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Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 123 PORTOS PORTAS E PRODUÇÃO ARQUEOLOGIA DO PODER EM CANANÉIA SP SÉCULOS XIX e XX Harbors doors and production the Archaeology of Power in Cananéia São Paulo State 19th and 20th centuries Paulo F Bava de Camargo1 RESUMO O objetivo deste artigo é mostrar que até mesmo em uma localidade periférica a um dos subcentros do capitalismo contemporâneo ou seja em Cananéia distante aproximadamente 300 milhas náuticas do Rio de Janeiro antiga capital do Brasil a distribuição das estruturas edificações e equipamentos no tecido urbano de uma cidade portuária com especial atenção às casas comerciais espelhou as modificações das formas de controle da produção e da circulação de mercadorias ocorridas a partir da dispersão do modo de produção capitalista pelo mundo Palavraschave Arqueologia do Capitalismo Arqueologia Urbana Cananéia ABSTRACT The aim of this article is to show that even in places on the edges of contemporary capitalist sub centers like Cananéia distant approximately 300 nautical miles from Rio de Janeiro ancient capital of Brazil the spatial distribution of structures buildings and equipment in the urban net of a harbor city with special attention to the commercial houses mirrored the modifications of the forms of control over production and circulation of commodities that have occurred since the spread of the capitalist mode of production throughout the world Keywords Archaeology of Capitalism Urban Archaeology Cananéia RESUMEN El objetivo de este artículo es mencionar que incluso en una localidad periférica de uno de los subcentros del capitalismo contemporáneo en Cananéia con distancia aproximada de 300 millas náuticas del Rio de Janeiro antigua capital del Brasil la distribución de las estructuras edificaciones y equipamientos en el tejido urbano de una ciudad portuaria con especial atención a las tiendas comerciales reflejó las modificaciones de las formas de control de la producción y de la circulación de mercancías realizadas a partir de la dispersión del modo de producción capitalista por el mundo Palabras claves Arqueología del Capitalismo Arqueología Urbana Cananéia 1 Pesquisador Colaborador PósDoutorado Departamento de História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas DH IFCH UNICAMP Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP pfbavacgmailcom Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 124 Introdução Este artigo está embasado em um capítulo de minha tese de doutoramento2 na qual continuei a desenvolver um tema trabalhado desde o Mestrado 2002 a História do estabelecimento das formas de controle do vale do Ribeira paulista que poderia ser construída a partir da Arqueologia das paisagens marítimas dessa região De início no Mestrado abordei as edificações estruturas e equipamentos de defesa militar como o objeto principal da pesquisa tendo em vista que a materialização do poder absolutista se dava de forma explícita e direta infligindo o medo do dano físico ou o próprio dano físico àquele que ameaçasse o domínio da coroa lusitana Já no Doutorado examinando as formas de controle desenvolvidas a partir do Segundo reinado despontaram as paisagens portuárias como os alvos primordiais para o entendimento desse poder fundamentalmente econômico e de contornos mais difusos mas tão ou mais centralizador quanto no período colonial e no Primeiro reinado Se no caso do poder absolutista temse principalmente mas não exclusivamente armas e fortificações coisas localizadas e pontuais que serão apropriadas como bens de interesse arqueológico com relação à Arqueologia do poder capitalista há um conjunto de coisas dispersas pelo espaço construindo paisagens que não parecem à primeira vista edificações estruturas e equipamentos destinados à regulação da produção 3 Como consequência fezse necessária uma Arqueologia tanto das ruínas e jazimentos locus normal da prática arqueológica quanto de alguns bens que ainda estavam em uso pois em verdade o espaço do capital é o nosso espaço gostese ou não disso Esse foi o primeiro problema dessa abordagem tratar objetivamente paisagens com múltiplas apropriações Ou seja enxergaramse a partir da Arqueologia elementos materiais que pertenciam ao mundo dos viventes e que possuíam significados diversos e dinâmicos Remetese especificamente ao fato paradoxal das paisagens portuárias de Cananéia serem determinadas por seu uso atual mas também por serem apropriadas como patrimônio histórico Assim se por um lado edificações estruturas e equipamentos antigos são usados desgastados destruídos