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REVISTA CAMINHOS DE GEOGRAFIA ISSN 16786343 httpwwwseerufubrindexphpcaminhosdegeografia DOI httpdoiorg1014393RCG238759374 AFROTERRITORIALIDADE UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA AFROCENTRADA PARA COMPREENDER AS DINÂMICAS TERRITORIAIS DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ Emerson Melo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Fluminense Maricá RJ Brasil meloemersoncgmailcom RESUMO A reflexão aqui encaminhada tem como característica propositiva apresentar a afroterritorialidade como uma perspectiva teóricoconceitual geográfica que possibilita compreender as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé a partir de uma crítica afrocentrada Tratase de uma perspectiva analítica que coloca em evidência os princípios e valores das tradições afrorreligiosas como elementos essenciais para constituição de suas próprias territorialidades organização socioespacial que rompe com a lógica das tradições hegemônicas Para tanto este estudo foi elaborado a partir da intersecção e orientação de eixos investigativos afrocentrados alinhados aos pressupostos teóricos que sustentam o conceito de territorialidade os quais nos possibilitou identificar a afroterritorialidade como um constructo cultural inerente às tradições de luta e resistência do agente negro em sua forma de uso e apropriação do espaço Sob esta perspectiva foi possível identificarclassificar o terreiro de candomblé como um território cultural constituído a partir de um conjunto de valores míticofilosóficos que nutrem às essências dos signos e símbolos que o constitue ao mesmo tempo que estabelece as regras de comportamentos sociais dos membros que com ele se relacionam tanto nos diferentes espaçoslugares de culto dispostos no interior dos terreiros como naqueles que se estendem para além dele Palavraschave Afrocentricidade Território cultural Religiões de matriz africana AFROTERRITORIALITY AN AFROCENTRIC GEOGRAPHIC PERSPECTIVE TO UNDERSTAND THE TERRITORIAL DYNAMICS OF TERREIROS DE CANDOMBLÉ ABSTRACT The reflection presented here has the propositional characteristic of presenting Afroterritoriality as a theoreticalconceptual geographic perspective that makes it possible to understand the territorial dynamics of terreiros de camdoblé territories from an Afrocentric criticism It is an analytical perspective that highlights the principles and values of the afroreligious traditions as essential elements for the constitution of their own territorialities a sociospatial organization that breaks with the logic of hegemonic traditions To this end this study was prepared based on the intersection and orientation of Afrocentric investigative axes aligned with the theoretical assumptions that support the concept of territoriality which enabled us to identify the afroterritoriality as a cultural construct inherent to the traditions of struggle and resistance of the black agent in its form of use and appropriation of space From this perspective it was possible to identifyclassify the terreiro de Candomblé as a cultural territory constituted from a set of mythicalphilosophical values that nourish the essences of the signs and symbols that constitute it while establishing the rules of social behavior of the members who relate to it both in the different spacesplaces of worship arranged inside the terreiros as well as in those that extend beyond it Keywords Afrocentricity Cultural territory African matrix religions INTRODUÇÃO A reflexão aqui encaminhada tem como característica propositiva apresentar a afroterritorialidade como uma perspectiva teóricoconceitual geográfica afrocentrada que coloca em evidência o protagonismo da população negra que mesmo submetida às opressões do sistema mercantilescravagistaprécapitalista conseguiu se reterritorializar em terras brasileiras ainda no século XVIII a partir do reestabelecimento do culto de seus ancestrais e decorrente deste redesenhar territorialidades a partir de um conjunto de elementos culturais tipicamente negros que ainda hoje embora ressignificados são reproduzidos no interior dos terreiros de candomblé que se espalham por todo o Brasil e demais países da América do Sul e Europa MELO e CORRÊA 2016 MELO 2019 Uma reflexão elaborada sob o prisma da afrocentricidade abordagem epistemológica proposta por Molefi Kete Asante 1980 em Afrocentricity the theory of social change onde o autor aponta que os povos negros de forma geral foram e ainda são tolhidos de seu legado histórico pois independentemente de sua contribuição para o desenvolvimento do chamado mundo moderno os africanos e consequentemente os afrodesdencentes sempre são retratados como inferiores eou primitivos em relação à cultura brancohegemônica Tratase de uma forma de ativismo epistêmico e do cuidado com o lugar de observação e fala do pesquisador em relação ao sujeitoobjeto da pesquisa principalmente por reconhecer as consequências históricas da descaracterização dos aspectos estruturais da cultura política economia e principalmente da religiosidade dos diversos povos africanos interrompendo com isso a reprodução de discursos que retratam pejorativamente as diferentes formas de manifestações e expressões culturais de origem negra É nesta perspectiva que se emprega aqui o uso do termo afro ao conceito de territorialidade pois conforme descrito no Dicionário Houaiss o termo em questão faz alusão e rememora 1 aos indivíduos afros 2 aos africanos 3 que se inspira em modelos típicos da África negra HOUAISS e VILLAR 2001 p 89 o que permite adjetivar e ao mesmo tempo atribuir uma identidade peculiar ao conceito em tela fator de extrema relevância principalmente por considerar a origem socioespacial do fenômeno afrorreligioso enquanto um mecanismo peculiar de luta e resistência dos povos negros ao sistema brancohegemônico Sendo assim ressaltase que a noção de territorialidade adotada neste estudo segue os referenciais propostos por Robert Sack 1986 em Human territoriality its theory and history quando sugere que a definição formal da territorialidade não nos diz apenas o que é a territorialidade mas o que ela pode ser eou fazer p 21 tradução do autor Deste modo a afroterritorialidade enquanto uma perspectiva de análise socioespacial