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IdeAs Idées dAmériques 15 2020 Eau et gestion de leau dans les Amériques Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro From One Million Cisterns to Water for All Program political divergences and institutional bricolage in promoting access to water Du programme Un million de citernes deau pour tous différences politiques et bricolage institutionnel dans la promotion de laccès à leau Daniela Nogueira Carolina Milhorance e Priscylla Mendes Edição electrónica URL httpjournalsopeneditionorgideas7219 DOI 104000ideas7219 ISSN 19505701 Editora Institut des Amériques Refêrencia eletrónica Daniela Nogueira Carolina Milhorance e Priscylla Mendes Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro IdeAs Online 15 2020 posto online no dia 01 março 2020 consultado o 25 março 2020 URL httpjournalsopeneditionorgideas7219 DOI httpsdoiorg104000ideas 7219 Este documento foi criado de forma automática no dia 25 março 2020 IdeAs Idées dAmériques est mis à disposition selon les termes de la licence Creative Commons Attribution Pas dUtilisation Commerciale Pas de Modification 40 International Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro From One Million Cisterns to Water for All Program political divergences and institutional bricolage in promoting access to water Du programme Un million de citernes deau pour tous différences politiques et bricolage institutionnel dans la promotion de laccès à leau Daniela Nogueira Carolina Milhorance e Priscylla Mendes Introdução 1 O Brasil é um país privilegiado no que se refere ao volume de recursos hídricos detentor de cerca de 13 da água doce do planeta Agência Nacional de Águas 2013 Todavia a disponibilidade de água no território nacional não é uniforme e a oferta de água tratada reflete contrastes associados ao processo de desenvolvimento nacional bem como às desigualdades sociais e regionais dele resultantes A região Nordeste compreende uma área de 1670000 km2 dos quais 969589 km2 conformam o chamado Semiárido brasileiro Figura 1 região historicamente marcada pela ocorrência de secas Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 1 Localização da região semiárida Fonte Autores Sudene 2019 2 O desenho dos arranjos institucionais e as engrenagens de poder são centrais na configuração das relações de poder Políticas sociais mais inclusivas e de promoção do acesso à água têm contribuído desde o início dos anos 2000 para reduzir as vulnerabilidades sociais da região diminuindo as assimetrias de poder existentes No entanto ainda é possível observar a existência de uma relação direta entre pobreza e acesso aos serviços básicos Nogueira D 2017 Bursztyn M e Chacon S 2011 3 Uma das principais ações neste contexto é o Programa Um Milhão de Cisternas P1MC coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDS e executado pela rede de organizações da sociedade civil Articulação do Semiárido ASA Lançado em 2003 o programa incluiu iniciativas de formação educação e mobilização de famílias rurais para construção de cisternas de captação de água da chuva Ele trouxe importantes resultados no que tange ao desafio de democratizar o acesso à água no Semiárido brasileiro e se destacou por seu desenho metodológico e grau de capilaridade no território Nogueira D 2009 Apesar destes resultados o programa tornouse um espaço de disputa políticoinstitucional não apenas entre atores da sociedade civil local e o governo federal mas também dentro do próprio governo federal Mudanças significativas na sua concepção e arranjo institucional foram observadas a partir de 2011 com a criação do Programa Água para Todos APT no âmbito do Plano Brasil sem Miséria PBSM Coordenado pelo Ministério da Integração Nacional MI tal mudança provocou transformações no desenho inicial assim como no processo de implementação do programa e alterou as estratégias privilegiadas de promoção do acesso à água A transição resultou na formulação de um programa governamental de escala nacional dotado de orçamento próprio e que incluiu novos Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 2 tipos de infraestrutura hídrica atraindo assim o interesse de diferentes grupos de poder e diferentes instituições envolvidas na sua implementação 4 O presente artigo examina o processo político que levou a tal mudança trazendo para o centro da discussão suas motivações evolução e implicações Além do interesse analítico de um processo de mudança programática e de disputa entre burocracias estatais incluindo suas dinâmicas de alianças com atores sociais o artigo discute os desafios de formulação de políticas públicas de acesso à água e de sua implementação em nível local Por fim o texto analisa o programa a partir de uma perspectiva mais ampla destacando os desafios de transpor para a escala nacional iniciativas locais além de articular tais questões com a redução das vulnerabilidades socioambientais principalmente no contexto de aumento dos impactos decorrentes das mudanças climáticas 5 Foram mobilizados dados primários e secundários incluindo dados bibliográficos e estudos de avaliação dos programas documentos institucionais e entrevistas realizadas entre setembro de 2018 e junho de 2019 com gestores públicos e privados incluindo técnicos e agentes de mobilização de organizações nãogovernamentais em Brasília e na região semiárida de Petrolina e Juazeiro nos estados de Pernambuco e Bahia respectivamente Em Brasília tais gestores fazem parte dos quadros técnicos das instituições federais responsáveis pela formulação e implementação do P1MC e do APT Já nos estados estão ligados às unidades gestoras em algumas ocasiões participando do processo como voluntários 6 O artigo é subdividido em quatro seções A primeira contextualiza a evolução recente do debate sobre o acesso à água no Semiárido brasileiro A segunda descreve a emergência e a consolidação do P1MC Em seguida são trazidas informações de primeira mão sobre a mudança institucional e transição para o APT listando os principais objetivos e determinantes deste processo Finalmente a quarta seção discute as implicações desta mudança do ponto de vista político e do potencial do programa em reduzir as vulnerabilidades socioambientais na região Evolução das respostas políticoinstitucionais ao desafio do acesso à água no Semiárido brasileiro 7 O acesso à água é o fio condutor das diversas concepções de desenvolvimento adotadas na formulação de políticas públicas assim como os ciclos de desenvolvimento econômico que marcaram a região Políticas decorrentes da solução hidráulica ou açudagem passando por iniciativas como a estratégia desenvolvimentista e recentemente estratégias nacionais mais centralizadoras foram implementadas em toda a região No entanto não priorizavam as particularidades regionais e de forma geral tinham um caráter mais emergencial e menos transformador das estruturas sociais Nogueira D 2009 Chacon S 2007 Algumas dessas políticas públicas acabaram por beneficiar elites locais e reforçar o clientelismo pois se restringiam a ações pontuais privilegiando pessoas que já tinham alguma forma de acesso ao poder ou correligionários das oligarquias locais Corroborando para a manutenção das estruturas de poder existentes na região Bursztyn M 2008 8 Os planos de desenvolvimento macrorregional marcaram a estratégia desenvolvimentista que prevaleceu entre os anos 1950 e 1970 e levou em consideração Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 3 de forma mais sistemática aspectos da estrutura econômica da região Apesar de ter sido criado no início do século XX o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas Dnocs teve um papel importante na construção de grandes reservatórios de água e obras de infraestrutura hídrica Destacase também o papel da Superintendencia do Desenvolvimento do Nordeste Sudene criada em 1959 que atuou na elaboração de planos regionais de desenvolvimento com base em uma perspectiva de que a disponibilidade hidrica nao significava exclusivamente um problema climatico No entanto as iniciativas propostas permaneceram baseadas em soluções desconectadas de ações mais enraizadas e geradoras de autonomia e consequentemente mais transformadoras da estrutura social e econômica O reconhecimento dos limitados resultados das políticas de combate à seca no que se refere à melhoria das condições de vida da população impulsionou o surgimento e atuação de novos atores na construção de alternativas mais sustentáveis para o Semiárido Milhorance C et al 2019b Nogueira D 2009 9 Assim como as políticas desenvolvimentistas estratégias setoriais também não se apresentaram como propostas de redução das desigualdades e vulnerabilidades sociais Grandes empreendimentos de geração de energia elétrica têm sido implantados na região aproveitando o potencial dos recursos naturais locais como as usinas hidrelétricas no rio São Francisco e mais recentemente os parques de energia eólica Contudo essas iniciativas pouco contribuíram para a redução dos impactos socioambientais sofridos pelas populações rurais mais vulneráveis Milhorance C et al 2019b A formulação e implementação dessas iniciativas caracterizaramse por uma lógica de centralização que acabou por reproduzir a dinâmica de poder já existente e a