reconstruídos e transformados por aqueles que veem neles um valor funcional por outro esses mesmos bens são esvaziados de funcionalidade primária e 2 Intitulada Arqueologia de uma cidade portuária Cananéia séculos XIXXX Defendida em 2009 no MAE USP foi desenvolvida sob a orientação de Maria Cristina M Scatamacchia O autor contou com bolsa do CNPq 3 Embora o conceito possa ser abrangente no caso aqui abordado devese entender produção como a fabricação de mercadorias Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 125 transfigurados em monumentos que aludem ao antigo situado este sempre em um passado colonial e escravista por decreto Exemplos dessa situação são o monumento a Martim Afonso e o porto Bacharel O primeiro está na praça principal de Cananéia foi erguido há mais de 80 anos com canhões ingleses do final do século XVIII mas faz alusão à chegada de Martim Afonso em 1531 Neste caso é clara a exaltação do ato fundador colonial com objetos que nada têm a ver com o evento em si apropriados para a homenagem pelo simples fato de serem antigos eou representarem o poder metropolitanoeuropeu Com relação ao porto Bacharel essa associação não é tão explícita Ele ganhou essa denominação em alusão ao bacharel ibérico que teria sido degredado naquela porção do litoral entre o final do século XV e início do XVI transformandose em um potentado local O uso dessa porção do espaço portuário de Cananéia é sem dúvida bastante antigo remetendo ao período précolonial mas é também fato que a estrutura que hoje lá se encontra e onde funciona o porto da balsa para a Ilha Comprida foi construída no final da década de 1920 O segundo problema está na percepção do território do capital e de seus marcos físicos de construção das paisagens O capital globalizado e o sistema mundo por ele definido são totalizantes levando à mercantilização de todas as relações humanas mas a descontinuidade do espaço físico do planeta e as fronteiras políticas dos Estados Nacionais determinam a conformação de subsistemas ou a dispersão de etapas da produção em regiões distantes dos centros WALLERSTEIN 2007 Em termos concretos para a Arqueologia do Capitalismo seus objetos de pesquisa estão dispersos por um vasto e descontínuo território4 Evidente que não podemos deixar de perceber a nossa própria materialidade com relação às pesquisas desses contextos há que se ter tempo para estudar todos os aspectos relativos a um meio de produção e a disponibilidade de recursos financeiros para isso Como decorrência desta última colocação constituemse os espaços portuários como um dos loci privilegiados para o entendimento da produção capitalista a partir da Arqueologia pois neles há a possibilidade de serem encontrados com relativa proximidade espacial contextos arqueológicos que abrangem várias etapas da produção de mercadorias fabricação eou processamento transporte comercialização e consumo Pensando em específico no espaço portuário que envolve a cidade de Cananéia lá podem ser pesquisados 4 Como exemplo podese citar aqueles estudos de Arqueologia ferroviária notadamente os de contrato muitos ainda inéditos que tratam os caminhos de ferro como um meio de produção capitalista e não como mero patrimônio da era industrial a pesquisa do bem na sua totalidade funcional e simbólica envolveria a análise de edificações estruturas e equipamentos dispersos por dezenas ou centenas de quilômetros Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 126 naufrágios estruturas portuárias estaleiros engenhos de pilar arroz fábricas de processamento de pescado casas comerciais e lixeiras domésticascomunitárias todos eles coisas que representam o modo de produção capitalista tal como ele vem se desenvolvendo naquela região e que em última instância é a forma de poder que substitui a força física bélica das armas como o mantenedor primaz não o único do controle sobre o território e a população a partir de meados do século XIX5 Com relação ao primeiro problema a paradoxal monumentalização do antigo e seu uso utilitário atual como situações de turvação da pesquisa arqueológica foi preciso estudar as etapas de construção das edificações estruturas e equipamentos monumentalizados ou ainda em uso para entender o processo de formação das paisagens marítimas ao longo do oitocentos e do novecentos E além de focar nas estruturas portuárias propriamente ditas aquelas situadas à beira ou dentro dágua a pesquisa procurou abordar também outros bens que pudessem complementar ou oferecer o contraponto para a contextualização dessas paisagens Com isso tentouse tanto abarcar o maior número de coisas possível daquele espaço portuário