atual empregada em estudos sobre as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé assume a condição de um conceito pois compreende a uma forma de apreciação crítica que se manifesta por meio de uma ideia sobre um objeto real uma vez que o aporte teórico que a sustenta torna possível a descrição a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis ABBAGNANO 2007 p 164 Ou seja tratase de uma perspectiva que torna possível compreender tanto as dinâmicas territoriais que se limitam as áreas internas dos terreiros quanto àquelas que se estendem para além dele como o uso de áreas verdes parques e matas nascentes dágua rios córregos e lagos praias estradas becos vielas encruzilhadas entre outros espaços Um eixo de investigação e análise que reconhece os princípios filosóficos míticos e religiosos das tradições afro como pressupostos existenciais e essências para a compreensão dos terreiros de candomblé enquanto um fenômeno geográfico já que tais elementos estão presentes simbolicamente em diferentes paisagens e lugares ou seja se materializam em todo o espaço percorrido e ocupado por seus membros Princípio de organização socioespacial que difere as religiões de matrizes africanas de outros modelos religiosos principalmente daqueles de origem judaicocristão descritos geograficamente sob a luz do espaço sagrado e do espaço profano Isto posto destacase que a reflexão em tela está dividida em duas seções a primeira dedicada a caracterização das estruturas epistemológicas e teóricoconceituais que fundamentam a afroterritorialidade enquanto uma abordagem geográfica afrocentrada e a segunda compreende a aplicabilidade da perspectiva em debate no campo dos estudos geográficos dedicados a compreensão das dinâmicas territoriais queenvolvem os princípios de organização dos terreiros de candomblé UM OLHAR GEOGRÁFICO SOB O PRISMA DA AFROCENTRICIDADE CONCEITUANDO A AFROTERRITORIALIDADE A afroterritorialidade enquanto uma perspectiva de análise constituise a partir de eixos investigativos afrocentrados alinhados ao conceito de territorialidade aporte teóricometodológico que torna possível compreender as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé a partir dos princípios míticofilosóficos próprios das tradições afrorreligiosas Neste sentido cabe pontuar que a elaboração de uma análise afrocentrada corresponde ao 1 interesse pela localização psicológica preocupação com o lugar de observação e fala do pesquisador em relação ao objeto 2 compromisso com a descoberta do lugar do africano como sujeito reconhecimento do protagonismo do agente negroafricano e afrodescendente na constituição de suas próprias territorialidades 3 defesa dos elementos culturais africanos reconhecimento dos princípios filosóficos que sustentam o conjunto de signos e símbolos visíveis e invisíveis que orientam as práticas afrorreligiosas princípios da afroterritorialidade tida aqui como referência de pensamento e estruturação dos elementos que são reproduzidos territorialmente por diferentes terreiros de candomblé 4 compromisso com o refinamento léxico preocupação com aquilo que se escreve enquanto resultado de um olhar afrocêntrico e decolonial 5 compromisso com uma nova narrativa da história reconhecimento dos povos negroafricanos e afrodescendentes enquanto agentes históricos ASANTE 2009 p 96 A abordagem em tela compreende ao compromisso com uma nova narrativa ou seja a tentativa de romper com o discurso eurocêntrico que desconsidera as diferentes formas de conhecimento de origem negroafricana eou que os caracteriza a partir de referenciais alógenos à sua realidade e é na contramão de tais descaracterizações que se emprega neste estudo o uso e aplicabilidade do conceito de territorialidade proposto por Sack 1986 Ao analisar as diferentes formas de organização das territorialidades humanas o autor apresenta 10 tendências eou potenciais de análise para conceituar a territorialidade e sinaliza também a possibilidade de combinálas a 14 eixos interpretativos os quais segundo ele ao serem entrecruzados um ao outro constituemse em tendências importantes ou em tendências extremamente importantes para a compreensão da territorialidade conforme pode ser observada na Figura 1 Figura 1 Internal links among tendencies and combinations Fonte Adaptado de Sack 1986 p 35 Para o autor a relação eou combinação entre as três primeiras tendências 1ª classificação 2ª comunicação e 3ª reforço eou controle são essenciais para compreender a territorialidade e que mesmo ao se considerar a possibilidade de uma reflexão onde estas não sejam às razões prioritárias da análise ainda assim estas deverão se fazer presentes pois compreendem aos pressupostos da definição da territorialidade que no seu entendimento compreende a uma estratégia eou uma tentativa de um indivíduo ou de um grupo afetar influenciar ou controlar pessoas fenômenos e relações através da delimitação e da afirmação do controle sobre uma dada área geográfica p 19 tradução do autor Ressaltase também que Sack 1986 enfatiza que as tendências e as combinações apresentadas não são independentes uma das outras e que nem todas precisam ser usadas numa mesma análise territorial Neste caso os seus significados ou importâncias dependerão das condições históricas específicas e de quem controla quem como e para que propósito elementos essenciais para a constituição do território No que compreende a fundamentação da perspectiva apresentada neste estudo tomouse como referência seis tendências de análises as quais para o autor são essenciais para consolidar os pressupostos da afroterritorialidade enquanto uma ferramenta de análise teóricoconceitual sendo elas 1ª classificação 2ª comunicação 3ª reforço eou controle 4ª reificação simbólica 8ª moldemodelo 10ª multiplicação dos territórios descritas em síntese da seguinte maneira 1ª Classificação a territorialidade implica em uma forma de classificação por área 2ª Comunicação a territorialidade deve conter uma forma de comunicação Isto pode envolver uma marca ou sinal tal como é comumente encontrada em uma fronteira A fronteira territorial pode ser somente a forma simbólica que combina a direção no espaço e uma afirmação sobre a posse ou exclusão 3ª Reforço eou controle cada exemplo de territorialidade deve envolver uma