permanência de entraves à democratização do acesso à água Nogueira D 2017 10 A partir da seca de 1992 a 1993 houve um progressivo reconhecimento dos limitados resultados das políticas de combate à seca no que se refere à melhoria das condições de vida da população rural Este episódio impulsionou a atuação de novos atores na construção de alternativas de desenvolvimento para o Semiárido Observase uma mudança na reação de organizações da sociedade civil pressionando as autoridades do poder público por ações mais concretas Cardoso G 2007 Um conjunto de ações permanentes para convivência com o Semiárido tornouse objeto de diálogo entre a sociedade civil e o Governo Itamar Franco 19921995 O projeto ganhou mais consistência a partir de 1996 por meio das parcerias firmadas com o programa Comunidade Solidária e com a Sudene Nogueira D 2009 Todavia estas permaneceram medidas emergenciais e o crédito rural para o fortalecimento da infraestrutura hídrica privilegiou os grandes e médios proprietários Nogueira D 2009 11 Um ponto de inflexão institucional neste processo foi o estabelecimento da Política Nacional de Recursos Hídricos PNRH preconizada pela Lei 9433 de 1997 que tem como fundamentos o uso múltiplo das águas e a gestão descentralizada dos recursos hídricos a partir da participação do poder público dos usuários e das comunidades Além de contribuir para a mudança de paradigma referente ao uso e distribuição da água no Brasil a política estabeleceu como um de seus objetivos o incentivo e promoção da captação preservação e aproveitamento de águas pluviais incluindo as cisternas domiciliares 12 É dentro de um contexto de mudanças políticas na gestão dos recursos hídrico e de insatisfação com as políticas historicamente implementadas na região que em 1999 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 4 durante a III Conferência das Partes das Nações Unidas sobre o Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca COP 3 em Recife PE representantes de sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais movimentos sociais entidades religiosas e ONG elaboraram a Declaração do Semiárido O texto trouxe como mensagem central a ratificação de que a adaptação às condições fisiográficas do Semiárido brasileiro era possível Silva D 2014 Nogueira D 2009 13 Nesta perspectiva diversas organizações governamentais e da sociedade civil vêm alterando suas ações de um enfoque de combate às secas caracterizado pelo estabelecimento de grandes infraestruturas hídricas e pela lógica de centralização na gestão dos recursos hídricos para uma perspectiva de convivência com o Semiárido Uma das premissas destas mudanças é assegurar o acesso à água de forma autônoma e descentralizada garantindo assim a segurança hídrica e alimentar condições básicas para a permanência das pessoas na região A evolução institucional da promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro descrita ao longo desta seção é ilustrada na Figura 2 Evolução institucional da promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro Fonte Autores Programa Um Milhão de Cisternas Rurais institucionalização de uma estratégia de convivência com a seca 14 Apesar do aproveitamento da água de chuva para consumo humano e para atividades produtivas ter sido promovido por diversas organizações da sociedade civil do Semiárido desde o início dos anos 1990 sua institucionalização como política pública deuse em 2003 com a criação do P1MC durante a presidência de Lula da Silva 20032010 Gandure S Walker S e Botha J 2013 O programa destacouse por seu desenho metodológico grau de capilaridade complexidade e consequentemente potencial de transformação A iniciativa inclui formação educação e mobilização de pessoas e instituições executado pela ASA que vem desencadeando um movimento de Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 5 articulação e de convivência sustentável com o Semiárido a partir do fortalecimento da sociedade civil e da construção de cisternas 15 A ASA é um ator central nesse processo fruto de uma articulação entre entidades que vinham desenvolvendo iniciativas para promoção de tecnologias sociais no Semiárido sendo estas realizadas com o apoio da Fundação Grupo Esquel Brasil e da Federação Brasileira dos Bancos Febraban Esse processo intensificouse durante a preparação da COP3 e resultou na criação do Fórum de Articulação do Semiárido Nogueira D 2009 No início tratavase de um grupo relativamente pequeno formado por organizações de vários estados do Nordeste A iniciativa expandiuse e em 2002 foi criada a Associação Programa Um Milhão de Cisternas AP1MC com o objetivo de administrar a implementação do P1MC e repassar os recursos para as Unidades Gestoras Microrregionais UGM comissões responsáveis pela execução das ações Além das UGM a ASA é composta por uma Comissão Executiva formada pelas entidades diretoras estaduais 16 Desde a sua fase inicial o P1MC contou com várias fontes financiadoras Dentre as principais é possível destacar a Agência Nacional de Águas ANA a Febraban a Associação Recife Oxfam para a Cooperação e Desenvolvimento Oxfam o Ministério do Meio Ambiente MMA e o MDS O Programa teve início mediante um convênio entre a ASA e o MMA em 2001 Todavia foi em 2003 por meio de um termo de parceria assinado com o então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome MESA1 que o P1MC ganhou impulso 17 Entre 2003 e 2010 329569 cisternas de placas para abastecimento humano foram construídas no âmbito do P1MC MDS 2016 Entre as principais vantagens dessa infraestrutura destacamse a qualidade da água a proximidade da residência e o custo relativamente baixo cerca de R 3 mil que inclui material mãodeobra mobilização e capacitação das famílias beneficiadas com a tecnologia Santana V et al 2011 O uso da água armazenada nas cisternas residenciais deve ser exclusivo para o abastecimento humano não sendo suficiente para atender outras necessidades durante a seca Trata se de uma alternativa ao alto custo dos carrospipa e à falta de garantia da qualidade da água de outras fontes de abastecimento como açudes sendo também usada como reservatório para armazenamento nos períodos de seca principalmente nas regiões mais distantes dos aglomerados comunitários Andrade T et al 2015 Nóbrega R et al 2013 18 Portanto o P1MC trouxe inovações metodológicas e de gestão ao desafio histórico de democratizar o acesso à água no Semiárido brasileiro O programa ganhou reconhecimento nacional e internacional como estratégia de superação da pobreza rural na região No entanto sua capacidade de execução e universalização do acesso à água foi considerada baixa por membros do governo federal Neste contexto o P1MC vem assumindo diferentes contornos ao longo dos anos resultado da experimentação e do diálogo nem sempre harmonioso Nogueira D 2017 entre atores da sociedade civil local e do governo federal que contribuíram para moldálo Bonnal P e Piraux M 2010 Mudanças mais importantes na sua concepção e no seu arranjo institucional ocorreram a partir da criação do programa APT e serão discutidas nas próximas seções Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 6 O Programa Água para Todos e a proposta de universalização do acesso à água Objetivos governança e implementação 19 O Programa APT foi instituído em julho de 2011 pelo governo federal no contexto do Plano Brasil Sem Miséria PBM com a proposta de universalizar o acesso à água na zona rural Considerado uma das principais bandeiras políticas do governo Dilma Rousseff 20112016 a principal diretriz do PBM é a priorização da população em situação de extrema pobreza ampliando o acesso aos serviços públicos e também a oportunidades de ocupação e renda O APT tem como objetivo garantir o amplo acesso à água para as populações rurais dispersas e em situação de extrema pobreza seja para o consumo próprio ou para a produção de alimentos e a criação de animais possibilitando a geração de excedentes comercializáveis para a ampliação da renda familiar dos produtores rurais MI 2012 20 O APT combinou iniciativas existentes de disseminação de infraestruturas e tecnologias hídricas mas com maior número de parcerias e diferentes arranjos institucionais A principal tecnologia apoiada é a cisterna para captação de água da chuva para abastecimento humano seja de placas de cimento ou de polietileno A estratégia de captação e armazenamento de água da chuva no Semiárido foi preconizada pela PNRH no final dos anos 1990 mas tornouse uma estratégia política relevante apenas nos anos 2000 promovendo o acesso descentralizado e territorializado à água Campos A e Melo Alves A 2014 A inovação na utilização das cisternas de placas no âmbito do P1MC foi o desenho metodológico que incluiu formação dos beneficiários para construção e manutenção das cisternas e organização social na gestão dos recursos hídricos e o arranjo institucional de implementação que envolveu parcerias entre o governo federal e organizações da sociedade civil local Pereira M 2016 21 Com a constituição do APT o governo federal pretendia ampliar significativamente a instalação de cisternas tendo como meta entregar 750 mil em um período de menos de quatro anos o que exigia mudanças importantes no desenho institucional e uma maior articulação entre atores