quanto buscar informações em fontes aparentemente secundárias visando à percepção dos discursos das aparências e das realidades As principais edificações estruturas e equipamentos abordados com esse intuito na pesquisa de doutorado foram o sítio de naufrágio do vapor Conde dÁquila 1858 os prédios da Câmara Municipal as indústrias numa ampla acepção da palavra e as casas comerciais independente do produto que comercializavam Para este artigo resolvi abordar em detalhes as casas comerciais e sua relação com a evolução portuária de Cananéia pois 1 uma das características do modo de produção capitalista no vale do Ribeira é a ênfase na atividade comercial6 servindo as localidades da região tanto como entrepostos da produção de arroz principal produto da região no período em foco como distribuidores de bens industrializados 2 as casas comerciais são edificações do espaço portuário de Cananéia mas 5 A ideia principal assegurar o poder sem o uso inicial de edificações estruturas e equipamentos que ameacem fisicamente as pessoas com a morte em geral mas sim de bens que simbolizem a coerção moral imposta pelo liberalismo republicano tem inspiração nas interpretações propostas por Mark Leone e Silas Hurry 1998 sobre dentre outros sítios o planejamento urbano das cidades de Saint Mary City arruinada Annapolis e Baltimore ao redor da baía de Chesapeake no estado de Maryland EUA 6 Em realidade a importância do comércio seria mais abrangente a crise do sistema colonial e a constituição da economia mercantilescravista cafeeira nacional reforçaram o caráter mercantil da economia do Estado Nacional brasileiro que surgira no oitocentos MELLO 20094549 Contudo o comércio assim como a produção industrial tem de certa forma um papel diminuído na dinâmica do processo histórico pois ele é visto como uma atividade inteiramente dependente da grande lavoura No caso específico de São Paulo há sensíveis lacunas de estudos históricos sobre a importância dos diferentes grupos de interesse na economia paulista do oitocentos e início do novecentos As elites acabam sendo tratadas como uma grande camada homogênea mero reflexo da produção da grande propriedade rural PERISSINOTTO 1997 Na Arqueologia não se deixa de seguir essa tendência penso eu Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 127 não estão inequivocamente associadas ao mar estão em terra firme às vezes algo distante do meio líquido o que leva ao motivo 3 demonstrar que o território do capital é descontínuo e que portanto não só os naufrágios submersos ou as estruturas portuárias interface terraágua podem explicar as atividades portuárias por fim 4 o estudo das casas comerciais a partir da Arqueologia exige a adoção de perspectivas teóricas e metodológicas que não necessariamente envolvem a escavação mas que demandam o uso de informações provenientes de edificações estruturas e equipamentos ainda em uso e que não são comumente associadas ao domínio da Arqueologia Os portos da cidade de Cananéia Será analisada em exclusivo uma parcela do imenso espaço portuário7 de Cananéia e da zona estuarinolagunar que a envolve a saber aquela que está contígua à zona urbana mais antiga onde portanto ainda hoje ocorre a maior parte das atividades comerciais do municípioregião Retomese pois o caso do porto Bacharel A designação original porto do Bacharel foi legada à estrutura em 1931 ALMEIDA 1964502 Ele é tido como o porto ancestral de Cananéia mas a realidade é mais complexa embora esse porto esteja no centro da cidade e seja utilizado há muito tempo isso de acordo com os vestígios nele localizados em 20078 sua forma atual se originou a partir da união de outros dois cais de alvenaria de pedra o do Mercado construído em data incerta séculos XVIIIXIX e o Municipal ou Grande concluído em 1889 ALMEIDA 1961480 O primeiro definiu o limite sul do novo porto o segundo os limites norte e leste o que formou o polígono regular ainda hoje visível embora parcialmente encamisado por concreto armado E onde atualmente estão os flutuantes da balsa foram construídas logo após a conclusão do cais de pedra no fim da década de 1920 19271929 duas pontes de madeira para facilitar o embarque e desembarque em navios maiores Foi também nessa década que se criou uma rampa pavimentada ao sul do porto a qual passou a formar um sistema de circulação em conjunto com a rampa norte mais antiga e parte da estrutura do cais Municipal 7 Entendese espaço portuário como sendo um local de contato entre a embarcação e a terra não importando se há estruturas específicas para a aportagem ou se a embarcação será varada ou se haverá transbordo BLOT 20033233 Ou seja