrário fixar os indivíduos A fábrica não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de produção A escola não exclui os indivíduos mesmo fechandoos ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos ligaos a um aparelho de correção a um aparelho de normalização dos indivíduos O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do indivíduo elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens A fábrica a escola a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção de formação ou de correção dos produtores Tratase de garantir a produção ou os produtores em função de uma determinada norma Podese portanto opor a reclusão do século XVIII que exclui os indivíduos do círculo social à reclusão que aparece no século XIX que tem por função ligar os indivíduos aos aparelhos de produção formação reformação ou correção de produtores Tratase portanto de uma inclusão por exclusão Eis porque oporei a reclusão ao sequestro a reclusão do século XVIII que tem por função essencial a exclusão dos marginais ou o reforço da marginalidade e o sequestro do século XIX que tem por finalidade a inclusão e a normalização Existe finalmente um terceiro conjunto de diferenças em relação ao século XVIII que dá uma configuração original à reclusão no século XIX Na Inglaterra no século XVIII havia um processo de controle que era no começo nitidamente extraestatal e mesmo antiestatal uma espécie de reação de defesa dos grupos religiosos à dominação do Estado pelo qual eles asseguravam seu próprio controle Na França havia ao contrário um aparelho fortemente estatizado pelo menos em sua forma e seus instrumentos na medida em que ele consistia essencialmente na instituição das lettresdecachet Havia portanto uma fórmula absolutamente extraestatal na Inglaterra e uma fórmula absolutamente estatal na França No século XIX aparece algo novo e muito mais brando e rico uma série de instituições escolas fábricas etc de que é difícil dizer se são francamente estatais ou extraestatais se fazem parte ou não do aparelho do Estado De fato dependendo das instituições dos países e das circunstâncias algumas destas instituições são controladas diretamente pelo aparelho do Estado Na França por exemplo houve um conflito para que as instituições pedagógicas essenciais fossem controladas pelo aparelho do Estado fezse disso um jogo político Mas o nível em que me situo não leva em consideração essa questão não me parece que esta diferença seja muito importante O que é novo o que é interessante é que no fundo o Estado e o que não é estatal vêm confundirse entrecruzarse no interior destas instituições Mais do que instituições estatais ou não estatais é preciso dizer que existe uma rede institucional de sequestro que é intraestatal a diferença entre aparelho de Estado e o que não é aparelho de Estado não me parece importante para analisar as funções deste aparelho geral de sequestro desta rede de sequestro no interior da qual nossa existência se encontra aprisionada Para que servem essa rede e essas instituições Podemos caracterizar a função destas instituições da seguinte maneira Primeiramente estas instituiçõespedagógicas médicas penais ou industriais têm a propriedade muito curiosa de implica rem o controle a responsabilidade sobre a totalidade ou a quase totalidade do tempo dos indivíduos são portanto instituições que de certa forma se encarregam de toda a dimensão temporal da vida dos indivíduos Creio que a esse respeito é possível opor a sociedade moderna à sociedade feudal Na sociedade feudal e em muitas sociedades que os etnólogos chamam de primitivas o controle dos indivíduos se faz essencialmente a partir da inserção local do fato de pertencerem a um determinado lugar O poder feudal se exerce sobre os homens na medida em que pertencem a uma certa terra A inscrição geográfica local é um meio de exercício do poder Este se inscreve sobre os homens por intermédio da sua localização Ao contrário a sociedade moderna que se forma no começo do século XIX é no fundo indiferente ou relativamente indiferente à pertinência espacial dos indivíduos ela não se interessa pelo controle espacial dos indivíduos na forma de sua pertinência a uma terra a um lugar mas simplesmente na medida em que tem necessidade de que os homens coloquem à sua disposição seu tempo É preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de produção que o aparelho de produção possa utilizar o tempo de vida o tempo de existência dos homens É para isso e desta forma que o controle se exerce São necessárias duas coisas para que se forme a sociedade industrial Por um lado é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado oferecido aos que o querem comprar e comprálo em troca