Campos A e Melo Alves A 2014 Além de incluir novos órgãos como o MI o MMA a Fundação Nacional de Saúde Funasa e a Fundação Banco do Brasil FBB foram assinados contratos de prestação de serviços com o Banco do Nordeste do Brasil BNB e firmados convênios com consórcios públicos de municípios que ate então não participavam do processo 22 Quanto às tecnologias apoiadas o governo ampliou suas opções incluindo a cisterna de polietileno tecnologia promovida pelo MI A operacionalização da compra e instalação dessas cisternas foi viabilizada pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Sao Francisco e do Parnaíba Codevasf e pelo Dnocs por meio de convênios com estados e licitação para contratar empresas privadas nas quais duas multinacionais saíram vencedoras Além disso foram incorporadas novas infraestruturas tais como sistemas coletivos de abastecimento e tecnologias de água para produção como pequenas barragens cisternas calçadão barreiros e kits de irrigação 23 O argumento do governo para promover o modelo de fabricação e instalação das cisternas de polietileno foi a celeridade na implementação do programa em comparação com as cisternas de placa Segundo os gestores tal decisão foi embasada pela existência de outras experiências com o produto em países como México Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 7 Austrália Nova Zelândia Estados Unidos Malásia e Indonésia e regiões com alta incidência solar a semelhança da região do Semiárido brasileiro Além disso estudos realizados pelo MI indicavam que as cisternas de placa teriam demonstrado alta durabilidade cerca de 20 anos e sua instalação era considerada mais simples que as de placa MI 2011 24 No entanto foram várias as críticas a esta escolha Neste contexto a ASA lançou em 2011 a campanha Cisterna de PlasticoPVC Somos Contra Segundo representantes da rede a mudança para o APT resultou na concentração de recursos financeiros menor capacidade de dinamização da economia local além da inadequação da tecnologia escolhida às características produtivas da região Além disso a cisterna de polietileno excluía a componente de formação e mobilização das famílias rurais para a convivência com o Semiárido Pereira M 2016 ASA 2011 Mais do que uma mudança metodológica observouse uma mudança na configuração política do programa Segundos diversos atores que estiveram à frente do processo de resistência uma maior celeridade na implementação do P1MC poderia ter sido mais facilmente alcançada mediante a desburocratização dos repasses financeiros aos agentes envolvidos bem como por meio do aumento dos recursos destinados às unidades executoras da sociedade civil uma vez que estas já eram detentoras da expertise necessária à governança e à execução do programa 25 Em paralelo à execução da instalação das cisternas de polietileno pelo MI a instalação das cisternas de placas continuou sendo executada pelo MDS depois de impasses na negociação com a ASA Posteriormente em outubro de 2013 o governo federal instituiu o Programa Nacional de Apoio a Captacao de Agua de Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso a Agua Programa Cisternas dando força de lei às ações de implementação de cisternas pelo MDS Além do abastecimento humano o Programa Cisternas tem como finalidade promover o acesso à água para produção alimentar por meio de cisternas produtivas No caso das cisternas de produção tal tecnologia já estava sendo difundida pela ASA desde 2007 por meio do Programa Uma Terra e Duas Águas P12 com o objetivo de promover a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras além de estimular a geração de emprego e renda ASA 2019 objetivos que se alinham diretamente com o propósito central do APT 26 Após muitos embates e alguns ajustes o novo arcabouço institucional buscou simplificar os processos de contratação e prestação de contas pelas organizações da sociedade civil Uma das principais mudanças foi a possibilidade de formalizar contratos por dispensa de licitação com entidades privadas sem fins lucrativos previamente credenciadas pelo MDS Este marco contribuiu para institucionalizar um modelo de governança da política que fortalece a relação entre Estado e sociedade civil na execução de políticas públicas e trouxe inovações importantes para a superação de entraves burocráticos 27 A Tabela 1 resume os atores e instrumentos legais de cada programa e a Tabela 2 informa as tecnologias de captação da água entregues por estes programas Os dados foram organizados entre os períodos anterior 2003 a 2010 e posterior 2011 a 2016 à criação do Programa APT Vale notar que as informações sobre impactos de cada programa no aumento do acesso à água e no fortalecimento da capacidade de convivência com o semiárido não estão disponíveis No entanto no que se refere especificamente à instalação de cisternas os dados mais recentes de implementação do APT indicam um aumento substancial do número inicial No período de 2011 a fevereiro Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 8 de 2016 mais de um milhão de cisternas de consumo placas e polietileno e de produção foram entregues Este número é cerca de três vezes maior que as cisternas implantadas entre os anos de 2003 e 2010 Se compararmos apenas as cisternas de produção nos dois períodos citados esse aumento chega a ser 20 vezes maior MDS 2016 Segundo dados do Ministério do Planejamento em 2017 mais de 47 mil tecnologias sociais de acesso à água para consumo humano foram entregues incluindo comunidades indígenas e quase onze mil de água para produção agrícola MPDG 2017 Os dados após este período são pouco sistematizados criando uma lacuna de informação para o acompanhamento destas ações Apesar disto a última seção deste artigo discute alguns dos resultados e limites de cada programa Tabela 1 Quadro síntese dos programas federais para universalização do acesso à água no Semiárido brasileiro P1MC APT Programa Cisternas Principais tecnologias hídricas disseminadas Cisternas de placa de abastecimento humano 16 mil litros Cisternas de polietileno de abastecimento humano 16 mil litros barreiros cisternas produtivas calçadão enxurrada etc 52 mil litros pequenas barragens kits de irrigação Cisternas de placas de abastecimento humano 16 mil litros cisternas produtivas calçadão enxurrada etc 52 mil litros Marco legal e modalidades de parceria Termo de Parceria N 012003 Convênios com entidades privadas instituições regionais estados e municípios Decreto nº 7535 de 26 de julho de 2011 alterado pelo Decreto nº 80392013 Parceria com entidades précadastradas pelo MDS Lei 128732013 regulamentada pelo Decreto 80382013 e revogado pelo Decreto 96062018 Instituição coordenadora ASAMDS MI MDS Principais instituições envolvidas na execução ASA MDS MI Codevasf DNOCS MMA ANA Funasa FBB BNDES Petrobras e a ASA ASA e prefeituras Fonte Autores Tabela 2 Tecnologias de captação de água de chuva entregues no Semiárido por tipo de tecnologia e período 2003 a 2010 2011 a 2016 Consumo humano 329569 928101 Produção 7505 162032 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 9 Cisternas nas escolas 2281 Fonte MDS 2017 28 Iniciativa iniciada em 2015 Processo de formulação ajustes e bricolagem institucional 29 Com a criação do APT o governo federal buscava aplicar um ritmo mais acelerado de execução e instalação de tecnologias de captação de água O MI cuja missão passava pela diminuição das desigualdades regionais mediante a garantia do acesso à água foi indicado pelo governo Rousseff para coordenar a articulação de iniciativas governamentais já existentes mas até então fragmentadas em diversos setores e ministérios dentre eles desenvolvimento regional agricultura desenvolvimento rural cidades e meio ambiente 30 Inicialmente o APT teve como foco geográfico o Semiárido privilegiando áreas onde se concentra o maior número de famílias em situação de vulnerabilidade Posteriormente o Comitê Gestor deliberou pela inclusão de aposentados rurais que não estivessem no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal CadÚnico assim como de alguns municípios com escassez hídrica fora dos limites oficiais do Semiárido Estes estavam localizados nos estados do Amazonas Espírito Santo Goiás Maranhão Pará Rio Grande do Sul Santa Catarina e Tocantins 31 Tais mudanças resultaram em modificações no papel e na autonomia de determinadas instituições envolvidas no padrão de alocação de recursos federais e na metodologia e no objetivo final do APT em relação ao P1MC gerando críticas dentro e fora do governo Do ponto de vista institucional e financeiro o MDS perdeu parte substancial do orçamento da Secretaria Nacional de Soberania Alimentar e Nutricional e de sua autonomia na aplicação de tais recursos Na sociedade civil as críticas vieram sobretudo da ASA que teve seu orçamento reduzido e sofreu o impacto da perda de autonomia do MDS na execução Além disso viu sua centralidade institucional e programática se fragmentar com o aumento de órgãos executores diversificação de tipos de infraestrutura e pulverização de recursos 32 No que se refere à diversificação dos órgãos executores cabe destaque para o papel assumido pelos municípios A inclusão de um leque mais amplo de atores no APT contribuiu de um lado para a complexificação do arranjo institucional do