o conceito se refere a uma sucessão de paisagens e não a um equipamento específico um cais de pedra por exemplo 8 Em prospecção realizada no aterro do porto em 2007 foi encontrada cerâmica com decoração corrugada possivelmente indígena além de faiança ibérica Também foi identificada uma rampa de embarque e desembarque pavimentada com uma argamassa de terra e conchas BAVAdeCAMARGO 2009111122 Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 128 O porto do Bacharel representa portanto a etapa final de concentração do fluxo portuário Depois disso o movimento de navios foi diminuindo de forma drástica até 1942 quando se tem notícia da entrada do último vapor de cabotagem no porto de Cananéia ALMEIDA 1961476 Após essa data o transporte de e para Cananéia ficou condicionado ao modal rodoviário e hidroferroviário modificando a estrutura de circulação de mercadorias e como consequência o controle sobre ela A etapa inicial de concentração das atividades portuárias se deu com a construção do cais Municipal mas naquela época 18851889 BAVAdeCAMARGO 20098687 havia outros portos no núcleo urbano com importante papel para a circulação de pessoas e mercadorias9 A construção do cais Municipal ocorreu diante da necessidade de melhorar as condições de atracação dos navios a vapor presentes no espaço portuário de Cananéia desde a década de 1850 como nos revela o sítio arqueológico de naufrágio do Conde dÁquila navio afundado em 1858 a poucos metros da costa RAMBELLI 2003 Antes do cais Municipal os navios a vapor assim como diversas outras embarcações eram fundeados próximos à praia e ao barranco onde hoje está o cais de saneamento e passeio público da Avenida Beira Mar AVÉLALLEMANT 1980310 Não havia um local específico para embarque e portanto não havia concentração das atividades portuárias E antes do advento da navegação a vapor a principal área de fundeio ficava à sombra do morro São João em frente à foz do rio Olaria Abrigada dos ventos do quadrante sul tendo lenha e água em quantidade e com boa profundidade para embarcações de menor porte tais como lanchas e sumacas aquelas que efetivamente tocavam o porto de Cananéia antes da segunda metade do século XIX a área ficava próxima ao estaleiro do capitãomor Joaquim José da Costa no local onde hoje está instalada a base do Instituto Oceanográfico da USP submetida à prospecção em 2007 BAVAdeCAMARGO 2009 2008 Como não havia um atracadouro específico nem uma embarcação de grande capacidade que polarizasse todo o transporte de mercadorias o fluxo portuário era pulverizado pela costa do núcleo urbano nas margens do rio Olaria e do riacho Ipiranga10 que cortava a povoação no sentido norte sul 9 Como o porto do Rosário bastante profundo e estabelecido no término início do caminho que levava ao outro lado da ilha ao Itapitangui à estação telegráfica e à colônia Cananéia BAVAdeCAMARGO 200990 10 Segundo A P de Almeida no riacho Ipiranga também conhecido como a piranga teria se situado o porto dos Bugres nome popular dado a um ancestral embarcadouro 1964443444 O mesmo autor conta que às margens do riacho haviam sido encontrados cabos náuticos que seriam bastante antigos Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 129 Enfim reportando novamente à tese uma das conclusões às quais se chegou foi de que esse papel de primazia do porto do Bacharel representa o final de um processo econômico hoje cristalizado como um destino manifesto sacralizado e naturalizado em razão da exaltação à figura do Bacharel quinhentista O que ocorreu foi o deslocamento do centro das atividades portuárias a partir de meados do século XIX e até meados do século XX das faldas do morro São João para o porto do Bacharel em função das mudanças impostas pela cabotagem a vapor e da necessidade de controle daquela época Tanto é assim que hoje o porto Bacharel não é mais o centro das atividades náuticas da região Continua sendo importante pois a balsa para Ilha Comprida funciona nele Mas a pesca comercial a qual tem necessidades portuárias específicas e que é atualmente a maior indústria de Cananéia saiu do antigo cais do Mercado e migrou para a foz do rio Olaria à sombra do morro São João tal como faziam as antigas embarcações a vela e as canoas tornando aquela área um polo de concentração de riqueza e de controle sobre a produção tendo diversas empresas e a Ceagesp se instalado lá Já o pólo de concentração das atividades de turismo náutico outro componente da produção contemporânea de Cananéia situase atualmente no píer da Prefeitura em lado diametralmente oposto às atividades de pesca em frente à edilidade e mais próximo das pousadas para mais