de um salário e é preciso por outro lado que este tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho É por isso que em uma série de instituições encontramos o problema e as técnicas da extração máxima do tempo Vimos no exemplo a que me referi este fenômeno em sua forma compacta em seu estado puro O tempo exaustivo da vida dos trabalhadores da manhã à noite e da noite à manhã é comprado de uma vez por todas pelo preço de um prêmio por uma instituição Encontramos o mesmo fenômeno em outras instituições nas instituições pedagógicas fechadas que se abrirão pouco a pouco durante o século casas de correção orfanatos e prisões Além disso temos uma porção de formas difusas em particular a partir do momento em que se percebeu que não era possível gerir estas fábricasprisões quando se foi obrigado a voltar a um tipo de trabalho em que as pessoas viriam pela manhã trabalhariam e deixariam o trabalho à noite Vemos multiplicarse então instituições em que o tempo das pessoas se encontra controlado mesmo não sendo efetivamente extraído em sua totalidade para tornarse tempo de trabalho No correr do século XIX uma série de medidas será adotada visando suprimir as festas e diminuir o tempo de descanso uma técnica muito sutil se elabora ao longo do século para controlar a economia dos operários Para que a economia por um lado tivesse a flexibilidade necessária era preciso havendo necessidade poder desempregar os indivíduos mas por outro lado para que os operários pudessem depois do tempo de desemprego indispensável recomeçar a trabalhar sem que neste intervalo morressem de fome era preciso que tivessem reservas e economias Daí o aumento dos salários que vemos claramente se esboçar na Inglaterra nos anos 40 e na França nos anos 50 Mas a partir do momento em que os operários têm dinheiro é preciso que eles não utilizem suas economias antes do momento em que estiverem desempregados Eles não devem utilizar suas economias no momento em que desejarem para fazer greve ou para festejar Surge então a necessidade de controlar as economias do operário Daí a criação na década de 1820 e sobretudo a partir dos anos 40 e 50 de caixas econômicas de caixas de assistências etc que permitem drenar as economias dos operários e controlar a maneira como são utilizadas Desta forma o tempo do operário não apenas o tempo do seu dia de trabalho mas o de sua vida inteira poderá efetivamente ser utilizado da melhor forma pelo aparelho de produção É assim que sob a forma destas instituições aparentemente de proteção e de segurança se estabelece um mecanismo pelo qual o tempo inteiro da existência humana é posto à disposição de um mercado de trabalho e das exigências do trabalho A extração da totalidade do tempo é a primeira função destas instituições de sequestro Seria possível mostrar igualmente como nos países desenvolvidos este controle geral do tempo é exercido pelo mecanismo do consumo e da publicidade A segunda função das instituições de sequestro é não mais a de controlar o tempo dos indivíduos mas a de controlar simplesmente seus corpos Existe algo de muito curioso nestas instituições É que se aparentemente elas são todas especializadas as fábricas feitas para produzir os hospitais psiquiátricos ou não para curar as escolas para ensinar as prisões para punir o funcionamento destas instituições implica uma disciplina geral da existência que ultrapassa amplamente as suas finalidades aparentemente precisas É muito curioso observar por exemplo como a imoralidade a imoralidade sexual constituiu para os patrões das fábricas do começo do século XIX um problema considerável E isto não simplesmente em função dos problemas de natalidade que se controlava mal ao menos ao nível da incidência demográfica A razão é que o patronato não suportava a devassidão operária a sexualidade operária Podese perguntar igualmente porque nos hospitais psiquiátricos ou não que são feitos para curar o comportamento sexual a atividade sexual é proibida Podese invocar um certo número de razões de higiene Elas são no entanto marginais com relação a uma espécie de decisão geral fundamental universal de que um hospital psiquiátrico ou não deve se encarregar não só da função particular que exerce sobre os indivíduos mas também da totalidade da sua existência Por que nas escolas não se ensina somente a ler mas se obrigam as pessoas a se lavar Existe aqui uma espécie de polimorfismo de polivalência de indiscrição de nãodiscrição de sincretismo desta função de controle da existência Mas se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a existência dos indivíduos se encontra controlada por estas instituições vemos que se trata no fundo não somente de apropriação de extração da