programa e de outro para a retomada do protagonismo dos municípios e consequentemente das elites locais na reconfiguração do desenho de novos pactos políticos em torno da água 33 Para além de divergências políticoinstitucionais desde o seu início o APT sofreu duras críticas no que se refere à simplificação do seu desenho metodológico e até mesmo de uma descaracterização de seus elementos mais inovadores Estes incluíam o envolvimento e a capacitação das famílias beneficiadas focalização em famílias chefiadas por mulheres dinamização da economia local e descentralização do modelo de governança mediante o fortalecimento da sociedade civil local Tais críticas reforçaram a pressão para que a coordenação do APT realizasse ajustes no seu desenho aproximandoo dos componentes mais inovadores que constavam no P1MC No entanto dada a escala geográfica de implementação e a complexidade de seu arranjo Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 10 institucional os ajustes configuraramse mais como uma bricolagem institucional do que com um novo desenho de fato Nogueira D 2009 isto é a elaboração de um novo desenho metodológico inspirado em alguns componentes do P1MC foi uma tentativa de dar uma resposta rápida às duras críticas recebidas mas que na prática pouco guardou do seu conteúdo original em seu processo de implementação particularmente no que se refere ao seu potencial de transformação e democratização do acesso à água 34 Essa bricolagem institucional configurouse portanto como novo arranjo de política que combinou elementos do moderno ao buscar manter um modelo de governança descentralizado e participativo fundamentado no desenho do P1MC e do tradicional ao dialogar com as oligarquias locais incialmente não incorporadas na etapa de implementação Vale notar que estas oligarquias foram reconhecidas como atores centrais em sua governança Além disso o novo arranjo mesclou componentes e regras formais ao reproduzir a estrutura de governança proposta no novo desenho e informais ao ignorar alguns dos critérios de priorização existentes Este processo de bricolagem materializou a reprodução de uma série de divergências político institucionais e de diferentes concepções de desenvolvimento na elaboração das políticas públicas e acabou por não operar a desejada ruptura nas assimétricas relações de poder que permeiam as iniciativas de acesso à água no Semiárido Discussão Divergências políticas e concepções de desenvolvimento 35 Parte das reações ao APT se deu em torno das características das tecnologias priorizadas principalmente no que se refere às diferenças entre as cisternas de placas e de polietileno A ASA trouxe para o debate uma série de críticas às cisternas de polietileno Dentre elas sua baixa capacidade de dinamização do desenvolvimento local uma vez que a compra de grandes lotes de cisternas de poucas empresas contribuiria para a concentração de rendimentos Em contraste o processo de construção de cisternas de placas foi reconhecido por seu potencial de gerar renda de forma desconcentrada para pedreiros mobilizadores comunitários e técnicos de ONG além de movimentar a economia local onde são comprados os materiais de construção ASA 2011 36 Críticas semelhantes surgiram também na academia Estudos mostraram o potencial do P1MC em promover uma reflexão sobre a gestão e o manejo comunitário dos recursos hídricos e a articulação com organizações da sociedade civil de base local Silva D 2017 Pereira M 2016 A participação das famílias e considerada relevante para a apropriação da tecnologia no processo de captação da água garantia de sua qualidade e manutenção do sistema no longo prazo Pereira M 2016 Nogueira D 2013 37 A qualidade do material também foi questionada Argumentouse por exemplo que as cisternas de polietileno não seriam adequadas à região semiárida por não resistirem às altas temperaturas resultando em deformação do material e aquecimento da água armazenada Pereira M 2016 Vale notar que algumas desvantagens das cisternas de placas foram mencionadas cabendo destaque para o fato do processo de construção exigir pedreiros qualificados Nogueira D 2013 possibilidade de fissuras por onde a água vaza e necessidade de intervalo de três semanas entre a fabricação das placas e o início do levantamento das paredes Gnadingler J 1999 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 11 38 No entanto os estudos comparativos entre as duas tecnologias ainda são pouco conclusivos Por exemplo no estado do Ceará houve divergência entre regiões Trairi e Caucaia quando os beneficiários foram questionados sobre a melhor solução cisternas de placa ou polietileno para o abastecimento de água Schmitt J 2015 No estado do Rio Grande do Norte estudos indicaram uma rejeição do público à cisterna de plástico alegando menor durabilidade do produto industrializado e orientação inadequada quanto ao manejo da água Morais H Paiva J e Souza W 2017 Nos estados de Bahia e Pernambuco Juazeiro e Petrolina entrevistas realizadas em maio de 2019 indicaram certa preferência pelas cisternas de polietileno no que se refere à manutenção da qualidade da água armazenada Por outro lado a maior parte destas cisternas não se encontrava conectada aos telhados e era utilizada como reservatório para água distribuída por caminhãopipa ou poços artesianos enquanto as cisternas de placa estavam em sua maioria conectadas aos telhados das casas A justificativa recorrente para a desconexão dos telhados é a ausência ou insuficiência de chuva Ainda sim predomina a percepção dos gestores e beneficiários de que a possibilidade de utilização como reservatório é um grande avanço pois possibilita o armazenamento de água próximo à residência Tudo isso indica falhas na implementação dos programas especialmente no que se refere ao monitoramento ou mesmo à ausência de uma avaliação expost 39 Uma série de instituições gestoras entrevistadas também demonstraram preferência em relação às cisternas de placa O MDS ratificou as vantagens já elencadas nesse trabalho geração de emprego e renda baixo custo comparado com as cisternas de polietileno A Codevasf destacando o menor custo em relação às de polietileno Enquanto a FBB tomou uma decisão técnica de apoiar a cisterna de placas no âmbito de seus projetos 40 Os estudos mencionados de avaliação de impacto englobam um número muito limitado de beneficiários e de localidades e são pouco sistemáticos Estudos mais amplos e aprofundados seriam necessários para melhor embasar este debate Ainda assim mesmo os estudos mais favoráveis às cisternas de polietileno recomendam uma revisão dos mecanismos de instrução que fortaleça as aptidões das famílias na manutenção e higienização do sistema além de uma analise mais aprimorada das condicoes de acesso a agua em cada microrregiao Schmitt J 2015 Mota D Vianna M e Lacerda K 2016 41 Mais do que uma divergência sobre o potencial e os limites das tecnologias de armazenamento de água a mudança no desenho original do P1MC resultou em mudanças políticas e alteração no papel de cada instituição envolvida Com o lançamento do APT a parceria com a ASA foi brevemente interrompida O atrito entre a ASA e o governo federal deuse num contexto de divulgação de escândalos de desvio de recursos públicos envolvendo convênios com ONG e o Ministério do Esporte Apesar de não haver nenhum indício de irregularidades por parte da AP1MC e este modelo de parceria ter sido considerado transparente por diversos analistas Pereira M 2016 as regras relativas às transferências de recursos da União foram alteradas 42 Segundo representantes do MI o apoio à distribuição de infraestruturas descentralizadas de acesso à água ilustrava uma gradual incorporação da lógica de convivência com o Semiárido nas ações deste ministério De Nys E e Engle N 2014 Todavia de acordo com representantes da ASA e alguns pesquisadores a persistência das cisternas de plástico significava uma nova versão da lógica de combate à seca dada a concentração de recursos em poucos fornecedores o baixo envolvimento das Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 12 famílias e das organizações da sociedade civil e a transferência de tecnologias desenvolvidas em outros países e não necessariamente adaptadas às condições ambientais do Semiárido Pereira M 2016 ASA 2011 43 Diante da pressão da sociedade civil e de membros do governo os convênios foram retomados por meio do Programa Cisternas apresentado na seção anterior No Programa APT a distribuição de cisternas de polietileno pela Codevasf Dnocs e Funasa foi mantida Além disso foi definido um critério de contratação de empresas que utilizassem mão de obra local tanto na produção quanto na implementação de cisternas Neste contexto uma multinacional mexicana que ganhou a licitacao para o primeiro lote de cisternas construiu fabricas em PetrolinaPE PenedoAL TeresinaPI e Montes ClarosMG O MI também buscou estabelecer um desenho e modelo de interlocucao com os parceiros e beneficiarios inspirado no modelo da ASAMDS o que incluiu a criação de comitês gestores estaduais e municipais Todavia estes não contavam com a mesma capilaridade institucional das UGM da ASA o que dificultou a implementação do novo desenho e facilitou a reprodução da lógica já existente MDS 2015 44 Em resumo o processo