tentativa no esforço de controlar o acesso sobre a área e as coisas dentro dela ou restringir a entrada das coisas de fora De maneira mais geral cada exemplo deve envolver uma tentativa de influenciar as interações 4ª Reificação simbólica a territorialidade propicia meios de reavivar o poder A territorialidade neste sentido torna os potenciais explícitos e reais tornandoos visíveis 8ª Moldemodelo a territorialidade atua como um agente modelador dos eventos no espaço 10ª multiplicação dos territórios a territorialidade pode ajudar a criar novas territorialidades e mais relações para moldar outros territórios SACK 1986 p 3134 tradução do autor Isto posto considerase que as tendências selecionadas para compreender as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé contribuam para trazer à tona novos e outros referenciais que outrora foram e ainda são de alguma maneira marginalizados e invisibilizados por não se constituírem a partir de princípios e valores hegemônicos Deste modo acreditase que a afroterritorialidade enquanto uma perspectiva geográfica afrocentrada constituída a partir das interfaces da abordagem afrocêntrica com as tendências de análises que alicerçam os princípios da territorialidade descritos por Sack 1986 conforme sinalizado na Figura 2 torne possível reconhecer e compreender as peculiaridades étnicoculturais sóciohistóricas e socioespaciais que envolvem o processo de constituição dos terreiros de candomblé enquanto um fenômeno geográfico Figura 2 Afroterritorialidade pressupostos e interfaces teóricoconceituais Afrocentricidade Abordagens afrocentrícas Tendências de análise Territorialidade 1ª Interesse pela localização psicológica 2ª Compromisso com a descoberta do lugar do africano como sujeito 3ª Defesa dos elementos culturais africanos 4ª Compromisso com o refinamento léxico 5ª Compromisso com uma nova narrativa Afroterritorialidade 8 Moldemodelo 4 Reificação simbólica 10 Multiplicação dos territórios 1 Classificação 2 Comunicação 3 Reforço eou controle Fonte elaborado pelo autor 2021 A afroterritorialidade portanto respeitando as características das tendências assinaladas 1ª classificação 2ª comunicação 3ª reforço eou controle 4ª reificação simbólica 8ª moldemodelo 10ª multiplicação dos territórios pode ser compreendida como um movimento territorial inerente as estratégias de sobrevivência da gente negra em seu processo de reterritorialização principalmente na formação socioespacial dos terreiros de candomblé movimento este que rememora o final do século XVIII e início do XIX Tratase do estabelecimento de uma relação mais íntima dos sujeitos com o lugar e consequentemente com o território o terreiro de candomblé um vínculo celebrado a partir da atribuição de valores sentimentos e significados que redesenham os princípios e valores de identidades individuais e coletivas de tais segmentos afrorreligiosos Neste sentido a afroterritorialidade é e pode ser compreendida como uma amálgama territorial constituído a partir de um constructo cultural imaterial fundamentado em princípios míticofilosóficos e mágicoreligiosos que embora adaptados eou ressignificados ainda no século XVIII num contexto de escravização da gente negra seja a responsável pelas estruturas simbólicas de poder que ainda hoje garantem a manutenção de tais tradições afrorreligiosas no que se refere aos princípios de sua organização estruturação e difusão socioespacial diferenciandose totalmente das demais religiões de origem judaicocristãs Tratase portanto da reprodução de um conjunto de saberes concepção de mundo e noção de pessoa de origem negroafricano que são transmitidos via oralidade aos membros iniciados na tradição do culto aos orixás por meio de um complexo sistema de ensinoaprendizadzo estruturado sob um modelo senioridade onde os membros mais velhos dos terreiros assumem o papel de educadores ensinando os mais jovens constituindose como os responsáveis pela transmissão dos saberes religiosos das regras sociais e comportamentais orientadas pelo sentido de ser e existir de tais tradições o que implica diretamente na forma como os membros do candomblé se relacionam com o tempo e principalmente com o espaço LIMA 2003 MELO 2019 É sob tais referenciais que se apresenta e defende a perspectiva aqui apresentada de que a afroterritorialidade corresponda aos princípios de articulação dos povos negroafricanos com a terra ou melhor com o território Um constructo cultural imaterial simbólico inerente às tradições orais ou seja transmitido de geração a geração por meio da fala sendo os princípios eou fundamentos necessários para a constituição dos terreiros de candomblé como um fenômeno territorial multiescalar Neste caso cabe ponderar que a afroterritorialidade enquanto uma estratégia eou tentativa de um indivíduo ou de um grupo afetar influenciar ou controlar pessoas fenômenos e relações através da delimitação e da afirmação do controle sobre uma dada área geográfica constituase também sob o reconhecimento da luta e resistência da população negra na retomada de sua humanidade que sob a lógica do sistema escravagista de administração colonial não possuía autonomia sobre suas ações o que o coloca em uma situação diferenciada no que se refere ao uso apropriação e controle do espaço tendo de agenciar estratégias que lhes possibilitassem ocupar as fissuras socioespacias do território da gente branca É neste cenário assimétrico de poder que lideranças religiosas agenciaram um complexo sistema religioso e uma rede de solidariedade que contribuiu para a formação dos terreiros de candomblé Diante o exposto vale recordar as observações de Sack 1986 quanto ao papel e função das territorialidades A territorialidade então forma o pano de fundo para as relações espaciais e concepções de espaço A territorialidade aponta para o fato de que as relações espaciais não são neutras As pessoas não apenas interagem no espaço e se movem pelo espaço como bolas de bilhar Ao contrário disso a interação humana o movimento e contato são também questões relacionadas a transmissão de energia e informação para afetar influenciar e controlar as ideias e ações dos outros e seu acesso aos recursos As relações espaciais humanas são os resultados de influência e poder A territorialidade é a principal forma espacial