referências ver BAVAdeCAMARGO 2009 6379 O que se vê então é uma relação de determinação entre as funções portuárias e o core da atividade que necessita daquela edificação estrutura ou equipamento razão esta que ajuda a estruturar a continuidade deste trabalho A dinâmica das casas comerciais a partir da evolução de suas fachadas A premissa para esta parte do estudo é bastante simples se foi observada uma gradual concentração das atividades portuárias na estrutura do porto do Bacharel haveria a possibilidade de enxergar esse processo de concentração em outras edificações estruturas e bens do espaço marítimo Para identificar isso realizouse um levantamento das edificações entes e feições urbanas atuais o qual foi correlacionado a plantas mapas e fotografias antigas11 permitindo estabelecer uma escala cronológica e espacial para a evolução das fachadas Essas informações sobre Cananéia foram então inseridas em uma carta analítica a qual permitiu o entendimento da evolução da cidade 11 Fotos datadas entre 1906 e 1936 do acervo do projeto Museu de Rua desenvolvido nos anos 80 pelo Condephaat e hoje sob os cuidados do escritório de Julio Abe Wakahara Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 130 A metodologia para a realização desse tipo de levantamento em estudos arqueológicos tem origem na Arqueologia Extensiva Estáse assim trabalhando com uma interface entre a Arquitetura História Geografia e Arqueologia na qual todas as informações são incorporadas a uma mesma base de dados sem privilégio do registro arqueológico ruínas jazimentos sobre as demais fontes de informação JIMÉNEZ PUERTAS 2006 E como identificar quais edificações teriam sido construídas ou reformadas para serem casas comerciais Baseandose num padrão estabelecido pelo Condephaat12 quando iniciou suas atividades na região c 1970 ROCHA FILHO 2005 De maneira geral edificações cujas envasaduras das fachadas eram todas portas teriam servido como casas comerciais de serviços ou industriais pois essas atividades ocasionavam grande circulação de pessoas e de mercadorias volumosas Este seria o caso das edificações térreas As edificações com mais de um piso cujo primeiro andar só apresentasse portas seriam consideradas de uso misto com morada em cima e comércio embaixo Todavia estabeleceu se uma variação nesse padrão também foram consideradas de uso misto edificações térreas que apresentassem mais de uma porta nas fachadas pois assim os pequenos negócios também seriam registrados Para excluir as fachadas do comércio contemporâneo da base de dados só foram registradas as edificações construídas com alvenaria de pedra ação que permitiu a avaliação do período desejado c18801930 Isso foi possível porque edificações inteiramente de alvenaria de tijolo eram pouco comuns até a década de 1920 quando se instalou na cidade uma olaria para a produção de tijolos em grande escala ALMEIDA 1965470 provavelmente em razão da demanda por tijolos gerada pela serraria e fábrica de barris O resultado dessa análise pode ser visto na Prancha 1 em anexo na qual estão evidenciadas as edificações que tinham funções comerciais e industriais na década de 1920 e aquelas que haviam deixado de ser comerciais até aquela década13 Assim foi possível perceber alguns locais de concentração das edificações das estruturas produtivas totalizando 9 áreas em verde A Área 1 é a principal A ela voltarseá mais adiante Notese em primeiro lugar aquelas que não são o foco central desta análise as Áreas 3 4 e 5 não estariam em princípio 12 Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico Artístico e Turístico órgão da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo 13 A percepção dessa mudança foi possível graças à comparação entre as fotos do acervo do Museu de Rua Algumas delas foram tiradas de ângulos muito semelhantes por vários anos seguidos Assim comparando as sequências de fotos foi possível perceber que algumas das edificações que tinham mais de uma porta em suas fachadas antes dos anos 20 ou no começo dos anos 20 possuíam apenas uma porta no final daquela década ou começo da seguinte Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 131 diretamente relacionadas ao meio marítimo mas sim à circulação terrestre e ao adensamento urbano A Área 3 estaria associada não a um porto mas a uma área de convergência de caminhos terrestres o caminho mais antigo que seguia do porto do Rosário passava pelo cemitério e chegava do outro lado da ilha e a estrada caminho novo estabelecido ao longo da linha telegráfica eixo da atual Avenida Independência Essa concentração de pequenas casas comerciais armazéns e botequins que talvez