descrito neste artigo ilustra uma série de mudanças incrementais Lindblom C 1979 baseadas em disputas negociações e colaboração entre o governo federal e organizações da sociedade civil no que se refere à concepção e às formas de implementação dos programas de acesso à água A distribuição dos recursos hídricos envolve disputas políticas e controvérsias em torno das distintas concepções de desenvolvimento do Semiárido nordestino Ao longo do tempo os programas foram passando por mudanças incrementais fruto da dupla relação de colaboração e oposição entre o governo e as organizações da sociedade Houve interrupções do programa principalmente em funcao de alteracoes das regras de repasse e uso de recursos publicos 45 No entanto cabe mencionar que sem a parceria do governo federal e do setor privado por meio da Febraban dificilmente o P1MC alcançaria a atual abrangência em todo o Semiárido Por outro lado a interação entre os atores locais envolvidos no P1MC e os órgãos públicos municipais em especial as prefeituras tem sido baixa Este cenário estaria relacionado à preocupação em se distanciar de possíveis capturas clientelistas A participação das prefeituras mostrouse importante para transpor gargalos do programa em diversas circunstâncias porém estas interações não foram suficientemente adensadas Andrade J e Cordeiro J 2016 Por uma abordagem com base nas vulnerabilidades socioambientais 46 Independentemente do arranjo institucional as cisternas apresentamse como uma alternativa na garantia ao acesso à água para o abastecimento humano e a pequena produção aumentando assim a segurança hídrica das famílias rurais que vivem afastadas dos aglomerados comunitários Tratase de uma estratégia de baixo custo e impacto ambiental praticamente nulo quando comparado ao impacto gerado pelas grandes obras de infraestrutura hídrica historicamente priorizadas na região No entanto as cisternas não constituem soluções definitivas para as questões da vulnerabilidade social e climática no Semiárido pois nem sempre há água suficiente para enchêlas Tal característica tem colaborado para a perpetuação de políticas Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 13 emergenciais como a dos carrospipa e ressalta a necessidade da continuidade dos investimentos em infraestrutura e formação Neste contexto tanto o P1MC quanto o APT devem ser considerados como iniciativas absolutamente relevantes e necessárias mas não suficientes para o atingimento da segurança hídrica das famílias sertanejas 47 De fato a meta de universalização torna o Programa APT uma iniciativa de grande relevância na direção da garantia do direito humano ao acesso à água Entretanto a redução das vulnerabilidades socioambientais requer abordagens mais amplas que vão além da distribuição de infraestruturas hídricas São necessárias abordagens integradas para enfrentar os desafios da multidimensionalidade da pobreza 48 Aspectos como o avanço nas condições de saúde educação redução do tempo e esforço gastos nos deslocamentos para a obtencao de agua tarefa executada principalmente por mulheres e meninas de diferentes idades têm sido reconhecidos por diversos estudos e autores Nogueira D 2013 Pereira M 2016 TCU 2006 Em Pernambuco e na Paraíba houve uma diminuição da evasão escolar de meninas nos períodos da seca Nogueira D 2009 Na Bahia observouse por exemplo uma reducao da mortalidade por diarreia e outras causas evitáveis Contudo a mortalidade proporcional por estas causas permanece elevada e sua redução requer intervencoes multissetoriais por meio da articulação de políticas que enfrentem de forma mais abrangente seus determinantes sociais Rasella D 2013 Por exemplo a integração entre políticas sociais e sanitárias com as políticas habitacionais de inclusão produtiva e ações regulares de controle da qualidade da água armazenada é considerada fundamental Andrade J e Nunes M 2017 Para captar o volume de agua suficiente para encher a cisterna e necessario que o telhado da residencia esteja em boas condicoes estruturais e possua area de pelo menos 40m2 o que não representa uma realidade em todo Semiárido Andrade J e Nunes M 2017 49 O cruzamento de informações das bases de beneficiários do APT e de outras ações do PBM por meio do CadÚnico sugere que muitas famílias foram incluídas num processo mais amplo de superação da situação de extrema pobreza A condicionalidade da instalação de cisternas de abastecimento doméstico para a instalação de cisternas produtivas por meio do Programa P12 também denota uma atuação mais integrada por parte do governo federal na ampliação do acesso à água no Semiárido Outras políticas públicas foram sendo agregadas nesse contexto ampliando o acesso das famílias beneficiárias a serviços públicos como a emissão de documentos pessoais de identificação e ações de assistência técnica e extensão rural por meio do Programa Fomento do MDS No entanto uma série de fatores políticos e operacionais limita o aprofundamento deste tipo de abordagem Milhorance C et al 2019a 50 Além do mais a relativa autonomia dos agentes implementadores das cisternas de placa leva a resultados positivos em termos de apropriação das tecnologias e de articulação das políticas de redução da pobreza Estudos têm mostrado por exemplo o papel informal dos agentes locais na articulação destas ações com políticas de acesso ao crédito rural e de vendas institucionais da agricultura familiar Milhorance C et al 2019a 51 Além do desafio de integração programática uma questão adicional na redução das vulnerabilidades socioambientais é o avanço das mudanças climáticas e dos processos de desertificacao em curso no Semiarido Martins M et al 2017 Silva B et al 2019 Marengo J et al 2019 Estes cenarios indicam desafios crescentes e maior complexidade no atendimento das demandas de agua principalmente das populacoes Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 14 rurais difusas Alem disso as desigualdades no acesso a agua podem exacerbar ainda mais as clivagens de gênero Nogueira D 2013 étnicoraciais e geracionais já existentes Nogueira D 2017 Pereira M 2016 52 Neste contexto a perspectiva da adaptação às mudanças climáticas não pressupõe um retorno às soluções hidráulicas orientadas pela percepção de que a questão da seca se limita ao fenômeno climático Pelo contrário ela integra questões sociais estruturais em que os condicionantes naturais estão imbricados com os de natureza humana e principalmente política Princípios de equidade estão estreitamente relacionados à identificação das vulnerabilidades O foco nas questões de governança e tomada de decisão é considerado fundamental para promoção da capacidade adaptativa especialmente num contexto de assimetrias de poder e no acesso aos recursos Adger N 2006 Parte desta literatura argumenta ainda que as intervenções políticas devem reconhecer a pluralidade de tipos de conhecimento e de sistemas de governança que são usados para gerenciar riscos e promover a resiliência Adger N 2006 53 Estudos têm mostrado a necessidade de se adaptar as características das cisternas em determinadas regiões por exemplo a área do telhado área de captação e o dimensionamento da cisterna para que a população local tenha acesso à água mínima necessária para uso As medidas de manejo assinadas para atender ao déficit hídrico da população semiárida devem ser adequadas à realidade de cada localidade Isso permitirá além da aplicação de tecnologias mais eficientes para as características locais maior economia na implementação das medidas de gestão propostas Rodriguez R et al 2016 Sistemas de policulturas também são reconhecidos por garantir maior segurança alimentar em contextos de instabilidade ambiental Portanto a articulação entre a disseminação de cisternas produtivas e práticas de produção agrícola mais resilientes é fundamental neste processo 54 Por fim mais do que uma estratégia de convivência baseada no aprendizado sobre o histórico do clima na região será preciso incorporar às políticas de promoção do acesso à água no Semiárido os impactos já conhecidos e as projeções de aumento da variabilidade climática Tal consideração é coerente com posições de determinados atores institucionais por exemplo de representantes do Ministério da Fazenda Além de incorporar as projeções climáticas no planejamento público o representante entrevistado destacou a necessidade de se rever o investimento em ações emergenciais que se tornaram rotineiras com base nestas projeções No entanto tal percepção ainda não é difundida ou materializada no âmbito da administração pública 55 Outro exemplo é a redefinição do valor de construção das cisternas instaladas pela FBB para incluir o abastecimento com uma carga de água por carropipa Tal opção foi reativa aos impactos da seca de 20122016 possivelmente associados à intensificação de eventos climáticos extremos associada às mudanças climáticas globais Portanto além dos desafios políticoinstitucionais decorrentes das mudanças programáticas e metodológicas observadas na transição do P1MC ao APT novos desafios se impõem às políticas de promoção do acesso à água no Semiárido Além da capacidade de integração das intervenções em um mesmo território será importante incorporar o debate das alterações climáticas no próprio planejamento das