que o poder assume SACK 1986 p 26 tradução nossa Portanto reafirmase aqui que o emprego do termo afro ao conceito de territorialidade compreende a visibilidade de um conjunto de elementos simbólicos que permitiu a população negroafricana desumanizada historicamente agenciar em terras brasileiras um constructo cultural político e simbólico que possibilitou a tais sujeitos se reterritorializarem a partir da reprodução de elementos sociais culturais políticos e religiosos ancestralidade senioridade família e iniciação ao culto aos orixás que ainda hoje alicerçam as estruturas rituais dos terreiros de candomblé Em síntese corresponde ao reconhecimento do protagonismo de tais sujeitos em sua luta e resistência contra agentes de escravização constituindose assim como um substantivo para diferenciar tal movimento de outras formas de se conceber a territorialidade principalmente daqueles povos que tiveram sua história interrompida pelo fenômeno da desterritorialização desumanização e escravização AFROTERRITORIALIDADE APLICABILIDADE TEÓRICOCONCEITUAL Embora nas duas últimas décadas os estudos sobre as diferentes formas de manifestação da cultura afrorreligiosa no espaço tenham ganhado visibilidade em debates geográficos ainda é pouco expressiva a produção de estudos dedicados à compreensão dos terreiros de candomblé a partir de uma perspectiva socioespacial No que tange à baixa produção de estudos sobre os terreiros de candomblé elaborados no âmbito da Ciência Geográfica cabe sinalizar que entre os anos de 2003 e 2017 os programas de pósgraduação em Geografia de todo o país registraram apenas a produçãodefesa de cinco teses de doutorado e doze dissertações de mestrado sobre a temática mencionada MELO 2019 e que entre os anos 2000 e 2019 foram publicados apenas 28 artigos sobre as dinâmicas socioespaciais que envolvem os terreiros de candomblé em Revistas brasileiras de Geografia MELO e SILVEIRA 2020 Com isso notase que os estudos sobre os terreiros de candomblé elaborados no âmbito da Geografia correspondem a um fenômeno recente na história do pensamento geográfico brasileiro o que torna o tema do presente artigo relevante principalmente por apresentar a afroterritorialidade como uma perspectiva teóricoconceitual geográfica afrocentrada para compreender as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé compreendendoa também neste processo como um constructo cultural imaterial simbólico forjado sob valores míticos e filosóficos responsável pela organização orientação e manutenção das práticas afrorreligiosas em seu processo de difusão territorial quando da fundação de novos terreiros de candomblé ainda nos dias de hoje Vale frisar que a caracterização da afroterritorialidade como uma amálgama cultural que torna possível identificar e compreender a relação dos membros do candomblé com os terreiros e com os espaços de celebração religiosa que se estendem para além dele repousa sobre os estudos de Aureauice Corrêa 2002 2004 Jussara Dias 2003 2006 e Leonardo Carneiro 2009 os quais a nosso ver inauguram eixos interpretativos significativos para a compreensão dos terreiros de candomblé como um objeto geográfico Tratamse de abordagens que partindo de referenciais metodológicos distintos caracterizaram os terreiros de candomblé a partir de uma crítica socioespacial multiescalar que recorre aos conceitos de paisagem lugar e território para exemplificar as diferentes formas de manifestação da cultura afrorreligiosa no espaço Ao analisar o princípio de organização socioespacial das práticas afrorreligiosas Corrêa 2004 caracteriza o processo de formação dos terreiros de candomblé como o resultado da transposição e reprodução de um conjunto de geossímbolos numa dada paisagem a paisagem conivente que permite aos seus membros a partir da imaginação geográfica rememorarem seu território ancestral em África Fenômeno decorrente de um intenso movimento de reterritorialização das práticas culturais de origem negroafricana nos terreiros de candomblé onde se reproduz as geograficidades de diferentes povos negros dentre eles em maior escala os iorubás nagôs do sudoeste da atual Nigéria os fon jejes do leste do Benin e em menor referência os bantu da África Central Sob a crítica da autora o terreiro de candomblé corresponde a um fenômeno geográfico um território cultural que possui raízes no processo de desterritorialização dos povos negros em África que em terras brasileiras mais precisamente na cidade de SalvadorBA conseguiram se reorganizar e se reterritorializar no territórioterreiro de candomblé lócus do encontro da produção simbólica e da possibilidade de recomposição política social e religiosa que se materializa em terras brasileiras CORRÊA 2004 p 05 Ao descrever os locais de celebração de atos rituais do culto aos orixás como geossímbolos afrorreligiosos a autora sinaliza para a existência de lugares de celebração ora visíveis outras não Afroterritorialidade uma perspectiva geográfica afrocentrada para compreender as dinâmicas territoriais dos terreiros de candomblé Emerson Melo Sobre a questão do axé presente no corpo dos iniciados como veículo de transterritorialização das práticas afrorreligiosas no processo de lugarizaçãoterritorialização de novos lugaresterritórios de celebração Carneiro 2009 sinaliza que estes são Efêmeros sem dúvidas mas capazes de imprimir poder sagrado à movimentação e à fixação do axé nos lugares sagrados afrobrasileiros O axé que significa energia fluidez e vida é o poder ao qual nos referimos O axé é a dinâmica do mundo afrobrasileiro foi o axé existente nos corpos dos africanos que se transportou para o Brasil e fazse hoje presente em muitos outros corpos e em muitos outros lugares O axé antropomórfico é fruto da ritualização e é a essência da transformação O rito é relação e é transformador CARNEIRO 2009 p 87 Sendo assim ao afirmar ser o corpo um veículo de transterritorialização do axé das práticas afrorreligiosas o corpo tornase o principal instrumento de agenciamento territorial dos devotos do candomblé ou seja os devotos em sua expressão de sacralidade uma vez que porta signos do sagrado desenham e redesenham distintas formas de lugarização o que a nosso ver nesta reflexão contribui para compreender os princípios da afroterritorialidade Deste