não estivesse diretamente relacionada à comercialização da produção do arroz ficavam em encruzilhada seca próxima de bairros tais como o Acaraú e Rocio Há algumas edificações dispersas pela altura da Rua Tristão Lobo com a Rua Pedro Correa as quais foram aglutinadas na Área 4 Esse fato não pode ser explicado pela proximidade da área com os portos marítimos mas pela densidade de edificações da rua afinal seria bastante cômodo para os moradores disporem de comércio nas proximidades de suas casas e não só em áreas relativamente distantes Já a Área 5 poderia eventualmente estar associada ao uso do riacho Ipiranga como via de deslocamento das mercadorias em canoas na maré alta mas isso é muito difícil de definir sem escavações específicas ou levantamentos minuciosos em arquivos Com relação às áreas fabris isoladas do núcleo urbano principal Áreas 2 8 e 9 todas estavam relacionadas às atividades de processamento de madeira As Áreas 8 e 9 eram estaleiros a 8 representa dois estaleiros de embarcações pesqueiras e de carga e a 9 no sopé do morro São João era referente ao estaleiro desativado do capitão mor Joaquim José da Costa A Área 2 foi definida no local da serraria e fábrica de barris empreitada iniciada nos anos 1920 1923 com capital de investidores de fora de Cananéia píer de embarque privativo com grua manual para carga e descarga e produção destinada a outras praças inclusive a Argentina barris para armazenamento de vinho segundo SANTOS 195271 Retornando à Área 1 é interessante notar que mesmo nessa região no coração do núcleo urbano original muitas das casas com fachadas comerciais já não mais cumpriam essas funções na década de 1920 tais como as que estão na extremidade norte do flanco leste da Rua Bandeirante além daquelas que estão na esquina da Rua Pero Lopes Área 1C Parece que na verdade o comércio na Área 1 estava com uma dinâmica reduzida muito embora as obras portuárias e o fluxo de embarcações demonstrassem seguir na direção contrária Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 132 O que parece ter ocorrido nessa época é a redução da quantidade de casas comerciais e a concentração dos negócios entre os dois engenhos a vapor da cidade14 as duas edificações que estão pintadas em vermelho e roxo uma na Rua Bandeirante outra na Avenida Beira Mar Esses empreendimentos fabris estavam ambos próximos do cais Municipal com nítidas vantagens para o engenho do norte antes de 1929 enquanto esse estava a 60 m do cais o do sul estava a 90 m Entretanto com a construção da rampa sul do porto do Bacharel e a união entre o cais do Mercado e o Municipal entre 19271929 ambos os engenhos ficaram equidistantes do porto principal uma relação espacial que não parece nada casual Há que se ter em mente que o transporte entre os engenhos e o cais era feito por carregadores descalços os quais recebiam por saca conduzida SANTOS 1952 Assim antes do porto do Bacharel o engenho do sul teria que dispor de 33 mais carregadores para conduzir ao cais a mesma quantidade de carga que seria transportada no mesmo espaço de tempo a partir do engenho do norte Outro fator que pode ter contribuído para o fechamento de casas comerciais nos anos 1920 a despeito de outros indicadores apontarem para uma maior dinâmica na economia foi o fato de que esses engenhos urbanos de descascar arroz eram movidos a vapor portanto tinham grande capacidade de processamento Anteriormente à existência dos engenhos a vapor no núcleo urbano o arroz produzido tanto pelos grandes quanto pelos pequenos produtores era beneficiado em engenhos distantes da vila movidos à água Cada engenheiro designação dada ao dono do engenho poderia eventualmente escolher a representação comercial na sede do município que mais lucro lhe propiciasse o que garantiria a existência de certo número de casas comerciais Não sendo o beneficiamento do arroz concentrado não seria provável a existência de uma comercialização também concentrada e haveria mais espaço para a aferição de lucro com a comercialização do produto Com o advento dos engenhos a vapor no distrito sede a produção do arroz passa a ser beneficiada muito próxima ao local do embarque dispensando o serviço dos engenheiros rurais que também atuavam como concentradores da produção dos locais mais distantes PETRONE 1966 Embora as relações entre produtores e beneficiadores de arroz ainda seja pouco compreendida é certo que a eliminação de intermediários garantiria maiores lucros para as duas pontas do processo lavradores e agentes comerciais do centro urbano 14 Não é possível precisar quando surgiram os primeiros engenhos movidos a vapor em Cananéia Segundo o que