políticas públicas estabelecendo maior flexibilidade institucional a fim de garantir capacidade de revisão e ajuste ao longo do tempo e considerando as projeções climáticas e não apenas seu histórico Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 15 Considerações finais e perspectivas 56 O objetivo de universalização do acesso à água torna os programas P1MC APT e Cisternas iniciativas de grande relevância na promoção do direito humano ao acesso à água e na busca da segurança hídrica e alimentar particularmente em áreas semiáridas onde o acesso aos serviços básicos é marcado por desigualdades sociais e políticas Estudos que demonstram as vantagens e desvantagens de cada tipo de tecnologia ainda carecem de avaliações mais sistemáticas Ainda assim a cisterna é sinônimo de autonomia independentemente do tipo de tecnologia e do acesso a outro tipo de abastecimento oferecendo um acesso mínimo à água para famílias rurais do Semiárido Sua eficácia porém depende do uso sustentável da água e da compreensão pelas famílias sobre os limites de armazenamento em período de estiagem e sobre o tratamento da água para consumo 57 No entanto a redução das vulnerabilidades socioambientais requer abordagens mais amplas e transformadoras que vão além da distribuição de infraestruturas hídricas A mobilização social e a formação para a gestão descentralizada da água contribuem para ampliar o impacto e os ganhos sociais da tecnologia e portanto merecem ser mantidas e aprofundadas Assistência técnica para construção e manutenção das cisternas e outros tipos de infraestrutura formação das famílias para garantia da manutenção da cisterna e da qualidade da água armazenada cultivo de alimentos saudáveis além do fortalecimento da organização social incluindo a transversalização da questão de gênero nos diversos ciclos da integração das políticas públicas em nível local são alguns dos aspectos capazes de serem fortalecidos As tecnologias sociais têm o potencial de aprofundar o debate sobre os contextos locais e políticos que são a base de qualquer estratégia de redução das vulnerabilidades 58 As divergências e os conflitos observados na evolução dos programas de distribuição de cisternas não se limitam ao tipo de material empregado mas a concepções e projetos de desenvolvimento e a atores políticos A resposta tem sido a manutenção de ambas estratégias de forma paralela A bricolagem institucional foi o caminho encontrado para formulação de desenhos de políticas baseados em experiências de sucesso concebidas a partir de novos rearranjos institucionais delineados para diferentes escalas e modelos de governança concebidos a partir de realidades menos complexas O aumento da escala ainda é um dos grandes desafios e esbarra na tentativa de replicar iniciativas locais ou regionais de sucesso para realidades de maior alcance sob pena de seus desenhos metodológicos apresentarem pouca efetividade Diante deste contexto a compreensão das implicações políticas causadas pela mudança de estratégia a partir do lançamento do APT é relevante para se avançar nos processos de negociação e de formulação de iniciativas mais efetivas 59 Finalmente mas não menos importante vale destacar a diminuição crescente dos recursos destinados nos últimos anos aos programas aqui analisados resultando na descontinuidade dos arranjos institucionais apresentados e na próxima execução das políticas As justificativas são de várias naturezas Estas incluem a crise fiscal entre União estados e municípios e tangenciam a crise das instituições democráticas participativas incluindo o questionamento acerca da legitimidade e a efetividade das organizações da sociedade civil Todavia subjacente a todos esses aspectos há que se reconhecer que a mudança na orientação ideológica do governo federal e a opção por um projeto de desenvolvimento liberalconservador contribuiu para marginalização Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 16 das políticas sociais que preconizam um desenvolvimento mais democrático e inclusivo induzido pelo Estado Tanto o processo de fragilização destas políticas quanto seu impacto na garantia do acesso à água e os mecanismos emergentes de resistência merecem ser analisados em uma agenda futura de pesquisa BIBLIOGRAFIA Adger Neil Vulnerability Global Environmental Change 16 3 2006 p26881 Agência Nacional de Águas Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil Brasília ANA 2013 Andrade Jackeline Amantino e Cordeiro José Raimundo Uma discussão sobre a possibilidade da criação institucional e sinergia entre Estado e sociedade o caso do P1MC no Semiárido brasileiro Cadernos EBAPE BR 14 2016 p55168 Andrade Jucilaine e Nunes Marcos Antônio Acesso à água no Semiárido Brasileiro uma análise das políticas públicas implementadas na região Revista Espinhaço UFVJM março 2017 p 2839 Andrade Tafne et al Estratégias de adaptação e gestão do risco o caso das cisternas no semiárido brasileiro Climacom Cultura Científica Pesquisa Jornalismo e Arte a 2 vol 2 2015 ASA Cisternas de PVC solução ou armadilha Panfleto Recife Articulação do Semiárido 2011 Bonnal Philippe e Piraux Marc Actions publiques territoriales en milieu rural et innovations 12 2010 Bursztyn Marcel e Chacon Suely Ligações perigosas proteção social e clientelismo no Semiárido Nordestino Estudos Sociedade e Agricultura Rio de Janeiro vol 19 n 1 2011 p3061 Bursztyn Marcel O poder dos donos Planejamento e clientelismo no Nordeste 3a edição Rio de Janeiro Garamond 2008 Campos Arnoldo e Melo Alves Adriana O Programa Água para Todos ferramenta poderosa contra a pobreza In O Brasil sem miséria organizado por Tereza Campello Tiago Falcão e Patricia Vieira da Costa 1a edição 2014 p46792 Brasília Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Cardoso Gil A Atuação do Estado no Desenvolvimento Recente do Nordeste João Pessoa Editora Universitária 2007 De Nys Erwin e Lee Engle Nathan Convivência com o Semiárido e Gestão proativa da seca no Nordeste do Brasil Uma nova Perspectiva The World Bank 2014 Gandure Sithabiso Walker Sue Botha Jacobus Farmers perceptions of adaptation to climate change and water stress in a South African rural community Environmental Development vol 5 p 3953 2013 Gnadingler Johann Apresentação técnica de diferentes tipos de cisternas construídas em comunidades rurais do semiárido brasileiro In Anais da 9a Conferência Internacional sobre Sistemas de Captação de Agua da Chuva Petrolina 1999 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 17 Lindblom Charles E Still Muddling Not Yet Through Public Administration Review 39 n 6 1979 httpsdoiorg102307976178 Marengo Jose Cunha Ana Paula Soares Wagner et al Increase Risk of Drought in the Semiarid Lands of Northeast Brazil Due to Regional Warming above 4 C In Climate Change Risks in Brazil organizado por Carlos A Nobre Jose A Marengo e Wagner R Soares 2019 p 181200 Springer International Publishing Martins Minella HochrainerStigler Stefan e Pflug Georg Vulnerability of Agricultural Production in the Brazilian SemiArid An Empirical Approach Including Risk 2017 p23 MDS Tabela Programa Água para Todos Tecnologias de captação de água entregues no Semiárido de 2003 a fev2016 2016 httpmdsgovbrareadeimprensanoticias2016marcocisternas garantemaguasegurancaalimentarevidadignaaossertanejosaptfev2016pngview acesso efectuado em 14012020 MI Programa Água para Todos Os objetivos do programa 2012 httpmigovbrwebguest objetivos acesso efectuado em 14012020 MI Perguntas Frequentes programa Água para Todos Quais as características da cisterna de polietileno 2011 httpmigovbrperguntasfrequentesAGT12 acesso efectuado em 14012020 MPDG PPA Cidadão Programa 2069 Segurança Alimentar e Nutricional Relatório de Avaliação do Programa 2017 httpsppacidadaoplanejamentogovbrsitioPPApaginastodoppa objetivosxhtmlprograma2069ep1 acesso efectuado em 14012020 Milhorance Carolina Sabourin Eric Mendes Priscylla Adaptation to climate change and policy interactions in Brazils semiarid region Montreal 4th International Conference on Public Policy 2019a Milhorance Carolina Mendes Priscylla Patrícia Mesquita et al O desafio da integração de políticas públicas para a adaptação às mudanças climáticas no Semiárido brasileiro Revista Brasileira de Climatologia Ano 15 vol 24 2019b Morais Hugo Azevedo Rangel de Paiva Juarez Azevedo de e Sousa Washington José de Avaliação do Programa Um Milhão de Cisternas Rurais eficácia eficiência e efetividade nos territórios do Rio Grande do Norte 20032015 Revista de Políticas Públicas 21 1 2017 p13358 Nóbrega Rodolfo et al Água de chuva para uso doméstico In Galvão CO et al Recursos hídricos para a convivência com o semiárido abordagens sobre o semiárido por pesquisadores no Brasil Portugal Cabo Verde Estados Unidos e Argentina Porto Alegre ABRH Recife Editora Universitária UFPE p377394 2013 Nogueira Daniela Segurança Hídrica Adaptação e Gênero o caso das cisternas para captação de água de chuva no Semiárido brasileiro Sustentabilidade em Debate vol 8 n 3 p2236 dez 2017 Nogueira Daniela Femmes et eau dans le Sertão Le programme Un million de citernes Cahiers des Amériques Latines 6364 2010 2013 httpjournalsopeneditionorgcal790 DOI 104000cal790 2013 Nogueira Daniela Gênero e Água Desenhos do Norte Alternativas do Sul análise da