modo acreditase ser o corpo o principal instrumento eou veículo no processo de reterritorialização dos povos negroafricanos em terras brasileiras e principalmente no processo de constituição dos terreiros de candomblé Pois repousa sob seu abrigo o axé os valores civilizatórios míticofilosóficos e mágicorituais responsáveis pela transposição de um imaginário geográfico particular que se redesenha territorialmente a partir da constituição da afroterritorialidade E como ressaltado por Carneiro 2009 a corporeidade e a geograficidade das sociedades afrobrasileiras são aspectos inseparáveis e que se transformam mutuamente p 12 Ainda no que se refere ao corpo como um lugar de aspectos do sagrado acrescentase a este a capacidade de agenciamento e protagonismo de tais sujeitos pois O lugar pode ser o corpo Ele pode ser o templo que conecta diferentes dimensões ou pode ser uma porção determinada do espaço onde se integram diferentes esferas da vida social O lugar pode ser todo espaço onde se estabeleçam rituais O rito é transformador ele tem a capacidade de conferir essência sagrada a espaços até então nãosagrados Há uma razão de ser a divisão e a classificação entre sagrado e profano parecenos demasiadamente fixa rígida Se adotamos uma abordagem processual devemos estar prontos para tirar os invólucros fixadores e classificadores do espaço CARNEIRO 2009 p 27 Com base nas observações supracitadas não se pode perder de vistas os problemas eou possíveis inconsistências da relação entre o espaço sagrado e o espaço profano para a compreensão dos terreiros de candomblé principalmente ao sinalizar a não centralidade de um ponto fixo de revelação do sagrado em meio ao caos do espaço profano ROSENDAHL 1994 CORRÊA 2002 2004 DIAS 2003 CARNEIRO 2009 Neste caso reforçase a ideia de que o corpo exerça a função de um veículo eou o instrumento de transterritorialização do axé ou seja de difusão dos códigos sagrados legíveis aos membros do candomblé que identificam nas diferentes paisagens da cidade lugares destinados à celebração de seus atos rituais invertendo com a lógica de revelação de tais espaços por meio da manifestação eou revelação de algo divinamente sagrado hierofania Neste sentido ainda tais espaços podem ser caracterizados como extensões dos terreiros espaços complementares e de apoio ou como sugeriu Dias 2006 como as marcas de um território descontínuo das tradições afrorreligiosas a qual acreditase poder ser acionada por meio dos dispositivos que nutrem aqui o que se define como os princípios da afroterritorialidade Deste modo considerase que o referencial teóricoconceitual em debate seja suficiente para elucidar as marcas eou os processos de materialização da afroterritorialidade como um fenômeno territorial presente na estruturação dos territórios contínuos e descontínuos do candomblé Neste sentido fazse importante assinalar que embora cada um dos autores convidados para este debate tenha se dedicado sob uma abordagem interpretativa específica para lidar eou definir os terreiros de candomblé como um fenômeno geográfico é interessante frisar que ambas as análises propostas possuem certa aproximação ou dialogam entre si na construção de suas ideias e narrativas principalmente quando defendem eou afirmam que a a materialidade socioespacial dos terreiros de candomblé resultam da capacidade de agenciamento e organização da população negroafricana diante mecanismos de opressão brancohegemônicos que os mantinham num constante movimento de desreterritorialização Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 290 que estão para além dos limites dos terreiros principalmente ao apontar que tais signossímbolos possuem como significantes os arquétipos das divindades a serem cultuadas Neste sentido a semiografia da paisagem conivente do territórioterreiro é articulada em sua invisibilidade na disposição de artefatos e no significado que estes possuem como operada também nos gestos sígnicos dos orixás que orientam o iniciado no socius e no ambiente do sagrado do mesmo Assim vemos no orixá Iansã e em seus gestos fortes e impetuosos a representação da tempestade e os ventos que a antecedem em Xangô rei de Oyó sua realeza na postura altiva do seu corpo e no ziguezague de sua dança o raio que prepara para o estrondo do trovão em Iemanjá no balançar das suas mãos espalmadas as ondas ora turbulentas ora mansas do oceano com Oxum através do som suave que emite e de sua dança graciosa o murmúrio das cachoeiras em Ogum o ferro o seu elemento trabalhado pelo ato humano que o transforma em ferramenta no Oxossi a caça aos animais necessários para a sobrevivência humana e dos orixás através das oferendas no Obaluaiê as epidemias e a cura destas e em Nanã a mãe ancestral que com sua dança lembra aos seus filhos o princípio feminino CORRÊA 2004 p 89 Como pode ser observado os geossímbolos são elaborados ou reverenciados a partir dos arquétipos das divindades que ele pode representar Logo os geossímbolos do sagrado vivido pelos membros dos terreiros de candomblé podem ser identificados sob diferentes formas e representações Em perspectiva análoga à de Corrêa 2004 ao considerar o candomblé como uma religião afrobrasileira criada a partir da agregação de diversas estruturas litúrgicas africanas e ainda como fruto de uma estratégia de sobrevivência bem sucedida de movimentos de desreterritorialização dos povos negroafricanos Dias 2006 sinaliza que A forma de apropriação do espaço das comunidades de candomblé não possui necessariamente uma referência física claramente definida e delimitada até mesmo porque extrapola os limites dos terreiros Ela se faz bem delimitada de forma simbólica cultural e política pelos indivíduos que integram a religião indicando que o grupo se define por um laço material ou por representações coletivas que tomam forma num espaço onde estão em jogo relações socioculturais e políticas DIAS 2006 p 44 Portanto o terreiro enquanto um território contínuo espaço fixo centro de reprodução do poder e de manutenção do culto se configura para além de seus limites espaciais pois tratarseia daqueles utilizados pelos integrantes da religião para realização de rituais rios cachoeiras matas lagoas manguezais e etc que não podem ser realizados no interior dos terreiros e por esta razão