se depreende de M H Santos 1952 isso teria ocorrido entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 133 Devese notar entretanto que com a eliminação de alguns dos intermediários na cadeia produtiva haveria uma tendência de contato direto entre lavradores e os engenheiros do centro urbano praticamente eliminando as possibilidades de negócios para pequenos comerciantes Reflexo dessa concentração em curso ou uma das causas dela é a retificação e consolidação do talude da fachada marítima de Cananéia ocorrida em concomitância com a construção do porto do Bacharel na década de 1920 Nessa época o talude existente na atual Avenida Beira Mar antiga Rua Dr Alcoforado começou a ser revestido com uma muralha de pedra dando origem ao cais de saneamento ainda hoje visível na orla Essa muralha dificultou ou praticamente eliminou as possibilidades de carga e descarga de mercadorias na vasta fachada marítima condicionando essas operações a partir das canoas à varação das mesmas nas proximidades do porto do Bacharel ou a uma viela diante do engenho do sul Não é possível determinar se essas canoas de carga conseguiriam adentrar pela foz do rio Olaria a esta época parcialmente obstruída pelos pilares da ponte antiga Assim o saneamento da orla de Cananéia levou a uma concentração também das remessas de arroz a partir dos produtores Até o final da década de 1920 a chegada do produto ao núcleo urbano era dispersa pois cada agricultor trazia a sua produção ou a de um coletivo de produtores PETRONE 1966 em grandes e robustas canoas de carga as quais encostavam nos barrancos praias ou adentravam pelos cursos dágua só a exportação da mercadoria era concentrada nos vapores marítimos e em menor escala nos fluviais Como eram os próprios agricultores que deveriam levar seu produto até os negócios a proximidade entre o porto e o comércio era bastante necessária Assim o comerciante precisava estar o mais próximo possível da área de descarga das canoas Como todo o talude da Beira Mar era propício para a varação de canoas dependendo da maré não havia motivo para a concentração de casas de comércio Já com a construção do cais de saneamento essa relação se tornou mais complicada pois o cais bloqueava o acesso dos agricultorescanoeiros às ruas podendo ser essa uma das explicações do porque das edificações da Subárea 1C terem deixado de ter funções comerciais nos anos 20 uma vez que ficaram com o acesso muito mais difícil ao mar Finalmente há as indicações de edificações que foram estruturas produtivas mas que na década de 1920 não podiam ser consideradas ativas Áreas 6 e 7 Essas áreas se localizavam próximas às extremidades da Rua Capitão Ernesto Martins Simões na margem norte do rio Olaria a leste e a oeste do riacho Ipiranga A implantação dessas casas comerciais pode explicarse pela utilização do riacho Ipiranga e do rio Olaria como vias de comunicação com o mar No caso da Área 7 ela Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 134 também teria comunicação direta com o mar através da baixada que hoje é ocupada pela Ceagesp Nessa última área há um controle visual bastante eficaz do fluxo portuário proveniente do rio Olaria e das embarcações que fundeiam à sombra do morro São João Na Área 7 a câmara municipal teria ocupado a maior das casas antes de 1860 ALMEIDA 1965465 estava ela localizada diante daquele que havia sido o principal fundeadouro de embarcações antes do início da navegação a vapor Assim é de se supor que a câmara só tenha mudado para o local onde ela hoje se encontra em razão de uma drástica mudança no padrão de aportagens Esta só aconteceu com o predomínio da cabotagem a vapor Além do deslocamento das atividades portuárias para o talude da atual Avenida Beira Mar e a posterior mudança delas para o cais Municipal outro fator que pode explicar a desaparição dessas zonas comerciais é o assoreamento dos cursos dágua docesalobra bem como da fachada marítima contígua à desembocadura do rio Olaria Embora faltem dados geofísicosoceanográficos esse acúmulo de sedimentos principalmente na Área 7 pode ter sido causado por uma das fases construtivas da ponte sobre o rio Olaria e pela construção do próprio cais Municipal ambas obras que teriam afetado a dinâmica sedimentar marítima na costa contígua à cidade Considerações finais Essa discussão está longe de ser encerrada pois a centelha que desencadeou a concentração dos meios de produção e consequentemente do controle sobre esses meios de produção na segunda metade do século XIX mantémse viva na nossa sociedade Seria tema bastante profícuo o entendimento das transformações da base da economia de Cananéia e do