experiência do Semiárido brasileiro na construção do desenvolvimento democrático Tese de Doutorado Brasília Universidade de Brasília 2009 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 18 Mota Daniel Martins Papini Vianna Marcos Rocha e Lacerda Kássio André Avaliação das cisternas para armazenagem de água pluvial construídas de placas cimentícias prémoldadas implantadas no interior do estado de Minas Gerais Lisboa 2016 Pereira Maria Cecília Água e convivência com o Semiárido múltiplas águas distribuições e realidades Tese de doutorado Fundação Getúlio Vargas 2016 Rasella Davide Impacto do Programa Água para Todos PAT sobre a morbimortalidade por diarreia em crianças do Estado da Bahia Brasil Cadernos de Saúde Pública 29 1 2013 p4050 Rodriguez Renata Pruski Fernando e Singh Vijay Estimated Per Capita Water Usage Associated with Different Levels of Water Scarcity Risk in Arid and Semiarid Regions Water Resources Management 30 4 2016 p131124 Santana Vitor Arsky Igor e Soares Carlos Democratização do acesso à água e desenvolvimento local a experiência do Programa Cisternas no Semiárido brasileiro Anais do I circuito de debates acadêmicos 2011 Schmitt João Felipe Adoção e inovação no combate à seca no semiárido um estudo com os usuários de cisternas de polietileno nos municípios de TrairiCE e CaucaiaCE Fortaleza Universidade Estadual do Ceará 2015 Silva Bruce Amorim Ana Cleide Silva Claudio Lucio Paulo e Barbosa Lara RainfallRelated Natural Disasters in the Northeast of Brazil as a Response to OceanAtmosphere Interaction Theoretical and Applied Climatology julho 2019 Silva Darly Combate à desertificação e a COP dos Pobres Terceiro incluído NUPEATIESAUFG vol 4 n 1 JanJun p123 2014 Silva João Paulo Políticas públicas de enfrentamento à problemática da seca no Semiárido mineiro uma análise do programa água para todos na perspectiva da avaliação de quarta geração Dissertação de Mestrado Belo Horizonte Universidade Federal de Minas Gerais 2017 TCU Relatório de avaliação de programa Ação Construção de Cisternas para Armazenamento de Água Relator Ministro Guilherme Palmeira Brasília Tribunal de Contas da União Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo 2006 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 19 ANEXOS Fonte Autores e ASA Brasil NOTAS 1 Ministério precursor do MDS criado em 2004 RESUMOS A universalização do acesso das populações rurais à água permanece um desafio em regiões como o Semiárido brasileiro Uma série de políticas públicas em especial o Programa Um Milhão de Cisternas tem contribuído desde o início dos anos 2000 para alcançar este objetivo promovendo a construção de cisternas de captação de água da chuva Apesar dos resultados de ampliação do acesso à água e do grau de inovação do seu desenho metodológico mudanças significativas na concepção e no arranjo políticoinstitucional do programa foram observadas a partir de 2011 com a criação do Água para Todos Com base em dados secundários relatórios de avaliação e entrevistas com gestores federais e locais nos estados da Bahia e Pernambuco o presente artigo examina o processo político que levou a tal mudança trazendo para o centro da discussão suas motivações evolução e as implicações Além do interesse analítico de um processo de mudança programática e de disputa entre burocracias estatais incluindo suas dinâmicas de alianças com atores sociais o artigo discute os desafios de formulação de políticas públicas e de sua Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 20 implementação em nível local Por fim o programa é discutido sob uma perspectiva mais ampla de redução das vulnerabilidades socioambientais e de necessidade de ajustes frente a desafios decorrentes das mudanças climáticas globais The universalization of access to water in rural communities remains a challenge in regions like the Brazilian semiarid Several public policies especially the One Million Cisterns Program has contributed since the beginning of the 2000s to achieve these goals by promoting the establishment of rainwater catchment cisterns Despite the results in terms of increase of the access to water and the degree of innovation in its methodological design significant changes in the conception and politicalinstitutional arrangement of the program were observed from 2011 onwards with the creation of the Water for All Program Based on secondary data evaluation reports and interviews with national and subnational managers in the states of Bahia and Pernambuco this article examines the political process that led to such change shedding light on its motivations evolution and implications In addition to the interest of analysing a process of programmatic change and dispute between state bureaucracies including their patterns of alliances with social actors the article discusses the challenges of policy formulation and implementation at the local level Finally the program is discussed with regard to the reduction of socioenvironmental vulnerabilities and the need for adjustments in the face of global climate change challenges Luniversalisation de laccès à leau pour les populations rurales reste un défi dans des régions telles que la région semiaride du Brésil Une série de politiques publiques notamment le programme Un million de citernes a contribué depuis le début des années 2000 à atteindre cet objectif en préconisant la construction de citernes de collecte des eaux de pluie Malgré les résultats atteints en matière délargissement de laccès à leau et le degré dinnovation dans sa conception méthodologique des changements significatifs dans la conception et larrangement politicoinstitutionnel du programme ont été observés à partir de 2011 avec la création du programme Eau pour tous En se fondant sur des données secondaires des rapports dévaluation et des entretiens avec des responsables fédéraux et locaux dans les états de Bahia et de Pernambuco cet article examine le processus politique qui a conduit à ce changement en plaçant ses motivations son évolution et ses implications au centre de la discussion Outre lintérêt analytique dun processus de changement programmatique et de conflit entre les bureaucraties étatiques notamment leur dynamique dalliances avec les acteurs sociaux larticle aborde les défis de la formulation et de la mise en œuvre des politiques publiques au niveau local Enfin le programme est examiné sous une optique plus large de réduction des vulnérabilités socioenvironnementales et de la nécessité de procéder à des ajustements face aux défis du changement climatique mondial ÍNDICE Motsclés Brésil eau arrangements institutionnels vulnérabilité semiaride Keywords Brazil water institutional arrangements vulnerability semiarid Palavraschave Brasil água arranjos institucionais vulnerabilidade Semiárido Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 21 AUTORES DANIELA NOGUEIRA Daniela Nogueira é pesquisadora associada e pósdoutoranda do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília onde participa da RedeClima e do Projeto INCTOdisseia Observatório das Dinâmicas Socioambientais Sua área de pesquisa concentrase nas políticas de adaptação às mudanças climática vulnerabilidades socioambientais e capacidade adaptativa governança global para segurança hídrica com perspectiva de gênero e gestão participativa Coordenou o Dossiê Gênero uma abordagem necessária à gestão das águas da Revista Sustentabilidade em Debate v8 n3 2017 e publicou recentemente o livro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 Água e Saneamento estudos e proposição de medidas para implementação e monitoramento da Agenda 2030 no Brasil Brasília IPEA 2019 no prelo danielanogueiragmailcom CAROLINA MILHORANCE Carolina Milhorance é pósdoutoranda do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília Seus trabalhos de pesquisa têm como foco as políticas de adaptação às mudanças climáticas e vulnerabilidades socioambientais no Brasil a cooperação sulsul no setor rural e o papel das organizações internacionais na transferência de políticas públicas Publicou recentemente o livro New Geographies of Global PolicyMaking SouthSouth Networks and Rural Development Strategies Routledge New York London 2018 cmilhorancegmailcom PRISCYLLA MENDES Priscylla Mendes é doutoranda do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília Participa dos projetos Rede Clima subrede Desenvolvimento Regional INCTOdisseia Observatório das Dinâmicas Socioambientais e Artimix Articulação das Políticas de Adaptação às Mudanças Climáticas na América Latina e no Caribe Desenvolve pesquisa sobre interação de políticas de adaptação e de mitigação às mudanças climáticas para agricultura familiar na Bacia do São Francisco Sua mais recente publicação foi o capítulo Clima políticas públicas e adaptação vulnerabilidades em três contextos do livro Agricultura de baixa emissão de carbono em regiões semiáridas experiência brasileira Petrolina Embrapa Semiárido 2019 no prelo priscylladayserhotmailcom Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas IdeAs 15 2020 22 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro Introdução O acesso à água um direito humano fundamental configurase como um desafio persistente no Semiárido brasileiro região historicamente marcada pela