também considerados sagrados como territórios descontínuos DIAS 2006 p 43 Cabe pontuar que embora os estudos sinalizados se dediquem a compreensão das diferentes formas de materialização da cultura afrorreligiosa no espaço os debates em tela não se restringem aos eixos interpretativos da relação dicotômica eou complementar existente entre os chamados espaços sagrado e profano amplamente divulgados no âmbito da Geografia da Religião Sob a perspectiva de Corrêa 2002 2004 e Dias 2003 2006 podese considerar que as práticas afrorreligiosas do candomblé transcendem os limites interpretativos dos conceitos de espaço sagrado e espaço profano pois a compreensão de mundo elaborada a partir da perspectiva cristã divide o mundo em dois princípios antagônicos o espaço sagrado onde prevalece a ordem de Deus e o espaço profano aquele ordenado pelo caos social não religioso Portanto havendo entre estes uma demarcação clara de limites interpretativos temporais e socioespaciais onde a peculiaridade do sagrado pode interferir diretamente na lógica do profano por meio da hierofania entretanto a lógica profana seria incapaz de romper com a ordem da revelação divina ELIADE 1992 DURKHEIM 2003 ROSENDAHL 1994 o que diferencia tal referencial da realidade rito e litúrgicas das tradições do candomblé uma vez que tal prática não reconhece o limite entre um mundo dito sagrado e outro dito profano Nesta perspectiva Carneiro 2009 coloca em evidência a necessidade de um olhar cuidadoso sobre as diferentes formas de manifestação das práticas afrorreligiosas que se estendem para além dos terreiros Neste caso o autor afirma que os atos rituais e as práticas afrorreligiosas do candomblé e da umbanda imprimem na paisagem as marcas de sua religiosidade e que estas por sua vez revelam suas concepções de mundo que por meio de tais sujeitos se transterritorializam na Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 288 metrópole Indagação relevante pois são inúmeros os registros históricos que relatam o encontro de oferendas deixadas pelos negros nas ruas vielas e encruzilhadas da cidade de Salvador no final do século XIX RODRIGUES 1982 o que indica que a celebração dos atos rito litúrgicos do candomblé e de outras práticas religiosas de origem africana nunca estiveram condicionadas aos limites socioespaciais dos terreiros tampouco a tais limites interpretativos de sua cosmovisão Ressaltase ainda que ao caracterizar o terreiro de candomblé como um fenômeno geográfico Carneiro 2009 o descreve como uma qualidade de lugar um espaço de demarcação de identidades e de resistência simbólicocultural que possibilitou as religiões africanas recriaremse em solo brasileiro fundando lugares e produzindo novas compreensões espaçostemporais p 15 Neste caso o autor compreende o lugar como um movimento análogo ao de territorialização É possível pensar que a apropriação ou vivência em um espaço é concomitantemente um processo de lugarização e territorialização desse espaço este se transforma em lugar à medida que adquire definição e significado Por sua vez Sack 1986 irá nos falar dos processos em que os lugares se tornam territórios na verdade o autor nos fala da necessidade de determinados lugares se tornarem territórios para continuarem a existir como lugares CARNEIRO 2009 p 16 Dentre outras questões retratadas por Carneiro 2009 é a análise acerca de quais instrumentos ou veículos seriam pertinentes para a constituição daquilo que ele definiu como sendo as bases da transterritorialização das práticas afrorreligiosas na metrópole Neste caso destacamse dois momentos ou processos distintos porém complementares que caracterizam tal fenômeno o primeiro que possibilita o extrapolar das fronteiras entre espaço sagrado e profano e o segundo sobre o papel do corpo dos iniciados nas tradições afrorreligiosas propondo um diálogo entre corporeidades e geograficidades Ao analisar o uso da apropriação do espaço público por membros do candomblé e da umbanda na cidade do Rio de Janeiro o autor aponta que existe um campo de possibilidades de ação e articulação entre as fronteiras do espaço sagrado e espaço profano comuns nos estudos de Geografia da Religião e que estes não são legíveis às interpretações do universo socioespacial das religiosidades afrobrasileiras Entre o sagrado e o profano existiriam espaços como fronteiras abertas onde algo novo sempre se inicia lugares de vivência de comunicação e de trocas e territórios religiosos onde ocorrem a manipulação e a administração do sagrado Entenderia então a diferença entre o sagrado vivido pela sociedade religiosa e o sagrado concebido pela ciência e por algumas instituições religiosas comprometidas com a racionalidade eurocêntrica Esta pesquisa se fundamenta de certo na cooptação do sagrado vivido pelas sociedades religiosas afrobrasileiras e na projeção de suas geograficidades nas quais meio e sociedade se articulam em processos de mútuos entrelaçamentos CARNEIRO 2009 p 86 Cabe considerar que o segundo processo apontado pelo autor em destaque tratase de algo transcendente inerente ao processo de iniciação dos membros do candomblé onde cada um dos iniciados é educado a partir de princípios sociorreligiosos particulares comuns às tradições afrorreligiosas As amarras de toda a convivência e de toda a geograficidade se encontram no ser ser que é corpo corpo que toma consciência de si e do mundo corpo que marca o espaço corpo que convive imerso em mundos corpo mundificado que corporifica o mundo corpo que transcreve uma corporeidade fractal de uma geograficidade do social CARNEIRO 2009 p 11 Aqui cabe ponderar que o conjunto de ensinamentos apontados pelo autor como pressupostos da educação dos corpos dos iniciados nas tradições afrorreligiosas aproximase daquilo que Fabio Leite 2008 denominou de valores civilizatórios em sociedades negroafricanas e daquilo que se referenda nesta reflexão como sendo os princípios de estruturação da afroterritorialidade Tratase de um conjunto de ensinamentos que variam desde questões míticofilosóficas mágicoreligiosas familiares sociais políticas dentre outras de ordem religiosa que colocam os iniciados em conexão com o axé das divindades e demais ancestrais Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 289 b os lugares sagrados na religião