quantidade máxima de tempo mas também de controlar de formar de valorizar segundo um determinado sistema o corpo do indivíduo Se fizéssemos uma história do controle social do corpo poderíamos mostrar que até o século XVIII inclusive o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas o corpo era feito para ser supliciado e castigado Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX o corpo adquire uma significação totalmente diferente ele não é mais o que deve ser supliciado mas o que deve ser formado reformado corrigido o que deve adquirir aptidões receber um certo número de qualidades qualificarse como corpo capaz de trabalhar Vemos aparecer assim claramente a segunda função A primeira função do sequestro era de extrair o tempo fazendo com que o tempo dos homens o tempo de sua vida se transforme em tempo de trabalho Sua segunda função consiste em fazer com que o corpo dos homens se torne força de trabalho A função de transformação do corpo em força de trabalho responde à função de transformação do tempo em tempo de trabalho A terceira função destas instituições de sequestro consiste na criação de um novo e curioso tipo de poder Qual a forma de poder que se exerce nestas instituições Um poder polimorfo polivalente Há por um lado em um certo número de casos um poder econômico No caso de uma fábrica o poder econômico oferece um salário em troca de um tempo de trabalho em um aparelho de produção que pertence ao proprietário Há além deste um poder econômico de outro tipo o caráter pago do tratamento em certo número de instituições hospitalares Mas por outro lado em todas essas instituições há um poder não somente econômico mas também político As pessoas que dirigem estas instituições se delegam o direito de dar ordens de estabelecer regulamentos de tomar medidas de expulsar indivíduos aceitar outros etc Em terceiro lugar este mesmo poder econômico e político é também um poder judiciário Nestas instituições não apenas se dão ordens se tomam decisões não somente se garantem funções como a produção a aprendizagem etc mas também se tem o direito de punir e recompensar se tem o poder de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento Este micropoder que funciona no interior destas instituições é ao mesmo tempo um poder judiciário O fato é surpreendente por exemplo no caso das prisões para onde os indivíduos são enviados porque foram julgados por um tribunal mas onde sua existência é colocada sob a observação de uma espécie de microtribunal de pequeno tribunal permanente constituído pelos guardiões e pelo diretor da prisão que da manhã à noite vai punilos segundo seu comportamento O sistema escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário A todo momento se pune e se recompensa se avalia se classifica se diz quem é o melhor quem é o pior Poder judiciário que por conseguinte duplica de maneira bastante arbitrária se não se considera sua função geral o modelo do poder judiciário Por que para ensinar alguma coisa a alguém se deve punir e recompensar Este sistema parece evidente mas se refletimos vemos que a evidência se dissolve se lemos Nietzsche vemos que se pode conceber um sistema de transmissão do saber que não esteja no interior de um aparelho de sistema de poder judiciário político econômico etc Finalmente há uma quarta característica do poder Poder que de certa forma atravessa e anima estes outros poderes Tratase de um poder epistemológico poder de extrair dos indivíduos um saber e extrair um saber sobre estes indivíduos submetidos ao olhar e já controlados por estes diferentes poderes Isto se dá portanto de duas maneiras Em uma instituição como uma fábrica por exemplo o trabalho operário e o saber do operário sobre seu próprio trabalho os melhoramentos técnicos as pequenas invenções e descobertas as microadaptações que ele puder fazer no decorrer do trabalho são imediatamente anotadas e registradas extraídas portanto da sua prática acumuladas pelo poder que se exerce sobre ele por intermédio da vigilância Desta forma pouco a pouco o trabalho do operário é assumido em um certo saber da produtividade ou um certo saber técnico da produção que vão permitir um reforço do controle Vemos portanto como se forma um saber extraído dos próprios indivíduos a partir do seu próprio comportamento Há além deste um segundo saber que se forma a partir desta situação Um saber sobre os indivíduos que nasce da observação dos indivíduos da sua classificação do registro e da análise dos seus comportamentos da sua comparação etc Vemos assim nascer ao lado desse saber tecnológico próprio a todas as instituições de sequestro um saber de observação um saber de certa forma clínico do tipo da psiquiatria da psicolo