escassez hídrica e por profundas desigualdades sociais Diante desse panorama o presente artigo se propõe a analisar a trajetória das políticas públicas voltadas para a garantia desse direito com ênfase na transição do Programa Um Milhão de Cisternas P1MC para o Programa Água para Todos APT Através da análise de dados secundários relatórios de avaliação e entrevistas com gestores buscase desvelar as motivações a evolução e as implicações dessa mudança paradigmática O documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar 2019 oferece um contraponto crucial ao retratar a realidade do Agreste Nordestino e a relação das comunidades com a água enriquecendo a discussão sobre os desafios e as potencialidades das políticas públicas de acesso à água no Semiárido O Contexto da Escassez e as Respostas Institucionais O Semiárido brasileiro embora inserido em um país com vastos recursos hídricos contrasta essa abundância com a distribuição desigual da água refletindo as disparidades socioeconômicas e regionais que permeiam o território nacional A busca por soluções para essa problemática tem sido uma constante na história da região com a implementação de diversas políticas públicas ao longo do tempo O Brasil é um país privilegiado no que se refere ao volume de recursos hídricos detentor de cerca de 13 da água doce do planeta Agência Nacional de Águas 2013 Todavia a disponibilidade de água no território nacional não é uniforme e a oferta de água tratada reflete contrastes associados ao processo de desenvolvimento nacional bem como às desigualdades sociais e regionais dele resultantes Desde as iniciativas de combate à seca baseadas na construção de grandes infraestruturas hídricas até as estratégias desenvolvimentistas e setoriais como a criação da SUDENE e a implantação de usinas hidrelétricas as respostas institucionais ao desafio da água no Semiárido se sucederam muitas vezes sem alcançar resultados efetivos na melhoria das condições de vida da população A centralização na gestão dos recursos hídricos e a reprodução das estruturas de poder existentes foram entraves frequentes na busca por soluções mais justas e equitativas A partir da seca de 19921993 um ponto de inflexão se delineia com o reconhecimento dos limites das políticas tradicionais e o surgimento de novos atores e perspectivas Organizações da sociedade civil passaram a pressionar por ações mais concretas e a dialogar com o governo na construção de alternativas para o Semiárido A criação da Política Nacional de Recursos Hídricos PNRH em 1997 e a elaboração da Declaração do Semiárido em 1999 consolidaram essa mudança de paradigma com a valorização da gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos e a busca por soluções que promovessem a convivência com a região em vez do mero combate à seca O Programa Um Milhão de Cisternas Inovação e Participação Nesse contexto de transformação o P1MC emerge em 2003 como uma iniciativa inovadora focada na construção de cisternas de placas para captação de água da chuva Uma das principais ações neste contexto é o Programa Um Milhão de Cisternas P1MC coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDS e executado pela rede de organizações da sociedade civil Articulação do Semiárido ASA Coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDS e executado pela Articulação do Semiárido ASA o programa se destacou por seu desenho metodológico participativo com a capacitação das famílias beneficiadas e o fortalecimento da sociedade civil na gestão dos recursos hídricos Essa abordagem diferenciada conferiu ao P1MC um grande potencial de transformação social promovendo a autonomia das comunidades e a democratização do acesso à água O programa obteve reconhecimento nacional e internacional sendo considerado um exemplo de política pública bemsucedida no combate à pobreza rural no Semiárido No entanto apesar dos resultados positivos o P1MC também enfrentou desafios como a capacidade limitada de execução e a busca por sua universalização A Transição para o Programa Água para Todos Disputas e Desafios Em 2011 o governo federal lançou o APT com o ambicioso objetivo de universalizar o acesso à água na zona rural Coordenado pelo Ministério da Integração Nacional MI o programa incorporou diferentes tecnologias hídricas incluindo cisternas de polietileno e ampliou o número de atores envolvidos em sua execução No entanto essa mudança gerou intensas disputas políticas e críticas especialmente da ASA que questionou a escolha tecnológica a centralização da gestão e a redução do seu protagonismo O presente artigo examina o processo político que levou a tal mudança criação do APT trazendo para o centro da discussão suas motivações evolução e implicações A transição do P1MC para o APT evidencia as diferentes concepções de desenvolvimento e os conflitos de interesses que permeiam a gestão dos recursos hídricos no Semiárido A opção pelas cisternas de polietileno por exemplo foi defendida pelo governo como uma forma de acelerar a implementação do programa mas criticada pela ASA e por pesquisadores que apontaram a menor capacidade de geração de renda local e a inadequação da tecnologia às condições da região Além disso a ampliação do número de órgãos executores e a diversificação das tecnologias incluídas no APT complexificaram o arranjo institucional do programa gerando desafios na sua implementação e abrindo espaço para a reprodução de velhas práticas clientelistas A tentativa de conciliar diferentes modelos de governança e critérios de priorização resultou em uma espécie de bricolagem institucional que combinou elementos modernos e tradicionais formais e informais sem necessariamente promover a ruptura das assimetrias de poder existentes Impactos Vulnerabilidades e Perspectivas Futuras Apesar das controvérsias o APT alcançou resultados expressivos em termos de ampliação do acesso à água com a entrega de mais de um milhão de cisternas entre 2011 e 2016 No entanto a avaliação dos impactos dos programas tanto em termos de acesso à água quanto de redução das vulnerabilidades socioambientais ainda carece de estudos mais sistemáticos e aprofundados A multidimensionalidade da pobreza no Semiárido exige abordagens integradas que vão além da simples distribuição de infraestruturas hídricas A mobilização social a formação para a gestão da água a assistência técnica e a articulação com outras políticas públicas são fundamentais para garantir a efetividade e a sustentabilidade das ações Além disso o avanço das mudanças climáticas e a intensificação dos eventos extremos demandam a incorporação dessa problemática no planejamento das políticas públicas com a busca por soluções mais resilientes e adaptativas A trajetória dos programas de acesso à água no Semiárido evidencia a importância da participação da sociedade civil e a necessidade de diálogo constante entre os diferentes atores envolvidos A construção de soluções efetivas e duradouras para a garantia do direito à água nessa região passa pela superação das disputas políticas pela valorização do conhecimento local e pela busca por modelos de governança mais justos equitativos e resilientes às mudanças climáticas Conexões com o Documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar O documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar 2019 oferece um olhar sensível e crítico sobre a realidade do Agreste Nordestino região marcada pela produção têxtil e por profundas desigualdades sociais A obra retrata a relação das comunidades com a água evidenciando a importância desse recurso para a subsistência a produção e a cultura local A escassez hídrica a dependência de carrospipa e a luta por melhores condições de trabalho e vida são temas presentes no documentário que se conectam diretamente com as discussões presentes no texto sobre as políticas públicas de acesso à água no Semiárido A obra audiovisual reforça a necessidade de soluções que promovam a autonomia das comunidades a participação social e a justiça ambiental em consonância com os princípios da convivência com o Semiárido Conclusão Em conclusão a análise da transição do P1MC para o APT revela os desafios e as complexidades inerentes à gestão dos recursos hídricos no Semiárido brasileiro A busca pela universalização do acesso à água embora louvável esbarra em disputas políticas divergências sobre modelos de desenvolvimento e a necessidade de adaptação às mudanças climáticas A construção de um futuro mais justo e sustentável para o Semiárido passa pela valorização da participação social pela busca por soluções integradas e pela capacidade de aprender com as lições do passado transformando desafios em oportunidades para a construção de um futuro mais promissor para todos Referências Nogueira D Milhorance C Mendes P 2020 Do Programa Um Milhão de Cisternas ao Água para Todos divergências políticas e bricolagem institucional na promoção do acesso à água no Semiárido brasileiro Idées dAmériques 15 Brito L T L Silva A S DAvila O A 2014 Avaliação técnica do programa de cisternas no Semiárido brasileiro In J Vaitsman R Paes Sousa Orgs Avaliação de programas sociais desafios metodológicos e práticos pp 213252 Brasília Ipea Marcelino M Diretor 2019 Estou me guardando para quando o carnaval chegar Documentário Brasil