afrobrasileira são constituídos a partir de elementos simbólicos materiais e imateriais visíveis ou invisíveis que se estendem desde o interior dos terreiros até os limites possíveis de sua área de abrangência c os lugares de culto do candomblé tanto internos quanto externos ao terreiro representam e celebram as expressões das tradições de origem negroafricana no espaço sendo legível na maioria das vezes apenas para os membros de tais tradições Condição que coloca em evidência a questão de sua não aceitação visto que sua organização espacial e simbólica destoase totalmente da lógica da religião hegemônica o que contribui a nosso ver para ações de perseguição e agressão por parte de outros grupos religiosos Isto posto acreditase que exista um elemento eou princípio de organização que entrecruze as possibilidades assinaladas e é neste campo de interseção de ideias e debate que se insere a afroterritorialidade como um fenômeno de agenciamento territorial como pode ser observado na Figura 3 Figura 3 Afroterritorialidade e agenciamento territorial representação dos locais de culto aos orixás que se conectam as práticas afrorreligiosas estabelecidas no interior dos terreiros Legenda Área de abrangência da afroterritorialidade Espaços constituídos simbolicamente por meio da ação e articulação dos membros dos terreiros de candomblé em sua forma de se relacionar com o tempo trancendente e com o espaço material Exemplos de espaços utilizados para celebração das práticas afrorreligiosas Corrêa A M 2004 espaços constituídos geossimbolicamente em uma paisagem convinte Dias J C R 2003 territórios descontínuos dos terreiros de candomblé Carneiro L O 2009 espaços sagrados da cultura afrorreligiosa constituídos por meio da transterritorialização do sagrado vivido nos terreiros para os espaços da cidade Fonte elaborado pelo autor 2021 Portanto aventase com isso a ideia que tanto a constituição dos geossímbolos presentes na paisagem convinte dos terreiros como os espaços sagrados expandidos que se agenciam em territórios descontínuos constituamse mesmo em suas especificidades por meio da transterritorialização das práticas afrorreligiosas articuladas pelos membros do candomblé sendo estes orientados por um conjunto de valores míticofilosóficos e mágicoreligiosos que alicerçam a afroterritorialidade enquanto uma dinâmica territorial que extrapola os limites espaciais dos terreiros de candomblé gerando com isso uma complexa trama de locais de culto que se conectam entre si na celebração do culto aos orixás e demais divindades Todavia em caráter de exemplificação recordase as observações de Haesbaert 2011 ao caracterizar os territórios constituídos a partir de mobilidade humanas como no caso dos povos nômades que desenham os seus territórios com base no controle e no conjunto de experiências que adquirem com os lugares estruturandose assim os territóriosredes Neste caso sob uma perspectiva cultural o autor invoca as ideias de Bonnemaison 1981 as quais se acreditam serem pertinentes para compreender a afroterritorialidade como um fenômeno de agenciamento territorial que possibilitou aos povos negroafricanos e a seus descendentes se reterritorializarem a partir do Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 291 processo de formação dos terreiros de candomblé no final do século XVIII e início do XIX Neste sentido vale recordar que um território antes de ser uma fronteira é primeiro um conjunto de lugares hierarquizados conectados a uma rede de itinerários A territorialização engloba ao mesmo tempo enraizamento e aquilo que é mobilidade em outras palavras tanto os itinerários quanto os lugares BONNEMAISON 1981 apud HAESBAERT 2011 p 280 Isto posto aventase que independe do tipo de categorização geográfica empregada pelos autores para compreensão das práticas afrorreligiosas enquanto um fenômeno geográfico seja sob a escala do lugar ou do território ou ainda sob a crítica das dinâmicas socioespaciais internas e externas dos terreiros de candomblé ambas sejam resultantes de movimentos territoriais agenciados pela afroterritorialidade Logo seu campo de influência se constituiria sob a forma de um território cultural e simbólico um espaço de celebração de práticas religiosas que evidenciam nas diferentes paisagens as marcas de uma identidade singular de culto Portanto conforme explicitado os corpos dos iniciados portadores de axé um conjunto de tradições e valores míticos e filosóficos que mesclam aspectos sociais culturais políticos religiosos e simbólicos assumem a função de agente produtor e modelador do espaço princípio determinante do fenômeno geográfico ao produzir os territórios afrorreligiosos Ou seja os espaços de celebração dos atosrituais de tais tradições invocam as marcas eou os traços de resistência do agente negro em sua dinâmica de reterritorialização estabelecida em outros tempos uma vez que tal ação possui seguindo aos apontamentos de Sack 1986 a intenção de 1 classificar e estabelecer os limites de uma determinada área de atuação do grupo 2 comunicar a essência do fato religioso por meio de elementos simbólicos 3 estabelecer o controle sobre o espaço diante do fato religioso e de sua execução ritual 4 reforçar as estruturas litúrgicas de poder e hierarquia tornando os valores míticos e simbólicos de tais tradições reais e concretas 8 estabelecer um novo desenho eou arranjo para o espaço território apropriado 10 garantir por meio de suas práticas a reprodução dos territórios de celebração ritual atendendo a demanda religiosa Neste caso a afroterritorialidade é articulada espacialmente como uma amalgama que conecta os diferentes lugares eou territórios numa mesma sintonia rito litúrgica de celebração afrorreligiosa um fenômeno de agenciamento territorial constituído a partir de valores míticofilosóficos e mágicoreligiosos que estavam e ainda estão em constante agenciamento territorial em terras brasileiras desde o final do século XVIII CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme indicado este estudo apresenta a afroterritorialidade como uma perspectiva teóricoconceitual geográfica afrocentrada que possibilita compreender as dinâmicas territoriais das práticas do candomblé que se estendem para além dos limites dos terreiros Para tanto recorrerás à definição de