vale do Ribeira a partir da segunda metade do século XX pois a despeito do discurso generalizado da pobreza da região a Cananéia do arroz se transformou na da pesca e do turismo e há gente ganhando dinheiro com isso o grande problema continua sendo a distribuição da riqueza Essas atividades hoje levadas a cabo em grande escala necessitaram de capitais externos e do capital local acumulado com a rizicultura tendose valido também da estrutura portuária preexistente como um dos meios de produção Assim quando se diz que a cabotagem a vapor encerrou na década de 1940 isso não significa que as paisagens desse espaço portuário tenham entrado em decadência e se cristalizado como monumentos históricos elas foram são e serão reapropriadas e modificadas pelo transporte hidroferroviário também não mais existente pelas atividades pesqueiras pelo discurso Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 135 historicista e pelo turismo náutico E embora a fruição dessas paisagens flúviomarítimas tenha sido universalizada pela ideia de democratização e pluralização da sociedade contemporânea elas continuam a ser paisagens de concentração de capital controle e exclusão social Talvez potencializadas até basta uma volta pela orla da cidade desde o morro São João até o extremo norte da Avenida Beira Mar com uma pergunta em mente em quais pontos da costa eu poderia embarcar ou desembarcar livremente para se perceber que o acesso real ao mar é muito menor do que o imaginado Referências bibliográficas ALMEIDA Antonio P Memória Histórica de Cananéia X Revista de História São Paulo FFLCUSP vol 31 nº XX p 453477 1965 Memória Histórica de Cananéia VII Revista de História São Paulo FFLC USP vol 28 nº 58 p483504 1964 Memória Histórica de Cananéia V Revista de História São Paulo FFLCUSP vol 25 nº 51 p192217 1962 Memória Histórica de Cananéia II Revista de História São Paulo FFLCUSP vol 22 nº 46 p191237 1961 Memória Histórica de Cananéia II Revista de História São Paulo FFLCUSP vol 22 nº 45 p475520 1961 História da navegação no litoral paulista Revista do Arquivo Municipal São Paulo ano XIX vol CLIII novembro 1952 AVÉLALLEMANT Robert Viagens pelas províncias de Santa Catarina Paraná e São Paulo 1858 B Horizonte S Paulo Itatiaia Edusp 1980 BAVAdeCAMARGO Paulo F Arqueologia de uma cidade portuária Cananéia séculos XIXXX São Paulo 2009 Tese Doutorado em Arqueologia Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo 2009 Prospecção arqueológica na base costeira do Instituto Oceanográfico da USP em Cananéia estado de São Paulo Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia São Paulo 18 2008 P323330 Arqueologia das fortificações oitocentistas da planície costeira Cananéia Iguape SP São Paulo 2002 Dissertação Mestrado em Arqueologia Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo 2002 Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 136 BLOT Maria L B H P Os portos na origem dos centros urbanos contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúviomarítimas em Portugal Lisboa Instituto Português de Arqueologia 2003 Série Trabalhos de arqueologia nº 28 JIMÉNEZ PUERTAS Miguel Historia y Arqueología de los paisajes rurales un proyecto de presente y de futuro para el territorio de Loja Arqueología Medievalcom Publicado em 24072006 URL httpwwwarqueologiamedievalcomarticulos79historiayarqueologia delospaisajesruralesunproyectodepresenteydefuturoparaelterritoriodeloja Acessado em 24012013 LEONE Mark P HURRY Silas D Seeing the power of town planning in Chesapeake Historical Archaeology Tucson vol 32 no 4 p3462 1998 MELLO João M C O capitalismo tardio São Paulo Campinas Editora UNESP FACAMP 2009 11ª edição PERISSINOTO Renato M Classes dominantes Estado e os conflitos políticos na Primeira República em São Paulo sugestões para pensar a década de 1920 DE LORENZO H C COSTA W P A década de 1920 e as origens do Brasil moderno São Paulo Editora da UNESP 1997 P3769 PETRONE Pasquale A Baixada do Ribeira estudo de geografia humana São Paulo FFLCHUSP 1966 RAMBELLI Gilson Arqueologia subaquática do baixo vale do Ribeira SP São Paulo 2003 Tese Doutorado em Arqueologia Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo 2003 ROCHA FILHO Gustavo N Cananéia levantamento sistemático destinado a inventariar bens culturais do estado de São Paulo São Paulo Condephaat 2005 2ª edição SANTOS Manoel H A cidade esquecida Boletim do Departamento de Arquivo do Estado São Paulo 1952 vol 9 p51138 1952 WALLERSTEIN Immanuel Capitalismo histórico Civilização capitalista Rio de Janeiro Contraponto 2007 Revista de Arqueologia Pública n7 julho 2013 Campinas LAPNEPAMUNICAMP ISSN 22378294 137