territorialidade proposta por Sack 1986 quando define tal movimento como a tentativa de um indivíduo ou grupo de afetar influenciar ou controlar pessoas fenômenos e relações através da delimitação e da afirmação do controle sobre uma área geográfica p 19 concepção esta a qual se acrescentou a partir de uma crítica afrocêntrica o reconhecimento da capacidade de agenciamento e ainda o protagonismo do agente negro na elaboração de suas próprias territorialidades concebendo estas como atos de resistência contrahegemônicos e de apropriação espacial principalmente por ser reconhecida historicamente a negação da humanidade e da liberdade da população negra no contexto mercantilescravagista Considerando a crítica apontada sugerimos e agregamos ao conceito de territorialidade o termo Afro estabelecendo com isso o termo AfroTerritorialidade como uma perspectiva teóricoconceitual que em no âmbito da ciência geográfica torna possível identificar e compreender não somente o protagonismo do agente negro na composição das suas realidades socioespaciais mas como também reconhecer a complexidade que envolve a elaboração de tais espaços afrorreligiosos evidenciando com isso as estruturas míticas simbólicas e filosóficas que asseguram a própria existência e significado dos territórios de terreiros de candomblé Neste sentido caracterizamos a afroterritorialidade como um constructo cultural míticofilosófico inerente as tradições do agente negro que diante à sua necessidade de reterritorialização contribui não somente para elaboração de uma estética ritual moldada sob uma aparência particular como também para o estabelecimento de formas e funções específicas que resultaram no modelo de organização territorial dos terreiros de candomblé Neste caso o terreiro de candomblé sob a Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 292 perspectiva da afroterritorialidade foi analisado como um território cultural constituído a partir de um conjunto de valores míticofilosóficos e mágicoreligiosos que nutrem tanto as essências dos signos e símbolos que o constituem quanto estabelece as regras de comportamentos sociais dos membros que com ele se relacionam seja nos diferentes espaços dispostos no interior dos terreiros ou para aqueles que se estendem para além dele REFERÊNCIAS ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia 5ª ed São Paulo Martins Fontes 2007 1026 p ASANTE Molefi Keti Afrocentricity the theory of social change Buffalo NY Amulefi 1980 172 p ASANTE Molefi Keti Afrocentricidade notas sobre uma posição disciplinar In NASCIMENTO Elisa Larkin Org Afrocentricidade uma abordagem epistemologica inovadora São Paulo Selo Negro 2009 p 93110 CARNEIRO Leonardo de Oliveira A metrópole sagrada geograficidades de um Rio de Janeiro afrobrasileiro 2009 285 f Tese Doutorado em Geografia Programa de PósGraduação em Geografia Universidade Federal Fluminense NiteróiRJ 2009 Disponível em httpswwwufjfbrnugeafiles201009Versc3a3onaintegra1pdf Acesso em 10 dez 2020 CORRÊA Aureanice de Mello Irmandade da Boa Morte como manifestação cultural afrobrasileira de cultura alternativa a inserção global 2004 323 f Tese Doutorado em Geografia Instituto de Geociências Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2004 CORRÊA Aureanice de Mello Território cultura e identidade o terreiro de candomblé como imaginação geográfica In XIII ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS v 1 2002 João Pessoa Anais João PessoaPB XIII Encontro Nacional de Geógrafos 2002 DIAS Jussara C R Território do candomblé a desterritorialização dos terreiros na região metropolitana de Salvador BA 2003 230 f Dissertação Mestrado em Geografia Instituto de Geociência Universidade Federal da Bahia Salvador 2003 DIAS Jussara C R Territórios do candomblé a desterritorialização dos terreiros na Região Metropolitana de Salvador Bahia Revista GeoTextos vol 2 n 2 2006 p 3185 Disponível em httpsperiodicosufbabrindexphpgeotextosarticleview30382186 Acesso em 5 fev 2021 DURKHEIM Émile As formas elementares da vida religiosa 13ª ed São Paulo Martins Fontes 2003 609 p ELIADE Mircea O Sagrado e o Profano a essência das religiões São Paulo Martins Fontes 1992 200 p HAESBAERT Rogério O Mito da Desterritorialização do fim dos territórios à multiterritorialidade 6ª ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2011 396 p HOUAISS Antônio VILLAR Mauro de Salles Minidicionário Houaiss da língua portuguesa 3ª ed Rio de Janeiro Objetiva 2001 1176 p LEITE Fabio R da R A questão ancestral África Negra São Paulo Pallas Athena Casa das Áfricas 2008 385 p LIMA Vivaldo da C A FamíliadeSanto nos Candomblés JejeNagôs da Bahia um estudo de relações intragrupais 2ª ed Salvador Corrupio 2003 216 p MELO Emerson A compreensão das dinâmicas territoriais afrorreligiosas a partir da perspectiva da afroterritorialidade um estudo sobre o processo de constituição organização e difusão do Candomblé Kétu 2019 228 f Tese Doutorado em Geografia Programa de Pós Graduação em Geografia Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2019 Disponível em httpwwwbdtduerjbrtdebuscaarquivophpcodArquivo15690 Acesso em 5 out 2020 MELO Emerson CORREA Aureanice de Mello Entre fluxos e refluxos agenciamentos territoriais e a transnacionalizacão do candomblé In CARBALLO Cristina T FLORES Fabian C Org Territorios fiestas y paisajes peregrinos cartografías sociales de lo sagrado 1ª ed Buenos Aires La Imprenta Digital SRL 2016 v 1 p 185200 Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 293 MELO Emerson SILVEIRA Aline da F S Espaço debate e invisibilidade estudos sobre terreiros de candomblé em revistas brasileiras de Geografia 20002019 GEOUSP Espaço e Tempo Online São Paulo v 24 n 3 p 581599 2020 Disponível em httpswwwrevistasuspbrgeousparticleview173361 Acesso em 13 fev 2021 httpsdoiorg1011606issn21790892geousp2020173361 RODRIGUES Raimundo Nina Os africanos no Brasil 6ª ed Brasília EUNB 1982 283 p ROSENDAHL Zeny Porto das Caixas espaço sagrado da Baixada Fluminense 1994 231 f Tese Doutorado em Geografia Departamento de Geografia Universidade de São Paulo São Paulo 1994 SACK R Human territoriality its theory and history Cambrige 1986 272 p Recebido em 18022021 Aceito para publicação em 22062021 Caminhos de Geografia UberlândiaMG v 23 n 87 jun2022 p 282294 Página 294